Tese_Cipriano

download Tese_Cipriano

of 264

Transcript of Tese_Cipriano

Educao, modernidade e crise tica em Moambique

Antnio Cipriano

1

FICHA TCNICA Ttulo do livro: Educao, modernidade e crise tica em Moambique. Autor: Antnio Cipriano, PhD (Doutor em Filosofia) Capa: Faustino Lessitala Edio: Dondza Editora Local: Maputo, 2011 Tiragem: 500 exemplares N de Registo: 6915/RLINLD/2011

2

PrefcioO livro que o leitor tem nas mos e que o Prof. Doutor Antnio Cipriano pediu que fosse eu a apresentar ao pblico trata de Modernidade, Educao e Crise tica em Moambique. No um tema fcil, este. O livro no foi escrito sobre o joelho. O autor mostra conhecer todos os ngulos da problemtica da crise tica em Moambique. Ao longo das pginas desta obra justo e oportuno acrescent-lo ir-se- dando conta de que quem a escreveu no possui apenas a cincia dos livros; ele escreve com e a partir de experincia pessoal. O mrito deste livro consiste, antes de mais, em preencher uma lacuna na literatura actual sobre a tica em Moambique. O livro aparece na altura em que, Moambique acaba de incluir a tica na educao escolar (1998), comeando pelo nvel mdio, atravs do programa de ensino de Filosofia, como forma de resolver o deficit moral que se manifesta nos alunos egressos do ensino mdio. O autor aprofunda com lucidez as causas da crise tica em Moambique. A par do ocidente, Moambique passa por uma crise tica que, em grande parte, consequncia das suas duas modernidades: a socialista e a capitalista neoliberal. Com base na categoria filosfica de modernidade, o autor faz uma leitura histrico-filsfica da crise moambicana, apontando por um lado, ao que considera ser um dos seus principais factores, e por outro, como a escola pode participar na superao da crise tica contempornea. No lugar da forma catequtica e da

3

superficialidade no tratamento da crise tica no ensino da Filosofia, afirma o autor,a tica pode ajudar aos alunos a compreenderem a natureza dos problemas simblicos que se vivem no pas, procedendo a uma reflexo filosfica sobre o ethos, as razes de se viver eticamente e a relevncia do respeito da dignidade do ser humano. Tem o leitor nas mos um livro sadio, srio e oportuno pelo qual todos ficamos gratos ao autor pelas longas horas que levou a preparar e a escrever este livro. Que ele seja uma contribuio para se repensarem, tanto em nvel da sociedade poltica (rgos estatais) quanto no da sociedade civil (instituies de ensino), as polticas de educao, especificamente, as polticas de ensino de Filosofia, de modo a que elas respondam adequadamente aos problemas concretos colocados pela realidade em movimento: a histria. Espera-se que o livro desperte o interesse e oferea um ponto de partida para a realizao de pesquisas que focalizem a relao entre a tica e a Educao em Moambique, com mais diferentes olhares.Maputo, Janeiro de 2011 Prof. Doutor Pe. Joseph M. Wamala

4

MotivaoO meu interesse pela tica no geral e, especificamente, pelos problemas ticos de Moambique remonta do perodo em que era estudante jesuta, na Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte(1999-2001), Brasil. Decorria o ano de 2000, quando o professor Hugo Pereira do Amaral, foi proposto para ministrar o II Seminrio Filosfico, subordinado ao tema tica e Globalizao. Durante o seminrio, respaldando as preocupaes de Lima Vaz, que tambm foi o meu professor de tica Filosfica na mesma Faculdade, Hugo Amaral colocou-nos ao corrente do desafio que a civilizao ocidental enfrentava: o crescente processo de globalizao econmica, mas, em contrapartida, a dificuldade de se constituir uma tica Universal. Discutimos vivamente sobre esse desafio, buscando encontrar os fundamentos que sustentassem uma tica Universal. Uma das propostas filosficas que, para ns, poderia fundamentar uma tal tica, era aquela avanada por Hans Jonas. Este autor defende que a religio poderia fornecer bases para um ethos mnimo universal, em funo da afirmao da vida que peculiar a todas as religies, em que pesem as posies de alguns fundamentalistas. No mesmo ano 2000, passou pelo Centro de Estudos Superiores o reverendo Pe. Cirilo Moiss Mateus, SJ (in

memoriam), ento Superior Regional dos Jesutas de Moambique,em visita aos estudantes Jesutas moambicanos em formao no Brasil. No CES, ramos 4 estudantes de Moambique e, todos ns,

5

h pelo menos 4 anos no havamos nos deslocado a Moambique. Com a presena do Superior, estvamos curiosos para saber as notcias recentes sobre o pas e tambm ansiosos pelas futuras misses. Em resposta s nossas curiosidades e expectativas, o Pe. Cirilo apenas disse-nos que nos preparssemos do melhor modo possvel, aproveitando toda informao e formao que a Faculdade nos oferecia. Em Moambique eram grandes os desafios que nos esperavam durante o perodo do magistrio, a terceira etapa do longo processo de formao de um Jesuta. No entendimento do Superior Regional, um dos grandes problemas com o qual iramos nos deparar ao voltarmos a Moambique era a desorientao vivenciada pela juventude. Na fala do Superior Regional, uma das nossas tarefas seria a de servir de referncia para aquela juventude. objeco do meu amigo Joaquim Nhamire Huo que se dizia j estar ocidentalizado e, por isso mesmo, teria dificuldades em sua futura misso, o Pe. Cirilo, respondeu: pois meu caro Joaquim, prepare-se para discutir as categorias kantianas no interior de Moambique. Era outubro de 2000. Em Dezembro do mesmo ano o Pe. Cirilo viria a morrer num acidente de viao em Moambique. Terminada a graduao em Filosofia (Novembro de 2001), em Dezembro do mesmo ano cheguei a Moambique. Os quatro anos e dez meses de ausncia do pas tiveram o seu peso no contacto com Moambique. Para mim tudo parecia diferente. Deveria ser normal. Mas a agressividade que caracterizava as poucas relaes sociais que presenciei durante os 20 dias em que

6

fiquei na cidade, o oportunismo que tambm vivenciei na cidade, instauraram um golpe psicolgico em mim. Moambique havia mudado. Os meus superiores enviaram-me para a recndita localidade da Fonte-Boa, no interior da Provncia de Tete, centro do pas. Ali deveria ento perfazer mais uma etapa de formao jesuta: dos Jesutas, da pois a escola fora A magistrio, dando aulas na Escola Secundria da Fonte-Boa, at ex-propriedade no nacionalizada mbito revoluo moambicana.

Companhia de Jesus, em virtude da sua vocao educacional, ainda se fazia presente na misso do mesmo nome, contribuindo com a instruo e formao dos jovens moambicanos. Por isso, alm da docncia, tambm me foi pedido para coordenar a formao humana dos jovens da escola aqueles que estavam sem rumos. Por ser religioso, poderia constituir uma referncia exemplar para aquela juventude. Animado pelo esprito missionrio, armado pela Filosofia, convenci-me de que cumpriria cabalmente a misso. No contacto dirio com os estudantes, porm, as categorias kantianas e wittgenstenianas aprendidas na Faculdade de Filosofia revelaramse insuficientes para compreender a realidade que me circundava. Tratando-se de uma escola situada numa rea rural de Moambique, onde se pressupe haver maior respeito aos smbolos culturais da tradio, muitas vezes, o posicionamento dos estudantes para com algumas prticas culturais, as ditas tradicionais, que fazem parte do universo cultural dos mesmos educandos provava o contrrio. Boa parte dos estudantes da

7

escola recusava a identificar-se com

essas prticas, que, no

linguajar culturalista, so designadas por local da cultura. No meu entender, aqueles estudantes preferiam alta cultura propalada pela escola e pelos meios de comunicao. Eles julgavam aquelas prticas culturais como atrasadas, prximas selvageria. Agrediam os praticantes, desprezavam-nos, recusavam-se se identificar com aquelas manifestaes culturais, depois assumidas pela UNESCO, em 2005, como patrimnio cultural da humanidade. Refiro-me s manifestaes do Nhao , freqentes na Angnia.1

Foi mais um golpe. Indaguei-me se aquele posicionamento dos estudantes no era indcio de um mal-estar scio-cultural? Perguntei-me tambm, levando em considerao a vivncia na cidade sobre o como, quando e porqu parecia que havamos perdido o fio da histria, o saber tradicional que guiou as relaes sociais na nossa sociedade? A minha hiptese era a de que a educao escolar teria contribudo para a desorientao dos jovens. Desorientado, busquei responder pergunta. Elaborei um projecto de pesquisa, nas difceis condies da localidade (sem energia eltrica, mas com um laptop em casa), para concorrer ao mestrado em Educao. O ttulo do projecto era o velho e o novo

na prtica educativa: educao, modernidade e identidade sciocultural em Moambique. Eu me propunha a discutir o queconsiderava vigncia de crise das identidades scio-culturais na1

Denominao de uma dana autocne da provncia de Tete praticada pelos falantes da lngua Nyanja. No ano de 2005, a dana foi reconhecida pela UNESCO como patrimnio cultural da Humanidade.

8

sociedade moambicana que, no meu entender, era conseqncia da negao do passado. Uma hiptese simples sustentava a minha pretenso: o processo de modernizao de Moambique ps-independncia, atravs da revoluo, em que a educao escolar era a principal mediao, levou crise de identidades scio-culturais no pas. As leituras das teses de Doutorado dos moambicanos Brazo Mazula (1995) e Miguel Buendia Gmez (1999), e a dissertao de mestrado do moambicano Jos de Sousa Miguel Lopes (1995), dentre outros pesquisadores moambicanos e sob perspectivas diferentes, pareciam confirmar parte da em que a educao escolar era uma das minha hiptese. A implmentao do projecto de modernidade socialista mediaes fundamentais, cuja tarefa era a formao do Homem Novo, levou crise de identidades scio-culturais. Os trabalhos dos autores citados, porm, no examinaram as conseqncias da modernidade socialista moambicana. O projeto foi aprovado nos Programas de Ps-Graduao em Educao da Universidade de So Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais. Ingressei no mestrado da ltima Universidade. Porm, no pude desenvolver o projeto, pois outras agendas surgiram durante a caminhada. Mesmo assim, os questionamentos que levantei quando do primeiro projeto de mestrado no despareceram: aps um perodo de incubao e da compreeno da dinmica do campo educacional, decidi-me a aprofundar a minha inquietao em nvel de doutorado.

9

Esta obra condensa as reflexes feitas em vista obteno do grau de Doutor em educao, defendida a 25 de Junho de 2009 no Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Minas Gerais. Na obra exponho aquilo que considero ser a espinha dorsal da mesma tese, cujo foco a relao entre a tica e a educao e, de um modo especfico, a tica que se faz presente do programa de ensino de Filosofia no nvel mdio em Moambique. Inserida no mbito das polticas de Educao, alm de repensar a poltica de ensino de Filosofia, a obra tambm pretende ser uma contribuio terica e filosfica para o debate e o desenho das polticas educacionais em Moambique. As polticas educacionais, por sua vez, se materializam atravs de polticas e prticas de ensino. Estas exigem a elaborao de currculos e programas de formao coerentes com o projeto de sociedade a que um determinado Sistema de Educao est a servio. O trabalho pretende ser, por conseguinte, uma modesta contribuio para se repensarem, tanto em nvel da sociedade poltica (rgos estatais) quanto no da sociedade civil (instituies de ensino), as polticas de educao, especificamente, as polticas de ensino de Filosofia, de modo a que elas respondam adequadamente aos problemas concretos colocados pela realidade em movimento: a histria. Tambm espero, com este trabalho, despertar o interesse e oferecer um ponto de partida para a realizao de pesquisas que focalizem a relao entre a tica e a Educao em Moambique, com mais diferentes olhares. O programa de ensino de Filosofia oferece multiplicidade de olhares.

