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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE DA ASSOCIAÇÃO PLENA EM REDE DAS INSTITUIÇÕES GUILHARDES DE JESUS JÚNIOR MULHERES EM REDE: uma experiência de empoderamento feminino e sustentabilidade ambiental no Sul da Bahia ILHÉUS - BAHIA 2014

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    DOUTORADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

    DA ASSOCIAO PLENA EM REDE DAS INSTITUIES

    GUILHARDES DE JESUS JNIOR

    MULHERES EM REDE: uma experincia de empoderamento feminino e

    sustentabilidade ambiental no Sul da Bahia

    ILHUS - BAHIA

    2014

  • ii

    GUILHARDES DE JESUS JNIOR

    MULHERES EM REDE: uma experincia de empoderamento feminino e

    sustentabilidade ambiental no Sul da Bahia

    Tese apresentada ao Colegiado do Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, da Associao em Rede Plena (UFC, UFPI, UFRN, UFPB, UFPE, UFS, UESC), como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Orientador: Prof. Dr. Salvador Dal Pozzo Trevizan Co-orientadora: Profa. Dra. Mnica de Moura Pires.

    ILHUS - BAHIA

    2014

  • J58 Jesus Jnior, Guilhardes de.

    Mulheres em rede: uma experincia de empodera- mento feminino e sustentabilidade ambiental no Sul da Bahia / Guilhardes de Jesus Jnior. Ilhus, BA: UESC, 2014.

    xiv, 184 f. : il. Orientador: Salvador Dal Pozzo Trevizan. Co-orientadora: Mnica de Moura Pires. Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Santa Cruz. Programa de Ps-Graduao em Desen- volvimento e Meio Ambiente. Doutorado em Desenvol- vimento e Meio Ambiente da Associao Plena em Rede. Inclui referncias e apndices. 1. Desenvolvimento sustentvel. 2. Sustentabili-

    dade. 3. Mulheres Condies sociais. 4. Mulheres

    Trabalho. 5. Direitos das mulheres. I. Ttulo. CDD 363.7

  • iii

  • iv

    A todas as mulheres e homens que acreditam no direito a viver num mundo de equidade, sem violncia nem preconceito.

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Ser grato at que fcil. Difcil agradecer. O primeiro, porque o sentimento de gratido natural ao ser humano quando se tem sensibilidade para com o prximo, pois da se torna fcil reconhecer a contribuio que a existncia do outro traz para nossa vida. O segundo, porque expressar o agradecimento por vezes nos trai a memria, e corremos o srio risco de cometer injustias para com aqueles que colaboram conosco em determinados momentos de nossas vidas. Por isso peo antecipadamente desculpas queles que at o fechamento deste texto no forem citados.

    Ele o Alfa e o mega, o Princpio e o Fim de todas as coisas. Sem Ele, nada posso fazer. Ao Deus Eterno e Todo-Poderoso, todo louvor, honra e glria.

    A Sandra, Victria e Nathlia, esposa e filhas, pela compreenso e pelo auxlio dispensados na minha vida acadmica.

    Universidade Estadual de Santa Cruz, minha casa, de onde recebi toda a minha formao acadmica e instituio que me proporciona o sentimento de plenitude profissional.

    A todo o corpo administrativo e auxiliares dos corredores do Departamento de Cincias Jurdicas, que me deram o suporte necessrio para conciliar trabalho e estudos. Clara, Jaqueline, Magna, Fernando, Airli, Alan, Geisa, Nayara, Fbio, Raquel, mais do que um corpo de funcionrios e estagirios, foram amigos em horas difceis.

    turma do Auditrio Paulo Souto, que se fez minha companhia na reta final. Aos bolsistas e voluntrios da iniciao cientfica e da extenso, que

    contriburam com elaborao de materiais, busca de textos e publicaes: rica, Iraniano, Mrcia, Maria Paula, Leiliam, Dbora Regina, Alana, Lorena.

    Aos colegas professores do Departamento e fora dele, em especial Valdir Mesquita e Saskya, meus vices de Departamento, que muito me auxiliaram, e Juliano, nosso agregado, pelas palavras de motivao.

    Muito, muito, muito especialmente a pessoas que comigo andaram, sorriram e choraram. Foram muito mais que colegas ou colaboradores e aos quais credito alguns dos trechos desse trabalho. Paula Carine, Ariene, Jhader, Aniram, Vanilda, Valria e Aline. Chegamos juntos ao final, e podemos comemorar juntos tambm essa conquista.

    s meninas da Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia, sujeitas (por que colocaria sujeitos?) dessa pesquisa, merecedoras de toda a reverncia pela sua generosidade e disponibilidade, seu carinho e ateno. No vou nomin-las, mas todas sabem de meu inteiro respeito pelo que realizam. Esse trabalho pertence a vocs!

    Aos companheiros da AMEX e demais instituies parceiras da Rede, pela confiana e auxlio.

    Aos componentes da Banca Examinadora, pela disponibilidade e contribuies para melhoria do trabalho.

    Finalmente, a Trevizan e Mnica. No conseguiria sem vocs. Sua pacincia, cumplicidade e apoio foram fundamentais para que pudssemos chegar at aqui.

  • vi

    MULHERES EM REDE: uma experincia de empoderamento feminino e sustentabilidade ambiental no Sul da Bahia

    RESUMO

    Este estudo analisa a percepo do empoderamento feminino num grupo de mulheres, que tem trabalhado na promoo de melhoria de vida, a qual ainda carece de maior visibilidade a respeito dos processos que a envolvem, para que possam experimentar verdadeira situao de equidade de gnero. Como objetivo geral analisam-se as relaes entre equidade de gnero e sustentabilidade ambiental, tomando como referncia a Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia, relacionando ao contexto histrico, geogrfico, econmico e poltico. Partindo-se do estudo singularizado dessa Rede busca-se explicar de que maneira a formao de uma rede de cooperao, sob o enfoque de gnero, exerce influncia nos relacionamentos de cunho familiar, comunitrio, econmico e poltico das mulheres, e como essa rede se fortalece interna e externamente, modificando ou consolidando os olhares sobre o modo de relacionar-se com o meio natural. Assim, parte-se da premissa de que, para se compreender a sustentabilidade, no se pode apenas levar em conta a utilizao contnua dos recursos naturais e a justa repartio dos ganhos econmicos, mas tambm fatores culturais, bem-estar, relaes de poder entre gneros e o reconhecimento das limitaes ecolgicas do espao ocupado. Tais observaes nos conduzem a formular hipoteticamente a seguinte resposta: a organizao em rede e o empoderamento feminino associam-se a processos de mudanas nas relaes econmicas e de poder, e proporciona melhorias nas condies de vida dessas mulheres e de suas famlias, delineando sua influncia na gesto e conservao dos recursos naturais no entorno de suas comunidades. Buscando-se responder aos objetivos traados, foram feitos levantamentos de dados de fontes primrias e secundrias a respeito das comunidades de origem das mulheres dessa Rede, e a realizao de entrevistas semiestruturadas aplicadas em dois grupos: com mulheres consideradas lderes da Rede, e com mulheres identificadas como participantes da Rede, no perodo de agosto de 2013 a maro de 2014. As entrevistas seguiram um roteiro pr-elaborado, por meio de visitas s entrevistadas e em eventos promovidos pela Rede ou por seus parceiros. Aps esta etapa do trabalho, foram feitas a transcrio das gravaes e em seguida as anlises utilizando-se a ferramenta da anlise de contedo e estatstica descritiva. Pde-se constatar que a Rede tem influenciado na reconstruo da identidade das mulheres, promoveu mudanas significativas nos aspectos social e familiar dessas mulheres, especialmente no que diz respeito ao aumento da autoestima, aquisio de conhecimento, acesso a polticas pblicas e concretizao de direitos. A Rede tambm encontra limitaes sua atuao, especialmente na socializao de informaes organizacionais e na realizao de suas atividades para alm da Reserva Extrativista de Canavieiras. A Rede vista como importante instrumento na proteo dos recursos naturais atravs da realizao de aes educativas (preveno) e auxiliar em aes de fiscalizao (represso). A consolidao dessas mudanas pode, ao longo do tempo, proporcionar melhores condies econmicas s suas integrantes, medida que a capacitao profissional, o acesso s polticas pblicas e a obteno de financiamentos para projetos elevem seu padro de vida. Palavras-chave: Sustentabilidade; Equidade de gnero; Conhecimento

  • vii

    Women in network: experience on female empowerment and environmental sustainability in South of Bahia

    ABSTRACT

    This research analyses a perception on female empowerment within in a social group formed by women who have worked to promote improvement in their liv and still need more visibility on a process which they are engaged with , so they may experience a truly gender equality situation. As general objective, the study analyzed the relation between gender equality and environmental sustainability, taking as reference the organization, named Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia relating to a historical, geographical, economic and political context. Starting from a singular study of this Rede it is this research sought to explain how a network based on cooperation, within a gender perspective, influence familiar, communitarian, economic and political relations of women, and how this network strengthens itself from the inside out, changing or consolidating visions of how relating themselves to the natural environment. Thus, based on the premise of understanding sustainability, one cannot only consider the continuous use of natural resources and the fair partition of economic gains, but also factors on cultural themes, welfare, and power relationships of gender, as well as the recognition of the limitations of the ecological area occupied. These observations lead to formulate this hypothesis: the organization in network and the female empowerment are associated to changing processes in economic and power relationships and provide to women improvements in their familys life as well as their own lives, tracing their influence on the management and conservation of the natural resources around communities where they live. For that, Surveys with primary and secondary data sources were made, and also, semi-structured interviews applied in two groups, that is, women considered leaders of this network, and women identified as participants, from August/2013 to March/2014. The interviews followed a pre-prepared script and were made in visits and events promoted by this womens network and its partners. After that, the recordings were transcribed and then analyzed using the tool of content analysis and descriptive observed Data analysis showed that this kind of network has influenced the reconstruction of women's identity promoted significant changes on social and family aspects of these women, especially those with regarding to the increased of their self-esteem, knowledge acquisition, access to public policies and implementation of rights. On the other hand, there are some limitations to its performance, especially related to the socialization of organizational information and the conduction of activities beyond the extractive reserve where these women work. Though, Rede de Mulheres is seen as an important tool to protect natural resources by making educational activities (prevention) and assisting on surveillance practices (repression). The consolidation of these changes, throughout the years, may provide better economic conditions to its participants, as they have professional training and access to public policies, and obtain funds to projects which raise their living standard. Key-words: Sustainability; Knowledge; Gender equality;

  • viii

    LISTA DE FIGURAS

    1 2 Encontro da Rede, Canavieiras, maro de 2012 8

    2 Encontro do Projeto CID em Canavieiras, maio de 2012 9

    3 Curso de Formao de Lideranas, UESC, outubro de 2012 9

    4 Palestra Dia da Mulher, UESC, maro de 2013 9

    5 Curso de formao em Atalaia, Canavieiras, Bahia, maio de 2013 10

    6 Encontro do Projeto CID, UESC, 2014 10

    7 Foto de satlite da rea de abrangncia da Rede de Mulheres,

    destacando a poligonal da RESEX de Canavieiras, Bahia, 2014.

