transposicaoSaoFrancisco

download transposicaoSaoFrancisco

of 192

Transcript of transposicaoSaoFrancisco

ASSEMBLIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS ESCOLA DO LEGISLATIVO

Projeto de pesquisa: A transposio do rio So Francisco: uma anlise histrica e socioambiental Processo Fapemig n.: EDT-1822/03

RELATRIO FINAL

Equipe de pesquisa: Mrcio Roberto Alves dos Santos coordenador Maria Beatriz Gontijo dos Santos Maria Elisabete Gontijo dos Santos Mnica ngela de Azevedo Meyer

Belo Horizonte Julho de 2006

SUMRIO Apresentao.............................................................................................................................. 4 Introduo.................................................................................................................................. 6 Metodologia............................................................................................................................. 10 O projeto de transposio no contexto das intervenes tcnicas no vale do So Francisco...16 A recepo das polticas pblicas para o vale e a participao popular no mdio superior So Francisco.................................................................................................................................. 51 A percepo socioambiental da populao residente no mdio superior So Francisco......... 86 A relao da populao com as guas do rio So Francisco.................................................. 151 Concluses............................................................................................................................. 183 Referncias............................................................................................................................. 189

2

Resumo A pesquisa partiu de dois enfoques centrais para situar o projeto de transposio de parte das guas do So Francisco para as regies semi-ridas do Nordeste. O enfoque histrico permitiu analisar a transposio como um dos grandes projetos de interveno tcnica no vale do rio. Essa interveno se instala a partir dos estudos e projetos elaborados em meados do sculo XIX, para a introduo da navegao a vapor ao longo do rio e dos seus maiores afluentes, e se consolida no sculo seguinte, com a implantao das usinas hidreltricas e dos seus reservatrios ao longo do So Francisco. A transposio, se realizada, se colocaria em linha com esses macroimpactos impostos ao perfil natural do rio, consolidando a abordagem tcnica e o controle tecnolgico do vale do So Francisco. O enfoque socioambiental do projeto, por seu turno, baseou-se nos resultados da pesquisa de campo realizada no trecho mdio superior So Francisco (Pirapora a Manga) para traar um perfil da relao entre a populao ribeirinha e o rio, mediada pelos usos, percepes e representaes dos corpos dgua da regio. Foi investigada a percepo que essa populao tem das alteraes ambientais sofridas pelo rio; as suas relaes de intimidade com os corpos dgua; a sua percepo de pertencimento bacia; e a forma como as polticas pblicas que envolvem o vale, em especial o projeto de transposio, so recebidas pelos ribeirinhos. Palavras-chave: Rio So Francisco, projeto de transposio, percepo socioambiental, interveno tecnolgica, participao poltica.

3

Apresentao Este texto constitui o relatrio de finalizao do projeto de pesquisa A transposio do rio So Francisco: uma anlise histrica e socioambiental, desenvolvido no mbito do Ncleo de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo da Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais, entre maro de 2005 e julho de 2006, com apoio financeiro da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais Fapemig. O auxlio financeiro concedido pela Fapemig ao projeto se deu a partir da sua aprovao nos termos do Edital n. 08/2003, daquela fundao, destinado seleo de projetos de pesquisa voltados para o apoio recuperao e proteo da bacia do rio So Francisco. O Termo de Outorga e Aceitao de Auxlio foi assinado entre a fundao e a Assemblia Legislativa em 12 de maio de 2004, tendo como interveniente a Escola do Legislativo e coordenador o pesquisador Mrcio Roberto Alves dos Santos. Devido a dificuldades na forma contbil de repasse dos recursos, esses s foram disponibilizados pela fundao em maro de 2005, quando se iniciaram efetivamente as atividades do projeto. O projeto contou ainda, na fase da pesquisa de campo, com o apoio operacional da Coordenao Geral das Promotorias de Justia de Defesa do Rio So Francisco do Ministrio Pblico Estadual. Alm desses apoios, que foram decisivos na consecuo da pesquisa, devemos agradecer aos servidores da Escola do Legislativo, pelo empenho no suporte administrativo, burocrtico e operacional ao projeto; aos tcnicos e agentes pblicos envolvidos com a bacia do So Francisco, que gentilmente nos receberam em seus locais de trabalho e colocaram nossa disposio informaes e dados relevantes para a pesquisa; e aos servidores da Biblioteca da Assemblia Legislativa, que se desdobraram em esforos para conseguir fontes bibliogrficas raras e importantes para o estudo. Durante a pesquisa de campo, que gerou grande parte do material consolidado neste relatrio, fomos amavelmente recebidos por moradores e profissionais que atuam nos municpios mineiros de Manga, Januria, Pirapora, Buritizeiro, Jaba e Vrzea da Palma. Por meio de entrevistas gravadas, essas pessoas colocaram nossa disposio valiosas informaes, dados,

4

impresses e opinies, que formaram o ncleo do trabalho de campo. A elas devemos, portanto, o nosso maior agradecimento. Mrcio Santos Coordenador do projeto Julho de 2006

5

Introduo Colocado na agenda de intenes do governo federal ainda na dcada de 80, o projeto de transposio de parte das guas do rio So Francisco para as regies semi-ridas do Nordeste Setentrional foi trazido, nos ltimos trs anos, para o centro do debate nacional sobre as polticas pblicas de desenvolvimento socioeconmico. Includa com destaque no Plano Plurianual do governo federal, que tem destinado para o projeto expressivas verbas oramentrias, a transposio, se realizada, representar a maior obra de engenharia iniciada na gesto de Luiz Incio Lula da Silva na presidncia da Repblica. Em que pesem as alegadas intenes sociais do projeto levar gua a quem tem sede , freqentemente includas na defesa apaixonada que dele tem feito o presidente da Repblica, a proposta de se desviar gua do So Francisco para o interior do Nordeste polmica. Sobre ela pairam crticas de diversos setores da sociedade, que incidem tanto sobre questes tcnicas e operacionais do projeto quanto sobre os provveis impactos ambientais e sociais e, mais, sobre o seu significado poltico. Como pano de fundo dessas crticas, permanece a suspeita de que se trate de mais um megaempreendimento de engenharia posto como soluo tecnolgica para problemas sociais e, como tal, de mais uma iniciativa governamental que mobiliza recursos vultosos, traz pouco retorno social e provoca graves danos ambientais. O projeto de transposio pode ser abordado a partir de diversos ngulos de anlise. A preocupao que norteou a apresentao deste projeto de pesquisa ao Ncleo de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo e Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais centrou-se em dois enfoques conceituais. Por um lado, objetivamos traar um quadro da percepo ambiental e do grau de informao e participao das populaes ribeirinhas nas decises de polticas pblicas que envolvem a bacia, em especial o prprio projeto de transposio. Esse enfoque partiu de uma constatao muito simples: a de que a populao potencialmente afetada pela transposio, residente no vale do rio So Francisco, tem sido pouco ouvida sobre o projeto. Veremos, ao longo deste relatrio, que esse ngulo de abordagem foi aprofundado durante a execuo da pesquisa, tendo se tornado o que pode ser chamado um estudo, de carter ainda introdutrio, da relao entre o homem e o meio no mdio So Francisco, tendo como elementos de mediao os corpos dgua das regies banhadas pelo rio e seus afluentes.

6

Por outro lado, buscamos, a partir de um olhar retrospectivo, situar o projeto de transposio no contexto das grandes intervenes tcnicas no vale do So Francisco. Essa perspectiva histrica permitiu entender o projeto no somente a partir das razes e controvrsias contemporneas, mas tambm como expresso de uma abordagem tcnica do vale do rio, cujas razes esto em estudos e projetos idealizados ainda em meados do sculo XIX. A transposio pode ser vista, assim, no como projeto isolado e inteno pessoal de um ou de outro governante, mas no contexto maior de uma lgica instrumental e utilitria que se aplica sobre o vale do rio. Esses dois enfoques centrais foram problematizados e desenvolvidos ao longo da pesquisa, resultando num conjunto considervel de anlises, reflexes e abordagens, reunidas neste relatrio. Seguimos, na distribuio dos temas e tpicos de anlise que compem o texto, os critrios da inclinao pessoal e da formao acadmica de cada pesquisador. Por isso os captulos do relatrio foram elaborados individualmente e so assinados; isto , formam um conjunto integrado e se complementam mutuamente, mas so tambm expresso das preocupaes e pontos de vista pessoais de cada pesquisador. A equipe de pesquisa foi integrada pelas seguintes pessoas: Mrcio Santos Coordenador do Ncleo de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo da Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Licenciado em Filosofia e mestre em Histria. Coordenador do projeto. Maria Beatriz Gontijo dos Santos Ex-consultora da Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Bacharel em Letras e mestre em Lingstica. Maria Elisabete Gontijo dos Santos Ex-consultora da Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Sociloga e especialista em Temas Ambientais. Mnica ngela de Azevedo Meyer Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. Biloga, mestre em Educao e doutora em Cincias Sociais. No primeiro captulo do relatrio, a cargo do coordenador do projeto, foi explorada a perspectiva histrica delineada acima. Tentou-se uma primeira abordagem, macroscpica e 7

retrospectiva, das intervenes tcnicas no vale do So Francisco. A relao entre o homem e o meio no vale foi estudada, portanto, a partir das grandes aes governamentais e privadas implantadas ao longo do So Francisco, tendo se destacado, em recortes temporais sucessivos, trs grandes momentos: os estudos realizados para a implantao da navegao a vapor, a construo das usinas hidreltricas e dos seus respectivos reservatrios e o prprio projeto de transposio. Nesse captulo foram utilizadas prioritariamente fontes documentais, bibliogrficas e disponveis em meio eletrnico. O segundo, terceiro e quarto captulos so constitudos por textos que exploraram em profundidade as notas de campo. A abordagem se torna microscpica; isto , tenta-se, por meio das notas que resultaram de entrevistas e impresses pessoais gravadas em campo, um olhar que aponte e investigue os grandes temas a partir da percepo singular das pessoas entrevistadas. No segundo captulo, elaborado pela pesquisadora Beatriz Gontijo, o enfoque foi sobre o comportamento poltico dos entrevistados, para aferir o nvel de informao sobre as polticas pblicas que envolvem a regio, especialmente sobre o projeto de transposio, bem como as formas de participao ou de compromisso de ao voltadas para a preservao da bacia. Utilizando recursos da lingstica, a pesquisadora traou uma anlise do discurso dos entrevistados, buscando extrair, a partir da, concluses sobre a sua atitude poltica diante dos problemas socioambientais da bacia. Segue-se a anlise empreendida pela pesquisadora Elisabete Gontijo, centrada na percepo da populao ribeirinha sobre as alteraes socioambientais ocorridas no vale do So Francisco. A autora realizou um jogo temporal entre passado, presente e futuro, buscando responder, a partir da percepo das pessoas entrevistadas, a trs perguntas fundamentais: (1) como era o rio?; (2) como est o rio hoje?; e (3) como ser o rio amanh?. A memria das paisagens antigas do rio e o seu cotejo com a configurao presente do vale foram instrumentos analticos privilegiados no desenvolvimento do tema. No terceiro captulo a pesquisadora Mnica Meyer investigou, a partir das entrevistas, as relaes de intimidade com os corpos dgua e a percepo de pertencimento da populao ribeirinha bacia hidrogrfica do So Francisco. Os mltiplos usos e significados do rio para essa populao foram estudados por meio de categorias que aprofundaram o nvel 8

microscpico da anlise. Partindo das relaes subjetivas que os entrevistados tm com os corpos dgua, a autora traou um quadro do que o rio representa para as pessoas que habitam as suas margens. No captulo conclusivo buscou-se alinhavar os resultados da pesquisa de campo e dos estudos bibliogrficos e documentais realizados, discutindo-se, a partir deles, a concepo de poltica pblica e de desenvolvimento socioeconmico que sustenta o projeto de transposio do governo federal. O relatrio incluiu ainda grficos, reprodues de mapas antigos, um mapa esquemtico e diversas imagens fotogrficas, coletadas durante o trabalho de campo.

