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ETNOFÍSICA NA LAVOURA DE ARROZ: UM ESTUDO PRELIMINAR

Bárbara AnacletoRenato P. dos Santos

ResumoEtnofísica na lavoura de arroz nos mostra como o conhecimento

popular pode ser científico através de um enfoque etnofísico. A pesquisa compreende todos os passos da cultura arrozeira em uma fazenda no Rio Grande do Sul, desde a preparação do solo até a colheita, armazenação e venda do produto. Os dados obtidos vêm da conversa com os trabalhadores, observação e questionários. A historicidade de um povo, de uma cultura, são bases para a evolução científica de uma nação, por isso investigar tais práticas nos faz perceber a relação entre e a física e a realidade, muito mais do que apenas uma rotina agrícola, esta pesquisa mostra a importância científica da atividade rural.

1. IntroduçãoUma das práticas mais antigas realizadas pelo homem, por questão de

subsistência, é a atividade agrícola, onde o arroz é uma das culturas mais antigas praticadas, tão antigas quanto a própria civilização. Seu caráter não era apenas nutricional como também cultural, como por exemplo, na Ásia, onde o arroz é ainda hoje símbolo de fertilidade, usado em cerimônias religiosas.

A agricultura desempenha ainda hoje no Brasil um papel muito importante na economia, sendo a cultura do arroz uma das mais significativas no cenário agrícola. Este cereal, que veio junto com Pedro Álvares Cabral em 1500 e já em 1587 ocupava terras na Bahia, espalhando-se depois pelo resto do país, encontrou solo e condições ideais para o seu cultivo no Sul do país e é hoje a terceira maior produção entre os vários grãos (caroço de algodão, amendoim, arroz, feijão, mamona, milho, soja, aveia, centeio, cevada, girassol, sorgo, trigo e triticale), ocupando uma área de 3 710 164 hectares tornando-se assim uma das principais culturas agrícolas do Brasil. No âmbito nacional destaca-se o Rio Grande do Sul, responsável por 53% da produção nacional do arroz, tornando-se uma das mais importantes fontes de renda do homem do campo, tanto para o produtor quanto para o trabalhador rural.

A população rural conhece desde cedo o cultivo do arroz. Muitos começam a trabalhar ainda jovens nas lavouras, sendo estes fundamentais para obtenção do produto final. Para esses trabalhos, utilizam práticas agrícolas passadas de geração em geração ao longo de séculos, porém sempre desligadas do mundo científico: as atividades são feitas porque dão certo e não porque a Física ou a Matemática as orientam. Bem pelo contrário, muito antes destas ciências se estabelecerem como tal, a cultura de plantar e colher já existia e funcionava muito bem. O desenvolvimento das ciências veio apenas aprimorar as técnicas com o uso da tecnologia, barateando o processo e reduzindo a mão de obra necessária para conseguir uma boa colheita. Por exemplo, as taipas3, necessárias para a irrigação do arroz, que antigamente eram feitas manualmente, levando, em uma determinada área, entre 10 a 15 dias, hoje em dia são construídas em 3 dias, com o auxílio de maquinário especializado.

Este trabalho tenta desvendar a prática da cultura do arroz e investigar as técnicas usadas intuitivamente por gerações de trabalhadores rurais, fazendo ligações com a Física e a Etnofísica desta população, onde o

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objetivo maior é investigar a Física e Matemática de senso comum em ambiente natural do cultivo do arroz pelos trabalhadores rurais do Rio Grande do sul, valorizando a cultura individual e coletiva que existe nessa prática.

2. Dimensão Teórica e MetodológicaO conhecimento humano evoluiu conforme a necessidade e as situações

em que desafiavam o modelo mental já existente. Sendo assim cada povo teve sua evolução conforme sua realidade natural, social e cultural. Investigar práticas agrícolas em comunidades rurais nos traz a riqueza da diversidade do conhecimento gerado pela necessidade de resposta a problemas e situações distintas. Entender e associar esses conhecimentos “populares” àquela comunidade e relacioná-los aos saberes científicos é a essência da Etnomatemática em que, como D’Ambrosio (1990) salienta, “o enfoque se aplica igualmente às várias disciplinas cientificas, da área de sociais, de linguagem, enfim, a todo o sistema escolar”, tornando a Etnofísica um importante recurso para conhecer o comportamento de uma sociedade, de cada indivíduo, valorizando-os como seres humanos pertencentes a uma história e a uma sociedade maior.

Para D’Ambrosio (2002), “o cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. A todo instante, os indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando, generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios a sua cultura.” Assim, investigar a cultura de um povo é entrar em sua história, participar de atos que relembram o passado e nos remetem ao futuro, é entender o porquê de cada passo dado, mesmo que errado, pois se foi errado serviu de ponte para um novo conhecimento. Para Demo (1988), “quando estudamos a sociedade, em última estância, estamos estudando a nós mesmos, ou coisas que nos dizem respeito socialmente.” A Física agrícola, manejada desde os primórdios da existência, merece ser estudada, pois a sua importância para o desenvolvimento das sociedades foi fundamental, e, até hoje, não existem muitos estudos juntando os saberes científicos, físicos, ao saberes comuns das pessoas em geral, especificamente as práticas agrícolas.

A Física e a Matemática devem ser ligadas a fenômenos reais e um ótimo exemplo disso é o meio rural. O senso comum dos trabalhadores rurais é uma fonte inesgotável de conhecimentos científicos, mas que, para eles, são tão corriqueiros que passam despercebidos.

A pesquisa está sendo feita na Granja Bins, no município de Palmares do Sul /RS, com um grupo de 15 trabalhadores rurais. Está sendo realizada com base no estudo etnomatemático, isto é, da Física e da Matemática que grupos culturais,comunidades urbanas e rurais praticam em comum acordo com suas crenças etradições. D’Ambrosio (1990) ressalta que a Etnomatemática pode ser aplicada atodas as ciências, uma vez que a “Etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais”, e isso independe da ciência investigada. Estudar um povo, uma comunidade, ou apenas um grupo de trabalhadores rurais é se inserir no cotidiano pretendido, é conversar, escutar, entender o processo, entender a origem, nunca perdendo a individualidade, mas levando em consideração a generalização das atividades, analisar cada palavra, perceber em pequenos detalhes o fundo científico que há, lembrando, no entanto que, “ainda assim, essas descrições e interpretações

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serão sempre do ponto de vista de uma interpretação científica” (SILVA, 2003).