10

O meu olhar a esse programa levou-me a afirmar que no lugar da forma catequtica e da superficialidade no tratamento da crise tica no ensino da Filosofia, a tica pode ajudar aos alunos a compreenderem a natureza dos problemas simblicos que se vivem no pas, procedendo a uma reflexo filosfica sobre o ethos, as razes de se viver eticamente e a relevncia do respeito da dignidade do ser humano. No se trata de defender a imposio do respeito, mas sim, de refletir sobre a importncia desse respeito para uma vida tica e plena de sentido. Assim procedendo, a tica no ensino da Filosofia pode contribuir para orientar o agir dos alunos com maior clarividncia. Defendo, como argumento fundamental e ao mesmo tempo posicionando-me contra o carcter simplista de um discurso sustentado por determinados seguimentos acadmicos em Moambique que: a)alm de problemtico, o termo dficit moral no adequado para caracterizar a situao tica que se vive no pas; b) mesmo considerando que exista o referido dficit moral, o mesmo, contrariamente ao que sustenta esse discurso acadmico, no fora causado pela ausncia de Filosofia no ensino mdio; c) as origens do que neste trabalho prefiro designar de crise do ethos devem ser buscadas nos dois projectos de modernidade por que o pas passou: a modernidade socialista e a capitalista, esta ainda em curso. Ademais, considerando a concepo da tica proposta nos documentos analisados e defendida pelos intelectuais entrevistados, percebo que a proposta, atravs das orientaes metodolgicas, define princpios de uma moral, at certo ponto

11

disciplinadora, no ampliando uma discusso tica da sociedade global capitalista e da moambicana em particular, tambm orientada pelo capitalismo. A mesma proposio tambm no faz uma interrogao histrica sobre os problemas morais do mundo, da frica e de Moambique. Para o caso concreto de Moambique, tais problemas so fruto das opes poltico e econmicas, com implicaes scio-culturais. So essas questes de fundo que, provavelmente, se buscam olvidar para as novas geraes educadas no mbito da Filosofia. Seria pouco tico expr as minhas motivaes sem tambm expressar os meus agradecimentos vrias pessoas e em vrios mbitos. Primeiro, ao Pe. Roberto Alburqueque, SJ que, nos momentos mais dificeis da vida religiosa foi sempre um ombro amigo. O mesmo agradecimento tambm se estende ao Ir. Jlio Silvrio Guirrione que, nas noites escuras do noviciado sempre soube apontar-me a luz no fundo do tnel. Ao falecido Padre Cirilo Moiss Mateus, SJ, no tenho palavras. Ainda, nessas noites escuras do noviciado e noutras durante os estudos no Brasil, um agradecimento especial vai para Waquissone Everssone Magenda e para Joaquim Nhamire Huo. No fundo eles sabem o porqu dos meus agradecimentos. No deixo de lado os meus irmos brasileiros, Dirceu Incio Haas pelo incansvel apoio e compreenso durante os estudos filosficos em Belo Horizonte e Adenilson Ferreira dos Santos. O vosso apoio possibilitou atravessar o deserto em que a vida havia se tornado no Brasil. Outro mbito de agradecimentos dirige-se queles que me empurraram para o caminho da ps-graduao no Brasil e que em

12

momentos dificeis, l pelo longncuo ano 2003 possibilitaram a minha estadia em Maputo. Falo da Maria Ins Muinga Sumbana. A ela, junte-se o Professor Doutor Miguel Buendia Gomz , pela aposta, confiana, incentivo e a permuta das aulas na Universidade Tcnica de Moambique, fundamental para minha manunteno em Maputo e manter viva a chama do mestrado. Ao ex-Reitor da Universidade Tcnica de Moambique, Prof. Dr. Fernando Ganho (in memoriam), pela acolhida na instituio e concesso da licena para dar continuidade aos meus estudos de ps-graduao. O terceiro mbito dos agradecimentos direccionado aos que tornaram a minha vida fcil no Brasil. Primeiro Prof. Dr. Maria de Lourdes de Rocha Lima (Lourdinha), pela pacincia e o desafio de ter-me aceitado para me orientar, primeiro durante o mestrado e, segundo, em nvel de Doutorado aps a experincia do Mestrado. Ao Manuel Valente Mangue, amigo de sempre, pelo encorajamento em dar continuidade aos estudos em nvel de Doutorado.E, mais uma vez, ao meu amigo Direceu Incio Haas que, atravs da Escola Superior Dom Hlder Cmara me acolheram, no primeiro ano de Doutorado, como professorestagirio, um estgio que me possibilitou iniciar os meus estudos na condio de estrangeiro sem bolsa. Ao Prof. Dr. Luciano de Faria Mendes Filho, quando coordenadora do Programa de Ps-Graduao: no cruzou os braos at conseguir a bolsa que me tranqilizou psicologicamente para prosseguir com os estudos, num momento

13

em que via gorada a possibilidade de terminar o incipiente Doutorado. Ao ex-Centro de Estudos Brasileiros em Maputo e CAPES Brasil, esta ltima por ter aceito os argumentos do Programa de Ps-Graduao e prontamente decidir em me apoiar, concedendome, extemporaneamente uma bolsa de estudo no mbito do PECPG, fundamental para o meu estudo e pesquisa de que resultou a tese agora transforma em livro. Prof. Dr. Rosemary Dore Heijmans, pela pacincia e instigao sobre os caminhos da pesquisa e tambm por me ter acolhido em sua casa durante o primeiro ano de Doutorado. Aos professores e funcionrios do programa de Ps-Graduao em Educao da UFMG. Em quarto lugar, dirijo agradecimentos aos moambicanos e aos brasileiro(a)s que tiveram pacincia de ouvir os meus devaneios filosficos, especificamente: Fabio Aurlio Ginja, Hlder dos Anjos Augusto e Gilberto Mariano Norte, com quem passei horas discutindo o projeto e a tese; o dr. Mrio Viegas, quando chefe do Departamento de Filosofia da UP, por ter aceito discutir os pontos de vista sobre a tica no ensino de Filosofia e aberto o arquivo para a pesquisa; o Prof. Dr. Jos Paulino Castiano do Departamento de Filosofia da UP pela disponibilidade em esclarer dvidas sobre o processo de introduo da Filosofia no ensino mdio moambicano; os colegas professores de Filosofia da Escola Secundria Josina Machel que tambm aceitaram discutir comigo os meus pontos de vista; os alunos dos vrios cursos das

14

Univesidades Tcnica de Moambique, So Toms e Pedaggica por aceitarem participar da pesquisa atravs do preenchimento do questionrio; os funcionrios do INDE, especialmente, Dr. Ernesto e Sendela, dona Elsa e Sr. Camundimo assim como o Bibliotecrio do INDE; a bibliotecria-chefe do CEA, Dr Suzana Maleane; os funcionrios do processamento tcnico das Faculdades de Economia e de Letras da Universidade Eduardo Mondlane, Dr. Gildo Chilondjo e Dr. Ranito Varela, e do Centro de Documentao e Informao da Assemblia da Repblica (Maputo), pela disponibilidade e informaes prestadas durante a pesquisa de campo. Um agradecimento especial ao meu amigo e companheiro de caminhada, Serafim Adriano, ao Drio Gaspar e ao Meirinho Muss que me acolheram quando do meu retorno ao Brasil terminada a pesquisa de campo; igualmente tambm os meus agradecimentos vo para o Prof. Dr. Batista Bina pelo acolhimento; s brasileiras Maria do Carmo Vargas e Denise Bianca, colegas do mestrado que sempre me acompanharam com as quais partilhei as minhas angstias, dvidas e incertezas. Maria Ins Barreiro Senna e Claudia Oliveira, amigas do Doutorado e do grupo de pesquisa em Polticas de Educao, pela presteza em me ajudar nos momentos mais difceis da comunicao com o Brasil.

15

Em fim, agradeo a todos que direta e indiretamente me ajudaram, mas no os mencionei aqui. Dentre este ltimo grupo no figuram, certamente, a Universidade So Toms de Moambique, concretamente na pessoa do seu respectivo Reitor, o Pe. Joseph Wamala. Quando da minha despedida em 2004 rumo ao mestrado deixou-me as portas abertas. Mesmo tendo-lhe informado, no fim de 2005, que iria dar continuidade aos estudos em nvel de Doutoramento, a mesma abertura ainda continuava. No momento em que precisei de ficar em Moambique, durante a pesquisa de campo, a Universidade So Toms de Moambique desempenhou um papel fundamental. Terminados os estudos de Doutoramento de que resultaram a presente obra, a aposta da Universidade na pessoa do respectivo Reitor ainda continuava firme. Hoje, a publicao da obra foi toda ela com o apoio moral e financeiro da Universidade So Toms, pelo que sou eternamente grato a ela e ao seu respectivo Reitor. Nesta meno, um agradecimento especial vai para Catarina Fernando Mahumane. Sem palavras. Ao terminar a lista infindvel de agradecimentos, cabe uma adevertncia ao caro leitor: se no se apercebeu, ao longo do texto, h e haver mistura ortogrfica entre o portugus brasileiro e o portugus de Portugal. Apelo a sua compreenso, pois nem mesmo as revises lingusticas foram capazes de limar essas arestas. Em grande parte o computador parece ter ajudado.

