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    3. SISTEMAS DE SADE: ORIGENS, COMPONENTES E DINMICA

    Lenaura de V. C. Lobato1 Lgia Giovanella2

    1. Introduo Este captulo trata dos sistemas de sade: o que so, como se organizam, quais

    suas caractersticas e como funcionam. O objetivo dar ao leitor uma viso geral dos componentes e da dinmica dos sistemas de sade na atualidade.

    O estudo dos sistemas de sade hoje uma das reas mais importantes das cincias da sade. Diversos grupos importantes de especialistas ao redor do mundo se dedicam a conhecer e analisar os sistemas de sade de

    seus prprios pases e de outros, muitas vezes distantes, com lnguas, culturas e tradies muito distintas. Mas qual a importncia de estudar os sistemas de sade?

    Os sistemas de sade, como os conhecemos hoje - estruturas orgnicas pblicas e privadas de ateno sade -, so recentes na histria e s se consolidam como tal em meados do sculo XX. Seu desenvolvimento tem a ver com o crescimento da participao dos Estados no controle dos diversos mecanismos que afetam a sade e o bem-estar das populaes e

    comprometem o desenvolvimento das naes. Assim, os Estados foram consolidando estruturas que garantem a preveno de doenas, a oferta direta de servio de cura e reabilitao, incluindo o controle e definio de regras para a produo de alimentos, medicamentos, equipamentos, proteo do meio ambiente, etc. Ou seja, os diversos temas e problemas relativos sade dos indivduos e pases so hoje uma preocupao coletiva e todas as naes tm esse problema em pauta. As solues para esses

    1 Sociloga, mestre em Administrao Pblica, doutora em Sade Pblica, professora da Escola de

    Servios Social da Universidade Federal Fluminense. 2 Mdica, mestre e doutora em sade pblica, pesquisadora titular do Nupes/DAPS da Escola Nacional de

    Sade Pblica (Ensp/Fiocruz).

    Sistema de sade o conjunto de relaes polticas, econmicas e institucionais responsveis pela conduo dos processos referentes sade de uma dada populao que se concretizam em organizaes, regras e servios que visam a alcanar resultados condizentes com a concepo de sade prevalecente na sociedade.

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    problemas so atribuies dos sistemas de sade, de forma mais ou menos abrangente, em cada pas. O estudo dos sistemas de sade nos ajuda a conhecer como suas estruturas esto falhando ou sendo bem sucedidas no alcance do objetivo de garantir a melhoria das condies de sade da populao. A forma como se d o financiamento das aes, o tipo e alcance da regulao do setor privado e a relao entre os setores pblico e

    privado so alguns dos exemplos de mecanismos que podem interferir na qualidade da assistncia.

    Uma rea importante dos estudos de sistemas de sade so as anlises comparadas. Com elas tm sido possvel o conhecimento das similaridades e diferenas entre os sistemas de diversos pases. Embora os pases sejam diferentes, com histria e cultura diversas e os sistemas nunca sejam iguais, possvel aprender com a experincia de outros e melhorar nosso prprio sistema de sade.

    Para conhecer os sistemas vamos, em primeiro lugar, discutir algumas de suas

    caractersticas gerais e sua relao com a concepo de sade e proteo social. A seguir, vamos tratar dos diversos componentes dos sistemas de sade. Na parte final tratamos sobre sua dinmica.

    Essa estrutura do captulo segue a seguinte linha de raciocnio: todo sistema de

    sade possui alguns componentes bsicos. As caractersticas desses componentes podem mudar no tempo, ou podem ser diferentes nos distintos pases, mas os componentes permanecem fazendo parte do sistema. Estudar um sistema de sade tanto conhecer as caractersticas de cada um de seus componentes (profissionais, rede de servios, insumos), quanto tambm conhecer como eles se relacionam entre si (financiamento, gesto, regulao, prestao de servios); ou seja, como a dinmica do sistema. Mas preciso ter em mente que tanto os componentes do sistema quanto sua dinmica esto relacionados, em menor ou maior grau, com caractersticas histricas, econmicas, polticas e culturais de um pas. a sociedade que constri seus sistemas de sade atravs do tempo. E a forma como ele funciona e se organiza, assim como os resultados que alcana na vida e sade dos indivduos, dependem do quanto a sociedade (governo, mercado e comunidade) toma para si a responsabilidade pela sade do conjunto da sua populao.

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    2. Sistemas de Sade e a proteo social sade Poderamos definir um sistema como um conjunto de partes inter-relacionadas

    e interdependentes que tem como objetivo atingir determinados fins (Roemer, 1991:3). Esta noo pode ser aplicada aos sistemas de sade, j que em todos os pases possvel identificar uma srie de aes, organizaes, regras e indivduos cuja atividade se relaciona direta ou indiretamente com a prestao de ateno sade. Embora nem

    sempre as relaes entre esses elementos seja visvel, todos fazem parte de um conjunto que pode ser identificado pela ao final de sua atividade no caso dos sistemas de sade, a ateno sade. A questo : que partes so essas, como elas se relacionam e que objetivos devem cumprir.

    Um sistema no um conjunto fechado e sua dinmica est sempre relacionada a outros sistemas e ao conjunto das relaes sociais em um determinado tempo e lugar. Por exemplo, uma lei de contingenciamento de despesas tomada por um governo em um determinado momento no pode ser caracterizada como uma funo do sistema de

    sade, mas pode afetar os recursos disponveis para os servios prestados por esse sistema.

    Um sistema de sade tambm no funciona, necessariamente, de forma ordenada. O fato de seus componentes se relacionarem no quer dizer que essa inter-

    relao seja organizada, nem que todos sempre cumpram objetivos similares. O ambiente dos sistemas muito mais catico que ordeiro, e mais conflituoso que consensual. Por isso os sistemas so complexos e esto em constante mudana.

    Os sistemas de sade representam um vigoroso setor de atividade econmica mobilizando vultuosas somas financeiras, envolvendo os produtores de insumos e de servios e gerando grande nmero de empregos.

    tambm uma importante arena poltica de disputa de poder e recursos na qual ocorrem conflitos distributivos (distribui dinheiro, prestgio, empregos), envolvendo inmeros atores sociais: profissionais, partidos polticos, movimentos sociais, sindicatos, representaes de empresrios, grupos de interesse, etc.

    Todos os sistemas de sade apresentam elementos similares: todos tm uma certa forma de organizao, todos tm algumas instituies responsveis por

    determinadas atividades, todos tm uma rede de servios, so financiados de alguma forma, e podem ser entendidos de um modo mais abstrato como a resposta social

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    organizada s condies de sade da populao. Contudo, sabemos que os sistemas no funcionam da mesma forma em todos os pases. Isso porque os sistemas de sade no podem ser separados da sociedade; ao contrrio, eles fazem parte da dinmica social. E tanto so influenciados por essa dinmica, como tm tambm a capacidade de influenci-la.

    O Sistema nico de Sade brasileiro (SUS), por exemplo, foi o resultado de um longo processo social que visava mudar a forma como o Brasil garantia a ateno sade de seus cidados. Contudo, at o momento, muito do que a lei prev ainda no se tornou realidade. E isso porque algumas mudanas so mais lentas que outras. Ou porque encontram mais resistncia, ou porque requerem decises que so mais difceis de serem implementadas, ou ainda, porque as instituies ou os profissionais envolvidos no esto preparados ou no aceitam a mudana, ou ainda porque os governos no concordam e evitam implementar a mudana.

    Da mesma forma, o SUS tambm influencia mudanas na sociedade. Hoje, por exemplo, a noo de direito sade muito mais forte e difundida e influenciou outras reas sociais. Tambm a noo ampliada de sade, entendida em suas determinaes sociais mais gerais, compartilhada por mais pessoas. Outro exemplo que os

    municpios so hoje muito mais responsveis pela ateno sade do que o foram no passado.

    A relao entre o sistema de sade e a dinmica social vai gerando, atravs do tempo, os valores sociais sobre a proteo sade, ou seja, a forma como a sociedade concebe a sade e o risco de adoecer e como trata os problemas relacionados ao processo sade-enfermidade. A proteo sade ser mais ampla quanto mais a sociedade entender a sade como um problema coletivo, no de cada indivduo ou famlia, mas de todos os cidados. Na histria contempornea, a proteo sade mais ampla est relacionada a sistemas de sade universais, pblicos, e que incorporaram a proteo sade como direito de cidadania. E por que a proteo sade implica sistemas de sade universais, pblicos e direito de cidadania?

    Embora esse tema j tenha sido explorado no Captulo 1, preciso enfatizar alguns pontos. Em primeiro lugar, as doenas e males de toda sorte so riscos aos quais todos os seres humanos esto expostos durante toda a vida, independentemente de sua vontade. Tambm, o bem-estar dos indivduos importante para uma sociedade saudvel; no basta a cura das doenas e agravos, mas preciso que a sociedade adquira

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    nveis razoveis de bem-estar para todos, ou ela nunca ser um lugar de boa convivncia.Alm disso, a falta de condies de sade e bem-estar fragiliza os indivduos, comprometendo sua participao integral na sociedade. Esses argumentos indicam que as necessidades de sade no podem ser tratadas como mercadorias, acessveis a preos diferenciados conforme a capacidade de pagamento individual.

    Como conseqncia, a sade no deve ser objeto de lucro; ao contrrio, deve ser responsabilidade solidria do Estado e dos cidados.

    O direito de cidadania vem ento como condio de igualdade entre todos os indivduos da mesma comunidade. A universalidade vem como condio de indistino entre todos os cidados iguais. E a noo de prestao pblica decorrncia tanto da garantia do direito de cidadania quanto da idia de sade como bem pblico no comercializvel, sendo o Estado a instituio correspondente. por isso que a presena dos Estados na garantia do acesso universal sade e no controle e regulao dos

    mecanismos que interferem na sade dos indivduos um diferencial na busca por melhores condies de sade. E no toa, os pases que alcanaram melhores indicadores de sade so aqueles que tm sistemas universais e pblicos com base de financiamento solidria.

    2.1 Modelos de proteo social em sade

    Podemos relacionar os sistemas de sade com os modelos de proteo social, vistos no Captulo 1. Os modelos de proteo social nos falam de formas de organizao

    e interveno estatal para toda a rea social, incluindo, alm da sade, as reas de previdncia e assistncia social. Vamos nos ater aqui aplicao desses modelos sade, para entender a que tipos de sistemas de sade esses modelos se referem.

