TÍTULO: AUTOR: I - WordPress.com · 2008. 8. 20. · (Joel Birman) Há tempos os historiadores –...

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TÍTULO: Sob o giro da Arte na leitura sintomal. Objetos epistemológicos modernistas, recalque, crítica e morte na leitura historiográfica. AUTOR: Marcio Pizarro Noronha 1 (Doutor em Antropologia USP, Doutor em História PUCRS, Psicanalista) I Interlocuções teóricas no giro da Arte e a leitura sintomal. Isso significa dizer que o modernismo é a consciência crítica da modernidade e até mesmo a sua autoconsciência.(Joel Birman) Há tempos os historiadores – sejam eles historiadores da arte, da cultura ou, simplesmente, da história social e geral – têm estado interessados nos problemas e nos enigmas propostos pela arte. Na maioria das vezes, a tarefa fatídica tem sido frustrada, como o demonstra Freud, ao ler a historiografia de sua época no que diz respeito ao estudo do Moisés de Michelangelo. Pareceu-lhe que faltava não apenas empenho bibliográfico e de interpretação. Muito antes pelo contrário, no anedotário de Freud, havia até mesmo um excesso de interpretação e uma incapacidade para estar diante da Coisa Vista por parte dos profissionais e estudiosos da arte. Assim, ao ler os especialistas historiadores da arte e da cultura, filósofos da estética Freud reconhecia neles não somente a Falta de algo, a insuficiência diante do Visível, bem como identificava as superinterpretações que eram, em última instância, efeitos das condições 1 Marcio Pizarro Noronha é psicanalista, professor e pesquisador. Doutor em História (PUCRS) e Doutor em Antropologia (USP). É professor do Campus Avançado de Jataí (CAJ), UFG. Atua também na Escola de Música e Artes Cênicas – EMAC – UFG e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, nos Programas de Pós-Graduação em História e em Música. É coordenador do Grupo de Pesquisa Diretório CNPq INTERARTES: SISTEMAS E PROCESSOS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE. Foi pesquisador financiado pela Bolsa do Programa de Auxílio ao Pesquisador da FUNAPE UFG (2006).

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  • TÍTULO:

    Sob o giro da Arte na leitura sintomal.

    Objetos epistemológicos modernistas, recalque, crítica e morte na leitura

    historiográfica.

    AUTOR:

    Marcio Pizarro Noronha1

    (Doutor em Antropologia – USP,

    Doutor em História – PUCRS,

    Psicanalista)

    I

    Interlocuções teóricas no giro da Arte e a leitura sintomal.

    “Isso significa dizer que o modernismo é a consciência crítica da modernidade e até mesmo a

    sua autoconsciência.”

    (Joel Birman)

    Há tempos os historiadores – sejam eles historiadores da arte, da cultura ou,

    simplesmente, da história social e geral – têm estado interessados nos problemas e nos

    enigmas propostos pela arte. Na maioria das vezes, a tarefa fatídica tem sido frustrada,

    como o demonstra Freud, ao ler a historiografia de sua época no que diz respeito ao

    estudo do Moisés de Michelangelo. Pareceu-lhe que faltava não apenas empenho

    bibliográfico e de interpretação. Muito antes pelo contrário, no anedotário de Freud,

    havia até mesmo um excesso de interpretação e uma incapacidade para estar diante da

    Coisa Vista por parte dos profissionais e estudiosos da arte. Assim, ao ler os

    especialistas – historiadores da arte e da cultura, filósofos da estética – Freud reconhecia

    neles não somente a Falta de algo, a insuficiência diante do Visível, bem como

    identificava as superinterpretações que eram, em última instância, efeitos das condições

    1 Marcio Pizarro Noronha é psicanalista, professor e pesquisador. Doutor em História (PUCRS) e Doutor em Antropologia (USP). É professor do Campus Avançado de Jataí (CAJ), UFG. Atua também na Escola de Música e Artes Cênicas – EMAC – UFG e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, nos Programas de Pós-Graduação em História e em Música. É coordenador do Grupo de Pesquisa Diretório CNPq INTERARTES: SISTEMAS E PROCESSOS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE. Foi pesquisador financiado pela Bolsa do Programa de Auxílio ao Pesquisador da FUNAPE – UFG (2006).

  • do enigma proposto pela própria obra. Desse modo, o engano do historiador era mais

    um engodo da obra, um aprisionamento do leitor no interior da Coisa e a perda da

    perspectiva mais adequada.

    Começo o texto por esta anedota – que, em realidade, custou um trabalho de

    muitos anos em torno da escultura, por parte de Freud. Ela remonta à condicionante das

    muitas divergências no que diz respeito à leitura historiográfica e à leitura histórica, seja

    ela social ou cultural, da obra, do objeto ou do processo de e em arte.

    A grande maioria dos historiadores se reconhece – num espelhamento – na

    forma-padrão que entende qualquer uma destas realidades (obra, objeto, processo) como

    sendo sempre um objeto epistemológico-cultural-social e, nestes termos, integra-o aos

    seus métodos e aos seus procedimentos de abordagem assemelhados a outros objetos da

    pesquisa histórica.

    Tal como dizia Freud, eles fazem um espelho da obra nos seus textos, sendo este

    por vezes dirigido a espelhar a forma, reduplicando-a, sob a perspectiva gestaltica ou do

    formalismo, ou a espelhar, distorcendo-a, sob a forma da abordagem sociológica,

    interpretativa ou culturalista. De todo modo, como anuncia Freud, todos estes efeitos

    são sintomas gerados pelo processo da obra, que designa a si um lugar de enigma, de

    opacidade interpretativa, procurando quase sempre, o desvio da intepretação adequada,

    para que o enigma se mantenha.

    Neste texto, o endereçamento parte de outra direção e entende que obra, objeto

    ou processo, por conta do que viemos a conhecer como sendo o Modernismo (em arte

    tanto quanto em cultura), não pode mais ser tratado sob esta condição, mas deve ser

    observado enquanto sintoma e enquanto objeto que promove a crítica interna da própria

    modernidade.

