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As opções de Moscovo na Crimeia O referendo na Crimeia pode levar a duas saídas. A primeira, a anexação do território pela Rússia, parecerá evidente na continuidade das últimas iniciativas de Vladimir Putin. No entanto, uma segunda opção não deve ser afastada: Moscovo poderá protelar e acabar por recusar a anexação, não só pelos elevados custos económicos e políticos, mas como plataforma para recuperar a influência na Ucrânia. É "o grande jogo" que se trava na fronteira entre a Rússia e a NATO. "Ganhar a Crimeia e perder a Ucrânia" seria uma vitória de Pirro, a maior punição para a Rússia e para os seus desígnios estratégicos. Ao contrário, recuperar a influência em Kiev — e o Kremlin tem trunfos a jogar — garante-lhe o controlo estratégico da Crimeia. Putin cometeu graves erros de cálculo em Kiev que lhe valeram uma humilhação. Mas a sua capacidade de manobra não deve ser subestimada. Sem Ucrânia não existe a União Euro-asiática que ele tem em mira para elevar a potência da Rússia. A aventura na Crimeia não apenas uniu os ucranianos contra Moscovo como assustou o Cazaquistão, o outro país indispensável para a União. O Presidente Nursultan Nazarbaiev defendeu a integridade territorial da Ucrânia e repudiou os argumentos de Putin: o Cazaquistão tem 17 milhões de "russos étnicos" e não aceitará interferências em seu nome. Putin suscitou também uma enérgica reacção dos vizinhos europeus, da Polónia aos bálticos, o que significa potenciar a acção da NATO no Leste europeu. A invasão da Crimeia — alertou a analista russa Lilia Chevtsova — põe em causa "a ordem mundial pós-Guerra Fria; é "um precedente que autoriza o Kremlin a uma intervenção directa nos assuntos de um Estado soberano"; implica uma "doutrina que ameaça a estabilidade de todo o espaço pós- soviético"; abriria caminho a uma tentativa de controlo sobre o Sul e o Leste da Ucrânia; o alvo seguinte poderia ser a Moldávia.

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As opções de Moscovo na Crimeia O referendo na Crimeia pode levar a duas saídas. A primeira, a anexação do território pela Rússia, parecerá evidente na continuidade das últimas iniciativas de Vladimir Putin. No entanto, uma segunda opção não deve ser afastada: Moscovo poderá protelar e acabar por recusar a anexação, não só pelos elevados custos económicos e políticos, mas como plataforma para recuperar a influência na Ucrânia. É "o grande jogo" que se trava na fronteira entre a Rússia e a NATO.

"Ganhar a Crimeia e perder a Ucrânia" seria uma vitória de Pirro, a maior punição para a Rússia e para os seus desígnios estratégicos. Ao contrário, recuperar a influência em Kiev — e o Kremlin tem trunfos a jogar — garante-lhe o controlo estratégico da Crimeia.

Putin cometeu graves erros de cálculo em Kiev que lhe valeram uma humilhação. Mas a sua capacidade de manobra não deve ser subestimada.

Sem Ucrânia não existe a União Euro-asiática que ele tem em mira para elevar a potência da Rússia. A aventura na Crimeia não apenas uniu os ucranianos contra Moscovo como assustou o Cazaquistão, o outro país indispensável para a União. O Presidente Nursultan Nazarbaiev defendeu a integridade territorial da Ucrânia e repudiou os argumentos de Putin: o Cazaquistão tem 17 milhões de "russos étnicos" e não aceitará interferências em seu nome. Putin suscitou também uma enérgica reacção dos vizinhos europeus, da Polónia aos bálticos, o que significa potenciar a acção da NATO no Leste europeu.

A invasão da Crimeia — alertou a analista russa Lilia Chevtsova — põe em causa "a ordem mundial pós-Guerra Fria; é "um precedente que autoriza o Kremlin a uma intervenção directa nos assuntos de um Estado soberano"; implica uma "doutrina que ameaça a estabilidade de todo o espaço pós-soviético"; abriria caminho a uma tentativa de controlo sobre o Sul e o Leste da Ucrânia; o alvo seguinte poderia ser a Moldávia.

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Tal como não se deve dar como adquirida a anexação da Crimeia, é prudente não excluir a hipótese, mesmo improvável, de Moscovo desestabilizar a Ucrânia Oriental para criar um pretexto de intervenção com consequências catastróficas.

Há um factor imponderável: Putin poderá ter ficado refém de si mesmo. A operação na Crimeia desencadeou uma vaga de "fervor imperial" na Rússia, reforçando a "paranóia do cerco", reportava ontem o Financial Times.

