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Rio de Janeiro | 2018 Tradução Marina Slade 1ª edição

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Rio de Janeiro | 2018

TraduçãoMarina Slade

1ª edição

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Copyright © 2013 by Christie WatsonOs direitos morais da autora foram assegurados. Todos os direitos reservados.

Título original: Where women are kings

Capa: Lívia Prata

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa 2018 Impresso no Brasil Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Watson, ChristieW332o Onde as mulheres são reis / Christie Watson; tradução de Marina Slade. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018. 23 cm.

Tradução de: Where women are kings ISBN 978-85-286-2274-4

1. Ficção inglesa. I. Slade, Marina. II. Título.

CDD: 82317-46049 CDU: 821.111-3

Todos os direitos reservados pela:EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 171 – 2º andar – São Cristóvão20921-380 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 2585-2000 – Fax: (21) 2585-2084

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UM

Elijah, meu adorável filho,

Quero lhe contar sobre sua vida. Todos têm uma história dentro de si, que começa antes de nascer, e a sua é maior do que as histórias que a maioria das pessoas jamais conhecerá. Dizem que eu não deveria lhe contar certas coisas e que palavras podem ferir os ouvidos dos pequenos, mas, meu menino, não há segredos entre mãe e filho. Um filho viu o interior do corpo de sua mãe, e quem pode conhecer um segredo maior que esse? E esses ingleses dizem muitas coisas. O que eles chamam de “maus-tratos”, nós, nigerianos, chamamos de “for-mação”. Então, não ligue para eles.

Sua história começa na Nigéria, que é um lugar como o Céu. Os dias são sempre ensolarados, e todos sorriem e cuidam uns dos outros. As crianças nigerianas se empenham na escola, têm bons modos, cuidam de seus pais e respeitam os idosos. A Nigéria é claridade e estrelas, e terra como a pele do seu rosto: marrom-avermelhada, suave e quente.

Tenho muitas memórias da Nigéria que me deixam orgulhosa. Mais que tudo, eu me lembro da minha família. Minha mãe — sua avó — era famosa por fazer reluzirem tanto panelas quanto histórias. “Há muito tempo”, ela contava para mim e para minhas irmãs, “havia

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uma mulher tão cheia de vazio, que vendia seu corpo como se não passasse de carne à venda no mercado. Ela viajou por toda a Nigéria, aquela mulher, procurando alguma coisa que a preenchesse, e apren-deu muitas línguas, procurando palavras para explicar o vazio. E as pessoas gostavam dessa mulher vazia e inteligente: ela era feita da luz das estrelas; seu coração brilhava como prata. Escutavam quando ela falava palavras de muitas línguas, contando dos lugares que havia visto: Jos, onde choviam diamantes do céu, e o Norte, onde homens desapareciam dentro de muros de areia, e os riachos do Delta, bai-lando com espíritos do rio. E então as pessoas a fizeram rei. E a terra a preencheu, e o vazio se tornou céu. A Nigéria é um lugar onde as mulheres são reis. Onde tudo é possível.”

Durante toda a minha infância, minha mãe, contente como nenhu-ma mulher que jamais viveu, limpava panelas enquanto eu a observava, escutando suas histórias, suas canções. O canto dela era alto, o que era uma coisa boa, porque minha irmã, sua tia Bukky, de quem você herdou esse belo tom de pele, tinha o tipo de voz que penetra no rosto da gente. Eu me lembro de um dia em que implorou à Mama para que compartilhasse seus segredos com ela. O sol ainda não tinha surgido totalmente, mas já estávamos de pé havia horas, ouvindo a Mama cantar e o Baba roncar.

— Por favor — choramingou Bukky. — Por favor, Mama. Eu não conto pra ninguém.

— Nunca vou lhe contar qual é o meu ingrediente secreto. — Mama sacudiu a cabeça até suas tranças com contas baterem umas nas ou-tras. Riu. — Nunca. Você pode me atazanar o dia inteiro que minha boca vai ficar tão fechada como a mão de Baba em dia de pagamento.

— Por favor — disse Bukky, olhando o pano com que a Mama es-fregava as panelas. — Podemos ficar ricos com isso. Imagine só, uma receita que limpa panelas tão bem à venda na Express Road!

Bukky era tola e estava sempre em busca de maneiras de ganhar dinheiro. Uma vez, quase tinha sido presa porque um homem disse

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que lhe daria cem dólares para passar uma mala pela alfândega do aeroporto. Se Baba não tivesse passado por lá e visto Bukky fora da escola e caminhando por aí com uma mala desconhecida, ela teria ido para a prisão. E, se fosse a Mama que tivesse passado por lá, Bukky certamente estaria morta. Será que os portões do Céu se abririam diante de tal crime, mesmo que fosse um cometido por tolice? As coisas que permanecem em meu coração, contudo, não são a tolice de Bukky ou a exasperação de nossos pais, mas a luz do conjunto habitacional dançando naquelas panelas, criando mil diamantes na poeira e nas bochechas de Bukky; a risada da Mama; o ronco do Baba. O pequeno vazio, onde se podia crescer. Um lugar onde as mulheres são reis.