    Desse modo, a historicidade está garantida. Mas não por conta do objeto em seu

    contexto, ou seja, do jogo entre, por exemplo, um quadro, uma escultura, um prato

    pintado, uma História em Quadrinhos, e, uma suposta contextualização que privilegia

    uma abordagem social ou cultural, traçando quase sempre planos de afirmação genérica

    a respeito dos próprios objetos, tais como este trabalho figura, exemplifica ou mostra

    uma relação da arte ou do artista com determinado contexto histórico, seja ele um

    contexto micro-histórico ou um contexto macrossociológico. Na abordagem como a

    propomos, a premissa da episteme moderna não permite pensar os “objetos artísticos”

    como efeitos do social ou da cultura, mas dá a eles a condição de objetos poéticos, que

  • problematizam a quadratura-moldura histórica da modernidade através de sua função-

    sintoma.

    Se de fato estamos a tratar de objetos poéticos, estamos explicitamente a falar da

    especificidade da condição de linguagem destes objetos e os modos como, no interior

    destas linguagens, há uma (re)construção do mundo. Os objetos da pesquisa revelam-se,

    eles próprios, integrados à sintomatologia da modernidade e na condição de seus

    discursos críticos e criativos, reinvenções do mundo, provocando, a partir do

    Renascimento um lugar para a configuração de uma gramática, de uma retórica e de

    uma semântica própria a estas poéticas.

    Portanto, todo discurso artístico a partir do Renascimento não pode prescindir de

    uma idéia de “ser moderno” e de operar com os limites da vanguarda e das

    transgressões, gerando objetos que não visam à leitura cultural da cultural, mas à sua

    leitura sintomal.

    Por outro lado, se há algum fundamento nesta episteme, aos moldes de Freud-

    Lacan bem como de Foucault, esta estética da existência promovida no conjunto da

    configuração do sujeito-objeto modernos, deverá gerar dois subprodutos sintomais, o

    desamparo (na versão de Freud) e o cuidado (tema da ética do último Foucault).

    Nestes termos, sigo o trajeto reflexivo de Joel Birman, que nos diz:

    Contudo, a fascinação do sujeito pela atualidade e pela transformação contínua do real que marcam o modernismo, regulados, como disse, pelo desejo e pelo descentramento, tem como correlato o enunciado de que a produção fundamental da modernidade é o desamparo. Por isso mesmo, o modernismo é a autoconsciência da modernidade, pois revelou aquilo que estava oculto no projeto desta, mas que ao mesmo tempo lhe era imanente. Vale dizer, o modernismo, na qualidade de crítica da modernidade, revela a dimensão problemática desta para a subjetividade. Portanto, o modernismo é um sintoma da modernidade, o que faz retornar de forma trágica o que esta quis recusar com as pretensões do sujeito de ser autônomo e soberano, isto é, autocentrado nos registros do eu e da consciência. É nesses termos que os significantes autoconsciência e crítica devem ser considerados: entrelaçados na tessitura do sintoma, ou seja, daquilo que se impõe e que retorna de maneira inapelável para a cena do mundo. (BIRMAN: 2006: 47)

    O que se pode pensar a partir desse lugar? Em primeira instância, podemos

    pensar que o que sobra da operação crítica modernista em relação à modernidade é o

    desamparo. Pois se o modernismo é o sintoma, ele deixa atrás de si o rastro e os restos

    do desamparo daquilo que não pode ser realizado como autoconsciência desvelada a si,

    como projeto moderno, seja no trajeto histórico, seja no trajeto individual.

  • Se esta é uma “boa idéia”, quando falamos das condições de produção dos

    discursos científicos modernos, podemos identificar que o que faltou à história da arte e

    da cultura, como condição do seu próprio desamparo e fragilidade, foi encontrar-se com

    a perspectiva desta episteme e daquilo que se define dali em diante. Então, o giro dos

    historiadores – do discurso do especialista e, mais ainda, do especialista em promover

    certos objetos de conhecimento – deveria voltar-se para “a dimensão problemática da

    subjetividade”, entendendo os sinais deixados pela produção artística como trajetos do

    sintoma desta episteme e das relações sujeito-objeto, a serem superados ou a serem

    reencenados na vida cultural. Tal operação, inclusive, é a que permite identificar que só

    a partir desta “modernidade renascentista” podemos falar em Arte, pois antes disso,

    tratava-se efetivamente de outra coisa. Para nós e a partir de nós, quando se anda para

    trás ou para frente, no jogo entre modernidade e pós-modernidade, não podemos

    prescindir de tratar da operação e do conceito de Arte, pois mesmo quando optamos por

    traçar uma outra linha temporal que ultrapassa a episteme moderna e nos coloca diante

    de artefatos e objetos de outras culturas – em outras dimensões espaciais e temporais,

    sejam eles do século IX d.C., objetos “estéticos-religiosos-mágicos-culturais” ou

    artefatos, festas e músicas “populares” brasileiras – não se deveria evitar de tensionar a

    sua problematização diante das concepções de Arte traçadas no chamado Ocidente

    moderno. Então, nestes termos a manutenção do conceito e da experiência da Arte são

    de fundamental importância para a realização de uma crítica sintomal da modernidade.

    Por outro lado, e dando continuidade ao raciocínio, se o modernismo é um

    sintoma, a sua exclusão pós-moderna não diz respeito apenas à ultrapassagem das

    condições sociais, culturais, econômicas, ideológicas e políticas que criaram a

    modernidade. Diz respeito a uma escansão no interior da modernidade, que aprofunda e

    desloca o sintoma como seu recalcamento – aliás, continuando a operação do recalque

    já inaugurada na modernidade. Talvez seja este o sentido da afirmação lyotardiana, de

    que a modernidade só possa nascer após a pós-modernidade. Talvez seja este o sentido

    da abordagem de Zizek, ao entender a face fascista oculta nos projetos e nos objetos

    multiculturais.

    Se nossas preocupações podem afetar a construção de objetos historiográficos –

    tais como obras, objetos e processos artísticos para uma História e uma Teoria da Arte –

    eles o devem fazer não por um método de pesquisa, mas através da conjunção entre uma

    Teoria e uma Leitura, que numa primeira instância, vamos investigar enquanto sintomal.