    Os modelos de proteo social em sade correspondem a modalidades de interveno governamental no financiamento, na conduo e regulao dos diversos

    setores assistenciais e na prestao de servios de sade, com conseqncias ao acesso e direito de cidadania.

    Na ateno sade, os modelos de proteo social mais encontrados nos pases de industrializao avanada so o de seguro social e o de seguridade ou universal.

    Os modelos universais de proteo sade correspondentes ao sistema de proteo social do

    O National Health Service ingls foi criado em 1946. Foi o primeiro sistema nacional universal de sade no Ocidente e em um pas capitalista. Foi um exemplo importante para o nosso Sistema nico de Sade.

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    tipo seguridade social se concretizam em sistemas nacionais de sade (como o National Health Service-NHS ingls) financiados com recursos pblicos provenientes de impostos gerais. Os sistemas nacionais de sade universais so apontados como mais eficientes (fazem mais com menos recursos), mais equnimes e, portanto, com maior impacto positivo nas condies de sade. Nos sistemas universais, o Estado em geral

    presta diretamente os servios: toda a rede de servios hospitalares e ambulatoriais, ou a maior parte dela, de propriedade pblica estatal e grande parte dos profissionais de sade so empregados pblicos. E mesmo nos casos nos quais parte dos

    servios contratada do setor privado, o Estado tem grande capacidade de controlar os custos desses servios, j que ele o principal comprador e define os servios a serem prestados. Alm disso, os sistemas nacionais estabelecem regras homogneas para a maioria das

    aes e servios de sade, o que garante servios similares em todo pas.

    Outro modelo de sistema pblico universal anterior ao modelo beveridgiano foi institudo na Rssia com a revoluo sovitica de 1917. Esse modelo foi conhecido como modelo Semashko, nome do primeiro comissrio do povo para a sade do

    governo de Lnin, e foi difundido posteriormente para os pases socialistas da Unio Sovitica e do leste europeu. Esse modelo de acesso universal centralizado e integralmente estatal, ou seja, a grande maioria das unidades de sade de propriedade estatal e todos os profissionais so empregados do Estado. Apresenta estrutura vertical, organizao hierrquica e regionalizada das redes de servios e responsabilidades bem definidas em cada nvel de administrao. Um exemplo ainda presente e bem sucedido do modelo Semashko o sistema cubano.

    Os sistemas de seguro social em sade do tipo bismarckiano tm financiamento baseado nas

    contribuies de empregados e empregadores e, em seus primrdios, em geral foram segmentados por categoria funcional de trabalhadores, como no caso brasileiro dos Institutos de Aposentadorias e Penses (IAP). Essa segmentao bastante criticada porque gera iniqidades, j que benefcios e servios podem

    Os IAP Institutos de Aposentadorias e Penses foram criados no Brasil na dcada de 30 para prestao de benefcios previdencirios e assistncia mdica. As categorias de trabalhadores mais organizadas e reconhecidas pelo Estado possuam seus Institutos. Os Institutos foram integrados em 1966, durante o regime militar, em um nico Instituto, o ento INPS Instituto Nacional de Previdncia Social.

    Veja mais sobre a histria da sade no Brasil no Captulo 12, Histrico da poltica de sade no Brasil e reforma sanitria brasileira.

    As caractersticas dos modelos de proteo social de seguridade social (beveridgiano), de seguro social (bismarckiano) e residual, voc encontra no Captulo 1.

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    ser diferenciados entre categorias profissionais, a depender de sua importncia na economia.

    Por outro lado, nesses sistemas a prestao de assistncia mdica em geral separada das aes de

    sade coletivas (medidas de promoo e preveno, vigilncia sanitria, epidemiolgica etc) e exercida por um rgo pblico separadamente. Em geral os seguros sociais do nfase a aes curativas

    individuais e as aes coletivas so relegadas a segundo plano. Essa separao, alm de ser mais onerosa, dificulta a garantia da ateno integral.

    Todavia, nos pases europeus, o que se

    observou com o passar do tempo em relao cobertura populacional por seguro social de sade (ou de doena denominao mais comum nos pases europeus) foi a universalizao, com uniformizao dos servios garantidos pelas diferentes Caixas e incorporao

    progressiva de grupos profissionais, o que em um contexto de pleno emprego permitiu a cobertura da grande maioria da populao.

    No modelo de proteo social residual na sade, o Estado no assume para si a responsabilidade de garantia da proteo universal sade e protege apenas alguns

    grupos mais pobres como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os programas pblicos de proteo sade cobrem apenas os mais necessitados e parcialmente os aposentados, permanecendo descoberta parcela importante da populao, sem acesso a seguros pblicos ou privados. Este modelo no qual prevalece o mercado gera enorme ineficincia, devido baixa regulao estatal, mirade de prestadores e provedores de

    seguros. Assim, os Estados Unidos so hoje o pas com os gastos em sade per capita mais elevados do mundo, com importante parcela da populao sem cobertura (cerca de 46 milhes de cidados americanos em 2005) e resultados e indicadores de sade muito piores que aqueles de sistemas universais, prprios de pases europeus, cujos gastos so muito menores.

    A segmentao de servios para diferentes setores da populao acontecia na poca dos IAPs no Brasil. As categorias mais fortes e com salrios maiores conseguiam arrecadar mais recursos e ofereciam mais e melhores servios aos seus membros. Sem esquecer que grande parte da populao no tinha sua ocupao regulamentada - como os trabalhadores rurais, os autnomos e os domsticos -, no era filiada a nenhum Instituto e por isso no tinha direito nem previdncia nem assistncia sade.

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    Esses trs tipos de proteo social em sade correspondem a modalidades de interveno governamental no financiamento com conseqncias na garantia deste direito de cidadania quanto mais amplo o financiamento pblico maior a igualdade de oportunidades de acesso e a abrangncia da garantia do direito sade. Ao mesmo tempo, o papel governamental no financiamento condiciona a capacidade estatal de

    regulao do sistema de sade. E a habilidade do governo para regular as diversas dimenses do setor sade (regular medicamentos, tecnologias, servios, prestadores), crtica para a eficincia, para a garantia de cobertura ampliada e para o controle de gastos.

    Vemos assim que o tipo de proteo social em sade vai condicionar a forma como um sistema de sade financiado, estruturado e o leque de servios e benefcios garantidos. Ou seja, para o estudo dos sistemas de sade importante, em primeiro lugar, identificar as caractersticas mais gerais de sua conformao; e para isso a

    classificao dos modelos de proteo social o ponto de partida. Voltaremos a ela quando tratarmos dos componentes do sistema.

    Para entender um pouco melhor estes modelos de proteo social em sade, a seguir apresentam-se aspectos histricos da conformao dos sistemas pblicos de

    sade em pases europeus.

    3. Origens dos sistemas pblicos de sade: um pouco de histria

    Os sistemas de proteo e ateno sade hoje existentes em cada pas so conseqncia de longo processo histrico. Resultam de um emaranhado de iniciativas nem sempre coerentes, incluindo a influncia de experincias de outros pases. Os

    diversos servios, instituies e organizaes que hoje compem os sistemas de sade tiveram, em sua origem, legislaes condicionadas por circunstncias polticas, econmicas e culturais de cada poca e por conflitos especficos em cada pas. Assim, resultaram e esto relacionadas s constelaes de atores setoriais, suas formas de

    organizao e recursos de poder (trabalhadores organizados, seguros privados, partidos, mdicos); fora dos movimentos dos trabalhadores, dos partidos de esquerda e suas capacidades em estabelecer alianas; s formas de organizao e modos como os mdicos conquistam o monoplio do exerccio da medicina (entidades, disputas entre associaes mdicas de generalistas e especialistas); s instituies polticas de cada

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    pas que moldam a atuao dos atores ao definir as possibilidades de sua participao poltica (regras do jogo); e aos legados das polticas e iniciativas anteriores como a criao de sociedades de socorro mtuo pelos movimentos de trabalhadores, e legislaes especficas.

    Frequentemente as primeiras iniciativas de proteo sade estiveram

    relacionadas a outras questes polticas mais gerais. Assim, o padro de propriedade dos hospitais hoje existente nos pases europeus foi influenciado pelas disputas entre Igreja e Estado e tentativas de impor o poder secular e separar Estado e Igreja. Construdos pela igreja na idade mdia, estreitamente ligados aos cuidados aos pobres, os hospitais em muitos pases foram posteriormente apropriados pelo Estado como conseqncia de conflitos religiosos (Reforma protestante, revolues anti-clericais na Frana, repercusses da revoluo francesa na Alemanha) e at hoje, em boa parte dos pases, os hospitais europeus so de propriedade estatal. Em outros paises, contudo, permanece

    forte a presena de entidades religiosas na ateno hospitalar. Muitas mudanas ocorreram ao longo do tempo e o financiamento das prestaes hospitalares passou a ser predominantemente pblico para ambos os tipos de hospitais; contudo, essas razes e padres histricos ainda tm repercusses nas polticas de sade contemporneas, pois

    influenciam a estrutura e a organizao dos sistemas de sade.

    As razes dos sistemas pblicos de sade encontram-se em iniciativas de organizaes de trabalhadores e de partidos polticos, que em meados do

    sculo XIX, no contexto do processo de urbanizao e industrializao, criaram sociedades de socorro mtuo (mutual aid societies, friendly societies, mutuelles, Fabrik-Krankenkassen) para prover ajuda financeira a seus membros em caso de morte e doena (Immergut, 1992). A partir de contribuio voluntria dos trabalhadores, essas associaes garantiam benefcios em dinheiro em caso de perda de salrio por doena e para auxlio funeral, e por vezes, assistncia mdica prestada por mdicos contratados pela entidade mtua.

    Em alguns pases, essas mtuas de afiliao voluntria e financiadas pelos

    trabalhadores tinham propsitos polticos claros e em outros eram vistas como uma forma assistencial de organizao dos trabalhadores que deveria ser encorajada por governos. Sociedades mtuas tambm foram criadas por iniciativa de indstrias para

    Entidade mtua: associao voluntria com troca recproca entre os membros. Contribuio de todos para benefcio individual de cada contribuinte em caso de necessidade.