Lembro que a casa, com escadas quebradas e telhado com goteiras, ficava em torno de um pátio central onde Mama lavava arroz numa daquelas panelas; juro que nosso arroz era o mais limpo da Nigéria. Minhas irmãs, Miriam, Eunice, Rebekah, Bukky, Esther, Oprah e Pris-cilla, passavam o tempo se examinando nas outras panelas reluzentes da Mama, examinando a espessura de suas sobrancelhas, a distância entre os olhos (Bukky sempre dizia que dava para estacionar um carro entre os de Esther), o formato dos lábios, a curva dos cílios. Baba ria quando as via se olhando nas panelas e batia com carinho na minha cabeça. “Deborah, querida”, dizia ele. Nunca me olhei numa panela. Sabia, mesmo bem pequena, que a vaidade era pecado. Eu era uma criança inteligente, Elijah. Talentosa. Conhecia a Bíblia tão bem que recitava Salmos com 1 ano de idade. Não tenho certeza se foi por não me olhar nas panelas ou por minha disposição para estudar a Bíblia que me tornei a favorita do Baba. Mas eu sabia que era. E toda filha que é a favorita do pai cresce abençoada, como eu era.

Na verdade, éramos todas abençoadas. Gostávamos da escola e frequentávamos o Departamento Avançado do Apóstolo da Vinda de Cristo, que ficava a apenas quinze minutos de caminhada. Gostávamos ainda mais, contudo, de voltar da escola para casa — para jantar juntos e conversar sobre o dia, e ler a Bíblia ou os outros livros que o Baba

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comprava para nós na loja perto do seu trabalho, ou livros que a Mama nos dava, que tinham sido lidos tantas vezes que ficavam abertos, como se suas histórias estivessem vivas e quisessem ser ouvidas. Morávamos nos arredores de Lagos, no subúrbio de Yaba, perto do ponto de ônibus da University Road próximo do cemitério: eu, Mama, Baba, minhas sete irmãs, tias, avós e meus irmãos, Othniel e Immanuel — embora Othniel se visse ocupado estudando para ser farmacêutico e estivesse sempre fora, no trabalho ou na biblioteca da universidade, e Immanuel passasse todo o tempo com a namorada, que morava em Victoria Island. Aquela namorada era um segredo ainda maior que a pasta de limpar panelas da Mama: ela tinha estrelado um vídeo musical, e seus pais, que eram separados, nunca iam à igreja.

A igreja sempre foi uma parte importante de nossas vidas. Quando se mora num lugar como o Céu, não se pode esquecer de agradecer a Deus. E tínhamos outra razão para amar a Deus: nosso tio, irmão do Baba, tinha nascido com a voz de Deus no coração. O tio Pastor fazia milagres. Podia fazer um morto reviver e redirecionar a má sorte de uma família para torná-la a mais afortunada de toda a Lagos. Testemunhei isso com meus próprios olhos. Vi muitas coisas. Um homem rezou pelo milagre da segurança financeira e voltou à igreja uma semana depois com um bilhete de loteria premiado, um relógio Rolex novo e uma namorada com seios tão grandes que o Baba não se conteve e comentou sobre eles, e Mama o obrigou a colocar todo o dinheiro do bolso na caixa de ofertas. Como rimos, Elijah! Nossa igreja era um lugar de felicidade e riso, e sua carinha me levou de volta a ela, de volta ao riso de nossos pais. Todos nós observávamos o modo como a Mama e o Baba implicavam um com o outro: ele fingia engasgar com a comida dela; ela o chamava de barrigudo. As risadas deles. O jeito como olhavam um para o outro e para nós. Era uma casa tão feliz! Uma família. Não há nada melhor que isso.

Mama e Baba tinham um casamento de bases sólidas; portanto, quando os ventos sopravam fortes demais, nada desmoronava. Primeiro

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foram amigos, por muitos anos, e lembro que, quando me tornei amiga de Akpan, Mama e Baba olharam um para o outro e compartilharam um sorriso. Queriam bases sólidas para mim também. Ficaram muito felizes quando seu pai me levou para baixo da palmeira e tirou do bolso um anel que brilhava como uma estrela à meia-noite e que devia ter custado seis meses de salário. Sabiam como um casamento pode funcionar bem. Ficaram felizes, mas também aliviados. Até num lugar como o Céu, a vida é difícil para as mulheres. Se seu baba, Akpan, não tivesse pedido minha mão em casamento, não sei o que teria sido de mim. E, filho meu, essa é a situação das mulheres em todo o mundo.

Tive sorte. Akpan fez amizade comigo. Ele me visitava sempre e, cada vez que me visitava, eu gostava um pouco mais dele. Ele tinha um rosto bondoso e coisas em que acreditava, e muitas vezes trazia uma sacola da loja Marks & Spencer cheia de presentes para nós: um conjunto de joias folheadas a ouro para minhas irmãs e para mim, um despertador portátil para viagem para a Mama, embora ela nunca fosse além de Ikeja e não tivesse pilhas AAA.