9

Metodologia 1 Seminrios internos Durante todo o perodo de execuo do projeto foram organizados seminrios internos da equipe de pesquisa. Esses encontros, de durao e periodicidade variadas, objetivaram a discusso de tpicos de interesse da pesquisa; a anlise conjunta de textos tcnicos e acadmicos; a troca de informaes, impresses e dados; a assistncia conjunta de documentrios e programas de entrevistas; a formatao do trabalho de campo; e a tomada de decises administrativas e operacionais. Todos os encontros foram realizados nas dependncias da Escola do Legislativo. 2 Pesquisa bibliogrfica, documental, eletrnica e de mdia A pesquisa de fontes bibliogrficas, documentais, disponveis em meio eletrnico e de mdia, ocorrida durante todo o perodo de execuo do projeto, incluiu a coleta dos seguintes materiais: Livros Catlogos Artigos tcnicos Matrias de jornal e de revista CD-ROMs Gravaes em vdeo de documentrios e programas de entrevistas Informaes e dados disponveis on line

3 Participao em eventos e contatos externos Os integrantes da equipe participaram, como ouvintes, de eventos voltados para a discusso do projeto de transposio. Entre eles, podem ser citadas consultas pblicas convocadas pelo Comit da Bacia Hidrogrfica do So Francisco, debates pblicos organizados pela Assemblia Legislativa de Minas Gerais e reunio de promotores e outros agentes pblicos,

10

realizada pela Promotoria de Defesa da Bacia do So Francisco do Ministrio Pblico Estadual. Foram ainda realizados contatos, em Belo Horizonte, com tcnicos de instituies pblicas que desenvolvem projetos voltados para a bacia do So Francisco. Entre essas instituies, podem ser citados o Instituto Estadual de Florestas IEF, a Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural do Estado de Minas Gerais Emater-MG e a Promotoria de Defesa da Bacia do So Francisco do Ministrio Pblico Estadual. 4 Pesquisa de campo 4.1 Abrangncia A pesquisa de campo constituiu o ncleo do trabalho realizado. Como foi ressaltado, as notas coletadas em campo forneceram a base para a elaborao de trs captulos deste relatrio. Elas resultaram de viagem de pesquisa realizada em 2005, quando foram visitados os municpios so-franciscanos de Manga, Januria, Pirapora, Buritizeiro e Vrzea da Palma, bem como ao municpio de Jaba, localizado no vale do rio Verde Grande. Participaram da viagem os pesquisadores Mrcio Santos, Mnica Meyer e Elisabete Gontijo. Alm das sedes dos municpios citados,1 foram visitados os seguintes lugares: Brejo de So Caetano, Ingazeira e Reserva da Fazenda Ressaca, em Manga; Parque Nacional Cavernas do Peruau, Poezinhos e Pandeiros, em Januria; Chapado das Gerais e Paredo de Minas, em Buritizeiro; e Mocambinho, em Jaba. Foram percorridos trechos dos rios So Francisco, Carinhanha, Verde Grande, Peruau, Japor, Pandeiros e do Sono e do crrego Alegre. Foram visitadas lagoas marginais, ilhas fluviais e veredas. A equipe de pesquisa esteve ainda em lugares ligados a questes de sade pblica, saneamento bsico e meio ambiente, como estaes de tratamento de gua, estaes de tratamento de esgoto, lagoas de decantao de esgoto, sistemas de captao de gua, sistemas de irrigao (pivs), estaes de piscicultura, carvoarias, locais de despejo de esgoto, lixes, charcos e corpos dgua secos (crregos e veredas secas).

1

A sede do municpio de Vrzea da Palma no foi visitada.

11

4.2 Gravao de entrevistas com pessoas que tm relao intensa com o rio Durante as visitas foram realizadas entrevistas com pessoas que residem, trabalham ou interagem de alguma forma com o rio So Francisco ou com os seus afluentes, subafluentes e demais corpos dgua locais. A escolha dos entrevistados foi aleatria, tendo como critrios apenas a interao com o rio ou com os seus formadores e a idade acima de 16 anos. Os locais de realizao das entrevistas foram os mais diversos, incluindo residncias, locais de trabalho, lugares pblicos (ruas, praas) e terrenos abertos (ilhas fluviais, reservas ecolgicas, reas agrcolas). A maior parte das entrevistas consistiu em 15 a 20 minutos de dilogo entre o entrevistador e o entrevistado, no qual esse era estimulado a comentar a situao dos corpos dgua locais e a sua relao com eles. No incio da conversao era solicitado ao entrevistado que informasse o seu nome completo, a sua idade e a sua ocupao. Ainda que seguisse um roteiro prdefinido de perguntas, esse dilogo pautava-se mais pelas respostas do entrevistado do que pelo esquema prvio do entrevistador. Na grande maioria das vezes, a entrevista assumiu as caractersticas de uma conversao livre, balizada pelas perguntas roteirizadas, mesmo porque tratava-se de coletar, alm de informaes objetivas, impresses pessoais e subjetivas sobre o tema. Quando o teor das respostas do entrevistado revelava um grau intenso de interao com os corpos dgua ou uma longa vivncia social ou cultural da regio pesquisada, o roteiro comum era substitudo por um questionrio mais extenso, gerando entrevistas mais longas. A escolha dessas pessoas era uma deciso pessoal e imediata do pesquisador e pautava-se tosomente pelos citados critrios da interao e vivncia. Responderam a esse questionrio pessoas das mais diversas faixas etrias, nveis socioeconmicos e graus de escolaridade. Nestes casos os dilogos duraram mais de 60 minutos, tendo sido, em algumas situaes, previamente agendados com os entrevistados. Segue abaixo o questionrio aplicado nessas entrevistas mais longas: Projeto So Francisco - Questionrio para pesquisa de campo Dados preliminares 12

Informar nome, sexo, idade, ocupao, escolaridade, tempo de residncia no lugar, se participa de alguma organizao pblica ou privada. Grau de intimidade/uso dos recursos hdricos da bacia Qual a sua relao com o rio So Francisco? De onde vem a gua que voc utiliza em casa? Para onde vai a gua usada? E o esgoto? E o lixo? Relao de pertencimento bacia De onde vem o rio So Francisco? Para onde vai o rio? De onde vm as guas que formam o rio? Grau de percepo das alteraes socioambientais ocorridas no rio e nos seus afluentes Lembra-se de alguma alterao ocorrida no rio So Francisco? Como era o rio antes dessa alterao? Como v a situao ambiental do rio hoje? Como v o futuro do rio? Grau de informao sobre as polticas pblicas para a bacia - projeto de transposio J ouviu falar da transposio do So Francisco? O que acha da idia? Grau de participao social e poltica nas questes da bacia

13

Participou ou participa de alguma organizao, grupo de trabalho ou projeto social ligado ao rio So Francisco ou a seus afluentes? Participou ou participa de alguma audincia pblica, campanha ou reunio voltada para os problemas do rio e dos seus afluentes? 4.3 Gravao de entrevistas com membros do poder pblico municipal e integrantes de organizaes no governamentais Um segundo grupo de entrevistados foi formado por membros do poder pblico municipal prefeito ou vice-prefeito, secretrios da rea de meio ambiente ou agricultura e presidente ou vice-presidente da Cmara Municipal. Nessas entrevistas, na maior parte das vezes ocorridas nos gabinetes ou salas de trabalho dos entrevistados, no foi seguido um roteiro prvio ou aplicado o questionrio. Esse grupo de entrevistas visou obter informaes sobre os problemas socioambientais relacionados bacia no municpio e as solues encaminhadas. Alm disso, foi solicitado, em especial nas entrevistas com prefeitos, que os entrevistados tecessem comentrios mais longos sobre a transposio, justificando a sua posio favorvel ou contrria ao projeto. Foram tambm ouvidos integrantes de organizaes no governamentais, que incluram tanto entidades estruturadas formalmente, como sindicatos, quanto movimentos ambientais, sociais, ou culturais de formao espontnea. Uma seleo prvia dessas organizaes foi realizada a partir do cadastro de entidades da Gerncia de Projetos Institucionais da Assemblia Legislativa, tendo se priorizado aquelas cuja atuao est relacionada bacia, tais como sindicatos de trabalhadores rurais, sindicatos de produtores rurais e colnias de pescadores. 4.4 Gravao de observaes e impresses pessoais Alm das entrevistas, os pesquisadores registraram em fitas cassete um expressivo conjunto de observaes, informaes, dados e impresses pessoais. A utilizao do minigravador permitiu que os registros fossem mais numerosos, mais diretos e mais fidedignos do que se tivessem sido feitos por escrito. Comumente as notas escritas so feitas depois de transcorrido o dia de trabalho de campo, o que pode gerar dvidas e equvocos no registro. A gravao em cassete, por outro lado, realizada in loco, fornece um contedo de informaes mais denso e preciso. 14

4.5 Fotografia Foram fotografados, pelos pesquisadores, paisagens, situaes, pessoas, formaes vegetais, embarcaes, estabelecimentos, lavouras e diversos outros elementos sociais, culturais e naturais que interessaram ao projeto. A fotografia um registro documental de imagens que enriqueceram a abordagem da pesquisa, ilustrando os textos produzidos. 4.6 Tratamento dos dados Foram realizadas 88 entrevistas, nas quais os tpicos de interesse do projeto, esquematizados no questionrio, foram explorados em profundidade. Juntamente com as notas pessoais, esse material possibilitou um tratamento qualitativo do tema. A rea de abrangncia da pesquisa, que englobou todo o mdio superior So Francisco, formado pelo trecho do rio entre Pirapora e Manga, reforou a relevncia dos dados coletados. Deve-se registrar, por outro lado, que o nmero de entrevistas realizadas e o formato dos dilogos no permitem um tratamento quantitativo do tema, que no estava entre os objetivos do projeto. As entrevistas e notas pessoais, gravadas em fitas cassete, foram transcritas e impressas. As notas de campo assim geradas constituram trs volumes impressos, com um total de 661 pginas. Esse material foi lido por cada pesquisador e tematizado ou indexado de acordo com a sua rea de trabalho no projeto. Foram utilizadas nessa indexao as palavras-chave intimidade, pertencimento, alterao, uso, informao e participao, que identificam o contedo da pesquisa como um todo. As fotografias obtidas em filmes negativos e diapositivos (cromos) foram digitalizadas, passando a formar, juntamente com as fotografias obtidas diretamente por meio digital, o acervo de imagens do projeto. Esse acervo foi identificado, classificado e legendado, encontrando-se sob a guarda do coordenador do projeto. Parte das fotografias foi reproduzida neste relatrio.