    75

    8 Mapa dos municpios de abrangncia da Rede de Mulheres, destacando-

    se a Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras, Bahia, 2014

    76

    9 Momentos do encontro comemorativo do dia da mulher, Canavieiras,

    2014: (a) plenria de abertura; (b) oficina de exerccio laboral

    77

    10 Caixas de isopor onde so guardados os mariscos para venda,

    comunidade de Barra Velha, Canavieiras, 2013

    81

    11 Evidncia do aumento de apoiadores da Rede: (a) camisa do 1

    Encontro, 2010; (b) camisa confeccionada para a Rede, utilizada na

    Oficina de Planejamento em 2014

    93

    12 Entrega do kit marisqueira pela Secretria de Polticas para as Mulheres

    do Estado da Bahia, Canavieiras, 2013

    93

    13 Cartilha que conta a histria da Rede de Mulheres, UESC, 2013 94

    14 Folder explicativo sobre os direitos da mulher pescadora, UESC, 2012 94

    15 Folder explicativo sobre violncia domstica, UESC, 2012 95

    16 Violentmetro, UESC, 2013 95

    17 Momentos do evento na Colnia Z-20 em Canavieiras, Bahia, 2014: (a)

    apresentao dos resultados do Projeto CID/UESC; (b) Oficina de

    Planejamento.

    96

    18 Aspectos de moradia no Quilombo Santo Amaro, em Itacar, Bahia,

    2014: (a) residncia de tbua e (b) casa de farinha

    97

    19 Impactos ambientais na regio da Ponta da Tulha, Ilhus, Bahia, 2014:

    (a) lixo depositado nas ruas; (b) construo irregular dentro do

    manguezal

    98

    20 Momentos de reflexo sobre violncia domstica: (a) II Encontro da

    Rede, maro de 2012; (b) palestra sobre a Lei Maria da Penha, setembro

    2012; (c) aplicao do Violentmetro, maro de 2013

    101

    21 Atividades promovidas pela Rede, aliando lazer e conhecimento,

    Canavieiras, Bahia, 2013: (a) exerccios de alongamento; (b) oficina de

    artesanato

    102

    22 Balsa utilizada para realizar a travessia para Barra Velha, Canavieiras,

    Bahia, 2013

    107

    23 Momento de entrada no mangue, junto ao local de embarque da balsa

    para Barra Velha, Canavieiras, Bahia, 2013

    108

  • ix

    24 Aspecto do solo e das razes do mangue, local propcio para propagao

    de microrganismos, Canavieiras, Bahia, 2013

    108

    25 Acidentes ocorridos em atividade da mariscagem, Canavieiras, Bahia,

    2012: (a) p cortado no mangue; (b) mo cortada de faca no momento

    de tratar ostra

    109

    26 Preparao do canio com a almofada, Canavieiras, Bahia, 2013 109

    27

    Fazendo barulho com um saco para atrair os aratus, Canavieiras, Bahia,

    2013

    110

    28 Jogando o canio para pegar um aratu, Canavieiras, Bahia, 2013 110

    29 Aratu fmea capturada, Canavieiras, Bahia, 2013 111

    30 Acidente de trabalho: sendo beliscado pelo aratu, Canavieiras, Bahia,

    2013

    112

    31 Aratu em quatro momentos, Canavieiras, Bahia, 2013: (a) no habitat; (b)

    coletado; (c) e (d) preparando o catado, no quintal de casa

    112

    32 Estrada que d acesso ao mangue em Barra Velha, Canavieiras, Bahia,

    2013

    113

    33 Marisqueiras trajadas com o kit completo doado pela SPM. Canavieiras,

    Bahia, 2013

    114

    34 Caminho que se percorre no mangue para se chegar na mar,

    Canavieiras, Bahia, 2013: (a) Maria da Glria nos mostra a trilha; (b) ela

    anda sobre a pequena trilha formada por um banco de areia para no

    atolar na lama

    115

    35 Maria da Glria mostra at onde algum pode se atolar na lama do

    mangue, Canavieiras, Bahia, 2013

    115

    36 Instrumentos de trabalho de marisqueira, Canavieiras, Bahia, 2013: (a)

    siripoia; (b) gancho e canio

    116

    37 Aspecto do criatrio para ostras e sururus, Canavieiras, Bahia, 2013: (a)

    redes de criao das ostras; (b) aproveita-se para coletar o bugigo

    116

    38 Bugigo no detalhe, Canavieiras, Bahia, 2013 117

    39 Dona Maria da Glria d seu depoimento, Canavieiras, Bahia, 2013 117

    40 Diferentes momentos da demonstrao da captura do sururu,

    Canavieiras, Bahia, 2013: (a) identificao do local onde se encontra; (b)

    e (c) sururu coletado

    118

    41 Saindo do mangue, guiado por Dona Maria da Glria, Canavieiras,

    Bahia, 2013

    118

    42 Diferentes momentos de cursos de capacitao: (a) Educao

    Previdenciria, UESC, 2012; (b) processamento de frutas, Canavieiras,

    Bahia, 2013

    140

    43 Momentos de socializao e interao: (a) oficina de indstrias criativas,

    Canavieiras, Bahia, 2012; (b) exerccios teraputicos em grupo,

    Canavieiras, Bahia, 2013; (c) oficina de automassagem, Canavieiras,

    Bahia, 2014; (d) Encontro do Projeto CID, UESC, 2014.

    141

  • x

    LISTA DE QUADROS

    1 Questes norteadoras relacionadas aos objetivos da pesquisa, 2013 68

    2 Percepo da importncia da AMEX para a Rede, 2013 83

    3 Etapas de preparao da construo da Rede de Mulheres, 2010 88

    4 Elenco de atividades antecedentes ao 2 Encontro da Rede, 2011 91

    5 Perfil das mulheres/lideranas da Rede, Sul da Bahia, ago/2013

    mar/2014

    105

    6 Perfil das mulheres que no exercem funo de liderana na Rede, Sul

    da Bahia, ago/2013 mar/2014

    106

  • xi

    LISTA DE TABELAS

    1 Frequncia das respostas referentes ao conhecimento sobre o

    surgimento da Rede de Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    120

    2 Frequncia das respostas referentes s dificuldades para formao e

    continuidade da Rede de Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    123

    3 Frequncia de respostas entre liderana e no-liderana quanto aos

    desafios futuros para a Rede de Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    128

    4 Mudanas nas vidas das marisqueiras da Rede de Mulheres, Sul da

    Bahia, 2013-2014

    131

    5 Percepo sobre unio das mulheres nas comunidades aps a criao

    da Rede de Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    135

    6 Percepo de mudanas nas relaes familiares aps a Rede de

    Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    137

    7 Motivos para as mulheres no participarem da Rede de Mulheres, Sul

    da Bahia, 2013-2014

    142

    8 Benefcios percebidos nas comunidades de marisqueiras aps a

    criao da Rede de Mulheres, Sul da Bahia, 2013-2014

    144

    9 Conhecimento sobre parceiros da Rede de Mulheres, Sul da Bahia,

    2013-2014

    146

    10 Percepo sobre a influncia da Rede a outros grupos de mulheres,

    Sul da Bahia, 2013-2014

    148

    11 Percepo sobre o papel da Rede de Mulheres na proteo dos

    recursos naturais, Sul da Bahia, 2013-2014

    150

  • xii

    LISTA DE GRFICOS

    1 Atividades realizadas pelas marisqueiras da Rede, Sul da Bahia, 2013 101

    2 Percepo de mudanas nas vidas das marisqueiras da Rede de Mulheres,

    Sul da Bahia, 2013

    102

  • xiii

    LISTA DE SIGLAS

    AMEX Associao Me dos Extrativistas de Canavieiras

    AMOVA Associao do Movimento de Alfabetizao de Jovens e Adultos

    CAAE Certificado de Apresentao para Apreciao tica

    CESOL Centro Pblico de Economia Solidria

    CI Conservao Internacional

    CIAGS Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gesto Social

    CID Projeto Conhecimento, Incluso, Desenvolvimento

    CMMAD Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

    Coopmujeres Cooperativa de Mulheres Produtivas de Guapi (Colmbia)

    CRUI Conselho de Reitores das Universidades Italianas

    DRP Diagnstico Rpido Participativo

    FNSP Fundao Nacional para a Superao da Pobreza (Chile)

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservao da Natureza

    INSS Instituto nacional de Seguridade Social

    LER Leso por Esforo Repetitivo

    MEC Ministrio da Educao

    MFA Multifuncionalidade da agricultura

    MPA Ministrio da Pesca e Aquicultura

    ONG Organizao No Governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    ONU Mulheres Entidade das Naes Unidas para a Igualdade de Gnero e o

    Empoderamento das Mulheres

    PANGEA Centro de Estudos Socioambientais

    PIB Produto Interno Bruto

    PNUD Programa das naes Unidas para o Desenvolvimento

    PROEXT Programa de Extenso Universitria do Ministrio da Educao

    PSF Programa de Sade da Famlia

    Rede Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras

    do Sul da Bahia

    RESEX Reserva Extrativista

    SER-Mulher Servio de Referncia dos Direitos da Mulher

    SISBio Sistema de Autorizao e Informao em Biodiversidade

    SPM Secretaria de Polticas para as Mulheres do Estado da Bahia

    SUS Sistema nico de Sade

    TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    UESC Universidade Estadual de Santa Cruz

    UFBA Universidade Federal da Bahia

    UNIFEM Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher

  • xiv

    SUMRIO

    1. Introduo ............................................................................................. 1

    2. Eu quero crescer: desenvolvimento equidade .......................................... 13

    2.1 Bases histricas do conceito de desenvolvimento sustentvel ................ 14

    2.2 Equidade de gnero: o papel da mulher no desenvolvimento ................. 21

    2.2.1 O problema do poder patriarcal e a submisso feminina ............... 18

    2.2.2 Os movimentos feministas e o ecofeminismo ................................ 22

    2.2.3 A questo do exerccio do poder .................................................... 30

    2.2.4 A mulher e a sustentabilidade no mundo contemporneo ............. 36

    2.3 Capital social, empoderamento e desenvolvimento.................................. 41

    2.4 Em busca de um paradigma norteador : a abordagem das capacidades..............................................................................................