Às vezes, quando eu era criança, ouvia Deus em meu ouvido — escutava Sua voz tão clara como as cores da manhã. Quando contei isso a Akpan, ele disse que eu tinha um dom espiritual. Disse que Deus tinha me escolhido para me sussurrar segredos, porque eu era muito bonita. Ele me chamava de seu anjo, e meu coração inchava tanto que eu tinha que fazer força para respirar. Passaram-se muitos anos até nos casarmos, e Akpan conseguiu um visto para ele e outro de esposa para mim a fim de podermos sair do nosso país e vir morar na Inglaterra, num apartamento em Londres no qual concebemos você na primeira tentativa. As estrelas brilhavam naquela primeira noite, Elijah, como se as estrelas nigerianas tivessem viajado até Deptford para iluminar nosso ato de amor. Você nasceu do amor e das estrelas nigerianas e de segredos em que acreditávamos.

Você é amado, pequeno Nigéria, amado como nunca se viu no mundo.

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DOIS

Nojento sujo horrível malvado. Elijah ouvia a voz do feiticeiro o tempo todo. Ele lhe mandava fazer coisas ruins. Elijah sabia que era mau. Um garoto nojento. Queria que o feiticeiro tivesse escolhido outro garoto ou só usasse superpoderes, como subir muito alto ou voar, para o bem. O feiticeiro podia fazer qualquer coisa. Podia usar força sobre-humana para levantar coisas pesadas e ler os pensamentos das outras pessoas. Podia se transformar num animal, ficar invisível e voar pelo céu noturno agarrando pedaços de relâmpagos. Elijah podia usar o feiticeiro dentro de si para pensar dentro do cérebro de alguém. Se Elijah pudesse controlar o feiticeiro, poderia obrigá-lo a fazer só coisas boas, e então Elijah não teria tanto medo dele. Do que ele pudesse fazer em seguida. Do que ele o obrigaria a fazer.

Elijah estava com Sue e Gary numa casa cheia de avisos sobre o que fazer. Ele não sabia ler. Então tinha que perguntar o que significava cada aviso, e Sue e Gary ficavam aborrecidos. Por isso era uma sorte se pudesse se lembrar de tudo:

Mantenha a calma e siga em frenteSe não estiver quebrado, não conserteUma casa com amor é um lar

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Eles moravam numa rua sem saída, em que todas as casas eram grandes e parecidas e aonde pessoas de pele negra não iam. Os vizinhos estavam sempre lavando o carro ou aparando a cerca viva ou tirando mato da frente do jardim quando Elijah passava. Ele sabia que, na verdade, estavam esperando para dar uma espiada no feiticeiro. Elijah queria avisá-los. Olhava para eles e abria a boca para lhes dizer que corressem para longe, mas, sempre que fazia isso, não saía palavra alguma. Melhor que entrassem em suas casas à noite, pensava, e re-zassem para Deus. Por favor, rezem para Deus, pensava. E ele próprio rezava com muito fervor para que eles também rezassem. Teriam que rezar toda noite para se proteger. Ou o feiticeiro poderia dissolver as casas com ácido. Ou devorá-los.

A casa de Sue e Gary era muito arrumada e cheirava a repolho. Não havia animais de estimação. Deixavam Elijah jogar futebol no gramado, mas não deixavam que saísse do jardim sozinho. A sala de visitas era onde passavam a maior parte do tempo, assistindo a uma televisão grande presa à parede. Ele gostava de ver o Homem Aranha e o Super-Homem e, uma vez, quando Sue estava no bingo, Harry Potter, sobre um menino bruxo que tinha uma cicatriz parecida com a dele na cabeça. Mas a cicatriz de Elijah não tinha o mesmo formato: em vez de ser em zigue-zague, era uma linha reta, e, além disso, Harry Potter era um bruxo bom, enquanto Elijah era do tipo malvado. Ele se sentava no sofá, que tinha almofadas com dizeres:

As avós são anjos disfarçados!Um galo velho e uma franguinha moram aquiBem-vindos ao hospícioA vida é curta demais para se beber vinho barato

Elijah tinha feito Sue lê-los para ele.Por todo lado havia fotografias de crianças, todas sorrindo, algumas

com dentes faltando. Nenhuma se parecia com Sue ou com Gary. Eles

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tinham a pele branca com pintas marrons nas mãos e se podia ver através de seus cabelos. Sue era muito baixa — Elijah batia em seus ombros — e seus dedos estavam sempre inchados e vermelhos. Gary usava óculos e chinelos com desenho de Mickey Mouse. Eles davam banho em Elijah e não passavam óleo em sua pele depois, o que o fazia sentir-se muito ressecado, áspero e com coceira. As crianças das fotografias eram de várias cores, com cabelos e olhos variados. Deviam sentir muita coceira também. Elijah era tão poderoso que podia ler suas mentes, mesmo nas fotos. Elas queriam suas mães.

— Nós fomos pais adotivos de todas essas crianças. — Gary estava atrás dele; Elijah podia vê-lo sem se virar. — Até agora foram 22 aco-lhidas de emergência. — Ele riu. — E dezoito que ficaram um bom tempo: um deles, até os 16 anos. Eles ainda passam aqui no Natal, aparecem para ver Sue, às vezes trazem a roupa suja...

Elijah não ficaria muito tempo. Queriam que fosse embora antes que o feiticeiro os matasse, e ele não podia culpá-los. Ele gostava de morar com Sue e Gary, mas eles não gostavam de morar com um feiticeiro nojento. Gary continuou a falar para o ar, mas Elijah o bloqueou. Tudo que conseguiu ouvir foi a mensagem enviada diretamente por Deus. Às vezes, Deus mandava mensagens. Vinte e dois e dezoito. Ele tinha sido avisado e advertido para se lembrar bem.