    Esta leitura sintomal seria a do que retorna trágica, crítica e comicamente na esteira do

  • fazer-saber artístico. No sintoma, naquilo que integra o conjunto, podemos fazer um

    tipo de corte (recorte), apresentando-o como parte integrante dos efeitos de um conjunto

    e, ao mesmo tempo, como linhas que ordenam este conjunto, esta realidade, delimitando

    seu campo acontecimental (manifesto e latente). No sintoma estamos diante da

    intensidade do sentido, fazendo da obra-objeto-processo, ao mesmo tempo, um existente

    (uma materialidade) e uma interpretação do existente, na tessitura dos significantes, e,

    um por-vir, ou seja, um devir posicionado que permite a enunciação de “formas

    possíveis” num futuro-presente (num a posteriori que se encontra encravado no

    presente-passado). Assim, a noção de “obra-objeto-processo” dado como um

    acontecimento que nos permite (de)marcar um território de reverberação ou iluminação,

    no qual o “objeto de arte” faz seus efeitos. O que ordena em torno de si – às voltas de si

    – uma obra, objeto ou processo artístico? Se há ponto de comunicação ou interface entre

    a historiografia dos objetos artísticos e a dimensão artística dos objetos históricos, esta

    diz respeito ao que pode ser feito no lugar e na leitural sintomal deste objeto

    “modernista” que denominamos de Arte.

    Então, os passos consistem em: a inscrição dos objetos nos processos e relações

    de produção, de força e pulsionais; a descontinuidade no jogo dos signos que o jogo

    relacional da obra-objeto-processo promove; a novidade como mediação de uma relação

    de espanto, ou seja, não apenas um paradigma do novo enquanto positividade da

    modernidade, mas enquanto mal-estar, identificando o descentramento que pretende

    provocar ou atingir (o cisma ou a abissalidade da e na Arte); a atualização ou a

    inquietude em face do presente, colocando a Arte sob o signo que polariza com o

    Arcaico, tal como os “signos da atualidade que possibilitarão ao sujeito encontrar as

    direções para que se movimente no campo social” (BIRMAN, 2006: 44); as distâncias

    que se afiguram entre discurso, desenvolvimento histórico e a produção dos seus

    efeitos, tal como na operação do recalque e do retorno do recalcado, onde um discurso

    permite a promoção da emergência do dito sem o fato e o modo como o desligamento

    do discurso permite o fluxo de insurgência do sintoma, no a posteriori.

    Portanto, na leitura da obra-objeto-processo, deveria ser feito um vai-e-vém

    entre o discurso (o que emerge na estrutura discursiva – seja a sua filiação a um

    movimento, o conceito, o discurso do artista e o dos especialistas que, em geral, acedem

    ao jogo do ocultamento do sentido, por efeito do enigma que a obra quer manter), o

    desenvolvimento histórico (o modo como isto se produz, a geração, a procriação, nestes

    termos, as séries e, também, a configuração de um estilo, no qual vão sendo deitados e

  • sedimentados os rastros e os restos) e as formas nas quais assistimos à atualização e a

    ultrapassagem dos discursos.

    No dizer de Birman, tal como a ciência exacerba os princípios da modernidade

    ela acaba por gerar, no interior de sua estrutura discursiva, o seu mal-estar, dentre eles a

    psicanálise. Então, a psicanálise, ato modernista, é sintoma da ciência moderna

    (modernidade). Exemplificando, na leitura sintomal da Arte, o Renascimento exacerba

    seus princípios geometrais nas topologias – a perspectiva geométrica contém em si a

    anamórfica e a metamórfica-, a Arte se entende na Anti-Arte. Mas isto trata de algo que

    só se revelaria no campo vasto e no cenário-deserto da episteme? Disso só se trataria de

    pensar os efeitos, tal como quando Foucault define a modernidade através de Dom

    Quixote e de Las Meninas?

    Não há como pensar um descentramento enquanto, simultaneamente, operação

    da produção e da leitura, da teoria e da técnica, do método e da transmissão? Para

    pensar tal efeito, vamos seguir agora um trajeto que envolve dois conceitos e duas

    topografias: a clínica e o ateliê. Pois se trata de inventar algo, que se assemelha em

    processo, entre ateliê e clínica, um espaço de investigação de um ofício e de uma

    transmissão que não possui um método, mas que é balizado por uma teorização, pois o

    método é o que surge ao final de cada análise e de cada obra-objeto-processo.

    (FRANÇA, 1997)

    O que as abordagens históricas não apreenderam é que “como se faz uma

    gravura não é como se faz uma gravura” ou que “como se analisa um paciente não é

    uma receita para todo e qualquer paciente” e a cada vez que se entra em obra-objeto-

    processo de criação, entra-se justamente na totalidade do descentramento de um sistema

    de representação, o que acede à dimensão da pulsão de morte (Freud). O que o artista e

    o psicanalista possuem ao dar início a um trabalho é justamente um sistema teórico

    (engajado num sistema representacional e fazendo funcionar algo na cadeia dos

    discursos) que deve ser deslocado para o lugar de um Vazio, para que possa fazer Furo

    no sistema representacional, inscrevendo-nos numa outra cena, noutra temporalidade-

    espacialidade, fazendo um giro, implicando aí o que Lacan designou como sendo o

    Desejo.

    Portanto, quando falamos de Arte falamos de um conceito operacional que se

    sustenta nesta posição de fazer o giro, de colocar em movimento, ultrapassando um

    sistema representacional determinado – por exemplo, toda a história e a teoria da

    gravura que se configuram num discurso metódico sobre o “como fazer” – para que,

  • num mesmo lance possa capturar um “o que” da gravura ao mesmo tempo em que se

    deixa ultrapassar pelo procedimento.