16

Dedico esta obra ao senhor Cipriano Parafino Gonalves e senhora Elieza Amrico Gonalves, meus pais, que h quase quarenta anos lutam pela introduo dos mais novos no mundo, por meio da educao. Ao primeiro, dedico esta tese pela aposta e incentivo, mostrando que a educao era o caminho que se devia seguir. segunda pela sua pacincia de me, vivendo a dor interna de ter um filho distante sem saber o que de fato tem acontecido. Ao Denzel Amani Sumbana Parafino Gonalves: juntos passamos os primeiros dias no hospital, dividindo entre as visitas, a pesquisa de campo e o trabalho para sustentar a famlia. Mesmo assim, ainda no pode entender, mas espero que me perdoe por esses anos que passei longe no momento em que mais de mim precisava. Maysa Edwiges Sumbana Gonalves:espero que com esta obra j consiga ausncias compreender as razes das minhas

17

IntroduoAps permanecer por um longo perodo expurgada dos problemas educacionais considerados relevantes, a tica tornouse num dos temas privilegiados das iniciativas oficias sobre a educao. O lugar de destaque que a tica vem ocupando na educao escolar, atestado pela multiplicao de discursos a favor da sua incluso em diversos sistemas de ensino, deve-se crise espiritual tica - com que se defronta a civilizao ocidental e as outras civilizaes influenciadas pelo modo de vida ocidental. A referida crise espiritual, ou crise tica contempornea, de acordo com Georgen (2005), tem sua origem em dois fatores: a desestabilizao dos critrios tradicionais que orientavam o agir e o viver humano e a ameaa representada pelo uso da tecnologia com poder de destruio do homem e da natureza. Para Lima Vaz (1997), a crise tica contempornea conseqncia do que autor denomina de terceiro ciclo da modernidade ocidental. Esta modernidade, conforme Lima Vaz, uma poca histrica caracterizada pela tentativa do Homem assumir, na sua absoluta liberdade, a fundamentao das normas, dos valores e dos costumes: o ethos. Dessa tentativa, argumenta ainda Lima Vaz, resultaram o niilismo e o relativismo tico, configurando uma sociedade sem consensos sobre normas que devem orientar as aes humanas. O niilismo e o relativismo tico, considerados por Lima Vaz (1997) como filhos do terceiro ciclo da modernidade ocidental, explicam as perplexidades ticas vivenciadas na contemporaneidade. So as perplexidades na ordem dos valores,

18

normas e costumes que demandam a incluso da tica na disciplina escolar. Documentos oficiais produzidos por organismos

internacionais, como a UNESCO (1972), tm recomendado aos governos dos Estados membros para inclurem, nos programas de ensino dos seus sistemas educacionais, temas que versem sobre a tica e/ ou valores no processo educativo escolar. A escolha da escola como um dos locais privilegiados para se buscar resposta e/ou soluo da crise tica deve-se ao fato dela ser o espao que movimenta um maior nmero de pessoas (GRAMSCI, 2004B). Neste espao, procede-se formao e socializao dos intelectuais, atravs da difuso de um modo homogneo de pensar. Atravs da tica, a escola, aps a famlia, busca difundir valores, normas e costumes, em princpio, homognos, que devem perdurar numa determinada sociedade, tica dos indivduos Apesar das recomendaes dos organismos realizando a educao

internacionais sobre a necessidade de se incluir a tica e temas a ela correlacionados nos sistemas de ensino, sabe-se que cada contexto especfico vive seus prprios problemas, embora a crise tica contempornea seja global. Os problemas especficos vivenciados por cada contexto levam os formuladores das polticas educacionais nesses contextos a escolherem concepes de tica que possam melhor responder a esses problemas. A escolha influenciada pelas correntes de pensamento seguidas pelos formuladores da referidas polticas. A incluso da

19

tica e de temas a ela correlata na educao escolar orientada pela sinonmia entre tica e Moral, quer atravs do ensino de Filosofia, quer como tema transversal, caso no se preste ateno aos significado dos termos tica e Moral, pode guardar o sentido de educao moral strictu sensu: inculcao de normas e prescrio de regras conduta e/u comportamento. Para autores que se orientam pela distino entre tica e Moral, a incluso da tica na educao escolar visa a se proceder a uma reflexo filosfica sobre ethos, de modo a ajudar o aluno a ter critrios de discernimento para melhor orientar o seu agir num mundo conturbado e desestabilizado em termos de valores. Assim, dependendo da concepo de tica que norteia os formuladores das polticas educacionais, em cada contexto, tem-se um determinado propsito em relao incluso da tica na educao escolar e uma concepo de tica. Em Moambique a tica foi introduzida no ensino mdio como um dos eixos temticos do Programa de Ensino de Filosofia. Por isso, cumpre-nos descrever, sumariamente, o processo de reintroduo da Filosofia no ensino mdio para depois examinarmos o lugar pedaggico da tica.

20

1. A reintroduo do ensino de Filosofia1.1. ActoresEm Moambique, o ensino da Filosofia, foi banido da educao escolar quando da independncia do pas (1975), como desdobramento da revoluo poltico-social sustentada pelos dirigentes do pas, no mbito do projeto de edificao do socialismo. No campo educacional, pretendia-se operar uma ruptura com os objetivos, princpios pedaggicos e a estrutura da educao colonial e tambm da tradicional (MOAMBIQUE, 1985). A educao colonial, conforme explica Chambisse , teria alienado2

o moambicano, desenvolvendo nele a conscincia de ser bom portugus (2006, p.58). O ensino da Filosofia, argumenta o autor citado, foi usado pela educao colonial como uma das mediaes para a afirmada alienao o moambicano. Por isso, no processo de reorganizao da educao escolar moambicana , que tinha como objetivo central a formao3

do Homem Novo socialista, revolucionrio e com uma nova mentalidade, os dirigentes decidiram expulsar, pela porta frontal, o ensino da Filosofia da nova educao escolar. No lugar da

2

Ernesto Chambisse foi um dos membros da equipe que coordenou o processo de introduo da Filosofia no ensino mdio. As reflexes que ele faz em torno da Filosofia so parte da sua dissertao de Mestrado sobre a contribuioda filosofia para a aprendizagem significativa. 3 Um dos marcos do processo de reorganizao da educao moambicana, aps a independncia do pas, foi aprovao das Linhas Gerais do Sistema Nacional da Educao pela ex-Assembleia Popular (resoluo 11/81 de 17 de dezembro de 1981) e a promulgao da Lei 4/83 de 23 de Maro que aprovava o Sistema Nacional da Educao de Moambique independente.

21

Filosofia, foram introduzidos a educao poltica e o marxismoleninismo. Vinte e trs anos aps ter sido expulsa, pela porta frontal, o ensino da Filosofia era trazido de volta ao Sistema Nacional de Educao de Moambique. Mas pela janela .4

O processo de reintroduo do ensino da Filosofia no nvel mdio moambicano envolveu trs actores: o Ministrio da Educao (MINED) , a Universidade Pedaggica (UP) , atravs do5 6

Departamento de Filosofia e o professor Severino Elias Ngoenha .7 8

Conforme ainda faremos meno, a introduo da Filosofia foi restrita a apenas um segmento de alunos do ensino mdio. Ademais, as anlises de Chambisse (2006) sugerem que a Filosofia, no ensino colonial, se fazia presente apenas no nvel superior. Na educao moambicana ps-independncia, a Filosofia no constava em nenhum dos nveis de ensino. Quando foi reintroduzida a partir do ensino mdio, as instituies de nvel superior tambm passaram a incluir a Filosofia nos respectivos currculos, nos quais os programas de ensino variavam de Instituio para Instituio. 5 Designao dessa instituio do Estado entre 1988 a 2005, ano em que passou a ser chamado de Ministrio da Educao e Cultura, este ltimo tambm foi usado para design-la entre 1975 e 1988. Ao longo do trabalho, a citao dos documentos ir obedecer s duas designaes. O pedido do Ministrio da Educao ao Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica para que encontrasse solues para o problema da falta de professores de ensino de Filosofia foi formalizado atravs do ofcio 1598GMMINED1997, datado de 16 de Setembro de 1997. 6 A Universidade Pedaggica, criada pelo decreto 13/95 de 25 de abril de 1995, resultou da transformao do Instituto Superior Pedaggico, fundado em 1986. Cabe Universidade Pedaggica formar professores em nvel superior para atuarem no ensino mdio e tambm garantir a formao de outros profissionais da educao. Assim, a instituio, em que pese a sua respectiva autonomia, pode ser considerada uma extenso do Ministrio da Educao, dado que ela oferecia cursos de formao de professores segundo as demandas do Ministrio da Educao. 7 O Departamento de Filosofia, em 1997, possua apenas quatro (04) professores.. 8 Severino Ngoenha de nacionalidade Moambicana e doutor em Filosofia pela Universidade Gregoriana. Quando da reintroduo da Filosofia, era o nico moambicano com titulao nessa rea. professor da Universidade de Lousanne, na Sua, onde residiu desde que terminou o Doutoramento, at o ano de 2010. A partir de 2010 passou a residir em Moambique, integrando-se no Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica.

4

22

Foi do MINED onde, oficialmente , emergiu a idia de se9

reintroduzir o ensino de Filosofia para os cerca de 6 343 alunos10

que freqentavam, em todo o Pas, as 12 escolas do nvel mdio geral. Deve-se considerar, entretanto, que nos registros da histria educacional de Moambique do ensino no superior consta, na desde a de institucionalizao legislao

Moambique (Lei 4/83 de 23 de Maro e Lei 1/93), a existncia de cursos de graduao em Filosofia, tanto na Faculdade de Educao da Universidade Eduardo Mondlane(UEM), quanto na Faculdade de Cincias Sociais da Universidade Pedaggica. Nesta ltima, embora sempre houvesse um Departamento de Filosofia, no mencionado, nos respectivos registros, a existncia de algum curso de Licenciatura em ensino de Filosofia. No havia, por conseguinte, professores graduados pelo Estado para a realizao da idia do Ministrio da Educao .11

Oficialmente porque, em 1993 e 1996, respectivamente, a Universidade Pedaggica, atravs do seu Departamento de Filosofia, manifestou o interesse de introduzir o ensino de Filosofia, porm, a proposta no encontrou acolhimento no Ministrio da Educao. Outros atores da Sociedade Civil, como as Igrejas Crists, provavelmente, tambm tinham interesse em ver a Filosofia no ensino mdio. Entretanto, foi o Ministrio da Educao que tomou a iniciativa. 10 Alunos referentes ao ano de 1997.Informao do Censo Demogrfico de 1997 retirada da pgina do Instituto Nacional de Estatstica. http://www.ine.gov.mz/sectorias_dir/educacao9804/educacao, data de acesso: 27.01.2008. Em 1998, o nmero de alunos que freqentou os dois anos do nvel mdio do sistema de ensino de Moambique foi cerca de 7500 (cf. Departamento de Estatstica do Ministrio da Educao: Estatsticas, 2003, p.7). 11 O fato de no haver uma faculdade de Filosofia na histria da educao superior do pas, no significa afirmar que o pas no tivesse profissionais com formao em Filosofia. Alm dos seminrios catlicos que ofereciam o curso de Filosofia, mas no reconhecido pelo Ministrio da Educao, no pas, havia sacerdotes, ex-sacerdotes, exreligiosos e leigos que cursaram Filosofia em Instituies de Ensino Superior estrangeiras, cujos graus acadmicos eram reconhecidos em Moambique. O Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica restringia-se a ofertar a disciplina de Filosofia para os vrios cursos de formao de professores.

9

23

Para superar a falta de professores de ensino de Filosofia no nvel mdio, o MINED pediu a colaborao da UP: preparar professores para atuarem nas escolas no nvel mdio , a partir do12

ano de 1998. Atravs do Departamento de Filosofia, a UP, conforme sublinhou Ronaldo ,13

tendo constatado que ele no reunia condies para a abertura de um curso em nvel de graduao para a formao de professores de Filosofia, chamou o professor Severino Elias Ngoenha de modo a ajudar a encontrar uma soluo que atendesse ao pedido do Ministrio da Educao.[RONALDO, entrevista a 08.08.2007 em Maputo] A soluo encontrada pelo Departamento de Filosofia e o professor Ngoenha foi a oferta de cursos intensivos de curta durao. Ao todo, foram organizados trs cursos, nos anos 1997/1998, 1999/2000 e 2001/2002 , respectivamente , tendo sido14 15

frequentados pelos ex-seminaristas e ex-religioso(a)s que haviam cursado Filosofia nos Centros de Formao Sacerdotal

Conforme os documentos oficiais, em 1997, o Ministrio da Educao manifestou o interesse em introduzir a Filosofia para o ano letivo de 1998. 13 Nome fetcio. um dos intelectuais entrevistados na cidade de Maputo. Atualmente professor do Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica. 14 No mbito da reforma curricular da Universidade Pedaggica, em 2003, o curso intensivo de dois anos foi abolido, tendo sido introduzido, no seu lugar, a graduao com quatro anos de durao. 15 Era 30 o nmero de candidatos a professores de Filosofia que freqentava o primeiro curso intensivo.

