Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo...

280
Sou professor e escritor com formação em filosofia e religião. Meus interesses principais são teologia, história, religião comparada, metafísica e ética. Tenho tendências políticas liberais e conservadoras, mas limito-me ao estudo teórico da ação social, e não me interesso por militância ou partidos. Publiquei em 2009 um livro intitulado Genealogia do Espírito, pela editora FEB.

Transcript of Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo...

Page 1: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Sou professor e escritor com formação em filosofia e religião. Meus interesses principais sãoteologia, história, religião comparada, metafísica e ética. Tenho tendências políticas liberais e

conservadoras, mas limito-me ao estudo teórico da ação social, e não me interesso pormilitância ou partidos. Publiquei em 2009 um livro intitulado Genealogia do Espírito, pela

editora FEB.

Page 2: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Filosofia & EspiritismoEste é um espaço destinado a discussão sobre os pontos de encontroentre a filosofia, como disciplina especializada, e o Espiritismo. Nossoprincipal objetivo é contribuir para o estudo das questõesfilosoficamente relevantes dentro do modelo teológico e filosóficorepresentado pelo Espiritismo. Alguns temas receberão tratamentotécnico, enquanto outros serão contemplados com ensaios destinadosao leitor leigo. Espero que gostem. Muita paz.

Page 3: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Confúcio, o organizador do leste

Chow Yun Fat como Confúcio

O sábio deseja ser lento ao falar e rápido ao agir[1]

Há cerca de 2600 anos atrás a China vivia tempos turbulentos edecadentes que em muito lembravam a sociedade atual. Assim como osgregos do mesmo período, os chineses viviam em uma sociedadefragmentada onde barões e pequenos lordes possuíam quase todo opoder econômico, e os governos nacionais eram distantes e indiferentesàs dificuldades do interior e do campo. A confluência de riqueza,produzida pelo alto grau de urbanização e pela divisão dos campos emunidades controláveis pelos barões, e corrupção gerada pela falta defiscalização sobre estes mesmos barões, ocasionou todo o tipo de excessodos magnatas oligarcas, que, então, dispunham impiedosamente da vidados camponeses e citadinos, além de se entregarem a vícios inumeráveis.

Lao Tzu, abismado com a perversão dos mandatários estabelecerajá em 700 a.C. a mais liberal de todas as doutrinas políticas, postulandoque o melhor bem por parte dos governantes seria não agir. Elecertamente não teria se escandalizado mais se visse hoje um país com

Page 4: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

numerosos políticos cuja única função é a de alterar nomes de ruas evotar aumentos a si próprios, mas talvez não deixasse de nos olhar comjusta repugnância por elegermos jogadores de futebol, comediantes ecantores como nossos representantes.

Enojado ou resignado o mestre Lao proporia indubitavelmente ummaior afastamento da vida mundana e dos interesses rasteiros docomércio e da política como soluções para o descalabro. Como Vergílio eRousseau, desesperara-se com a vida urbana e imaginava uma bucólicarestauração da vida campesina, se possível selvagem.

Confúcio, entretanto, era de lavra inteiramente diferente domestre. Ele entendia ser o papel do sábio a reforma da sociedade, não oisolamento dela. Sem fazer julgamentos de valor quanto a estas duasatitudes, até porque o estilo monástico de Lao Tzu não deixa de despertarem nós infinita reverência, é preciso reconhecer a coragem de Confúcioem abraçar uma tarefa insólita tal qual a de reformar a ordem moral deuma cultura que sucumbia.

Antes mesmo de saber que estava grávida, a mãe de Confúcio haviarecebido a visita de um espírito avisando-lhe que haveria de dar a luz a umgrande sábio.[1] E durante a sua adolescência, diz-se, já recebia discípulosde várias partes que nele buscavam orientação para uma vida perfeita.

Confúcio se considerava um ministro de Deus na terra, emboraquase nunca falasse de Deus. Sua doutrina lembra algo entre o estoicismoe o espírito clássico grego, conforme o manifestam Pitágoras ouParmênides. Seu Deus não é um pai amoroso como o do Cristo ou um Unode pura beleza como o de Platão, mas um Soberano bem ao estilo doVelho Testamento, e ainda mais distante. Confúcio via nos céus umamajestade da qual não se deveria falar em excesso, e para quem apiedade é a virtude impoluta do servo.

Não estranha que sua divindade seja tão estranha aos olhosocidentais, ainda hoje. Enquanto os europeus se assemelhavam aosselvagens mais primitivos e os próprios gregos andavam nus eorganizavam bacanais, a China era um lugar repleto de burocratas,funcionários públicos com camisas de mangas longas e colarinho

Page 5: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

apertado; a nudez, mesmo parcial, parece ter desaparecido há váriosmilhares de anos. A imoralidade e a violência eram comuns, masreservadas a ambientes próprios como os haréns dos imperadores, oscampos de batalha e os bordéis. O pudor dentro ou fora de casa, acompostura e a etiqueta eram a regra de uma substancial parte dapopulação. Daí ser o seu Deus uma expressão da decência, da honra e danobreza de espírito, uma mistura de Jeová, Zeus e algo mais reservado,mais civilizado.

Quanto aos sacrifícios os chineses sempre se ativeram a busca porboa sorte, mais do que por barganhas. Suas oferendas e rituais sãopropiciatórios, não expiatórios.[2] Nós ainda hoje fazemos nossossacrifícios na forma de promessas aos santos e deuses – Se eu obtiver isso,te pagarei com uma vela! – , etc. é uma relação de desconfiança para comos deuses, e demonstra uma índole comercial, talvez herdada dos judeus.Parece-nos tolo investir em rituais que podem não dar em nada... Com oschineses é e sempre foi diferente. Os principais sacrifícios e oferendas sãooferecidos antes dos empreendimentos. Não há desconfiança no caráterdos deuses e espíritos, e se o pedido não for respondido adequadamentea responsabilidade é apenas do fiel. A relação é a da mais absolutaconfiança nos seres divinos. – Se quero algo, pedirei a proteção dosdeuses para a empresa, se eu a merecer e/ou pedir corretamente eles meconcederão alguma graça.

Isso não significa que os chineses dessem menos valor aos seusrituais. De fato eles parecem lhes dar muito mais valor, e antes darevolução comunista praticamente ninguém fazia nada sem antes secertificar de estar devidamente munido de amuletos, augúrios e rituaisapropriados para garantir a sorte e o sucesso.

A ética chinesa não nos soa menos estranha. Escassa deromantismo, ela não nos instiga a admiração ou o amor, mas o respeito.Esta diferença provém de um senso prático profundo. Admiração e amorpodem ser impossíveis, mas o respeito está ao alcance de qualquer um.Podemos respeitar nossos semelhantes por apreço a nossa própriaeducação, como muitos ocidentais sempre fizeram. Podemos ver emalguém um cretino, um torpe, e seria preciso uma grande elevação

Page 6: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

espiritual para o apreciar em algum sentido, mas podemos nos educar obastante para não o desprezar, humilhar ou punir pelo incômodo que noscausa. Ao passo que Lao-Tzu recomendava fazer o bem aos inimigos,Confúcio se abstinha de lhes fazer mal, e dizia: “Se retribuirmos o mal como bem, com que haveremos de retribuir o bem?”[3].

Esta dureza moral tem, como sempre, bases metafísicas naconcepção de Deus que acabamos de expor. O Deus de Jesus, Lao Tzu ouPlatão é um Deus da compreensão e da misericórdia, pois é o jardineiro detodos os seres. O Deus de Confúcio e de Moisés é o juiz ou rei que impõe alei social e espera o seu cumprimento. Os maus não são nossos irmãos emaprendizado, senão os súditos ingratos de um soberano a quem tudodevem.

Uma moral mais dura e legalista acarreta em maior interesse sobrea vida prática. Na verdade ela quer ser o braço da lei divina no mundo,corrigindo as mazelas e endireitando os pecadores para que tudo volte àordem original. Esta perspectiva poderia ter ocasionado inúmerosproblemas e revoltas como os que a expectativa do Messias insuflou naPalestina, mas Confúcio lhes deu uma fórmula tão brilhante que o instintode indignação se converteu, não em revolta, mas em esmero. Ao contráriodo Deus guerreiro de David, a majestade confuciana é servidaexclusivamente pela ordem. Não há como produzir ordem através dadesordem, e para combater o mal é preciso nada menos do que aperfeição da conduta. Nem a caridade que converte o mau por amor, nema guerra santa que o expurga pela espada dos justos. A religião deConfúcio inaugurou no mundo uma forma inteiramente distinta de lidarcom o mal, e que consiste em anulá-lo. Desta forma o enfoque moral nãoestá em perseguir ou transformar a maldade em bem, mas em impedirque ela seja possível.

Desde o começo esta ideia deve ter soado utópica, e Confúcioestava tão ciente da estranheza que sua proposta causaria que a embasouna mais cristalina razão prática, social e política, impedindo-a de cair noplano teórico onde soaria bela, sem produzir qualquer fruto. Ao contráriodo Estado utópico de Platão, a ordem social de Confúcio não exige um reifilósofo ou qualquer outro expediente que possa ser frustrado. Ela deita,

Page 7: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

bem ao contrário, sobre a cultura, a educação pública, a religiãoinstitucional e todos os mecanismos mais objetivos de regulação docomportamento, ignorando aqueles aspectos espirituais da ética (osentimento), da política (a justiça) e da religião (a mística).