    Assim, nestes termos, uma historiografia destes objetos está posicionada ao lado

    da problemática imposta pelo Desejo e não enquanto Técnica ou Cultura. Numa

    exemplificação, pensemos apenas na distância entre os “procedimentos para a

    realização de uma gravura, um desenho, uma decupagem, ensinados numa sala de aula

    ou num programa de televisão que mostra o artesanato passo-a-passo” e o trabalho “no

    escuro” de um ateliê, onde a teoria do objeto é perseguida no momento posterior à

    realização do objeto, sendo ela revelação também do seu método, (re)invenção de

    procedimento. Não se trata de simplesmente negar estes outros fazeres, pois eles

    integram a cadeia discursiva que alinhava a arte na cultura. Eles fazem parte, em outros

    termos, de uma operação de recalque e de estabilização dos significantes em

    determinadas significações – por exemplo, a de que em arte se trata quase sempre de

    técnica. Com o modernismo, não podemos evitar que em Arte trata-se sempre de um

    movimento entre a Repetição e a Ultrapassagem, entre a Tradição e a Vanguarda, entre

    a Conservação e a Revolução.

    Assim, em cada uma das investigações particulares a teorização é repassada,

    numa história sem-fim, mas sempre referida à singularidade, seja do sujeito em questão

    da clínica, seja do “objeto” em questão na arte. Cada processo-produto é uma

    interrogação à rede dos conceitos, aos códigos e aos procedimentos artísticos,

    procurando sempre, como efeito do sintoma modernista, introduzir algum elemento

    novo nas operações que constituem o campo e os seus discursos. (FRANÇA, 1997)

    Isto remete às lógicas da clínica (psicanalítica e a função da escuta) e da arte

    enquanto produção poética, invenção, criação artística. Estas preocupações iniciais,

    oferecidas ao leitor, visam determinar a importância, no momento de produção desta

    escrita, destas duas formas de experiência.

    A clínica psicanalítica ensina ao analista que todo o arsenal teórico e ferramental

    encontram-se na posição que trabalhar para a singularidade e a singularização do sujeito

    do desejo que deve nascer neste setting. 2 Nesta invenção do estilo do analista,

    2 Fabio Herrmann no livro Clínica Psicanalítica – A Arte da Interpretação (São Paulo: Brasiliense, 1991) propõe que devemos pensar na psicanálise enquanto um sistema para aprender a pensar clinicamente, no qual o campo da psicanálise é afetado continuamente pelas relações que nele se estabelecem a cada cena nova de um paciente. Os conceitos que daí derivam são operações entre os conceitos de metapsicologia freudiana (e de outras referidas a Freud) e o que nasce a partir de cada relação. Portanto, o modo como um analista acede ao método consiste no estilo do analista. O estilo de clínica não é apenas a adoção de um certo referencial teórico – Freud, Freud-Jones, Freud-Klein, Freud-Lacan, etc. – pois isto, segundo

  • reconhece-se, um processo artístico (de criação), que inventa o sujeito da análise e o

    sujeito analista, dentro da relação. Isto implica o entendimento de que este seja um

    objeto demarcado por sua condição relacional3.

    Na arte, a criação convoca a um procedimento de pesquisa que, ao perceber a

    presença de uma metodologia operacional, ou seja, um método que atinge um objeto em

    ação, um método que é também um fazer, inventa um produto, que é invenção do

    método (a metodologia de trabalho e suas técnicas privilegiadas determinando as

    resultantes, seja na produção de objetos, seja na produção de forças) e, ao mesmo

    tempo, intervenção do processo e dos objetos experimentais no método.

    O método da pesquisa em arte assemelha-se à pesquisa no campo clínico pelo

    modo como a metodologia deve estar contida nas operações que as práticas propiciam –

    seja a da prática da clínica, seja a da prática do artista em seu ofício investigativo -,

    produzindo um objeto que resulta da inter-relação entre uma reflexão meta-teórica

    (conceitos, métodos, ferramentas de trabalho, técnicas) e a instalação do lugar de

    trabalho (campo, setting, ateliê, estúdio, etc.).

    Herrmann corresponde apenas ao momento de adesão do analista ao estilo inconsciente do grupo de formação. Para tornar-se analista é necessária uma apropriação e o desenvolvimento do corte auto-reflexivo, como nos explica o autor. Nestes termos, a constituição de um estilo é a seleção, dentro do que somos, daquilo que queremos ser. Na clínica psicanalítica, o estilo vem da sedimentação e da depuração. Influências sucessivas de professores, de leituras, de modelos vários, mesmo de pacientes, vêm dispor-se como camadas sucessivas que, primeiro, devemos acolher numa quase passividade. Só depois que as mais básicas delas se consolidaram é que estamos aptos a nos deixar cobrir pelas seguintes. E só bem depois, quando diversos níveis de estratificação já se superpõem, uma espécie de corte auto-reflexivo revela-nos quem somos, como nos formamos. Esse é o delicado momento de selecionar, dentre tudo o que somos, o que queremos ser na clínica, depurando certas influências, rejeitando outras, imitando cautelosamente aquilo que de mais precioso já possuímos em nosso repertório. É isso mesmo: o clínico só pode legitimamente imitar o que já é seu.” (HERRMANN, 1991: 13) 3 Questões referentes ao tema do estilo na história são de suma importância nos trabalhos de Hayden-White e de Peter Gay, cuja freqüentação à Freud, permite também a escrita de uma história de um ponto de vista psicanalítico freudiano, na leitura da instalação não apenas de formas da vida privada em face do mundo público (leitura político-social e comunicacional) bem como dos estados do sentimento e da educação dos sentidos e das emoções socialmente compartilhadas. Questões dessa ordem também são encontradas nos estudos sobre o narcisismo de Christopher Lasch.

  • FIGURA 1. IMAGENS DO ATELIÊ: ARTISTA JULIO GHIORZI.. (FOTOGRAFIA DO ARTISTA, AUTORIZADA).

    Se há ciência nisto, como diz Herrmann, ela é resultante de uma ação constante

    do próprio fazer, do próprio ofício. Só se constitui o objeto na sua feitura, ou seja, nos

    termos de uma poiesis – construção – propriamente dita. A afirmação da particularidade

    é acompanhada pelo jogo teórico confrontado, revisado e reescrito, na medida em que a

    teorização está sendo constantemente refeita ou reinventada nas combinações-

    contaminações que os objetos – de um lado, eminentemente psíquicos, e,

    predominantemente “amálgamas artísticos”, de outro – acabam por promover.

