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TRABALHADORES EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE: Contradições e Desigualdades no Bairro Jardim Santa Felicidade

(Cascavel – PR)

Autora: Flora Gemelli Bof1

Orientadora: Sheille Soares de Freitas2

Resumo

O trabalho apresentado a seguir propõe problematizar – a partir das atividades desenvolvidas com estudantes da Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade – o uso do rio Coati Chico da Margem Esquerda que corta o bairro Jardim Santa Felicidade, destacando como modos desiguais de se viver na cidade estão associados a certas práticas e moradias nas Áreas de Preservação Permanente. A partir da experiência social desses estudantes e da investigação dessa problemática indico, nesse texto, as possibilidades de análise dessas relações tensas e conflitantes na cidade de Cascavel-PR. Para tanto, utilizei entrevistas, imagens, legislação, reportagens etc., como também me baseei nos debates e leituras de apoio para a reflexão crítica e teórica dessa temática, discutindo conceitos muitas vezes naturalizados em nossa sociedade, como a noção de preservação e educação ambiental. O artigo tem o intuito de vincular a proposta da Secretaria de Educação do Estado do Paraná – de introduzir a história do Paraná no currículo escolar – ao interesse reflexivo da disciplina de História, permitindo aos estudantes recomporem processos históricos, percebendo-se como parte deles. Ao fazer isso, coloquei em pauta a discussão e enfrentamento de conflitos sociais que envolvem ocupações irregulares, inundações, doenças, mau cheiro, contaminação de rios e o lugar onde moravam. O objetivo, portanto, é analisar esse processo histórico evidenciando as tensões sociais e os interesses envolvidos nos sentidos de preservar e transformar práticas, permitindo a estudantes e professores avaliarem a “questão ambiental” pelo prisma das disputas sociais que fazem essa proposição se colocar em nossa sociedade.

Palavras-Chave Trabalhadores; Modos de vida; Áreas de Preservação Permanente; Cascavel;

Preservação.

1 Pós-Graduada em Ensino de Geografia e História, Graduada em História pela UNICENTRO, Professora da Rede Estadual de Educação Básica (SEED-PR).2 Doutora em História, Professora Adjunta do Curso de História/UNIOESTE, Campus de Marechal Cândido Rondon.

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1. Introdução

O debate em torno das questões ambientais envolve o modo como essa

questão aparece vinculada ao viver socialmente. Portanto, é importante pensar

como essa problemática se encontra intrínseca às relações e restrições sociais de

moradia, saneamento básico, coleta de lixo, cuidados contra contaminações e

enchentes nos arredores de rios e córregos. Uma preocupação que chega à sala de

aula por meio desse projeto para permitir discutir a cidade em que vivemos e as

questões contemporâneas que vinculam sociedade e meio ambiente, ultrapassando

a noção de produção de políticas de preservação/conscientização.

Tanto o Poder Público, quanto empresas e as propostas educacionais de

modo geral têm demonstrado interesse em tais questões. O sistema educacional

tem se empenhado em promover um programa de educação ambiental no currículo

escolar, propondo uma prática, intitulada, por vezes, como “conscientização

ambiental”. Avalio que uma política educacional que prime por promover a

preservação seja necessária, mas acredito também que apenas isso não baste e,

mesmo essa, não pode ser feita à parte da realidade social que destaca o uso

dessas áreas por determinados sujeitos.

O projeto que norteia este trabalho busca enfatizar as relações sociais e os

interesses presentes nas áreas reservadas à proteção ambiental, onde é possível

encontrar certos trabalhadores vivendo nessas regiões e tendo que lidar com a

organização desigual do espaço urbano. Uma realidade comum nas cidades

brasileiras. É notório, contudo, que a preocupação em estudar as práticas e relações

firmadas, envolvendo sociedade e meio ambiente, não têm sido muito recorrente

entre os historiadores, no ensino de história, no sentido de vincular o modo como

vivemos às questões e políticas ambientais que atuam sobre as condições de vida e

no trato das moradias de determinados trabalhadores empobrecidos.

Embora esse debate tenha sido mais comum à Geografia ou à Ecologia,

intencionamos ao realizar esse projeto problematizar essas questões, destacando os

usos e desigualdades que permeiam as Áreas de Preservação Permanente (APPs),

demarcadas no âmbito de políticas públicas de preservação ambiental. O interesse é

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perceber como moradores dessas áreas lidam com o Poder Público e demais

setores da sociedade, visto que este debate tem sido muitas vezes, deixado de lado

quando se fala em preservação ou educação ambiental.

A preservação da natureza fica, muitas vezes, como discussão principal,

deixando à revelia a proposição de alternativas de mudança para famílias de

trabalhadores que são enquadradas em “crimes ambientais” e têm a desapropriação

justificada em função de tal preservação. Enquanto outros crimes ambientais; como

desmatamentos, ocupações indevidas em áreas verdes feitas por condomínios de

luxo e resorts, contaminação de rios e mananciais por defensivos agrícolas e

produtos químicos de indústrias não são alardeados e punidos com a mesma

intensidade da prática de criminalização de trabalhadores que residem em áreas

tidas como APPs.

A análise dos interesses econômicos ou sociais presentes nas disputas por

essas áreas de preservação é, na maioria das vezes, menosprezada. Contudo, não

haverá proteção ambiental se não forem solucionados os problemas que levam à

degradação e à pobreza que empurra moradores de menor poder aquisitivo às áreas

de risco em APPs.

Ao fazer essas ponderações iniciais, tive a problematização em torno desta

realidade conflituosa como eixo a ser privilegiado ao longo do texto, levando em

consideração as práticas preservacionistas sem dissociá-las dos modos de viver

desiguais vinculados às APPs. Nesse sentido, observei os interesses que

pressionam os usos dados a tais locais e desenvolvi essa proposta envolvendo os

alunos da 5ª série da Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade, no ano de 2011,

na cidade de Cascavel-PR3.

O foco de debate sobre as relações sociais acima citadas, a partir do bairro

Jardim Santa Felicidade, localizado na região sul de Cascavel-PR, instigou os

estudantes a observar essa temática como uma questão que se associava à sua

realidade e, também, a experiências em outras cidades brasileiras. Eles lidaram com

um repertório que veio à tona ao relacionar divulgações da mídia, narrativas de

parentes e pesquisas incentivadas por esse projeto.

3 Ao todo 177 estudantes, divididos em 6 turmas, participaram deste projeto, com participações escritas e orais em sala de aula e realização de pesquisa com familiares a partir de um roteiro prévio de questões indicado em sala.

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Estes estudantes, mesmo que iniciantes no ensino de história analisaram os

usos dessas áreas de preservação a partir de relações próximas a eles, ou seja,

discutindo a realidade da APP presente em seu bairro; o fundo de vale do rio Coati

Chico da Margem Esquerda, que tem parte de seu percurso no bairro Santa

Felicidade, onde moram e estudam.

A atividade desenvolvida tinha o interesse de analisar como estudantes e

familiares interpretam a experiência de residir próximos ao rio, assim como discutir o

modo de indicarem as distintas condições de moradia e convívio social que são

comuns nessas áreas de vale em bairros populares e com forte demanda social. A

proposta estimulou que destacassem usos, cuidados, tensões sociais, motivando os

alunos a refletir sobre sua participação no processo histórico e como as

desigualdades sociais podem estar presentes nos seus modos de viver e de se

relacionar em sociedade e com o meio ambiente.

Ao fazer isso, discutimos como essa pesquisa permitia acessar valores,

intenções, disputas e modos de lidar com sujeitos e com a natureza. Essa

proposição sugeria analisarem as distinções nas condições de viver a cidade, como

também práticas que se vinculavam ao processo de preservação, noções de

proteção ambiental, desenvolvimento urbano e direito social.

Coloquei como questão, também, se os ocupantes de áreas próximas ao rio

enfrentavam/enfrentam problemas com relação a outros moradores do bairro e com

a Prefeitura, como ocorre em outros locais onde existem conflitos em Áreas de

Preservação Permanente envolvendo moradores e Poder Público. Para tanto, foi

essencial a discussão baseando-se em diversas fontes, tais como: reportagens,

entrevistas, imagens, mapas, fotos de satélite, textos, cartilhas educacionais, dentre

outros.

Essa discussão permitiu a participação ativa dos alunos, onde a experiência

dos mesmos e de suas famílias foi de suma importância, tendo relevância à

pesquisa realizada com seus pais/responsáveis, ampliando, assim, as discussões e

envolvendo a comunidade neste processo de produção do conhecimento histórico,

resultando nas análises presentes neste trabalho.

Diante disso, propus desenvolver neste artigo uma avaliação de todo o projeto

e das questões suscitadas em sala de aula, partindo das pesquisas e atividades

realizadas pelos estudantes, em associação com a pesquisa que realizei para dar

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suporte ao desenvolvimento desse projeto; como entrevistas, análise de jornais e de

outras produções que contribuíram para o debate bibliográfico.