    48

    3. Identidade de marisqueira: da invisibilidade ao direito a ter direitos .............. 52

    3.1 A questo das identidades ....................................................................... 52

    3.2 Mulheres marisqueiras e pescadoras: o despertar .................................. 56

    4. Procedimentos metodolgicos ....................................................................... 65

    4.1 As etapas na anlise de contedo............................................................ 69

    5. Se a turma no ia sair eu tambm no sa: resistncia e perseverana das mulheres na formao da rede ................................................................

    74

    5.1 Antecedentes histricos e caracterizao socioambiental da RESEX de Canavieiras ................................................................................................

    77

    5.2 O surgimento e a consolidao da Rede de Mulheres ............................. 84

    5.3 Perfil das mulheres da Rede .................................................................... 97

    6. A fora da Rede a fora das mulheres de comunidades pescadoras e marisqueiras do Sul da Bahia .........................................................................

    104

    6.1 Perfil das entrevistadas ............................................................................ 104

    6.2 O mangue da vida e a vida do mangue .................................................... 107

    6.3 Surgimento da Rede: dificuldades e desafios sob a tica das entrevistadas ..................................................................................................

    119

    6.4 As identidades do SER ............................................................................. 130

    6.5 O reconhecimento da Rede ...................................................................... 145

    6.6 A proteo dos recursos naturais ............................................................. 149

    6.7 A condio de ser mulher marisqueira e pescadora depois da Rede ...... 152

    7. Reflexes finais e sugestes para a consolidao da Rede.......................... 153

    Referncias .................................................................................................... 160

    Apndices........................................................................................................ 168

  • 1

    1 INTRODUO

    Por que depois da Rede de Mulheres as coisas mudaram, mudaram por que as mulheres no querem ficar caladas, sabem de seus direitos e ai, pronto! (L3)

    Um longo processo histrico de reflexes e debates sobre a relao da

    sociedade com seu meio natural resultou no conceito de desenvolvimento

    sustentvel, que reflete uma srie de percepes diferenciadas dos mltiplos atores

    sociais acerca dessa relao. Esto envolvidas no debate diferentes vises que

    perpassam ramos diversos das cincias, e que trazem enfoques, s vezes,

    contraditrios no que diz respeito s relaes do ser humano com o ambiente

    natural, bem como sua percepo sobre as relaes polticas, econmicas, ticas,

    culturais, sociais, geracionais, tnicas, identitrias, de gnero, e outras mais que

    possam advir da viso esposada pelo interlocutor. Veiga (2010) afirma que os

    diversos posicionamentos, embora existam em vrios ramos do conhecimento, suas

    bases de sustentao encontram-se em duas cincias-chave: a ecologia e a

    economia. Na primeira, apresenta-se uma convergncia terica no sentido de se

    admitir que um sistema se sustenta se for resiliente (capaz de absorver choques, a

    eles se adequar, e mesmo deles tirar benefcios, por adaptao e reorganizao),

    por mais distante que esteja do equilbrio ideal. Na segunda, os debates tericos

    dividem os posicionamentos entre o equilbrio de capitais (propriamente dito,

    natural/ecolgico e humano/social) e estoques, assim como a perspectiva biofsica,

    que nega a economia enquanto sistema, entendendo-a como um subsistema

    inteiramente dependente da evoluo darwiniana e da segunda lei da

    termodinmica, sob a inexorvel entropia.

    Vivendo no mbito dessa complexidade, o ser humano busca relacionar-se

    com outros seres humanos e no humanos das mais diversas maneiras, nos

    diferentes tempos e espaos, e esses relacionamentos acabam por determinar, de

    uma forma ou de outra, sua trajetria individual e social. A famlia, por certo, a

  • 2

    primeira influncia marcante em sua personalidade, que lhe proporcionar as

    ferramentas necessrias ao seu desenvolvimento psicossocial e, portanto,

    influenciar nos demais campos de sua vivncia. Dessa maneira, a famlia e outros

    grupos sociais de seu convvio, a exemplo de amigos, escola, clube, partido poltico,

    associao, governo, formaro, em complemento uns dos outros, a base de seu

    relacionamento com o ambiente que lhe circunda e, portanto, sero fatores

    importantes a serem considerados no entendimento do que seja uma vida

    sustentvel.

    De semelhante modo, as famlias recebem influncias das sociedades em

    que esto inseridas. Historicamente os grupos sociais construram seu habitus1: se

    formaram, edificaram seus estigmas, seus dogmas, seus modelos comportamentais,

    suas identidades, desenvolveram sua cultura e o modo de se entender e de se

    manter no mundo, por meio de um processo dinmico e reconstrutor. Esse habitus

    determinou as distines sociais que se seguiram, como tambm fixou o modo de

    exerccio do poder dentro dos grupos e entre os mesmos. Dessa maneira, a

    diferena de comportamentos inerentes a modos de vida hierarquicamente

    construdos em mundos rotulados (urbanos ou rurais, modernos ou

    tradicionais, avanados ou atrasados) foram se entretecendo em diferentes

    tempos e lugares, e de acordo com as opes polticas vigentes em cada poca

    determinaram tambm a ideologia dominante na sociedade. notria, em muitos

    sentidos, a existncia dessa diversidade entre modos de vida das pessoas inseridas

    em ambientes diferenciados. Em tempos mais recentes tem se verificado mais

    fortemente uma aproximao desses modos de vida, em decorrncia das mudanas

    ocorridas tanto no cenrio rural quanto no urbano, onde estruturas identificadas com

    cada um deles tm sido instaladas em um e em outro, numa interessante simbiose

    de valores. Tal ruptura de estilos de vida impe novas formas de enxergar esses

    mundos, tanto do ponto de vista de quem est fora, quanto do ponto de vista de

    quem est dentro desse processo.

    Em questes de cultura, identidade e gnero, as sociedades estabeleceram

    papeis e funes diferenciados para o homem e para a mulher, dando maior valor s

    1 De acordo com Bourdieu (2007), o habitus , com efeito, principio gerador de praticas objetivamente

    classificveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificao de tais prticas. H uma estreita relao entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja: capacidade de produzir prticas e obras classificveis, alm da capacidade de diferenciar e apreciar essas prticas e esses produtos, e que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espao dos estilos de vida.

  • 3

    funes fixadas culturalmente como masculinas. Esse processo segregativo e

    negativamente estigmatizado formou uma cultura de invisibilidade do elemento

    feminino, levando a maioria das mulheres a acreditar que no tinha importncia no

    processo de construo e de desenvolvimento do seu grupo social. Pelo mecanismo

    de estigmatizao descrito por Saraiva (2012), essa normalidade construda que

    vai ressaltar as diferenas entre o masculino e o feminino, impondo s mulheres

    diversos nveis de depreciao, no somente para enfatizar a diferena, mas

    tambm para desacredit-las diante das caractersticas da normalidade imposta e

    faz-las acreditar nessa normalidade to piamente a ponto de tambm aplicar

    sanes s suas semelhantes que no se enquadrem na regra imposta.

    Esse estigma negativo levou as mulheres a condicionarem suas vidas a partir

    da vontade e da fora masculina, adotando a premissa da superioridade de um

    gnero em detrimento do outro. Seguindo a lgica de dominante e dominado, nota-

    se o traado cultural das relaes de gnero em algumas sociedades, nas quais o

    poder masculino, ao tornar-se imperativo, leva a mulher a se reconhecer como

    submissa e dependente da vontade dos seus donos, constitudos nas figuras do pai,

    irmo, marido ou filho mais velho. Com efeito, tal manifestao tpica do poder do

    tipo patriarcal, identificada por Weber (2004) como relaes de piedade

    rigorosamente pessoais, fundadas na tradio e crena na inviolabilidade da

    autoridade masculina, bem como na instituio de normas a serem obedecidas

    pelos submetidos ao poder da autoridade domstica. Nesse tipo de relao, antigas

    situaes naturalmente surgidas so a fonte da crena na autoridade domstica, a

    qual cria para a mulher o estigma de inferioridade, dada aceitao da

    superioridade normal da energia fsica e psquica masculina (WEBER, 2004). O

    reconhecimento dessa identidade submissa pela mulher torna-se um componente

    natural no imaginrio feminino e, por estar enraizado nos grupos sociais, foi

    transmitido por geraes, ratificando a convico de que os processos culturais,

    tambm, so reprodues histricas e hereditrias.

    As lutas por direitos das mulheres, empreendidas principalmente no sc. XX,

    fizeram com que essa relao de sujeio fosse diminuda, embora no tenham sido

    capazes de extirp-la. A reao ao poder androcntrico permitiu que as mulheres se

    identificassem e se unissem de acordo com uma multiplicidade de grupos de

  • 4

    interesse para reagirem contra o esquema de dominao-represso2 por meio das

    lutas feministas. A repercusso dessas lutas, no Brasil e na Bahia, se d no

    somente no campo jurdico, com o banimento de institutos que consolidavam a

    convico de inferioridade feminina ou da mulher como propriedade do homem,

    como tambm no campo poltico, com o surgimento de polticas pblicas voltadas

    essencialmente para garantir equidade de gnero3 e empoderamento feminino. Alm

    disso, no campo das relaes sociais, as mulheres vo tambm despertar para

    formatar movimentos de mobilizao em torno de objetivos comuns, por diversas

    motivaes identitrias (mulheres extrativistas, artess, pescadoras, agricultoras

    familiares, da floresta, das guas, etc.), unindo-se numa teia complexa de relaes

    entre elas e entre seus parceiros domsticos (maridos e companheiros) e

    institucionais (associaes, governos, Redes). Um exemplo desta nova configurao

    a Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia

    (Rede).