  • A clínica psicanalítica é o espaço privilegiado de investigação prática que é

    indissociável da teoria. Este vínculo é o que designa o campo psicanalítico como lugar

    onde se encontram amalgamados os dois processos: uma investigação particular,

    referida à singularidade do sujeito do desejo inconsciente, e outra, que se constitui em

    uma produção teórica a partir de cada caso e que vai interrogar a rede conceitual

    psicanalítica, operando no domínio argumentativo e buscando introduzir pensamentos

    diferenciais. (FRANÇA, 1997: XXI)

    A referência ao campo clínico, nestes termos, como já vimos, é fundamental.

    Enquanto disciplina gestada na ordem moderna dos saberes, a psicanálise instalou um

    lugar de saber que reúne o particular-singular (hoje, por vezes, chamado em discursos

    epistemológicos, de subjetivo) com uma meta-teoria da clínica (a formação de uma rede

    conceitual que designa o corpus da psicanálise). Em termos abrangentes, o Prefácio de

    Horus Vital Brazil ao livro Psicanálise, Estética e Ética do Desejo demonstra o lugar

    ocupado pela clínica e uma produção de conhecimento que parte desta relação. Para ele,

    numa denominação da psicanálise enquanto uma ciência, esta se daria sob a forma das

    conjecturas, das elocubrações, das probabilidades, onde conceitos são instrumentos ou

    ferramentas para uma argumentação sujeita a um lugar empírico – o setting psicanalítico

    – no qual uma práxis se estabelece.

    Como afirma a citação acima, a prática é verdadeiramente prática teorizante que

    deve se oferecer ao psicanalista não como Weltanschaung (visão de mundo) que seria

    prescrita tanto ao analista como ao paciente, mas justamente como uma incompletude (a

    dimensão do “saber que nada se sabe”) e, portanto, em termos de uma metodologia de

    trabalho (e de pesquisa), numa metodologia que se abre à alteridade, à metáfora, ao

    enigma, ao jogo do valor propriamente dito. Vital Brazil mostra como esta contribuição

    desconstrutiva tem seus inícios no discurso psicanalítico4.

    E contribui decisivamente para a desconstrução do logocentrismo, para a

    subversão da concepção clássica do sujeito (Lacan) e a substituição de um esquema

    cognitivo, que dava uma soberania à razão discursiva, descobrindo que o ideal de

    unidade do evolucionismo, que negava a alienação como um fato de origem e não

    4 Remeto às leituras de Jacques Derrida e seus intercursos na psicanálise. Nestes termos ver: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971; DERRIDA, J. Estados-da-alma da psicanálise. O impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta, 2001; DERRIDA, J.; ROUDINESCO, E. De que amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. Estas questões são examinadas com profundidade no texto de MAJOR, René. Lacan com Derrida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Para uma abordagem aplicada destas relações ver também NORONHA, Marcio Pizarro. “A masculinidade em cena ou encena” in: Diversos autores. Masculinidade em crise. Comissão de Aperiódicos da APPOA. Porto Alegre: APPOA, 2005.

  • reconhecia o Eu pronominal, fenomênico, como sendo “irremediavelmente alienante”,

    se recusava à dialética e pensava a história da humanidade em termos de uma

    progressiva emancipação da natureza, é mais um fracasso da razão que se queria

    monológica, presa a uma ideologia de totalização do conhecimento e absolutamente

    identificada com a consciência (VITAL BRAZIL, in: FRANÇA, 1997: XIII-XIV)

    Se esta afirmativa pretende encadear a psicanálise nas suas relações – e na sua

    provocação ao mal-estar – do campo das ciências positivas, permite-se ainda um

    empreendimento que reúne Freud-Lacan-fenomenologia e estruturalismo nas formas de

    uma razão simbólica e Freud-Lacan-desconstrução e pós-estruturalismo nas críticas

    filosóficas ao logocentrismo somadas a uma crítica de política (e de política textual) ao

    falocentrismo da/na linguagem (Derrida).

    Por outro lado, as relações entre psicanálise e arte também ganham consistência

    pela via do campo clínico. Tal como diz o psicanalista Michel de M’Uzan, um

    psicanalista apegado ao campo clínico acabará por se defrontar com os grandes temas

    abstratos da arte e da morte. Em consonância a outros autores advindos da clínica

    psicanalítica, M’Uzan, como os mais contemporâneos Georges Didi-Huberman e

    Darian Leader, reconhecem que toda estética e toda a teoria, ambas, falham ao tentar

    atingir a arte. M’Uzan diz que isto se deve ao problema do dom e a incapacidade para,

    tanto a estética quanto a psicanálise, darem conta deste fenômeno. Leader afirma:

    Quando nos deparamos com alguma afirmação sobre “pintura” ou “escultura” que pareça duvidosa, nossa primeira reação poderia ser pensar num contra-exemplo, a imagem de alguma obra de arte que resista à generalização do autor. E, no entanto, isso não nos mostra que todos nós possuímos um catálogo de imagens latentes, exatamente no mesmo sentido em que o autor, ao efetuar uma observação sobre “pintura”, poderia estar pensando em obras feitas por ninguém mais, exceto Cézanne? Quando lemos sobre “arte”, isso pode nunca ter o significado de “toda a arte”, devido precisamente à existência de um tal estoque de imagens latentes. E essa é uma razão pela qual as teorias de arte nunca funcionam. Pensar sobre arte talvez envolva justamente essa série de fricções, em que cada um de nós produz contra-exemplos e refutações. [...] (LEADER, 2005:8)

    E, ainda mais, voltando a M’Uzan e a França, acima citados, ambos reconhecem

    uma dimensão estética da palavra freudiana e uma forte aproximação das formas de

    produção de saberes em psicanálise e em arte. O psicanalista funciona, na maioria das

    vezes, tal como o artista.