O envolvimento da comunidade escolar neste trabalho foi importante e

baseado em experiências em sala de aula, pois esta pesquisa faz parte do

Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), que parte de uma problemática

ligada à realidade da escola e do bairro em que ela se insere. A escolha do tema,

envolvendo as APPs locais, também se deve a área de estudo escolhida no

programa, “Paraná: História e Historiografia”. Além disso, ao lidar com a proposta de

História do Paraná no currículo escolar, esse projeto atende à lei 13.381/01, que

tornou obrigatório essa tematização nas escolas públicas do estado.

Assim, justifica-se este estudo pela relevância da questão ambiental na

atualidade; observando-a nas disputas sociais empreendidas pelos desiguais

sujeitos que formam nossa sociedade e compõem o processo histórico. Além disso,

o envolvimento dos alunos e comunidade escolar neste processo e a percepção que

produzem sobre essas relações foram fundamentais para a efetivação dessa

proposta; atendendo tanto à necessidade de desenvolver um estudo e um material

sobre História do Paraná a ser trabalhado e discutido em sala de aula, como

também ao interesse de levantar proposições que motivem transformar nossa visão

de mundo e atuação em sociedade4.

2. Usos e enfrentamentos nas Áreas de Preservação Permanente

Sabemos que determinadas pressões impulsionaram ao longo de décadas a

degradação ambiental no Paraná, sejam vinculadas às condições de vida, seja pela

exploração intensiva dessas áreas sem a preocupação com o desequilíbrio

ambiental. É o que comumente se chama de degradação ambiental, o que traduz

muito mais que uma devastação indiscriminada, associada a interesses por madeira

4 Essas questões foram organizadas e planejadas a partir do projeto: BOF, Flora G. Usos da Preservação: as Áreas de Preservação Permanente no campo da tensão social (Cascavel-PR). Programa de Desenvolvimento Educacional, UNIOESTE/SEED-PR, 2011.

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e ocupação do território como determinada produção acadêmica procurou analisar e

destacar historicamente como questões da ocupação no estado do Paraná5.

O modo como se promoveu os interesses colonizadores do governo

paranaense, garantindo às empresas de colonização esse empreendimento, contou

com a adesão de muitos sujeitos (de trabalhadores rurais a grandes proprietários)

que eram motivados por propagandas de um solo fértil a buscarem esta região. Essa

ação expressava o interesse por uma vida melhor do que a vivida em outras regiões,

principalmente para trabalhadores rurais e pequenos proprietários, o que parecia

justificar as alterações firmadas no desmatamento, promovido pelo Estado e grupos

empresariais, com interesse em incentivar uma ocupação lucrativa nessas áreas.

Estes sujeitos partilharam de um modo de pensar onde não havia lugar para a

preservação ambiental, onde esse modo de ocupar era garantido, pois a floresta

representava para eles a não ocupação e entrave ao “desenvolvimento” do Paraná,

como destaca Carvalho e Nodari, indicando que durante a década de 1950 avaliava-

se que “o desflorestamento é a chegada da civilização, do progresso, do

desenvolvimento”6 e, mais, do lucro advindo de atividades de colonização, extração

de madeira e da agricultura.

As atuais políticas de preocupação com a conservação ambiental, atentando

ao processo contínuo de diminuição de reservas, provocada pela ocupação do

território da forma como se deu, procuram agora transformar remanescentes de

vegetação nativa em Áreas de Preservação Permanente (APPs)7. Pela legislação

ambiental tais locais devem ser resguardados para a preservação. Mas seu uso, na

prática, serve a interesses mais amplos; a disputas econômicas e sociais

envolvendo o Poder Público, empresas e os trabalhadores empobrecidos das

5 Sobre a questão da atividade madeireira na ocupação do Paraná, conferir os textos: OLIVEIRA, Joelson et NUNES, Rogério. O agronegócio da madeira no Paraná: destruição ambiental e trabalho escravo ou: ainda nos chamam de eco-ditadores! Disponível em: < http://atitudesocialunimontes.blogspot.com/2007/08/o-agronegcio-da-madeira-no-paran.html> Acesso em: 21 fev. 2012; SCHNELL, Rogério. O ciclo da madeira no Paraná. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/5-2.pdf > Acesso em 21 fev. 2012; SILVA, Valdecido Pereira da. Madeira no Paraná. In: ALEGRO, Regina Célia (org.). Temas e questões para o ensino de História do Paraná. Londrina: EDUEL, 2008, p. 143 – 171.6 CARVALHO, Ely Bergo et NODARI, Eunice Sueli. A civilização e a barbárie nos jornais: o imaginário do “verde” em cidades de fronteira agrícola no Paraná (1954/2000). In: Revista de História e Estudos Culturais, v. 5, nº 2, ano V, p. 5, abr./mai./jun. 2008.7 Ver a Resolução que dispõe sobre parâmetros, definições e limites de APPs: BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. Resolução nº 303 de 20 de março de 2002. DOU, seção 1, p. 68, 13 maio 2002.

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cidades, que fazem deste local a sua oportunidade de ter onde viver do modo que

for possível, na ausência de melhores perspectivas.

Hoje a tentativa de estabelecer modos de morar perante os limites de

pagamento de aluguéis em outras regiões, ou mesmo o lidar com o desemprego e

alto custo de vida coloca as áreas de vale ou de mananciais como possibilidade de

moradia e manutenção da sobrevivência de muitos trabalhadores empobrecidos das

cidades brasileiras, inclusive presentes em Cascavel – PR. Muitos desses

trabalhadores correm o risco da expulsão. Em nome da preservação e da

organização da cidade, muitas vezes enfrentam pressões e disputas territoriais que

se dão de forma a perceber como “as práticas sociais [desiguais e classistas]

produzem o processo”, permeado por conflitos e expectativas de pertencimento.8

Em Cascavel, temos vários locais ditos de preservação que são alvos de

disputas e conflitos de diversas naturezas. Próximo a Cascavel também vemos que

alguns desses conflitos já acontecem há muito tempo, como é o caso da questão em

torno do fechamento da Estrada do Colono, dentro do Parque Nacional do Iguaçu9;

assim como enfrentamentos mais recentes, que envolvem a divisa do Estado com

Mato Grosso do Sul, onde antigos moradores reivindicam indenizações por terem

sido retirados de suas terras por ocasião da criação do Parque Nacional de Ilha

Grande10.

Em Cascavel, esses conflitos não têm tanta visibilidade na mídia, mas

existem de forma latente, pois a cidade possui diversos rios constituindo fundos de

vales em bairros, sendo considerados, em grande medida, como áreas de

preservação permanente. O entorno dessas áreas se encontra, muitas vezes,

intensamente urbanizado. Moradias e empresas ocupam grande parte das APPs da

8 Essa questão, bem como as discussões em torno das desapropriações envolvendo moradores e áreas de preservação, criação de parques lineares, o direito e a busca de pertencimento à cidade podem ser acompanhadas em: FREITAS, Sheille S. Uberlândia, patrimônio de quem? In: __________. Por falar em culturas... histórias que marcam a cidade. Uberlândia – MG . 290fl. Tese (Doutorado em História). Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2009. A autora analisa situações de uso das APPs e a disputa por esses territórios na cidade de Uberlândia-MG, embora essa problemática seja comum à nossa sociedade, permitindo com isso compartilhar reflexões sobre o uso das APPs.9 Sobre essa questão ver: AMBIENTE Brasil. Estrada do colono. Disponível em: < http://ambientes.ambientebrasil.com.br/natural/artigos/estrada_do_colono.html> Acesso em: 27 dez. 2011.10 Discussão pertinente sobre esses conflitos é possível observar no trabalho de: DIAS, Edson dos Santos. Estudo da situação das unidades de conservação do Oeste Paranaense. In: Anais... XVI Encontro Nacional dos Geógrafos, Porto Alegre, julho 2010.

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cidade, tanto próximas ao lago municipal, quanto nos fundos de vales11. O que irá

diferenciar a permanência e uso dessas áreas são as relações de poder que se

estabelecem para alterar e indicar as condições em que se mantém essa ocupação.

Segundo a Secretaria do Meio Ambiente, na área central há dificuldades para

a aplicação da lei de preservação das APPs, devido ao alto custo dos terrenos

nessa área para realizarem as indenizações. As motivações para essa ocupação

irregular das áreas de preservação podem ser variadas, assim como as pressões

para a retirada também, fazendo parte dessas justificativas de “motivação” os

interesses imobiliários, reordenamento urbano, denominações avalizadas pelo Poder

Público.

Essa é uma explicação comum utilizada pelo Estado para expulsar

determinado grupo de trabalhadores que vivenciam as restrições de acesso à

moradia e sustento familiar. Ao serem considerados inapropriados ao processo de

“desenvolvimento” municipal, são pressionados a cederem a outro projeto mais

viável para organizar a cidade.

Há alguns anos, muitos moradores de fundos de vale são retirados dessas

regiões, com a alegação municipal de exterminar a favelização em Cascavel e

preservar o meio ambiente. Muitos destes moradores, cerca de 200 famílias, foram

encaminhados para o Conjunto Lar Cidadão Julieta Bueno em 2002.12

Tal política não foi suficiente para resolver os problemas enfrentados por

esses trabalhadores, seja porque outros ocuparam as casas antes de todas as

famílias serem transferidas para o Conjunto Lar, seja porque continuam vivenciando

problemas vinculados à sua sobrevivência na cidade.13.