    A Rede surgiu em 2009, com a unio de pescadoras e marisqueiras dessa

    regio da Bahia com o intuito de dar visibilidade s demandas e s necessidades do

    grupo, bem como valorizar a atividade extrativista e pesqueira desempenhada por

    mulheres das comunidades da Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras e seu

    entorno. Em verdade, sua gnese se confunde com as lutas para implantao e

    consolidao dessa Unidade de Conservao. Com a instituio da Rede, as

    pescadoras e marisqueiras estariam, assim, mais articuladas e mobilizadas para

    terem acesso s polticas pblicas voltadas para as questes de gnero e poderiam

    adquirir maior participao nos fruns de discusses de polticas pblicas e de

    polticas setoriais. Parece evidente que o surgimento da Rede de Mulheres traz

    2 Foucault (2005) vai identificar dois esquemas de anlise do poder: o esquema contrato-opresso (esquema

    jurdico) e o esquema dominao-represso, no qual a oposio pertinente no do legtimo e do ilegtimo, como no jurdico, mas a oposio entre luta e submisso. Embora Foucault refute a ideia de que o poder essencialmente o que reprime (a natureza, os instintos, uma classe, indivduos), ele faz sua anlise do poder atravs desse esquema, enfatizando que nessa anlise deve-se levar em conta fatores positivos do exerccio do poder, sem os quais ele no subsistiria, e que so ressaltados pelos sistemas discursivos de construo da verdade. 3 Alfaro (1999) afirma que a equidade procura o acesso das pessoas igualdade de oportunidades e o

    desenvolvimento de capacidades bsicas. Significa que se devem remover barreiras s oportunidades econmicas e polticas, e ao acesso educao e servios bsicos, de modo que as pessoas (homens e mulheres de todas as idades, condies e posies) possam desfrutar essas oportunidades e se beneficiar delas. A equidade de gnero envolve a participao de todos no processo de desenvolvimento e implementao da abordagem de gnero em todas as nossas atividades. Isso significa justia, ou seja, dar a cada um, o que lhe pertence, reconhecendo as condies ou caractersticas de cada pessoa ou grupo de pessoas (sexo, gnero, classe, religio, idade) especficos, o reconhecimento da diversidade, sem dar motivo para discriminao.

  • 5

    tona a visibilidade dessas mulheres extrativistas e pescadoras como protagonistas

    do processo produtivo. Nota-se a um despertar para sua condio de ser mulher,

    livre dos estigmas e esteretipos socialmente impostos. A Rede tem conseguido

    reunir um nmero expressivo de mulheres em diversos momentos, para debater e

    lanar as bases de construo de uma nova realidade para mulheres de

    comunidades extrativistas e pesqueiras no espao geogrfico em que atua.

    Para nortear o desafio de avaliar como a organizao das mulheres

    representa avanos nas relaes de gnero no mbito familiar e nos grupos de

    mulheres, e colabora para uma gesto mais sustentvel de seu espao, partindo-se

    do estudo singularizado da Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e

    Pesqueiras do Sul da Bahia, prope-se o seguinte questionamento: de que maneira

    a formao de uma Rede de cooperao, sob o enfoque de gnero, influencia nos

    relacionamentos de cunho familiar, comunitrio, econmico e poltico das mulheres,

    e como essa Rede se fortalece interna e externamente, modificando ou

    consolidando os olhares sobre o modo de relacionar-se com o meio natural?

    Para responder a essa pergunta parte-se da premissa de que, para se

    compreender a sustentabilidade, no se pode apenas levar em conta a utilizao

    contnua dos recursos naturais e a justa repartio dos ganhos econmicos, mas

    tambm fatores culturais, de bem-estar, de relaes de poder entre gneros e o

    reconhecimento das limitaes ecolgicas do espao ocupado. Dessa premissa, o

    presente trabalho pauta sua investigao na identidade das mulheres marisqueiras e

    pescadoras, em virtude da construo da Rede, que tornou visvel a atividade de

    extrao e pesca desempenhada por mulheres, antes considerada de exclusividade

    masculina ou apenas secundria na cadeia produtiva. o estudo do reconhecer-se

    mulher pertencente a uma coletividade de mulheres trabalhadoras. Nesse quesito,

    essa nova configurao produtiva no deve tender a uma mudana de hegemonia,

    mas a busca de uma convivncia harmnica, cooperativa e igualitria entre os

    gneros.

    Tais consideraes nos permitem a formulao hipottica de que a

    organizao em rede e o empoderamento feminino associam-se a processos de

    mudanas nas relaes econmicas e de poder, e proporciona melhorias nas

    condies de vida dessas mulheres e de suas famlias, delineando sua influncia na

    gesto e conservao dos recursos naturais no entorno de suas comunidades.

    Essa emergente organizao de mulheres traz um forte apelo caracterstico

  • 6

    de objeto de pesquisa investigativa e analtica, de forma a propiciar a obteno de

    dados que sejam fundamentais no estudo das questes de gnero, bem como no

    tratamento de novos arranjos culturais que, porventura, estejam se formando no seio

    das comunidades que esto ligadas Rede, que se estende por seis municpios do

    Litoral Sul da Bahia, e tem como gnese as lutas pela implantao da RESEX de

    Canavieiras.

    Ao evidenciar esse arranjo coletivo, que aponta para alteraes no status quo

    local, inclusive, nas relaes econmicas e de poder, pertinente investigar se, de

    fato, segundo sua prpria percepo, ocorreram essas mudanas na vida das

    mulheres marisqueiras e pescadoras, de suas famlias e de suas comunidades. No

    s por meio de uma analise objetiva, mas passando por critrios qualitativos que

    envolvam relaes familiares, trabalho e renda, mas, tambm, analisando o olhar

    dessas mulheres sobre suas vidas, antes e depois da Rede.

    Dessa forma, o trabalho elege como objetivo geral analisar as relaes entre

    equidade de gnero e sustentabilidade ambiental, tomando como referncia a Rede

    de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia,

    relacionando-as ao contexto histrico, geogrfico, econmico e poltico.

    Com o fim de alcanar o objetivo central exposto, definem-se como objetivos

    especficos do presente trabalho:

    a. Caracterizar o processo de organizao da Rede de Mulheres de Comunidades

    Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia, mediante identificao de suas

    lideranas, seu sistema de regras, instituies, comportamentos, formas de

    exerccio do poder, relaes com o entorno natural e as consequncias para os

    modos de vida das mulheres nas comunidades;

    b. Avaliar o processo de formao e atuao da Rede de Mulheres;

    c. Verificar e analisar a presena ou no de novo arranjo identitrio das mulheres

    marisqueiras e pescadoras e de suas famlias aps a Rede;

    d. Identificar como se delineia a formao das lideranas femininas e sua relao

    com as comunidades, lideranas locais e parceiros institucionais;

    e. Buscar estabelecer relaes entre o empoderamento feminino, por meio da

    formao de Redes, e aes efetivas de proteo dos recursos naturais de seu

    entorno.

    Para atingir tais objetivos, faz-se necessrio um aporte terico que promova a

    concepo conceitual de sustentabilidade, desenvolvimento, capital social,

  • 7

    identidade e gnero, a fim de dar sustentao investigao aqui proposta. As

    anlises foram feitas a partir de levantamento de documentos de constituio da

    Rede, tais como projetos submetidos a agncias financiadoras e relatrios, os quais

    serviram de aporte para as informaes extradas de entrevistas semiestruturadas

    aplicadas em dois grupos: com mulheres consideradas lderes da Rede, e com

    mulheres identificadas como participantes da Rede. As entrevistas seguiram um

    roteiro pr-elaborado, por meio de visitas s entrevistadas e em eventos promovidos

    pela Rede ou por seus parceiros. Aps esta etapa do trabalho, foram feitas a

    transcrio das gravaes e em seguida as anlises utilizando-se a ferramenta da

    anlise de contedo.

    certo que um trabalho como este demanda dedicao, investimento de

    tempo e de emoes. Para que seja bem sucedido, importante tambm que haja

    identificao de propsitos, e entendemos que tais fatores se conjugaram para sua

    concepo e elaborao. Aventurar-se no mundo acadmico exige sobretudo

    coragem: de abrir mo de carreiras mais atrativas economicamente, de despir-se de

    arraigadas concepes, de abrir-se a experincias que no trazem ganhos

    econmicos, mas prazer e sentimento de realizao pessoal. Assim foi feito na

    aventura da pesquisa conjugada com a extenso. Minha insero em questes do

    universo feminino remonta infncia, nos modos de criao realizados pela minha

    me e minha av materna. Desde cedo fui criado para reconhecer o devido respeito

    s mulheres, no tocante a ouvi-las, compreend-las, compartilhar hbitos, emoes

    e tarefas domsticas. Fui criado sob o paradigma que homem de verdade aquele

    que divide os afazeres da casa com a mulher. Hoje costumo me gabar das

    habilidades em lidar com a vassoura e o pano de cho como ningum; constam

    tambm do meu currculo domstico a limpeza de louas e passar roupas melhor

    que vrias mulheres, inclusive minha esposa. No ambiente laboral, dei-me conta de

    que nos ltimos anos tornei-me minoria e, por vrias vezes, nico representante do

    gnero masculino nos locais ou grupos de trabalho. A convivncia harmnica (de

    forma alguma livre de eventuais atritos) me levou a superar a possibilidade de

    tolerncia para passar ao respeito diversidade em diversos mbitos.

    Passei a desenvolver trabalhos voltados para mulheres pela provocao de

    uma bolsista de iniciao cientfica, que me estimulou a apresentar uma proposta

    para um Edital do Ministrio da Educao, no mbito do Programa de Extenso

    Universitria (MEC/PROEXT). Era o ano de 2010. Aprovado o Projeto, intitulado

  • 8

    Servio de Referncia dos Direitos da Mulher e depois carinhosamente chamado

    de SER-Mulher. Embora os recursos do PROEXT s tenham sido disponibilizados

    em 2012, o SER-Mulher iniciou atividades de fato em 2011, por meio da Iniciao

    Cientfica, com duas bolsistas de IC realizando levantamento de dados relativos

    violncia domstica no municpio de Ilhus. A par desses dados, deu-se a sua

    divulgao tanto em atividades cientficas, quanto tambm em atividades escolares

    e comunitrias. Paralelamente, foram desenvolvidos materiais informativos sobre

    violncia domstica. Foi com o SER-Mulher que fui apresentado Rede de

    Mulheres. Era a fase de construo do 2 Encontro Regional da Rede, realizado em

    maro de 2012. Nessa ocasio, fui convidado a proferir uma palestra sobre Violncia

    Domstica, para uma plateia de cerca de 400 mulheres. Aquele primeiro contato

    permitiu manter entendimentos com as lideranas do grupo e acenar para realizao

    de atividades em conjunto. Daquele momento em diante, seguiram-se outros

    momentos de troca de experincias, seja em reunies, seja tambm em atividades

    de formao de lideranas realizadas tanto na Universidade quanto em Canavieiras.