12

24

(Seminrios)

e/ou nos Institutos de Formao Religiosa . A16

formao, naqueles cursos intensivos, era especfica, com a anos,

complementar e

finalidade imediata de ensinar Filosofia no conferia-se, aos candidatos, o grau de17

ensino no nvel mdio. A referida formao era feita durante dois aps os quais Licenciatura em Ensino de Filosofia . Essa modalidade de admisso Licenciatura em ensino de Filosofia e, por conseguinte, UP vinha solucionar trs problemas. Primeiro, respondia urgncia do MINED: em dois anos, estariam garantidos os professores de ensino de Filosofia de que o Ministrio necessitava. Segundo, o curso de formao intensiva tambm colocava trmino a um conflito institucional entre o Estado moambicano e a Igreja Catlica: o no reconhecimento, por parte do Estado, dos estudos realizados nos seminrios religiosos. Conforme Ronaldo explicitou

havia

um

problema

institucional.

Tu,

ao

terminares o seminrio, no vais ao Ministrio da Educao e Cultura (MEC) dizer que agoraA orientao religiosa do curso de Filosofia freqentado pelos candidatos a professores foi uma das razes do ceticismo e desconfiana que cercou a (re)introduo da Filosofia no ensino mdio. 17 O Departamento de Filosofia assim procedeu porque o terceiro ano do curso de graduao, nas vrias organizaes por que passou o ensino superior moambicano desde a independncia do pas, correspondia ao grau acadmico de bacharel, condio para a freqncia da Licenciatura, com durao de dois anos, que marcava o fim do primeiro ciclo do ensino superior. Como os candidatos a professores de ensino de Filosofia haviam concludo o terceiro ano de Filosofia orientada para o sacerdcio, o fato permitia-lhes que fossem admitidos aos cursos de formao intensiva de professores de ensino da Filosofia.16

25

sou bacharel agora sou licenciado. Mesmo que fosse padre, no te davam o ttulo de doutor. Ento, esses que saram das instituies religiosas tinham do problemas grau de reconhecimento acadmico.

[RONALDO, entrevista a 09.09.07 em Maputo]. Aquele oficial do intelectual sublinhou que o no reconhecimento acadmico obtido no Seminrio era da

grau

responsabilidade da Igreja Catlica. Conforme ele,

[..] aparentemente esse problema era do Ministrio, mas era das instituies religiosas, pois no queriam perder o seu pessoal, pois ao saberem da existncia de uma brecha no ensino superior, poderiam sair. Isto trouxe problemas no relacionamento entre a UP e a Igreja [RONALDO,Maputo]. Alm do receio da Igreja Catlica de perder o seu pessoal, cabe registrar que havia um conflito entre a Igreja e a Frente. A causa do conflito, aparentemente, era a orientao laica da Frelimo decorrente da adoo do marxismo-leninismo. No entanto, a Igreja Catlica, excetuando algumas individualidades , foi uma das18

entrevista a 08.09.2007,

principais mediaes de que se serviu o governo colonial para persecuo da poltica de colonizao. Por ter estado a servio da18 Alguns prelados apoiaram a causa da libertao e criticado a ao colonial, entre os quais o bispo da Beira, Dom Sebastio de Resende.

26

colonizao, quando da independncia do pas, a Frente teve um relacionamento hostil com a Igreja Catlica. Uma das aes da Frente, justificada com base no argumento de que se tratava de democratizar o acesso aos servios bsicos de sade e de educao, foi a nacionalizao de todas as infra-estruturas e tambm dos bens pertencentes Igreja Catlica no campo da educao e da sade .19

Mesmo diante do mencionado conflito e do pouco interesse da Igreja Catlica em tornar a formao em Filosofia reconhecida pelo Estado, o Departamento de Filosofia continuou a oferecer os cursos intensivos de formao do professor de ensino de Filosofia, dirigidos, sobretudo, aos que deixavam a vida sacerdotal e/ou religiosa. Atravs de tais cursos, a UP, reconhecia, implicitamente, o grau de bacharel e, conseqentemente, validava os estudos de Filosofia realizados nos seminrios sacerdotais da Igreja Catlica. Terceiro, o Departamento de Filosofia, atravs dos cursos intensivos, tambm resolvia o seu prprio problema decorrente da reintroduo do ensino de Filosofia no nvel mdio: garantir a existncia de professores para o Departamento que, por sua vez, formariam os futuros professores para ensino de Filosofia nas escolas secundrias .20

19 Algumas casas de culto pertencentes Igreja Catlica foram confiscadas e transformadas em armazens. 20 Alguns daqueles candidatos a professores de Filosofia, que freqentaram o curso intensivo, foram admitidos como professores efetivos no Departamento de Filosofia. O problema da qualificao dos professores para atuarem no nvel superior em Moambique est longe de ser superado. Quando da independncia do pas, em face da poltica de massificao do acesso ao ensino superior, os dirigentes educacionais

27

Ainda no mbito da reintroduo do ensino de Filosofia, o acordo de colaborao entre a UP e o MINED no previa que o Departamento de Filosofia elaborasse o livro didtico. Conforme referiu Samuel,

[...]

em

termos para

humanos, lecionar a

como

formar foi

professores

cadeira,

responsabilizada a UP em estreita articulao com o MEC. Mas tambm foi responsabilizada a UP para a concepo do prprio programa de Filosofia. Agora, apetrechar as escolas de material, isso da responsabilidade do MEC e no da UP. Esta ficou com a responsabilidade de formar professores e tambm de conceber os programas de ensino. Agora, organizar o material para sustentar essa actividade, isso da responsabilidade do Ministrio [Samuel ,21

entrevista nossos]

a

18.09.2007,

em

Maputo-grifos

O MINED, entretanto, at a data do incio das aulas de reintroduo do ensino da Filosofia no havia disponibilizado o livro didtico para o uso tanto dos alunos quanto dos professores. A falta do livro didtico, de acordo com o intelectual citado, poderia tornar o ensino de Filosofia uma educao cvica e moral. Pretendendo evitar que o ensino de Filosofia se revelasse umadecidiram que os graduados do ensino superior deveriam dar aulas nos cursos de graduao, um fato que ainda persiste at o presente momento. 21 Nome fetcio. Um dos professores de Filosofia no ensino mdio e tambm do Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica em Maputo.

28

educao moral e cvica, acrescentou Samuel, o Departamento deFilosofia procedeu elaborao de um livro didtico para o uso do professor. Com os programas de ensino, o livro didtico e os22

professores em formao no curso intensivo, o Ministrio da Educao procedeu ao incio da reintroduo do ensino de Filosofia no nvel mdio do educao escolar moambicana, cuja estratgia a seguir explicitada.

1.2. EstratgiasA estratgia escolhida pelo trs atores para a reintroduo do ensino da Filosofia foi a testagem experimental de dois anos (1998 e 1999) que contemplou duas escolas da capital do Pas23

(Maputo) - as escolas secundrias Josina Machel e Francisco Manyanga, respectivamente (UP/MINED, 1998A, p.3). No primeiro ano da testagem, foram abrangidos, nas referidas escolas, cerca de 873 alunos da primeira srie do nvel mdio, apenas do grupo A24

(UP/MINED, 1998 A, p.3). Constituam objeto de experimentao os contedos do programa, os manuais, os livros e a forma adequada de avaliao dos alunos (UP, 1998B, p.10) .25

O ttulo do manual Emergncia do Filosofar . Os dois anos de testagem correspondiam aos dois anos que fazem parte do nvel mdio geral do Sistema Nacional de Educao de Moambique. 24 O ensino mdio moambicano, conforme o organigrama da pagina 36, comporta duas sries: a 11 e 12, respectivamente. Em termos de organizao, os estudantes, ao iniciarem a 11 classe, so divididos em dois grupos (A e B), conforme os interesses dos mesmos estudantes. O Grupo A comporta matrias relacionadas ao campo de cincias sociais e humanas e o Grupo B s cincias naturais exatas. Assim, no permitido, aos estudantes, a freqncia dos dois grupos em simultneo, e a concluso do ensino mdio refere-se ao trmino dos estudos em um dos dois grupos. O teste experimental deveria decorrer durante dois anos, correspondentes a cada uma das sries do ensino mdio. 25 Cabe sublinhar que dias antes do incio do ano letivo escolar de 199825, o Departamento de Filosofia da UP realizou um colquio de divulgao restrita do programa de ensino a ser testado (Maro de 1998). Versando sobre o tema a Introduo23

22

29

Como os professores de ensino de Filosofia ainda estavam em formao nos cursos intensivos, os quatro professores do Departamento de Filosofia assumiram a responsabilidade pelo ensino da matria nas duas escolas citadas, durante a fase de experimentao. Sobre a assuno da responsabilidade pelo ensino por parte daqueles quatro professores, dois documentos apresentam justificaes aparentemente contraditrias. Um desses documentos o primeiro relatrio da fase experimental . Nele 26

afirmado que o recrutamento dos professores no deveria ser, numa primeira fase, com base no concurso pblico (UP/MINED, 1998A, p.3). O argumento apresentado no relatrio sugere que estavam vedadas as possibilidades de alguns graduados em Filosofia no pas serem professores de ensino Filosofia durante a27

etapa experimental. O segundo documento a ata do encontro de consertao ocorrido entre o ento Diretor Nacional de Ensino Secundrio Geral e os professores do Departamento de Filosofia28

(UP, 1998 D). Naquele encontro, foi decidido que num primeiro momento somente os quatro professores do Departamento de Filosofia poderiam se candidatar para lecionar a disciplina Filosofia naquelas duas escolas (UP/MINED, 1998 A, p.3). A exclusividade dos quatro professores serem os nicos candidatos a docentes de Filosofia foi justificada afirmando-se que seda Filosofia em Moambique (UP, 1998C, p.2), o encontro, restrito aos convidados, visava dar a conhecer, aos participantes, as linhas gerais da proposta sobre a (re)introduo da Filosofia no nvel mdio do sistema pblico de ensino(MINED, 1998 A, p.5). 26 MINED 1998A 27 Conforme explicitamos mais acima, no pas havia alguns graduados em Filosofia em instituies estrangeiras, mas que no cobriam a demanda por professores em todo o pas. 28 Daniel Bomba