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    proteo de seus trabalhadores e em alguns casos por governos locais. Frequentemente, estas associaes foram a base organizacional para os movimentos nascentes de trabalhadores. Os benefcios ofertados eram incentivos para atrair filiados e fortalecer lutas polticas, financiando inclusive aes de greve. Em alguns pases, como Alemanha, foram criadas mtuas como forma de burlar legislao autoritria que

    proibia a organizao dos trabalhadores e deram origem a sindicatos.

    As primeiras leis que podem ser consideradas como uma interveno estatal na ateno sade regularam essas mtuas e foram motivadas pelo desejo dos governos em controlar a vida associativa e o movimento dos trabalhadores. O reconhecimento governamental das sociedades de ajuda mtua implicava controle, aceito pelas mtuas que em contrapartida recebiam algumas vantagens legais como depsitos das contribuies em bancos governamentais com taxas de juros mais favorveis. Nos pases nos quais as associaes de trabalhadores eram proibidas, as mtuas eram

    obrigadas a se registrar sob ameaa de ao judicial. Inicialmente, a nfase esteve na regulao das condies de filiao e na exigncia de registro como forma de controle governamental sobre estas associaes voluntrias. Na segunda metade do sculo XIX, como se pode observar no Quadro 1, legislaes aprovaram a transferncia de subsdios financeiros para as entidades mtuas na maior parte dos pases da Europa ocidental. necessrio lembrar, contudo, que, naquela poca, nem todas as sociedades de ajuda mtua tinham entre seus benefcios a assistncia mdica; os benefcios eram em geral monetrios na forma de auxilio doena, e as legislaes no regulavam a prestao de servios mdicos. As mtuas definiam seus benefcios e contratavam os mdicos sob condies por elas definidas.

    No incio da revoluo industrial as condies de trabalho eram pssimas, altamente insalubres, e a legislao de proteo do trabalho para regulao da jornada de trabalho, proteo maternidade e infncia era ainda incipiente, desencadeando

    importantes lutas dos trabalhadores. Para os movimentos socialistas de trabalhadores, a regulao governamental das sociedades de ajuda mtua era vivenciada como interveno nas suas associaes solidrias voluntrias e perda de autonomia. Assim, partidos socialistas posicionaram-se naquela poca contra a aprovao de legislaes que controlassem suas sociedades mtuas. Esses so importantes exemplos de questes polticas mais gerais relacionadas aos conflitos entre capital e trabalho e as relaes Estado-Igreja que influenciaram a conformao dos sistemas de sade hoje existentes.

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    As iniciativas governamentais para controlar a vida associativa e regular as atividades das sociedades de ajuda mtua em meados do sculo XIX constituem uma primeira onda de legislao no processo histrico de constituio dos sistemas pblicos de sade. Estas legislaes, contudo, no possibilitaram uma ampliao de cobertura, pois os subsdios governamentais eram muito baixos e o interesse era mais controlar a

    organizao dos trabalhadores do que garantir proteo sade.

    Grosso modo, trs ondas de legislao no processo de constituio e desenvolvimento de sistemas ampliados de proteo social sade na Europa podem ser identificadas. Alm dos subsdios governamentais s mtuas voluntrias ao final do sculo XIX, observou-se uma segunda onda de legislaes nas primeiras dcadas do sculo XX que criaram os seguros sociais de doena compulsrios, difundindo a experincia alem. Depois da segunda guerra mundial, uma terceira onda de regulamentaes culminou com a universalizao da proteo social em sade em

    pases europeus, decorrente da ampliao de cesta de benefcios e cobertura dos seguros sociais com incluso da maioria da populao, e da criao, em alguns pases, de servios nacionais de sade (SNS) financiados com recursos fiscais.

    A segunda onda de legislaes no incio do sculo XX, que criou seguros sociais

    de doena compulsrios em diversos pases, seguiu o modelo proposto por Bismarck e aprovado em 1883 na Alemanha (Quadro 1). A gnese do seguro de doena alemo esteve relacionada a questes mais gerais do conflito capital-trabalho. Na Alemanha, durante o processo conservador de transio para o capitalismo, o Estado autoritrio

    tomou para si a responsabilidade pela segurana social e a poltica social de Bismarck, para alm do enfrentamento da questo social, conformava uma proposta intencional de organizao corporativa da sociedade e de ampliao do controle do Estado sobre a sociedade, submetendo as organizaes de trabalhadores ao Estado. Bismarck defendia a ao positiva do Estado, aliada represso da esquerda. Buscava estabelecer um

    executivo forte e combater o avano da social-democracia atravs da realizao dos pontos das reivindicaes socialistas, que fossem adequados e compatveis com as leis do Estado e da sociedade, nas palavras do prprio Bismarck. Como afirmou na mensagem imperial (Kaiserliche Botschaf) de 17 de novembro de 1881 que props seguros sociais para acidentes de trabalho, doena, velhice e invalidez, o Chanceler estava convencido de que O caminho para a cura da desordem social no est apenas

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    na represso dos ataques socialdemocratas, seno igualmente no fomento positivo do bem-estar dos trabalhadores.

    Quadro 1 Legislao de proteo social sade: ano de criao dos seguros sociais de sade e servios nacionais de sade, pases da Europa ocidental

    Pases Apoio a sociedades voluntrias de ajuda

    mtua

    Seguro Social (Social Health Insurance-

    SHI)

    Servio Nacional de Sade (National Health Service-

    NHS) Alemanha Leis municipais nos

    sculos XVIII e XIX 1883

    ustria 1888, 1939 Blgica 1849, 1898 1944 Dinamarca 1892 1973 Espanha 1839, 1859 1942 1986 Frana 1834, 1852, 1898 1928, 1945 Holanda 1913, 1929, 1943 Itlia 1886 1943 1978 Portugal 1944 1979 Noruega 1909, 1953, 1956 1969 Reino Unido 1793, 1815,1850,1898 1911 1946 Sucia 1891, 1910, 1931 1946 (1969) Sua 1911, 1964

    Brasil 1888 1923, 1933, 1966 1988 Fonte: adaptado de Immergut E. Health Politics Interest and institutions in Western Europe. New York: Cambridge University Press; 1992

    As leis do seguro social que visavam aliviar as necessidades materiais do crescente proletariado industrial e forjar sua lealdade ao Estado, em contexto autoritrio, foram acompanhadas pela promulgao de uma srie de leis anti-socialistas que impedia

    a organizao dos trabalhadores. Assim, a introduo do seguro social de doena sofreu forte oposio dos trabalhadores e recebeu votos contrrios de parlamentares social-democratas. Uma coalizo entre catlicos e conservadores possibilitou a introduo do seguro compulsrio. Todavia, no processo de negociao, os planos governamentais de

    prover financiamento governamental substancial foram bloqueados pelos liberais e o financiamento passou a ser responsabilidade apenas de empregadores e trabalhadores, bem como a responsabilidade pela administrao foi conferida aos diversos tipos de mtuas preexistentes.

    Assim, contingncias do processo poltico alemo moldaram caractersticas dos seguros sociais como o financiamento por contribuies sociais de trabalhadores e

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    empregadores, e administrao autnoma no diretamente estatal com representao dos segurados, modelo mundialmente difundido. Posteriormente, a proteo na enfermidade e velhice passou a fazer parte da pauta de reivindicaes dos trabalhadores e nas primeiras dcadas do sculo XX o modelo de seguros sociais expandiu-se para a maioria dos pases europeus em decorrncia de movimentos e greves gerais e da

    extenso do direito ao voto depois da primeira guerra mundial.

    Deste modo, no incio do sculo XX, observou-se um efeito importante de difuso de polticas. O exemplo da Alemanha provocou intensa discusso sobre seguros sociais em pases da Europa. Governos de outras naes reconheceram as reformas sociais alems como uma poltica conservadora de sucesso, tanto para enfrentar o crescimento da esquerda, quanto para preservar o sistema poltico e econmico, aumentar a produtividade do trabalho e satisfazer necessidades dos eleitores da classe trabalhadora, e implantaram programas similares em seus pases.

    Assim, o modelo de seguros sociais foi implantado na maior parte dos pases europeus, permanecendo apenas na Sua o esquema de subsdios governamentais s mtuas privadas. Todavia, em cada pas, especificidades das mtuas preexistentes, as constelaes de atores sociais e partidos, conflitos e negociaes polticas deixaram suas

    marcas na legislao aprovada e cada pas criou seus seguros com caractersticas peculiares. Em parte dos pases, o asseguramento social para o risco de adoecer integrava seguro social mais amplo que cobria tambm velhice (aposentadorias) (como foi o caso dos Institutos de Aposentadorias e Penses no Brasil), e, em outros, os seguros sociais foram divididos em ramos seguindo o modelo alemo com contribuies e seguros sociais especficos para doena/sade. tambm dessa poca a criao de seguros sociais em pases latino-americanos, como Brasil e Chile, ainda nos anos de 1930.