Desta forma, para alcançar estes objetivos, usou-se uma metodologia etnográfica, onde a pesquisa consiste em interpretar dados coletados a partir de conversas, isto é, analisar o discurso dito, analisar fatos da memória das pessoas. Para uma pesquisa com este caráter “não é o acontecimento enquanto acontecimento que interessa ao etnógrafo, o discurso social bruto do qual ele não participou da construção; antes, é o significado do acontecimento do falar – atos de fala, de algumas pequenas partes do discurso do informante – que pode levar à compreensão da realidade.” (SILVA, 2003)

Para LeCompte (1988), os pesquisadores etnográficos tentam descrever e reconstruir de forma sistemática e o mais detalhadamente possível as “características das variáveis e fenômenos, com o fim de generalizar organizar categorias conceituais, descobrir e validar associações entre fenômenos, comparando as construções e postulados gerados a partir de fenômenos observados em cenários distintos.”

Uma pesquisa etnográfica ou etnomatemática não pode ser feita à distância – deve-se estar inserido no objeto de pesquisa para assim aprender a prática ou língua estudada, assim como perceber o contexto cultural e histórico social da comunidade analisada. LeCompte (1988) nos diz que a investigação etnográfica tem 4 passos básicos, sendo eles: a observação participante, entrevistas a pessoas integrantes da sociedade analisada, histórias da região e da cultura e pesquisa, perguntas sobre o que se quer analisar.

Na observação participante, que é a principal técnica etnográfica de coleta de dados, o investigador deve estar o maior tempo possível com os indivíduos estudados, estudando e ao mesmo tempo vivendo seu cotidiano, e ele deve estar habituado com a linguagem específica do grupo estudado, pois a linguagem pode se tornar um problema para a pesquisa, caso o investigado não esteja ambientado, terá dificuldade de entender o que esta sendo dito, e o contrário também, se tornando ainda mais grave, de maneira que o objeto de pesquisa poderá se sentir inferiorizado pelo pesquisador. O investigador pode incluir comentários interpretativos baseados em suas percepções e estas têm um caráter social já pertencente ao grupo, geralmente tais comentários vêm ao mesmo tempo pelo investigador como pelos indivíduos e serve para obter suas definições sobre a realidade. A observação participante serve para obter percepções e descrições da realidade pelos indivíduos investigados. O investigador também deve analisar a coerência do que foi dito com o que é realizado pelo indivíduo.

As entrevistas são feitas com pessoas que dominam o objeto a ser analisado e queiram cooperar com o investigador. Preferencialmente essas entrevistas devem ser feitas com pessoas que moram ou residem há muito tempo na comunidade e dominem bem as técnicas utilizadas a fim de ajudar os investigados na compreensão análise do material estudado. Embora possam ser escritas, uma vez que os sujeitos analisadas são de comunidades mais rurais ou étnicas, deu-se preferência às entrevistas de cunho oral, em que as perguntas podem ser previamente estabelecidas ou serem feitas na hora, conforme a reação do sujeito de pesquisa. As histórias da região e cultura devem ser úteis na elaboração das perguntas a serem feitas, pois elas dão base para o pesquisador investigar e dominar melhor o assunto. A pesquisa deve ser feita após já se ter um bom conhecimento sobre o assunto e uma boa relação com os indivíduos

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estudados pois, para a comunidade, grupo ou indivíduo investigado, é muito importante perceber o domínio do assunto por parte do investigador, o que torna a interação entre investigado e investigador bidirecional. Para alcançar este objetivo, foi realizada uma revisão bibliográfica no âmbito da Etnomatemática e da Etnofísica, assim como do cultivo, produção e historização do arroz no mundo e no Brasil, em sites especializados como o da EMBRAPA e Ministério da Agricultura, publicações e periódicos sobre o assunto e uma vasta gama de livros de Física, para além de contatos com técnicos e engenheiros do IRGA – Instituto Rio Grandense do Arroz, em Cachoeirinha, RS.

O registro da pesquisa está sendo feito em gravações das conversas em fitas microcassete, as quais são escutadas várias vezes, coletando assim os dados da pesquisa que serão citados no decorrer do presente trabalho. A análise deve ser a última parte do processo de pesquisa, embora deva sempre tangenciar a direção do enfoque pretendido, ela tem como objetivo juntar os saberes populares, já investigados, com o científico, que é de domínio do investigador.

Com base nestes passos, a pesquisa está sendo realizada de forma etnográfica, respeitando o tempo dos trabalhadores rurais, bem como sua individualidade e disponibilidade. Acredita-se que uma pesquisa desta natureza pode trazer importantes resultados em relação a saberes populares e culturais.

3. Resultados parciaisO arroz é uma prática muito interessante de ser estudada, mas também

bem complexa. A pesquisa compreendeu todos os passos da cultura arrozeira, desde a preparação do solo e a construção das taipas até a colheita, armazenagem e venda do produto. Os dados obtidos a seguir vêm de entrevistas com os trabalhadores, observação participativa e questionários, bem como contatos com técnicos e engenheiros agrícolas.

O papel da mulherEstudando a cultura do arroz com uma visão etnográfica, deparou-se

com alguns problemas culturais. Na vida rural, não é muito comum a participação feminina, muito menos de uma mulher jovem, o que gerou alguns contratempos. Os trabalhadores rurais mais jovens não foram muito receptivos, talvez por se sentirem inferiorizados, uma vez que a maioria não tem nem o Ensino Fundamental, e responderam apenas de forma básica e simples, muitas vezes apenas sim ou não. Já os trabalhadores mais velhos mostraram-se receptivos, explicaram o processo, mostraram toda a lavoura, conversaram bastante, e até ajudaram a pesquisadora durante a caminhada na plantação, o que gerou situações divertidas, pois como eles comentaram “olha é uma coisa, caminhá e participá é outra diferente” e ao mesmo tempo em que eram pesquisados, investigavam a pesquisadora, com perguntas referentes à sua escolaridade e o porque o arroz como objeto de pesquisa.