11 Para tal avaliação, torna-se interessante observar como esse mapeamento foi produzido pelo Poder Público, reconhecendo, inclusive, as áreas de conflito pela presença de trabalhadores com moradias nas APPs. Ver: CASCAVEL. Prefeitura Municipal de Cascavel. Diagnóstico socioterritorial do município de Cascavel. 2010. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/arquivos/15022011_diagnostico_socioterritorial_do_munica_pio_de_cascavel_2010.pdf.12CASCAVEL. Prefeitura Municipal de Cascavel. Habitação: favelas desaparecem do cenário de Cascavel. Disponível em: <http://www.cascavel.pr.gov.br/noticia.php?id=2257> Acesso em 28 dez. 2011; ver também MARIANO, Maicon. Ocupação e desigualdades no espaço urbano em Cascavel. Disponível em: http://www.historia.uff.br/estadoepoder/6snepc/GT9/GT9-MAICON.pdf, Acesso em 15 fev. 2012.13 PREFEITURA e polícia desocupam casas. O Paraná [online]. Disponível em: http://parana-online.com.br/editoria/cidades/news/21124/noticia=PREFEITURA+E+POLICIA+DESOCUPAM+CASAS Acesso em: 15 fev. 2012; outro texto divulgado sobre essa questão é possível observar em: < http://www.maiscascavel.com.br/news.php?news=1962> Acesso em 28 dez. 2011.

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a cidade ganhou em termos de preservação de fundos-de-vale, de onde as famílias foram retiradas, “e ganhou também em termos urbanísticos”. Durante o processo de transição, foi iniciado o desmanche dos barracos e a limpeza das áreas de fundos-de-vale, para preservar as nascentes e evitar novas ocupações. A Assessoria de Assuntos Comunitários e a Secretaria de Ação Social (Seaso) da Prefeitura de Cascavel realizaram o cadastramento dos beneficiados, que receberam instruções e atendimentos necessários para a reinserção social, inclusive preparação para o trabalho.14

Sob o ponto de vista do Poder Público, essa prática atende ao interesse pelos

deslocamentos de trabalhadores empobrecidos para outras regiões na cidade,

mesmo que afirmem que foi uma oportunidade “para que as famílias pudessem ter

dignidade”15. O que denominaram no título da matéria como “Favelas desaparecem

do cenário de Cascavel” aponta os conflitos que estavam em pauta. Apresentar

essas ações legítimas na organização “urbanística”, sugerindo melhoria nas

condições de vida desses sujeitos que precisavam ser “orientados” sobre como

morar e se “reinserir” no mercado de trabalho para permanecerem na cidade, talvez

permita indicar o quanto a questão ambiental não é o ponto de partida e nem mesmo

de chegada para que esses embates tomem forma, ou mesmo se efetivem na

maioria dos casos. Essas práticas de dirigismo de classe encontram nas ações

preservacionistas possíveis alternativas para o tratamento da expropriação urbana.

A retirada desses moradores também nos faz questionar até que ponto ou até

quando os fundos de vale da cidade estarão desabitados. Os problemas vinculados

a moradia e renda fazem parte do universo de possibilidades de certos

trabalhadores. Novos ocupantes, da cidade ou vindos de fora, erguerão suas casas

nestes locais, que é onde sua leitura do social reconhece alternativas. As pressões

da disputa pelo espaço da cidade, da sobrevivência, do custo de vida e das

condições de trabalho continuam.

Ao confrontarmos a visão otimista da matéria produzida pelo setor de

comunicação da Prefeitura e a visão de uma moradora das proximidades do rio

Coati Chico da Margem Esquerda, no bairro Santa Felicidade16, que não sofreu a

retirada do local, por morar em uma área mais urbanizada e legalizada, vejo que

14 Prefeitura municipal de Cascavel. Habitação: favelas desaparecem do cenário de Cascavel. Disponível em: <http://www.cascavel.pr.gov.br/noticia.php?id=2257> Acesso em 28 dez. 11.15 Ibidem.16 No bairro Jardim Felicidade se localiza a escola em que atuo e realizei as atividades do PDE, a Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade.

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muitas vezes a população tem reservas quanto às soluções apontadas pelo Poder

Público para o problema da moradia em Cascavel:

Pesquisadora: Já ouviu falar de algum local em Cascavel onde houve conflitos de desapropriação por conta de áreas de preservação? Onde? Quando? O que [...] você acha disso?Maria: Ah, eu fiquei sabendo assim, que aconteceu um problema... aqui, em relação... no Jardim União, na baixada do Jardim União, né? que tinha, assim bastante favelinha ali. Mas foi naquele plano [...] quando [...] criou o Julieta Bueno [...] desapropriou assim, a maioria [...] da população ribeirinha e tal assim que é de... de... fundo de vale, né? e que eram... e ia mais também que morava na favela, das casas, eu não, não cheguei a saber, se... teve alguma desapropriação, foram mais assim, em barracos que eram na beirada do rio, né? Então eles tiraram todos esses barracos e realmente foi um problema sério, teve gente que não quis sair, deu problema na imprensa, na época e tudo, né? Inclusive, assim, foi muito questionada a questão da construção do próprio bairro do, do Julieta Bueno, que é ocupado hoje, né? Porque... tirá a pessoa de um lugar e jogá no outro e... todos os problemas da cidade, você tira um problema de todo mundo e joga tudo num buraco, só vira um problema da cidade inteira, daí, né? que é o que acabou gerando lá no Julieta.17

Maria se dispõe a polemizar o que denominou como “favelinhas” em

Cascavel, mas o prefixo não diminui a gravidade da questão quando aponta os

problemas dessas ações; moradores que não aceitaram a retirada, ou mesmo a

dificuldade em considerar essa ação como uma solução, pois “joga tudo num

buraco”. Ao falar isso, a entrevistada sugere que essas ações não priorizam a

melhoria nas condições de vida desses trabalhadores que estão envoltos com os

processos de desapropriação.

Entretanto, sua narrativa não inclui a região em que mora como parte desse

processo, não coloca para si essa referência, diz que foi na “baixada do Jardim

União” – local bem próximo ao bairro Santa Felicidade e por onde passa o mesmo

rio – que essas ações aconteceram. Ainda assim, indica que esse conflito pela

moradia faz parte de um “problema da cidade inteira”.

Nesta cidade, além das moradias irregulares em fundos de vale, existe a

problemática da ocupação do entorno do Lago Municipal, efetuada por condomínios

residenciais e a polêmica construção de um Shopping na Região do Lago I, sobre 17 Entrevista realizada pela autora com Maria (pseudônimo), moradora do bairro Santa Felicidade, proximidades do rio Coati Chico da Margem Esquerda. Cascavel, 01 de junho de 2011. Acervo da autora.

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diversas nascentes que formam o rio Cascavel, que abastece a cidade. Percebo

nesse conjunto de questões a tensão que norteia as ações do Poder Público.

Se de um lado a população pobre é retirada de fundos de vale, de outro,

pessoas e empresas que compõem outras forças sociais, obtêm permissão para

construir em áreas de mananciais, sob o risco de prejudicar o abastecimento de

água na cidade, o que conforme avaliações chegaria a cerca de 80% do

abastecimento da população de Cascavel.18

De acordo com a fala de José, trabalhador da Secretaria do Meio Ambiente

de Cascavel, essas práticas de desapropriação fazem parte da política pública do

município, a solução – desapropriar – que é apontada por ele, é considerada uma

prática legal e necessária, repetindo o que se apresenta como atuação legítima da

Secretaria. Segundo ele, as áreas onde isso mais ocorre são

principalmente na área central são... são residências de alto valor e o que torna muito onerosa a desapropriação e... um dia será desapropriado, mas não temos [...] até por uma questão financeira um prazo pra se [...] determinar [...] [é necessário] criar um programa pra... pra retirar essas pessoas desses locais pra fim de... de preservação.19

Ao destacar que não há desapropriações na cidade e sim “um dia será

desapropriado” as residências do centro, desconsidera durante a nossa conversa

ações como a mencionada sobre o Conjunto Lar Cidadão Julieta Bueno, ou no

Jardim União. O que diferencia essa área de outras desapropriações é a dificuldade

em lidar com certos grupos em que não basta saber que essa é uma área de

preservação, como o entrevistado destacou “são residências de alto valor”, deixando

subentendidas as relações de poder que pressionam a não efetivação da retirada

desses moradores em particular.

Em outros termos, estes sujeitos são moradores onde as correlações de força

nem sempre são fáceis de serem firmadas na disputa pela organização social, pois

compõem alianças com a Administração Municipal e se veem como parceiros,

18 Essa porcentagem foi apresentada nos indicativos utilizados na reportagem do Estadão que problematizava a ocupação da área do Lago. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,oleo-compromete-abastecimento-de-agua-em-cascavel,682175,0.htm Acesso em 28 dez. 2011.19 Entrevista realizada pela autora com José (pseudônimo), funcionário da Secretaria do Meio Ambiente de Cascavel. Cascavel, 10 de dezembro de 2010. Acervo da autora.