30

pretendia evitar que a disciplina (Filosofia) viesse a ser lecionada

por candidatos amadores (UP, 1998 D, p.2) . Quem eram os29

candidatos amadores? Por candidatos amadores, os intelectuais que organizavam o processo de reintroduo do ensino de Filosofia, possivelmente, referiam-se queles que, mesmo possuindo alguma formao em Filosofia, no participaram do curso de formao intensiva. Sendo assim, provavelmente, tica dos intelectuais que participaram do processo de reintroduo do ensino da Filosofia, os referidos amadores no estavam a par do que se pretendia com a Filosofia no ensino mdio. Ainda sobre a escolha de professores, os documentos oficiais pontuam que o elevado nmero de alunos do nvel mdio30

e

tambm

as

ocupaes

daqueles

quatros

professores em outras atividades de ensino na Universidade (UP, 1998D, p. 2), levaram a que fossem convidados, para a docncia, na condio de estagirios, os estudantes que freqentavam o curso intensivo . Para a complementao da formao pedaggica31

desses estudantes foi organizado um Seminrio sobre Didtica de Ensino de Filosofia (UP/MINED, 1998A, p.6) . O que foi discutido32

Os quatro professores distriburam-se pelas duas escolas, a saber, dois professores para cada escola. 30 A Escola Secundria Josina Machel, em 1998, tinha um total de 456 alunos do nvel mdio do Grupo A, perfazendo nove (09) turmas. A Escola Secundria Franscisco Maynanga, 417 alunos divididos em dez (10) turmas. Alm de assistentes, o convite aos estudantes em formao, segundo o discurso oficial, fazia parte do estgio curricular. 31 A definio da presena desses alunos como estagirios foi oficializada em uma proposta enviada pelo departamento de Filosofia da UP ao Conselho Universitrio (8 de Maio de 1998). Com relao presena de alunos em formao como estagirios, a idia positiva. Porm, a qualificao de assistentes sugere que as aulas de Filosofia ficaram, grande parte, sob responsabilidade dos mesmos. 32 O Seminrio consistiu num ciclo de palestras proferidas pela Profa. Dra. Annette Scheunpflug, da Repblica Alem.

29

31

durante o Seminrio e que contribuies ele trouxe para a formao dos futuros professores de ensino de Filosofia? No foi possvel encontrar registros escritos sobre o Seminrio de Didtica, pois muitas das discusses ocorridas durante o processo de reintroduo da Filosofia no foram organizadas sob forma de livros, textos impressos ou outros suportes, o que tornou a informao dispersa. Nos arquivos do Departamento de Filosofia da UP, no constavam os textos referentes s palestras e aos colquios havidos por ocasio da reintroduo do ensino de Filosofia. O nico documento encontrado contendo alguma

informao sobre o referido Seminrio o Primeiro Relatrio (UP/MINED, 1998A). Nele afirmado que aquele Seminrio contribuiu para que os estagirios assistentes - aprofundassem noes sobre a planificao das aulas de Filosofia e tambm para discutir alguns aspectos importantes de didtica de Filosofia (UP/MINED, 1998A, p.6). A contribuio do Seminrio de Didtica para a formao pedaggica dos estudantes do curso de intensivo, entretanto foi questionada por Samuel. Ele observou que

[...] essa professora Alem no vinha dar didtica como tal, como uma cadeira. Ela mesma teria dificuldades por que ela no fala portugus. Fala, entende alguma coisa de espanhol. Ento, ela no trabalhou em sala de aula, ela trabalhou diretamente com os

32

docentes. Ela trabalhou diretamente conosco aqui no Departamento, dando novas teorias a volta da didtica, trazendo novas teorias em volta do debate filosfico que acontecia no mundo ocidental, quer dizer, vinha atualizar mais os docentes na componente didtica, porm, filosfica. principalmente Trabalhar na componente com os diretamente

estudantes na cadeira de didtica, no [Samuelentrevista a 18.090.07 em Maputo]. Ficam as dvidas se, efetivamente, o Seminrio de Didtica ajudou aos estudantes em formao a aprofundarem questes relativas a noes de planificao, conforme afirmado no primeiro relatrio da testagem experimental. Alm do Seminrio de Didtica, a prtica pedaggica outro aspecto que foi sublinhado, no primeiro relatrio, afirmando-se que ela tambm contribuiu para a formao dos professores de ensino de Filosofia. Em relao importncia da prtica pedaggica na formao dos estagirios, o discurso oficial destaca que

foi do entender do departamento que, tendo em conta a pouca durao curso, o que lhe d um carter intensivo, agravada pela falta da cadeira de Didtica de Filosofia, deveria ser compensada com uma prtica pedaggica prolongada, a fim de permitir uma maior preparao dos estudantes na didtica e metodologias do ensino de Filosofia(UP/MINED, 1998A, p.5).

33

A explicitao sobre a pertinncia da prtica pedaggica no processo da formao do futuro professor sugere: a) que a experincia de ensino supria a ausncia da disciplina de didtica de Filosofia no curso intensivo; b) que a prtica acobertava os possveis problemas tericos que os candidatos a professor de Filosofia poderiam ter sobre a didtica e a metodologia de ensino e aprendizagem em Filosofia. Assim, a experincia de docncia, atravs de uma prtica pedaggica prolongada, e o Seminrio sobre Didtica foram considerados, pelos actores da reintroduo do ensino da Filosofia como complementao da formao pedaggica dos futuros professores que freqentavam o curso intensivo. Era um complemento formao pedaggica porque, conforme explicitado no documento em referncia, a prtica da docncia ajudaria aos estagirios a se familiarizarem com o programa de Filosofia e tambm ganharem experincia de lecionao com os alunos da idade pr-universitria (UP/MINED, 1998A, p.5).

1.2.1. A avaliao da experincia e a reintroduo definitiva do ensino da FilosofiaFindo o primeiro ano de testagem experimental, foi organizado, pelos professores do Departamento de Filosofia, um encontro de avaliao do processo de reintroduo do ensino de Filosofia no nvel mdio. No relatrio sobre o primeiro ano , so33

apresentados avanos, desafios e impasses que se verificaram durante esse primeiro ano em que decorreu a experimentao do33

Nas prximas pginas o nosso dilogo ser estabelecido com o relatrio citado.

34

programa de Introduo Filosofia(UP/MINED, 1998 A). Dentre os aspectos positivos verificados do processo da testagem do ensino da Filosofia so destacados os altos ndices de aproveitamento pedaggico alcanados pelos alunos da primeira srie do ensino mdio e o ajustamento feito ao programa do ensino de Filosofia, para atender s exigncias decorrentes do processo de ensino e aprendizagem .34

Sobre os ajustamentos feitos ao programa, no documento em referncia, afirmado que tais ajustes consistiram no acrscimo de alguns tpicos de contedo que no constavam do programa inicial e tambm na alterao da ordem de abordagem dos contedos programticos. Em funo dessas modificaes feitas ao programa inicial de Filosofia, pontuado, no relatrio, que eram claramente visveis os resultados alcanados, tomando por base a comparao entre o programa inicial e o atual (UP/MINED, 1998A, p.7). Mesmo tendo sido verificados alguns aspectos positivos durante a primeira fase da experimentao do ensino da Filosofia, os coordenadores do projeto sublinharam ter havido algumas dificuldades. A primeira dificuldade esteve relacionada com a falta de material de escritrio e bibliogrfico, devido demora no cumprimento do acordado entre os professores e o MINED durante os encontros de consertao: p Ministrio deveria disponibilizarCom relao Escola Secundria Josina Machel, l-se que o aproveitamento mdio pedaggico foi de 81% de um universo total de cerca 456 alunos do grupo A da 11 classe que freqentaram as aulas de introduo Filosofia naquela escola. O aproveitamento pedaggico dos alunos da Escola Secundria Francisco Manyanga, por sua vez, situou-se em 80,3% num total de 417 alunos (UP/MINED, 1998A, p.4).34

35

alguns recursos materiais a serem usados durante o teste experimental do ensino da Filosofia , quais sejam, livros e meios35

para fotocpias nas escolas (UP/MINED, 1998A, p.7). O MINED, entretanto, parece no ter cumprido com o prometido. No documento, tambm sustentado que no se cumpriu com a planificao das aulas inicialmente feitas por causa de conjugao de vrios fatores: o incio tardio das aulas de Filosofia (UP/MINED, 1998A, p.7 ) ; a ausncia de uma doseficao cuidada36

e

pormenorizada

das

aulas

necessrias

para

cobrir

uma

determinada Unidade Temtica (UP/MINED, 1998A, p.7) e a falta de experincia de lecionao da disciplina no ensino secundrio e o desconhecimento do meio escolar secundrio no que diz respeito ao tipo de aluno daquele nvel (UP/MINED, 1998A, p.7). Acrescidos aos quatro fatores acima referidos, o discurso oficial sustenta que a dinmica que caracterizou o processo das aulas de Filosofia constituiu-se em mais um dos fatores que contribuiu para o no cumprimento do planejamento previsto: o entusiasmo com que os alunos discutiam certos temas [...] sempre acabava por custar tempo de lecionao (UP/MINED, 1998A, p.7). Em que pesem os constrangimentos ocorridos durante o primeiro ano em que decorreu a testagem experimental, a equipe35 Entre os recursos materiais solicitados ao MINED, constavam impressoras, computadores, fotocopiadoras e livros para o uso tanto pelos professores, quanto pelos alunos do ensino mdio. 36 O Semestre letivo, em 1998, iniciava na primeira semana de Fevereiro. As aulas de Filosofia comearam, conforme expusemos a 10 e 16 de Maro, respectivamente, nas Escolas Secundrias Josina Machel e Francisco Manyanga.

36

responsvel

pela

implementao

do

programa

props

ao

Ministrio da Educao que se iniciassem estudos de condies da expanso da disciplina para outras provncias fora da cidade de Maputo (Idem, p.8). Em defesa da proposta, os coordenadores do processo de reintroduo do ensino da Filosofia sustentaram que em termos de professores, havia condies para a introduo da Filosofia nas escolas do nvel mdio da Beira e de Chimoio (UP/MINED, 1998A, p.8) .37

A testagem experimental do ensino de Filosofia, segundo havia sido planejado, teve continuidade no ano lectivo de 1999, envolvendo a ltima srie do ensino mdio naquelas duas escolas da cidade de Maputo. No final do mesmo ano, os professores do Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica organizaram um encontro aberto ao pblico38. O encontro visava debater questes fundamentais sobre a Filosofia que era proposta para o ensino mdio: as contribuies dessa matria na educao escolar moambicana e tambm divulgar os resultados do segundo ano do teste experimental do ensino da Filosofia. Acrescidos a esses dois objetivos, o evento pretendia, igualmente, envolver instituies e personalidades ligadas Filosofia para uma reflexo sobre o ensino da Filosofia no Ensino Secundrio Geral e alargar a reflexo para recolher contribuies para o

37

Cidades que ficam situadas no centro do pas. At 1999, a cidade da Beira tinha apenas uma escola pblica do nvel mdio para os cerca de 500.000 (quinhentos mil habitantes). A escola de nvel mdio mais prxima da cidade da Beira fica situada a 20 km, em Dondo. 38 O Seminrio, denominado seminrio do Kwayakwanga, nome do hotel residencial em que se realizou o evento, teve lugar em Maputo, entre os dias 20 e 21 de Dezembro de 1999.