    Entre os pases industrializados, os Estados Unidos permanecem como a grande exceo deste processo. Ainda que associaes de ajuda mtua tenham sido criadas por grupos de imigrantes e de trabalhadores no sculo XIX, nunca receberam suporte governamental e foram suplantadas por seguros privados de sade contratados pelas empresas. Legislao para criao de seguros sociais de sade foi proposta em 1919 e 1948, mas no chegou a ser aprovada. A interveno governamental em sade nos EUA permanece restrita at os dias de hoje, conformando um modelo de interveno estatal residual como mencionado anteriormente. Nos EUA, somente pessoas muito pobres e

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    os idosos so cobertos por seguros governamentais (respectivamente o Medicaid e o Medicare), introduzidos em 1965 por governo democrata. Veja sobre Medicare e Medicaid no Captulo 12 - Financiamento e alocao de recursos em sade no Brasil

    Uma terceira onda de legislaes ocorreu no perodo posterior segunda guerra mundial, quando no contexto de recuperao do ps-guerra, os pases europeus universalizaram seus programas de proteo social em sade, incluindo a maioria da populao e ampliando servios cobertos. Com a criao do Servio Nacional de Sade

    ingls surgiu um novo modelo proteo social em sade de acesso universal e financiamento fiscal. O NHS teve sua primeira formulao no relatrio de Sir William Beveridge que presidiu um Comit Interdepartamental criado pelo governo britnico de coalizo (entre conservadores e trabalhistas que governou o pas no perodo da segunda guerra mundial) para estudar o seguro social ingls e fazer recomendaes para reforma. O relatrio Beveridge (1942) estabeleceu as bases para o NHS ao considerar o acesso assistncia mdica como direito universal de cidadania. Recomendava que o Estado garantisse a todos os cidados ateno sade compreensiva (primria, especializada, hospitalar e reabilitadora), gratuita, disponvel para qualquer cidado independentemente da habilidade de pagar, financiada por impostos gerais. A proposta teve ampla aceitao social e o NHS foi criado em 1946 pelo governo trabalhista com aprovao de todos os partidos. Com o inicio do funcionamento do NHS em 1948, todos os cidados britnicos passaram a ter acesso universal gratuito ao sistema de sade por meio do registro junto a um mdico generalista (General Practitioner-GP), remunerado por um sistema de pagamentos per capita (capitao), e todos os hospitais foram estatizados (somente 5% dos hospitais permaneceram privados). Neste sistema, a porta de entrada o profissional de ateno primria, o GP, que trabalha em seu consultrio e responsvel pela referncia para especialistas e hospitais. Os hospitais so pblicos e os mdicos especialistas so empregados pblicos dos hospitais atendendo em ambulatrios de especialidades e internaes.

    Na maior parte dos outros pases europeus, ainda que o modelo de seguro social tenha prevalecido, a cobertura populacional foi praticamente universalizada entre os anos de 1950 a 1970. Em sua origem, os seguros sociais cobriam apenas algumas categorias de trabalhadores industriais de menor renda, protegendo apenas parcelas

    restritas da populao. Entretanto, por um processo de incluso e expanso progressivas, em contexto de pleno emprego e prosperidade econmica, foram includos

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    gradualmente novos grupos profissionais e expandidos os benefcios e a abrangncia da cesta de servios cobertos. Legislaes progressivas uniformizaram o catlogo de benefcios e servios dos diversos tipos de Caixas de Doena/ Seguros Sociais das diversas categorias profissionais, ampliando o catlogo de benefcios e universalizando a cobertura.

    Nos anos 1950 e 60, a possibilidade de transformao dos sistemas de seguros sociais em servios nacionais de sade foi discutida em diversos pases, mas as legislaes no foram aprovadas. A maior influncia do modelo beveridgiano de proteo social em sade foi observada nos pases escandinavos, nos quais governos social-democratas transformaram seus sistemas e implantaram servios nacionais de sade (SNS) financiados com recursos fiscais. Na Sucia, ainda que uma lei de criao de um servio nacional de sade no tenha sido promulgada, graduais mudanas de legislao transformaram o sistema sueco, que pode ser considerado desde 1969 de fato como um servio nacional de sade. Em 1969, a prtica privada foi abolida dos hospitais pblicos (a grande maioria) e todos os mdicos de hospital passaram a ser empregados pblicos em tempo integral (por isso no Quadro 1, a data de criao de NHS para a Sucia aparece entre parnteses). Na Sucia, o acesso ao sistema de sade universal, o financiamento principalmente fiscal, a maior parte das unidades de propriedade estatal e quase todos os mdicos so empregados pblicos, caractersticas que configuram um servio nacional de sade.

    Pases do Mediterrneo e da Pennsula Ibrica criaram servios nacionais de

    sade posteriormente na segunda metade do sculo XX em processo de transio para a democracia. Na Itlia, a transformao foi possibilitada por intenso movimento de reforma sanitria (que influenciou movimento similar no Brasil) e a lei do servio nacional de sade (Servizio Sanitario Nazionale), aprovada em 1978, em decorrncia de pacto entre o partido comunista italiano e a democracia crist. Portugal e Espanha

    transformaram seus sistemas durante o processo de democratizao (aps as ditaduras salazarista e franquista) e criaram seu Servio Nacional de Sade e Sistema Nacional de Salud em 1978 e 1986 respectivamente, garantindo o direito proteo sade e o acesso universal aos cuidados de sade a toda a populao.

    Seguros sociais de sade e servios nacionais de sade permanecem, nos dias atuais, os modelos de proteo social em sade de pases europeus. Em 2007, o modelo

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    bismarckiano - seguros sociais de sade de contratao compulsria financiados por contribuies vinculadas ao trabalho assalariado -, est presente em sete dos quinze pases da Europa ocidental que compunham a Unio Europia at maio de 2004: Alemanha, ustria, Blgica, Frana, Holanda, Irlanda e Luxemburgo). O modelo beveridgiano de servios nacionais de sade (National Health Service-NHS) - ordenados por autoridades estatais e financiados com recursos fiscais -, est presente em oito pases da Europa ocidental: Dinamarca, Espanha, Finlndia, Grcia, Itlia, Portugal, Reino Unido, Sucia. Nos anos de 1990, o modelo de seguros sociais bismarckiano foi novamente introduzido em parte dos pases do leste europeu, ex-socialistas, que haviam

    implantado sistemas baseados no modelo sovitico Semashko, centralizados, de acesso universal com financiamento fiscal e rede estatal de servios de sade.

    4. Fronteiras dos sistemas de sade A partir das caractersticas tratadas at aqui, v-se que adotamos uma viso

    abrangente de sistema de sade. E podemos resumir essa viso, definindo-se assim um

    sistema de sade: conjunto de relaes polticas, econmicas e institucionais responsveis pela conduo dos processos referentes sade de uma dada populao que se concretizam em organizaes, regras e servios que visam a alcanar resultados condizentes com a concepo de sade prevalecente na sociedade.

    Uma definio abrangente no nos exime de estabelecer algumas fronteiras para os sistemas de sade, caso contrrio ficaria muito difcil estud-los e assim poder conhec-los. Por outro lado, o fato de reconhecer a influncia dos aspectos sociais, polticos e econmicos pode levar a estudos to amplos que se corre o risco de nada ser dito sobre os sistemas de sade. Ou seja, as fronteiras nos ajudam tanto a delimitar o objeto de estudo dos sistemas de sade quanto a delimitar o enfoque desses estudos.

    No h uma nica abordagem para a anlise dos sistemas de sade, e os estudos enfatizam os aspectos que consideram mais importantes, tanto para a delimitao do

    objeto quanto para o enfoque a partir do qual analisam esse objeto. No que toca ao objeto, alguns do mais ateno estrutura (recursos e rede de servios, por exemplo), outros organizao dos servios (relao entre os diversos nveis de ateno, por exemplo). No que toca ao enfoque de anlise, uns do mais ateno forma de financiamento (quem paga o qu e como pago), outros do mais ateno regulao (regras de funcionamento e responsabilidades dos setores pblico e privado, por

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    exemplo) e outros ainda enfocam mais os interesses de um ou mais atores do sistema (profissionais e agncias, por exemplo).

    A partir da definio anterior, sugerimos que os estudos de sistemas de sade tenham como fronteira a anlise da dinmica de um ou mais de seus componentes. Ou seja, os estudos devem ser abrangentes a ponto de considerar os aspectos sociais, polticos e econmicos que interferem nos sistemas de sade, mas tendo sempre como foco ao menos um de seus componentes e sua dinmica associada ou comparada aos demais.

    Os estudos de sistemas de sade guardam muita

    proximidade tanto com a anlise de polticas de sade como com a anlise de servios de sade. Na verdade, essas reas se encontram e usam recursos disciplinares prximos, como a epidemiologia, a economia, as

    cincias sociais e humanas, a cincia poltica, a

    administrao, etc. Essa interao positiva e deve ser estimulada, porque auxilia em muito o conhecimento dos sistemas de sade. Mas h que distingui-las.

    Como visto no Captulo 2, as anlises da poltica de sade priorizam as relaes polticas e institucionais entre os atores da rea de sade. L so priorizados os distintos interesses, projetos e estratgias de ao dos atores e organizaes, assim como seus efeitos sobre os sistemas. So menos importantes a rede e a prestao de servios, a estrutura de ateno, os programas, etc. Por exemplo, um estudo sobre a composio partidria da bancada parlamentar da sade no Congresso Nacional e suas propostas certamente um estudo de poltica de sade, mas no um estudo de sistema de sade. O mesmo vale para um estudo sobre o processo de formulao de uma lei de patentes, por exemplo.

    Tambm h distino entre estudos de sistemas de sade e estudos sobre os servios de sade. O sistema de servios de sade uma das partes do sistema de sade e pode ser caracterizado como o conjunto de organizaes responsveis pelas aes e servios dirigidos preveno, recuperao e promoo sade de uma dada populao.

    Os sistemas de sade influenciam e so influenciados pela dinmica da sociedade. Mas para estudar os sistemas de sade preciso delimitar fronteiras. Essas fronteiras so os componentes do sistema de sade e sua dinmica. Ou seja, os estudos de sistemas de sade so aqueles que se debruam sobre a dinmica de, ao menos, um de seus componentes.

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    Os estudos sobre os servios de sade priorizam o conhecimento dos efeitos das aes das instituies prestadoras de servios de sade sobre as condies de vida e sade da populao. Mas nem todos os estudos que so feitos sobre os servios podem ser considerados estudos de sistemas. Por

    exemplo, muitos estudos tm aprofundado o conhecimento sobre comportamentos e atitudes de pacientes frente a processos teraputicos diversos, com o intuito de aproximar os servios das situaes concretas de vida dos indivduos e assim alcanar resultados mais eficazes e humanizados. Esses estudos so importantes para a

    melhoria dos servios, mas no so a rigor estudos sobre o sistema de servios de sade (subsistema do sistema de sade). Seu enfoque no o servio em si ou sua dinmica, mas sim a demonstrao de como a reao a uma dada terapia afeta os indivduos e pode indicar alteraes nos servios.

    Se os sistemas de sade se definem por seus componentes e dinmica, o prximo passo saber quais so esses componentes e em que consiste sua dinmica.

    Para desenvolver esses aspectos, usamos em especial os trabalhos de Roemer (1985 e 1991), Evans (1981), Hurst (1991 e 1991a), da OECD (Organisation for Economic Co-operation and Development) (1992), do European Observatory on Health Care Systems (2002) e de Docteur & Oxley (2003). So trabalhos que se dedicam a anlises abrangentes de sistemas de sade de vrios pases e por isso utilizam tipologias que incorporam uma grande gama de componentes.