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apoiadores e representados nas ações da Prefeitura, e não o contrário. Deste modo,

quando Maria menciona as retiradas realizadas nas “favelinhas”, onde se destrói

“barracos” e há confrontos para forçar a saída dos que residem nas APPs, dirigindo-

os para outro lugar, qualificado por ela como “buraco”, neste mesmo momento

outros moradores, distintos pela condição de classe que possuem, são aceitos, pelo

referencial que traduzem socialmente.

O maior atrativo para decidir quem deve ser desapropriado e para onde, é

feito, principalmente, a partir da visibilidade que se quer retirar do foco. O que me

permite pensar como as desigualdades de classe pressionam e determinam grande

parte das práticas e confrontos na cidade, principalmente quando estão em questão,

áreas de valor imobiliário significativo e certos interesses da classe dominante.

No bairro Jardim Santa Felicidade, onde essas relações também estão

presentes, existe uma APP: o entorno do rio Coati Chico da Margem Esquerda. Os

moradores, não apenas das proximidades do rio, mas de outros locais do bairro,

participaram da pesquisa, procurando refletir e problematizar a relação desta

população com o rio, bem como os usos que fazem dele e sua maneira de ver a

questão da preservação e ocupações, a partir das condições que compartilham no

bairro como trabalhadores.

3. Trabalhadores no bairro Santa Felicidade: o convívio com o rio Coati Chico da Marquem Esquerda

Para que pudesse realizar essa análise acerca dos usos e maneiras de ver a

situação desses sujeitos no entorno do rio Coati Chico foi organizada com os alunos

da Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade uma pesquisa junto às suas famílias.

Tendo em mãos um pré-roteiro de questões, os estudantes da 5ª série20 arguiram

seus familiares no intuito de levantar posicionamentos sobre o bairro e as práticas

vinculadas à moradia e modos como se relacionam com o rio. O interesse era

avaliar o que entendiam por ações de preservação e sobre as diferentes e desiguais 20 Neste trabalho usarei a denominação 5ª série ao invés de 6º ano devido essa ser a nomenclatura corrente na escola em que foi realizada a implementação, ano de 2011. Somente no ano de 2012 foi adotado o novo sistema nesta escola.

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formas como se vive na cidade de Cascavel e se utiliza dessas áreas de

preservação.

Durante as aulas, os estudantes foram orientados para que construíssem

respostas com auxílio dos seus responsáveis ou pais e outros membros da família,

para que assim houvesse participação de pessoas que residissem por mais tempo

no local e, portanto, pudessem contribuir na composição das respostas, ou mesmo

apresentando visões diferentes sobre a mesma questão para socializá-las com a

turma. Portanto, quando mencionar o posicionamento dos estudantes, ele inclui

também o de seus familiares, que compuseram ao seu lado as respostas para a

pesquisa.

Os questionamentos apresentados no roteiro de pesquisa procuraram

compreender a temática estudada em sala de aula pela ótica dos que residem no

bairro e não somente a partir do ponto de vista do Poder Público, ou, interpretações

formuladas na legislação ambiental e de uso do solo urbano. O interesse é

expressar como nessas relações os trabalhadores que vivem nessa região avaliam

suas práticas, o lugar onde moram e sua participação/atuação na cidade.

Portelli, discutindo a produção de entrevistas com trabalhadores e o espaço

dessa reflexão na análise das transformações sociais, aponta que a prática da

escuta “das classes não hegemônicas”, envolvidas em determinado processo

histórico sempre contribui para que outras histórias tomem parte no debate21. O que

esses sujeitos mencionaram é importante no sentido de destacar opiniões e modos

de vida que não são avaliados, na maioria das vezes, quando se propõe políticas

públicas para a cidade, inclusive para as APPs. A importância desse trabalho

também reside no ato de propor como produção do conhecimento histórico pensar o

tema e colocar para o estudante a possibilidade de analisar e se posicionar sobre o

que ele vivencia e a constituição do processo histórico do qual faz parte.

Os sentidos da preservação e das relações sociais nas quais ele, sua família

e outros moradores estão envolvidos também fazem parte da reflexão e

transformação histórica, portanto era fundamental nessa proposta que os estudantes

se vissem enquanto sujeitos históricos que analisam e propõem interpretações sobre

o vivido.

21 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo: EDUC, nº 14, p. 37, fev. 1997.

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Mesmo que ao realizar tal atividade com os estudantes não realizasse

entrevistas com gravações22, o diálogo com esse procedimento de análise

interpretativa valorizou as impressões construídas pelos estudantes e familiares,

levando em conta o que Portelli sugere ao indicar a importância dos significados

construídos pelos entrevistados durante sua narrativa23. Seguir esse

encaminhamento interessava para indagar os moradores do Jardim Santa Felicidade

,lsobre o convívio com o rio Coati Chico e as experiências na cidade e no país. O

que eles reconheciam como problemáticas e sugeriam usos contraditórios

vinculados às APPs, relacionando-as com a questão da moradia popular e

contaminação dos rios, córregos etc.

Ao fazer isso, era importante observar como essas famílias reconheciam as

pressões sobre as condições de moradia na cidade, como interpretavam os conflitos

envolvendo as APPs, importando pautar o modo como avaliavam esses conflitos,

bem como o lugar onde vivem e as pressões para as alterações/liberações de

moradias e usos de APPs em Cascavel.

Com relação ao que se faz desta área de preservação no bairro Santa

Felicidade, destacamos aqui a “questão D” do roteiro de pesquisa, que propunha a

seguinte interrogação: “O que suas famílias pensam sobre como está sendo usado o

rio? É um lugar bonito para passeio? Para que está sendo usada essa área?”24 Essa

interrogativa permitiu, em grande medida, avaliar como viam e queriam que fosse

visto o local onde moravam.

A análise desse material permitiu observar relações contraditórias dessa

população com esse ambiente, ora desvalorizando, ora indicando como área que

merecesse ser cuidada para o lazer, preservação e moradia. Ao discutirem essas

questões interessava perceber o que consideravam ser problema no que veem no

entorno do rio, na proximidade de suas casas e na cidade.

22 Essa decisão foi pautada pela dificuldade em realizar as gravações e transcrições com os estudantes da 5ª série, visto que os alunos envolvidos são mais novos e encontravam limitações ao não terem disponível um número significativo de gravadores, como também os problemas para transcrever as entrevistas em família.23 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo: EDUC, nº 14, p. 31, fev. 1997. 24 “Questão D” do roteiro utilizado pelos estudantes da 5ª série para formular respostas com suas famílias sobre as APPs de Cascavel e, em particular, sobre o rio Coati Chico.

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De acordo com a legislação constante do Código Florestal Brasileiro25 o uso

do entorno do rio deve ser reservado para preservação de mata ciliar. Na região

próxima ao rio Coati-Chico boa parte do seu percurso não possui essa conservação

de mata, pois em vários pontos a urbanização chega muito próxima ao rio e o

mesmo está canalizado por baixo das ruas em alguns pontos dos bairros Jardim

Santa Felicidade e Nova Cidade, conforme é possível observar seguindo os seus

contornos pelos bairros.

Dos roteiros de pesquisa analisados, um grande número das famílias colocou

claramente o rio como sendo usado para jogar lixo e animais mortos, despejar

esgoto e entulhos, como a família de Paulo, que menciona: “É um lugar de muita

sujeira, as pessoas jogam lixo, entulho, e tem um cheiro ensoportável [insuportável],

isso pode acarretar problemas de saúde”.26

O lixo, a sujeira e o mau cheiro constituem os tormentos visíveis e de

incômodo comum aos que residem no entorno do rio. As doenças provocadas por

essa situação de insalubridade são outra preocupação, sendo que muitas destas

famílias são dependentes do sistema público de saúde, com o qual têm

pacientemente de lidar, além de todas as outras situações decorrentes da condição

de trabalhadores.

Segundo o que a maioria considerou, este não é um lugar bonito ou para

passeio, haja vista a consideração da família de Alana: “O Rio não está bonito, não

está sendo usado para nada, só para meninos tomar banho”27 Embora alguns

tenham destacado que crianças costumam brincar no rio, as falas denotam que essa

área não é considerada própria ao lazer, devido à prática de jogar lixo e esgoto no

local, daí a nomeação do rio, como “Rio Merdinha”.