    Tive a oportunidade tambm de integrar a equipe do Projeto Conhecimento,

    Incluso, Desenvolvimento (CID), que tem o apoio financeiro da Fundazione CRUI -

    Conselho de Reitores de Universidades Italianas. Visitas tambm foram feitas em

    comunidades onde residem marisqueiras componentes da Rede, como mostram as

    figuras de 1 a 6.

    Figura 1 2 Encontro da Rede, Canavieiras, maro de 2012. Fonte: Arquivo SER-Mulher.

  • 9

    Figura 2 Encontro do Projeto CID em Canavieiras, maio de 2012. Fonte: Arquivo SER-Mulher.

    Figura 3 Curso de Formao de Lideranas, UESC, outubro de 2012. Fonte: Arquivo SER-Mulher.

    Figura 4 Palestra Dia da Mulher, UESC, maro de 2013. Fonte: Arquivo SER-Mulher

  • 10

    Figura 5 Curso de formao em Atalaia, Canavieiras, Bahia, maio de 2013. Fonte: Arquivo SER-Mulher.

    Figura 6 Encontro do Projeto CID, UESC, 2014. Fonte: Acervo Shigueaki Inada.

    As experincias foram riqussimas, permitindo realizar interaes importantes

    com as comunidades, assim como realizar articulaes e parcerias com instituies

    e pessoas vinculadas a projetos de desenvolvimento local sustentvel. Dessa

    convivncia nasceu a proposta da pesquisa que resultou nesta Tese de Doutorado

    em Desenvolvimento e Meio Ambiente, estruturada em sete captulos, como segue.

    Na introduo, procura-se discutir inicialmente a influncia terica a respeito

    das questes envolvendo sustentabilidade, cultura e identidades, no sentido de

    associ-las a um processo de descoberta da situao de dominao feminina, para

    permitir que mulheres dominadas busquem uma situao de igualdade. Busca-se

    justificar o estudo no sentido de defender que, no obstante o gnero feminino tenha

    sido submetido ao longo de anos histricos a um regime patriarcal que as submeteu

    a um processo de invisibilidade e subservincia, novos desenhos nas relaes de

    gnero tm permitido que segmentos de mulheres despertassem para uma nova

  • 11

    vivncia do ser mulher.

    O segundo captulo discute a equidade no desenvolvimento. Realiza uma

    discusso a respeito do entendimento de sustentabilidade, trazendo baila os

    pensamentos que nortearam os entendimentos dessa relao sociedade e natureza,

    e enfoca sua discusso na tese, baseada em categorias como gnero, poder,

    feminismo, capital social e a abordagem das capacidades, expressos tambm em

    documentos oficiais, de que a igualdade entre gneros fator imprescindvel para se

    chegar ao desenvolvimento sustentvel.

    O terceiro captulo traz a discusso a respeito da identidade de ser

    marisqueira. Quem so estas mulheres, como elas se enxergam, como tem sido

    construda sua dura realidade e como experincias vividas em diversos lugares do

    planeta tm demonstrado que existe um caminho de autonomia e empoderamento

    para conseguir a sonhada igualdade. Importante ressaltar que, nesse captulo,

    vamos encontrar estudos sobre comunidades de marisqueiras, e no sobre Redes.

    Apenas um estudo mais recente, que se baseou na contao de histrias de vidas

    de mulheres de uma Rede colombiana, seus desafios e contexto atual. Na reviso

    de literatura no foram encontrados estudos, no Brasil, a respeito de Redes de

    Mulheres Marisqueiras.

    O quarto captulo narra os procedimentos metodolgicos adotados: a

    determinao da amostra, a direo das entrevistas, a categorizao das respostas

    emitidas pelas entrevistadas em origem da Rede, identidade, reconhecimento,

    desafios e proteo dos recursos e o tratamento por meio da ferramenta da anlise

    de contedo.

    O quinto captulo mostra os dados obtidos precipuamente atravs de fontes

    secundrias. Procurando demonstrar, pela anlise e descrio de documentos e

    dados publicados, como a Rede se origina nas lutas de implantao da Reserva

    Extrativista de Canavieiras e se espraia em outros municpios litorneos prximos; a

    caracterizao de suas comunidades, e a identificao de conflitos polticos, de

    diviso sexual do trabalho, socioambientais e de assimetria de poder familiar

    (envolvendo a situaes de violncia domstica).

    No sexto captulo so analisados os relatos das entrevistadas. Pde-se

    perceber o grau de conhecimento delas a respeito da formao da Rede, suas

    dificuldades pretritas e atuais, seus desafios futuros, assim como sua percepo de

    mudana de vida e de valores aps a sua vinculao Rede. Permitiu tambm

  • 12

    captar o quanto elas conhecem sobre os parceiros da Rede, e sua percepo sobre

    a importncia da Rede e de sua atividade laboral para a proteo dos recursos

    naturais de que dispem. Os resultados so mostrados em tabelas e excertos das

    falas, que mostram o quanto h disparidade de conhecimento em pontos

    considerados importantes para a formao identitria das mulheres com a Rede, em

    que as informaes relativas s origens e parcerias da Rede so relativamente bem

    conhecidas das lideranas e to desconhecidas pelas no lideranas. Pontos em

    comum foram tambm encontrados, principalmente no que diz respeito percepo

    de causas provveis da no participao de algumas mulheres e a aquisio de

    mais conhecimento e de melhora da autoestima por parte das mulheres

    participantes. Avanos importantes foram verificados nas vidas dessas mulheres, em

    alguns casos com libertao de situaes de violncia, acesso a polticas pblicas,

    participao na vida poltica, sentimento de autonomia, iniciativa de retomada de

    estudos.

    No ltimo captulo, fazem-se as consideraes relativas ao despertar das

    mulheres, em sua grande maioria, antes submetidas vontade de seus homens,

    hoje com um grau de empoderamento que as permite sonhar com dias melhores

    para suas vidas e para suas comunidades. O sentimento coletivo de pertencimento

    permite que as mudanas percebidas em suas vidas possam encontrar eco na

    dinmica social de suas comunidades. So apresentadas reflexes e sugestes

    para melhoria do trabalho dessas mulheres na Rede.

  • 13

    2 EU QUERO CRESCER: DESENVOLVIMENTO EQUIDADE

    No por que eu sou mulher que eu no posso resolver as coisas (L11)

    O tema da sustentabilidade ambiental se inscreve nas lutas sociais pela

    apropriao da natureza, orientando a reflexo terica e a ao poltica para o

    propsito de desconstruir a lgica econmica e construir uma racionalidade

    ambiental (LEFF, 2006). Encontrar um conceito nico para o termo

    desenvolvimento, ainda mais aliado ao termo sustentvel no tarefa fcil,

    principalmente porque a ideia de sustentabilidade imprime em si uma carga de

    subjetividade que expressa, mais das vezes, a filiao ideolgica de quem constri

    esse conceito. importante considerar que o conceito de desenvolvimento

    dinmico e, atualmente, a sustentabilidade do ambiente constitui parte do conceito

    de desenvolvimento, ou seja, considera-se que ou o desenvolvimento sustentvel

    ou no desenvolvimento.

    Leff (2006) identifica na construo do que ele chama de desenvolvimento

    sustentado uma estratgia simblica que tem por objetivo recodificar todas as

    ordens do ser em termos de valores econmicos. A isso ele tambm denomina de

    coisificao da natureza, colocando-a como condio de sua apropriao produtiva

    pelo capital. Identifica a a ocorrncia de uma hipereconomizao do mundo, em que

    tudo se relaciona com a apropriao dos bens de produo, portanto, da natureza

    enquanto produtora dos bens de capital primrio, e da qual absolutamente tudo

    precisa ser extrado para satisfao das necessidades humanas. Dessa forma, h

    uma distino do que ele classifica como desenvolvimento sustentado e sustentvel,

    em que o primeiro termo utilizado para referir-se ao discurso e s polticas que

    inscrevem a sustentabilidade dentro da racionalidade econmica dominante, nas

    perspectivas da economia ambiental e das polticas neoliberais; e designa como

    desenvolvimento sustentvel as teorias, polticas e aes que colocam a

  • 14

    sustentabilidade dentro das condies ecolgicas e culturais de um processo de

    reconstruo social que se distingue do cerco da racionalidade econmica e que se

    orienta para a construo de uma racionalidade ambiental.

    Busca-se compreender, aqui, os fundamentos que vo nortear nossa

    compreenso do desenvolvimento sustentvel, especialmente no que diz respeito

    equidade entre gneros, buscando auxlio em categorias tericas que expliquem a

    relao entre desenvolvimento, relaes de gnero, feminismo, empoderamento das

    mulheres e superao das vulnerabilidades, para explicar a importncia da Rede de

    Mulheres na transformao da vida das mulheres que fazem parte dela e, como

    agentes ativas, de mudanas em suas famlias e comunidades, nos moldes

    defendidos por Amartya Sen (1987; 2001; 2010; 2011) e Martha Nussbaum (2002;

    2003) na abordagem das capacidades e da justia social.

    2.1 Bases histricas do conceito de desenvolvimento sustentvel

    Os anos 1970 veem surgir o debate sobre desenvolvimento sustentvel, que

    emerge no cenrio internacional por meio da Conferncia das Naes Unidas para o

    Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, a qual em seu discurso de

    reapropriao da natureza define a necessidade de associar o crescimento

    econmico preservao do meio ambiente. Naquele momento, uma das premissas

    do denominado desenvolvimento sustentvel foi o reconhecimento da inadequao

    econmica, social e ambiental do desenvolvimento (associado a crescimento

    econmico) em relao manuteno do equilbrio ambiental planetrio nas

    sociedades contemporneas. A satisfao das necessidades humanas, a qualidade

    de vida e do meio ambiente apresentaram-se como elementos interdependentes e,

    portanto, refora-se a ideia de pobreza associada como uma das principais causas

    da degradao da natureza.

    Desse paradigma emergente poca surge o conceito consagrado na

    literatura, exposto pelo Relatrio Brundtland, oriundo da Comisso Mundial sobre

    Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), que reunida entre outubro de 1984 e

    abril de 1987, exps o entendimento de que o desenvolvimento sustentvel

    aquele que atende s necessidades do presente sem comprometer a possibilidade

    de as geraes futuras atenderem as suas prprias necessidades (CMMAD, 1991,

    p. 46).