Êxodo 22:18. Não deves tolerar que um feiticeiro viva.Era noite quando Sue mandou Elijah escovar os dentes. Mesmo

com a pasta de menta, ele só sentia o gosto dos legumes cozidos que o forçaram a comer. Ele olhou para Sue. Desde que Ricardo fora em-bora, ela o vinha observando de perto. Tentou abraçá-lo, mas Elijah conseguiu se soltar de seus braços. Agora o observava pelo espelho, mas ele sabia que ela não o podia ver, porque ele não aparecia em espelhos. Feiticeiros não têm reflexos, nem sombras. É assim que se podia saber se um feiticeiro estava morando dentro de você. Sue olhava fixamente, mas não podia ver Elijah. Não dava para acreditar que ela o tinha forçado a comer um legume chamado nabo, que tinha cor de

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laranja e gosto de cuspe. A Mama nunca o obrigaria a comer legumes. A Mama nunca lhe daria comida com gosto de cuspe. A Mama não tinha maldade dentro de si. A Mama era um anjo. Era tão bondosa que, se um mau-caráter estivesse morrendo, ela o salvaria, mesmo se fosse um verdadeiro criminoso. Ela nunca daria legumes cozidos a ninguém, nem mesmo ao pior bandido do mundo.

— Está ótimo, Elijah. Escove durante dois minutos. Perfeito. Você é um garoto muito inteligente e escova os dentes muito bem.

Elijah observou Sue olhar para o espelho vazio e fingir que via um menino de 7 anos escovando os dentes. Usou seus olhos de laser para encher o espelho de vapor.

Depois de escovar os dentes, Elijah acompanhou Sue até o quarto e se deitou na cama. Sue o cobriu.

— Pare de se agitar — disse ela. — Você não vai conseguir dormir se ficar se agitando assim. Está se sentindo um pouco assustado hoje? Você sabe que pode conversar comigo sobre qualquer coisa. — Sue riu e suspirou ao mesmo tempo. Olhou para Elijah e deu uns tapinhas carinhosos nele. — Está se sentindo um pouco inseguro? Quero que se lembre de todas as coisas que eu disse: aqui você está cem por cento seguro. Ninguém vai machucá-lo. — Ela levantou a cabeça e puxou o cobertor para baixo para ver melhor Elijah. Ele queria puxar o cobertor para cima de novo. Ele se perguntou se Mama teria um cobertor ou se estaria sentindo frio.

Sue apoiou a cabeça na mão.— A verdade é que esses assistentes sociais não contam nem metade

da história. Até Ricardo, que é um amor de pessoa. Provavelmente é melhor assim, imagino. De qualquer modo, docinho, você sabe que pode conversar comigo quando quiser. Desabafar pode ajudar. Sabe, compartilhar seus problemas.

Elijah olhou para as manchas marrons na mão de Sue. Provavel-mente o feiticeiro a estava envenenando.

Em vez de ficar encarando as mãos de Sue e pensar em coisas, passou os olhos pelo quarto. Havia um armário com o desenho de

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um urso que ela disse que se chamava Ursinho Puff. Sue lia muitas histórias para Elijah. Na parede havia uma prateleira com muitos livros, inclusive aquele sobre o urso. Esse livro era a segunda coisa favorita de Elijah no quarto.

A primeira estava ao lado da cama: uma fotografia com uma mol-dura de madeira. Na foto, a Mama tinha milhões de trancinhas nos cabelos e sorria, segurando uma Bíblia King James que o tio Pastor lhe dera. Atrás dela, estavam as cores da Nigéria: vermelho escuro, amarelo vivo e verde. E ela sorria.

— Amanhã você tem contato. Então temos que acordar muito cedo. — Ela beijou Elijah no alto da cabeça antes que ele tivesse tempo de puxá-la para trás. — Durma bem.

Elijah observou Sue sair do quarto e fechar a porta. Ele tocou o lugar que ela beijara e fingiu que fora Mama que o tinha beijado.

Elijah esticou as mãos, esfregando os dedos na mesa arranhada por mil riscos de caneta, e a luz do dia, refletindo na poeira de brilho incrustada na madeira, produzia faíscas como se a mesa guardasse lembranças de crianças brincando. Outras crianças. Já era manhã quando Ricardo chegou para levá-lo ao centro de contato, mas só depois de terem uma conversa. Elijah ficou sentado à mesa da cozinha enquanto Ricardo falava em voz baixa com Sue, do lado de fora. Depois ele entrou e sorriu e Elijah soube que ia ter que falar. Não gostava muito de falar e, quanto mais cedo começasse, mais cedo sairiam para o centro de contato, que era uma espécie de prisão onde mantinham sua Mama. Fechou os olhos e forçou as palavras a saírem, uma a uma:

— No começo Satanás estava aqui, assim como Deus.Abriu bem os olhos e olhou para Ricardo, que tinha recostado na

cadeira e cruzado as longas pernas à frente. O cheiro da loção pós--barba de Ricardo chegou ao nariz de Elijah, frutado e picante. Certa vez, Ricardo lhe contara que tinha mais de cinquenta loções pós-barba diferentes, e Elijah as tinha imaginado alinhadas numa prateleira,

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organizadas vidro a vidro. Ricardo folheou os desenhos de Elijah, que estavam empilhados entre eles no centro da mesa: dezenas de pinguins, um longo galho de árvore com uma fileira de formigas carregando folhas, uma asa de borboleta com todas as cores possíveis — esse ti-nha demorado dias — e uma página branca de giz que representava um urso polar no Ártico no meio de uma tempestade de neve. Elijah não gostava de olhar para aquele desenho, embora o tivesse feito: era muito vazio e secreto. Ainda assim o guardara com os outros e disse a Ricardo que era importante.