Esta filosofia inteiramente “mundana” podia ser facilmentecompreendida e praticada por qualquer um, e aí a sua força. A religião,sobretudo, foi organizada, sintetizada e reformulada de tal maneira aexpressar o ethos confuciano de respeito, moderação e disciplina. A teoriapolítica aproximou-se do legalismo, diminuindo os desmandos earbitrariedades dos governantes e instaurando, não um Estado de Direito,mas uma cultura do direito. Suas reformas sociais ampliaram tanto aclasse letrada que, na prática, formou-se o que os teóricos da democraciaconcluiriam vinte e quatro séculos depois sobre os benefícios daampliação da classe média como mecanismo de controle sobre a nobreza.

Ao invés de uma igreja nacional, o estado inspirado por Confúcio construiu escolas públicas. O templo confuciano éa escola de administração pública.

Ao realizar estas reformas Confúcio criou um sistema quase infalívelde preservação da cultura. Ele tem a vantagem, sobre todos os outrossistemas políticos, de ser realista e meritocrático. É realista porquereconhece que muitos não desejarão ou poderão participar da vidapolítica, por isso não exige a sua participação. O povo comum não seinteressa por política, e arrastá-lo para ela traz sempre consequênciasdesastrosas. Os poderosos, por sua vez, sempre existirão, e é imatura criar

Page 8: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

um sistema que tente impedir os ricos ou militares de, eventualmente,tomarem o poder.

É, certamente, uma filosofia pessimista, que objetiva mais anular omal do que promover o bem. Afinal, para Confúcio, a natureza humana éessencialmente fraca e corrupta: “Jamais conheci um homem que amassemais a virtude do que as mulheres.”[4]

A melhor solução, portanto, é criar um sistema tal em que o poderseja distribuído pela classe dos burocratas. Assim o tirano detêm umaparcela grande de riqueza e poder, mas depende do sistema legal eburocrático para que as coisas funcionem. Os generais se sentavam notrono após um golpe de estado para descobrir de maneira frustrante quesuas ordens não eram mais expedidas imediatamente por seus emissáriose subordinados, mas submetidas a conselhos, atreladas a rituais eacareações que podiam, ao gosto dos funcionários, impossibilitar ogoverno. Tiranos benquistos e com mais habilidade política conquistavamconselheiros e funcionários rendendo-lhes o devido respeito, bem aosmoldes de hoje, e assim conseguiam governar. O camponês, o soldado, ocomerciante e o artesão nada precisavam saber de política, e também nãopodiam se revoltar sem antes aturar uma boa dose de meses de leitura.Com isto a política estava virtualmente livre da insensatez das massas.

É bem esta tônica que se encontra nas passagens principais como:“Se governas o povo pela lei, e os mantêm em ordem pelas penas, eleevitará a pena, mas perderá o senso de vergonha. Mas se os governarespela tua excelência moral e os mantiveres em ordem pelo decoro da tuaconduta, o povo reterá seu senso de vergonha, e se esforçará por viverconforme os padrões.”[5]

Este é bem o tipo de moral que não nos arrebata o sentimento ouconquista nossa esperança romântica, mas o seu realismo racionalista e oseu zelo refinado não nos deixa apáticos. De fato, esta e outrasmanifestações de um “puritanismo maquiavélico" nos constrangem efascinam.

Também as afamadas paciência e resiliência chinesas encontramnos Anacletos suas melhores expressões: “O mestre disse: Aos quinze

Page 9: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

assentei minha mente na sabedoria; aos trinta eu perseverava; aosquarenta fui libertado das dúvidas; aos cinquenta entendia as leiscelestiais; aos sessenta tinha um ouvido dócil; aos setenta podia seguir osdesejos do coração sem transgredir a lei.”[6]Quem chamaria isto deotimismo? Que ocidental colocaria o conhecimento celestial e décadas delabor intelectual e moral como pressupostos a simples capacidade deadequar o coração ao direito? De fato, há poucos cristãos imbuídos destaíndole pascalina, pois a juventude de nossa raça faz de nós ou indiferentesou excessivamente empolgados com a vida moral. Ou supomosorgulhosamente estarmos assentados na perfeição moral, como osfanáticos cristãos e islâmicos que imaginam agradar a Deusimediatamente após a conversão, passando a zelar pedantemente porregras que não vivenciam; ou executamos nossas cerimônias com aindiferença de quem não tem outra opção.

Como verdadeiro filósofo, Confúcio entende que não há concessõese exceções em se tratando de moralidade. O certo e o errado não sãorelativos, nem podem ser suspendidos conforme nossas conveniências. “Ohomem honrado jamais se esquece da virtude, mesmo no momento dasrefeições. Em tempos de pressa, ele se apega a ela; na época de grandeperigo, ele se apega a ela.”[7]

Inúmeras passagens demonstram que este conceito de virtude seresume na cordialidade. O recente filme sobre a vida de Confúcio, umaobra prima extremamente recomendável, nos dá esta imagem peculiar dasantidade chinesa. Não sentimos em momentos algum o espírito heroicoeuropeu ou a aura mística dos judeus. Não é uma história de milagres oude grandes sacrifícios. Confúcio vive bem, embora com frugalidade, nãodesafia as instituições, como Cristo, mas procura atrair para si os queestão dispostos a se corrigir. A imagem do sábio, na profundainterpretação do genial Chow Yun Fat, é a da gentileza, paciência e maisextrema polidez. Sua energia nos dá a mesma impressão dos textos, a deuma constância inabalável. Em Jesus a santidade é serena, mas expansiva.Há rompantes de tristeza, indignação e admoestações severas e imediatasaos erros dos discípulos. Em toda a personalidade do Cristo vemos ocaráter mediterrâneo de um herói e de um líder nato, de alguém que sem

Page 10: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

o menor receio assume a postura de profeta; a santidade coincide combravura de um chefe ou patriarca. Em Confúcio, como em outros mestreschineses, vemos a santidade quase tímida, temerosa de se afirmar. Asemoções estão internalizadas naquela forma tipicamente oriental que nossoa indiferente ou ensaiada. O santo ouve os maiores disparates e observaas piores injustiças com expressão imperturbável, para só depois pedirlicença para falar com muitas reverências com as mãos e a cabeça. Oensinamento principal não é o discurso que se segue, mas estecomedimento, esta etiqueta que a tudo resiste; a santidade coincide coma civilidade.

O desenvolvimento deste tipo asiático de santidade não se dáatravés de experiência e provação, mas de paciente estudo. “Quando viresum homem de valor, pensa em subir ao seu nível. Quando vires umhomem sem valor, olha para dentro e examina a ti mesmo.”[8] Destaforma não há desculpa para a falta de educação moral. Para se obter umaprendizado moral constante basta a companhia de duas pessoas.Olhamos para uma e vemos uma qualidade que podemos imitar; logoolhamos para a outra e vemos um defeito que podemos evitarreproduzir. [9]

Quanto a vida prática, Confúcio era frugal, mas criterioso. Podiacomer somente arroz, mas não aceitava nada que não fosse fresco ebonito, e recriminava os que qualquer coisa consumiam. Suas roupaspodiam ser velhas e rotas, mas limpíssimas e cuidadosamenteconservadas e dobradas. Dizia-se que seu vestuário era o de um mendigo,mas seu asseio e posturas os de um nobre. Por diversas vezes dormiu emestábulos e cavernas, mas os limpava e saneava por muitas horas antes dese instalar. A vassoura era um instrumento permanente da bagagem dosanto. Estes elementos estão entre os que com mais sensibilidade foramretratados no filme.

O que talvez tenha ficado marcado como a parte principal de seuensino e personalidade, contudo, foi o tradicionalismo. As passagens quelouvam a piedade filial, o cuidado e o respeito para com os idosos e oamor ao templo e aos rituais se repetem de forma quase entediante.Dezenas de anedotas falam da visitação a funerais, e insinuam uma

Page 11: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

compaixão especial por pessoas em luto. Viuvez, orfandade e,principalmente, pais que perdiam os filhos pareciam a Confúcio assituações mais dignas de compaixão e consideração. A morte de amigostambém era considerada uma dor terrível.

Em relação aos espíritos era econômico e pragmático: “Se ainda nãocomecei a entender os vivos, como esperar que eu compreenda osmortos.”[10] Deixava, portanto, os assuntos escatológicos e místicos aosdiscípulos de Lao Tzu, que neste campo se especializavam. Esta disciplinaem manter o foco pragmático de sua investigação ressoa virtuosamentecom a própria força prática do ensinamento que ele queria transmitir.

Justiça seja feita, o pragmatismo confuciano não significa desprezopelos assuntos espirituais ou abstratos, e sua importância se comprovapelo fato de agora, vinte e cinco séculos depois, continuar a ser o sistemamais estudado e celebrado da China. Os últimos trinte ou quarenta anosviram uma impressionante renascença confuciana que promete crescernas próximas décadas. Com o retorno da China ao ponto culminante dacivilização terrena, este pensamento deverá se tornar cada vez mais partedo nosso.