37

melhoramento do programa e esboar o crescimento da disciplina de Filosofia em Moambique (UP, 1999 A, p.1). Ao buscar envolver outras instituies e personalidades ligadas Filosofia, mesmo tendo havido a proibio de algumas dessas personalidades lecionarem durante a testagem experimental, a iniciativa sinaliza tratar-se, em princpio, de um processo democrtico e no de uma imposio de um programa de ensino por parte de um grupo de intelectuais. Porm, pertinente questionar: a) que contribuies apresentaram essas instituies e personalidades? b) em que medida as suas contribuies impactaram no programa final de ensino da Filosofia? Segundo o que foi referido sobre o contedo do Seminrio de Didtica, tambm no tivemos acesso aos contedos das discusses havidas durante os encontros de avaliao, o que nos possibilitaria responder algumas das questes acima colocadas. Alm da distncia que nos separa do tempo da realizao do encontro, um dos fatores que explica essa fragilidade do nosso trabalho, conforme j destacamos, o fato dos textos apresentados nos seminrios no terem sido publicados quer em forma de anais, quer em forma de livro ou em arquivo eletrnico. A leitura dos textos integrais apresentados durante o encontro poderiam ajudar a melhor compreender a histria de um processo, neste caso, a histria da reintroduo do ensino Filosofia aps a independncia em Moambique. Poderamos ter ido em busca dos textos, requisitando aos palestrantes que os

38

disponibilizassem. Porm, nas condies culturais e cientficas espera ou talvez nunca poderamos obt-lo.

39

moambicanas, a busca por esse material custar-nos-ia meses de

Para suprirmos essa fragilidade, recorremos s snteses do Seminrio pois as referidas snteses contm as principais discusses havidas durante o encontro. Kwaikanga programa de visava, ensino dentre de vrios Filosofia. O Seminrio de apresentar os objetivos, A

resultados alcanados durante os dois anos de testagem do apresentao desses resultados foi feita pelo professor Ernesto Chambisse. Durante a sua comunicao, o professor afirmou que para os alunos do ltimo ano do ensino mdio o aproveitamento pedaggico em Filosofia tendia a baixar drasticamente (UP,/MINED, 1999B, p.4). A tendncia ao baixo rendimento pedaggico, segundo orador, deveua-se ao fato da disciplina Filosofia ter sido relegada para o segundo plano, por no interferir no aproveitamento final (Idem, p.4). Ou seja, a Filosofia no era uma disciplina passvel de avaliao em forma de testes e exames finais, com implicaes na aprovao ou reprovao do aluno. Por isso, acrescentou oPor condies culturais moambicanas pretendemos, sem juzo de valor, nos referir a alguns hbitos de certas instituies e individualidades de no facilitarem o acesso a materiais de pesquisa e de manifestarem pouca ou nenhuma vontade em cooperar com as pesquisas. Um exemplo do que afirmamos foi quando da realizao da pesquisa de campo na UP. Apenas tivemos acesso ao acervo, porque um dos responsveis pelo departamento interessou-se pelos livros de tica que levvamos conosco para nos entretermos em horas livres. O cruzamento de interesses facultou a abertura do acervo. Por condies cientficas, queremos nos referir ao exguo hbito de promoo de eventos cientficos no Pas. Aliado a esse fato, tambm est a no organizao, em anais, do material produzido pelos poucos eventos cientficos. A maior parte das Universidades moambicanas no possui publicaes cientficas, tornando difcil o processo de produo e difuso do conhecimento. Mesmo aquelas Universidades que, formalmente, possuem uma publicao, a periodicidade de tal publicao arbitrria.39

39

palestrante, os alunos do ltimo ano do ensino mdio relegaram a Filosofia para segundo plano .40

Feita a apresentao dos resultados alcanados durante os dois anos de teste experimental, segundo se pode depreender da leitura das snteses, os participantes passaram ao debate do contedo do programa de Filosofia usado durante esses dois anos . Desses debates, foi elaborado um programa final de41

introduo Filosofia (MINED, 2000). Apoiado nos resultados alcanados durante esses dois anos experimentais de ensino da Filosofia e com base no programa final, o42

Ministrio

da

Educao

decretou

a

obrigatoriedade da disciplina em todas as escolas de nvel mdio do pas (ano 2000) , marcando, portando, a volta do ensino daA relegao da Filosofia ao segundo plano na fase da experimentao talvez tenha sido um dos principais fatores para a obrigatoriedade do ensino nas escolas do nvel mdio a partir do ano 2000. Mas nos documentos oficiais, desde o incio da fase de teste, j era prevista a implantao definitiva da Filosofia a partir do referido ano. Desse modo, ficamos sem saber se a nfase na relegao da Filosofia ao segundo plano serviu para legitimar a necessidade da obrigatoriedade da Filosofia, uma obrigatoriedade, entretanto, j prevista desde o incio do projeto. 41 A metodologia usada para a discusso do programa de Filosofia foi a seguinte: os professores Mrio Viegas e Ernesto Chambisse apresentaram o programa em suas linhas gerais. Depois se formaram pequenos grupos de discusso sobre os programas e, aps isso, reuniram-se em plenrio para a discusso geral. Durante as discusses, foram apresentadas propostas e sugestes de alterao do programa. Apenas a ttulo de exemplo, uma das observaes que constam das snteses concernente ao perfil do aluno, que no estava claramente definido nos objetivos do programa. Uma outra sugesto propunha a ordenao lgica dos temas. As vozes de onde partiram essas sugestes no so apresentadas nas snteses. 42 Cabe observar, entretanto, que o projeto de Introduo da Filosofia foi concebido para as escolas pblicas. Boa parte das escolas privadas do pas, em nvel mdio, no goza de completa autonomia pedaggica. Essas escolas no podem diplomar os alunos finalistas, que so obrigados a prestarem exames finais de nvel mdio nas escolas pblicas. Assim, as referidas escolas privadas, nessa condio, foram obrigadas a tambm introduzirem a Filosofia nos seus currculos no somente por razes pedaggicas, mas40

40

Filosofia na educao escolar moambicana. Dado que a iniciativa da reintroduo do ensino da Filosofia partiu do Ministrio da Educao - sociedade poltica, fazendo o uso das categorias gramscianas sobre o Estado - o que justificava, dentro do contexto43

moambicano, a reintroduo dessa matria de ensino?

1.3. Os fundamentosO ensino da Filosofia foi expulso do sistema educacional do Moambique quando da independncia do pas. Um dos fatores que justificou o banimento da Filosofia da educao escolar foi a sua vinculao com os objetivos da educao colonial (CHAMBISSE, 2006). Os dirigentes polticos e educacionais de Moambique, quando da independncia do pas, sustentaram que a educao colonial visava formar um homem burgus, com uma mentalidade tambm colonial burguesa, alienado de si e de sua prpria realidade . Atravs do ensino da Filosofia, sustenta44

Chambisse, o regime colonial pedia aos nativos moambicanostambm tendo em vista os exames que seus alunos finalistas tm de realizar nas escolas pblicas, findo o segundo ciclo do nvel mdio. Uma outra observao que, mesmo tendo sido decretada a obrigatoriedade do ensino da Filosofia, nem todas as escolas pblicas introduziram a nova matria devido falta de professores, pois o curso intensivo no conseguiu formar um nmero suficiente de professores para toda a rede pblica. 43 Gramsci (2002) distingue, conceitualmente, no entendimento do Estado, a Sociedade Poltica da Sociedade Civil, mantendo, entretanto, a identidade fatual. Explicitaes sobre a distino e a identidade entre sociedade civil e a poltica no entendimento do conceito de Estado em Gramsci podem ser consultadas na obra de Soares (2000). 44 No pretendemos recusar os objetivos alienantes da educao colonial. Porm, necessrio levar em considerao, conforme destaca Buendia Gmez (1999), que educao colonial tambm possibilitou o despertar da conscincia nacionalista a alguns moambicanos que a ela tiveram acesso. Ademais, a mesma educao possibilitou a esses mesmos moambicanos compreenderem as contradies do mesmo sistema. A educao escolar contraditria, no devemos olh-la somente do ponto de vista de sua perniciosidade.

41

para abandonarem a sua cultura em favor da cultura do colonizador (CHAMBISSE, 2006, p.58) .45

Examinando o discurso oficial, pode-se compreender que a escola colonial era tomada pelos dirigentes da Frente como espao de difuso de idias que visavam integrar os nativos ordem social vigente, em busca do conformismo das maiorias sociais a essa mesma ordem. A Filosofia, conforme a interpretao feita por Chambisse (2006), foi uma das mediaes, na educao escolar, atravs da qual o colonizador procedeu divulgao dos ideais conformistas e alienantes. Assim, devido vinculao da Filosofia com os objetivos alienadores da educao colonial, quando da independncia do Pas, essa matria de ensino no foi contemplada na grade curricular que formaria o Homem Novo socialista, tal era o propsito central do Sistema Nacional de Educao. Teria sido apenas a vinculao da Filosofia com os objetivos da educao colonial que justificou, efetivamente, o seu banimento do Sistema de Educao de Moambique independente? O que tambm levou ao encerramento, por parte dos dirigentes, da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane?4546

Chambisse no explica como e nem apresenta os contedos que evidenciassem essa tarefa da Filosofia na educao colonial. 46 A Faculdade de Direito foi fechada a 21 de Maro de 1983, por determinao do presidente da Repblica, Samora Machel, no discurso de encerramento da 11 Sesso da Assemblia Popular, tendo sido reaberta em 1987. Conforme referido no portal da Faculdade, supostamente, estavam na origem do encerramento dvidas que se prendiam com o nvel poltico e profissional de um grande nmero de quadros sados da Faculdade. Fonte: http://www.direito.uem.mz/index.php?option=com_content&task=view&id=41&Itemid =1. data de acesso 03.07.2008

42

Vinte e trs anos aps ter sido expulso pela porta, o ensino da Filosofia era trazido de volta pela janela na educao escolar moambicana, comeando pelo nvel mdio . O programa de47

ensino de Filosofia para o nvel mdio estava e ainda continua organizado em trs eixos temticos: Poltica, tica e Epistemologia. Alm de um movimento generalizado da volta da Filosofia na educao escolar, em decorrncia no somente das lutas dos profissionais dessa rea, mas tambm da recomendao de organismos internacionais, como a UNESCO , sabe-se que em48

cada contexto vivem-se problemas especficos que se espera uma resposta por parte da Filosofia ensinada nas escolas. Em Moambique, a reintroduo da Filosofia foi da iniciativa do Ministrio da Educao sociedade poltica e no da sociedade civil: que justificativas endgenas foram apresentadas pelo Ministrio da Educao respaldando a reintroduo do ensino da Filosofia? Qual a concepo de mundo subjacente Filosofia que iria ser reintroduzida? A que problemas colocados pela realidade em movimento de Moambique o mesmo ensino vinha responder na e atravs da educao escolar?

47

As anlises de Chambisse (2006) contidas em sua dissertao de mestrado sugerem que a Filosofia, no ensino colonial, se fazia presente apenas em nvel superior. Na educao moambicana ps-independncia, a Filosofia no constava em nenhum dos nveis de ensino. Quando foi reintroduzida a partir do ensino mdio, as instituies de nvel superior tambm passaram a incluir a Filosofia nos respectivos currculos, em que os programas de ensino variavam de Instituio para Instituio. 48 Dois documentos internacionais podem ser considerados fundamentais para explicar e compreender a demanda pela incluso da Filosofia e da tica na educao escolar: o relatrio dos peritos da UNESCO (1972) A escola e a educao moral face aos imperativos do mundo contemporneo, e o Relatrio Dellors A educao no sculo XXI (1996).