  • 15

    O referido relatrio parte de uma viso complexa das causas dos problemas

    socioeconmicos e ecolgicos da sociedade global, entretanto sem afastar-se da

    viso economicista. Ele avana seu discurso quando sublinha a interligao entre

    economia, tecnologia, sociedade e poltica e enfatiza para uma nova postura tica,

    caracterizada pela responsabilidade tanto entre as geraes quanto entre os

    membros contemporneos da sociedade atual. Embora se possa encontrar tal

    avano, o documento mantm ainda a forte identidade de desenvolvimento com

    crescimento econmico. Esse entendimento est expresso na introduo do

    documento, que evoca para uma nova era de crescimento econmico, apoiada em

    prticas que conservem e expandam a base de recursos ambientais. Acredita-se,

    no documento, que esse modelo de crescimento absolutamente essencial para

    mitigar a grande pobreza que se verificava intensificar-se na maior parte do mundo

    em desenvolvimento (CMMAD, 1991, p. 1).

    Contemporaneamente o conceito adotado de desenvolvimento continua

    considerando o crescimento econmico, como no poderia deixar de ser, porm

    deixa mais clara a existncia de dimenses que dizem respeito liberdade de

    escolhas individuais e sociais e a participao efetiva na tomada de decises a

    respeito da produo e distribuio das riquezas, bem como dos seus custos,

    principalmente culturais e ambientais. Foi importante para a construo de um

    discurso de racionalidade ambiental a adoo, por Organismos Internacionais, a

    ideia de reapropriao da natureza a partir da soma de fatores econmicos,

    polticos, culturais e simblicos, de componentes que falem a partir das pessoas e

    comunidades que habitam territrios construdos historicamente na convivncia,

    mesmo que conflitual, com os processos naturais de seu locus de sobrevivncia.

    Nesse territrio se adquirem habilidades, se transmitem conhecimentos, se

    reproduzem modos de vida, os quais, se devidamente reconhecidos como

    importantes, podem potencializar processos de autonomia, empoderamento,

    formao de capital social, fortalecimento dos laos comunitrios, portanto liberdade,

    e como consequncia, desenvolvimento local.

    Nesse sentido sustentabilidade tendo como componente a liberdade como

    fator importante do desenvolvimento, somos levados ao entendimento de que o

    bem-estar e a possibilidade de fazer escolhas esto no centro das discusses a

    respeito do desenvolvimento sustentvel, como afirma Sen (2011). Esse autor

    reformula a ideia de desenvolvimento sustentvel a partir da ampliao de liberdade

  • 16

    desfrutada pelas pessoas. Assim, entende que a recaracterizao da liberdade

    sustentvel pode ser ampliada para, alm de garantir a expanso das liberdades e

    capacidades substantivas das pessoas de hoje, no comprometa a capacidade das

    geraes futuras de ter liberdade semelhante ou maior.

    O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2004) trabalha com a

    ideia de sustentabilidade como sendo a capacidade de um determinado processo ou

    mesmo a forma de apropriao de recursos continuarem a existir por um longo

    perodo. Associando-o ao conceito de desenvolvimento sustentvel, envolve as

    ideias de pacto intergeracional e perspectiva de longo prazo. Esse entendimento traz

    em si a possibilidade de novas construes e incluso dos aspectos imateriais que

    fazem parte das noes mais contemporneas de sustentabilidade, principalmente

    no que diz respeito ao seu aspecto social, que engloba a questo da garantia de

    bem estar s populaes.

    Nesse sentido, Rodriguez e Silva (2009) defendem que a evoluo a uma

    sociedade ps-produtivista e ps-modernista leva tambm evoluo de valores

    materialistas para valores ps-materialistas, que se caracteriza, dentre outros

    aspectos, da superao do antropocentrismo produtivista, para uma nova

    conscincia de se considerar o ser humano imerso em um ecossistema fsico-natural

    com um equilbrio ambiental que deve ser preservado (ecocentrismo). Implica numa

    nfase maior nos aspectos de uma ruralidade como ambiente ecolgico que deve

    ser protegido e melhorado, considerando as sociedades como responsveis pela

    diversificao de suas atividades, para alm das funes produtivas. Assumem,

    portanto, o desenvolvimento dentro de uma perspectiva sistmica, no sentido de ser

    a habilidade de um sistema para gerar uma Rede mais complexa de componentes.

    No sistema, definem-se, diferenciam-se e espacializam-se as funes para a

    coeso, adaptabilidade e a sobrevivncia do conjunto.

    Mais recente o entendimento da Conferncia das Naes Unidas para o

    Desenvolvimento Sustentvel (2012), conhecida como Rio+20, que no documento

    intitulado O Futuro que Queremos, quando ressalta que o desenvolvimento

    sustentvel deve ser um processo inclusivo e centrado nas pessoas, que beneficie e

    d participao a todos, includos os jovens e as crianas. Reconhece tambm que

    a igualdade entre os gneros e o empoderamento das mulheres so importantes

    para o desenvolvimento sustentvel e nosso futuro comum. Os signatrios afirmam,

    ainda, o compromisso de assegurar mulher a igualdade de direitos, o acesso a

  • 17

    oportunidades de participao e liderana na economia, na sociedade e na adoo

    de decises polticas. Quanto a esse aspecto, faz-se necessria uma abordagem a

    respeito do lugar da mulher nas questes relativas ao desenvolvimento.

    Importante salientar que as posies mais recentes de desenvolvimento tm

    suas razes no Relatrio de Desenvolvimento Humano (1990), divulgado pelas

    Naes Unidas, atravs do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    (PNUD), que inaugura o paradigma do desenvolvimento humano, compreendido

    como um processo de ampliao das escolhas das pessoas (PNUD, 1990, p. 10).

    Em princpio, essas escolhas podem ser infinitas e serem alteradas ao longo do

    tempo. Mas h, no processo de desenvolvimento, trs escolhas fundamentais a

    serem realizadas: levar uma vida longa e saudvel, adquirir conhecimento e ter

    acesso aos recursos necessrios para um padro de vida decente. Se essas

    escolhas essenciais no esto disponveis, muitas outras oportunidades

    permanecem inacessveis. H tambm escolhas adicionais, altamente valorizadas

    por muitas pessoas, que variam desde desfrutar de liberdade poltica, econmica e

    social a ter acesso s oportunidades de ser criativo e produtivo, e desfrutar de

    respeito pessoal e ter garantidos os direitos humanos.

    Esse paradigma obteve respeitabilidade e vem sendo adotado pelos pases

    pelo fato de se apresentarem diversas razes que levaram necessidade de

    superao da ideia de que crescimento significa o simples aumento do Produto

    Interno Bruto (PIB). Pases em desenvolvimento descobriram que suas altas taxas

    do PIB no conseguiram reduzir a pobreza em segmentos substanciais da

    populao, permanencendo situaes graves de desigualdade e concentrao de

    renda. Naes industrializadas esto percebendo que a alta renda propicia a

    propagao rpida de problemas como drogas, alcoolismo, doenas sexualmente

    transmissveis, falta de moradia, a violncia e a degradao das relaes familiares.

    Ao mesmo tempo, pases de baixa renda acabaram demonstrando que possvel

    alcanar altos nveis desenvolvimento humano se formularem polticas apropridas

    para expandir as capacidades humanas bsicas. Finalmente, esforos de

    desenvolvimento humano em muitos pases em desenvolvimento tm sido

    severamente limitados por crises econmicas e programas de ajustamento

    existentes desde os anos 1980 (PNUD, 1990).

    As experincias recentes de desenvolvimento so, portanto, um importante

    indicativo de que a expanso da produo e da riqueza apenas um meio, pois sua

  • 18

    finalidade deve ser o bem-estar das populaes. O desenvolvimento humano tem

    duas facetas: a formao de recursos humanos pela melhoria das condies de

    sade, aquisio de conhecimentos e formao de habilidades e pelo uso que as

    pessoas fazem de suas capacidades adquiridas - para o lazer, fins produtivos ou

    atividades culturais, sociais e polticas. Se as escalas de desenvolvimento humano

    no conseguirem equilibrar as duas dimenses, pode resultar em considervel

    frustrao. De acordo com este paradigma (desenvolvimento humano), a renda

    apenas uma opo que as pessoas gostariam de ter, embora importante, mas no

    a soma total de suas vidas. O desenvolvimento deve, portanto, ser mais do que a

    expanso da renda e da riqueza, seu foco deve ser as pessoas (PNUD, 1990).

    2.2 Equidade de gnero: O papel da mulher no desenvolvimento

    2.2.1 O problema do poder patriarcal e a submisso feminina

    A categoria gnero tem sido construda e reconstruda em duas frentes: nos

    estudos acadmicos e de maneira mais incisiva na articulao com os movimentos

    sociais de participao e nas mudanas societrias no bojo da luta pelos direitos

    humanos (MOURA, 2014). Tais posicionamentos, alm de delinearem as assimetrias

    decorrentes do relacionamento masculino-feminino, incorporam a questo da

    relao de poder, passando a formular, em tempos mais recentes, as formas como

    se desenvolvem essas redes de poder nas interaes humanas, em detrimento da

    perspectiva de quem exerce o poder.

    A perspectiva histrica das relaes intergneros foi construda a partir do

    olhar de dominao masculina. Nesse diapaso algumas sociedades foram

    estabelecendo papeis e funes diferenciados para o homem e para a mulher,

    dando maior valor s funes ditas masculinas. Esse processo segregativo e

    estigmatizado formou uma cultura de invisibilidade das mulheres, levando a maioria

    delas a aceitar sua invisibilidade no processo de construo e de desenvolvimento

    do seu grupo social. As mulheres, por causa da crena dominante, acreditavam

    terem nascido, apenas, para servir ao homem, procriar e cuidar da famlia

    (SARAIVA, 2012).

    Entende-se que essa relao de dominao tem suas origens no momento

  • 19

    que o homem percebe a sua importncia no processo reprodutivo e passa a utilizar

    os meios no naturais para a produo de alimentos usando o arado e

    domesticando animais - a fora masculina foi potencializada como necessria

    subsistncia da famlia, restando para a mulher, apenas, as funes domsticas e os

    cuidados com a prole. Essa formatao das relaes familiares se intensifica quando

    o homem agrega valor aos resultados do seu trabalho, o que faz surgir uma nova

    cultura nas relaes de gnero, pois, enquanto a mulher ficava em casa cuidando da

    prole, o homem tornava-se o grande provedor da famlia, gerando um sentimento de

    poder, comando e fora sobre aqueles que dependiam dele (ENGELS, 2002). Outro

    fator importante que vem a caracterizar o processo de submisso nas relaes de

    gnero a questo da manuteno da propriedade que deveria permanecer na

    famlia do varo, ou seja, para seus descendentes. Esse processo s seria garantido

    se o homem fosse o nico copulador e, para isso, a mulher deveria estar sob sua

    total vigilncia e comando. Assim, se delineia um padro social que vem a gerar uma

    cultura nas relaes de gnero, construindo a identidade do homem e da mulher e

    definindo os seus papeis no corpo familiar e social (ENGELS, 2002). Esse tipo de

    relao submissa e aceita como natural vir a ser, tempos depois, identificada como

    violncia simblica.