Referências:

CONFUCIUS. Analectos. By William Edward Soothill. Yokohama: Fukuin,1910.

Obs: Este livro é o melhor de quarto edições consultadas. O organizadorapresenta uma primorosa introdução contendo informações históricas ebiográficas, e acompanha o texto principal com meticulosas análiseslinguísticas que justificam a escolha das palavras para a versão inglesa.

Confúcio, o filme. 2010. Obs: uma superprodução que se dedicouintensamente a reproduzir o quadro cultural e a personalidade de

Page 12: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Confúcio. A biografia parece ter sido montada com base em relatos dosdiscípulos e comentadores posteriores, além dos textos principais.

Metafísica da subjetividade: Metáforas para o espírito.

A desintegração do sujeito iniciada por Nietzsche e pelos antropólogos culminouna perda da dimensão íntima, ao menos na meditação filosófica. Desde o século XXvigora a visão do homem “como ele é”, sem os encargos de projeções idealizadas,mas esta é uma visão limitada por seus próprios (e muitos) pressupostos ideológicos.A pauta filosófica não é a da observação imparcial, mas a de uma que, para ser“científica” e “madura”, precisa ser antirreligiosa, amoral e integralmente relativistaquanto à estética e o conhecimento. Mas esta falsa objetividade de análise já recebe,contudo, a sua merecida parcela de crítica, especialmente por parte de um movimentode restauração da metafísica que alguns nomeiam como Metafísica da Subjetividade,linha que se baseia no resgate do foco principal da tradição filosófica moderna,representada por Descartes.

O bombardeio mais pesado contra esta tradição foi lançado por Heidegger emseu programa de combate intensivo à metafísica ocidental. Nele Heidegger pretendeum movimento épico e teatral, bem ao estilo de Nietzsche, de puxar o véu queencobre dois mil e quinhentos anos de mentiras e enganos, véu que é representadopela metafísica de Sócrates ao século XX, e que encobre justamente o problema realda filosofia, o de que somos finitos, o de que só temos contato com um ser que seapresenta em todas as suas partes como imediato e dado, e de que toda aespeculação, por mais racional que seja, não senão uma fantasia sobre um outroestado de ser que nunca experimentamos. Como é evidente, esta crítica não apenasdesonra os vinte e cinco séculos de atividade intelectual humana, fazendo o cortejo desábios de todos os tempos passar ou por uma trupe de bobos, ou por uma gigantescaconspiração contra a verdade, mas também nega um campo vasto da experiência,provavelmente maior do que qualquer outro, que é o da vida religiosa.

A crítica de Nietzsche a Descartes é a de que este teria inaugurado um serapartado do real, um ser transcendente e abstrato, um sujeito puramente espiritual emoposição ao mundo e à vida. A nova metafísica não quer escamotear tanto quantofazer justiça a esta interpretação. Nela o sujeito de Descartes não se opõe ao mundo,mas o mundo é que se constitui de dois princípios, sujeito e matéria. Nossaexperiência do mundo nos informa de uma realidade material e de uma realidadepsicológica, como Nietzsche e Heidegger percebem, mas o enfoque no meio ou narelação entre ambos, que a ontologia de Heidegger como a do materialismoconsideram obrigatório, não é mais do que um enfoque possível. Ainda mais grave,

Page 13: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

quando este enfoque pretende destruir e negar todos os produtos da introspeção elecompromete seus próprios resultados, já que a introspeção é constitutiva da realidade,do mundo, ainda que limitada à sua parte subjetiva.

Uma análise ontológica ou existencial do “ser no mundo” não pode prescindirou opor-se à uma análise da subjetividade sem deixar de ser existencial e ontológica.A intencionalidade que revela uma constituição do ente psicológico como inteiramentevoltado para objetos é veraz, mas não trata senão da periferia da subjetividade, deseus membros mais grosseiros, por assim dizer, onde a subjetividade está em contatodireto com o mundo. Isto deixa em sombras, para usar um termo de Jung, o núcleo dasubjetividade, que é a parte necessariamente mais afastada da instrumentalidadepsicológica que se volta para o corpo e o mundo.

O materialismo peca ainda mais ao querer afastar-se até mesmo da existência,o espaço de ligação entre sujeito e objetos, buscando antes falar da matéria “em-si”,ignorando todas as exigências críticas do conhecimento.

O que os novos metafísicos da subjetividade, em especial Dieter Henrich,perceberam foi que a desconstrução do sujeito em favor de esferas mais afastadas daexperiência, a da realidade material e existencial, produziu uma respectiva perda deidentidade e uma diluição da pessoa humana em suas funções instrumentais erelações sociais. Este afastamento se justifica por uma revolta contra o sujeitoextramundano da filosofia moderna, mas este não é, segundo Henrich, mais queilusório e provocado por uma ânsia de objetificar a filosofia, tornando-a ciência, ousubmetê-la a antropologia.

Reafirmar a irredutibilidade da experiência subjetiva não é, portanto, produzirum sujeito extramundano, apenas reconhecer a prioridade da filosofia sobre asciências e a hermenêutica, já que é pela subjetividade em última instância que se julgao mundo, nosso lugar nele e os critérios para qualquer análise supostamente exteriorda própria subjetividade. E nisto não basta a subjetividade engajada de Heidegger,que precisa ser apanhada em seu próprio movimento, mas é imprescindível acertar ascontas com a fundamentação do saber pressuposta por estas análisesfenomenológicas ou hermenêuticas.

O sujeito não é extramundano, ou irreal, mas ele certamente é algo deradicalmente imaterial; sua existência não se permite conciliar com a mecânica, e tudoo que sabemos sobre esta é subsidiado por informação sensorial, um estágio ulterior ealtamente incerto. Esta é a grande descoberta de Descartes e seu métodointrospectivo. A filosofia tem de ser metafísica, pois as regras da subjetividade, oscritérios e princípios que regulam a interpretação da experiência, são a parte maispróxima do juízo, enquanto as regras da matéria, da fisiologia e da psicologia empíricajá são derivadas daquelas primeiras, e qualquer virada interpretativa que pretenda pôro sujeito sob o escrutínio destes elementos derivados tem de falsear de alguma formaas origens subjetivas de sua própria pressuposição.

Esta discussão toda gira em torno da repercussão que metáforas com ao dotimoneiro produzem sobre as diferentes inclinações psicológicas.

Page 14: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Nietzsch e e Heidegger se revoltam contra a ideia de que um piloto caídodos céus conduza o corpo como a um veículo, mas sua solução é pior, ao considerar oser como sistema fechado composto por barco e tripulação, onde esta última, a partesubjetiva, não sobrevive no oceano do ser sem o seu corpo, a parte objetiva, elesconcluíram que a subjetividade possui uma existência real (em função do barco) euma fantasmática (as vidas íntimas dos tripulantes).

Ainda seguindo este exemplo o materialismo privilegia, na subjetividade, aequipe dos remadores, que pelas suas mãos sentem o peso e a fluidez da água,conforme lhes é comunicado pelos remos (os órgãos sensoriais), além de, é claro,imprimir movimento à nau. A vida do capitão é questionada, bem como suaautoridade, e o vigia no topo do mastro é tido por elemento efêmero, dispensável ouimaginário. O materialista sabe perfeitamente que há uma diferença entre o barco e atripulação, o corpo e a psicologia, mas atribui à tripulação um ser emergente a partirdo barco, já que este como matéria inanimada se associa melhor ao mundo que atodos circunda; suposição metafísica muitíssimo audaciosa, para dizer o mínimo; sabetambém que a água, ou o ambiente, só é acessível à tripulação por intermédio deinstrumentossui generis, os remos, âncoras e outros aparatos. E que as impressõesda tripulação, subjetivas, podem não corresponder bem à realidade da água. Nesteexemplo nossa subjetividade jamais poderia saber, por exemplo, que a água émolhada, salgada, fria ou quente, etc., o que nos parece uma informação essencialsobre sua natureza. Não obstante, o materialista confia na experiência secundária dosaparatos para concluir que a tripulação sabe, não apenas o suficiente sobre a água,como boa parte do que ela verdadeiramente é.

Com o existencialismo surgiu uma perspectiva inteiramente nova. Identificandoa bruteza dos remadores e o afastamento do vigia em relação à realidade horizontaldo barco, concentrou-se no capitão, o ser plantado no convés, mas que tem uma visãodo conjunto. Sua função é dar rumo ao barco, e para isso organiza as demais partesda tripulação. Ele é a intencionalidade no quadro maior da subjetividade. Certamenteum elemento chave, mas que sozinho não permite as conclusões tiradas pelosexistencialistas, no sentido de anular a perspectiva do vigia.