15

O projeto de transposio no contexto das intervenes tcnicas no vale do So Francisco Mrcio Santos 1 A navegao a vapor como primeira abordagem tcnica do vale do rio O projeto contemporneo de transposio de parte das guas do rio So Francisco para as regies semi-ridas do Nordeste Setentrional no um fato isolado, uma iniciativa que se explica apenas no presente; pelo contrrio, est conectado a um passado de um sculo e meio de intervenes tcnicas nos vales do rio e dos seus principais afluentes. A idia-fora que norteia a exposio que aqui fao a de que, a partir de meados do sculo XIX, comea a se instalar o que pode ser denominado uma abordagem tcnica do vale do rio So Francisco, que se acentuar nas dcadas seguintes e ganhar, no sculo XX, o carter de um controle tecnolgico sobre o vale do rio. Essa abordagem tcnica configura um momento de transio fundamental na ocupao e na utilizao do rio e dos seus afluentes. Nos seus primrdios o esforo de conhecimento e de correo o termo coevo dos primeiros estudos tcnicos sobre o vale do rio centrou-se na navegao. Foi a partir da funo viria do So Francisco e dos seus maiores afluentes que se estabeleceu sobre o vale um novo olhar. Para entender a emergncia da abordagem tcnica do vale, retrocederei, portanto, sua primeira manifestao, representada pelos estudos e projetos elaborados, em meados do sculo XIX, para se implantar no rio e nos seus maiores afluentes uma nova forma de navegao. Pelo menos desde o sculo XVII o So Francisco era percorrido, especialmente no seu trecho mdio, entre a cachoeira de Pirapora e Juazeiro, por embarcaes rudimentares, algumas delas inspiradas nas suas congneres indgenas. Quando realizou a sua viagem de explorao dos trechos mdio e baixo do rio, na dcada de 50 do sculo XIX, o engenheiro alemo Henrique Halfeld encontrou diversas dessas embarcaes: canoas feitas de um tronco s, preferencialmente das madeiras tamboril, vinhtico e cedro, medindo mais de 20 metros de comprimento por pouco mais de um metro de largura; ajoujos, que consistiam na unio de duas ou trs dessas canoas, por meio de paus rolios 16

amarrados com tiras de couro cru; e barcas, tambm de madeira, de tamanhos diversos, de 13 a 23 metros de comprimento, de 2,6 a 3,5 metros de largura e de 0,8 a 1,3 metro de profundidade. O prprio Halfeld viajou num ajoujo. A documentao histrica mostra que j cerca de dois sculos antes da sua viagem o trecho mdio do rio era constantemente navegado por canoas como as descritas, no fabrico das quais se aproveitavam as madeiras extradas da mata atlntica que cobria parte do que viriam a ser as Minas Gerais. Essas canoas desciam o rio das Velhas e, a partir da sua foz, passavam ao So Francisco, chegando at a cachoeira de Paulo Afonso. O percurso podia ser coberto em apenas quinze dias e aproveitava a suavidade, brevidade e baixo custo da viagem fluvial, evitando-se assim o difcil e oneroso transporte terrestre.2 Por sculos, portanto, vinham sendo essas as embarcaes que circulavam pelo So Francisco. A navegao tradicional baseava-se nas foras naturais correnteza, vento e no trabalho humano de pilotos e remadores, que guiavam e impeliam as embarcaes por meio de remos e varas (varejes). Os materiais empregados no fabrico eram os que se podiam obter diretamente da natureza e da atividade pecuria estabelecida nas margens do rio: madeiras nativas e couros, estes ltimos utilizados tanto para unir os paus como para improvisar cobertas para a proteo da carga. Essas rsticas cobertas para mercadorias e suprimentos podiam ser feitas tambm de capim ou de palha de coqueiro. As tcnicas de navegao estavam, da mesma forma, indissoluvelmente ligadas s condies naturais: descer ou subir o rio nessas embarcaes rsticas dependia do que hoje chamamos o regime dos cursos de gua, um conjunto de variaes hidrogrficas determinadas pelo clima. Podemos aplicar a esse sistema de navegao a definio dada por Milton Santos para as atividades humanas desenvolvidas num meio exclusivamente natural:Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas suas partes ou aspectos considerados fundamentais ao exerccio da vida, valorizando, diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condies naturais que constituam a base material da existncia do grupo. Esse meio natural generalizado era utilizado pelo homem sem grandes transformaes. As tcnicas e o trabalho se casavam com as ddivas da natureza, com a qual se relacionavam sem outra mediao.

2

Informao sobre as Minas do Brasil, [1705?]. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. LVII, p. 159-186, 1935.

17

[...] Nesse perodo os sistemas tcnicos no tinham existncia autnoma. Sua simbiose com a natureza era total [...] e, podemos dizer, talvez, que o possibilismo da criao mergulhava no determinismo do funcionamento. [...]. A harmonia socioespacial assim estabelecida era, desse modo, respeitosa da natureza herdada, no processo de criao de uma nova natureza. Produzindoa, a sociedade territorial produzia, tambm, uma srie de comportamentos, cuja razo a preservao e a continuidade do meio de vida. Exemplo disso so, entre outros, o pousio, a rotao de terras, a agricultura itinerante, que constituem, ao mesmo tempo, regras sociais e regras territoriais, tendentes a conciliar o uso e a conservao da natureza: para que ela possa ser outra vez, utilizada. Esses sistemas tcnicos sem objetos tcnicos no eram, pois, agressivos, pelo fato de serem indissolveis em relao Natureza que, em sua operao, ajudavam a reconstituir.3

Um recorte temporal, coincidente com a viagem de Henrique Halfeld, nos mostra que a utilizao do rio e dos seus afluentes no sistema virio tinha, at esse momento, esse carter simbitico com os elementos naturais. A navegao tradicional, baseada nas foras e nos ritmos da natureza, constitua um sistema tcnico sem objetos tcnicos isto , uma atividade organizada segundo determinados procedimentos, que se exerciam exclusivamente sobre objetos naturais, no tcnicos. Ser exatamente a viagem de explorao empreendida por Halfeld da cachoeira de Pirapora foz do rio, entre 1852 e 1854, o esforo pioneiro de inaugurar a abordagem tcnica do vale do So Francisco. O objetivo explcito do empreendimento, contratado pelo governo imperial, foi o dedar conhecimento do estado em que se acha a navegao sobre as guas do rio de So Francisco e seus confluentes; das circunstncias que a favorecem; dos obstculos que a dificultam ou totalmente impedem; a designao dos projetos e meios que julgo dever-se aplicar ou que se oferecem para efetuarse o melhoramento do mesmo rio, e a descrio do seu curso.4

Havia, portanto, que descrever o curso do rio com vistas a sugerir projetos e meios para se fazer o seu melhoramento, com vistas a favorecer a navegao. notvel que a terminologia utilizada enfeixe uma abordagem radicalmente distinta do que se tinha at ento. O objetivo da viagem era a coleta minuciosa de informaes e dados que fornecessem elementos tcnicos para aprimorar a utilizao do rio e dos seus afluentes como vias de circulao. Esse aprimoramento significaria, na realidade, uma transformao decisiva no vale do rio, que ocorreria nas dcadas seguintes, representada3 4

Milton Santos. A natureza do espao..., p. 235-236. Henrique Halfeld. Atlas e relatrio..., p. 1.

18

pela implantao da navegao a vapor. Favorecer a navegao, portanto, significava trazer uma novidade tcnica a fora motora das embarcaes baseada num mecanismo movido a vapor que possibilitasse superar a dependncia exclusiva dos elementos naturais e do trabalho humano que caracterizava a navegao tradicional. Diferentemente do sistema secularmente utilizado na navegao pelo rio, que aproveitava a experincia da populao autctone, inclusive indgena, a navegao a vapor constitua uma inovao cientfica trazida da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, sociedades nas quais a primeira fase da Revoluo Industrial se realizara com base na fora a vapor, aplicada s mquinas fabris, s locomotivas e aos navios. Representava, portanto, a integrao do interior brasileiro ao sistema de propulso de embarcaes utilizado pelas sociedades economicamente mais vigorosas do planeta. Estava em curso a implantao, no vale do So Francisco, do que Milton Santos chama meio tcnico ou maqunico:O perodo tcnico v a emergncia do espao mecanizado. Os objetos que formam o meio no so, apenas, objetos culturais; eles so culturais e tcnicos, ao mesmo tempo. [...]. As reas, os espaos, as regies, os pases passam a se distinguir em funo da extenso e da densidade da substituio, neles, dos objetos naturais e dos objetos culturais, por objetos tcnicos. Os objetos tcnicos, maqunicos, juntam razo natural sua prpria razo, uma lgica instrumental que desafia as lgicas naturais, criando, nos lugares atingidos, mistos ou hbridos conflitivos. Os objetos tcnicos e o espao maquinizado so lcus de aes superiores, graas sua superposio triunfante s foras naturais.5

O relatrio de Halfeld ocupa, como projeto pioneiro de um novo meio tcnico, um lugar privilegiado na anlise desse perodo de transio do vale do So Francisco. Elaborado com o rigor metodolgico tpico da cincia moderna, o relatrio reporta as observaes feitas pelo pesquisador lgua a lgua, mencionando acidentes naturais, construes humanas, dados numricos relativos a distncias, profundidades, larguras, alturas, quantitativos populacionais. Como observou Antonio Rocha Penteado, Halfeld percorreu as 382 lguas entre Pirapora e a foz do rio, anotandotudo o que se referia s suas margens, localizao de fazendas e stios, desembocadura de afluentes, profundidade e largura do rio e de seu talvegue, constituio geolgica do leito e das margens, s condies de5

Milton Santos, op. cit., p. 236-237.

19

navegabilidade, ao regime do rio, aos pequenos portos fluviais, vegetao dos barrancos, s matas que recobriam as margens mais altas, aos bancos de areia, s coroas, s plantaes, s pequenas cidades, vilas e arraiais, aos tipos de embarcaes e seus tripulantes [...]6

Mas constitui o relatrio, principalmente, um precioso conjunto de sugestes tcnicas de alterao do perfil do rio. Preocupado com o objetivo principal da sua misso, Halfeld sugeriu diversas obras de engenharia, das quais dependeria a viabilizao do rio como canal para a circulao de embarcaes a vapor. Entre essas obras, estariam a desobstruo de trechos encachoeirados, a construo de eclusas, a abertura de canais, a correo de trechos de curso acidentado, a remoo de pedras e o melhoramento de portos. Alm disso, Halfeld preocupou-se com o policiamento das margens do rio, de forma a compelir os moradores ribeirinhos a manter limpos de mato os barrancos marginais e a evitar que os paus derrubados fossem jogados nas guas, o que constitua um perigo para as embarcaes; com a seleo, nos lugares ribeirinhos, de pilotos hbeis na navegao pelo rio; e com o suprimento de combustvel para a navegao. As principais obras de engenharia tiveram o custo cuidadosamente estimado, a partir do que pde o pesquisador apresentar, no final do seu texto, um resumo contbil geral dos melhoramentos sugeridos entre Pirapora e o oceano. Includas no relatrio, as minuciosas cartas topogrficas dos trechos percorridos, com indicao de afluentes, povoaes, ilhas, terrenos marginais, constituem um levantamento hidrogrfico pioneiro do mdio e baixo So Francisco. Um perfil longitudinal do rio, plantas da cachoeira de Paulo Afonso e do afluente rio Grande e duas gravuras completam o relatrio de Halfeld.