    Para efeito didtico, vamos apresentar os componentes dos sistemas separadamente e posteriormente trataremos de sua dinmica.

    5. Componentes dos sistemas de sade Os principais componentes dos sistemas de sade so a Cobertura, os Recursos

    (humanos, econmicos, a rede de servios, os insumos e a tecnologia e o conhecimento) e as Organizaes. A cobertura o componente mais importante de qualquer sistema de sade. Se o objetivo dos sistemas zelar pela sade dos cidados, deve-se saber quem coberto, por quem e para qu. Os recursos so os instrumentos materiais e humanos disponveis para o funcionamento da ateno sade, ou seja, so o conjunto de pessoas, instalaes, equipamentos e insumos incorporados na operao do sistema de

    Na parte IV deste livro voc ver os servios de sade como parte dos sistemas - seus componentes e dinmica.

  • 236

    sade. As organizaes so as agncias pblicas e privadas responsveis pelas funes dos sistemas de sade.

    5.1 Cobertura populacional e catlogo de benefcios e aes de sade

    A cobertura pode ser tanto de pessoas cidados de um determinado pas , quanto de servios. A cobertura de cidados diz respeito garantia do acesso da populao s aes e servios de sade. A cobertura de servios diz respeito amplitude da cesta: conjunto de aes e servios aos quais a populao tem acesso.

    Os sistemas combinam formas diferentes de cobertura de servios e cidados. Nos sistemas universais o acesso irrestrito a toda a populao e so cobertas desde aes coletivas at aes de assistncia mdica em todos os nveis. Os seguros sociais, como discutido anteriormente, nos seus primrdios, cobriam apenas determinadas

    profisses e, posteriormente, nos pases europeus, universalizaram a cobertura e atualmente cobrem mais de noventa por cento da populao. Nos pases da Amrica Latina, permanecem como parte de sistemas segmentados com parcelas importantes de populao no cobertas. Os sistemas segmentados em geral so compostos de

    subsistemas diferentes para segmentos distintos da populao. Em diversos pases do continente latino-americano, como na Argentina, por exemplo, convivem trs

    subsistemas: um subsistema de seguros sociais (Obras Sociales) dirigido aos trabalhadores do setor formal e financiado com contribuies sociais de empregadores e trabalhadores; um subsistema estatal, com cesta de servios restrita, financiado com

    COMPONENTES DOS SISTEMAS DE SADE Cobertura populacional e catlogo de benefcios

    Recursos econmicos (financiamento)

    Recursos humanos

    Rede de servios

    Insumos

    Tecnologia e conhecimento

    Organizaes

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    recursos oramentrios da Unio, provncias e municpios; e um outro subsistema privado acessado mediante compra de planos de sade ou pagamento direto.

    Mesmo sistemas universais podem ter um subsistema com acesso restrito a determinado segmento de cidados, em geral uma parcela da populao que pode pagar planos ou seguros privados de sade, ou que pagam diretamente pelos servios que

    usam. Mas na maioria dos sistemas universais, e tambm de seguros sociais europeus, essa parcela muito pequena (menos de 10% da populao). O Brasil exceo. Aqui, temos um amplo subsistema pblico universal que cobre todas as aes coletivas e individuais para toda a populao. E temos tambm um importante subsistema privado que cobre somente a populao que tem planos de sade, e a cobertura de servios depende dos contratos estabelecidos.

    5.2 Recursos econmicos (financiamento) Os recursos econmicos, como o nome j diz, dizem respeito ao financiamento

    disponvel para a ateno sade, ou seja, aos recursos que entram para ateno sade. Essa nfase importante, porque comum confundirmos esses recursos com a sua gesto dentro do sistema. Embora tudo diga respeito a financiamento, o fato de se

    saber a procedncia e quem paga o custeio e investimento no setor algo diferente da noo de como esse dinheiro gasto. Na literatura de lngua inglesa, essa distino mais clara, donde se d o nome de funding aos recursos econmicos que entram no sistema, e financing gesto interna desses recursos. No Brasil usamos indistintamente o termo financiamento, mas importante distinguir as diferentes situaes. A gesto dos recursos, ou financing, na verdade parte da dinmica do sistema, que trataremos mais frente.

    Os recursos destinados aos sistemas so um componente estratgico para que se atinja aos objetivos de proteger e melhorar a sade dos cidados. Como voc ver no Captulo 13, as experincias dos pases demonstram que quanto mais pblico e solidrio for o financiamento dos sistemas, mais ele atender a esses objetivos.

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    Os recursos econmicos de um sistema de sade podem ser pblicos ou privados. Os recursos pblicos so provenientes de tributos pagos pela sociedade e incluem os impostos diretos, indiretos e as contribuies da seguridade social (contribuies proporcionais aos salrios, ou outras, como temos no Brasil sobre o lucro, o faturamentos das empresas. Os recursos pblicos so de arrecadao obrigatria e administrados pelo governo, seja do nvel central, estadual ou municipal. Os recursos privados so aqueles pagos diretamente pelas famlias, empresas e indivduos e so chamados de voluntrios.

    Veja que tanto os recursos pblicos quanto os privados so pagos pela sociedade empresas, famlias e indivduos. A diferena que os recursos pblicos so de arrecadao compulsria e destinam-se ao conjunto da populao. J os recursos privados no tm nenhum

    compromisso solidrio. Quando pagamos por uma cirurgia ou consulta mdica, esse pagamento considerado um recurso aplicado em sade, mas sua utilizao privada e o acesso ou no a determinado servio vai depender da capacidade de compra de cada um. Da mesma forma, as empresas, quando pagam pelo plano de sade de seus empregados, esto dirigindo seus recursos para um grupo especfico.

    J os recursos arrecadados pelo setor pblico devem ser aplicados em polticas e servios destinados a toda a populao que ento poder acessar os servios conforme suas necessidades, independentemente da disponibilidade financeira de cada um.

    Como vimos nos modelos de proteo social em sade, abordados acima, e como se ver em detalhes no captulo 13, o modelo de financiamento dos sistemas influencia o seu desempenho. Os sistemas de sade universais privilegiam os recursos de base solidria, provenientes de impostos gerais e

    tendem a ser universais na cobertura da populao; os sistemas baseados no modelo de seguro social

    Como voc ver no captulo 13, um problema grave quando recursos pblicos so usados para o financiamento privado. Por exemplo, quando o governo autoriza o desconto no imposto de renda de parte do pagamento que os indivduos e famlias fazem a seus planos de sade, ele est subsidiando os planos privados das famlias.

    Essa discusso importante a ser enfrentada no financiamento do sistema de sade brasileiro. Isso porque se, por um lado, as pessoas concordam com esse desconto, alegando que pagam planos porque o SUS no funciona a contento, por outro, o desconto dado a essa parcela da populao recai sobre o conjunto que paga tributos. Mais razovel seria utilizar tais recursos na melhoria dos servios do SUS.

    O Sistema nico de Sade (SUS) financiado por recursos pblicos, tanto impostos quanto contribuies sociais. Ele fornece ateno sade universal a toda a populao.

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    baseiam-se em contribuies sobre os salrios e sua solidariedade relativa queles que so cobertos, deixando excluda parte da populao; j os modelos residuais tm financiamento pblico apenas para uma parcela muito pobre da populao, sendo os sistemas financiados principalmente por recursos privados.

    5.3 Recursos humanos

    So os profissionais e tcnicos que desenvolvem atividades na ateno sade, incluindo-se mdicos, enfermeiras, sanitaristas, profissionais de vigilncia sanitria, agentes de sade, farmacuticos, laboratoristas, etc.

    Com a complexidade cada vez maior das tecnologias em sade, paralelamente expanso da noo de sade para alm da cura e tratamento de doenas, hoje tem-se uma infinidade de profissionais responsveis por

    determinadas tcnicas e exames, como tambm h diversas outras profisses fundamentais para o funcionamento dos sistemas, como psiclogos, fonoaudilogos, nutricionistas, assistentes sociais, etc. Por outro lado, h tambm uma complexa rede de administradores, tcnicos especialistas em gesto de

    sade nos setores pblico e privado que, embora no exeram funes diretamente ligadas aos pacientes, participam dos sistemas de sade.

    Roemer (1991) tambm inclui como recursos humanos dos sistemas de sade as atividades exercidas por curandeiros e parteiras. Em alguns pases esses prticos fazem

    inclusive parte dos sistemas oficiais de servios sade. Mas na maioria praticam suas atividades de forma independente e podem mesmo v-la proibida em outros pases.

    Os recursos humanos no podem ser vistos apenas como recursos estticos. Os profissionais tm interesses, se organizam em corporaes, sindicatos e organizaes e tm muito poder de influncia na conduo dos sistemas. Organizados, eles podem manter um espao de autonomia e tambm de delimitao de seu mercado de atuao. Obviamente que as profisses centrais na ateno sade, como os mdicos, tm maior poder de organizao e influncia. Procuram conduzir a prtica das demais profisses e em geral ocupam as posies centrais na organizao dos sistemas. A capacidade de

    influncia das corporaes vai depender muito de quanto o Estado interfere na regulao do sistema de sade.

    No Brasil, por exemplo, com a criao da Agncia Nacional de Sade Suplementar, j se criou uma nova carreira, que a de especialistas em regulao.

  • 240

    A estrutura e a organizao dos recursos humanos em sade tm estreita ligao com a formao profissional. Na maioria dos pases a rea de formao em sade no atribuio direta dos sistemas de sade, mas sim das estruturas educacionais. Mas todos os sistemas tm, em maior ou menor grau,

    interferncia sobre essa formao atravs da regulao sobre os servios e prticas assistenciais.

    5.4. Rede de servios

    Os servios de ateno sade podem ser divididos em servios coletivos e

    servios de assistncia mdica.

    Os servios coletivos so todos aqueles que se dirigem preveno, promoo e controle de aes que tm impacto sobre o conjunto da populao (controle ambiental, saneamento, vigilncia sanitria e vigilncia epidemiolgica). Dependendo do sistema, esses servios podem ser prestados pela prpria rede de assistncia mdica (caso mais comum da imunizao), ou podem estar sob a responsabilidade de organizaes especficas (como um rgo de controle do meio ambiente ou uma agncia para a vigilncia sanitria, por exemplo).