A tradição metafísica, que é a filosofia propriamente falando, concentrou-sesempre no vigia no topo do mastro. A sua existência é inteiramente diferenciada da dorestante da tripulação que vive sobre o convés. Ao passo que o capitão se distinguedos demais pela função, compartilha com eles a perspectiva horizontal. Em outraspalavras, as partes da subjetividade que se orientam para funções práticas desobrevivência, interação, entretenimento e mesmo conhecimento, estão fatalmentecondicionadas a estas. Somente o vigia goza de uma propriedade peculiar da visãoque lhe permite discernir, mesmo que vagamente, o plano geral do navio e da viagem.Somente ele percebe a confusão reinante abaixo de si, divisa os escolhos no rumo eas sutis variações atmosféricas. Este espaço mais íntimo da subjetividade é oresponsável pela eleição dos valores, pelos critérios e princípios do saber. Por forçade sua própria perspectiva diferenciada, ele pode e deve sintetizar o sentido daviagem e prescrever alterações na rota.

Page 15: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Entretanto, como é ao grupo no convés que cabe a decisão final, como é aparte funcional da subjetividade que age, é perfeitamente possível ignorar osconselhos do vigia.

A razão vivencial que se bate com as tarefas concretas do manejo, dapercepção e da locomoção nada quer saber daquela razão que tudo vislumbra dasalturas, relativamente indiferente aos problemas do convés. A vingança da tripulaçãocontra este elemento imune às agruras do dia-a-dia foi ignorá-lo como porta-voz dairrisão, mas com isso o navio apenas perde o auxílio e a fiscalização de sua visãodiferenciada, aquela mesma que que o priva dos descaminhos e de enormes perdasde tempo.

A razão “livre” do século XX produziu filósofos capazes de apoiar o nazismo e ocomunismo tão bem como o capitalismo mais destruidor e as fugas da realidadeproporcionadas pela contra-cultura. Idolatra-se hoje os pensadores de Frankfurt, queconfessavam só escrever sob efeito do fumo, e os relativistas absolutos que renegamséculos de edificação intelecto-moral. Verdade tornou-se palavra proscrita novocabulário destes pseudo-sábios, e moral ou valores estão abaixo do ridículo.

A função da subjetividade, de fiscalizar e significar a vida, é consideradapreconceito cultural obsoleto, dando lugar a um pensamento que fala sem cessar daidentidade, ao passo que jamais logra dela se aproximar.

Mas o distanciamento da subjetividade pura não significa a sua dissociação dorestante do patrimônio subjetivo. O mastro está plantado no convés, e o vigia pertenceao sistema total do navio tanto quanto qualquer dos tripulantes, destes dependendo ea estes orientando. É pelo seu afastamento da esfera instrumental, temporalizada econtextualizada, que é possível a sua visão peculiar, essencial na economia da nau.

A metafísica jamais tratou de produzir um sujeito extramundano, apartado do ser,senão de dar voz a uma parte diferenciada da subjetividade. O esforço da metafísica porencontrar um terreno seguro, que permita o julgamento do restante de nossos conhecimentose ações, deriva da percepção empírica de que esta perspectiva é possível, natural e mesmoautomaticamente dada.

O erro de Nietzsche

Page 16: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Um dos problemas capitais enfrentados pela filosofia hodierna é o dedefinir sua própria fase de existência. Afinal o que significam as divisõesem filosofia moderna e contemporânea, tal como se nos apresentam-nasno quadro didático do magistério? Seria a filosofia contemporâneamarcada pela pós-metafísica, ou pós-modernidade; mas neste caso, o queexatamente resta de filosófico na filosofia, se ela assumidamente renunciaao esforço de remontar às causas últimas e sintetizar o real numa fórmulacompreensível?

É tão precária a divisão da filosofia em etapas que os especialistasdiscutem ainda seriamente onde começa e terminam a Era Moderna.Certamente a Modernidade cultural se inicia no século XVII com Bruno,Descartes, Bacon, Galileu, Copérnico e Kepler, ou melhor dizendo, com arevolução científica, que acompanhou também o processo estético-cultural de formação das línguas nacionais. Bem mais difícil é saber se afilosofia acompanhou imediatamente esta revolução, ou se, como pensamalguns, permaneceu escolástica e subordinada à teologia até Hume e Kant,mais de um século depois. E isto é essencial para definir de quem afilosofia contemporânea quer se diferenciar.

Na visão mais ortodoxa a modernidade filosófica se enquadra entreDescartes e Hegel, aproximadamente, período marcado pela metafísica dasubjetividade. Cum grano salis, os pensadores deste períodocompartilham o ponto de vista subjetivo da fundamentação do saber e doser, terminando por identificar a ambos. A partir do positivismo, domarxismo, da psicanálise e, com mais propriedade filosófica eprofundidade, de Nietzsche, inicia-se o processo de crítica antropológicada metafísica moderna, substituindo-se as certezas metafísicas porexplicações sociais, econômicas, linguísticas, psicológicas, etc. Se comComte e Marx a filosofia foi “substituída” pela “ciência” social, ocorrendoo mesmo em relação a Freud, com Nietzsche vemos a implosão dafilosofia a partir de sua própria autoanálise, ainda que com fortecomprometimento do reducionismo antropológico. Nietzsche decretou oerro de Descartes como sendo a absolutização do sujeito em uma formapura, imaterial, e extramundana, e a metafísica que se lhe seguiu nada

Page 17: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mais seria do que uma insistência nesta elevação esquizofrênica dasubjetividade ao estado divino, puro.

O jovem Nietzsche

Tal diagnóstico se cercou não apenas de toda a vasta críticaantropológica disponível, como da análise do próprio Nietzsche sobre osprocessos de abafamento cultural empreendidos pela tradição cristã. Comsua invulgar erudição, Nietzsche discerniu perfeitamente os movimentosda arte, da religião e da ciência na Antiguidade clássica e em sua mutaçãono ideal ascético estóico-cristão, vendo nisto um processo de decadência,o que não é de todo incorreto.

Neste particular a afirmação cartesiana de um purismo dasubjetividade soou-lhe como retrocesso ou continuação acrítica do pensarmedieval, pelo que a condenou duramente. Nietzsche viu em Descartes adesumana separação entre espírito e corpo, entre intelecto e vida, entresujeito e mundo, reivindicando um retorno à vitalidade de uma filosofiacomprometida com esta existência, a concreta. Segundo o célebreteocida, ao contrário de uma alma matemática, puramente abstrata e emoposição ao corpo, era preciso resgatar o ideal heroico grego de uma almadotada de paixões, de pulsões vitais, de amor pelo corpo e pelo mundo. Oespírito para Nietzsche é o regulador da saúde humana, a sensibilidadeabsolutamente encarnada que frui ao máximo a dor e a alegria, a beleza ea tragédia da existência. Por isso mata ele o Deus arquiteto, o purointelecto, em prol de um retorno dos deuses gregos da música e da dança,

Page 18: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

do sorriso e da lágrima, deuses, enfim, que afirmem a vida humana, aoinvés de a negar.

A belíssima contribuição de Nietzsche à reavaliação dos erros docristianismo convive, entretanto, com um erro capital, a saber, o demalbaratar a compreensão correta da subjetividade cartesiana e, porconsequência, de toda a metafísica moderna. Enquanto Nietzsche e seusparceiros, os sociólogos e psicólogos, viam na metafísica da subjetividadeum mero rearranjo das concepções escolásticas e platônicas, a crítica maismoderna resgata já em Platão e especialmente na metafísica moderna osentido preciso da subjetividade, não como elemento isolado, mas regiãodistanciada ou profunda da vida mental.

O que incomodava aos críticos do século XIX e XX era naturalmente aconcepção de imortalidade da alma e a sua oposição ao corpo, bem comoa consequência ética de que a vida não se justificava na existência atual,mas somente em referência a uma outra. Ora, os sociólogos queriamesgotar o drama da existência na realidade socioeconômica atual, omesmo valendo para a psicologia em seu campo de ação. O que a novavisão da metafísica demonstra, no entanto, é que este medo materialistanão tem razão de ser diante da visão mais completa e acabada dasubjetividade, visão esta que estava implícita em toda a tradiçãometafísica.

A crença na imortalidade da alma, ou sua defesa racional, não é maisdo que um momento secundário da percepção compartilhada pelomaterialismo de que há uma esfera subjetiva irredutível aos processosexplicativos da realidade material. O que mesmo o naturalismo mais durodos dias de hoje admite, uma “certa dificuldade” de reduzir o subjetivo aofisiológico, é a atestação empírica de que há uma duplicidade ontológicaradical, talvez intransponível. É com base nesta percepção universal quemetafísicos desde Pitágoras afirmaram a possibilidade, quando não acerteza da, imortalidade, já que a constituição da subjetividade é, aosolhos de todos, distinta da constituição transitória e puramente formal damatéria. Uma vez que o sujeito não está sujeito à causalidade mecânica,identificando intuitivamente em si o livre-arbítrio, não tem o seu serdeterminado pela sua forma, sentindo-se essencialmente como sensível,

Page 19: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

intencional e referencial, conclui-se tão somente quanto a sua nãosujeição às regras do corpo, como o ser perecível.