25 Ver o texto do Código Florestal Brasileiro de 1965, onde consta a preservação da vegetação na faixa marginal de rios ou qualquer curso d’água: Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4771.htm> Acesso em: 07 mar. 2012. Com a mudança para o novo Código florestal, que ainda está em votação, pelo que se sabe até agora, poderá haver alteração na metragem obrigatória para preservação, mas a proposta da lei anterior com relação à existência de matas ciliares será mantida. Ver a nova legislação, ainda em processo de aprovação: Lei 12.651 de 25 de maio de 2012, que revoga a legislação anterior: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12651.htm#art83> Acesso em: 29 mai. 2012.26 PAULO (pseudônimo). Resposta à “Questão D” do roteiro de pesquisa: “O que suas famílias pensam sobre como está sendo usado o rio? É um lugar bonito para passeio? Para que está sendo usada essa área?”. Pesquisa realizada em agosto de 2011.27 ALANA (pseudônimo). Resposta à “Questão D” do roteiro de pesquisa: “O que suas famílias pensam sobre como está sendo usado o rio? É um lugar bonito para passeio? Para que está sendo usada essa área?”. Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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As reclamações não indicam apenas o descontentamento da população com

a sujeira, mas podem ser indicativo da desvalorização que a área onde moram

possui, assim como a insatisfação com a atuação inexpressiva do Poder Público,

como destaca Maria ao discutir a produção de uma área de lazer no entorno do rio:

Pesquisadora: [...] sabe por que o projeto de uma área de lazer no entorno do rio foi abandonado?Maria: Ah, eu... sei lá, acho que foi por... descaso, na verdade é... é questão de... de verbas, né?... praça é uma maravilha, né? é carro chefe de campanha, você faz uma pracinha na beirada do rio, tira umas 3, 4 fotos e joga na próxima eleição, então pode ser no sentido só de propaganda política que foi feito aquilo [...].28

Portanto, além de uma quadra e da possibilidade de brincar na rua, o rio,

mesmo poluído, passa a ser uma alternativa para as crianças, especialmente

aquelas identificadas como filhas de trabalhadores mais empobrecidos, que moram

nas proximidades deste local, na “baixada do rio”, sob o risco de contrair doenças e

se ferir no lixo e entulho depositados no seu entorno e dentro dele.

Na avaliação de Maria, a ação inacabada indica como as relações com o

Poder Público vêm sendo firmadas nessa região. Esta visão negativa que considera

o local como depósito de lixo e sem benfeitorias é reforçada pelo apelido pelo qual a

comunidade chama o rio. Em uma das atividades iniciais do projeto29, os estudantes

produziram textos sobre o bairro e o uso do rio Coati Chico era destacado:

[...] O que é preservação? Preservado é um lugar onde não tem poluição. No nosso bairro não acontece nada disso, porque temos até um rio chamado “Rio Merdinha”, dizem que esse nome foi formado, porque antigamente, as empresas jogavam prodrudos [produtos], lixos e rezidus [resíduos], por isso chamam ele de “rio merdinha”. No nosso bairro acontece coisas inacreditáveis, pessoas [...] jogam animais mortos, lixos, é uma nojeira. (grifo dos autores)30

28 Entrevista realizada pela autora com Maria (pseudônimo), moradora do bairro Santa Felicidade, proximidades do rio Coati Chico da Margem Esquerda. Cascavel, 01 de junho de 2011. Acervo da autora.29 O período de realização da pesquisa dos estudantes e de produção de atividades em sala fez parte do processo de implementação do Projeto PDE na escola, ocorrido no segundo semestre de 2011.30 CARLA (pseudônimo), RODRIGO (pseudônimo); CÉSAR (pseudônimo). Trecho do texto inicial produzido na turma da 5ª série, 25 de agosto de 2011. Atividade de sala de aula.

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Esta é uma avaliação bastante recorrente em muitos trabalhos produzidos

pelos estudantes envolvidos no projeto. O que indicou como eles associam as

condições atuais do rio às ações de distintos sujeitos – empresários e moradores –

para indicar que o rio não é preservado como deveria. As variadas versões para a

origem de seu apelido trazem algumas noções de poluição e do que é prática

comum em áreas próximas a rios:

O rio tem esse apelido porque quando chove ele começa a Feder por isso ele recebeu esse nome apelidado pelo Bairro. O Bairro santa Felicidade reclama do rio porque ele fede, tem peixe morto muinta [muita] sujeira como: resto de comida materiais reciclaveis, litros, sacolas e até animais morto, ratos etc.31

Nesse trecho os estudantes apresentam uma historicidade para o mau cheiro

do rio, indicando que essa é uma questão do bairro, comum a todos os moradores

que precisam conviver com a sujeira e odores desagradáveis. Em sua narrativa,

retratam a imagem de um lugar que desabona quem mora ao seu redor. Quando

Nereu e Helena (pseudônimos) colocam que “já não adianta mais cuidar do rio”32 ou

“é muito feio, não presta pra nada”33 sugerem que conviver com aquele rio não

atribui nenhum contato com a natureza, mas sim de possíveis doenças e

desvalorização perante outros modos de morar que não se associam ao rio sujo e

mau cheiroso.

Grande parte dos estudantes expôs em seus textos que o rio, ou a natureza,

devem ser preservados. Ao fazerem isso aparecia a oposição entre o que acontece

nas proximidades de suas casas e o que entendiam que devia ser dito em um texto

que propunha pensar a preservação ambiental, mesmo que isso significasse dar

visibilidade ao modo como o lugar em que moram se constitui.

Ao serem questionados sobre se existe algum cuidado com a preservação do

rio por parte dos moradores ou da prefeitura, um número elevado de famílias afirmou

não haver esse cuidado. Apesar de indicar os problemas do local onde vivem, é

31 ANDRÉ (pseudônimo), RENATA (pseudônimo); LUCIANA (pseudônimo). Trecho do texto inicial produzido na turma da 5ª série, 25 de agosto de 2011. Atividade de sala de aula. 32 HELENA (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa: “Existe algum cuidado com a preservação do rio por parte dos moradores em geral? E da Prefeitura? Por que acha que isso acontece?” Pesquisa realizada em agosto de 2011. 33 NEREU (pseudônimo). Resposta à “Questão D” do roteiro de pesquisa: “O que suas famílias pensam sobre como está sendo usado o rio? É um lugar bonito para passeio? Para que está sendo usada essa área?” Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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significativo o número de famílias que se referiram abertamente ao mau uso do

entorno do rio e, ao mesmo tempo, sugeriram que essa questão não interfere em

suas relações sociais e na sua distinção perante outros bairros.

Para muitos, este é um problema presente também em outras regiões da

cidade e, portanto, não é uma particularidade do Jardim Santa Felicidade: há bairros

mais carentes e com problemas mais gritantes na visão desses moradores. A

violência, por exemplo, que é uma questão marcante sobre o valor pejorativo de um

bairro, levou as famílias pesquisadas a não considerar a problemática relacionada

ao rio e APPs como algo que os desabonasse tanto quanto outros problemas

compartilhados socialmente.

Contudo, ao não mencionar certas ocupações existentes no bairro também

resguardavam uma condição para o lugar onde moram com menos evidências de

pobreza e situações de risco, mesmo porque não é uma área à qual estes

trabalhadores interpretem como importante do ponto de vista ambiental (geralmente

associam parques e florestas a lugares de preservação e não os pequenos córregos

próximos aos seus lares), ou em suas relações de distinção perante outros bairros,

ou relacionada à sua luta pela sobrevivência.

Na tentativa de explicar os motivos desse descaso em relação ao rio e ao seu

entorno, as respostas colocadas pelas famílias indicaram respostas abstratas e sem

envolvimento com a prática cotidiana e o que vivem no lugar: “por que ninguém

liga”34, “não tem iniciativa”35, ou “o rio não tem utilidade”36, ou ainda “por que as

pessoas não colaboram”37 ou dizem que a população não reivindica: “não tem

organização da sociedade”38, “descaso das autoridades competentes”39.

Contudo, quando colocam que “não há organização da sociedade”, sabem

que poderia haver uma pressão maior junto ao Poder Público para a melhoria desta

34 FRANCISCO (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa: “Existe algum cuidado com a preservação do rio por parte dos moradores em geral? E da Prefeitura? Por que acha que isso acontece?” Pesquisa realizada em agosto de 2011.35 BIA (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.36 LARA (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.37 RITA (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.38 OSVALDO (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.39 CARLOS (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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situação, mas reconhecem as relações de poder em que estão inseridos, mesmo

porque há aqueles que moram em outras partes do bairro que não veem razão para

se preocupar com algo que não lhes atinge diretamente. Essa divisão de interesses

e experiências acaba por fragilizar a alteração desse processo no bairro Santa

Felicidade.

Muitas vezes, há uma oscilação entre responsabilizar a população ou o Poder

Público pelo estado em que se encontra o entorno do rio, como se o cuidado com

este local fosse prerrogativa de apenas uma das partes. Em outros, deixam antever

como percebem a disputa de classes que permeia essas relações: “por que se você

for reclamar eles não vão fazer, mas se fosse os ricos... eles obedecem”40, ou ainda,

“o rio é pequeno e não mora nem uma pessoa rica”41.

Uma questão associada à anterior também se colocou enquanto proposição

de uma das famílias pesquisadas, indicando que realidade de morar nas APPs tem a

ver com “os moradores [que] não têm casas [próprias]”42, sugerindo o problema da

moradia como algo perceptível na cidade, principalmente ocupando áreas de vales,

seja alugando barracões a preços mais baratos, ou mesmo com autoconstruções. A

questão ambiental lhes é colocada como algo importante pela mídia e a educação,

mas apesar de repetirem tal discurso, as pressões enfrentadas no dia a dia se

apresentam como urgências em oposição ao cuidado com o rio.