    A rede de servios de assistncia mdica tambm pode mudar de acordo com o sistema. Mesmo sendo outra a forma de organizao, a estrutura e a extenso desses servios, podemos dizer que todos os sistemas possuem servios ambulatoriais (ateno bsica, clnicas especializadas, exames e procedimentos sem internao), hospitalares, servios de ateno a doenas crnicas (como hospitais ou servios especficos para doena mental, tuberculose, etc) e servios de ateno de longa durao (para ateno a idosos e deficientes, por exemplo), isso ocorrendo em espao pblico ou privado.

    Os sistemas procuram organizar seus servios em nveis de ateno de acordo com a complexidade da assistncia, o que orienta as prticas adotadas, a insero dos

    profissionais e a relao com outros servios. Assim, na maior parte dos sistemas

    Voc pode saber mais sobre os recursos humanos em sade nos captulos 9 e 29

    Para refletir

    Voc um profissional de sade? Sua profisso est organizada em associao, sindicato? Como sua profisso se posiciona em relao aos objetivos do SUS?

  • 241

    possvel identificar na rede de assistncia mdico-sanitria uma rede bsica ou primria e uma rede especializada.

    Os sistemas universais em geral do bastante nfase ateno bsica e preveno; por isso, so sistemas que alcanam melhores condies de sade com menos recursos. Em oposio, nos sistemas segmentados ou onde prevalece o setor

    privado de assistncia mdica, observa-se mais a ateno especializada; so tambm mais custosos e atingem nveis de sade piores que aqueles dos sistemas universais.

    Para refletir

    Como est organizado o SUS em sua cidade?

    5.5. Insumos

    Os insumos so todo tipo de recurso utilizado no tratamento e preveno em sade. Inclui equipamentos, medicamentos e todo tipo de suprimento para exames

    diagnsticos.

    A maioria dos sistemas de sade tem pouca interferncia sobre a produo de insumos, em geral sob controle de indstrias multinacionais privadas, o que faz

    desta uma rea de muitos conflitos. A indstria tem interesse em vender mais e mais produtos, nem sempre de eficincia comprovada, e usam os profissionais como intermedirios privilegiados para isso. Por outro lado, os sistemas dos pases pobres tm muita dificuldade em manter a proviso regular desses insumos, o que afeta diretamente as condies de sade da populao. Outro problema importante a distribuio de insumos no interior dos sistemas. As regies mais ricas tm em geral maior

    disponibilidade de insumos, muitas vezes muito alm do

    necessrio, enquanto outras padecem dos recursos os mais elementares.

    Os sistemas mais avanados possuem regulao mais rigorosa sobre a utilizao de insumos nos sistemas de sade. Para isso, adotam protocolos de servios, o que limita o uso indiscriminado de exames e medicamentos, permitindo uma maior racionalidade na utilizao e distribuio de insumos necessrios ateno sade.

    Para conhecer o setor de insumos como setor de atividade econmica, leia o captulo 7: Complexo Industrial da Sade

    Um dilema que atravessa o mundo diz respeito aos medicamentos para o combate AIDS. Veja em nosso captulo 27: Poltica de Aids.

    E, para aprofundar o tema dos medicamentos, leia o captulo 20: Assistncia Farmacutica.

  • 242

    5.6 Tecnologia e conhecimento

    A tecnologia e o conhecimento em sade so dois temas de grande relevncia para a melhoria das condies de sade das populaes, por discutir as alternativas e solues de novas tcnicas, prticas, procedimentos e insumos que permitem prevenir e

    combater os males em sade. Assim como os insumos, rea com que est diretamente relacionada, o campo da tecnologia e produo de conhecimento em sade distribuda de forma muito desigual entre pases e fortemente controlada pela indstria dos pases avanados. Por isso, os sistemas podem ter pouca interferncia na definio de

    prioridades, principalmente quando se trata de pases mais pobres.

    Tambm nessa rea os sistemas universais costumam ter desempenho melhor, pois alcanam construir e manter polticas pblicas unificadas de

    produo e difuso de conhecimento e novas tecnologias.

    5.7 Organizaes

    As organizaes dos sistemas de sade so os ministrios, agncias e demais

    estruturas responsveis pela conduo das atividades, aes e servios de sade. Os sistemas de diferentes pases, sejam eles mais ou menos organizados, centrais ou descentralizados, mais pblicos ou privados, possuem organizaes que cumprem funes formais, respondem legislao e regulao existentes e ocupam posies

    hierrquicas relativamente definidas. Isso ocorre de forma relativa, porque todas as organizaes possuem e respondem a certas relaes de poder, dominam recursos que podem ser mais ou menos valorizados no ambiente institucional dos sistemas, podendo sofrer variaes de um perodo a outro. Ou seja, alm das funes e atribuies legais, todas as organizaes respondem a regras provenientes do ambiente poltico, das relaes entre os atores, dos valores e normais sociais e da prpria organizao.

    Todos os sistemas, mesmo os mais privatizados ou mais frgeis na presena do Estado (como alguns pases africanos muito pobres, onde os servios de sade so quase inexistentes e dependem das agncias de ajuda internacional), possuem organizaes pblicas responsveis pelas aes de sade. No mnimo, respondem por aes de controle de fronteiras, vigilncia sanitria e epidemiolgica. Mas a maioria possui organizaes nacionais pblicas responsveis pelas atribuies centrais da ateno sade, mesmo que associadas a outras reas. E como as atribuies dos sistemas so

    Para aprofundar sobre este componente dos sistemas de sade, leia o captulo 8, Cincia, tecnologia e pesquisa em sade.

  • 243

    muitas e cada vez mais complexas, mesmo os sistemas mais unificados, com administraes centralizadas, diversificam suas funes em mais de uma organizao. O que importa para a efetividade de um sistema na garantia de condies cada vez melhores de sade para sua populao menos a diversidade de organizaes e mais como elas se relacionam, e em que medida so capazes de operar no sentido dessa

    efetividade.

    Baseado em Roemer (1991), destacam-se as principais organizaes presentes nos sistemas de sade, ressaltando que sua existncia, abrangncia e importncia mudam de pas a pas:

    Ministrios de sade/ departamentos e secretarias de sade onde h geralmente subdivises quanto s atividades preventivas e curativas e diferentes nveis de ateno, formao e administrao de recursos humanos, alm de uma srie de atividades como planejamento, regulao, relaes internacionais, relaes com outros nveis de governo, etc. O papel e abrangncia dos Ministrios depende da estrutura federativa dos pases. Em pases descentralizados, e dependendo da autonomia dos entre federados, estes podem ter estruturas similares aos ministrios nacionais.

    Previdncia Social em muitos pases as organizaes de previdncia social atuam diretamente nas funes de sade, pois so responsveis por parte importante da cobertura da populao.

    Outros ministrios - diversos rgos da estrutura estatal possuem

    atividades ou aes de sade, como os ministrios do trabalho, da educao, da agricultura, etc. Destaque em especial tm os ministrios de seguridade ou bem-estar social, que em muitos pases possuem atribuies de assistncia social diretamente ligadas sade, como os servios continuados para idosos e deficientes.

    Organizaes voluntrias - associaes no governamentais ou filantrpicas dirigidas prestao direta de servios ou apoio a determinados segmentos ou doenas (exemplos so os Alcolicos Annimos, a Cruz Vermelha e a brasileira GAPA (Grupo de Apoio Preveno da Aids), etc.

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    Associaes funcionais e sindicatos profissionais de sade - Roemer (1991) inclui associaes profissionais e sindicatos na categoria de organizaes voluntrias. Contudo, na estrutura dos sistemas, essas associaes no tm carter voluntrio, pois em geral tm atribuies de regulao e interferem de maneira significativa na gesto do sistema. Junto

    s associaes e sindicatos podem ser includas as associaes de gestores do caso brasileiro, como o Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade CONASEMS e Conselho Nacional de Secretrios de Sade - CONASS.

    Agncias reguladoras (o autor no trata especificamente das agncias reguladoras) com as reformas dos sistemas de sade, muitos pases incluram em seus sistemas agncias autnomas responsveis

    principalmente por atividades de regulao de determinados setores ou

    funes da sade. No Brasil, so exemplos a ANS Agncia Nacional de Sade Suplementar e a ANVISA - Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria.

    Empresas - organizaes privadas que prestam servios de sade,

    restritamente a seus empregados, contratadas pelo setor pblico ou abertas para o pblico.

    Para refletir

    Aps conhecer os componentes dos sistemas de sade, faa um exerccio de pens-los em relao ao sistema de sade brasileiro.

    6. Dinmica dos sistemas de sade A dinmica dos sistemas de sade pode ser caracterizada por funes e relaes

    que se estabelecem entre seus componentes, resultam em polticas, aes e servios prestados, determinam o desempenho dos sistemas e contribuem para os resultados negativos ou positivos nas condies de sade da

    populao.

    So quatro as funes principais dos sistemas de sade - o financiamento, a prestao de servios, a gesto e a regulao. Essas funes so

    desenvolvidas a partir de relaes polticas e

    A dinmica dos sistemas de sade pode ser caracterizada por funes e relaes que se estabelecem entre seus componentes, resultam em polticas, aes e servios prestados, determinam o desempenho dos sistemas e contribuem para os resultados negativos ou positivos nas condies de sade da populao.

  • 245

    econmicas que se manifestam atravs dos interesses dos agentes e atores envolvidos direta ou indiretamente com os sistemas de sade. Assim, podemos pensar em um diagrama onde os componentes do sistema so intermediados pelas funes principais do sistema e por relaes econmicas e polticas (Figura 1).

    FunesFinanciamento

    Prestao de serviosRegulao

    Gesto

    Contexto Social Poltico e Econmico

    Atores/AgentesInteressesProjetos

    Estratgias

    ComponentesCoberturaRecursos

    organizaes

    Figura 1 - Dinmica dos Sistemas de Sade

    Desempenho dos sistemas Condies de Sade

    6.1 Financiamento

    Refere-se aqui a parte do financiamento que diz respeito s relaes entre entes financiadores e prestadores de servios de sade ao interior dos sistemas. Como vimos

    ao tratar dos recursos econmicos, h uma diferena entre os recursos que sustentam os sistemas, e a forma como so divididos no interior dos sistemas. Os dois elementos so formas de financiamento, mas importante distingui-los. Como vimos, as principais fontes de recursos econmicos dos sistemas de sade so impostos gerais (sistemas de sade universais), contribuies sociais sobre os salrios (seguros sociais) e recursos privados (seguros ou planos privados de sade).