Mas enquanto esta conclusão tem força de prova para oracionalismo, de diversos tipos, é bem verdade que isto não basta paraconcluir favoravelmente a sua existência de fato. Nisto religiosos ematerialistas estão errados. Há um argumento racional e imbatível emfavor da existência da alma, e isto têm de reconhecer os materialistas,mas estes argumento pode ser puramente válido no âmbito especulativo,sem que se constate sua vigência na realidade, e isto têm de reconheceros religiosos. A solução ortodoxa da religião foi pressupor, pela fé, umbom Deus que garante o acerto de nossos juízos. A solução espírita foibuscar uma base empírica para esta alegação puramente especulativa deimortalidade. Em ambos os casos o materialista pode reagir: negando-se adepositar fé no bom Deus, ou questionando a força das evidênciasempíricas apresentadas pelo Espiritismo.

O que o materialista não pode fazer, contudo, é confundir o recursodo religioso ao argumento de fé ou a uma convicção empírica naveracidade do argumento da imortalidade, com uma crença ingênua e/oupsicológica na sua imortalidade pessoal. Foi precisamente o que Nietzschefez em relação a Descartes. Tal como Marx, Freud e outros pensadoresantropológicos, reduziu o argumento filosófico a uma crítica externa,depositando não apenas a razão do dualismo cartesiano em motivosculturais e psicológicos, como ignorando a fonte empírica, inteiramentenão cultural e não psicológica da dupla constituição do ser.

(continua em Metafísica da Subjetividade)

Pontos metafísicos do Espiritismo

Page 20: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

As críticas de Kardec aos sistemas especulativos produziram umaimpressão errada sobre sua postura diante da metafísica. É comuminterpretá-lo como filosoficamente alinhado ao positivismo, doutrinafrancamente inimiga da metafísica. A maioria dos estudiosos da filosofiaespírita, contudo têm como certa a separação de Kardec das correntesfilosóficas de sua época, o que se justifica não apenas pela insistência nomodelo próprio, que ele definia “filosofia espiritualista”, como igualmentepela ausência de um posicionamento mais claro em relação àquelascorrentes então em voga. – Houve quem por isso o enxergasse como umautor avesso à filosofia.

Uma filosofia prática como a de Kardec, conforme expusemos noartigo Qual é a filosofia espírita, não precisa lançar sua própriafundamentação teórica, embora sempre pressuponha alguma. Ora, afilosofia pressuposta pelo Espiritismo jamais poderia ser a positivista. Emprimeiro lugar porque o progresso no positivismo é substitutivo: damentira para a verdade, enquanto no Espiritismo é melhorista: verdadesintuídas e expressas por alegorias se confirmam e aperfeiçoam com achegada das ciências. Em segundo lugar porque o Espiritismo acolheexplicitamente a noção religiosa de revelação. Por fim, mas não porúltimo, porque o Espiritismo depende inteiramente de certos “pontosmetafísicos”, tidos como superados pelo positivismo. Este também é umdos motivos da condenação de Kardec por parte de outros pesquisadoresdo espiritismo ao longo do século XIX, já que ele agredia a concepçãopositivista e cientificista da época ao lançar mão de elementos demetafísica que lhe permitissem formar uma filosofia geral ao invés depermanecer na experimentação física.

Kardec também declara na introdução de O Livro dos Médiuns, queantes de tornar alguém espírita é preciso fazê-lo espiritualista. Isso nãonos deixa espaço para dúvidas; a filosofia de fundo do Espiritismo é oespiritualismo, doutrina essencialmente metafísica. O positivismo adereao corpo teórico espírita como contributo metodológico ao processopropriamente científico ligado à mediunidade.

Convencidos de que o Espiritismo é filosofia espiritualista,precisamos ter diante dos olhos o quadro do espiritualismo francês de

Page 21: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

princípios do século XIX. Tratava-se de um espiritualismo genericamenteamparado pela filosofia racionalista de Descartes, expandido pelameditação ética e psicológica do pensamento francês dos séculos XVII eXVIII, enamorado do Romantismo em ebulição, amadurecido peloecletismo e, por isto mesmo, associado às pesquisas culturais sobrereligiões antigas.

A melhor forma de confirmar este diagnóstico é o levantamento dospontos metafísicos do Espiritismo. E o primeiríssimo destes pontos é acerteza cartesiana.

Kardec pertence a melhor parte da filosofia francesa, que manteveas condições críticas da filosofia cartesiana sem recair na metafísicasistemática. Neste sentido ele está alinhado a Descartes, Pascal eRousseau, e separado de Malebranche, Leibniz e Spinoza. A percepção deque o pensamento, como fato incontroverso da consciência, pressupõesempre automaticamente um sujeito, apesar de extremamente sólida,constitui um posicionamento metafísico, já que o ceticismo extremo podeainda fugir a esta conclusão.

Assim a afirmação da objetividade de um sujeito, para além deimpressões epifenomenais ou vícios de linguagem, é naquela época tantoquanto hoje uma afirmação dos simpatizantes da metafísica. A diferençaestá apenas na predominância que esta visão tinha sobre a materialista.

Como em Descartes, o Espiritismo também se defende daingenuidade racionalista evocando uma hipótese ético-epistemológica, ade que Deus não permitiria nosso engano em relação aos elementosessenciais do conhecimento. Com isto a fé na razão não é uma fédogmática, mas postulada por umaesperança num Deus bom e inteligenteque nos garante a saúde da razão. Em outras palavras, a razão assentadesde o princípio sobre a fé (ponto que é compartilhado pelopragmatismo).

Incontáveis materialistas tentaram perverter esta relaçãoidentificando a “aposta razoável de Descartes” como uma recrudescênciada filosofia medieval, em favor de um dogma da existência de Deus e daeficácia da razão. A fundamentação de Descartes permanece, no entanto,

Page 22: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

como pedra fundamental da filosofia moderna, sustentando duplamente avigência da razão e a sua própria autocrítica, numa fórmula extremamenteimparcial de “confiança logicamente necessária”.

A cosmologia espírita pressupõe igualmente a divisão de Descartes,por sua vez bastante platônica, entre o elemento extenso e o pensante.Mas, conforme disse certa vez meu mentor Luís Dreher: “É um errocomum atribuir a Descartes uma filosofia dualista, quando, na verdade,ele mantém um esquema de três substâncias, como todo bom jesuíta. Asubstância primeira é Deus, sendo as duas outras por Ele criadas e deledistintas.” Esta interpretação agrada ainda mais ao Espiritismo, que fazdesdobrar de Deus o princípio material e o princípio inteligente, quepodem se contrapor entre si, estando sempre, contudo, subordinados aDeus. O que também não deixa de diluir em muito o dualismo, agoraclaramente unificado pelo vértice que a substância divina proporciona,resolvendo com isto inúmeros problemas metafísicos ligados àdescontinuidade de um mundo dividido.

As especificidades da substância pensante e da material sãotambém largamente expostas em O Livro dos Espíritos, sendo impossívelclassifica-las em qualquer outra denominação que não a de elementosmetafísicos. O estudo dos argumentos de Kardec e dos espíritosdemonstra também que o desenvolvimento destes pontos segue ométodo investigativo da metafísica tanto quanto sua definição final. Hátodo um cuidado em diferenciar e contrapor propriedadesontologicamente conflitantes, unificando-as, ao mesmo tempo, emprocesso dinâmico de contraposição positiva. Os comentários dosespíritos parecem frequentemente abusar da dialética platônica e/ou daredução do conceito à função determinativa das coisas. Que outra formade validar um tipo de filosofia poderia ser mais direta do que esta?

Não convém estender demasiadamente a lista, mas o Espiritismotambém recorre sem reservas a conceitos absolutamente inverificáveispela experiência e que só possuem importância especulativa. Exemplosclássicos são: mônadas, karma e o próprio períspirito (Afinal é umaterceira substância criada, ou, como parece, um ponto de contato entre ainteligente e a material?). Qualquer destes elementos é útil para a solução

Page 23: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

de problemas sistemáticos, e por isso mesmo têm sua justificaçãometafísica garantida, mas já não permitem mais aproximações entre oEspiritismo e o Positivismo com “P” maiúsculo, de Comte. Pode-se,quando muito, investigar a ligação entre o método de Kardec e opositivismo histórico do contexto da época.

Quanto à metafísica, ela sempre esteve presente nos trabalhosfilosóficos dos estudiosos do Espiritismo, e porque o Espiritismo quer falardas causas últimas, sempre estará.

Kant e Kardec, mais do que o K em comum.

Immanuel Kant, o maior de todos os filósofos da Era Moderna, temuma recepção problemática por parte do Espiritismo. De uma lado eleatacou a metafísica das substâncias, que constitui um elemento prioritárioda metafísica espírita (pense-se em fluido cósmico universal, períspirito,centros de força e coisas semelhantes), de outro lado ele fez uma críticadireta ao fenômeno da vidência, manifestado com grande alarde poroutro Emanuel, o engenheiro e místico Swedenborg.

Kant errou, como todos, em alguns pontos, mas tomá-lo porantagonista é mais do que uma má estratégia filosófica: para quem queirasustentar alguma forma de racionalismo moderno, é suicídio.

Contudo, há boas razões para afirmar que o uso de Kant por parte deadversários do Espiritismo é mais motivado por ignorância do que porqualquer outra justificativa, e o mesmo vale para o incômodo depensadores espíritas em relação ao pensador de Königsberg.