No meio rural não é muito comum a figura da mulher participando ativamente do processo na lavoura. Mesmo a visita que foi feita ao IRGA, quando ainda se estava estudando a possibilidade de exploração do tema, causou algum constrangimento. As mulheres que lá estavam atendiam apenas serviços burocráticos, de secretaria enquanto que nas demais repartições da estação experimental de arroz não havia mulheres. Quando da chegada da pesquisadora, eles perguntaram “é tu a moça do arroz?” Apesar disso, o pessoal foi prestativo, passando todas as informações

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disponíveis sobre o arroz e seu cultivo, que foram muito importantes na delimitação da pesquisa.

Após várias conversas improdutivas, com respostas evasivas, os trabalhadores foram se acostumando com a minha presença, em uma das visitas à lavoura a proprietária da fazenda, de 85 anos, participou intensamente da conversa, o que deu credibilidade e confiança ao trabalho, uma vez que a proprietária tem um alto prestígio na região por ter crescido naquelas terras e também por gerenciar a sua fazenda desde a morte de seu pai, há 30 anos.

Decorrido uns dias, os trabalhadores já estavam acostumados com a presença da pesquisadora. A barreira da mulher no campo foi vencida com muita conversa, humildade e persistência, de não se abater por inúmeras resistências culturais trazidas no decorrer de séculos de história.

A prática da semeaduraNo primeiro dia da pesquisa de campo, durante uma caminhada na

lavoura, um sujeito, senhor de certa idade, explicou como era feita a semeadura, falou sobre o tempo em que era feito tudo manualmente e comparou com as vantagensda tecnologia.

Uma coisa que chamou a atenção era que a semeadura era feita com três semeadoras, que, de longe, pareciam um passar no rastro do outro. O sujeito explicou que não era um por cima de outro, mas sim umexatamente do lado do outro, em linhas curvas, e que faziam daquela maneira para poupar óleo do trator, pois assim, segundo ele, eles trabalham a mesma área em menos tempo, consequentemente gastando menos óleo. Esclareceu ainda que há uma velocidade certa para isso, pois se o trator for muito devagar colocará muitas sementes na cova, enquanto que, se for muito rápido, poucas sementes.

Questionado sobre o que a lavoura de arroz e o que a ciência tinham em comum, o sujeito disse que a ciência, a escola trazem novidades para a lavoura, e nunca o contrário. Quando comentado sobre Física, ele relacionou apenas a fenômenos físicos como tempo e umidade e disse que na lavoura nada tem de científico ou matemático.

Durante o abastecimento da semeadora com sementes e adubo, perguntou-se como eles faziam para calcular de quanto em quanto tempo teriam que repô-las. Um dos sujeitos comentou que era fácil, pois cada uma das três semeadoras que trabalham simultaneamente na mesma quadra (16 000 m2) “tem que colocar uma vez só”. Em cada vez que completam a semeadora, colocam 40 sacos de sementes para 70 de adubo. Questionado se era sempre esse mesmo número de sementes e adubo, ele disse que não, que era conforme a época plantada, quanto mais chuvosa a época de plantio, menos adubo, quanto mais seca, mais adubo, “às vezes á 60 de semente e 40 de adubo na chuva”. Questionado sobre se nunca falhava o cálculo de abastecimento da semeadora, ele disse que às vezes sim, “se o que tá puxando vai devagar, temos que colocar mais uma ou duas vez semente”. Por outro lado, perguntado o que acontecia se colocasse muita semente, ele respondeu que além de gastar demais sementes e adubos, aumentando o custo de produção, a produção da quadra ficava comprometida, pois muita semente na cava impede o crescimento ideal do arroz. Perguntando se a Matemática ajudava nestes cálculos ele disse que sim, mas não soube explicar como.

Analisando essas primeiras questões, verifica-se que os sujeitos usam a Física e a Matemática, mas não as relacionam ao conhecimento cotidiano. Quando optam por uma maneira curvilínea em vez de retilínea para a

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semeadura, envolvem conceitos de área, uma vez que os campos não têm forma geométrica definidas. Fazem cálculos mentais sobre o tempo que levarão para terminar de semear a quadra, envolvendo conceitos de distancia, velocidade e tempo, conceitos de mecânica na Física, trabalham ainda com o cálculo de combustível, pois quanto mais rápido andam, mais gastam, e, como o abastecimento é feito em uma central que fica um pouco longe do local de pesquisa, têm uma grande preocupação com isso. Mas para eles nada disto tem a ver com Física nem com Matemática.

A contribuição da tecnologia e a participação dos jovensA ânsia do homem em prosperar nos trouxe avanços científicos

incalculáveis, em pensar que antigamente era tudo feito manualmente. Como o velho senhor contou, “moça, no tempo do meu pai nada era assim, era tudo muito demorado e cansativo, para fazer qualquer coisa no campo levava dias”. É de se imaginar o cansaço, pois se passar um dia caminhando, conversando de baixo de sol já é cansativo, quanto mais trabalhar, arar a terra, semear com carroças de boi que, além de demoradas eram muito mais pesadas, fazendo com que o esforço físico levasse os trabalhadores à exaustão. Para esses homens que participaram da época manual da lavoura, a tecnologia veio como uma benção ao homem rural, pois o que era cansativo e quase desumano hoje é rápido, mais preciso, o que gera uma produtividade maior e com menos esforço. Meses de planejamento e execução foram substituídos por dias, o que leva os trabalhadores a terem outro emprego, aumentando sua renda familiar e propiciando aos seus filhos uma melhor educação.

O velho senhor também comentou que antigamente, assim como ele, os filhos eram obrigados a ajudar os pais na lavoura desde cedo, e que ir a escola era quase impossível, só iam à escola no período de entressafra porque na época de cultivo tinham que trabalhar de sol a sol e, muitas vezes, noites adentro para dar conta do serviço, e que hoje já não é mais assim. A tecnologia, que torna todo o serviço mais rápido e ágil, faz com que os trabalhadores rurais não necessitem tanto da mão de obra propriamente dita, e sim dos conhecimentos já obtidos sobre o cultivo do arroz. Pelo menos, na lavoura investigada, as crianças e jovens não são utilizadas na lavoura, mas têm serviço garantido depois de terminarem seus estudos, sendo introduzidas pelos pais para os ajudarem ou até mesmo substituírem, caso queiram ingressar na vida rural.