    Embora um sistema possa ser sustentado com recursos econmicos advindos de impostos gerais, contribuies sociais ou recursos privados, podemos perguntar: como

    esses recursos so distribudos no interior do sistema? Quem paga os servios? Como so pagos os hospitais? E os mdicos? Trata-se aqui de conhecer quem paga (governo, seguros sociais, planos privados, indivduos) e como se paga (unidades de servio

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    prestado, salrio, oramento, per capita, pagamento prospectivo). Na seco de recursos econmicos, tratamos de uma terceira parte do problema, que de onde vem o dinheiro do sistema de sade: as fontes de financiamento. Para conhec-las melhor, leia o captulo 13.

    Para conhecer as formas de pagamento a prestadores nos sistemas, usamos a

    terminologia desenvolvida nos trabalhos de Evans e Hurst (1991) e utilizada tambm pela OECD. Segundo essa terminologia, existem quatro formas de pagamento a prestadores de servios nos sistemas de sade, entendendo como prestadores mdicos, hospitais e clnicas que prestam assistncia mdica e demais servios.

    pagamento direto - indivduos e famlias pagam diretamente aos prestadores de servios.

    pagamento direto para posterior reembolso pelo seguro os cidados tm cobertura por seguros sociais (pblicos), seguros ou planos privados e pagam diretamente aos prestadores para serem reembolsadas posteriormente pelo seu seguro.

    pagamento indireto por terceiros pagadores segundo contrato os prestadores so pagos pelo governo, seguros sociais ou empresas operadoras de planos privados de sade, segundo preos acordados previamente. Os terceiros pagadores aqui so os

    governos, as caixas de seguros e as empresas operadoras de seguros e planos. E so chamados terceiros porque esto entre os cidados que acessam os servios e os prestadores, que prestam os servios.

    pagamento indireto por terceiros pagadores atravs de oramentos ou salrios quando governos e empresas de seguros e planos pagam no atravs dos servios prestados, mas a partir de um oramento geral e salrios fixos. Ou seja, os prestadores so empregados.

    H tambm distines nas formas como governos e empresas pagam os servios. Elas podem ser:

    Oramento: a forma tradicional de financiamento de hospitais pblicos. Os prestadores de servios recebem um montante de recursos (em geral anual) para cobrir todos os seus gastos e executar os servios. Esses oramentos, em geral, se baseiam em sries histricas de gastos realizados em anos anteriores. Os hospitais pblicos no Brasil

    eram financiados dessa forma at o incio da dcada de 1990.

  • 247

    Pagamentos prospectivos: so pagamentos feitos segundo o tipo de diagnstico e tratamento correspondente realizado com base a uma lista que classifica grupos de diagnsticos (diagnosis-related groups -DRG). No Brasil esta a forma de pagamento usada pelo SUS para pagamento de internaes em hospitais pblicos e privados e denomina-se Autorizao de Internao Hospitalar AIH (ver BOX 1).

    Per capita: como o nome diz, so os pagamentos baseados no quantitativo de pessoas adscritas a um determinado prestador. No sistema de sade ingls, por exemplo, os mdicos generalistas recebem uma quantia fixa por pessoa registrada em seu consultrio, independente de a pessoa ter utilizado o servio no perodo. O prestador recebe para manter servio disponvel para as pessoas sob sua responsabilidade. No Brasil, a legislao do SUS prev o critrio per capita para transferncias financeiras entre governos federal, estados e municpios. Atualmente, este critrio usado somente para a transferncia de recursos para a ateno bsica nos municpios. O Piso de

    Ateno Bsica PAB (para mais detalhes ver o captulo 15) um valor per capita e cada municpio recebe este valor multiplicado pela populao que possui (segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica -IBGE).

    Unidades de servio (fee for service): cada elemento do procedimento ou da interveno mdica contado separadamente e para cada um h um valor. Essa forma muito pouco usada nos sistemas universais, mas segue sendo a de maior uso entre os planos privados de sade. Esses valores so acordados previamente, mas como muito difcil controlar a quantidade de servios, e interessa ao prestador dispor de

    mais e mais servios para aumentar seu ganho, considerada uma forma muito custosa de pagamento de servios de sade. (ver BOX 1).

  • 248

    Como exemplos de formas de financiamento dos sistemas, tomamos uma figura do sistema de sade ingls (Box 2 e Figura 2) e a comparamos ao sistema de sade brasileiro antes e depois da reforma sanitria que levou constituio do SUS (Figuras 3 e 4).

    Box 2. Sistema de sade ingls

    A Figura 2, a seguir, mostra a estrutura do sistema de sade ingls (National Health Service-NHS). V-se a complexidade de um sistema de sade ao identificar fluxos de financiamento (linhas contnuas), servios (pontilhado) e referncias (linhas quebradas). O Servio Nacional de Sade ingls, financiado por recursos fiscais e de acesso universal tem por base a ateno primria prestada por mdicos generalistas (general practitioners-GP) que so a porta de entrada do sistema de sade por meio da inscrio de pacientes em seus consultrios. Assim, os pacientes esto no centro do diagrama e os prestadores de ateno primria localizam-se na parte superior, indicando a centralidade da ateno primria no processo de ateno sade da populao inglesa.

    Para refletir

    Analisando o Box 2 e as Figuras 2, 3 e 4 a seguir, como voc classificaria os modelos desses pases? Que diferenas voc identifica no sistema de sade brasileiro antes e aps a reforma sanitria?

    BOX 1

    Um exemplo de como as formas de pagamento a prestadores podem influenciar o desempenho dos servios ocorre no prprio sistema de sade brasileiro. Antes da vigncia do SUS, quando os servios pblicos de sade eram dirigidos pelo antigo INAMPS (Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social), o pagamento aos prestadores privados contratados pelo INAMPS era feito por unidades de servio (US) (ou fee for service em ingls) onde cada elemento do procedimento ou interveno mdicos era contado separadamente (como ainda hoje com os planos privados de sade).

    Essa forma de pagamento gera superproduo de procedimentos, j que os ganhos dos profissionais, clnicas e hospitais tanto maior quanto mais procedimentos usam ou indicam. A conseqncia o alto custo dos servios e a baixa capacidade de controle (com a possibilidade de muitas fraudes, como de fato ocorreu na poca). Isso compromete os servios, j que so valorizados os procedimentos cujas U.S. so mais bem pagas. Essa lgica tambm desvaloriza a preveno e a promoo em sade e estimula a populao a pensar o atendimento mdico como sinnimo de exames e intervenes, o que pode comprometer sua prpria sade.

    Ainda sob a vigncia do INAMPS, a unidade de servios foi substituda pela AIH Autorizao de Internao Hospitalar (ainda hoje utilizada para o pagamento de internaes), que fixa um valor para cada grupo diagnstico, prevendo j um conjunto de procedimentos a ele relacionados.

  • 249

    FIGURA 2 - SISTEMA DE SADE INGLS

    Fonte: http://www.oecd.org/

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    Figura 3 - SISTEMA DE SADE BRASILEIRO 1960 - 1980

    UNIO MINISTRIO DA SADE

    ESTADOS E MUNICPIOS

    PREVIDNCIA SOCIAL

    POPULAO EMPRESASUSURIOS

    HOSPITAIS E AMBULATRIO

    S PBLICOS

    UNIVERSIDADES, HOSPITAIS

    FILANTRPICOS, SINDICATOS

    RURAIS

    HOSPITAIS DA PREVIDNCIA

    SOCIAL

    MDICOSFinanciamento/PagamentoServios

    Oramento

    Oramento

    Sal

    rios

    U.S. - Unidades de servio

    U.S.

    Oramento

    Oramento

    Subsdios/Altas Hospitalares

    Oramento

    Pr-pagamento/ Per CapitaU.S.

    Tributos Especficos

    Tributos Gerais

    Tributos Gerais

    U.S.

    Prpagamento

    SERVIOS PRPRIOS DE

    EMPRE SAS E SINDICA TOS

    URBANOS

    HOSPITAIS E CLNICAS PRIVADOS

    GRUPOS MDICOS

    Fonte: Lobato, L. V. C. (2000) Figura 4 - SISTEMA DE SADE BRASILEIRO ATUAL

    UNIO MINISTRIO DA SADE

    ESTADOS E MUNICPIOS

    PLANOS DE EMPRESAS PBLICAS

    PLANOS PRIVADOS

    COLETIVOS

    POPULAO EMPRESASUSURIOS

    EMPRESAS DE SADE

    HOSPITAIS PBLICOS

    AMBULATRIOS PBLICOS

    HOSPITAIS PRIVADOS

    HOSPITAIS PBLICOS

    RESTRITOS

    HOSPITAIS/CLNI CAS DE

    EMPRESAS DE SADE

    CLNICAS E CONSULTRIO

    S PRIVADOS

    MDICOSFinanciamento/ PagamentoServiosU.S. - Unidade de Servio$ - Oramento

    Tributos Gerais

    Tributos Gerais

    Rateio

    Pr-Pagamento

    Pr-Pagamento

    AIH Per

    Capita/Populao U.S.

    AIH Oramento

    AIH

    U.S.

    Sal

    rio

    s

    Pr-pagamento

    Sal

    rio

    s e

    U.S.

    U.S.

    $

    U.S.U.S.

    U.S.

    $

    U.S.

    U.S.

    U.S.

    U.S.

    U.S.

    U.S.

    Fonte: Lobato, L. V. C. (2000)

  • 251

    6.2 Prestao de servios

    A prestao de servios o objetivo final de todo sistema de sade e, obviamente, servios melhores implicam melhor desempenho dos sistemas e melhores condies de sade das populaes. Melhores servios tm a ver com uma

    estrutura bem organizada, na qual os diversos nveis de ateno esto conectados e funcionam em harmonia, tendo como fio condutor as necessidades coletivas e individuais. Mas uma boa prestao tambm depende de que servios so prestados, ou seja, a abrangncia desses servios, assim como o

    modelo de sade adotado.