6

Penteado. Apresentao. In: Henrique Halfeld. op. cit.

20

Figura 1 - Carta topogrfica de trechos dos rios So Francisco e das Velhas no Relatrio de Henrique Halfeld.

Figura 2 - Perfil longitudinal do rio So Francisco, entre o afluente Xing e o oceano, no Relatrio de Henrique Halfeld. Fonte: Henrique G. F. Halfeld. Atlas e relatrio... 2.ed. So Paulo: Empresa das Artes, 1994. Edio facsimilada.

21

Nos anos e dcadas seguintes viagem de Halfeld outros estudiosos empreenderam pesquisas similares ao longo do rio e do seu mais caudaloso afluente. Em 1862 o francs Emmanuel Liais desceu o rio das Velhas de Sabar foz e da subiu o So Francisco at a barra do Paraopeba, do que resultou relatrio publicado em 1865.7 Seis anos depois o engenheiro Carlos Krauss examinou o rio entre o porto de Piranhas e a cachoeira de Sobradinho, de navegabilidade difcil ou impossvel em alguns trechos, em razo da cachoeira de Paulo Afonso e da prpria cachoeira de Sobradinho. Em 1879 o engenheiro norte-americano William Milnor Roberts fez o percurso inverso ao de Halfeld, isto , da foz do rio a Pirapora, investigando as condies de navegabilidade. O engenheiro Benjamim Franklin de Albuquerque Lima examinou, em 1881, o rio das Velhas entre a localidade de Macabas e a sua foz. O pesquisador Fernando da Matta Machado estudou os relatrios dessas jornadas de investigao da navegabilidade a vapor pelo rio So Francisco e pelo rio das Velhas e teceu os seguintes comentrios sobre as concluses de Halfeld, Krauss e Roberts:O relatrio de Halfeld teve sem dvida muita importncia para o conhecimento do So Francisco, porque foi o primeiro estudo a tratar do rio nos seus aspectos globais e particulares. Entretanto, ao constatar a navegabilidade franca para navios a vapor apenas no trecho Pirapora a Juazeiro sem apresentar alternativa de transporte, financeiramente vivel, at o mar, estava comunicado impasse que exigia futura soluo, isto porque a navegao do So Francisco somente fazia sentido comercial se os produtos pudessem ser transportados at o litoral do pas e dali distribudos para os centros consumidores nacionais ou europeus. Como em 1858 a construo de estradas de ferro no Brasil estava apenas iniciando e tinha ainda desenvolvimento inexpressivo, a conexo do So Francisco com o mar parecia invivel a mdio prazo atravs de meios ento modernos de transporte, vale dizer, navios a vapor ou trem. Por isso, a manifestao de Halfeld de a construo de um canal lateral de Boa Vista a Po de Acar ser excessivamente cara desincentivou as iniciativas governamentais e privadas de levarem a efeito a navegao por vapores, porque era opinio geral que o trfego apenas hinterlndico fosse economicamente invivel. As concluses de Krauss e Roberts, em 1869 e 1880, vieram trazer novo alento a todos aqueles que se interessavam pela navegao a vapor do So Francisco. O governo imperial no poderia conceder incentivos financeiros a empresas particulares para navegar o rio sem o apoio em justificao tcnica de profissional habilitado. Era, portanto, indispensvel que engenheiro competente garantisse que a navegao fluvial so-franciscana podia ser realizada mediante custos suportveis pelas finanas pblicas. Ora, foram exatamente as concluses de Krauss e Roberts que permitiram ao governo7

Liais, E. Hydrographie du haut san francisco et du rio das velhas. Paris: Garnier, 1865. Essa obra no foi consultada para o presente estudo.

22

central fazer, anos depois, avultadas despesas na desobstruo do rio, conceder a subveno de 90.000$ a uma empresa privada pelo trfego efetivo e estabelecer as condies para a navegao. Sintetizando, podemos afirmar que em William Milnor Roberts est a verdadeira base ideolgica para o incentivo e concretizao da navegao a vapor do rio So Francisco. Esta base ideolgica foi indispensvel para que governantes, parlamentares e empresrios privados tornassem realidade a navegao so-franciscana e permeou o pensamento de vrios historiadores do rio So Francisco.8

A navegao a vapor tardaria a se tornar realidade no vale do So Francisco. Em 1870 e 1871 ocorre a jornada de Francisco Manoel lvares de Arajo, que Matta Machado considera ter inaugurado a navegao a vapor no rio So Francisco. 9 O objetivo era conduzir o vapor Saldanha Marinho do porto da Jaguara, no rio das Velhas, ao So Francisco, explorando no s este, mas tambm os seus afluentes Paracatu e Grande. O Saldanha Marinho era um vapor de 28 metros de comprimento por sete metros de boca, com potncia de 25 cavalos-vapor. A maior parte da estrutura era de ferro. O sistema motor era constitudo de uma caldeira, um cilindro, uma bomba e um injetor com 57 tubos. A velocidade mdia, a favor da correnteza, era de 22 quilmetros por hora e, subindo o rio, de 14 quilmetros por hora. Segundo lvares de Arajo, quando o vapor passou sua responsabilidade era uma embarcao constituda somente do casco e da mquina, sem cmodos ou cobertas, razo pela qual foi improvisada uma cobertura provisria de algodo tranado. Essa primeira viagem a vapor pelo So Francisco, realizada numa embarcao destituda de quaisquer comodidades ou recursos que no os estritamente necessrios sua locomoo, foi reportada pelo explorador num extenso relatrio elaborado no ano seguinte ao do trmino da jornada.10 lvares de Arajo partiu da Quinta do Sumidouro (hoje no municpio de Pedro Leopoldo/MG) e desceu o rio das Velhas at a sua foz. Da seguiu pelo So Francisco de Guaicu (Vrzea da Palma/MG) at Boa Vista (Santa Maria da Boa Vista/PE). Percorreu, portanto, a maior parte da extenso navegvel do rio das Velhas e todo o mdio So Francisco. A viagem requereu cuidados especiais, tendo o explorador aguardado a chegada de chuvas, que encheriam o rio, em vrias etapas da jornada.

8 9

Fernando da Matta Machado. Navegao do rio So Francisco, p. 76-77. Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 117. possvel que o autor se refira especificamente navegao a vapor organizada em trajetos regulares e com fins comerciais, pois de se registrar que em 1859 D. Pedro II viajou de vapor do Rio de Janeiro s provncias do norte, tendo nessa jornada percorrido o rio So Francisco da foz at a cachoeira de Paulo Afonso. Essa viagem foi narrada em notas dirias feitas pelo imperador. Pedro II. Viagens pelo Brasil... 10 lvares de Arajo. Relatrio da viagem de explorao... Revista do IHGB, v. 39, p. 76-155.

23

Navegou-se sempre buscando o talvegue a linha mais profunda no leito do rio e evitando-se bancos de areia, paus encalhados e reas de baixa profundidade. Ao longo da jornada lvares de Arajo anotou os pontos que, no seu entender, mereceriam obras de facilitao da navegao. Menos minucioso que Henrique Halfeld, sugeriu apenas a desobstruo de alguns trechos do So Francisco e dos seus principais afluentes (das Velhas, Paracatu, Urucuia, Corrente e Grande), bem como a remoo de paus e a destruio de pedras. Para o explorador os trechos do So Francisco passveis de navegao a vapor eram de Pirapora a Boa Vista na estao das cheias, que perfazia uma extenso de 1.493 quilmetros, e de Guaicu a Riacho da Casa Nova (Casa Nova/BA), correspondente a 1.270 quilmetros, na estao seca. O relatrio traz ainda a indicao de pontos de escala e de depsitos de lenha. lvares de Arajo fez sugestes gerais importantes, como a organizao, pelo poder pblico, de viagens regulares entre Guaicu e Juazeiro; a conexo entre a hidrovia do So Francisco e as estradas de ferro que levavam ao litoral; a organizao do trabalho de prticos e remadores. Diferentemente de Halfeld, que, numa avaliao realista, previu que a vegetao marginal forneceria o combustvel para os vapores por apenas mais 20 anos, opinou que o suprimento de madeira de boa qualidade era praticamente inesgotvel. Citou, como exemplos, a aroeira, o angico, a jurema e a jurema preta. Na perspectiva do sculo XIX a vegetao marginal a mata ciliar, na denominao contempornea , constitua um recurso a ser extrado e utilizado em larga escala. Ainda que se preocupe com a preservao das rvores que no dificultem a navegao, para evitar o assoreamento das margens e garantir sombra aos viajantes, Halfeld considera a mata quase impenetrvel que ladeava o So Francisco uma fonte bvia de combustvel para a navegao, enquanto durassem as madeiras.11 Esgotada essa fonte, a madeira necessria deveria ser trazida do litoral, transportada sobre as estradas de ferro que partiriam de Pernambuco (Recife), de Macei ou da Bahia (Recncavo Baiano). lvares de Arajo, como vimos, foi alm: Entendo que durante sculos, ou antes sempre haver madeira de boa qualidade e em abundncia para ser empregada nos vapores.1211 12

Henrique Halfeld. op. cit., p. 54. lvares de Arajo, op. cit., p. 249.

24

A extrao de lenha nos depsitos, ou portos, de lenha das margens do So Francisco foi uma das grandes alteraes provocadas pela navegao a vapor no perfil do vale. A madeira, que na navegao tradicional era utilizada num ritmo lento e no agressivo, passou a ser extrada em larga escala para alimentar os vapores. A riqueza da vegetao marginal ento existente permitia mesmo que, durante uma viagem, o suprimento de madeira fosse recolhido diariamente, em portos relativamente prximos entre si, o que evitava sobrecarregar a embarcao com lenha para mais de um dia. A prtica de se preferirem as madeiras mais resistentes, que queimavam por mais tempo, e mais prximas das margens, para comodidade do transporte, levou destruio de boa parte da mata ciliar do So Francisco.

Figura 3 Desenho de Spix e Martius, retratando uma lagoa marginal do rio So Francisco e a exuberante vegetao em torno, no trecho pesquisado neste estudo. Assim descreveram os autores esta imagem: Lagoa de aves, margem do Rio So Francisco, perto da fazenda Capo. Figura do estado natural primitivo: o reino das aves em pleno gozo de suas tendncias nativas. Na floresta que contorna a gua, pulsando de vida, vem-se muitos cips de plantas cissides, a embaba, a palmeira macaba e o grande canio de flecha. Fonte: Spix, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil : 1817-1820. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1981. v. 2, p. 77.