A construção das taipasOutro dado obtido na pesquisa foi durante a construção das taipas, que

servem para levar água para a plantação do arroz.Para essa atividade, que é considerada a mais importante de todo o

processo do cultivo do arroz, é chamada uma empresa de fora que, com uma“máquina”– como dizem os trabalhadores rurais –, realiza um estudo minucioso da topografia do terreno, analisando os desníveis do terreno e mostrando os lugares onde devem ser feitas as taipas, que irrigarão toda a lavoura, desenhando assim melhor caminho que a água deve percorrer para não inundar a lavoura e nem deixar que falte água para o arroz.

Para armazenar a água que vem dos rios é feito um canal, ou poço, aqui são chamados de condutos de água, que ficam na parte mais alta do terreno mesmo que imperceptível a olho nu. Perguntado o porquê disso, eles responderam que “é porque em cima fica mais fácil de descer a água” já fisicamente sabemos que eles são construídos mais acima para que a irrigação possa ocorrer por gravidade. A água é transportada por canais,

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um principal, o conduto, e outros secundários, através das taipas. Segundo Anselmi (1988), os canais desempenham bem suas funções quando construídos com declividade suficiente para o rápido movimento da água sem causar erosão, com baixa permeabilidade das paredes laterais e inferior, com capacidade adequada para inundar rapidamente o arrozal. A seção transversal deve ser suficiente para reduzir ao máximo as perdas de água por evaporação ou infiltração.

Quando questionados sobre as taipas, os sujeitos explicaram que o canal de água não pode estar cheio, caso contrário podem “afogar” as mudas ou aumentar muito as plantas daninhas do arrozal. Eles ainda indicaram com a mão o tamanho do canal e o tamanho que estar cheio de água, o que correspondia a _ do canal coberto de água e _ livre, impedindo assim que o canal transborde com as chuvas.

Esquema de uma taipa

Dizem ainda que existe uma tabela, que antigamente era usada para calcular o tamanho do canal conforme o tipo de solo, e que eles apenas construíam os canais e taipas, pois sempre tinha alguém “estudado” para medir e verificar se o tamanho estava adequado. Eles ainda comentam que sabem que “deve” ter algo de matemático nisso, mas que eles não sabem usá-la. Questionados sobre porque eles não a usavam se eram eles que calculavam, mediam, construíam as taipas, eles responderam, rindo, que sim mas não admitiam usar a Matemática, mostrando assim mais uma vez como o senso comum está desligado dos saberes científicos do meio rural.

Questionando sobre a água da plantação e seu movimento, foi-lhes perguntado como eles explicavam que a água nunca ficava parada, ao que responderam que as taipas funcionam como um rio, ela sempre está em movimento, e como os condutos ficam na parte mais alta do terreno, então ela “desce de lá” e nunca pára. Perguntada qual é a velocidade da água nas valas, eles responderam “ah, moça, ela corre devagarinho”, rindo bastante da pergunta e desconversando depois disso. Perguntando se isso poderia ser estudado na escola, esses fenômenos todos, eles disseram que só se fosse numa escola agrícola que ensinassem aos jovens as práticas do campo – na escola comum, não.

Jorge (1985) nos fala sobre a importância da água e do solo em todo o processo agrícola: “o homem percebeu, desde longo tempo, que sua convivência com a água era de suma importância para a produção agrícola [...] o consumo da água por comunidades vegetais (evapotranspiração) e a água percolada pelo perfil do solo (drenagem interna) constituem duas importantes fases do ciclo hidrológico.” Este autor esclarece ainda que a

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água “desce” por gravidade, e continua seu percurso através de fenômenos físicos descritos pela equação de Richards.

A água nos dá, ainda, um estudo muito grande sobre suas propriedades físicas, tais como densidade, coeficiente de viscosidade, quando os sujeitos dizem que a água que irriga a lavoura deve ser “branquinha e fininha”. Analisando estas propriedades citadas pelo trabalhador, encontramos a noção de viscosidade que se manifesta “quando um fluído se movimenta por escoamento laminar, como se fosse constituído de lâminas que se deslizam umas sobre as outras.“ (JORGE, 1985) Segundo este autor, a viscosidade é uma propriedade que mede a resistência do fluído ao deslizamento ou fricção interna, depende da concentração de solutos e da temperatura e é definida como a força por unidade de área (F/A) para manter uma diferença de velocidade de 1 cm/s entre duas lâminas paralelas separadas em 1 cm. Os motoristas sabem disto e, por esta razão, aquecem seus veículos antes de partir, para que o óleo circule melhor, lubrificando o motor.

A Física deveria ser sempre investigada em fenômenos naturais. Ela implica na evolução agrícola, no domínio das técnicas assim como seu melhor aproveitamento rural. Embora sua importância e aplicabilidade sejam infinitas, muitas vezes não são reconhecidas como Física e algumas vezes ela surge rotulada genericamente como “ciências”.

O senso comum dos trabalhadores rurais nos faz pensar em outras situações em que usamos ciência sem notar o seu caráter e nos faz refletir da importância dos pequenos atos.

A historicidade de um povo, de uma cultura, são bases para a evolução científica de uma nação e, por isso, investigar tais práticas nos faz perceber a relação entre e a Física e a realidade. Muito mais do que apenas uma rotina, ainda que de uma das principais culturas agrícolas do Brasil, esta pesquisa mostra a importância científica da atividade rural, tornando-se um excelente meio na prática do ensino de Física e de se tentar uma interdisciplinaridade entre as ciências.

ConclusõesO presente trabalho, embora ainda preliminar, apresenta uma

alternativa de conhecer e usar a Física e a Matemática através da um contexto cultural e econômico diferente do habitual. O contato com os trabalhadores rurais mostra como saberes populares estão impregnados de saberes científicos, desde conceitos físicos da mecânica na utilização de maquinário na lavoura à utilização de proporções, cálculos de áreas e estimativas na produção do arroz. Analisando os dados coletados percebe-se que investigar o trabalhador em sua prática rotineira é mais que apenas uma simples pesquisa, é pertencer a um ambiente onde a Matemática e a Física, mais do que estarem presentes na sua realidade, são a própria realidade, sendo utilizadas o tempo todo, desde o levantar ao deitar. Conversar, investigar, conhecer outra rotina, embora trabalhosa no início, e às vezes até problemática, nos faz perceber e compreender o que é cultura, o que é história, o que é individualidade e ao mesmo tempo generalização, nos faz entender cada gesto, cada ato, cada conquista e ver que cada um tem seu próprio modo de ver a realidade e que devem respeitados por isso.