Nesse sentido, também se encaminhou outras colocações como: limpar o rio

“não dá lucro”43, uma hipótese para justificar a ausência de benfeitorias públicas no

bairro, mesmo porque, além de não dar lucro, não tem tanta visibilidade quanto

outras obras importantes para figurarem nas obras de expansão e desenvolvimento

urbano. As diversas justificativas apresentadas, portanto, apontam os distintos

elementos que fazem parte de uma mesma questão, desde a ausência de uma

atuação pública em benefício de melhorias nas condições de vida daqueles sujeitos

– sendo avaliada como uma distinção de classe em favor de outros sujeitos mais

40 BRENDA (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 201141 ELAINE (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.42 EVELYN (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.43 CLARICE (pseudônimo). Resposta à “Questão E” do roteiro de pesquisa: “Existe algum cuidado com a preservação do rio por parte dos moradores em geral? E da Prefeitura? Por que acha que isso acontece?” Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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abastados – até mesmo as dificuldades de acesso à moradia e condições de renda

que possam permitir alterar onde muitos decidem morar e como morar.

O debate sobre a vinculação dos vazios urbanos (não apenas em fundos de

vales) como áreas possíveis de jogar lixo e entulho, já que não há uma promoção

mais efetiva de vincular esses lugares para outros fins, como da preservação, áreas

de lazer, dentre outros, permanece como uma fala sem respaldo prático. A

dificuldade em articular interesses para disputar melhorias e prioridades na cidade,

assumindo para si uma parcela da responsabilidade pelas mudanças, também é

uma observação comum a grande parte das famílias.

Além desta ausência de cuidados que efetivem mudanças, em maio de 2011

o Jornal Hoje noticiou o derramamento de óleo queimado no rio Coati Chico da

Margem Esquerda nas proximidades da BR 277. Segundo denúncias, o despejo foi

feito por um caminhão de origem desconhecida que estava estacionado próximo ao

local, provavelmente oriundo do Parque São Paulo44. Essa ação retoma o que os

estudantes destacaram em seu texto sobre o uso de empresas para descarte de

produtos no rio, particularmente em seu bairro

Com relação aos problemas enfrentados por quem mora próximo ao rio, as

famílias que participaram da pesquisa também formularam o que vivenciam e

percebem no Jardim Santa Felicidade: mau cheiro, enchentes e/ou alagamentos,

doenças, presença de insetos e outros animais, “preconceito” sofrido pelos

moradores, presença de lixo, bem como outras questões que, mesmo em menor

freqüência compõem a experiência desses moradores: sujeira e barro nas casas,

excesso de umidade, construções irregulares, desigualdade no acesso a benfeitorias

públicas, presença de animais mortos e mato45.

Alguns destes problemas serão destacados com o interesse de apontar como

os estudantes produziram sua interpretação sobre o vivido a partir do que incentivei

44BAGATOLI, Josimar. Despejo de óleo contamina afluente do rio Coati Chico. Jornal Hoje, Cascavel, 17 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110517/cartucho.pdf> Acesso em 29 dez. 2011. Para mais detalhes sobre este caso e a autoria do fato: BAGATOLI, Josimar et GONÇALVES, Neo. Mecânica e construtora são autuadas por contaminação. Jornal Hoje, Cascavel, 18 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110518/edicaocompleta.pdf > Acesso em 15 mar. 2012.45 Essas questões foram destacadas na atividade dos dias 27 a 30 de setembro de 2011, onde os estudantes da 5ª série produziram painéis que apresentavam o que entendiam como problemas vivenciados no bairro Jardim Santa Felicidade vinculados ao rio. E serão utilizadas aqui como fontes para interpretação do processo de implementação do projeto, realizado no segundo semestre de 2011.

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a observar, registrar e apresentar como algo a ser pensado e transformado

socialmente. A Imagem 1, que retrata um momento de enchente nas proximidades

do rio, traz o trabalho de Márcia e Elisa (pseudônimos), e nele as estudantes trazem

como preocupação uma realidade comum às moradias que se localizam em áreas

de vale ou próximas a rios na sociedade brasileira.

Imagem 1: Painel sobre Enchentes

Fonte: MÁRCIA e ELISA, Atividade de Sala – Acervo da Autora, 30 set. 2011

Durante a produção dos painéis em sala de aula os estudantes retomaram

discussões que perpassaram notícias sobre enchentes em outras cidades e estados,

como também o problema da poluição dos rios e as campanhas ambientais em

Cascavel. Evidentemente que a produção que realizaram expressa esse acúmulo de

discussões e avaliações, decidindo qual a temática iriam abordar e como a

reconheciam em seu bairro.

Na Imagem 2 – Lixo no rio – Marcela, Íris e Luiza (pseudônimos) trazem um

diálogo entre moradores problematizando a prática de jogar lixo no rio do bairro,

propondo assim discutir como os moradores vêm se utilizando do mesmo. Ao

fazerem isso, as estudantes sugerem a responsabilidade ao “povo desse bairro”

indicando uma interpretação amplamente divulgada que isenta a atuação do Estado

das condições que vivem.

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Imagem 2: Lixo no rioFonte: MARCELA, ÍRIS e LUISA, Atividade de Sala – Acervo da autora, 29 set. 2011

Na Imagem 3, os alunos Osvaldo, Sandra e Mariza (pseudônimos) apontam a

moradia como uma questão importante, seja porque os moradores irão experimentar

com maior frequência os limites de segurança frente a enchentes, desapropriações,

doenças, mau cheiro etc., seja porque essa é uma realidade que comumente é

noticiada, ora pelos conflitos que gera, ora pela visibilidade que tem no dia a dia na

cidade e na mídia.

Imagem 3: Moradias beira do rioFonte: OSVALDO, SANDRA e MARIZA, Atividade de sala – Acervo da Autora, 27 set. 2011

Os estudantes que moram próximos ao rio foram questionados com relação

a problemas que porventura suas famílias tenham enfrentado com a Prefeitura ou

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com outros moradores devido ao fato de residirem nessa área. Tal questionamento

foi feito por que sabemos que moradores de APPs muitas vezes são tratados com

desigualdade pela população que reside em outros locais da cidade, tendo como

possibilidade desapropriações/expulsões como resultado de sua atuação na cidade

perante o empobrecimento e situações de urgência como desemprego, dificuldades

na manutenção de certos valores de aluguel, etc.46.

Esta questão causou certo incômodo para as famílias pesquisadas, pois não

parece ser bem-vinda a ideia de associar o lugar onde vivem às ações de

desapropriações, não querem se identificar com as famílias que vivem e são

retiradas a força das APPs. Não apresentam em suas formulações vínculos diretos a

algo que é posto como ilegal ou associado à miséria pela imprensa e grupos

dominantes, mesmo que essa condição seja compartilhada no bairro.

Quando colocaram-se sobre tal questão, disseram ter ouvido notícias de tais

ações em outros locais do país ou da cidade, como no bairro vizinho, o bairro Nova

Cidade. Quando disseram haver algum tipo de discriminação por parte de outros

moradores, por conta do mau estado em que se encontra a preservação do rio e seu

entorno, colocando-os como se fossem pessoas inferiores ou sujas por viverem

naquele local, não assumiram diretamente para si esta situação, mas colocaram em

termos gerais, sugerindo que existe sim um tratamento diferenciado para com as

pessoas que residem próximas ao rio, mas não sendo o caso deles.

Das famílias analisadas que não residem no entorno do rio, há as que

disseram já ter ouvido alguém dizer que foi discriminado ou ter presenciado uma

cena de “preconceito” com moradores daquela APP. O que incomoda nestas

relações que informa esse posicionamento? Considero que não se trata apenas de

indicar tratamentos desiguais ou harmonizar as condições de vida no bairro, mas de

almejar se colocar distintamente nas relações, mesmo que seja uma condição mais

aparente do que costumeira, vide as condições de trabalho associadas ao modo de

vida que possuem.

Para tal análise, é preciso levar em consideração algumas sutilezas. Irei

novamente fazer referência a Portelli, que aponta procedimento importante para a

análise das significações produzidas no processo de entrevistas e, no caso deste 46 Com relação às desapropriações, noto que essa prática faz parte das políticas públicas para as áreas de preservação, incluindo fundos de vale. Essa prática foi destaca por José (pseudônimo), funcionário da Secretaria do Meio Ambiente, entrevistado em 10 de dezembro de 2010.

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projeto, na análise das interpretações que as famílias pesquisadas traduziram em

suas respostas. Ao narrarem seus posicionamentos “contam-nos não apenas o que

o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora

pensa que fez.”47, essa é a recomposição presente na interpretação expressa

desses trabalhadores que residem no bairro Jardim Santa Felicidade.

Também é possível que por habitarem uma área, que apesar de ser

considerada de preservação ambiental, já se encontra bastante urbanizada, onde os

efeitos de viver tão próximo ao rio não sejam sentidos, sejam vistos com outros

olhos pelo restante da população. E agora, com a possível mudança na lei das

APPs, que pretende alterar a metragem de áreas destinadas à preservação

obrigatória para rios com largura inferior a 10 metros de largura, os que moram um

pouco mais afastados do rio, também tendem a considerar que os problemas

vinculados a essa nova normatização não estão vinculados às suas urgências, pois

não serão desapropriados, e nem vão enfrentar os conflitos pela efetivação dessa

prática de controle e expulsão como norma.