    Bourdieu (2002) cunhou a expresso violncia simblica, para definir um

    modo de represso, fundado no reconhecimento de uma ordem determinada e

    contnua de crenas (econmicas, sociais ou simblicas) tpicas do processo de

    sociabilizao, que leva o sujeito a posicionar-se de acordo com o juzo crtico e os

    padres do discurso dominante, legitimado por meio do exerccio do poder. A

    violncia simblica se institui por intermdio da adeso que o dominado no pode

    deixar de conceder ao dominante (e, portanto dominao) quando ele no dispe,

    para pens-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relao com ele, mais

    que instrumentos de conhecimento que ambos tm em comum e que, no sendo

    mais que a forma incorporada da relao de dominao, fazem essa relao ser

    vista como natural. Em outros termos, quando os esquemas que ele pe em ao

    para se ver e avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo,

    masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporao de classificaes,

    assim naturalizadas, de que seu ser social produto.

    Essa lgica paradoxal (dominao masculina versus submisso feminina)

    deve ser compreendida em um contexto de ateno absoluta aos efeitos duradouros

  • 20

    que a ordem social exerce sobre as mulheres, ou seja, o exerccio dessa dominao

    acaba por se harmonizar espontaneamente com essa ordem que a elas imposta.

    Os efeitos e a eficcia dessa dominao esto duradouramente inscritos no ntimo

    sob a forma de predisposies (aptides, inclinaes). o que se v, sobretudo, no

    caso das relaes de parentesco e de todas as relaes concebidas segundo esse

    modelo, no qual essas tendncias permanentes do corpo socializado se expressam

    e se vivenciam dentro da lgica do sentimento (amor filial, fraterno, etc.), ou do

    dever, sentimento e dever que, confundidos muitas vezes na experincia do respeito

    e do devotamento afetivo, podem sobreviver durante muito tempo depois de

    desaparecidas suas condies sociais de produo. O poder simblico no pode se

    exercer sem a colaborao dos que lhe so subordinados e que s se subordinam a

    ele porque o constroem como poder (BOURDIEU, 2002, p. 51).

    dessa forma que a mulher, tida muitas vezes como res, no possua em

    muitas sociedades os direitos fundamentais liberdade, propriedade, segurana, e

    at mesmo o seu direito vida era relativizado, visto que estava sob o comando do

    marido. A partir desse padro imposto pela sociedade, as mulheres foram

    classificadas em duas categorias. As que incorporavam as regras impostas eram

    vistas como mulheres de classe, j as que no acolhiam tal modelo incutido como

    sendo virtudes morais que na viso dominante eram de sua ndole, eram tidas como

    seres promscuos, desprezados pela sociedade.

    Michel Foucault, em Histria da Sexualidade (2013), ressalta que, na histria,

    vamos encontrar a ideia de que a vida matrimonial fora caracterizada por uma

    repartio dos encargos e dos comportamentos na forma de complementaridade: o

    homem tinha que fazer aquilo que a mulher no podia realizar, e ela, por sua vez,

    efetuava as tarefas que no eram do mbito de seu marido. A unio familiar se dava

    pela identidade do objetivo - a prosperidade da casa e determinava suas

    atividades e seus modos de vida, por definio, diferentes. Por causa de seus

    negcios, o homem deve ficar fora, ao passo que a mulher deve permanecer em

    casa. Nesse modelo de submisso o intercmbio de funes entre o casal se dava

    da seguinte maneira: o marido tinha, sobretudo, que guiar, dar conselhos, dar lio,

    em ultima instncia dirigir sua esposa em uma atividade de dona-de-casa; a mulher,

    por seu turno, tinha que interrogar sobre o que no sabia e dar contas daquilo que

    tinha podido fazer. Para os estoicos, o princpio natural e racional do casamento o

    destina a ligar duas existncias, a produzir uma descendncia, a ser til para a

  • 21

    cidade e a beneficiar o gnero humano na sua totalidade (FOUCAULT, 2013).

    Interessante ainda como Foucault (2013) vai exemplificar a situao da

    mulher enquanto res4 pertencente ao marido na situao do adultrio, em que ela se

    torna simplesmente um objeto de desejo e disputa entre dois homens. Na

    antiguidade helnica, por exemplo, o adultrio era juridicamente condenado e

    moralmente reprovado a ttulo da injustia que era feita por um homem quele cuja

    mulher ele desencaminhava. O que o constitua, portanto, numa relao sexual fora

    do casamento, era o fato de a mulher ser casada e apenas esse fato. Para o

    ofensor, o eventual estado de casado no devia intervir, ou seja, o engano e o dano

    constituam problema entre os dois homens o que se apoderava da mulher e o

    que tinha sobre ela direitos legtimos. A infidelidade do marido era tolerada no

    sentido de que a mulher era advertida a ter, no que diz respeito s faltas de seu

    marido, uma atitude relativamente acomodatcia: essas faltas eram atribudas

    desordem de sua alma, doena, inexperincia ou a erros acidentais. Se ela fosse

    condescendente, sem se queixar ou fazer-lhe exigncias, ele se prestar, em troca,

    a demonstrar-lhe reconhecimento aps a sua cura (FOUCAULT, 2013, p. 175).

    A construo dessas identidades deu origem denominada dominao

    patriarcal, construda sob bases econmicas e religiosas, nas quais o homem, por se

    tornar detentor das bases econmicas de subsistncia do grupo, alia-se a um

    discurso legitimador de carter divino para apropriao, manuteno e transmisso

    do poder familiar e comunitrio. Em sua essncia, de acordo com Weber (2004), a

    dominao patriarcal se baseia em relaes de piedade rigorosamente pessoais. A

    autoridade da comunidade domstica seu ncleo de sustentao, e vai a partir da

    forjar sua continuidade na formulao das normas que devem ser obedecidas por

    todos os membros do grupo submetidos ao poder do patriarca. Seu fundamento a

    tradio, um sistema baseado nos costumes que se enrazam em algum momento

    histrico no grupo e identificado com aura divina, que se consolida, se cristaliza e

    crida como uma espcie de mandamento inviolvel e de vigncia eterna, que

    existe desde sempre.

    Nesse tipo de dominao, a legitimao dessas normas est fundada na

    submisso pessoal ao senhor, que garante a legitimidade das regras por ele

    estatudas e somente o fato e os limites de seu poder de mando tm, por sua vez,

    4 Expresso em latim que significa coisa, objeto. No caso especfico, considera-se a mulher como propriedade

    do marido.

  • 22

    sua origem em normas, mas em normas no institudas, sagradas pela tradio e,

    na medida em que seu poder no est limitado pela tradio ou por poderes

    concorrentes, ele o exerce de forma ilimitada e arbitrria e, sobretudo, sem

    compromisso com regras (WEBER, 2004). A piedade tradio e pessoa do

    senhor eram os elementos fundamentais dessa autoridade.

    A dominao patriarcal uma forma estrutural mais consequente de uma

    autoridade baseada na santidade da tradio (WEBER, 2004). No caso da

    autoridade domstica, antiqussimas situaes naturalmente surgidas so a fonte da

    crena na autoridade, baseada em piedade; para todos os submetidos da

    comunidade domstica, a convivncia especificamente ntima, pessoal e duradoura

    no mesmo lar, com sua comunidade de destino externa e interna; para a mulher

    submetida autoridade domstica, a superioridade normal da energia fsica e

    psquica do homem; para a criana, sua necessidade objetiva de apoio; para o filho

    adulto, o hbito, a influncia persistente da educao e lembranas arraigadas da

    juventude; para o servo, a falta de proteo fora da esfera de poder de seu amo, a

    cuja autoridade os fatos da vida lhe ensinaram submeter-se desde pequeno

    (WEBER, 2004).

    Castells (2010) vai identificar o patriarcalismo como uma das estruturas sobre

    as quais se assentam sociedades contemporneas e, junto com Weber (2004), vai

    caracteriz-lo como imposio institucional de autoridade do homem, no mbito

    familiar, sobre a mulher e filhos. Para que essa autoridade possa ser exercida,

    necessrio que o patriarcalismo permeie toda a organizao da sociedade, da

    produo e do consumo poltica, legislao e cultura. A partir da a dominao

    e a violncia marcaro indelevelmente os relacionamentos interpessoais e,

    consequentemente, a personalidade de seus membros. essencial, portanto, que

    tanto do ponto de vista analtico quanto poltico, no se pode esquecer o

    enraizamento do patriarcalismo na estrutura familiar e na reproduo scio-

    biolgica, contextualizados histrica e culturalmente (CASTELLS, 2010, p. 169).

    2.2.2 Os movimentos feministas e o ecofeminismo

    tambm Castells (2010) que vai identificar que a famlia patriarcal tem sido

    contestada pelos processos, inseparveis, de transformao do trabalho feminino e

    da conscientizao da mulher. As foras propulsoras desses processos, segundo

  • 23

    ele, so o crescimento de uma economia informacional global, mudanas

    tecnolgicas no processo de reproduo da espcie e o impulso poderoso

    promovido pelas lutas da mulher e pelo movimento feminista multifacetado,

    tendncias observadas a partir do final da dcada de 1960.

    Esse mesmo autor manifesta o pensamento de que o movimento feminista,

    manifestado na prtica e em diferentes discursos, extremamente variado. Identifica

    uma essncia comum subjacente diversidade do feminismo: o esforo histrico,

    individual ou coletivo, formal ou informal, no sentido de redefinir o gnero feminino

    em oposio direta ao patriarcalismo. O feminismo como expresso ideolgica ou

    poltica autnoma, segundo Castells (2010), claramente a reserva ambiental de

    uma minoria formada por mulheres intelectuais e profissionais, embora sua presena

    nos meios de comunicao amplie seu impacto muito alm do nmero que elas

    representam. Embora pertencer ao sexo feminino no seja garantia de feminismo e

    a maioria das mulheres envolvidas na vida poltica aja segundo a estrutura poltica

    patriarcal, seu impacto como modelo, principalmente para as jovens, e como forma

    de quebrar tabus da sociedade, no deve ser desprezado.