O arroz nos mostra que, além de importante para a dieta do ser humano, pode ser uma inesgotável fonte de assuntos cotidianos que podem ser trabalhados com a parte teórica da Ciência. Por outro lado, como a Ciência não pode estar desligada da realidade, a Etnofísica nos mostra

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como podemos fazer essa ligação e a sua vantagem de usá-la, uma vez que, quando conseguimos trabalhar conceitos de uma forma que faça sentido para o educando, então conseguimos fazer educação. Educar é muito mais que transmitir conhecimentos, é compreender na realidade o fundo científico e social de cada coisa.

Esta pesquisa trata de tema atual e significativo para o Ensino de Física, pois investiga como saberes comuns poderiam ser tratados na prática docente do ensino de física, assim como na Matemática, Química e Biologia, bastando apenas mudar o enfoque de investigação.

A ESSÊNCIA DA MATEMÁTICA NA PRÁTICA DOS PRODUTORES

RURAIS: UM ESTUDO ETNOMATEMÁTICO

Maria Elene Mallmann, Mestranda, PPGECIM, Ulbra/CanoasRenato Pires dos Santos, Doutor, PPGECIM, Ulbra/Canoas

O propósito desta pesquisa é desvelar como pessoas adultas pouco escolarizadas pensam e solucionam problemas matemáticos presentes em suas vidas e em seus diferentes contextos, a partir de seus saberes não-formais. Necessita-se compreender eventos e situações vivenciadas por essas pessoas com pouca escolaridade para que possamos possibilitar a instauração de nova propostas para o ensino de Matemática. Sendo assim, contribuir com a literatura no campo da Educação Matemática de Jovens e de Adultos. No decorrer de um semestre, a partir de visitas nas residências de produtores rurais em diversas localidades da região do Vale do Taquari, no estado do Rio Grande do Sul, a coleta de dados foi realizada. Tem como sujeitos dezesseis pessoas trabalhadoras com pouca escolaridade. Esta pesquisa tem como marco teórico a Etnomatemática de Ubiratan D’Ambrosio. A modalidade da pesquisa ancora-se na perspectiva qualitativa com abordagem fenomenológico-hermenêutica. A pesquisadora tem a preocupação de socializar a intenção da pesquisa e de buscar por supostas contribuições que possam enriquecer o trabalho. Este estudo é interessante como forma de buscar idéias para o ensino de Matemática no que diz respeito à Educação de Jovens e de Adultos.

Considerações iniciaisEstamos experienciando, no Brasil, uma batalha ardorosamente longa

contra o analfabetismo e a favor do direito que todos têm em adquirir bens culturais. Com muitos anos de atraso e poucos anos de dedicação, os governantes voltaram seus olhares para que literalmente a Educação de Jovens e de Adultos aconteça. Duarte (2001) afirma que

O ensino de matemática para alfabetizados adultos tem sido uma área quase que totalmente abandonada. Aqueles que trabalham com educação de adultos têm, em geral, um receio em relação à matemática e, em sua maioria, considera o ensino para adultos um problema secundário, ou, pelo menos, como sendo um problema não pertencente à sua área de atuação.

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As tentativas de superar esse abandono quase sempre têm se reduzido a adaptações precárias de metodologias criadas inicialmente para o ensino infantil.

Pesquisadores, incentivados por seus governos, buscam através de seus estudos contribuir para que se consolidem novas estratégias didático pedagógicas para esta modalidade de ensino. Haja vista que, para a consolidação destas novas estratégias de ensino para a Educação de Jovens e de Adultos, a comunidade científica é o agente principal deste processo, pois realizam pesquisas e devem fazer com que elas reflitam suas contribuições na Educação e, automaticamente, na sociedade. Danyluk (2001, p. 15) manifesta sua preocupação sobre o tema e diz que “conhecer como os jovens e adultos não escolarizados pensam e aprendem pode possibilitar novas ações em relação a esse território da educação. [...] Processos de construção, de conhecimento sobre a forma de aprendizagem dos adultos são fenômenos que podem ser mais bem explorados por educadores brasileiros.” Com este exemplo, constata-se que realmente há pesquisadores preocupados em alterar a situação atual a partir de suas iniciativas. Há muito que ser refletido, analisado e compreendido nas pesquisas em ensino ligadas à Educação de Jovens e de Adultos e ao ensino em sua totalidade.

Embora se fale muito no assunto, um dos grandes obstáculos enfrentados pelos educadores matemáticos e pelos pesquisadores da área é a falta de literatura que fale do ensino de Matemática na Educação de Jovens e de Adultos. Esta é uma das razões para a realização desta pesquisa.

No que diz respeito ao ensino de Matemática, há muito que ser estudado. Mas, o foco deste estudo será o pensamento1 e o caminho2 da resolução de problemas matemáticos presentes no cotidiano dos indivíduos e sobre a consciência que eles têm dessas tarefas realizadas em relação à Matemática. Valendo-me das palavras de D´Ambrosio (1990, p. 7), no que diz respeito ao enfoque etnomatemático desta pesquisa, “queremos entender esse processo que vai da realidade à ação”.

Os saberes matemáticos que são ensinados de geração para geração é uma face interessante de ser percebida neste trabalho e, dessa forma, verificar as transformações que ocorreram no decorrer dos anos. As formas de atuação do indivíduo no meio, são constituídas de maneira que atendam às necessidades de cada um, para serem partilhadas e aprendidas socialmente. Knijnik (1996, p. 74) nos diz que a Etnomatemática “tem um enfoque abrangente, permitindo que sejam consideradas, entre outras, como formas de Etnomatemática: a Matemática praticada por categorias profissionais específicas, em particular pelos matemáticos, a Matemática escolar, a Matemática presente nas brincadeiras infantis e a Matemática praticada pelas mulheres e homens para atender às suas necessidades de sobrevivência.” Nestes casos, a linguagem matemática atua, portanto, como um processo comunicativo interpessoal, no que diz respeito aos mesmos problemas que são resolvidos em suas vidas de geração em geração onde as informações são talvez alteradas de acordo com as tecnologias ao alcance dessas pessoas ou talvez transmitidas parcialmente dentro da sua sociedade e da sua cultura.