Se o mundo viu um homem imparcial nos seus julgamentos, este foio eremita e cientista prussiano tardiamente convertido à filosofia. Aoouvir falar de um vidente sueco que recebia mensagens dos espíritos e seafirmava capaz de se desdobrar em viagens astrais, Kant se absteve de

Page 24: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ambas as reações típicas dos demais seres humanos; nem condenou comolouco o vidente, nem o recebeu instantaneamente como taumaturgofantástico. Dedicou-se, ao contrário, a uma terrivelmente trabalhosaanálise que objetivava aclarar a possibilidade de ocorrência de taisfenômenos, e da validade dos relatos a eles ligados. O resultado é ofamoso livroSonhos de um visionário.

Mas com o livro de Kant permaneceu o problema. Alguns afirmavamter visto nele a condenação definitiva do espiritualismo, pois o filósofoafirmava que tais condições jamais poderiam proporcionar conhecimentocientífico. Outros diziam ser Kant um defensor e mesmo um crentefervoroso nos fenômenos espirituais, já que ele afirmava serem muitosdeles dignos de fé. Onde a verdade?

A célebre frase que futuras edições colocaram na contracapa dá otom de ambiguidade, e a dimensão do drama:

Qual Filósofo não esteve uma vez entre, o juramento de uma pessoa sensata e convictatestemunha ocular, e a resistência interior de uma dúvida inolvidável? Deve ele negarcompletamente a veracidade de todos os fenômenos espirituais? O que o deve conduzir aosfundamentos de sua posicão acerca deste assunto.[1]

Ao menos não se o pode acusar de não tratar seriamente a questão.O livro coleciona relatos de testemunhas dos fenômenos produzidos porSwedenborg, críticas e apologias de algumas das pessoas mais envolvidasno assunto, proporcionando grande erudição sobre o contexto da questãona época. Logo a mente sintética e crítica do pensador chega a umadefinição conceitual extremamente econômica, subdividida em duasperguntas sem as quais nada se pode concluir sobre a mediunidade: 1-Qual é a natureza dos Espíritos? 2- Qual é a relevância objetiva de umtestemunho pessoal, não verificável?

O próprio Swedenborg não possuía um método, como Kardecposteriormente viria a elaborar, sendo apenas um médium muitoostensivo e homem de grande instrução. Assim Kant não tem como colherdo vidente caracteres filosóficos que lhe permitam uma confrontação. Eleé obrigado a fazer todo o trabalho filosófico de fora, sem a presença do

Page 25: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

médium e sem condições similares que lhe favorecessem a solução dasmais pequenas dúvidas. Kardec teve o privilégio de operar com condiçõesbem mais cômodas, e somente por este motivo já temos para com Kantuma obrigação de reconhecer que os seus resultados superam em muito oesperado.

Em suma, Swedenborg não tinha boas respostas para nenhuma dasgrandes questões levantadas por Kant, o que não fez com que o últimodesautorizasse imediatamente a doutrina do primeiro. O filósofo teve detrabalhar de maneira especulativa, usando os conceitos metafísicosvigentes de substância, alma, espírito, etc.

Em alemão a palavra para espírito, geist, significa também mente, ehá um bloqueio cultural quanto a relacionar o espírito a um ser corpóreo,dotado de sensações, motricidade e localidade. Espírito é o intelecto,quando muito as memórias, e as expressões populares para aparições deespíritos são sempre interpretadas pejorativamente, relacionadas afantasmagorias. Por isso, mas também por razões filosóficas, Kant julgavaprecária a definição de espíritos como seres perfeitamente corpóreos,com suas vestimentas e idiossincrasias, tais quais os relatados porSwedenborg. Esta imagem parecia mais compatível com a definição dealma, que evoca sempre noções mais ou menos materiais, embora de umamaterialidade sutil, fluídica ou etérea. A conclusão sensata de Kante é aseguinte: ou os espíritos são materiais, e, portanto, mensuráveis ecomandados pelo princípio mecânico de causa e efeito, ou são imateriais,e, assim, não há como vê-los, ouvi-los ou mesmo pensá-los, pois o que nãoé material não possui forma ou substância para serem apreendidas.

Pois bem, os espíritos de Swedenborg tinham forma,impressionavam os sentidos e pareciam de todo modo materiais, mas issoos colocaria na classe dos fenômenos estudados pela ciência, e isto não severificava. Caímos no problema da medição, pois como os espíritos nãopodem ser observados com método científico, suas aparições exclusivas aum ou outro indivíduo não podem ser confirmadas como “conhecimento”,são apenas testemunhos.

Page 26: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Este julgamento é puramente epistemológico, não estabelecendovalores de bom ou mau, certo e errado ou verídico e inverídico. Dizer quealgo não é científico não significa dizer que seja falso, e dizer que aspessoas não podem considerar o relato de Swedenborg comoconhecimento válido, não significa desautorizá-las de crer neste relato eviver conforme ele.

Na verdade é exatamente isto que Kant recomenda emSonhos deum visionário; ele reconhece que muitos dos relatos de videntes sãoplausíveis, respeitáveis do ponto de vista moral e proferidos por pessoasdo mais inquestionável caráter. Ainda assim nada do que dizem pode serverificado, de modo que só lhes podemos conceder ou não nosso voto defé.

Kant conclui que, a respeito dos contatos com os mortos, deve-seproceder como em qualquer ocasião em que um indivíduo profere tervivenciado experiências que ninguém mais teve ou pode ter. A plateiadeve julgar com sua própria razão e sensibilidade a plausibilidade dorelato, a idoneidade da testemunha e chegar a uma conclusão subjetiva,com valor de convicção, sobre ele. O filósofo tece até um exemploalegórico bem humorado: supõe-se que um náufrago chegasse a uma ilhadeserta e lá visse coisas admiráveis. Improvisando uma jangada eleconsegue escapar, mas não é capaz de dizer ao certo a localização da ilha,e outros não a puderam encontrar posteriormente. Os relatos do náufragosão sóbrios e detalhados, e ele é conhecido como ajuizado, conscienciosoe honesto. Como devem proceder os ouvintes? Decerto alguns crerão noamigo, mas a ninguém ocorrerá acrescentar a narrativa aos livros deciência.

Esta conclusão foi tida como fulminante contra as pretensõescientíficas do espiritismo pré-kardequiano, mas seria uma tolice temê-laou empregá-la após o método desenvolvido pelo codificador. Estamosconvictos de que aqueles que ainda hoje empregam o Sonhos de umvisionário como crítica ao Espiritismo desconhecem os elementos maisbásicos desta doutrina, enquanto que os espíritas que se sentemincomodados com a crítica kantiana falham em compreender o contexto,para o qual a conclusão do filósofo era corretíssima.

Page 27: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Médiuns houve muitos, fenômenos idem, sempre e em quantidade.Nada disto, entretanto, faz uma ciência, se não houver um cientista queorganize os fenômenos segundo um método, e que os ponha a prova.Kardec foi o executor deste projeto árduo e ingrato de fundar uma ciênciado oculto, ainda hoje estigmatizada pela ortodoxia acadêmica. Elecomeçou por duvidar, tão ou mais do que fizera Kant, dos fenômenos quese lhe apresentaram, e somente passou a tomá-los como base para suanova ciência quanto respondeu satisfatoriamente os dois problemaslevantados por Kant.

Ao problema da substância, que desde o início atormentou Kardec,responderam os próprios fenômenos sob a força da repetição e dadiversificação de experimentos. Ao princípio intelectual, que não poderesponder à causalidade mecânica, nem apresentar forma oumensurabilidade, e ao elemento material, dotado de todas estascaracterísticas, observou-se o elemento intermediário que pode constituiro períspirito, um fluido ainda material, mas passivo de comando doespírito. As qualidades sui generis do “fluido cósmico universal”,escapando das categorias dualistas da metafísica, oferece uma respostateórica para o questionamento acerca da impossibilidade de contato entreespíritos e seres encarnados. Mas o mais interessante ainda é o fato deeste conceito ter-se desenvolvido por experimentação, não porespeculação metafísica, e esta experimentação só foi possível porqueKardec resolveu o segundo problema kantiano, o da validade dos relatosdos médiuns.

Certificado empiricamente da veracidade dos fenômenos, ocodificador do Espiritismo (só agora com a letra maiúscula do nomepróprio) não se precipitou em declarar como ciência a sua coletânea defatos. Elaborou uma ferramenta metodológica digna dos fundadores dasciências humanas para averiguar a universalidade dos relatos. Só assimpodia eliminar a subjetividade dos testemunhos individuais dos médiuns eatingir a almejada imparcialidade para a conceituação dos fenômenosespíritas e das ideias que os espíritos por eles transmitiam. A ciênciamaterial dos fenômenos físicos e psicológicos foi amplamente reproduzidadesde a época aos dias de hoje, mas a ciência pura proporcionada

Page 28: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

unicamente pelo controle universal do ensinamento dos espíritos, e queproduziu um verdadeiro sistema crítico para a comunicação com o outromundo, é o traço peculiar dos esforços de Kardec.

Há, portanto, duas ciências espíritas, uma localizada entre a física ea psicologia, pertinente aos fenômenos mediúnicos, e uma outra que seaproxima das ciências sociais, ainda que inteiramente diferenciada,pertinente aos processos de controle estatístico e crítico das ideiasapresentadas pelos espíritos.