Eu sou um feiticeiro. Elijah quis contar a Ricardo sobre o feiticeiro dentro de si, mas a promessa que fizera à Mama de nunca, nunca contar sobre o feiticeiro, ecoou na sua cabeça.

— Sou um garoto mau — murmurou, como alternativa. — Cheio de maldade. — Elijah forçou as palavras a saírem e pensou em Mama, que o esperava, no modo como sua boca se curvava num sorriso de um lado e do outro, numa expressão triste.

Elijah levou a mão ao rosto e tocou a cicatriz da testa com as pontas dos dedos. Ela era encaroçada e tinha o tamanho de um palito de fósforo.

— Olha a minha cicatriz — sussurrou para Ricardo. — Só gente malvada tem cicatriz no rosto.

Ricardo deu de ombros como se o menino tivesse dito uma coisa sem interesse ou inverídica. Elijah arregalou mais os olhos até eles começarem a se encher de água e a arder. Tentou ignorar a dor, olhou para o chão e inspirou profundamente a loção pós-barba de Ricardo.

— Eu não quero ser mau. Você pode me ajudar? A voz de Elijah se transformara na voz de um garoto mais novo.

Ela seguia para todas as direções, como se as palavras não soubessem o caminho para os ouvidos de Ricardo. Elijah fechou os olhos e ouviu seu interior: Feiticeiros trazem doenças e má sorte e tristeza para todos que estão próximos. De noite, deixam a própria pele e voam pelo ar antes de escolher uma vítima e comer a carne, às vezes até a própria alma, delas. Estou cheio de maus espíritos.

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— Eu sou mau, estou sob o controle direto do próprio Diabo. O Bispo me disse isso. — Elijah começou a soluçar, uma grande lágrima rolou para o seu queixo antes de cair na mesa. Ele a tocou com o polegar e a esfregou na mesa até secar. — Eu não quero ser mau.

— Quem é o Bispo? Ele é da sua igreja?Elijah abriu os olhos, mas não a boca.Ricardo franziu o rosto. — Bem, quem quer que seja, você deveria saber que você não é mau

de jeito nenhum. Você é um garoto encantador que merece ser feliz, estar em segurança e brincar.

Elijah sabia que Ricardo não acreditava que ele fosse mau. Tentou falar com Ricardo telepaticamente, que é quando se pensa direta-mente no cérebro de outra pessoa. É verdade. Olhe nos meus olhos. É verdade.

— Eu sou Elijah — disse —, mas também sou cheio de maldade. Trago doença e má sorte e infelicidade para todos perto de mim. Estou cheio de ruindade.

Ricardo pôs a mão sobre a de Elijah. — Isso parece muito confuso. Estou muito contente por você ter

vindo conversar comigo. Pode me falar sobre o Bispo?Elijah piscou depressa. — Ele é um homem de Deus.Ricardo apertou a mão de Elijah e escreveu alguma coisa em seu

caderninho. — Vou tentar falar com ele: você lembra o nome dele? Ou o nome

da igreja dele?Elijah negou com a cabeça.— Não se preocupe. Mas, enquanto isso, você deve compreender

que, seja o que for que alguém tenha dito, mesmo um homem de Deus, você é um garoto muito, muito bom. De qualquer modo, todo mundo apronta de vez em quando. Até eu, pode acreditar! — Ricardo riu com vontade. — E tenho certeza de que o Bispo nunca diria que

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você é malvado. Às vezes, no Brasil, de onde eu vim, os padres falam em céu e inferno e Deus e Diabo. Era assim que o Bispo fazia?

Elijah parou de piscar. Sua cabeça assentiu antes que pudesse impedi-la.

— Bem, se seu Bispo parece de algum modo com os padres que eu conheço, ele sabe que crianças são boas, não más.

Elijah sentiu sua cabeça começar a balançar, mas conseguiu pará--la a tempo.

— E talvez, se as coisas não estavam muito bem em casa com sua mamãe, então foi fácil ficar confuso na igreja e pensar coisas ruins. — Ricardo levantou a cabeça de Elijah. — Deve ser horrível pensar que você é mau por dentro.

Elijah piscou devagar e segurou as lágrimas fazendo com que o estômago se torcesse num nó apertado. Ricardo estava errado sobre tudo. As coisas sempre foram boas em casa com a Mama. Sempre. Olhou para os pés do Ricardo, esticados diante dele debaixo do seu lado da mesa.