    Existem vrias formas de classificar a prestao de servios, mas a mais comum diz respeito complexidade da ateno, dividindo-a em ou servios primrios, servios secundrios e servios tercirios. Neste livro seguimos em linhas gerais essa

    classificao, considerando, contudo, esses nveis como nveis de ateno: ateno bsica/primria, ateno ambulatorial especializada e ateno hospitalar.

    Os sistemas tambm possuem, em maior ou menor grau, servios especficos para doenas crnicas ou de tratamento continuado, podendo ser considerados como horizontais em relao a essa classificao, j que requererem aes nos trs nveis de ateno. So tambm servios importantes nos sistemas aqueles de carter coletivo, como as aes de vigilncia sanitria e epidemiolgica, e os servios de promoo em sade.

    A oferta de medicamentos outro elemento importante da prestao de servios

    e, embora se realize nos distintos nveis de ateno, tem caractersticas particulares que fazem com que, em geral, esteja a cargo de setores especficos dentro da estrutura organizacional dos sistemas. Voc ver, nos outros captulos deste livro, as caractersticas de cada um desses nveis de ateno e dos demais servios de sade.

    Como voc pode ver, a funo prestao de servios se realiza na rede de servios, que um dos componentes do sistema, e por isso sua caracterizao muito

    Os modelos de sade, ou modelos assistenciais, podem ser entendidos como a concepo de sade que informa a prestao de servios. Uma concepo de sade que visa exclusivamente cura de doenas vai moldar uma prestao onde as aes curativas so priorizadas. J uma concepo que trata a sade como influenciada por diversas condies sociais, os servios vo priorizar uma relao estreita entre as aes curativas, preventivas e de promoo. Essa ltima a que est inscrita na nossa Constituio e na nossa Lei Orgnica de Sade.

  • 252

    similar da prpria rede. A diferena entre a rede como componente do sistema e a prestao de servios que a rede corresponde estrutura disponvel para a realizao de servios, e a prestao trata de como eles so prestados. Se de forma mais ou menos integrada, mais ou menos centralizada, com predominncia sobre a preveno ou a cura etc.

    Os sistemas universais tendem a conduzir a prestao de servios de forma mais integrada entre os diferentes nveis de ateno, mesmo que ela seja mais ou menos centralizada. Isso porque so em geral sistemas nicos, financiados com recursos fiscais, onde a rede majoritariamente pblica. Os sistemas segmentados tendem a conduzir a prestao de forma menos integrada e os servios podem inclusive se sobrepor, j que so limitados aos filiados a cada segmento.

    6.3 Gesto

    Gesto a funo de organizar e estruturar a prestao de aes e servios nos sistemas de sade. Traar as diretrizes, planejar, financiar e contratar servios, estruturar a rede de servios em seus distintos nveis, dimensionar a oferta, controlar e avaliar as aes. Os gestores tm papel cada vez mais relevante nos sistemas, porque deles a

    funo de relacionamento com os prestadores, sejam instituies pblicas, profissionais ou empresas.

    Em pases de sistemas descentralizados e integrados como o Brasil, a gesto do sistema de sade requer a interao constante com os outros nveis de governo para

    cumprir as diretrizes comuns, e tambm um razovel nvel de autonomia para a execuo das responsabilidades locais. Ainda, considerando a concepo ampliada de sade do SUS, a gesto local precisa articular polticas intersetoriais para executar aes que alcancem impacto nas condies de sade.

    Os gestores so tambm importantes na articulao poltica com os diversos atores sociais, como movimentos sociais, corporaes e associaes profissionais e

    instncias de controle social. Nesse sentido, a gesto em sade muito mais do que uma funo administrativa, tambm poltica.

    6.4 Regulao

    A regulao diz respeito ao conjunto de mecanismos legais e normativos que conduzem a relao entre os componentes dos sistemas de sade. A complexidade cada

  • 253

    vez maior dos sistemas de sade, com crescimento dos custos, incorporao de novas tecnologias, diversificao profissional e concentrao dos mercados, demanda regras que permitam a realizao dos objetivos dos sistemas.

    Embora sejam os governos os principais agentes de regulao, os mercados, os profissionais, os prestadores, possuem tambm mecanismos de regulao prprios, que

    nem sempre se coadunam com aqueles estabelecidos pelos entes governamentais. E nem sempre eficaz a criao de normas e a punio para quem no as cumpre. Os mecanismos de punio so intrnsecos regulao, mas a capacidade de fazer valer as regras ser tanto maior quanto menos a punio seja necessria. Por isso j se usa uma denominao para o que seria o equilbrio da regulao: capacidade governativa ou governana.

    Nos sistemas pblicos por contrato, um dos elementos mais importantes e complexos da regulao a contratualizao dos servios, ou seja, regras para aceitao dos prestadores, para a execuo dos servios, de desempenho e avaliao. Esse tipo de regulao envolve custos altos, porque os contratos so de difcil elaborao e implementao e acompanhamento. Assim, mais eficiente seria a cooperao entre

    prestadores e o setor pblico. Contudo, em ambiente com interesses muito distintos,

    isso bastante complicado.

    O tamanho da regulao estatal depender do papel do estado no sistema. Sistemas nos quais o setor privado predomina apresentam muitos problemas de regulao, porque as empresas de servios de sade (planos e seguros) baseiam seus lucros no controle sobre a utilizao de servios, e os mdicos no aceitam esse controle. o caso dos estados Unidos, onde hoje h conflitos intensos por arranjos de regulao que favoream um ou outro lado.

    7. Relaes sociais e a dinmica dos sistemas de sade Neste captulo procuramos apontar para a importncia de considerar os sistemas

    como parte da dinmica social. Ao mesmo tempo, alertamos que o estudo dos sistemas de sade requer o estabelecimento de fronteiras, sob pena de no aprofundamos o conhecimento sobre eles. Ao tratar da dinmica dos sistemas, destacamos que ela se caracteriza por funes e relaes que se estabelecem entre seus componentes, resultam

    em polticas, aes e servios prestados, determinam o desempenho dos sistemas e

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    contribuem para os resultados negativos ou positivos nas condies de sade da populao.

    Os componentes do sistema so formados por pessoas, grupos instituies, corporaes e empresas. Da mesma forma, as funes do sistema so exercidas por pessoas que tm interesses, defendem objetivos e tm expectativas e valores. Esses interesses, valores e objetivos podem estar mais ou menos organizados, possurem mais ou menos carter pblico, serem mais ou menos personalistas, mais ou menos corporativos. De toda forma, eles so interesses, valores e objetivos que circulam na arena poltica dos sistemas e atravs deles que as mudanas acontecem e se consolidam, ou no. Foi assim no processo de construo do SUS, como voc ver no captulo 12 sobre a histria do SUS e da reforma Sanitria.

    Reconhecer a existncia dessas relaes polticas e incorpor-las ao estudo dos sistemas identificar quem so os atores importantes no processo de deciso ou

    implementao de uma determinada diretriz do sistema. O que pensam, quais seus projetos, que recursos detm, que estratgias adotam.

    As estratgias, por sua vez, so intermediadas por regras, explcitas ou no, que podem restringir a atuao desses atores. Assim, os mdicos podem no conseguir

    exercer sua autonomia como gostariam, porque so regulados pelas normas de prestao de servios. Por outro lado, as organizaes responsveis pela gesto ou regulao no podem ultrapassar determinados limites sobre a autonomia mdica, pois dependem desses prestadores e podem comprometer a prpria execuo dos servios. Nas democracias, os governos podem querer adotar medidas restritivas para as quais encontram resistncia de setores da sociedade, e muitas vezes recuam de suas intenes para no comprometer sua representatividade e seu projeto de poder. Por outro lado, podem adotar medidas favorveis ao bom desempenho dos sistemas, como o objetivo de ganhar a adeso da sociedade. Essas so estratgias legtimas e so mecanismos importantes na anlise dos sistemas de sade.

    Para cada componente ou funo dos sistemas de sade h um conjunto de relaes sociais que interferem em sua dinmica. Os estudos de sistemas tm cada vez mais se debruado sobre esses aspectos. Embora sejam tradicionalmente elementos da anlise poltica, inegvel sua presena na conduo dos sistemas, da a necessidade de que os estudos passem a incorpor-los como elementos inerentes emergncia, desenvolvimento e, porque no dizer, ao desempenho dos sistemas de sade.

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    Leitura recomendada

    European Observatory of Health Care Systems. Health care systems in eight coutries: trends and challenges. Londres: European Observatory of Health Care Systems/ London School of Economics and Political Science; 2002.

    Roemer MI. National health systems of the world. New York: Oxford University Press; 1991.

    Rosen, George. Uma Histria da Sade Pblica, Editoras Unesp, Hucitec e Abrasco, 1994.

    Viacava et al.. Projeto Desenvolvimento de metodologia de avaliao do desempenho do sistema de sade brasileiro (PRO-ADESS). Relatrio Final. Rio de Janeiro: CICT/Fiocruz; 2003. Disponvel em www.proadess. cict.fiocruz.br

    Referncias bibliogrficas Docteur E, Oxley H. Health care systems: lessons from the reform experience. OECD Health Working Papers. OECD (Organisation for Economic Co-operation and Development); 2003.

    Evans RG. Incomplete vertical integration: the distinctive structure of the health-care industry. In Vander Gaag, J.; Perlman, M., ed., Health, economics and health economics. Amsterdam, Netherlands:North Holland Publishing Company: pp. 329353; 1981.

    Hurst J. The reform of health care systems in seven OECD countries. OCDE; 1991. Lobato, L. V. C. Reforma Sanitria e reorganizao dos servios de sade:efeitos sobre a cobertura e a utilizao de servios. Tese de doutorado. Escola Nacional de Sade Pblica, Fundao Oswaldo Cruz, 2000.

    Hurst J.. Reforming health care in seven European nations. Health Affairs, 1991a (Fall), 721.

    Immergut E. 1992. Health Politics Interest and institutions in Western Europe. New York: Cambridge University Press.

    OECD - Organisation for Economic Co-operation and Development. 1992. The reform of health care: a comparative analysis of seven OECD countries. OECD, Paris, Frana. 152 p.

    Roemer MI. National health systems of the world. New York: Oxford university Press; 1991.