As famílias também foram questionadas com relação a sua opinião sobre se é

possível ou não preservar o rio com pessoas morando muito perto dele. As

respostas dialogam com certa similaridade ao que a mídia, as leis e o projeto de

educação ambiental colocam como “correto” para a sociedade, podendo também ser

interpretado como um encaminhamento que traduz suas expectativas sobre a

melhoria nas condições do rio Coati Chico e da APP do bairro.

As respostas positivas, em sua maioria, colocaram que a preservação é

possível, desde que “os moradores mantenham o rio limpo”48, “ter um programa de

saneamento adequado”49 nestas áreas, “se todos colaborarem”50, “cada um fazendo

sua parte e não jogando lixo”51, “sempre limpando o rio com máquinas e plantando

47 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Revista Projeto História, São Paulo: EDUC, nº 14, p. 31, fev. 1997.48 BIA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa: “Na opinião de vocês, é possível preservar o rio com pessoas morando muito perto dele?” Pesquisa realizada em agosto de 2011. 49 SANDRA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 50 HELEN (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.51 DIANA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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árvores em volta”52, “se a prefeitura quiser”53, dentre outras colocações, que indicam

uma sustentabilidade que ora depende dos moradores, ora dependo do Poder

Público, ou de ambos os setores. Mas sempre uma resposta vinculada à

preservação, ou seja, a conciliação entre moradores e natureza é possível se as

pessoas cuidarem e não jogarem lixo.

No entanto, houve um número maior de famílias que consideraram não ser

possível a preservação com moradores vivendo muito próximos ao rio, sendo

apresentadas como justificativas: “por que sempre vai ter esgoto, ou um outro lixo

pra poluir. E também deveria ter + uma duas quadras de preservação”54, “porque daí

limpa e daí eles jogam mais lixo”55, “por causa da poluição”56, “sempre algum

prejudica o rio”57, “porque pode causar doenças fortes”58, “porque eles suja o rio”59,

“porque perto dos rios deveriam existir somente árvores”60, “Porque eles jogam lixos,

e o esgoto sai no rio etc... Por isso causa mal cheiro”61, “Porque se chove alaga

tudo”62, “pois as pessoas não sabem cuidar”63.

Mais do que evidenciar preocupação com a preservação do rio e a

compreensão disso colocada para eles até hoje, seus argumentos demonstram as

consequências do viver nestes locais e suas intranquilidades relativas isso: doenças

ocasionadas pela poluição, presença de insetos e/ou animais vetores de doenças,

52 ELLY (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 53 ANTÔNIA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.54 FABIANA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.55 ELAINE (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 56 JOAQUIM (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.57 LEANDRO (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 58 FLÁVIO (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.59 CAROL (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.60 ALANA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa: “Na opinião de vocês, é possível preservar o rio com pessoas morando muito perto dele?”. Pesquisa realizada em agosto de 2011.61 BRENDA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.62 VÂNIA (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.63 THALIA CAROL (pseudônimo). Resposta à “Questão L” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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contaminação do rio (onde as crianças brincam) por esgoto e outras substâncias;

alagamentos em épocas de chuvas, além de água invadindo residências, levando

sujeira, abrindo buracos nas ruas; mau cheiro por conta do lixo acumulado, dos

animais mortos deixados no local por certos moradores. Vale lembrar que mau

cheiro, alagamentos e doenças foram os três problemas relatados com maior

frequência pelos moradores das proximidades do rio.

Ao serem questionados dos motivos que levam as pessoas a morarem nestas

áreas, muitos responderam que estes moradores lá estão por se sentirem

pressionados por questões financeiras, evidenciando o empobrecimento de parcelas

da população, que busca locais onde, ou pagam mais barato, ou, como colocou a

família de Davi (pseudônimo): “Por que são loteamentos mais baratos ou são

pessoas muito pobres e por não ter onde morar e acabam invadindo essas áreas.”64

Isto indica que, mesmo com a repetição da campanha preservacionista em suas

respostas, há o reconhecimento da existência de pressões sociais que obrigam

pessoas a ocuparem estes locais e que não basta a letra da lei quando a realidade

aponta outras necessidades e expectativas.

A experiência de seu Ananias, aos 75 anos, divulgada em 2011 na mídia,

assim como explorada pelo quadro “Lar doce Lar”, do programa de Luciano Huck na

Rede Globo de Televisão65, sugere observar como a trajetória desse trabalhador

aposentado, atualmente catador de recicláveis para a construção de sua casa,

permite reconhecer condições de moradia, de trabalho e de cuidado dos filhos ao

viver nas proximidades do rio Coati Chico66. O trabalhador possui 6 filhos, sendo os

4 menores recolhidos ao Recanto da Criança, devido às condições em que a família

vivia. A expectativa dos vizinhos, enunciada nesses meios de comunicação, era ver

garantido o retorno dos filhos à medida que ele conseguisse ter uma casa

terminada, com espaço e condições de receber todos os filhos, conforme exigências

da Vara da Infância e da Juventude67.

64 DAVI (pseudônimo). Resposta à “Questão M” do roteiro de pesquisa: “Por que vocês acham que as pessoas vão morar nessas áreas?”. Pesquisa realizada em agosto de 2011.65 Programa realizado em 21 de agosto de 2011.66 BAGATOLI, Josimar. Homem que construía casa com lixo está prestes a ganhar moradia. Jornal Hoje, Cascavel, 09 de abril de 2011, p. 08. Disponível em:<http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110409/edicaocompleta.pdf>, Acesso em: 29 mai. 2012.67 Ibidem.

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Seu quintal possui “porcos, galinhas e patos”, indicando como ocorre sua

ocupação e uso da área de vale do rio Coati Chico. Além disso, se as matérias

divulgaram a trajetória de seu Ananias, as condições de sua moradia e vizinhança,

também apontaram as condições do rio “considerado um dos maiores afluentes da

cidade e também o mais poluído”68, que não oferece nenhum estado de qualidade

para ser a paisagem mais próxima de sua casa. Essa experiência também faz parte

da visibilidade das famílias dos estudantes que participaram do projeto, ainda que

não queiram destacá-la como evidência de quem mora e como mora no entorno do

rio do bairro Jardim Santa Felicidade. As soluções ressaltadas pelos alunos e seus

familiares a situações como as identificadas com a família de seu Ananias foram

diversificadas, apontando desde melhoria à retirada.

Ao responderem a “Questão N”: “O que deveria ser feito para que as pessoas

não morassem em áreas de preservação?”69, suas respostas reiteraram a

necessidade de retirada dos moradores de beiras de rios, embora tenham ido um

pouco além da expulsão pura e simples, achando que a oportunidade de outro local

deveria ser disponibilizada com uma alteração em suas condições de vida. Não

houve qualquer tipo de questionamento à pergunta colocada, no sentido de apontar

soluções ou situações de preservação considerando a permanência destes

moradores.

A interpretação da questão por esses trabalhadores, contraditoriamente

aponta uma divisão entre trabalhadores, em parte porque reproduz as colocações do

Estado indicando essa condição como um “problema”, ou uma área de risco a ser

desocupada, não polemizando os sujeitos envolvidos nessa relação de expulsão.

Porém a identificação de elementos de necessidade desses trabalhadores faz com

que também construam indicativos de que esse “problema” precisa ser percebido

como alteração do que é vivido por esses trabalhadores: “[...] se o governo fizesse

68BAGATOLI, Josimar. Homem que construía casa com lixo está prestes a ganhar moradia. Jornal Hoje, Cascavel, 09 de abril de 2011, p. 08. Disponível em:<http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110409/edicaocompleta.pdf>, Acesso em: 29 mai. 2012.69 Esta questão já aponta para a não permanência dos moradores, incentivando a construção de uma resposta que trabalhe com a consideração ou não da situação como sendo um “problema”. Aqui o interesse foi perceber até onde iriam, em sua noção preservacionista, na tentativa de apontar soluções de destino a esses trabalhadores e se haveriam colocações relativas à melhoria das condições sociais para que não fosse necessário habitar áreas de risco.

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casas populares em regiões apropriadas.”70, “Dar oportunidade de emprego e

estudo. Acredito que o que a população e a prefeitura quer pode acontecer.”71

Avançando nesse entendimento alguns trabalhadores indicaram que para

evitar que pessoas habitem as APPs, deve haver fiscalização, multas, proibição e

plantio de árvores, cercamento dos locais e criação de parques e trilhas para

caminhada. A família de Pâmela destacou essa questão: “Deveria ser proibido e se

alguém fosse morar lá, deveria ser multado e uma multa bem cara”72.

A defesa de um modo de ver a situação a partir de cima pode indicar o desejo

de serem associados a outros grupos sociais, procurando mudar a visão sobre o

bairro onde vivem como um lugar de pobre morar. Por isso não necessariamente

compartilham opiniões unívocas sobre essa questão, apesar de pertencerem à

mesma classe e viverem, por vezes, as mesmas condições adversas que seus

vizinhos (baixa renda, possibilidades de trabalho e sobrevivência, local de moradia,

modo de cuidar dos filhos etc.).

A leitura de que essa situação aponta dificuldades de muitos trabalhadores na

atualidade se faz presente na fala da família de Marcos, que destaca o constante

uso dessas regiões para moradia, “tira um morador e já tem outro no lugar”73, pois as

pressões que levam esses sujeitos a buscar as áreas de preservação não foram

resolvidas com sua retirada e haverá outros com as mesmas dificuldades que

procurarão esses locais como possibilidades de permanecerem na cidade e

manterem a família com orçamento mais reduzido.