"Os homens fazem a história, mas não sabem a história que fazem."

O peso da geografia Ignora-se o que vai na cabeça de Vladimir Putin. Angela Merkel disse que ele parece "descolado da realidade" e "vive noutro mundo".

Esse "outro mundo" é o da velha geopolítica, o da luta pelo espaço e pelo poder. Para o Kremlin, este não é um conflito sobre legalidade internacional. "O comportamento de Putin é motivado pelas mesmas considerações geopolíticas que infuenciam todas as grandes potências, incluindo os Estados Unidos", escreve o analista americano John Mearsheimer.

O jornalista e investigador americano Robert Kaplan publicou em 2012 um livro útil: The Revenge of Geography (A vingança da geografia). É um ensaio sobre geopolítica. Publicou agora um artigo sobre a Crimeia.

Escreve: "Putin está de momento numa posição forte na Ucrânia simplesmente porque a Ucrânia é mais importante para ele do que para os Estados Unidos e até para a Europa. Importa-lhe muito mais por causa da geografia. A Ucrânia, por todas as razões conhecidas, é central para o destino da Rússia europeia, para a história e identidade da Rússia e, particularmente, para o acesso da Rússia ao Mediterrâneo, via mar Negro."

"Também por causa da geografia, os Estados bálticos, a Polónia e a Moldávia se sentem ameaçados." São contíguos à Rússia e à Ucrânia, sem barreiras naturais para os proteger. Do mesmo

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modo, "as agressões de Putin decorrem da insegurança geográfica" russa. "Um governante visionário diria que só uma sociedade civil pode, em última análise, salvar a Rússia. Mas o quadro geográfico russo é o contexto que torna compreensível Putin." Acontece é que, tendo pouca cenoura, Putin usa um grande pau.

Merkel pode considerar que os quadros mentais de Putin pertencem aos séculos XIX ou XX e que a agressão na Crimeia apenas apressa o declínio da Rússia. Isso não resolve a "paranóia do cerco".

A "finlandização" É significativo que veteranos da geopolítica, como Zbigniew Brzezinski ou Henry Kissinger, tenham mudado de opinião na questão ucraniana. Brzezinski teorizou, em 1998 (The Grand Chessboard), a necessidade de afastar a Ucrânia da Rússia e de a integrar na órbita euro-atlântica: "Sem Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império na Eurásia." Enquanto império será agressivo e não se democratizará. Na altura, Kissinger pensava sensivelmente o mesmo.

Em Fevereiro, Brzezinski propôs a "finlandização" da Ucrânia — o estatuto de rigorosa neutralidade da Finlândia durante a Guerra Fria. Há dias, Kissinger defendeu o direito da Ucrânia a escolher as suas "associações económicas e políticas", mas jamais integrada na NATO. Os EUA devem dar garantias de segurança a Moscovo. Ele já defendera esta posição há anos, quando a Administração Bush e parte da Europa tentaram alargar a NATO à Ucrânia e à Geórgia — um erro fatal.

Há uma grande discussão entre "estrategos" americanos. E também na Europa. Washington não deveria ter-se entusiasmado com o derrube de Ianukovich, deveria ter pressionado o respeito do acordo de 21 de Fevereiro, dando garantias à Rússia, escreve o analista Ian Bremmer. "Washington tem um profundo interesse em resolver o conflito mantendo a Ucrânia como um Estado-tampão democrático entre a Rússia e a NATO" (Mearsheimer).

Um analista alemão, Jan Techau, faz a autocrítica europeia. A UE não percebeu que estava no meio de um jogo geopolítico. Tomou as palavras de Putin

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como propaganda barata. "Mas, para o Presidente russo, a luta na Ucrânia não é uma aventura imperialista, mas uma luta pela sobrevivência contra o mortal inimigo ocidental." Ou oito ou oitenta.

E agora? Está em curso uma escalada em que todos se arriscam a perder — russos, europeus, americanos e, sobretudo, os ucranianos.

Putin quer mais do que a neutralidade da Ucrânia. Quer que ela continue a ser um Estado fraco e caótico que possa manipular. Estão a Europa e os EUA dispostos a pagar a salvação de uma economia em queda livre?

A ocupação da Crimeia reforçou o apelo ucraniano ao Ocidente e Moscovo arrisca-se a ver um governo anti-russo em Kiev. É o que pode "forçar a mão" a Putin.

E, muito pior do que as sanções, a sua táctica agressiva pode trazer-lhe outro efeito perverso a médio prazo: forçar a Europa a mudar a sua política energética, o que deixaria a Rússia "a pão e água".