43

Uma leitura dos documentos produzidos sobre o processo de reintroduo do ensino da Filosofia indica haver uma multiplicidade de justificativas que respaldam a necessidade da matria de ensino no nvel mdio em Moambique. A primeira justificativa, fundamentando os problemas a que o ensino da Filosofia vinha responder no pas, atravs da educao escolar, consta do primeiro projeto de formao de bacharis para o ensino de Filosofia . No projeto, sustentado que a reintroduo49

do ensino da Filosofia nas escolas pr-universitrias deveria ser vista como uma necessidade social (UP, 1996, p.1). Uma necessidade scio-cultural porque, de acordo com o texto do projeto em referncia, os estudantes do nvel mdio no possuam, no espao escolar, uma oportunidade para se confrontarem com as idias dos grandes pensadores de todas as pocas (UP, 1996, p.1). Assim, acrescenta ainda o mesmo texto, a reintroduo do ensino de Filosofia vinha constituir-se nesse espao que facultaria aos alunos o cultivo de hbitos de debate sobre a sociedade em que vivem, como produto de reflexo sobre os diversos problemas da vida, de modo a poderem agir sobre a mesma sociedade de uma forma autnoma (UP, 1996, p.1). Por isso, a reintroduo do ensino de Filosofia era necessria para oferecer aos alunos egressos do ensino secundrio uma cultura geral que os permitisse compreender as transformaes scio-polticas e econmicas em curso no pas, tomando um papel ativo nas mesmas transformaes (UP, 1996, p.1).49

O projeto foi elaborado pelo Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica (UP, 1996), antes mesmo que o Ministrio da Educao tivesse se pronunciado sobre a necessidade da reintroduo do ensino de Filosofia no Pas.

44

Uma segunda explicao dos problemas que a Filosofia vinha responder na educao escolar e atravs desta, apresentada na verso preliminar do Projeto de Introduo da disciplina de Filosofia nas escolas secundrias (UP, 1998 B).50

Neste documento, sublinhado que a reintroduo do ensino da Filosofia nas escolas secundrias se enquadrava no contexto da reviso e expanso curricular a todos os nveis de ensino, em particular no Ensino secundrio (UP, 1998B, p.1). A reviso e a expanso curricular, por sua vez, visavam garantir a efetivao do objetivo de educao moambicana definido na Poltica Nacional de Educao (PNE) (MINED, 1995) e no Plano Estratgico da Educao (PEE) (MINED; 1998D): a melhoria da qualidade de ensino (UP, 1998 B). No programa experimental de ensino de Filosofia,

entretanto, sustentado que a presena da Filosofia no ensino mdio moambicano pretendia no s expandir o leque das disciplinas do ensino secundrio geral (UP, 1998B, p.3). Os elaboradores do programa argumentam que a reintroduo da Filosofia era, sobretudo, uma ocasio para se imprimir uma dinmica nova em termos de reflexo sobre os mtodos de ensino geral de modo a se melhorar a qualidade do ensino (UP, 1998B, p.3). No mesmo documento tambm pontuado que alm da melhoria da qualidade de ensino, atravs da expanso curricular, a necessidade da Filosofia no ensino mdio justificava-se a partir do50

Proposto pelo ento Diretor Nacional do Ensino Secundrio Geral do Ministrio da Educao de Moambique, Daniel Neto Bomba Jnior, para a apreciao do respectivo Ministro, Arnaldo Nhavoto. A verso preliminar data de 24. 09. 1998, portanto, no final da primeira fase de experimentao da Filosofia.

45

contexto moambicano que era marcado pelas mudanas econmicas, scias-polticas e institucionais (UP, 1998B, p.3). As mudanas referidas dizem respeito reorganizao poltica e econmica do Estado moambicano que passou da orientao socialista para a capitalista-liberal. Provavelmente, eram essas mundanas que exigiam um cidado iluminado que pudesse pensar por si mesmo e tomar decises pelo uso pessoal da razo (UP 1998B, p.1; UP 2003, p.1). A educao escolar (moambicana) deveria ajudar o Homem moambicano a ser capaz de refletir de forma independente sobre os atuais desafios em Moambique e no mundo , (UP, 1998B, p.1) e de opinar51

livremente sobre os desafios e problemas quotidianos, de modo a tomar opes de ao, de forma autnoma sobre a realidade que vive (UP, 2003, p.1). Ainda no programa experimental de ensino da Filosofia, sustentado que a reintroduo dessa matria de ensino no nvel mdio deveria ser entendida como resultado de uma necessidade scio-cultural em Moambique (UP, 1998B, p.2). Uma necessidade scio-cultural porque constatou-se que os alunos egressos do ensino mdio estavam destitudos de referncias intelectual, moral e poltica (UP, 1998B, p.2). A destituio dessas referncias refletese, conforme o discurso oficial, no dficit epistemolgico e abstractivo dos estudantes entrada no ensino superior, no dficit moral que se vive em Moambique e nas aporias da cidadania51 Em relao a esse segundo fundamento, os documentos oficiais so discordantes no uso dos termos. Por exemplo, o documento do MINED usa o termo formar, contrariamente ao da UP que faz o uso do termo ajudar no lugar de formar.

46

moambicana (UP, 1998B, p.3; MINED, 2000 p.1).

Qual o

significado do termo dficit usado para conceituar os problemas a que o ensino de Filosofia vinha responder/resolver na e atravs da educao escolar? O termo dficit, no dicionrio Aurlio, significa o que falta para completar uma conta. Na linguagem tcnica da economia, o termo usado significando a diferena negativa entre os ganhos e os gastos, uma diferena que se traduz, na linguagem comum, por insuficincia. As palavras, afirma Wittgenstein II (1999), somente tm significado no contexto de uso: qual o significadao do termo dficit usado no programa de Introduo a Filosofia em Moambique. Nos documentos pesquisados no existe nenhuma

explicitao do significado do termo. Durante a pesquisa de campo os intelectuais envolvidos no processo de reintroduo da Filosofia esclareceram o sentido do uso do termo. Para Samuel, o uso daquele termo foi no sentido de falta, de ausncia dentro do

currculo, uma lacuna, algo que no est bem [SAMUEL,entrevistado a 18.09.2007]. Esse entendimento do termo dficit como insuficincia tambm foi defendido por Ronaldo ao pontuar que o uso da palavra dficit foi nesse sentido de falta. Assim, foram os trs dficits, conforme o significado do termo, que fundamentavam a necessidade de se reintroduzir o ensino da Filosofia na educao escolar moambicana. Cabe examinar os modos atravs dos quais os trs referidos manifestavam nos estudantes do ensino mdio. dficits se

47

Em relao ao dficit cognitivo, por exemplo, no programa final de Introduo a Filosofia, referido que ele manifestava-se atravs das dificuldades apresentadas pelos alunos que ingressavam na Universidade de no conseguirem satisfazer as exigncias cognitivas e metodolgicas do ensino superior: a capacidade de abstrao e de estudo (MINED, 2000, p.1). Sobre essa dificuldade, Samuel pontuou:

ns nos deparvamos com esses problemas de falta de conhecimento que os estudantes deveriam trazer do ensino secundrio, do ensino mdio. Ns nos deparvamos com essas dificuldades dos estudantes conhecerem o conceito e efetivamente saber trabalhar com ele. Deparvamo-nos com isso. [entrevista a18.09.2007 em Maputo]

Aliado ao problema de abstrao, outro intelectual referiu que

os alunos do ensino secundrio saiam desse ensino sem no entanto terem tido oportunidade de refletirem sobre a cincia. Aquilo que aprendiam como cientifico, o que liam, o que lhes eram transmitidos nos manuais eram materiais para eles inquestionveis, como uma bblia. A capacidade de interrogar as condies de produo cientfica como uma atividade humana

48

suscetvel de erros era muito frgil. Este era um dos problemas: a capacidade de refletirem sobre as condies da produo da cincia e o estatuto da prpria cincia [RONALDO, entrevista a08.09.2007]. Assim, a falta de capacidade de interrogao nos alunos ingressos no ensino superior imputada ao nvel mdio. Porm, esquece-se que, durante a vigncia do socialismo em Moambique, questionar a ordem social vigente era candidatar-se s instituies onde se deveria sair com novas idias para se integrar nova sociedade: os campos de reeducao. O dficit poltico, conforme os dois programas de ensino de Filosofia, manifestava-se atravs das as aporias da cidadania moambicana (UP, 1998 A, p.3) em face dos desafios apresentados construo da moambicanidade (MINED, 2000, p.1). A moambicanidade era desafiada por uma realidade caracterizada pela multiplicidade de opinies, pela influncia dos mass mdia e pelo pluralismo poltico (MINED, 2000, p.1). Em que medida o pluralismo poltico e a emergncia dos mass mdia fora do controle do Estado afiguravam-se como desafios construo da moambicanidade? Os intelectuais entrevistados sustentam a necessidade de se situarl o dficit poltico no contexto. Fazia quatro anos aps as primeiras eleies (1994) que, conforme sublinhou Ronaldo, exigiram uma nova postura em relao ao Estado, em relao configurao poltica: eram as primeiras eleies multipartidrias

49

em que ramos chamados com carto do eleitor para votarmosem que, entretanto, a participao dos jovens foi

muita fraca

[RONALDO, entrevista a 08.09.2007 em Maputo]. Como se pode depreender, a fraca participao poltica, expressa pela pouca afluncia dos eleitores s urnas era o indicador da existncia de dficit poltico no pas. No se levam em considerao, na anlise desses intelectuais, outros fatores da absteno, como a descrena do poltico no sculo XX (Arendt (2002) e muito menos se boa parte da juventude teve a real possibilidade de votar.

50

2. A tica no Ensino de FilosofiaNum52

dos

documentos

pesquisados

elaborado

pelo

Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggida do pas (UP, 1998B), afirmado que a incluso do eixo temtico sobre a tica no ensino de Filosofia para resolver o dficit moral que se manifesta nos alunos egressos do ensino mdio. Uma das evidncias desse dficit, conforme um outro documento examinado (MINED, 2000) so as perplexidades que se viviam no pas, decorrentes da mudana de orientao de valores. A partir dessas explicaes sobre as razes da incluso da tica no programa de ensino de Filosofia para o nvel mdio, colocamos algumas questes de partida: como se manifestavam essas perplexidades? De que modo a tica poderia resolver e/ou responder s tais perplexidades conforme elas se manifestavam? Quais os reais factores que esto por detrs do dficit moral? Que concepo de tica foi adotada no ensino de Filosofia que melhor respondesse s perplexidades, contribuindo para superar o dficit moral? Em que se fundamenta essa concepo? Ainda de acordo com os documentos examinados, o dficit moral manifestado pelos alunos egressos do ensino mdio resultou52

da

ausncia

da

Filosofia

na

educao

escolar

Para a elaborao do trabalho, conforme ser exposto na apresentao do roteiro metodolgico, foram consultados documentos elaborados pelo Ministrio da Educao (MINED) sobre o processo de reintroduo da Filosofia, quanto os elaborados pelo Departamento de Filosofia da Universidade Pedaggica (UP), a instituio que teve a responsabilidade de efetivar o projeto de reintroduo da Filosofia a pedido do Ministrio da Educao.