Não há como saber qual o grau de familiaridade de Kardec com ascríticas de Kant, mas estas últimas são inteiramente compatíveis com ospadrões de qualidade e inovações metodológicas apresentadas porKardec. Não havendo outra crítica igualmente precisa do Espiritismo comométodo científico, estamos a aguardar de seus opositores análises tãojudiciosas quanto a de Kan

A lucidez do pragmatismo americano

O final do século XIX parecia trazer grande desesperança para osfilósofos. Os especialistas e sábios dividiam-se entre a metafísica idealistaou romântica, esta última influenciada pelo darwinismo e dando origemao vitalismo moderno, e, de outro, um completo niilismo marcado peladesesperança na razão e adoção de um materialismo cínico aos moldes deNietzsche e Marx. Filosofia, num sentido estrito, não havia, pois ao ladodestes modelos estéticos e elaborados com o maior rigor lógico carecia-seda postura imparcial necessária ao fazer filosófico.

A fabulosa conquista da perspectiva transcendental de Kant havia seengessado em uma metafísica dogmática após a morte de Hegel, o últimodescendente de Kant a fazer filosofia ao invés de defendê-la comobandeira ideológica, e as primeiras brilhantes intuições de Nietzsche, queo levaram a questionar a cultura ocidental de uma forma nunca antes

Page 29: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

imaginada, acabaram não sendo levadas por ele mesmo à condição deproposição útil à renovação do pensamento; seu trabalho se resumiulamentavelmente aos aspectos destrutivos do que ele mesmo definia“filosofar com o martelo” ou aos floreios poéticos que enchem os olhos doestudante, deixando na mesma o pesquisador.

Neste cenário um tanto quanto negativo surge a filosofia vigorosa danova cultura gestada entre Boston e Chicago, nas palavras de WilliamJames “um novo nome para uma velha forma de pensar”: o pragmatismo.

William James, o primeiro grande pensador das Américas.

A cultura americana, ou melhor dizendo, do nordeste dos EstadosUnidos, no período pós a guerra civil era em todos os aspectos estuante. Opaís deu em cinquenta anos uma arrancada da periferia para o topo daeconomia mundial, o que não deixou de ser acompanhado por umcrescimento tecnológico, científico e humanístico igualmenteimpressionante. As universidades americanas se dividiam, em matéria defilosofia, entre a replicação do utilitarismo inglês e a replicação doidealismo germânico conforme propagado na Grã-Bretanha. Filosofianacional era um termo inaplicável antes de 1880, embora já houvesseuma percepção geral de que um modo de pensar tipicamente americanoestaria já presente nos inspiradores da República.

Page 30: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

William James foi um dos responsáveis pela materialização da formaarrojada de pensar que caracterizaria teoricamente o que na prática tãobons resultados produzia: o empreendedorismo, a liberdade, arepresentatividade e o espírito objetivo da cultura americana.

Ninguém o teria feito melhor que James, pois poucos indivíduosreúnem o gênio à mais completa educação disponível em seu tempo,ambos necessários ao trabalho que viria a iniciar. Vindo de uma família deintelectuais espiritualistas, teve desde cedo contato com a alta cultura ecom uma fé profunda na liberdade religiosa e intelectual. Seu pai,conhecido adepto do swedenborguianismo, transmitiu-lhe uma aberturainusitada para as questões metafísicas e espirituais; os estudos de filosofiafeitos na Alemanha lhe deram segurança no trato dos mais difíceisproblemas conceituais da época; sua formação como médico na tradiçãoinglesa, finalmente, propiciou-lhe um senso empírico impecável. Mas nãofoi a nenhuma destas inclinações que ele dedicou a parte principal de suasreservas psíquicas, senão à psicologia, o campo desconhecido econtroverso por excelência, que antes mesmo de Freud abarcavapraticamente tudo o que há do esoterismo à anatomia cerebral, dafilosofia sensualista à estética transcendental de Kant. James foi um dospoucos a assumir a estafante tarefa de pôr ordem a este amplo universo,e o que melhores resultados apresentou em língua inglesa.

Pragmatismo ou empirismo radical era a forma como James definia asua “velha forma de pensar”, nomes que também eram empregados porPeirce e Dewey, embora com conotações e agendas completamentedistintas. O diferencial desta filosofia era a intenção de escapar doproblema dos pressupostos, um problema lógico gravíssimo que rondatoda a filosofia desde sempre, e que se apresentava especialmenteincômodo na época, dividida entre as metafísicas e o ceticismodogmáticos.

Comicamente James propôs uma revolucionária solução apósparticipar de uma discussão de acampamento a respeito de um esquilo. Ogrupo de amigos dividia-se em duas facções munidas de argumentosfilosóficos com distintos graus de seriedade. O caso em questão: umcolega que havia tentado encarar um esquilo preso a uma árvore. O

Page 31: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

esquilo corria sempre para o lado oposto, evitando o inconveniente rapaz,que tinha sempre o tronco entre ele e o animal, sem lograr alcançá-lo,apesar de circundar completamente a árvore O problema que surgiu entreos amigos foi o de saber se o rapaz circundou o esquilo. Um grupoafirmava que o esquilo, embora circundando a árvore, havia sido por suavez circundado pelo rapaz como num par de círculos concêntricos. Osegundo grupo afirmava que, estando o esquilo sempre do lado oposto aodo rapaz, este jamais teria sequer alcançado, quanto mais circundado oesquilo.

Com a chegada do sábio o grupo o incumbiu de solucionar o enigma,e James partiu para a desambiguação. Há duas perspectivassimultaneamente corretas e contraditórias. A primeira estipula a noção decircundar como ato de estar a norte, depois a leste, depois a sul, depois aoeste e finalmente de novo ao norte do esquilo. Neste sentido ele foicircundado. A segunda perspectiva é a de ter o esquilo à sua frente,depois à direita, então por trás, à esquerda e finalmente de novo à frente.O rapaz não efetuou a circunvolução neste sentido. Ou seja, Jamestransferiu o problema lógico para o da definição; naquele a contradiçãoera insolúvel, neste é legítima, mas irrelevante.

A grande ideia do pragmatismo é a de que a verdade não depende deuma essência metafísica ou fórmula lógica, senão da perspectiva segundoa qual as ideias são formuladas. Trata-se de um relativismo, mas um muitodiferente do que se pratica vulgarmente. Verdades contraditórias podemcoexistir, sem que, ao final, as coisas sejam indiferentes.

Na questão do esquilo os grupos se dividiam entre duas noções deespaço, uma absoluta, com o esquilo circundado, e uma subjetiva, com oesquilo mais astuto que seu perseguidor. James negou ambas as posiçõesfilosóficas clássicas e relativizou o espaço segundo os critérios ditadospelos “interesses” dos dois grupos.

O pragmatismo ganha daí o seu nome. A verdade é o que elasignifica na prática, e por trás disto não há uma verdade absoluta, aomenos nenhuma que o homem possa captar. Com isto se satisfaz oscéticos, pois nenhuma verdade é pressuposta dogmaticamente, sem que

Page 32: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

se percam as verdades instrumentais necessárias à vida, que é o problemado ceticismo irredutível. A verdade relativa do pragmatismo é, portanto,uma verdade válida, uma certeza conveniente que deve ser sustentadapara critérios práticos.

Para sentir o peso desta revolução vamos criar um cenário fictício.

O cético e o metafísico passaram séculos numa discussão a respeitode Deus.

Deus existe _ afirma o metafísico_ porque é um ser necessário. Aordem do mundo não funciona sem ele. Além disto, nossa vida moraltambém exige um juiz absoluto, sem o que o mal não seria compensadoou punido, e o bem seria a menos compensadora das opções.

O cético replica _ Nossa vida moral pode ser fruto de interessesegoísticos e ilusões sociais, neste caso a garantia da moral não fazqualquer sentido, pois ela mesma é efêmera. Nosso olhar sobre o cosmotambém pode estar essencialmente errado, de modo que a lei e a ordemque enxergamos não signifique nada no universo em-si.

Antes que a discussão se alongue indefinidamente o pragmatistaintervém. _ A verdade ou as verdades desta questão não podem serdefinidas de imediato, pois tanto nossa razão quanto nossa experiênciasão limitados demais. Tudo o que podemos fazer é confiar numaperspectiva razoável, adotando-a por convicção, e modifica-la quando elase mostrar infrutífera. Se Deus responde às nossas necessidades de umarquiteto cósmico, convém afirmar sua existência como verdadeira paracritérios de compreensão do cosmo. Se duvidar da harmonia universal nosajuda a eliminar a ingenuidade no campo científico, duvidemos dela e dequalquer outro princípio de segurança, e em suspendendo todas asnoções metafísicas conseguimos, de fato, enxergar com novos e maisdesanuviados olhos a realidade que se mostra. Vocês estão amboscorretos, pois a existência ou inexistência de Deus serve aos propósitosdos dois.