  • FIGURA 2. IMAGEM DO ATELIÊ: ARTISTA FRANTZ. (FOTOGRAFIA MARCIO PIZARRO NORONHA)

    A singularidade de ambas as práticas combinada aos modos do funcionamento

    do lugar da teoria nesta prática – da clínica, do ateliê, do treinamento, etc. – enfocam

    este duelo entre uma prática que produz sua teoria e um universo de conceitos que são

    operadores simbólicos e ferramentas de trabalhos (técnicas psicanalíticas, técnicas

    artísticas) a serem recriados e problematizados no campo empírico, tendo como

    princípio a atenção flutuante do analista e a própria flutuação do artista, traduzindo-se

    em estados onde uma comoção da identidade subjetiva (edípica) sofre seus acidentes de

    percurso e se põe num estado derivativo.

    Pues esos momentos em los que el Yo y el no-Yo intercambian tan facilmente su lugar entranan uma considerable ampliación de la experiência, gracias a la cual el individuo puede consumar su integración pulsional y alcanzar de esta forma su fondo más auténtico. Lejos de ser meros sintomas, son la mejor oportunidad que puede ofrecérsele a um ser de escapar a las identificaciones extrañas a su verdade, o dicho de otro modo, de construirse a sí mismo, por sí mismo, sin riesgo de falsificación. Si he de atenerme a la prueba de una experiência clínica, es paradójicamente cuando el individuo no tiene miedo a deshacerse cuando tiene más posibilidades de llegar a ser realmente lo que es. [...] para mí, el aparato psíquico, inacabado por naturaleza, no cesa de construirse y de remodelarse hasta la muerte. [...] Em cualquier ocasión en que se produzcan – y muchas cosas me inclinan a pensar que tienen mucho que ver con una experiencia de la naturaleza del duelo – considero estas vacilaciones del ser como momentos fecundos, es decir, los instantes más autênticos de la inspiración. Lo mismo que la “captación” del escritor, que es de hecho uma descaptación de su persona, es aquello que convierte a la obra proyectada em tarea imperiosa y le comunica las fuerzas que necesita para tomar forma e individualizarse, del mismo modo, es en general en los estados situados fuera de limites, en los que el verbo “edípico” deja de conjugarse, en los que el ser puede encontrar aquello que le hará convertirse a sí mismo em obra a realizar. (M’UZAN, 1977: 9-11)

  • Vários encontros aqui são possíveis e já ocorrem. Na pesquisa histórica e na

    pesquisa em História da Arte, uma vertente importante deste encontro é dada, num lugar

    fora da psicanálise, mas por ela contaminado – no pensamento de Walter Benjamin. Nos

    termos mais gerais da História (e de uma Teoria da História), por exemplo, seguindo a

    lógica proposta por Freud-M”Uzan, a estruturação psíquica edípica apenas conhece uma

    história ordenada na forma de reconstrução do passado, sustentada em mecanismos de

    exclusão (apagamento) e de invenção. Nestes termos, toda a história oficial do sujeito –

    como toda a história oficial da cultura e de uma sociedade – são formações

    inconscientes edipianizantes, na medida em que se sustentam, por conta de uma

    estruturação narrativa de exclusão de suas outras versões.5

    Um ponto de vista clínico (psicanalítico) e da investigação poética (dos artistas)

    não permite sustentar ao infinito tal teorização. Uma história inventada é uma sobrevida

    aos escombros daquilo que faz parte de seu conteúdo latente. A História acaba por ter a

    forma de uma novela, um modo romanesco de funcionamento, onde tudo pode ser

    refeito, mas não repetido. Ou melhor, a repetição existe mascarada pelo princípio do

    remake. A questão do remake é um princípio estruturante do paradigma audiovisual, tal

    como o indico em outro artigo, no qual analiso as matérias no campo da criação de

    obras artísticas (áudio)visuais contemporâneas.6

    5 No artigo “Esquecer? Não: In-quecer”, Renato Mezan retoma uma leitura metafórica de Habermas, das relações entre História e Psicanálise, no que diz respeito ao tema da memória e do esquecimento. Para o filósofo alemão, o psicanalista promove o entendimento cicatrizante do passado ou o domínio do passado sob a forma de um fantasma não redimido – algo aos moldes do anjo da história de Walter Benjamin. A rememoração teria a função social de fazer do passado algo presente. Para Mezan, as questões da memória e do esquecimento histórico dizem respeito ao trabalho de luto, tanto individual quanto coletivo. Nestes termos, uma história inventada não permite apenas o esquecimento de algo bem como a estabilização de certas coisas a serem lembradas e tomadas como verdadeiras. O passado seria algo estabilizado e feito uma narrativa temporalmente situada. Para a psicanálise, o passado é sempre atual pois se revela sempre enquanto inscrição psíquica atualizada em formas diferentes. Esquecer, portanto, cair ativamente para fora de uma certa memória, não pode ser superado ou contrastado, por uma atitude de recordação (rememoração), já que está memória é constituída pela própria ordem ativa do esquecimento. A memória restante a ser recordada já é ela própria o fruto do esquecimento (tal como em Freud, Nietzsche reconhece este poder ativo e não passivo do esquecimento). Seria então a rememoração a função passiva do atividade do esquecimento? E o que poderia ser então seu oposto? Mezan determina aqui a ação oposta: o in-quecimento. MEZAN, R. “Esquecer? Não: In-quecer”, in: FERNANDES, Heloísa Rodrigues. ((1989) Tempo do desejo: psicanálise e sociologia. São Paulo: Brasiliense. 6 Remeto à discussão em torno deste estruturante cinema para a leitura e interpretação do paradigma do cinema e para o efeito-filme na arte contemporânea, conforme desenvolvo em outros artigos recentemente publicados. Ver NORONHA, M. P. “Performance e audiovisual: conceito e experimento interartístico e intercultural para o estudo da História dos Objetos Artísticos na contemporaneidade e AMBRIZZI, M. L; NORONHA, M. P. “Vídeos experimentais em história da arte. De Interartes: Kandinsky, música, pintura e o espiritual na arte ao estudo documental de Santuários artísticos [Kracjberg (BA), Dona Romana (TO), Projeto AREAL (RS) e Nêgo (RJ)]” in: Anais Eletrônicos do XII Congresso Regional de História – ANPUH / RJ, Simpósio Temático O Audiovisual na Contemporaneidade.