— Obrigado por me contar sobre o Bispo; como eu já tinha dito, você pode me contar qualquer coisa. Pode confiar inteiramente em mim. — Ricardo esticou o braço sobre a mesa e pôs a mão sobre a de Elijah, mas Elijah sentiu a própria mão tremer. Ele não queria correr o risco de tocar em Ricardo. Os adultos diziam que se podia confiar neles, mas ele só estava totalmente seguro com a Mama.

Mama.Só de pensar na Mama tudo se transformava. Quando pensava na

Mama, a mesa se mexia e se sacudia e o chão desaparecia. A cozinha ficou em silêncio por um momento, exceto pelo tique-

-taque do relógio sobre os armários de louça de Sue. Elijah olhou para a janela e para as plantas no peitoril que Sue tinha dito se chamarem orquídeas. Só precisavam de um pouquinho de água a cada algumas semanas, e as flores eram rosa muito forte. Uma delas era branca com pintas e subia por uma vara verde e fina. Ele tinha passado o polegar

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numa pétala naquele dia e não conseguiu decifrar se ele era a pétala ou o polegar, tão macios que eram.

— Há quanto tempo nos conhecemos? Ricardo sorriu aquele sorriso que guardava somente para Elijah.

O rosto de Ricardo geralmente era quadrado, a boca reta e, quando sorria, mostrava os dentes. Mas o sorriso especial que guardava para Elijah era quando seus olhos brilhavam. Elijah nunca o tinha visto usar aquele sorriso com mais ninguém. Era como um segredo entre eles.

— Esta é a primeira vez que você me contou claramente que sente que é mau, com mais que uma frase aqui e ali, e que mencionou o Bispo. Sei que sua mamãe costumava rezar muito e é muito religiosa. É bom que você esteja conversando sobre essas coisas comigo, Elijah. Conversar é sempre bom.

Mas Elijah não se sentia bem ou seguro. Seu coração tinha dispa-rado dentro dele, e seu estômago, mudado de lugar. Olhou além das orquídeas, para fora da janela, para a luz do dia.

Ricardo sorriu de novo, mas Elijah pôde ver seus pensamentos. Dentro de sua cabeça, Ricardo corria depressa de volta para o Brasil, onde poderia se esconder de um feiticeiro tão perverso, na floresta que tinha sapos verde-neon e aranhas grandes como mãos e onde era possível criar lagartos como animais de estimação na sala de visitas.

— Você quer um biscoito? — Ricardo meteu a mão na bolsa e tirou uma coisa. Sacudiu um pacote no ar: biscoitos com recheio de baunilha. Ricardo sempre trazia biscoitos de baunilha.

— Meninos maus não comem biscoitos — disse Elijah. Ele suspi-rou. — Você não acredita que eu sou mau.

— Não, na verdade eu tenho certeza de que você é um menino bom. Eu quero ajudá-lo, e eu posso. Trouxemos você para um lugar seguro e vou providenciar algum tipo de terapia. Agora que você está hospedado com Sue e Gary, podemos ajudá-lo de maneira adequada. Terapia com brinquedos e arteterapia, além de uma boa escola para você começar a estudar. Quero que você conheça uma pessoa especial,

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Chioma, que ajuda crianças como você. Ela é bem legal. Acho que todos nós podemos ajudar você, Elijah.

— Ninguém pode me ajudar. Nem a Mama conseguiu me ajudar.Depois do hospital, onde não pôde ver a Mama de jeito nenhum,

mas conseguiu ouvi-la uivando como um lobo em algum lugar bem longe, tinham dito que ele teria de ficar com outras famílias durante algum tempo. Elijah tinha ficado com muitas famílias desconhecidas em muitas casas desconhecidas. No início, quando tinha se mudado para a casa de Sue e Gary, tinham permitido que ele visse Mama três vezes por semana e ela o abraçava e cochichava no seu ouvido: “te amo muito e prometo que tudo vai acabar bem”, e o puxava para perto do seu corpo, tão perto que ele podia sentir o cheiro da sua pele, e tudo era estranho, mas suportável. Mas, então, as semanas passaram e passaram e ele ficou esperando e esperando; disseram que ele tinha que ficar com Sue e Gary por um tempo. Ninguém lhe disse quando poderia ir para casa com a Mama. Nem mesmo Ricardo.

— Quero ir pra casa.— Sei que quer, mas é nossa tarefa, minha tarefa, mantê-lo em

segurança. Você merece ser amado e ficar seguro.— Quero ir pra casa. Eu não mereço nada.Ricardo abriu os biscoitos. — Você merece muitas coisas, Elijah. Mas por que não começa

com um biscoito, agora?Eu me banqueteio é com carne humana. Elijah olhou para o paco-

te por muito tempo antes de estender a mãozinha para os biscoitos, pegando um e colocando-o inteiro na boca.

Ricardo sorriu, aquele sorriso especial.— Acho que você está fazendo progresso de verdade, Elijah. Estou

muito contente que esteja se sentindo à vontade para falar sobre como se sente. E já faz um bom tempo que nada dá errado. Você está indo realmente bem.