É necessário conhecer como essas pessoas poucos escolarizadas pensam e aprendem, além de verificar a articulação das informações matemáticas que utilizam para resolver seus problemas. D’Ambrosio (1990, p. 74) faz referência à necessidade de epistemologias alternativas para

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explicar formas alternativas de conhecimento. Dessa forma, obtendo essa compreensão, nos possibilitará a instauração de novas propostas para o ensino de Matemática. Nós fazemos a história, somos parte de um conjunto, do qual devemos pensar, elaborar e reelaborar essas propostas pedagógicas. Vale lembrar o que diz Freire (2002, p. 58): “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de que cuja feitura tomo parte de um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.” E ainda Freire (2002, p. 58) diz que “as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.”

Abreu (1988) nos mostra, em sua pesquisa etnográfica realizada no Nordeste brasileiro entre 1986 e 1988, que os produtores de cana-de-açúcar usam recursos diferentes para raciocinar matematicamente, comparados com os que se ensinam na escola; que existe diferença entre seu conhecimento e os programas escolares e que isso se constitui em um obstáculo. Diversos estudos mostram que apesar das dificuldades de aprendizagem da Matemática na escola, aqueles sujeitos demonstram aptidão quando se trata de resolver problemas ligados às suas atividades extra-escolares, menciona a pesquisadora. Ilustrando as considerações citadas, Abreu explica que para calcular a superfície de uma parte triangular de terras, por exemplo, a fórmula básica que eles utilizam consiste em multiplicar a média de dois lados opostos pela metade do comprimento do último lado. Certos agricultores tratam o triângulo como se tratasse de uma figura de quatro lados, o comprimento de um dos lados é definido por eles como igual a zero.

Knijnik (1996) traz um exemplo semelhante decorrido de sua pesquisa de doutoramento no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) em Braga/RS nos anos de 1991 e 1992. Este exemplo traz o discurso de um dos alunos que se prontificou a explicar o método que era praticado em sua comunidade para a cubação da terra:

Bem, pessoal, esta então é a fórmula mais comum que aparece lá no interior, lá no alto da roça, né. E vamos supor que eu sou o dono da lavoura. Eu comprei este quadro3 aqui, ó, pro indivíduo carpir 4. Eu disse pra ele que eu pagava três mil a quarta5. Ele carpiu a área, ele mesmo passou a corda6 e achou essa área aqui. Então, ele mediu esta parede aqui, 90 metros, a outra, 152 metros, 114 metros, 124 metros. Vocês notaram que nenhuma parede, nenhuma base, nenhuma altura tem a mesma medida, né? Tá. Então eu fiz o seguinte aí, né: eu somei as bases e dividi por 2. Achei 138. Então a base é 138 aqui e 138 ali, entendido? Então, eu tenho aqui as duas alturas, 114 mais 90. Achei 204; dividido por 2, 102, né? Então, esta aqui desapareceu, e então [...] agora é só multiplicar a base vezes altura. [Adão faz a multiplicação no quadro-verde] Tá, acho esse aqui, né. 14076 metros quadrados tem essa área que ele carpiu. [...] (1996, p. 33).

Para exercer suas atividades no âmbito profissional ou pessoal, estes indivíduos recebem diferentes níveis de solicitação para utilizar o sistema simbólico da escrita, são também compelidos a matematizar, ou seja, estabelecer relações quantitativas e explorar as formas espaciais no mundo físico em diversos níveis de complexidade, generalidade e sistematização (CARVALHO, 1995, p. 2).

Ademais, realizar um tipo de estudo com este recorte parece ser relevante, não apenas para caracterizar este tipo de pesquisa que será

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produzida acerca das atividades desenvolvidas por adultos pouco escolarizados mas também para que supostamente enseje uma contribuição para este segmento de ensino.

“Admitindo que a fonte primeira de conhecimentos é a realidade na qual estamos imersos, o conhecimento se manifesta de maneira total, holisticamente e não seguindo qualquer diferenciação disciplinar.” (D´AMBROSIO, 1990, p. 8). A partir das tentativas de compreender um evento ou uma situação vivenciada pelos sujeitos da pesquisa surgirão supostas explicações, contribuições que emergirão juntamente com os resultados com naturalidade e espontaneidade e que servirão para dialetizações sobre o tema. Este estudo poderá fornecer subsídios relacionados para re-interpretações futuras de seus supostos aspectos relevantes à luz de teorias cogniscitivas.

A EtnomatemáticaA gênese do Programa de Pesquisa Etnomatemática (D’AMBRÓSIO,

1993, p. 6) acontece a partir de experiências e de pensamentos de Ubiratan D’Ambrosio na década de 1970 onde produziu seus primeiros trabalhos neste campo de estudos. A etimologia da palavra Etnomatemática diz que

etno é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e portanto inclui considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamento, mitos e símbolos; matema é uma raiz difícil, que vai na direção de explicar, de conhecer, de entender; e tica vem sem dúvida de techne, que é a mesma raiz de arte e de técnica. Assim poderíamos dizer que etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender-nos diversos contextos culturais. Nessa concepção, nos aproximamos de uma teoria de conhecimento ou, como é modernamente chamada, uma teoria de cognição (D’AMBRÓSIO, 1990, p. 5).

A Etnomatemática surgiu como uma nova área, no Quinto Congresso Internacional de Educação Matemática, que se realizou em Adelaide, Austrália, em agosto de 1984, mostrando uma tendência definitiva sobre preocupações socioculturais e evidenciando fortemente a mudança qualitativa na Educação Matemática. Em relação a esta mudança qualitativa na Educação Matemática pode-se lembrar que a Educação igual para todos começou a dominar os ideais e aspirações políticas dos países a partir da Segunda Guerra Mundial. Vinte anos após, o clima questionador aflorou, e conseqüentemente a mudança qualitativa (D´AMBROSIO, 1990, p. 12).