25

H poucos dados quantitativos a respeito, mas Matta Machado cita uma cifra impressionante, sem todavia atentar para o que ela representa quanto devastao. Segundo os dados coligidos pelo autor, no ano de 1895 gastaram-se 1.116.946 achas de lenha como combustvel. Cada uma dessas achas media um metro de comprimento e 8 a 12 centmetros de dimetro.13 praticamente impossvel inferir-se, a partir da, quantas rvores teriam sido abatidas no ano, mas o dado, mesmo se considerado isoladamente, no deixa dvida quanto extenso da destruio da mata ciliar para a alimentao dos vapores. O jornalista Carlos Lacerda viajou pelo So Francisco em 1937 e constatou que o gasto de lenha nessa navegao uma entrega permanente de todas as matas ribeirinhas, j em grande parte devastadas. Segundo Lacerda, uma viagem de navio entre Pirapora e Juazeiro, no perodo das guas, implicaria no consumo de 21.500 achas, ou 119 metros cbicos de lenha. No sentido oposto, contra a corrente, o gasto seria de 44.300 achas, ou 246 metros cbicos. O jornalista calculou a mdia de consumo de lenha em viagens por esse trecho, o mais navegado do rio, em 16 achas por quilmetro na descida do rio e em 32 achas por quilmetro na subida. No perodo seco do ano o consumo poderia chegar ao dobro dessas cifras, devido energia necessria para retirar o vapor dos constantes encalhes.14 Em outro trecho do seu relato o autor aborda a devastao vegetal provocada pela navegao a vapor do ponto de vista da subsistncia dos barranqueiros:A lenha... poderamos considerar produtiva essa atividade devastadora? uma das fontes principais do sustento dos ribeirinhos. Barranqueiros existem que s vivem do que vendem aos vapores. Estes encostam no barranco, recebem as achas e o comandante paga vista. O preo, calculado em metros cbicos, varia de 2$500 a 4$ por unidade. Nada mais h a fazer do que cortar, torar as florestas restantes, as capoeiras, as moitas, e entregar boca ardente do navio o seu alimento indispensvel. Depois, esperar a maleita, adormecer a maleita, esper-la de novo...15

alimentao dos vapores se somou a utilizao de lenha como combustvel de pequenas usinas de gerao de energia eltrica, instaladas em cidades ribeirinhas.

13 14

Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 253. Carlos Lacerda. Desafio e promessa, p. 123. Carlos Lacerda passou 28 dias viajando entre Pirapora e Juazeiro. Estava ento com 23 anos de idade e apenas iniciava a atividade poltica que o tornaria clebre. Da sua viagem resultou esse interessante texto, baseado em observaes diretas, dados estatsticos e documentos histricos, escrito em 1939, pouco utilizado nas pesquisas sobre o vale do So Francisco. 15 Idem, p. 64.

26

Entre 1883 e 1896, ainda de acordo com Matta Machado, foram desobstrudas diversas cachoeiras do So Francisco.16 A navegao a vapor se estenderia por muitas dcadas, chegando at a segunda metade do sculo XX. Os vapores de carga, que levavam mercadorias, e os chamados gaiolas, que transportavam principalmente passageiros, singravam regularmente as guas do So Francisco. Cidades ribeirinhas tornaram-se importantes portos fluviais.

Mnica Meyer

Figura 4 Vapor Benjamim Guimares retratado em pintura do artista Frank, na praa de Itacarambi

A decadncia da atividade veio com a emergncia do transporte rodovirio, que reduziu drasticamente a opo pelo transporte fluvial e relegou a segundo plano o transporte ferrovirio.

16

Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 288.

27

A navegao a vapor representou a primeira grande interveno tcnica na configurao natural do So Francisco. Projetos foram elaborados e obras foram executadas com o propsito de se fazer o que preconizava o engenheiro Halfeld em meados do sculo XIX: a correo completa do Rio de S. Francisco, desde a cachoeira de Pirapora at o mar.17 Corrigir o curso do rio, por meio da aplicao de um conjunto de tcnicas cientficas de engenharia e de navegao, tornou-se um imperativo nas aes governamentais voltadas para o vale do So Francisco. Veremos que essa abordagem corretiva e utilitria do rio se intensificar no sculo seguinte, abrindo o caminho para drsticas alteraes antrpicas da paisagem do vale. 2 As usinas hidreltricas e o controle tecnolgico do vale do rio A primeira usina hidreltrica instalada no vale do So Francisco foi tambm a primeira hidreltrica da regio Nordeste: trata-se da Usina de Angiquinho, construda em 1912 no meio de um paredo de granito, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso, em rea que hoje integra o municpio alagoano de Delmiro Gouveia. Tratou-se de uma ao pioneira e independente do industrial alagoano Delmiro Gouveia, que inicialmente buscava alimentar de energia eltrica a sua fbrica de linhas de costura, instalada a 23 quilmetros da usina. O empresrio obteve do governo alagoano a concesso para captar o potencial hidreltrico da cachoeira de Paulo Afonso e produzir eletricidade, que passou a abastecer a localidade de Pedra (hoje Delmiro Gouveia). A usina continha trs turbinas a uma altura de 42 metros, com tenso de 3.000 volts.18 O impulso inicial para a construo do complexo hidreltrico de Paulo Afonso partiu de Apolnio Salles, ministro da Agricultura do primeiro governo de Getlio Vargas. Inspirado na proposta de integrao regional do Tennessee Valley Authority, nos Estados Unidos, que visitou em 1944, Salles props um projeto similar para o rio So Francisco. O projeto seria executado numa rea demarcada por um crculo de 450 quilmetros em torno da cachoeira de Paulo Afonso e englobaria oito estados. Em 1945 o governo federal instituiu a Companhia Hidreltrica do So Francisco Chesf. Em 1949 iniciou-se a construo da usina de Paulo Afonso I, que demandou a17 18

Henrique Halfeld. op. cit., p. 57. Semira Adler Vainsencher. Paulo Afonso.

28

instalao de uma barragem mvel no brao principal do rio, problema de engenharia de difcil soluo. A nova usina entrou em operao em 1955, com 180 mil quilowatts, produzidos por duas mquinas geradoras, ligadas s linhas tronco Norte, para Recife, e tronco Sul, para Salvador. Foram assinados, ainda, contratos para o fornecimento de energia eltrica para as cidades de Joo Pessoa, Campina Grande, Aracaju, Garanhuns, Pesqueira, Goiana, Itabaiana, Riachuelo e Maruim, bem como para oito empresas privadas. As linhas de transmisso, com a estrutura construda ainda em madeira, percorriam 860 quilmetros.19 A usina Paulo Afonso II foi edificada entre os anos de 1963 e 1968; entre 1969 e 1970, Paulo Afonso III era concluda e, em 1971, suas duas primeiras unidades comeavam a funcionar. O conjunto das trs usinas passou a constituir o maior complexo energtico do pas, responsvel, durante 30 anos, pela quase totalidade do fornecimento de energia eltrica para a regio Nordeste. As trs usinas foram instaladas em cavernas independentes, aproveitando-se o forte desnvel natural criado pela cachoeira. Paulo Afonso IV, por seu turno, foi construda na margem do canyon do So Francisco, aproveitando-se as excepcionais condies topogrficas da rea para a gerao de energia, a possibilidade de captao de gua no reservatrio da Usina Apolonio Sales e a garantia de vazo proporcionada pela represa de Sobradinho. A casa de mquinas da usina foi instalada numa caverna escavada a 55 metros de profundidade, com 210 metros de extenso e 24 metros de largura, o que representou expressiva obra de engenharia na rea de usinas subterrneas. Paulo Afonso IV entrou em operao em 1979. Hoje o Complexo de Paulo Afonso, formado pelas usinas Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolonio Sales, em Moxot, produz um total de 4 milhes e 280 mil quilowatts de energia, potncia gerada por meio do desnvel natural de 80 metros do rio So Francisco.20 O incio do funcionamento da Barragem de Sobradinho, ocorrido em 1979, possibilitou o controle do curso do rio e do fornecimento de gua para as usinas a jusante dela. A represa garantiu uma vazo mnima de 2.060 metros cbicos por segundo, correspondentes a 74% da mdia anual do rio So Francisco no seu trecho em Sobradinho. A eclusa de navegao passou a permitir a ultrapassagem do rio num19 20

Idem, ibidem. Idem, ibidem.

29

trecho de desnvel mximo de 32,5 metros. O lago gerado pela barragem tem 320 quilmetros de extenso e 4.214 quilmetros quadrados de espelho dgua. As seis unidades geradoras da configurao final da usina garantem uma potncia instalada de 1.050 megawatts. O enchimento da represa da Usina de Xing ocorreu em 1994. A usina tem hoje seis unidades geradoras, que proporcionam uma potncia instalada de 3.000 megawatts. O reservatrio da Usina de Moxot hoje chamada Apolonio Sales em homenagem ao idealizador da Chesf foi construdo para possibilitar, em carter permanente, a regularizao da vazo do rio. A usina foi equipada com quatro unidades geradoras, que totalizam uma potncia instalada de 440 megawatts. A Usina Hidreltrica Luiz Gonzaga, originalmente denominada Itaparica, foi implantada 50 quilmetros a montante de Paulo Afonso, vizinha Cachoeira de Itaparica. A gerao de energia pela usina iniciou-se em 1988. Hoje, as seis unidades geradoras totalizam uma potncia instalada de 1.500 megawatts. Todo o complexo hidreltrico constitudo pelas Usinas de Paulo Afonso, Sobradinho, Xing, Apolonio Sales e Luiz Gonzaga controlado pela Chesf, sociedade de economia mista que tem como acionista majoritrio o governo federal, atravs das Centrais Eltricas Brasileiras Eletrobras. A operao da Usina Hidreltrica de Trs Marias, no mdio So Francisco, em Minas Gerais, sob a responsabilidade da Companhia Energtica de Minas Gerais, iniciou-se em 1962. Na poca de sua construo, que constituiu grande desafio tecnolgico, Trs Marias estava entre as maiores barragens de terra do mundo. A barragem tem 3,25 quilmetros de extenso e altura mxima de 56,9 metros. O reservatrio tem 1.040 quilmetros quadrados de espelho d'gua e permite o armazenamento de 15,278 bilhes de metros cbicos de gua. As seis unidades geradoras garantem uma potncia instalada de 396 megawatts, produo energtica que a mais baixa dentre as usinas hidreltricas construdas ao longo do rio So Francisco. Com efeito, mais do que a gerao de energia eltrica, a 30

construo da barragem de Trs Marias objetivou controlar as cheias peridicas do rio e os longos perodos de estiagem, alm de melhorar as condies de navegao do So Francisco e permitir a instalao de projetos de irrigao.

Mrcio Santos

Figura 5 Lago de Trs Marias na regio de Morada Nova de Minas

As nove usinas hidreltricas implantadas, a partir da dcada de 40, no curso do rio So Francisco, intensificaram a crescente dependncia brasileira da energia eltrica gerada pela fora das guas. O grfico abaixo mostra que a expanso da gerao de energia total no pas foi sempre acompanhada, pari passu, por expanso proporcional na gerao de energia hidreltrica; isto , especialmente a partir da dcada de 50, definiuse, em detrimento de outras fontes energticas, que a fonte de energia por excelncia no pas seria a gerada pelas usinas hidreltricas.