Elijah deu de ombros para Ricardo. Queria subir no colo dele e dormir. Uma vez, Ricardo o tinha pegado e carregado, e Elijah tinha

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gostado da sensação de que aquele homem poderia ser forte o suficiente para carregar um feiticeiro ou mesmo para lutar contra um. Talvez Ricardo também tivesse poderes especiais. Ele se sentiu perto de estar seguro. Quase. Depois da Mama, Ricardo era quem conhecia Elijah havia mais tempo no mundo.

— Antes de fazermos nossa visita hoje, tenho que lhe falar sobre sua Mama — disse Ricardo. — Temos que conversar sobre algumas coisas. Receio que ela não esteja indo tão bem, Elijah. Ela ainda será avaliada durante algum tempo, mas precisamos conversar sobre o futuro...

Elijah comeu o biscoito e fechou os ouvidos. Às vezes ser um fei-ticeiro podia ser útil. Se quisesse fechar os ouvidos, ele podia, como se os ouvidos tivessem pequenas portinholas que desciam quando ele mandava. Assim, não escutou mais nenhuma palavra de Ricardo.

O centro de contato era um edifício baixo com janelas que não se abriam. Havia fotografias de crianças nas paredes junto com mais avisos dizendo o que se devia fazer. Elijah pediu que Ricardo lhe contasse o que diziam.

— Nada de interessante — disse, mas então Elijah usou o controle da mente e o fez falar. Ricardo suspirou, depois leu:

“Em caso de incêndio, reúnam-se no estacionamento.”“Por favor, certifique-se de que a porta fique fechada quando sair.”“Circuito de vigilância em operação.”Elijah seguiu Ricardo pelo corredor. Naquele dia, os chinelos de

Ricardo eram verdes. Às vezes Elijah olhava de perto os dedos do pé dele. Eram lisos. A Mama tinha dedos do pé com pelos; Sue e Gary também. Ricardo devia depilá-los.

— Você raspa os dedos do pé? — perguntou Elijah.Ricardo riu. — Você é muito engraçado, Elijah. Você me faz rir muito. É uma

boa qualidade, fazer as pessoas rirem.

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Elijah sentia seu estômago revirar quando Ricardo dizia que ele era bom em alguma coisa. Sabia que não era verdade. Não era bom em nada de verdade, exceto no mal. Entraram numa sala em que havia uma mesa no centro e dois sofás. Do outro lado da sala ha-via outra porta. Eles se sentaram num sofá. Elijah tentou enxergar através da porta, mas seus olhos estavam úmidos. Imaginou qual seria a aparência da Mama hoje, que roupa estaria vestindo, o que cochicharia em seu ouvido. Sentiu o feiticeiro se encolher dentro de seu corpo. Sempre que a Mama estava perto, o feiticeiro diminuía, como se tivesse medo dela.

Tinha sido suportável quando ele via a Mama regularmente, mas, quando o número de visitas foi diminuindo mais e mais, o feiticeiro dava saltos dentro dele e às vezes fazia coisas perigosas como comer carne humana ou causar náuseas e infelicidade. Elijah se endireitou na cadeira e focalizou a porta sem piscar para não perder a primeira visão da Mama. Ele imaginava exatamente o que ela lhe diria: Pequeno Nigéria, você é a melhor coisa que me aconteceu ou Meu filho querido, tive tanta saudade de você que mal posso respirar.

Ricardo batia com o pé no tapete. A porta por onde tinham entrado se abriu, e a cabeça de um velho branco de barba apareceu no canto.

— Uma palavra, por favor?Ricardo olhou para Elijah muito rapidamente. — Volto num minuto, tudo bem?Elijah sorriu. Talvez ele tivesse um tempo sozinho com a Mama.

Talvez deixassem que ficassem abraçados ou mesmo que tirassem uma soneca juntos como costumavam fazer, embolados de um jeito que era impossível se mexer e se sentindo muito seguros e ambos tendo um sono sem sonhos. A Mama devia estar esperando do outro lado da porta. Elijah podia sentir seu cheiro: plátano ligeiramente queimado ou livros velhos de biblioteca.

Olhou para a porta e segurou a respiração até pequenas luzes dan-çantes encherem a sua cabeça. A outra porta se abriu.

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— Elijah — disse Ricardo, sentando-se no sofá. — A Mama ainda não está aqui, sinto muito.

Elijah expirou todo o ar num sopro. — Onde ela está?— Receio que tenho más notícias, Elijah. Parece que ela não vai

vir hoje. A voz de Ricardo soava cheia de perigos, como se estivesse numa

corda bamba no alto da tenda de um circo, atravessando muito devagar.

— Ela vai vir — disse Elijah. Ele sentiu o feiticeiro rir dentro de si, uma espécie de ronco em sua barriga. — Temos só que esperar. — Começou a chorar e deixou as lágrimas rolarem rosto abaixo, não se importando mais em tentar contê-las. — Ela vai vir. Ela deve ter perdido o ônibus.

Ricardo puxou Elijah para perto de si e secou seu rosto com a palma da mão.

— Sinto muito, Elijah. Eu disse que isso podia acontecer. — Temos que esperar. — Elijah olhou para Ricardo, dentro de seus

olhos. — Por favor, podemos esperar?Ricardo olhou o relógio. — Vamos dar dez minutos, certo? Mas eu acho mesmo que ela não

vai conseguir chegar dessa vez.Elijah deixou Ricardo segurá-lo enquanto vigiava a porta. Rezava

dentro do corpo e dentro da cabeça. Abra a porta!, gritavam suas entranhas. Abra a porta. Ele usou todos os seus poderes até se sentir esvaziado.