51

moambicana. As feies do dficit moral no so explicitadas nos documentos oficiais, principalmente nos dois programas de ensino. A no explicitao das feies do dficit moral e das perplexidades que se vivenciavam, no entender de Samuel, constitua uma estratgia metodolgica. O intelectual destacou que dada a vastido dos exemplos do dficit moral que havia no pas, ao citar alguns deles, podia-se incorrer em ser infeliz na escolha de um exemplo [Samuel, entrevistado a 18 de 09 de 2007 em Maputo]. Recorrendo a Aristteles, Samuel justificou a opo por no mencionar os exemplos concretos de dficit que ele concorda haver no pas. Em sua argumentao, assinalou que, para Aristteles, por exemplo, o bem era um conceito metafsico. Porm, acrescentou Samuel,

[..] mesmo Aristteles quando falava sobre o bem, nunca indicou o que deveria ser feito para que uma pessoa fosse dita que praticou o bem, embora daquele colocasse seu a problemtica Mas dentro nunca argumento.

efetivamente disse o que deve ser feito para que essa ao fosse chamada de boa. [Samuelentrevista a 18 de Setembro de 2007 em Maputo] Por no haver a necessidade de explicitao dos

problemas, foi por isso que, nos programas de ensino de Filosofia, as feies do dficit moral no foram apresentadas.

52

Em relao aos valores,

Samuel sustenta que cabia ao

professor, em cada contexto de sua prtica docente, verificar quais os problemas morais que fazem parte desse contexto e, uma vez encontrados, traz-los para a discusso em sala de aula. O programa de ensino de Filosofia, sob ponto de vista da tica, contm, segundo Samuel, aspectos mais gerais, as problemticas tericas mais gerais, cuja abordagem mais prtica, mais concreta, esta na sala de aulas [Samuel, entrevista a 18 de Setembro de 2007 em Maputo]. Por isso, acrescentou Samuel, na nossa tica, ns no queramos levar para o programa exemplos concretos, por que corramos risco de levarmos os professores a apenas direcionarem as suas aulas para aqueles exemplos concretos [Samuel, entrevista a 18.09.2007 em Maputo] Mesmo incorrendo no risco de ser infeliz na escolha dos exemplos do dficit moral, os mesmos intelectuais apresentaram o que, no entendimento deles, constituam os principais problemas morais que indicavam haver dficit moral no pas. Para Ronaldo, por exemplo, em Moambique havia a sensao geral de que a gerao jovem tinha perdido aquilo que so os valores morais bsicos de convivncia social [Ronaldo, entrevista a 09 de setembro de 2007, em Maputo]. A guerra por que Moambique passou tomada como um dos principais fatores para a emergncia do dficit moral, cuja expresso era aquela sensao acima referida. Essa guerra, denominada de Civil por Ronaldo, levou deteriorao do tecido social no pas que, por sua vez, serviu de indicador de perda dos valores morais bsicos de convivncia social. A deteriorao do

53

tecido social era evidente, segundo esse intelectual, no final da mesma guerra, atravs de dois fatos: a inverso da pirmide da estrutura do poder: sabes que uma guerra d mais poderes aos militares e vivencia de um ambiente no de compreenso. [Ronaldo, Idem] No pas, segundo Ronaldo, em funo da guerra, vivia-se um ambiente de no dilogo e mtua intolerncia e de desrespeito entre os moambicanos. Os temas escolhidos para o eixo da tica, conforme Ronaldo, visavam a demonstrar o carter desumano da guerra e, dessa forma, promover o respeito para com a dignidade humana. Razo pela qual, afirma o intelectual, aquele captulo chamado de pessoa como sujeito moral, comea com a discusso dos direitos humanos e termina com a paz como problema moral[Ronaldo,entrevista a 09.09.2007 em Maputo]. A dignidade humana como problema que justificava a necessidade da tica no ensino de Filosofia tambm foi mencionada por Samuel. Embora no a relacionando diretamente guerra, para aquele intelectual, a dignidade humana passa pelo mtuo respeito que se manifesta, conforme ele, na observncia da cortesia ao cumprimentar ao outro. Exemplificando esse aspeto da dignidade humana, Samuel referiu que quando voc cumprimenta e quando voc responde o cumprimento de algum, isso uma maneira de respeitar a pessoa, uma maneira de respeitar a dignidade da pessoa [Samuel, entrevista a 18.09.07 em Maputo].

54

O respeito para com o outro, constitudo em dignidade, ainda conforme Samuel, tambm se expressa pelos modos como um indivduo se apresenta diante do outro. Para ele, uma das manifestaes do desrespeito para com o outro, nas grandes cidades, estava nas formas de vestir ostentadas pelos estudantes de ambos os sexos. As formas de vestir constituam um problema moral, porque o respeito passa pelo modo como eu me apresento diante dos outros, para depois questionar: se eu me apresento com uma cala debaixo das ndegas , eu me respeito a mim53

mesmo, eu respeito aos outros? [Samuel, Idem,]. Assim, conforme os entrevistados, a tica, no ensino de Filosofia, deveria fazer com que a sociedade efetivamente fosse moralizada [Samuel, entrevista a 18.09.2007, em Maputo].54

Explicitando o sentido da moralizao social a ser efetuada atravs da tica, Samuel afirmou que uma sociedade moralizada aquela

em que as pessoas sabem quais so os valores, as pessoas saibam quais so as normas e que as pessoas respeitam essas normas a partir da compreenso da sua justificabilidade, da compreenso da fundamentabilidade18.09.07 em Maputo].As calas debaixo das ndegas para o sexo feminino em Moambique conhecidas por Shuna Baby. Provenientes do Brasil, essas calas so denominadas de calas de cintura baixa. 54 O conceito de moralizar, conforme o intelectual em referncia, deve ser entendido no sentido de as pessoas saberem quais so os valores, as pessoas saberem quais so as normas e que as pessoas respeitem essas normas a partir da compreenso da sua justificabilidade, da compreenso da sua fundamentabilidade [idem, idem].53

suaa

[Samuel,

entrevista

55

Porm,

a

compreenso

da

justificabilidade

e

da

fundamentabilidade das normas e dos valores morais no garante o respeito das mesmas, embora seja um ponto de partida importante para que cada um(a) oriente o seu agir. Portanto, a compreenso no garante a moralidade. At onde, a tica no ensino da Filosofia tm levado os alunos a compreenderem a justificabilidade e a fundamentabilidade dos valores? Moralizar a sociedade: era esse, de acordo com Samuel, o objetivo ltimo da incluso da tica no ensino de Filosofia em Moambique. Os argumentos tanto os apresentados no programa de reintroduo do ensino de Filosofia que vem na ausncia da Filosofia no nvel mdio, quanto o que responsabiliza a guerra civil como causas do dficit moral em Moambique, ambos so frgeis, no alcanam o fulcro da questo, no ajudam o estudante a compreender os principais fatores subjacentes crise tica em Moambique. O ensino de Filosofia foi expulso pela porta da frente da educao escolar moambicana, quando da indepedncia do pas, supostamente, por causa da sua vinculao com os objectivos alienadores da educao colonial (CHAMBISSE, 2005). No lugar da Filosofia, foram incluidos a educao poltica e o marxismo leninismo. Estas duas disciplinas escolares, explicita ou implicitamente, buscaram difundir um ethos que correspondente ao projecto de sociedade que estava em construo: a sociedade socialista. Como se explica a presena de dficit moral nos

56

estudantes? Era o dficit em relao a que moralidade:a tradicional, a socialista ou capitalista ainda em curso? Que valores morais estavam deficitrios nos estudantes? O programa de ensino de Filosofia, no eixo da tica, omisso. No lugar de dficit moral, termo cujo sentido

questionvel sustento que em Moambique vive-se uma crise tica que, de forma alguma, pode ser imputada ausncia de ensino da Filosofia na educao escolar aps a independncia do pas. As razes da crise tica devem ser buscadas nos dois projectos de modernidade que foram implementados no pas, na segunda tentativa de ocidentalizar Moambique, depois do projeto colonial. O55

primeiro

projecto,

denomino-o

de

inacabada modernidade socialista fundado nos princpios do marxismo-leninismo. Para a implementao dessa modernidade, a educao escolar teve uma grande contribuio. Esta difundiu as idias modernizadoras socialistas, com seus ethos, conforme essas ideias eram entendidas e elaboradas pelos intelectuais orgnicos do pas. Coube educao escolar, atravs da difuso das referidas idias, no processo de modernizar o pas, proceder formao do Homem Novo socialista de acordo com a idealizao desse homem feita pelos aratos da modernidade socialista. O segundo projeto de modernidade, designamo-lo de capitalista ou de nova modernidade ainda em andamento, fundado nos princpios do neoliberalismo. Este novo projecto apresenta valores55 Usamos o termo inacabada modernidade, pois, conforme ser discutido, o projecto de modernidade socialista foi abandonado pelos principais defensores, sem aviso prvio aos destinatrios do mesmo, isto , as maiorias sociais.

57

que so aderidos pelos jovens, fato que, provavelmente, leva a que os jovens sejam considerados como possuidores do dficit moral. O primeiro projecto, como tentaremos evidenciar, fragilizou as instncias tradicionais que orientam o agir humano, quais sejam, a religio e a sabedoria da vida. Destituiu, por conseguinte, os fundamentos e as referncias ticas tradicionais. Em substituio das referncias ticas tradicionais, os intelectuais orgnicos propuseram o socialismo, a revoluo e o marxismoleninismo como novas referncias ticas para as maiorias sociais. O projecto de modernidade socialista, o ethos que ele apresentava fundamentado e as referncias ticas que ele propunha foi no neoliberalismo. Este apresentou novas repentinamente substituido por um outro do tipo capitalista, referncias ticas e novos valores de sociabilidade.Uma vez fragilizado o ethos tradicional abraa-se, com relativa facilidade, tudo o que proposto como novo, nessa era de vazio e de seduo. Boa parte da juventude moambicana, destituda dos valores e das referencias ticastradicionais por fora de uma modernizio socialista, e abandonada sua sorte com a reverso repentina do pas ao capitalismo, parece que mergulhou num mar de incertezas. Nesse mar de incertezas, cada um busca o seu porto seguro, num mundo tambm marcado pelo fim das metanarrativas. Os proponentes da Filosofia no ensino mdio

moambicano afirmam que os jovens possuam dficit moral

58

talvez por constatarem a facilidade com que o pretendido Homem Novo abraa os novos valores propostos pela modernidade capitalista, em meio s incertezas sobre as razes e os fins do viver. E, mesmo assim, acusam a ausncia da Filosofia no ensino mdio como a causadora do suposto dficit moral. As modernidades moambicanas e suas conseqncias no podem, portanto, passar ao largo da discusso sobre a tica no ensino da Filosofia. para as modernidades moambicanas que se deve olhar se quisermos compreender os principais factores da crise tica por que o pas passa. Olhar para as modernidades moambicanas significa percorrer os fatores endgenos da crise espiritual que vigora no pas, de acordo com as