A definição de Etnomatemática a partir das palavras de D’Ambrosio (1990, p. 7) diz que a “Etnomatemática é um programa que visa explicar os processos de geração, organização e transmissão de conhecimento em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem nos e entre os três processos.” Em relação a esta definição, Knijnik apresenta argumentos de Lizcano7 onde diz que

Esta definição do objeto de estudo da Etnomatemática implica em considerar, entre outras, como formas de Etnomatemática: a Matemática praticada por categorias profissionais específicas, em particular pelos matemáticos, a Matemática escolar, a Matemática presente nas brincadeiras infantis e a Matemática praticada pelas mulheres e homens para atender às suas necessidades de sobrevivência. Portanto, nesta abordagem, a Matemática, como usualmente é entendida – produzida

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unicamente pelos matemáticos – é, ela mesma, uma etnomatemática. Olhar para esta particular etnomatemática a partir das práticas populares, como propôs Lizcano em seu jogo argumentativo, abre possibilidades para melhor compreender a matemática na qual fomos educados e aquelas que buscamos resgatar do esquecimento coletivo (2004, p. 24).

Com a intenção de clarificar ainda mais esse programa, em direção à sua definição, D´Ambrosio (1990, p. 9) expressa sua intenção dizendo que o programa Etnomatemática pretende abarcar também o enfoque à História, que consistirá de uma análise crítica da geração e produção de conhecimento, da sua institucionalização e da sua transmissão. Logo, envolve respectivamente a criatividade, a academia e a Educação.

Atualmente, a Etnomatemática tem provocado vários estudos em torno de seu referencial, que mostram práticas matemáticas de vários grupos culturais. Essas práticas, muitas vezes, são realizadas de forma muito mais complexa do que as que são ensinadas na escola. Os estudos vêm buscando a forma do pensamento matemático desses grupos; sua forma de contar, de ordenar, de medir, de pesar, de utilizar a lógica, entre outros. Além disso, verificam a linguagem e a escrita matemática.

D’Ambrosio (1990) assume um conceito abrangente de ciência, que permite analisar práticas comuns que aparentemente são formas desestruturadas de conhecimento. Isso resulta de um conceito de cultura que é o resultado da hierarquização do comportamento, passando do individual ao social e indo para o cultural, e se baseia no modelo de comportamento referido no ciclo... realidade – indivíduo – ação – realidade ... [...] O conceito de ciência que resulta desse modelo permite a inclusão do que pode ser considerado como práticas marginais de natureza científica, inclusive algumas das etnociências. Naturalmente, essas práticas comuns estão impregnadas de conotações ideológicas enraizadas na textura cultural do grupo de participantes (p. 77).

Esse referencial teórico possui um enfoque que fica entre a história da ciência e a antropologia cultural e tem a possibilidade de auxiliar na compreensão deste estudo. Dessa forma, dar subsídios para uma fundamentação mais consistente no que tange à resolução de problemas matemáticos da vivência das pessoas que serão os sujeitos da pesquisa.

ObjetivosEsta pesquisa tem como objetivo geral descobrir como pessoas adultas

pouco escolarizadas pensam e solucionam problemas matemáticos presentes em suas vidas e em seus diferentes contextos, a partir de seus conhecimentos nãoformais. Em relação aos objetivos específicos, destacam-se entre outros os seguintes: perceber o modo que as pessoas pouco escolarizadas experenciam a Matemática em seu dia-a-dia; averiguar em que situações utilizam concepções matemáticas alternativas em suas atividades diárias; experenciar junto aos sujeitos da pesquisa, quando julgado necessário, o processo de resolução dos problemas matemáticos vivenciados por elas em algum momento de suas vidas; comparar algumas situações relevantes, delimitadas pelo problema da pesquisa, com fatos históricos no campo das ciências exatas; divulgar os resultados da pesquisa em eventos científicos, revistas e periódicos, com o intuito de contribuir com as literaturas de Educação de Jovens e Adultos e de Educação Matemática para essa modalidade de ensino.

Metodologia

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Os sujeitos da pesquisa são dezesseis trabalhadores, entre homens e mulheres de diversas idades, pouco escolarizados e de diferentes localidades do interior de alguns municípios da região do Vale do Taquari. As atividades foram realizadas em três momentos. No primeiro momento, realizaram-se entrevistas introdutórias com os sujeitos da pesquisa para a obtenção de informações sobre a idéia de modelo matemático, sua aplicação em seus diferentes contextos de vida e indagar aos sujeitos da pesquisa sobre a importância da Matemática e o que ela representa em suas vidas. Em um segundo momento, com os mesmos sujeitos, buscou-se relatos de vivências, onde os sujeitos da pesquisa criaram modelos matemáticos para solucionar problemas. Neste momento a escrita matemática foi significativa. Dessa forma, os registros foram buscados, a fim de que os sujeitos demonstrassem os processos que utilizaram para solucionar os problemas matemáticos experenciados por eles. A partir das experiências relatadas pelos sujeitos foram propostos problemas para que solucionassem. Neste terceiro momento foram coletados os registros utilizados para a solução destes problemas. Todos os momentos foram gravados e posteriormente transcritos.

Visto que a pesquisa ainda está em andamento, a análise dos dados está sendo realizada, de acordo com a modalidade fenomenológico-hermenêutica, em dois momentos. Primeiramente, realizou-se a análise dos aspectos individuais e, posteriormente, será realizado as análises ideográfica e nomotética (MACHADO, 1994).

Considerações finaisA partir da indagação colocada como base fundamental e de suas

tendências, verificam-se as intenções delimitadas pelas lacunas que percebo em relação ao ensino da Matemática. Nos estudos onde os pesquisadores buscaram compreender as matemáticas realizadas por grupos culturais, percebo que após os resultados obtidos parece ser difícil romper os paradigmas atuais e criar novas formas de pensar o ensino da Matemática, um ensino que seja voltado ao interesse de cada região brasileira. Pouco se percebe, mas talvez já estamos nos direcionando para este caminho.

Grando (1988) diz que:

A matemática vem sendo desenvolvida na escola como uma ciência formal, onde o conhecimento matemático, de um modo geral, é construído independente de questões ligadas aos diferentes contextos sociais. [...] A matemática, então, não existe apenas como ciência formal, onde os conhecimentos são construídos no âmbito escolar; a matemática também existe nas mais diversas atividades profissionais. Nessa matemática, como ciência para o homem, os conhecimentos são construídos através da necessidade de resolver os problemas diários de trabalho (p. 1).

Carvalho (1995, p. 3) manifesta sua preocupação com a Educação de Jovens e de Adultos dizendo: “Se já constatamos a negação do conhecimento matemático adquirido fora da Escola nos cursos regulares, a situação agrava-se nos destinados à Educação de Jovens e Adultos.” A não aceitação da “Matemática advinda da prática” (CARVALHO, 1995) nas instituições escolares é talvez um fator que deixa transparecer o não preparo dos professores e responsáveis pela Educação brasileira em integrá-la com a Matemática sistematizada.