31

Grfico 1 - Evoluo da potncia instalada no Brasil60.000.000 50.000.000 40.000.000 30.000.000 20.000.000 10.000.000 0 1901 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1985 1990 Ano Energia total Energia hidreltrica

Fonte: Grfico confeccionado a partir de dados fornecidos por Arnaldo C. Mller. Hidreltricas, meio ambiente e desenvolvimento. So Paulo: Makron Books, 1995. Os dados do autor foram retirados de: Ministrio da Infra-Estrutura. Cadastro Nacional de Usinas. Sistema de Informaes Empresariais do Setor de Energia Eltrica Siese. Rio de Janeiro: Eletrobras, 1991.

A construo da represa de Sobradinho e o conseqente alagamento da vasta rea hoje ocupada pelo lago artificial levou ao desaparecimento de cinco ncleos urbanos baianos de porte mdio e transferncia dos seus moradores para novas sedes, construdas nas margens do reservatrio. Em 1974, foram inundadas as antigas cidades de Casa Nova, Pilo Arcado, Remanso e Sento S e o antigo distrito de Sobradinho, ento pertencente ao municpio de Juazeiro. Doze mil famlias, ou cerca de 70 mil pessoas, foram deslocadas em razo do alagamento. Tambm a represa de Itaparica, construda para abastecer a Usina Hidreltrica de Luiz Gonzaga, provocou grande deslocamento populacional. Segundo dados da Chesf, cerca

Potncia instalada (KW).....

32

de 50 mil moradores foram retirados das reas inundadas, localizadas em municpios baianos e pernambucanos, e reassentados em novas cidades e em projetos de irrigao. Ao contrrio do lago de Sobradinho, cuja construo exigiu o alagamento de centros urbanos, o enchimento do reservatrio de Trs Marias inundou apenas reas rurais e naturais, como propriedades agrcolas, pastagens e campos. A destruio de ncleos urbanos e reas rurais e o deslocamento de seus moradores para outras regies, provocados pela construo de represas para as usinas hidreltricas, tm sido muito discutidos na atualidade. O processo de transferncia das populaes ribeirinhas envolve aspectos socioculturais complexos, relacionados com a fixao do ser humano ao seu local de origem e com o vazio de identidade que marca os novos lugares destinados para os reassentados. O habitante dessas novas reas, ainda que leve consigo os seus bens materiais, deixa para trs um universo de referncias culturais, que s faziam sentido no espao fsico que foi alagado. A implantao do reservatrio provoca uma completa desarticulao dos sistemas sociais, econmicos e culturais que caracterizavam a existncia das populaes desalojadas da rea de inundao. Territrios habitados por populaes tradicionais, reas indgenas e stios arqueolgicos e histricos so submersos pela represa, levando consigo a expresso material do secular patrimnio cultural das comunidades removidas. Impactos ambientais de grande envergadura so tambm uma conseqncia da construo do reservatrio que alimentar a usina hidreltrica. O engenheiro Arnaldo Carlos Muller examinou detidamente diversos desses impactos naturais, analisando a sua abrangncia e condio de reversibilidade. 21 Os tpicos citados abaixo constituem uma sntese da anlise do pesquisador. 1. A transformao abrupta de um ecossistema fluvial, de guas rpidas, em lacustre, de guas lnticas, gera intensos desequilbrios fsicos, qumicos e biolgicos no rio represado. Podem ocorrer, no novo ambiente, fenmenos como reduo da temperatura, reteno de material slido, proliferao de algas e aumento da salinidade.21

Arnaldo Mller. Hidreltricas..., p. 126-268.

33

2. A elevao do nvel das guas, na formao do reservatrio, exerce enorme presso sobre as nascentes artesianas situadas nas margens e no fundo dos rios represados. Novas nascentes podem aparecer, formando lagos e pntanos nas vizinhanas do reservatrio. Pode ainda ocorrer a contaminao dos veios aqferos subterrneos por elementos poluentes que so dispersados pela presso do reservatrio. 3. A construo do reservatrio pode provocar alteraes climticas na temperatura, umidade relativa, insolao, evaporao e ventos. 4. A reteno dos cursos de gua pode provocar efeitos adversos sobre os processos naturais de eroso, carreamento e assoreamento. A deposio de partculas ocasiona a precipitao de componentes qumicos que normalmente encontram-se em suspenso, interferindo na qualidade das guas. 5. O afogamento da vegetao situada na bacia hidrulica reduz sensivelmente a qualidade das guas, levando a uma reverso do processo evolutivo natural. A vida, nos primeiros anos de existncia do reservatrio, deixa de existir nos corpos de gua por ele afetados. 6. Ocorre a esterilizao das margens do reservatrio, formadas por superfcies geolgica e biologicamente no preparadas para os ritmos de seca e inundao temporria caractersticos da linha da costa de uma represa. Observam-se processos de eroso e assoreamento, de lixiviao e de compactao, fatores que complicam a recuperao dos ambientes lacustres. A recuperao natural das margens implicar na formao inicial de vegetao tpica de vrzeas e baixios. 7. As obras de construo do reservatrio e da usina hidreltrica exigem a explorao de reas prximas, utilizadas como reservas de material para a barragem. A rea explorada, geralmente com equipamentos pesados, estar, depois de concluda a obra, com os solos compactados, impossibilitando a regenerao natural, pouco permeveis e propensos a formar bacias de estagnao de gua.

34

8. A proliferao de plantas aquticas na superfcie do reservatrio pode produzir graves danos sade da populao ribeirinha, favorecendo o desenvolvimento de mosquitos e caramujos na regio. 9. O salvamento e a realocao da fauna desalojada pelo reservatrio controverso. H uma corrente de especialistas que aponta os dramticos impactos provocados pela realocao desses animais nas novas reas onde so soltos. 10. A transformao de um ambiente ltico num ambiente lntico provoca desequilbrios na fauna aqutica. As espcies que dependem de guas movimentadas tendem a ter suas populaes reduzidas. E mesmo as espcies aptas vida em guas lentas sero afetadas, pois a operao do reservatrio afeta os ninhos dos peixes, impedindo a formao de abrigos essenciais para a sua reproduo. Segundo Mller, a oscilao operacional dos reservatrios , na verdade, um dos mais importantes obstculos ao desenvolvimento dos estoques pesqueiros das populaes lnticas; tambm o impacto de mais difcil atenuao, se desejamos manter normal a populao hidreltrica.22 O autor explica o impacto da construo da represa sobre os peixes de piracema:Entre os peixes que preferem os ambientes de guas correntes destacam-se os de piracema, como o dourado, o curimbat e o pacu. O processo reprodutivo desses peixes ativado por fatores ambientais caractersticos. As espcies brasileiras de piracema so potamdromas, ou seja, desenvolvem todo o seu ciclo vital no prprio corpo do rio, diferenciando-se das espcies andromas ou catdromas, que tm fases do seu ciclo em guas salobras, ou que no reproduzem seno nas cabeceiras dos rios onde nasceram, como alguns salmes de rios do hemisfrio norte. A piracema comandada pelos processos fsico-qumicos relacionados com a elevao do nvel das guas, em pocas de fotoperodo mais prolongado e com temperaturas mais elevadas, que induziriam os cardumes a um processo reoflico (de nadar contra a corrente das guas). No rio Paran isso ocorre entre novembro e fevereiro. O esforo de deslocamento dos peixes queima suas gorduras, ativando mecanismos hormonais complexos e preparando-os para a reproduo. Quando a maturao se completa, freqentemente nas proximidades de saltos ou corredeiras que os peixes tentaram galgar, o incio da desova atrai um grupo de machos igualmente maduros que ento expelem o seu esperma. No caso dos dourados, podemos reconhecer a piracema pela agitao que os casais provocam na superfcie das guas com suas nadadeiras. Os vulos fecundados passam por um fenmeno higroscpico que os mantm a uma pequena profundidade abaixo da superfcie e so levados com a corrente dgua, adentrando as lagoas marginais que, com as cheias, esto22

Idem, p. 249.

35

ligadas ao rio. A larva eclode e se desenvolve no ambiente tranqilo e frtil dessas lagoas at outro perodo de cheia, quando os jovens retornam ao rio. As represas constituem-se em obstculos que diminuem o espao da migrao reprodutiva e mais: amortecendo os picos das cheias dos rios, reduzem tanto a ativao reoflica como os alagamentos cclicos das lagoas marginais. As espcies de piracema de jusante das represas chegam at as usinas e acabam queimando suas gorduras e reproduzindo-se prximo aos canais de fuga. J os peixes de piracema que vivem a montante da barragem tero que percorrer os rios tributrios para a sua reproduo, descendo os vulos at as guas calmas dos reservatrios, que ento abrigaro as formas juvenis daqueles peixes.23

A implantao dos reservatrios e das usinas hidreltricas ao longo do So Francisco constitui, assim, interveno tcnica com graves e, na maioria dos casos, irreversveis impactos sobre os ecossistemas formadores do vale do rio. presso sobre os elementos naturais juntam-se os efeitos socioculturais, igualmente irreparveis, sobre as populaes ribeirinhas desalojadas para a instalao dos empreendimentos. A partir da dcada de 40 do sculo XX consolida-se, possibilitada pelas inovaes tecnolgicas e pelas solues de engenharia, a abordagem instrumental do rio, abrindo caminho para a transformao do meio natural so-franciscano num meio tcnico. 3 O projeto de transposio Na linha de anlise proposta neste estudo, a transposio de parte das guas do So Francisco para as regies semi-ridas do Nordeste seria, se realizada, uma das mais contundentes intervenes tcnicas na paisagem do vale do So Francisco. Representaria, juntamente com as usinas hidreltricas implantadas ao longo do rio na segunda metade do sculo XX, mais uma prtese no territrio so-franciscano. Se o sculo XIX assistiu ao abate, em larga escala, do arvoredo marginal para a alimentao dos vapores e o sculo seguinte viu as radicais alteraes impostas ao regime do rio pela construo das grandes usinas hidreltricas, o sculo XXI presenciaria o impacto provocado pelo desvio de milhes de metros cbicos de gua do So Francisco para as distantes regies interiores de quatro estados nordestinos. Na lgica instrumental, a transposio representaria o supremo esforo de corrigir o perfil do rio, tornando-o, pela cesso de parte do seu volume hdrico, um instrumento til para as populaes do semi-rido.

23

Idem, ibidem.