  • II

    Enunciação de uma pesquisa em andamento.

    O estudo e a pesquisa historiográfica de obras-objetos-processos artísticos

    permite o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa.

    Interlocução arte, história, psicanálise, I.

    A repetição, de certo modo, representa a própria pulsação da teoria, na medida em que esta está marcada pela tendência a retornar sempre ao mesmo lugar.

    (E. L. André de Sousa in: Kaufmann)

    As leituras e os conceitos de drama e de representação a partir da

    psicanálise e do jogo acerca do funcionamento mental oculto no

    FORT-DA (um jogo de aparecer-desaparecer de um carretel do neto

    de Freud).

    Tomamos este ponto como primordial, em torno do pensamento freudiano, em

    função de traçar o caminho que teórico que o une às leituras contemporâneas, com

    ênfase para o trabalho de Georges Didi-Huberman.

    Por outro lado, a concepção do vazio (nos termos lacanianos) é de

    fundamental importância nesta leitura e acompanha os traços

    desenvolvidos por França e Regnault. Na leitura da imagem, a

    situação envolve primordialmente os trabalhos de Darian Leader e

    de Antonio Quinet.

    Uma questão que deve ser levada em conta na organização documental diz

    respeito às temporalidades da formação destes documentos e seu relacionamento com o

    processo criador do artista, distinguindo os tempos do ato de criação e do ato da

    composição da obra.

    Nos termos freudianos, o processo criador ocorre num tempo dramático (e as

    funções catárticas a ele associadas) e sob a égide da representação, tal como o termo

    “colocar em cena” (o jogo do FORT-DA). No drama, fala-se de uma angústia (a

  • indizível angústia, de Freud) que inclui uma despersonalização, um estado fora-de-si, o

    que representa uma mudança de posição do artista na cena da criação e, mais ainda, um

    deslocamento frente ao mundo. Desse modo, os depoimentos do artista diante do

    momento da criação – cadernos de notas, excertos, frases esparsas, registros em vídeo e

    em fotografias, etc. – podem ser pensados enquanto um lugar que faz ressurgir um Real

    e diante dele um conjunto de novas exigências pulsionais, numa busca de descoberta de

    novas possibilidades de uma existência dentro dos parâmetros da realidade.

    O documento do artista é um monumento inaugural que, entre vazio (e silêncio)

    promove uma experiência de ruptura com o fluxo natural da existência. O lugar desta

    fala é, desde já, a alteridade radical pelas flutuações do Eu e do Não-Eu e o modo como

    estas pretendem ser uma micro-descrição da (re)criação e do deslocamento da realidade.

    O FORT-DA é um jogo fantasmático que permite ao teórico da arte uma

    investigação em torno das esculturas-objetos (o que é dado a ver) e da cena (o drama)

    instalada pelo minimalismo. Didi-Huberman pode assim, sublinhar este jogo entre perda

    e reconciliação pela via do que resta (“resta-um”). É isto um trabalho de luto que se faz

    na arte e para a história? Ou como diz M’Uzan, para quem o investimento na clínica

    sempre conduzirá aos grandes temas da arte e da morte e suas associações. Jogar com a

    morte é uma forma de fazer acontecer a vida.

    Lembrando o que vimos acima, na leitura da obra-objeto-processo, deveria ser

    feito um vai-e-vém entre o discurso, o desenvolvimento histórico e as formas nas quais

    assistimos à atualização e a ultrapassagem dos discursos.

    Ao reler o minimalismo enquanto história e teoria da arte, Didi-Huberman não

    se detém nos princípios de uma formalização objetivada em torno de uma cena

    contemporânea e articulada à história das artes enquanto história dos movimentos e do

    seu deslocamento no século XX (da Europa para os E.U.A.) – isto apenas diria algo das

    formações discursivas e dos seus desenvolvimentos históricos.

    Para pensar nos termos de atualização e ultrapassagem dos discursos, o Modo de

    Entrada no estudo deste movimento internacional deve se ater no problema de fantasma

    e, portanto, do estabelecimento de algumas figuras que sejam capazes de indicar a

    presença do objeto bem como um espaço que determine a sua ausência em

    continuidade.

  • FIGURA 3. IMAGEM DO ATELIÊ: PAREDE DO ATELIÊ DE FRANTZ. (FOTOGRAFIA AUTORIZADA

    O cubo minimalista é também o “cubo branco” da galeria de arte vazia e

    convidativa à demarcação simbólica. Para traçar tal caminho um vai-e-vém entre as

    obras investigadas e trechos de notas, diários e conversas entre artistas e personagens de

    sua ambiência.

    Interlocução arte, história, psicanálise, II.

    Ao ler a nota de Freud, ao olhar os quadros de Rousseau e de muitos outros, os psicanalistas, historiadores e estetas são levados a estudar os sonhos arcaicos que freqüentam parte (mas apenas

    parte) de nossa modernidade. (G. Lascault in Kaufmann)

    Assim, entre arte e psicanálise pode surgir a figura do historiador da arte.

    A tarefa deste tipo de História Especial consiste não apenas em exumar o

    passado, escavar e mostrar à cena contemporânea um conjunto de obras mortas,

    fazendo-as novamente vivas, tal como alguém que entre os restos, entre os cacos

    cerâmicos de camadas geológicas, retirando algo do seu contexto e o torna monumental

  • e emblemático7. Ao historiador cabe a tarefa de pensar o Fantasma e o Arcaico no

    Moderno – seguindo a perspectiva modernista do freudismo - e, deste modo, tratar da

    condição de uma simultaneidade das temporalidades (nas fusões entre passado, presente

    e futuro) e da heterogeneidade das espacialidades (fragmentação do espaço e da sua

    experiência), configurando um modo mais abrangente da descontinuidade temporal-

    espacial, o que se revela como modo particular de pensar a temporalidade histórica e a

    experiência.