O tique-taque do relógio marcava os minutos, e a porta continuava fechada. Elijah ficava menor e menor, e o feiticeiro crescia. O feiticeiro riu tão alto no ouvido de Elijah que ele sabia que Ricardo devia ter ouvido. Mas o homem apenas o segurou mais frouxamente.

— Precisamos ir agora, Elijah. Sinto muito que a Mama não tenha conseguido vir. Sinto muito mesmo. Ela ama muito você. — Antes que

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Ricardo pudesse virar a cabeça e ficar de pé, Elijah viu que os olhos dele estavam úmidos. — É melhor a gente ir antes que nos expulsem daqui.

Mas Elijah não conseguia se mexer. Apenas olhava e olhava para a porta fechada.

Naquela noite, estava tão escuro quando Elijah acordou que ele se sentiu morto. Teve que mexer os dedos das mãos e dos pés para saber que ainda estava vivo. Elijah tinha morrido uma vez, na primeira noite em que ficara longe da Mama. Estava tão morto que não conseguia mexer nada. Nem um dedo do pé sequer. Estar morto era como viver dentro de um sonho. Apenas algumas coisas eram reais, mas não se sabia quais.

Tudo estava silencioso, mas não tão silencioso. Elijah ouvia o ronco de Gary. Gary roncava alto e, antes dele, Marie nunca roncava. Quando Elijah tinha ficado com Linda e Pete, Pete tinha acessos de ronco e depois ficava terrivelmente quieto, como se estivesse morto, mas então vinha um ronco de repente e Elijah sabia que Pete estava bem, o que era bom, pois gostava dele. Gostava tanto de Pete que tinha criado um campo de força em torno da casa para protegê-lo dos espíritos ruins. Antes de Pete e Linda, houve a casa de Olu e, embora o filho de Olu, Fola, tivesse só 14 anos, ele roncava mais alto que todos os outros.

Ouvir Gary roncar fez Elijah pensar em todos os outros roncos que ouvira na vida. Tentou se concentrar com muita atenção no som, mas sentiu a maldade interior reviver, como se o ronco a estivesse acordando. Sentiu o feiticeiro crescer e crescer até que não conseguiu mais controlá-lo e o sentimento fez tudo se fechar, como se o mundo estivesse se dobrando ao meio. Sentiu que o feiticeiro interno queria sair. Sabia que o feiticeiro usaria seus poderes para o mal, mas não tinha mais forças para lutar.

Sair da pele de um menino requeria muito esforço, mesmo para um feiticeiro experiente. Primeiro, tinha que empurrar os órgãos internos de Elijah bem para baixo para poder se esgueirar espinha acima. Depois, andava na direção da cabeça de Elijah. Quando estava

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quase lá, tinha que procurar o nariz ou a orelha. Então vinha a parte complicada: ficar muito pequeno — pequeno o suficiente para passar por uma narina. Pressionava e empurrava e, então, estava livre.

Elijah podia sentir o feiticeiro rastejando para fora dele e voando pelo quarto, mais e mais depressa. Fechou os olhos com força e tentou mantê-los fechados, mas alguma coisa forçou-o abri-los. Pôde ouvir o feiticeiro deslizar para fora da porta e depois se lançar escadas abaixo. O coração de Elijah batia como se quisesse sair do peito. Pensou em Sue e Gary, que dormiam, e forçou as pernas a descerem da cama. Elijah desceu as escadas o mais silenciosamente que pôde com seu coração batendo com força. Não havia barulho na cozinha, exceto o do seu coração e o do relógio, e tudo estava trancado e fechado. Até a geladeira tinha um pequeno cadeado. Havia uma pia com um pano de prato de um amarelo vivo, como o sol da Nigéria, pendurado na torneira.

O feiticeiro entrou de volta em Elijah e o encheu até seu estômago queimar e se retorcer. Com a mente de Elijah, ele pegou o pano de prato e o fez dançar no ar. O pano dançou por toda a cozinha e sobre o fogão. O feiticeiro gostava de fazer as pessoas se sentirem mal, zanga-das e furiosas. Gostava do cheiro de coisas queimando. O fogão tinha botões pequenos no lado, que Sue usava para acender o fogo. Elijah a tinha visto fazer isso. Às vezes ela cozinhava macarrão para ele, o que não era tão ruim quanto nabo, e ela girava os botões, e o fogo aparecia.

— Não chegue perto do fogão — dizia Sue —, é perigoso. Mas não era perigoso para o feiticeiro. O feiticeiro estava rindo, e

Elijah estava chorando e chorando. Parecia que um cinto estava aper-tando demais sua barriga. O feiticeiro estava apertando. O fogo fez um barulho parecido com puff, e um cantinho do pano começou a ficar preto. Depois apareceu laranja sobre o amarelo. Elijah queria fechar os olhos e se deitar e chorar e chorar, mas o feiticeiro não deixava. Ele o obrigou a olhar enquanto o fogo aumentava. Elijah viu o sol quei-mando e o fogo subindo e se espalhando e os armários derretendo.

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