36

A idia de se levar parte das guas do So Francisco para a regio do semi-rido no nova. Desde as suas primeiras manifestaes, ainda no sculo XIX, ela buscou responder a um dos mais graves problemas sociais do interior do pas: as secas peridicas que assolam o Nordeste. O historiador Marco Antonio Villa, depois de estudar as principais secas ocorridas na regio nos sculos XIX e XX, estima que elas tenham provocado a morte de trs milhes de brasileiros entre 1825 e 1983. Para o pesquisador, as tentativas de soluo criao de audes, projetos de irrigao, reforma agrria, projetos de colonizao, apoio aos pequenos e mdios produtores rurais, diversificao de culturas e implantao da lavoura seca malograram, permanecendo o semi-rido como uma regio aparentemente sem Histria, dada a permanncia e imutabilidade dos problemas.24 As secas do sculo XIX, reportadas por Villa a partir de extensa pesquisa em jornais da poca, produziram efeitos devastadores. Destruio de lavouras; migrao de centenas de milhares de retirantes para as cidades; venda e prostituio de mulheres; antropofagia; corrupo e desvio na distribuio da ajuda oficial; estado abjeto dos abarracamentos construdos pelo governo para abrigar as vtimas. A seca de 1877 produziu mais de dois milhes de flagelados, sendo 700 mil no Cear, 500 mil na Bahia, 400 mil na Paraba, 200 mil em Pernambuco, 150 mil no Piau, 117 mil no Rio Grande do Norte, 50 mil em Alagoas e 30 mil em Sergipe.25 Entre os sculos XIX e XX ocorreram 50 anos secos no Nordeste; ou seja, h uma probabilidade de cerca de 25% de ocorrer uma seca na regio em qualquer ano. Na atualidade o chamado Polgono das Secas, que abrange o semi-rido e o agreste nordestinos, habitado por aproximadamente 28 milhes de pessoas, englobando mais de 90% da rea dos estados de Pernambuco, Paraba, Cear e Rio Grande do Norte.26 A construo de um sistema que levasse gua do rio So Francisco ao interior nordestino, especialmente ao Cear, figurou desde as primeiras dcadas do sculo XIX entre as medidas sugeridas para resolver o problema da seca. Segundo Villa, o primeiro a defender a idia teria sido o ouvidor do Crato, Jos Raimundo de Passos Barbosa, em24 25

Marco Antonio Villa. Vida e morte no serto, p. 252. Idem, p. 61. 26 Ministrio da Integrao Nacional. Relatrio de Impacto Ambiental, p. 2-1 a 2-2.

37

1818. Em 1847 o projeto foi publicamente defendido pelo intendente do Crato e deputado provincial Marcos Antnio de Macedo.27 No seu relatrio, de 1858, o engenheiro Halfeld menciona o intendente Macedo para introduzir a idia da transposio, da qual faz veemente defesa: esquerda desta fica a ilha da Quixaba, do Imbuzeiro, a Ilha Grande, a das Garas, da Lontra, e a do Ic. neste ponto, onde pessoas ilustradas, particularmente o Dr. Marcos Antonio de Macedo, julgam que ser possvel tirar e conduzir-se do Rio de S. Francisco um canal em direo para o riacho dos Porcos, e canalizar-se este at a sua confluncia com o riacho Salgado, e este at a sua embocadura no rio Jaguaribe, e finalmente deste rio at a sua foz no mar. O projeto gigantesco, porm se for possvel conseguir-se a sua execuo, ter o benfico resultado de incalculvel transcendncia para as provncias do Cear, Pernambuco, Piau, Gois e particularmente para a provncia do Cear, que de primeira mo receber o benefcio da fcil comunicao comercial do mar para o interior do imprio e vice-versa, e aproveitaria as guas do Rio de S. Francisco para a irrigao das suas terras, como meio mais certo e eficaz de providenciar contra o horrvel flagelo das grandes secas que l, quase anualmente, pem em consternao grande parte dos habitantes daquela provncia; mas tambm a comunicao direta do mar para o Vale do Rio de S. Francisco, e dos seus tributrios seria o maior impulso a fim de acordar a indstria, que em profundo letargo jaz naquelas regies, e de promover a felicidade dos seus habitantes.

No final dessas consideraes Halfeld informa que apresenta, junto ao seu relatrio, o original de uma carta e de uma planta do projeto que lhe foram encaminhadas por Macedo.28 Em 1859 uma misso cientfica realizada no Cear, organizada pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, recomendou a melhoria dos meios de transporte e armazenamento de gua na regio, incluindo entre as sugestes a construo de 30 audes e a abertura de um canal ligando o rio So Francisco ao rio Jaguaribe.29 Em 1907 Euclides da Cunha sugeriu diversas medidas de combate seca, incluindo entre elas a derivao das guas do So Francisco para as bacias do Jaguaribe e do Piau:Ento, podero concorrer, recprocos nas suas influncias variveis, os vrios recursos que em geral se sugerem isolados: a audada largamente disseminada, j pelo abarreirar dos vales apropriados, j pela reconstruo27 28

Marco Antonio Villa. op. cit., p. 36-37. Esses documentos no foram publicados na edio do relatrio consultada para este estudo. 29 Ministrio da Integrao Nacional. op. cit., p. 2-19.

38

dos lanos de montanhas que a eroso secular das torrentes escancelou em boqueires, o que vale por uma restaurao parcial da terra; a arborizao em vasta escala com os tipos vegetais que, a exemplo do juazeiro, mais se afeioem rudeza climtica das paragens; as estradas de ferro de traados adrede dispostos ao deslocamento rpido das gentes flageladas; os poos artesianos, nos pontos em que a estrutura grantica do solo no apresentar dificuldades insuperveis; e at mesmo uma provvel derivao das guas do S. Francisco, para os tributrios superiores do Jaguaribe e do Piau, levando perpetuamente natureza torturada do norte os alentos e a vida da natureza maravilhosa do sul... , por certo, um programa estonteador; mas nico, improrrogvel, urgente.30

Para o escritor, que era tambm engenheiro, essa campanha formidvel contra o deserto deveria ser precedida de estudos topogrficos, hipsomtricos, meteorolgicos, da natureza do solo, da vegetao e de um plano estratgico de engenharia. As sucessivas secas do incio do sculo XX (1900, 1902, 1907-1908) colocaram definitivamente a necessidade da interveno do poder pblico para fazer face ao desafio permanente da falta de gua para a populao do semi-rido. Em 1909 criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas, que contratou especialistas estrangeiros para realizar os primeiros estudos de guas subterrneas no Nordeste e fez elaborar, em 1913, um mapa do imaginado canal entre o So Francisco e o Jaguaribe, sendo Cabrob o ponto de captao de gua.31 No entanto, a baixa capacidade de gerao de energia eltrica, necessria para acionar as bombas para a conduo das guas, inviabilizou o projeto. Somente na dcada de 80 a idia da transposio voltaria novamente tona, propiciada pela energia eltrica gerada com a operao das usinas hidreltricas da Chesf e a duplicao da vazo do So Francisco a jusante da barragem de Sobradinho. Segundo os autores do Estudo de Impacto Ambiental do projeto de transposio, a partir de ento criaram-se as condies tcnicas para uma transferncia de volumes do rio So Francisco para os rios intermitentes do Nordeste Setentrional.32 Entre 1982 e 1985 um projeto de derivao de guas do So Francisco para a regio semi-rida do Nordeste foi elaborado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, em parceria com o United States Bureau of Reclamation. No entanto, uma30 31

Euclydes da Cunha. Contrastes e confrontos, p. 78-79. Ministrio da Integrao Nacional. op. cit., p. 2-19. 32 Idem, ibidem.

39

enorme mortandade de peixes no rio alertou os responsveis para o fato de que a poluio industrial das guas do So Francisco chegara a tal nvel que a transposio significaria levar gua contaminada para rios e audes nordestinos. Apenas em 1994, no governo Itamar Franco, o projeto seria retomado, por ao do ministro da Integrao Nacional, Aluzio Alves (potiguar), e do ministro do Planejamento, Beni Veras (cearense). A oposio do ministro da Fazenda, Rubens Ricpero (paulista), tornou impraticvel a execuo do projeto. Entre 1996 e 1998, Fernando Henrique Cardoso, que nos anos anteriores se mostrara em dvida sobre o projeto, abraou a idia. Em 2001, no obstante, o governo federal foi obrigado a abandonar a idia, em virtude da crise de fornecimento de energia eltrica que gerou o apago. Luiz Incio Lula da Silva, que no passado se mostrara cauteloso em relao transposio, tornou-a, depois de eleito, um dos destaques do Plano Plurianual do governo federal. O ministro da Integrao Nacional, Ciro Gomes (cearense), passou a gerenciar o projeto, para o que foi duplicado o oramento do ministrio por ele coordenado. Entre 1985 e 2005 o projeto foi sucessivamente alterado em dois pontos fundamentais. A captao de gua, que era de 300 metros cbicos por segundo (15% da vazo do rio) em 1985, baixou para 150 metros cbicos por segundo (7,5% da vazo) em 1994, 48 metros cbicos por segundo (2,4% da vazo) em 2000 e 26 metros cbicos por segundo (1,3% da vazo) em 2005. E a revitalizao do rio, que no fora includa nos projetos anteriores, passou a integrar o projeto de 2005. Certamente essas alteraes buscaram responder crescente oposio ao projeto, motivada por razes socioambientais que ganharam maior vulto a partir da dcada de 90, com o avano da conscincia ambiental. O projeto de transposio do governo Luiz Incio Lula da Silva prev a construo de dois sistemas independentes de obras hidrulicas canais, estaes de bombeamento de gua, pequenos reservatrios intermedirios e usinas hidreltricas de auto-suprimento , denominados Eixo Norte e Eixo Leste. Esses sistemas captariam gua no rio So Francisco, entre as barragens de Sobradinho, na Bahia, e Itaparica, em Pernambuco, e a levariam para audes construdos nos rios intermitentes do semi-rido, interligando-os indiretamente com o reservatrio de Sobradinho. O Eixo Norte teria 402 quilmetros de extenso e captaria 66,7% da gua fornecida; o Eixo Leste se estenderia por 220 40

quilmetros e seria responsvel por 33,3% da gua. Segundo os autores do Estudo de Impacto Ambiental do projeto de transposio, a gua captada e transportada seria utilizada para fins mltiplos, numa rea habitada atualmente por cerca de 12 milhes de pessoas, correspondentes a aproximadamente 45% da populao do Polgono das Secas. Dessa populao, cerca de sete milhes de pessoas residem nas bacias receptoras e representariam, portanto, a parcela populacional diretamente beneficiada pela obra. As bacias diretamente favorecidas seriam as dos rios Jaguaribe, no Cear; Piranhas-Au, na Paraba e Rio Grande do Norte; Apodi, no Rio Grande do Norte; Paraba, na Paraba; e Moxot, Terra Nova e Brgida, na bacia do So Francisco, em Pernambuco. Tambm municpios situados fora dessas bacias, mas interligados com a rede hdrica regional, seriam beneficiados. Entre esses estariam municpios situados no Agreste Pernambucano e na Regio Metropolitana de Fortaleza.33 A previso de investimento total no projeto de 4,5 bilhes de reais.

33

Idem, p. 1-1.

41

Figura 6 - Esquema do projeto de transposio Fonte: Ministrio da Integrao Nacional. Projeto de Integrao do Rio So Francisco com Bacias Hidrogrficas do Nordeste Setentrional. Relatrio de Impacto Ambiental. Julho de 2004. www.integracao.gov.br

42

O projeto vem sofrendo forte oposio de diversos setores da sociedade e do poder pblico, que incluem os governos dos estados banhados pelo So Francisco, o Comit da Bacia Hidrogrfica do So Francisco, organizaes no governamentais, cientistas e pesquisadores, veculos de comunicao e religiosos, como o frei Luiz Flvio Cappio, bispo de Barra (BA), que em 2005 passou dez dias em greve de fome em protesto contra a transposio. Fao abaixo uma sntese dos principais pontos de tenso apontados no projeto. 1. Custo da energia eltrica necessria para a operao do sistema de bombeamento Aps a construo da estrutura de funcionamento da transposio, sob a responsabilidade do governo federal, os custos da operao do sistema sero repassados para os estados beneficiados, podendo chegar a 127 milhes de reais em 2025. Esse custo ser cobrado dos usurios da gua doada, provocando majoraes de tarifas que podem aumentar em cinco ou seis vezes o valor da gua atualmente praticado na regio receptora. Uma das maiores crticas ao projeto incide exatamente sobre a necessidade de gerao de energia eltrica suficiente para elevar as guas do So Francisco a alturas que chegam a 300 metros. 2. Regio beneficiada Crticos do projeto como Joo Abner Guimares Jnior, doutor em recursos hdricos, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro do Frum Permanente de Defesa do Rio So Francisco, afirmam que a gua chegaria a regies muito distantes dos locais mais secos do Nordeste, onde os problemas causados pela falta de gua so mais preocupantes. O envio da gua para apenas alguns dos maiores reservatrios da regio, como o de Castanho, no Cear, os de Engenheiro Armando Ribeiro Gonalves e de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, e os de Boqueiro e de Engenheiro vidos, na Paraba, significariam, segundo Guimares, chover no molhado. As concluses de um estudo coordenado pelo pesquisador na UFRN so cabais: o empreendimento levar gua para onde ela j existe em abundncia; o custo ser proibitivo para a irrigao e as regies mais secas do Rio Grande do Norte no sero atendidas.