    Ao tratar do Fantasma na História, diz-se algo acerca da ordem simbólica e das

    cadeias de filiação, mas também se fala acerca daquilo que, já passado, encontra-se

    diretamente preso à ordem do discurso (repetitivo) e, portanto, concernendo a tudo o

    que fala do “in-atual”. Assim, não somente escavar (modelo arqueológico e das

    distinções entre temporalidades do passado, presente e futuro) como também operar na

    dupla direção de um passado-presente (futuro do pretérito) e de um futuro-presente

    (futuro do presente), operando na compressão do presente em “quase-nada”.

    Na atualidade, estes deslocamentos da experiência tempo-espaço são reveláveis

    na dinâmica de amplos movimentos migratórios – configurando um estado relacional,

    cultural e político conhecido como sendo “diaspórico” e do “exílio” - e da criação de

    diferentes camadas e trajetos no desenho de um Atlas, tal como se este fosse a resultante

    não de uma única ou duas coordenadas e ou vetores de organização, mas a realização de

    uma colagem e de uma superposição e justaposição de mapas de diferentes ordens,

    comandados por princípios díspares. Este Atlas apresenta-se como um “texto confuso”

    (categoria da etnografia pós-moderna) e também como um Grande Vidro (Marcel

    Duchamp), superfícies sobre superfícies superpostas.

    Pensando via Freud-Said-Birman, nos termos de uma reflexão em torno do

    judaísmo e da judeidade, marca-se como uma ideologia como o judaísmo se constrói

    “num campo diferencial de marcas identificantes” (Birman, 2006: 384), ou seja, trata do

    problema da afirmação de uma identidade cultural enquanto forma de identificação,

    num tracejamento ou numa rota que se dá pela via da diferenciação. Nestes termos, há

    uma crítica da política da identidade. Para nossos estudos contemporâneos da arte (e da

    História da Arte), podemos encontrar aí um modelo e uma resposta às formas do acesso

    multicultural à identidade. A produção e o trajeto artístico brasileiro, ambos, revelam,

    7 Indico uma diversidade de leituras de Walter Benjamin e de Jacques Lacan na busca da compreensão do que seja o emblema e o monumento. Omar Calabrese analisa estas questões do ponto de vista de sua estética social neobarroca.

  • este lócus do interstício e de presentificação do arcaico e do fantasma (nos termos de

    Freud-Lacan), onde as manifestações culturais que foram destinadas ao campo do

    Outro, são, em realidade, a face atualizada do antigo, da nossa própria historicidade

    recalcada, realizada somente no interstício entre um modernismo e sua diáspora desde a

    origem na civilização brasileira.

    Para além da perspectiva histórica e linear, que dá às culturas ameríndias,

    africanas e migrantes as condições de ancestrais e de ponto de origem, a perspectiva

    enunciada do arcaísmo psíquico e do fantasma demonstra a “in-atualidade” deste ponto

    de vista e o encontro sempre atual de um passado que não existe como tal, sendo sempre

    a pontuação de um presente incessante e de um presente inexistente como valor único,

    mas como escansão – divisão – tensão entre passado e futuro. Critica-se assim a

    perspectiva da herança ou matriz cultural no entendimento da cultura e privilegia-se

    uma perspectiva política e psíquica. Isto faz tomar a condição fronteiriça do nosso

    artista e o seu modo de ser uma espécie de entre-modernista, um modernista no

    intervalo.

    Nos termos das questões artísticas, os processos de globalização e amplificação

    das linguagens artísticas bem como de sistemas e procedimentos estéticos, para além de

    uma situação diaspórica, têm resultado em situações de redefinição de fronteiras e

    tracejamento de configurações topológicas que vão além das geografias consentidas.

    Nesta esfera, as produções artísticas têm tido preponderante papel numa política

    identitária de mão dupla (identificações e não identidades), tanto na direção dos mapas

    transnacionais quanto no da afirmação de situações da tradição (nos intervalos). Artistas

    em constantes deslocamentos – seja por migração e fixação, seja por nomadização, seja

    por diáspora ou exílio - entre as esferas do transnacional-global, nacional, local acabam

    por vivenciar diferencias estratégias e trajetórias de inserção/diferenciação, através de

    programas de benefícios e bolsas para artistas de diferentes regiões do globo e/ou do

    uso e da negociação entre identidades exóticas e suas formas de presentificação

    (visualização) de uma “brasilidade”, “latinidade”, “africanidade”.

    Esta “brasilidade artística internacionalizada” é, talvez, a melhor forma crítica da

    leitura sintomal da entre-modernidade e do modernismo no intervalo produzido no

    Brasil. Ao invés de recalcar a ideologia europeizante, o artista brasileiro tem feito

    interface entre eurocentrismo (modernista) e a presença figural de algo que não se põe

    apenas como originário, mas como o retorno do recalcado – o indígena, o africano.

    Nosso entre-modernismo foi e é um amálgama entre futurismo europeu (incluindo aí

  • seus padrões formalizadores compositivos) e uma presença cultural da leitura com as

    lentes da elite brasileira para a criação-invenção de uma cultura folclórica e popular,

    bem como o clamor de uma vingança histórica de todas as operações de recalque.

    O artista pelo excesso ou pela falta, muitas vezes vivendo entre o Brasil e o

    estrangeiro, pode caminhar na direção do afastamento das posições convencionadas e se

    oferecer como formulação para novas construções políticas e de uma nova configuração

    subjetiva. Uma autobiografia e uma auto-etnografia de artista que insiste em se manter

    entre as posições do arcaísmo e da resistência nas políticas das artes, nos

    enfrentamentos da memória e do esquecimento, promovendo aí um espetáculo e uma

    política de afirmação de um Corpo-Identidade, indo da fisicalidade e da identidade às

    identificações e do Sintoma que vai ao encontro (e de encontro) ao Real.

    Será agora o artista um Estrangeiro, um Estranho Familiar ou apenas um

    Hóspede permanente no mundo?

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