    O ponto crucial do feminismo a defesa dos direitos da mulher. Todas as

    outras premissas incluem a afirmao bsica das mulheres como seres humanos e

    no como bonecas, objetos, coisas ou animais, nos termos da crtica feminista

    clssica (CASTELLS, 2010). Nesse sentido o feminismo positivamente uma

    extenso do movimento pelos direitos humanos. Como sendo direitos humanos,

    para Bobbio (1992) so direitos histricos, nascidos em certas circunstncias

    caracterizadas em lutas por defesas de novas liberdades contra velhos poderes.

    Castells (2010) vai identificar duas verses para caracterizar o feminismo, liberal e

    socialista, embora a incluso dessas verses como variantes de um mesmo tipo

    possa parecer surpreendente em vista de sua profunda oposio ideolgica. Para

    ele so realmente bem diferentes, mas em termos de identidade, ambas defendem

    os direitos da mulher como sendo iguais aos dos homens. As duas verses diferem

    quanto anlise das razes do patriarcalismo e em sua crena, ou descrena,

    quanto possibilidade de reformar o capitalismo e atuar de acordo com as normas

    da democracia liberal, ao mesmo tempo em que conquistam a meta final, a

    igualdade. Ambas incluem os direitos econmicos e o de ter ou no filhos entre os

    direitos da mulher. E ambas consideram a conquista desses direitos como o objetivo

    do movimento, embora divergindo profundamente em suas tticas e linguagem.

  • 24

    Siliprandi (2009) esclarece que a revoluo cultural e social do sculo XX

    ampliou, na maioria dos pases ocidentais, os direitos formais das mulheres, com o

    atendimento de parte de suas reivindicaes: acesso ao trabalho, ao voto,

    educao. Isso talvez explique, em parte, o refluxo dos movimentos feministas no

    incio dos anos 1900. A realidade ftica, no entanto, demonstrou que a igualdade

    formalmente conquistada ainda era uma iluso, pois o privado continuava intocado;

    e com isso, permanecia distante qualquer tentativa de conquista da autonomia

    feminina. A rearticulao das mulheres tornou-se, portanto, bem mais do que

    necessria: uma causa legitima. Desse modo, concebeu-se de especial importncia

    a adoo da categoria gnero no novo olhar sobre a sustentabilidade e o

    desenvolvimento, porquanto sabido que o atingimento de inter-relaes pessoais

    mais igualitrias entre homens e mulheres delineia um desenvolvimento humano em

    consonncia com o ambiente em que se insere. Infere-se que a garantia deste ideal

    est pautada na recognio substancial das pessoas, independente de sua

    representao como parte do signo masculino ou feminino ou seja, apartada de

    quaisquer diferenciaes e, em seus direitos. A categoria gnero tem sido

    construda e reconstruda em duas frentes: nos estudos acadmicos e de maneira

    mais incisiva na articulao com os movimentos sociais de participao e nas

    mudanas societrias no bojo da luta pelos direitos humanos (MOURA, 2014). Tais

    posicionamentos, alm de delinearem as assimetrias decorrentes do relacionamento

    masculino-feminino, incorporam a relao de poder, passando a formular, em

    tempos mais recentes, as formas como se desenvolvem essas redes de poder nas

    interaes humanas, em detrimento da perspectiva de quem exerce o poder.

    O feminismo enfrentou a questo da igualdade de gnero com dois enfoques:

    um referente aos espaos pblicos e outro no mbito das relaes privadas. Para

    Santos e Izumino (2005), o feminismo debateu, de um lado, a difcil articulao entre

    a luta poltica contra a opresso social e histrica da mulher e a dimenso da

    subjetividade intrnseca ao teor libertrio feminista; e de outro, o j mencionado fato

    de que o feminismo, embora diga respeito mulher em geral, no existe

    abstratamente, mas se refere a mulheres em contextos polticos, sociais e culturais

    especficos, o que implica recortes e clivagens que dividem estruturalmente o mundo

    que se identifica como feminino. O movimento feminista se fragmenta cada vez mais

    em uma multiplicidade de identidades feministas que para muitas feministas a sua

    principal definio. Isso no constitui uma fraqueza sendo, ao contrrio, a origem da

  • 25

    fora em uma sociedade caracterizada por redes flexveis e alianas variveis

    presentes na dinmica de conflitos sociais e lutas pelo poder. Essas identidades so

    autoconstrudas, embora se utilizem frequentemente da etnia e, s vezes da

    nacionalidade, para delimitar suas fronteiras (CASTELLS, 2010). Dentro desse

    feminismo multifacetado, uma das abordagens que discutem as questes da mulher

    na sustentabilidade o ecofeminismo, que surge nas discusses tericas feministas

    entre as dcadas de 1960 e 1970 segunda onda do feminismo (SILIPRANDI,

    2000). A nomenclatura, que foi formulada na Frana por Franoise Deaubonne

    (KHEEL, 2000), agregou formulaes ambientalistas e feministas para discutir

    acerca das estruturas de poder tradicional que insistiam em designar o status quo da

    natureza e da mulher, uma vez que as contradies verificadas ao longo do tempo

    na nao francesa, abrangendo as temticas em foco, estavam relacionadas com o

    rpido e excessivo crescimento demogrfico, com a degradao do meio ambiente

    natural e com a dominao sofrida pelas mulheres, [...] efeitos da sociedade

    patriarcal (SOUZA; RANREZ-GLVEZ, 2008, p. 2).

    Siliprandi (2000) entende que o ecofeminismo pode ser definido como uma

    escola de pensamento que exerce influncia em diversos movimentos

    ambientalistas e feministas pelo mundo desde a dcada de 1970, e se distingue por

    fazer uma interconexo entre a dominao da Natureza e a dominao das

    mulheres. Puleo (2008) vai afirmar ainda que uma abordagem ecofeminista poderia

    facilitar o entendimento dos problemas especficos das mulheres em relao ao

    meio ambiente e enriquecer a teoria ecolgica com a leitura feminista da realidade,

    corrigindo seus preconceitos androcntricos e ajudando a encontrar solues para

    alcanar a sustentabilidade.

    De uma forma simplificada, Siliprandi (2000) identifica os princpios do

    pensamento ecofeminista nas seguintes questes: a) do ponto de vista econmico,

    existe uma convergncia entre a forma como o pensamento ocidental hegemnico

    v as mulheres e a Natureza, ou seja, a dominao das mulheres e a explorao da

    Natureza so dois lados da mesma moeda da utilizao de recursos naturais sem

    custos, a servio da acumulao de capital; b) o pensamento ocidental identifica, do

    ponto de vista poltico, a mulher com a Natureza e o homem com a cultura, sendo a

    cultura (no pensamento ocidental) superior Natureza; c) a cultura uma forma de

    dominar a Natureza; da decorre a viso (do ecofeminismo) de que as mulheres

    teriam especial interesse em acabar com a dominao da Natureza, porque a

  • 26

    sociedade sem explorao da Natureza seria uma condio para a libertao da

    mulher. Tal qual, Kheel (2000) investiga as concepes, as quais se obstinam em

    depreciar a representao da natureza e da mulher, alm das caractersticas a elas

    incorporadas. Ela nota a existncia de uma assimetria nos valores humanos que

    determina a maneira com a qual homens e mulheres devem viver e conviver, no

    marco das estruturas sociais reverenciadas no tradicionalismo e no patriarcalismo,

    argumentando ainda que atributos concebidos na construo sociocultural da

    civilizao como racionalidade e irracionalidade, conscincia e inconscincia,

    autonomia e dependncia, serviam para amparar a polarizao dos gneros,

    respectivamente, masculino e feminino bem como a submisso do meio ambiente.

    O ecofeminismo pode ser identificado, basicamente, atravs de seis

    vertentes:

    O ecofeminismo essencialista, que recebe hoje o ttulo de "clssico", por

    Puleo (2012), de feminismo da diferena, pois afirma que homens e mulheres

    expressam essncias opostas: as mulheres seriam caracterizadas por um erotismo

    no-agressivo e igualitrio e qualidades maternais que predispem ao pacifismo e

    preservao da natureza, enquanto os homens seriam caracterizados pela

    realizao de atividades competitivas e destrutivas. Nessa corrente encontram-se

    tambm formas especficas de espiritualidade popular do movimento Nova Era, na

    Amrica do Norte, em que a mstica dos rituais da Deusa Terra procuram substituir o

    Deus Pai celestial separado da Natureza. Atualmente, o nome ecofeminismo ainda

    frequentemente associado apenas a essas primeiras formas do movimento e da

    teoria, e pouco so conhecidas as tendncias construtivistas mais recentes. Este

    biologicismo suscitou fortes crticas dentro do feminismo e foi acusado de demonizar

    o homem e, tanto pela sua mstica popular, quanto sua proposta de separatismo

    lsbico ou ingenuidade epistemolgica de seu essencialismo, o primeiro caractere

    ecofeminista foi um alvo fcil de crticas das feministas majoritrias.

    A fsica nuclear e filsofa indiana Vandana Shiva, em meados dos anos 1980,

    inaugura a vertente ecofeminista ps-colonial, ainda ligada s tendncias msticas

    do primeiro ecofeminismo, mas rejeitando a demonizao dos homens. Devedora do

    pensamento de Gandhi, Shiva salienta que este filsofo, sendo do sexo masculino,

    tinha desenvolvido a ideia da no violncia criativa. Para Shiva, o inimigo no o

    homem, mas o capitalismo patriarcal colonizador. Essa corrente faz uma crtica sria

    ao desenvolvimento tcnico ocidental que colonizou o mundo. Observa lucidamente

    http://en.wikipedia.org/wiki/New_Agehttp://es.wikipedia.org/wiki/Vandana_Shivahttp://es.wikipedia.org/wiki/Vandana_Shiva

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    que o chamado "desenvolvimento" nada mais do que um "mau desenvolvimento"

    que gera desigualdade e violncia contra a natureza. Esse mau desenvolvimento

    caracterizado pelos modernos pressupostos patriarcais de homogeneidade,

    dominao e centralizao. De fato, a perda das diversidades biolgica e cultural

    so processos intimamente relacionados. Esse pensamento foi acusado de

    essencialista porque partes de seu argumento parecem indicar uma relao

    ontolgica entre as mulheres e a natureza atravs do "princ