43

Em visita regio beneficiada, o reprter Bernardino Furtado, do jornal Estado de Minas, encontrou casos como o do rio Au, no Rio Grande do Norte, onde no h sinal de misria na paisagem. O que se v so bombas de explorao de petrleo e criatrios de camaro. Segundo Furtado,Nada melhor do que uma visita ao Vale do Rio Au, no Rio Grande do Norte, para derrubar o argumento de que a transposio do rio So Francisco vai levar gua para uma populao sedenta e miservel. A comear pela onipresena dos cavalinhos, como so chamadas pela populao local as bombas de petrleo da Petrobras. [...] Os cavalinhos esto nas margens do rio, no meio das plantaes de banana irrigadas e nas imediaes dos vastos tanques de criao de camaro. o maior campo terrestre de leo e gs da Petrobras no Brasil e est em expanso.34

3. Distribuio da gua captada Os crticos do projeto apontam o fato de que a gua doada no chegar populao pobre, que dela necessita para o abastecimento domstico, permanecendo nas mos de grandes produtores, que a utilizaro para a irrigao de lavouras de produtos de exportao. Ao chegar aos audes, administrados pelas prefeituras, a gua passar a ser distribuda de acordo com interesses polticos e econmicos, gerando conflitos na regio receptora. Essa distribuio desigual estaria relacionada secular estrutura poltica do interior nordestino, baseada no poder de chefes polticos locais e regionais. 4. Volume de gua captada A previso que, nos anos de estiagem, sejam captados pelo menos 26 metros cbicos de gua por segundo. No entanto, a autorizao concedida pela Agncia Nacional das guas, em 22/9/2005, possibilita que, em casos excepcionais, seja permitida a captao da vazo mxima diria de 114 metros cbicos por segundo, desde que a barragem de Sobradinho esteja com pelo menos 94% do seu volume preenchido. Alm dessa excepcionalidade, a agncia contemplou a possibilidade de uma captao mdia diria de 87,9 metros cbicos por segundo, destinada a outros usos da gua e a ser bombeada eventualmente. Segundo os crticos, essas possibilidades abertas pelas autorizaes da ANA deixam brechas para que o volume captado seja maior do que o previsto e tenha destinao no estabelecida no projeto original.34

Bernardino Furtado. A verdade sobre a transposio : Fartura. Estado de Minas, 21 nov. 2004, p. 14.

44

Alm disso, no haver como evitar significativa perda de gua por evaporao, durante o transporte pelos extensos canais. O volume de gua que deixaria o So Francisco no seria o mesmo que chegaria regio receptora, o que representaria um desperdcio irreparvel na operao do sistema. 5. Revitalizao e qualidade da gua captada A diferena entre as verbas oramentrias alocadas para a transposio e para a revitalizao da bacia do So Francisco constitui, segundo os crticos, um dos mais graves pontos de tenso do projeto. O programa de revitalizao da bacia do rio, que inclui aes voltadas para o reflorestamento de reas crticas, a construo de barragens em rios afluentes, a melhoria da calha navegvel do trecho mdio, o tratamento de esgotos das cidades e vilas ribeirinhas, o controle da irrigao e a educao ambiental, teve, no Plano Plurianual 2004-2007 do governo federal, previstos investimentos de 96,2 milhes de reais. O projeto de transposio, por seu turno, foi contemplado com 624 milhes de reais, prevendo-se, como foi informado anteriormente, investimentos totais de 4,5 bilhes de reais. Um dos argumentos mais fortes contra o projeto reside no fato de que se pretende tirar gua de um rio combalido pela degradao ambiental. O despejo constante de esgotos domsticos e industriais no rio e nos seus principais afluentes gerou um rio de guas sujas, com vrios trechos poludos. Sem um abrangente programa de saneamento bsico na bacia, ser essa a gua que chegar ao semi-rido. 6. Impactos ambientais na regio receptora So imprevisveis as conseqncias ambientais, para a regio receptora, da interligao da bacia hidrogrfica do So Francisco com a rede hdrica do semi-rido. A distribuio das espcies animais e vegetais pode ser afetada; podem ocorrer problemas de salinizao e espcies daninhas do So Francisco, como a piranha, a pirambeba e o candiru, podem ser introduzidas nos rios receptores.

45

O prprio Estudo de Impacto Ambiental preparado para o projeto identifica e analisa alguns desses potenciais impactos negativos sobre a regio receptora: modificao da composio e reduo da biodiversidade das comunidades biolgicas aquticas nativas das bacias receptoras; perda e fragmentao de cerca de 430 hectares de reas com vegetao nativa e de habitats de fauna terrestre; risco de introduo de espcies de peixes potencialmente daninhas ao homem nas bacias receptoras; interferncia sobre a pesca nos audes receptores; modificao do regime fluvial das drenagens receptoras.35 7. Outorgas de gua Levantamentos realizados pelo Comit da Bacia Hidrogrfica do So Francisco indicam que, do total de 360 metros cbicos de gua por segundo que podem ser retirados do rio, 335 metros cbicos j esto outorgados. Para a transposio restariam, portanto, somente 25 metros cbicos, e no os 60 metros cbicos, em mdia, demandados pelo projeto. Essas outorgas de uso de gua constituem documentos protegidos legalmente, com longos perodos de vigncia (15 a 20 anos) e no so facilmente revogadas. Portanto, os 25 metros cbicos por segundo disponveis seriam suficientes apenas para suprir a demanda nos anos de estiagem os 26 metros cbicos previstos e no para fornecer volumes mais altos de captao, como prev o projeto. O sistema funcionaria, assim, com alocao de 100% da vazo efetivamente disponvel. 8. Situao do alto e mdio So Francisco Segundo alerta Jos Aparecido Gomes Rodrigues, coordenador geral das promotorias de justia de defesa do rio So Francisco, o Estudo de Impacto Ambiental do projeto de transposio no contempla os impactos verificados no Alto e Mdio So Francisco, que contribuem com cerca de 95% das vazes ofertadas na bacia, o que evidencia uma viso simplista e despreocupada com parte fundamental do empreendimento, que justamente a bacia doadora. O tema da revitalizao sequer conta com projeto suficiente a atender o avanado estado de degradao da bacia.36

35 36

Ministrio da Integrao Nacional, op. cit., p. 11-8 a 11-108. Jos Aparecido Gomes Rodrigues. Aspectos legais da transposio. Jornal Manuelzo, mar. 2005, p. 3.

46

Na perspectiva da abordagem aqui desenvolvida, a efetivao da transposio provocaria alteraes irreversveis na paisagem socioambiental do vale do rio, que consolidariam a transformao do meio natural so-franciscano num meio tcnico. A implantao de prteses tecnolgicas, constitudas pelos diversos elementos maqunicos que formariam o sistema hidrulico, eltrico e mecnico da transposio, refora a abordagem do rio como mera calha de conduo de gua, em detrimento de uma perspectiva que o considere sistema vivo e integrado, sensvel a alteraes impostas pela ao antrpica, que interferem nos seus mltiplos elementos formadores. O ponto de vista do rio-calha foi bem expresso na fala de um dos engenheiros contratados como consultores do projeto, cujo nome omito, num debate pblico sobre a transposio, ocorrido na Assemblia Legislativa de Minas Gerais em 21/10/2003: claro que a morte das nascentes, em funo da no-proteo das margens e da retirada da mata ciliar, altera o regime e faz com que alguns cursos sumam. Alis, o prprio nome clio j significa proteo da gua e da nascente. Em termos de balano global, a calha principal do rio onde as guas fluem no muda, at que um estudo demonstre isso. Mas at o momento no o conhecemos. De repente, se houvesse, seria interessante encaminh-lo, pois nos interessa at do ponto cientfico.37

Essa perspectiva desintegrada da bacia, que no percebe as inmeras relaes existentes entre os seus elementos formadores, no se restringe anlise do meio natural. Ela tambm omite a complexa e frgil rede de relaes estabelecidas entre esse meio natural e as populaes tradicionais que sucessivamente vm habitando o vale do rio. Como alerta a pesquisadora Renata Andrade,Os estudos do GEF e o novo Projeto de Transposio do So Francisco revelam imaginrios ambientais que vm apagando as relaes de uso e ocupao entre comunidades tradicionais e o rio e seu territrio anfbio. Afinal, muitas dessas vrzeas e ilhas foram e ainda so ocupadas por povos indgenas e pescadores-lavradores de origem africana h mais de quinhentos anos. Esses estudos vm omitindo os conflitos entre essas comunidades e os outros usurios sobre o uso das guas e da ocupao de seu territrio ao longo do So Francisco no passado e no presente. Esses imaginrios ambientais tentam limitar o tipo de reivindicaes epistemolgicas, polticas e territoriais que essas comunidades tradicionais podem e podero fazer sobre o Rio So Francisco no presente e no futuro. A marginalizao dos varzeiros e dos pescadores artesanais nas polticas de recursos hdricos no um resultado somente de como a natureza (do rio, neste caso) tem sido concebida por estudos tcnicos. Esse processo de marginalizao tambm facilitado atravs de instrumentos legais e polticos, utilizados a favor do poder coercivo do Estado e das grandes37

Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Notas taquigrficas..., p. 59-60. Grifos meus.

47

indstrias, lobbies e investidores com interesse de expandir seus negcios na regio. Assim, devem-se discutir os conceitos de modernidade e progresso, cultura e natureza, imperialismo, localismo e globalizao, que tm se infundido profundamente nas velhas e novas instituies do governo que atuam hoje na regio. Ao observar uma srie de falhas cognitivas e deslocamentos discursivos por parte dessas instituies [...], pode-se evidenciar a omisso institucional que evita olhar e reconhecer a presena fsica e poltica das comunidades tradicionais que a vivem. Essas falhas e esquecimentos no so inocentes; elas justificam os interesses polticos e territoriais da elite brasileira, ligada a uma elite global, no territrio tradicionalmente ocupado, por exemplo, por descendentes de ndios e negros pescadores e varzeiros no Rio So Francisco e em outros rios brasileiros.38

Uma abordagem integrada das relaes entre homem e meio natural recupera igualmente a complexidade da existncia das populaes habita