As famílias pesquisadas, mesmo defendendo a importância da preocupação

com as condições de vida dos ocupantes das APPs, não demonstram solidariedade

gratuita para a permanência destes sujeitos, mas em situações e relações mais

evidentes, como ao discutirem as relações de poder que fazem parte desse

70 ANA (pseudônimo). Resposta à “Questão N” do roteiro de pesquisa: “O que deveria ser feito para que as pessoas não morassem em Áreas de Preservação? Acha que isso é possível?”. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 71 SABRINA (pseudônimo). Resposta à “Questão N” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 72 PÂMELA (pseudônimo). Resposta à “Questão N” do roteiro de pesquisa. Pesquisa realizada em agosto de 2011. 73 MARCOS (pseudônimo). Resposta à “Questão N” do roteiro de pesquisa (ibidem). Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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processo. A família de Viviane destaca: “Sempre os pobres saem no prejuízo porque

é os ricos saem ganhando”74.

Mesmo os que defendem a retirada, não a fazem considerando a expulsão

sem destino como alternativa, mas acham que esses “moradores de beiras de rio”

devem sair. Mesmo os que moram nas proximidades do rio se posicionaram a favor

da preservação, lidando com a política atual e o que consideraram que deveria ser

dito em uma “pesquisa escolar”. Mas este posicionamento não se trata apenas da

repetição de uma prática preservacionista, já que moradores empobrecidos e

socialmente excluídos, vivendo em moradias precárias nem sempre são bem vistos

pela vizinhança.

A retirada destes trabalhadores (que também têm direito à preservação e à

boa qualidade de vida) poderia ser bem-vinda se fosse para um lugar melhor e esse

processo fosse feito de maneira justa? Mas o que é um lugar melhor e o que é justo

para essas pessoas? Saber qual é o desejo desses sujeitos não se constitui uma

preocupação por parte do Estado ao propor certas práticas de “organização da

cidade” ou de “proteção ambiental”. As indagações que permanecem são, como

conciliar preservação e direito à moradia, ou o que seria um viver sustentável nas

APPs urbanas? São questionamentos que por ora não têm uma resposta definitiva,

mas é uma realidade que não pode deixar de ser pensada, produzindo alternativas a

essa proposição.

São visíveis no bairro Jardim Santa Felicidade as tensões sociais, os

problemas enfrentados por quem vive no entorno do rio, as dificuldades que

envolvem as condições de moradia, a falta de benfeitorias públicas em bairros

caracterizados como populares. Neste bairro a preservação também está associada

aos problemas estruturais tão comuns em tantas outras cidades brasileiras, aqui

também o cuidado com o rio não passa de um indicativo para reiterar o que se

propôs em leis, na mídia e na promoção da educação ambiental, tidos como atos

incontestáveis, mesmo que no dia a dia essa proposta seja experimentada com

limitações e alterações, que passam pelas urgências da vida e da luta pela

sobrevivência de determinados trabalhadores.

74 VIVIANE (pseudônimo). Resposta à “Questão O” do roteiro de pesquisa: O que vocês acham sobre: a política de preservação ambiental ser mais importante do que a preocupação com as condições de vida dos moradores das áreas de preservação? Pesquisa realizada em agosto de 2011.

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Esta realidade da qual os estudantes do Jardim Santa Felicidade e suas

famílias participam historicamente e o modo de ver a área de preservação presente

no bairro produziram interpretações que levaram a ampliar a questão, este trabalho

é apenas uma parte deste processo histórico analisado e pode ser o ponto de

partida para futuras análises e problematizações, assim como intervindo na leitura e

atuação em sociedade.

4. Considerações finais

Discutir a presença de trabalhadores nas APPs é indicar uma visibilidade

que expõe sem muitas abreviações os possíveis motivos de estarem nestas áreas: o

alto custo de vida na cidade, as condições de trabalho e moradia, desemprego etc.

Embora não se resuma a uma ou outra questão, os que utilizam essas regiões como

espaço de moradia e sociabilidade, sugerem como produzem seus espaços na

cidade, ainda que esses não respondam a melhorias efetivas na sua condição de

classe.

A situação destes locais foi estudada por alguns alunos da Escola Estadual

de Jardim Santa Felicidade, principalmente no que se refere à área dita de

preservação que há em seu bairro. De suas produções textuais e pesquisas feitas

junto a suas famílias, percebi que a questão da preservação, a princípio, não recebe

questionamentos. Uma avaliação que também foi comum ao analisar os trabalhos

com professores no GTR75.

Ao iniciar os trabalhos de implementação da proposta os alunos escreveram

textos colocando seu repertório inicial acerca da temática em discussão. Nestes

textos, em sua maioria, falaram da importância das práticas preservacionistas,

repetindo a proposição de uma educação ambiental que não observa as

contradições e tensões que compõem as ações de preservação. Em seus textos

finais, após a realização deste trabalho, houve a percepção de que existem áreas de

75 O GTR é um curso a distância de capacitação para os professores da rede pública estadual do Paraná ministrado pelos professores que estão cursando o PDE (tutores). Neste espaço, os cursistas realizam atividades e participam de fóruns discutindo a temática desenvolvida no projeto do professor-tutor.

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preservação, inclusive em seu bairro; que existem pessoas vivendo nelas, incluindo

alguns deles; e que essas pessoas vivem em um local em que não são aceitas pelas

leis e, muitas vezes, pelos outros moradores da cidade e que as pressões sociais

que vivenciam fazem com que muitos trabalhadores – com trajetórias e condições

distintas – habitem tais áreas.

Apesar disso, suas preocupações ambientais (que nem sempre se revelam

nas suas práticas cotidianas) ainda se mostram com força na formulação da

preservação. O que se percebe, pelas suas produções e cartazes, bem como na

participação nos debates, é que os problemas existentes nas APPs, com relação à

preservação, são associados ao jogar lixo no rio e cortar árvores, embora retratem a

questão das moradias e condições de vida conjuntamente a outros fatores, fazendo

comparações entre o que é preservado e o não preservado e, em alguns casos,

entres as desigualdades expressas nas áreas de preservação.

Mas essa explicação dominante a partir da noção preservacionista ainda se

coloca nas tematizações curriculares isolando essa questão das relações sociais,

sendo reforçada pela mídia, pelo Estado a partir de políticas de educação ambiental

praticadas até então. A problematização da noção de sustentabilidade e

preservação – onde ressalte os usos dessas áreas e as disputas em que estão

inseridas – ainda é algo bastante recente em sala de aula.

As indagações seguem para avaliar até que ponto essa sustentabilidade “do

ambiental” seria compatível nas APPs urbanas, sem considerar a presença desses

sujeitos e suas moradias, assim como a falta do saneamento básico em muitos dos

bairros em que estão presentes. Entretanto, essa visão mais recente começa a

produzir resultados.

Se alguns a perceberam; se notaram que enfrentamentos por direito social e

preservação se entrelaçam ao viver nas APPs, é possível que práticas arraigadas

nessa sociedade, onde as relações capitalistas desiguais predominam, possam ser

modificadas pelos sujeitos históricos. O que na produção desse trabalho considerou

desde estudantes e familiares inseridos neste debate, como também a produção e

indicação dessa questão como uma prática importante para se pensar o lugar dos

trabalhadores na sociedade atual.

Terminamos essa reflexão avaliando que o maior interesse nesse caminho

de investigação e reflexão histórica era que os estudantes se sentissem estimulados

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a pensar sobre práticas e relações sociais diferentes/desiguais daquelas pré-

estabelecidas e consideradas consenso em nossa sociedade, bem como

exercitassem sua condição de sujeitos históricos, avaliando e intervindo no que

ocorre ali, ao seu lado, no seu bairro, na sua cidade; interferindo nessa realidade.

Fontes

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BAGATOLI, Josimar. Homem que construía casa com lixo está prestes a ganhar moradia. Jornal Hoje, Cascavel, 09 de abril de 2011, p. 08. Disponível em:<http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110409/edicaocompleta.pdf>, Acesso em: 29 mai. 2012.

BAGATOLI, Josimar et GONÇALVES, Neo. Mecânica e construtora são autuadas por contaminação. Jornal Hoje, Cascavel, 18 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.jhoje.com.br/Paginas/20110518/edicaocompleta.pdf > Acesso em 15 mar. 2012.

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Entrevista realizada pela autora com José (pseudônimo), funcionário da Secretaria do Meio Ambiente de Cascavel. Cascavel, 10 de dezembro de 2010. Acervo da autora.

Entrevista realizada pela autora com Maria (pseudônimo), moradora do bairro Santa Felicidade, proximidades do rio Coati Chico da Margem Esquerda. Cascavel, 01 de junho de 2011. Acervo da autora.

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PRODUÇÕES DE TEXTOS realizadas pelos estudantes da 5ª série da Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade em sala de aula em agosto de 2011.

ROTEIROS de pesquisa respondidos por estudantes da 5ª série da Escola Estadual de Jardim Santa Felicidade e suas famílias em agosto e setembro de 2011.

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