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Sabendo-se que a Matemática produzida pelos diferentes grupos culturais não é universal e que essas pessoas têm suas próprias matemáticas, qual a importância de compreender seus significados? Knijnik (1996, p. 74) nos diz que “a Etnomatemática, ao colocar o conhecimento matemático acadêmico como uma das formas possíveis de saber, põe em questão a ”universalidade” da Matemática produzida pela academia.”

Será que a descoberta de como a resolução de problemas matemáticos acontece a partir de conhecimentos não-formais pode influenciar na criação de novas propostas para o ensino de Matemática? Será que desvendar a forma como as pessoas pouco escolarizadas solucionam seus problemas matemáticos pode contribuir para o ensino de Matemática na Educação de Jovens e de Adultos?

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ETNOASTRONOMIA: COMO INDÍGENAS VIAM OS CÉUS PARA GUIAR A VIDA NA AMAZÔNIA

MANAUS – Quando o matemático Galileu Galilei apontou um telescópio de 30 aumentos para os céus em 1609, acreditava-se ser o primeiro registro do que mais tarde viria a se tornar a ciência da Astronomia. Porém, registros históricos de tribos amazonenses do Sul do Estado mostram que os povos indígenas utilizavam os céus para controlar a rotina na terra. Personagens da fauna e da flora amazônicas ilustravam previsões das ações humanas séculos antes de Galileu ser conhecido como o pai da Astronomia.

A Etnoastronomia, como ficou conhecida a ciência adaptada pelos indígenas amazônicos, é estudada pelo astrônomo Germano Afonso. O cientista, descendente de índios, trabalha com esta área da Astronomia há mais de duas décadas – tempo suficiente para que o especialista entendesse a dinâmica em relação à observação dos céus. Ele contou ao portalamazonia.com sobre como a vida indígena depende dos sinais celestes: “É o verdadeiro manejo do mundo deles a partir do céu amazônico. Eles desenvolveram estas práticas séculos antes de Galileu olhar para os céus”.

No decorrer das duas décadas de estudo, Afonso visitou diversas etnias pelo Maranhão, Pará e Sul do Amazonas, como a Desana. A maioria das tribos apresentou culturas ágrafas, sem registros históricos escritos. Afonso procurou o conhecimento então nos curandeiros de cada povo: os pajés. Um deles era o pajé Raimundo Kissib, de 65 anos, da Comunidade Indígena de Tupé. A história da Etnoastronomia na vida do líder começou aos dez anos de idade, quando o pai de Kissib o chamou para contar histórias sobre os céus.

A formação do curandeiro durou cinco anos e, após diversas noites de conversas, o jovem índio passou por um teste do patriarca. “As aulas começavam às dez da noite e seguiam até três da manhã seguinte. Meu pai me fez repetir todas os conhecimentos passados a mim para saber se estava pronto para um dia me tornar pajé da nossa tribo”, contou o indígena ao portalamazonia.com.

O astrônomo logo percebeu que, ao ver certa figura – como uma serpente -, os indígenas sabiam que era época de seca dos rios, além de marcar as épocas de inverno e verão no Amazonas. O conhecimento ultrapassou as afirmações de Galileu. “Quando Galileu disse que o posicionamento da Lua não influenciava nas épocas de chuva, os Desana já mostravam habilidade em mover as cabanas para áreas com menor risco”, contou Afonso.

Calendário ameaçadoO especialista disse que poucas tragédias ambientais aconteciam aos

povos usuários da etnoastronomia. Hoje em dia, a realidade é diferente da

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tranquilidade registrada pelos antepassados do pajé Raimundo. Segundo o líder indígena, as mudanças climáticas influenciaram de maneira desastrosa no calendário Desana. “Não podemos mais ter completa certeza de que a chuva está próxima, porque muitas vezes elas acontecem até na época do ano que não tinha chuva”, lamentou.

O trabalho de Afonso pretende mudar este cenário fora de controle. Além de recolher os dados para compreender a cultura etnoastronômica, o cientista planeja, juntamente às tribos, formular novos calendários que se encaixem às mudanças climáticas recentes. “Eles regulavam com perfeição o modo de vida deles. Dependendo de uma determinada constelação, podiam colocar a cabana próxima aos rios. Sabiam até as épocas de plantar e colher as safras. Precisamos fazer com que estes povos voltem a ter a tranquilidade de antes”, comentou o astrônomo.

A ação consiste em ir às aldeias e recolher as informações de mudanças dos últimos anos. A partir daí, acontece a análise em laboratórios tecnológicos para verificar que mudanças ocorreram e como afetam o calendário indígena.

Preservação culturalEnquanto a criação de novos calendários ainda é negociada entre as

etnias e os estudiosos, Afoso explicou que é importante manter viva a arte de apreciar os céus para entender a terra. Para isso, ele e a equipe técnica trabalham em cartilhas com as informações. Os folders são entregues às gerações mais recentes dos indígenas. “Até agora, eles só passam o conhecimento verbalmente. Será mais fácil preservar isso com a palavra escrita”, contou o especialista.

Raimundo conta que o trabalho tem beneficiado ainda a preservação da cultura indígena passada a ele há gerações. “Tenho nove netos e alguns já iniciaram os estudos comigo sobre os céus. O importante é preservar o que nossos ancestrais deixaram para nós como ferramenta de trabalho e deixar tudo escrito é uma forma de continuar a olhar os céus para realizarmos as atividades na terra”.

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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO ACRE

CAMPUS CRUZEIRO DO SULLICENCIATURA EM MATEMÁTICA

ETNOMATEMÁTICA

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Cruzeiro do SulMaio de 2012

Emerson Lima da SilvaGiovani Negreiros dos Santos

James Mendonça OliveiraJames Santos da Rocha

Joabe Fontes MoraisMaria Jaqueline Pereira

Samanda Nogueira PequenoTácila Jamine Gomes Pinto

Síntese de diferentes tipos de etnomatemática e artigos relacionados, apresentada á disciplina de Sociologia Geral do 1º Semestre do Curso de Licenciatura em Matemática, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Acre – Campus Cruzeiro do Sul.

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Cruzeiro do SulMaio de 2012