Isto é uma desonestidade! _ trovejam os velhos espíritos da filosofiaem uníssono. _ Seu arbítrio nos deixou na mesma, e não inaugura critério

Page 33: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

algum para decidir o que é verdadeiro. A verdade é o que te convém emcada circunstância.

Não, não, meus amigos. O pragmatismo aceita como verdade o quefunciona, não apenas o que convém aos distintos indivíduos. Vamosapenas tomar ambas as perspectivas como válidas enquanto não houvermeio de bater o martelo, mas a experiência segue correndo, e vamosobservar como a realidade responde às nossas verdades, qual delasproduz mais e melhores frutos, quantas outras verdades se associam acada partido e quantas pessoas encontram sentido nesta ou naquelaperspectiva. Se em algum momento a vida decidir a controvérsia, um dospartidos deverá ser extinto. Assim como na ciência, a filosofia devesubordinar-se ao progresso e à refutação de suas teorias.

Mas então _ declaram novamente ambos _ a filosofia jaz devoradapela ciência.

Mais uma vez não, pois onde a ciência para a filosofia seguedesinibida. O método é semelhante ao da ciência, mas o objetoradicalmente diverso, e assim também a avaliação. Uma verdade funcionalpode não gerar qualquer efeito mensurável ou objetivo, mas apenasefeitos subjetivos, emocionais ou ideais. Uma pessoa diz que sua religião aconforta na dor, a outra jura que um ritual lhe deu coragem, um terceiroconfirma que a arte transformou-lhe a vida. São alegações desprovidas desentido para a ciência, mas que podemos qualificar filosoficamente comoverdades válidas, funcionais. E o teste destas verdades não será feito pelaciência, e sim em foro íntimo por cada consciência ao longo da vida.

De fato é uma visão diferente, _diz o metafísico_ mas prefirocontinuar com a minha. Estou convicto de que a razão é capaz dedesvendar verdades essenciais, não apenas estas funcionais. Acho quevocês dois estão errados.

Também admiro tua inovação, pragmatista, _completa o cético _ epermaneço, contudo, igualmente na dúvida metódica que me parecemelhor do que esta aceitação de “verdades convenientes”.

Page 34: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Aí também o pragmatismo se diferencia do dogma e da dúvida,_conclui o pragmatista _ pois esta perspectiva não exclui as outras. Paraque o ceticismo esteja correto, é preciso que todas as certezas sejamabolidas, e para que a metafísica esteja correta, é imprescindível que todaa dúvida seja superada. Nós temos ao mesmo tempo certeza e dúvida,mas ambas estão numa tal tensão que é impossível a realização completade qualquer uma delas. Tanto o cético quanto o metafísico pode estarcom a razão, numa proporção maior do que a nossa. O pragmatismo não éum espaço intermediário, ele se põe fora da questão, como juiz da luta,não como participante. Esta é uma posição confortável e privilegiada, masnos impede de concorrer ao troféu da vitória. Nós regulamos o método,mas cada um segue suas intuições entre dúvidas e certezas. Um de vocêsdeve vencer, ou talvez ambos lutem eternamente, e eu estou aqui apenaspara evitar que haja trapaças e confusões no embate.

***

Como se vê, a virada pragmatista traz interessantes elementos paraa revitalização do pensamento em geral. Estando extremamente próximoda ciência, ajuda-nos a evitar uma filosofia que, pelo distanciamento dosdados positivos, se desmoralizasse em face da cultura estabelecida. Aomesmo tempo, o pragmatismo oferece um tratamento sério e emprimeira mão das questões metafísicas, éticas, psicológicas e religiosas,impedindo que o reducionismo científico e/ou materialista desqualifique aconcretude destes aspectos da vida humana.

Embora tendo relativamente poucos adeptos declarados, foi umadas escolas de maior impacto sobre o pensamento do século XX emdiante, com amplas consequências em pensadores como Popper ecorrentes como a analítica, que bebem da fonte pragmatista praticamentesem o reconhecer.

O pragmatismo é o substituto crítico, aperfeiçoado e aprofundadodo positivismo, no sentido de se oferecer como filosofia compatível com amentalidade científica. Os positivistas liberais, ecléticos e moderados seassemelham na íntegra à índole pragmatista. E com isto chegamos a

Page 35: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

conclusão de que um estudo mais atual do programa científico-filosóficode Kardec deveria se haver com o seu símile posterior, o pragmatismo.

Obs: Para conhecer o pragmatismo todas as obras de William James sãorecomendadas, mas as que tratam mais diretamente do métodosão: Pragmatism e The meaning of Truth.

Qual é a filosofia espírita?

Da compreensão geral de que o Espiritismo é ou tem uma filosofiasurge a necessidade de explicitá-la. Os seus adeptos reproduzem comacerto os seus aspectos filosóficos, e os separam com habilidade adquiridapelos estudos kardequianos daqueles outros científicos e religiosos. Etambém o caráter filosófico de uma doutrina qualquer é sempre maisdiscernível e menos controverso do que um seu possível elementocientífico. Estas são razões pelas quais se fala numa filosofia espírita comalguma segurança.

Entretanto, a academia possui no que tange à filosofia não menosexigências e regras do que às que competem à prática das ciências. Afinal,então, o que é e como se sustenta a filosofia espírita? Tentaremos maisproblematizar do que responder a este questionamento.

Do ponto de vista da filosofia como especialidade, o Espiritismoapresenta-se como filosofia popular, o que equivale a dizer, como razãoargumentativa, mas não fundamentadora. Esta qualificação não precisaser pejorativa, e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram umcunho acentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau e Nietzsche.É também uma visão filosófica válida e oficial a de que a razão já estádesde sempre em jogo com seus problemas específicos, e não pode ounão requer fundamentação. Ainda assim, a maior parte do que se

Page 36: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

produziu sob o título de filosofia na história humana destinava-se àfundamentação do conhecimento.

São mentes analíticas e interessadas na fundamentação das certezasa de Platão, a de Descartes, a Locke e a de Kant, alguns, portanto, dosmaiores filósofos. Segundo estes a atividade filosófica não se fazpropriamente sem o esforço exaustivo de sua própria crítica, de modo quequalquer filosofia digna do nome ou vai até as últimas consequências oucompra um método que já o tenha feito. Os bons filósofos populares o sãopor seu interesse prático (moral ou político), sem que dispensem oconcurso de uma boa base metodológica. E se Kardec foi um bom filósofopopular, o que acreditamos razoável afirmar, devemos encontrar em suaprática os princípios de algum ou alguns filósofos mais analíticos, para nãodizer sistemáticos (nome que à época não soava bem).

O primeiro indício de que Kardec não é um filósofo sistemático estáem ele lançar mão de múltiplos conceitos e axiomas sem os justificar. Estaatitude pode significar, como dito, tanto o descompromisso com a filosofiaquanto uma adoção prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. Enão há a mais remota dúvida de que os conceitos e axiomas pressupostospor Kardec correspondem à visão eclética do saber filosófico de princípiosdo século XIX. Em primeiro lugar porque todos estes pressupostospertencem à ala ortodoxa da filosofia francesa, requerendo assim poucaou nenhuma exposição sistemática; em segundo lugar porque estasconquistas em especial eram classificadas como conquistas da ilustração etodos os autores da época estavam habituados a assumir os elementosdeste grande edifício eclético e enciclopédico como ponto de partida.Pensadores tão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël eTocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, em fundamentar oconceito de razão, ou analisar a constituição metafísica da liberdade. Aoinvés disto eles os tomam do poço da filosofia iluminista e os aplicam comhabilidade de filósofos práticos aos seus interesses.

Para elencar alguns dos pressupostos essenciais da classe ilustradafrancesa e/ou européia dos anos 1800 a 1840 podemos citarresumidamente:

Page 37: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

1- A fundamentação do pensamento por Descartes, com a respectivaseparação entre o princípio pensante do princípio material, a constituíremos modos de ser.

2- A ideia platônica de que a matemática corresponderia ao modusoperandi da natureza. Noção renascentista que foi solidificada por Galileu,Bruno e Descartes.

3- O atomismo de Diderot, que copiando Demócrito e Epicuro postuloutodas as leis da física como consequências das leis que regem as partículaselementares.

4- A noção de liberdade como direito garantido por Deus, uma ideia cristãque se desenvolveu em séculos de teologia e filosofia, casando-se com asnoções gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdade humanaconforme Locke, Voltaire e Rousseau.

5- A positividade da experiência como fundamento do saber, desenvolvidapor Comte e imediatamente diversificada e adaptada por inúmerospensadores e cientistas.

Poderíamos citar outros pontos, mas isto só aumentaria o volumede uma defesa que consideramos suficientemente estabelecida.

Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança de algumasdestas pressuposições foi duramente abalada, durante o próprio séculoXIX e especialmente no XX. O item mais controverso hoje é o daequivalência entre matemática e natureza, ainda defendida com certaingenuidade por muitos físicos e francamente proibida pela filosofia daciência. O que se pode dizer hoje com sobriedade filosófica é quehaja alguma correspondênciaentre as leis que postulamosmatematicamente e o funcionamento da natureza, mas precisar aexatidão desta correspondência seria considerado uma posturadogmática.

Basta, contudo, o conhecimento do contexto histórico para lembrarque a nova filosofia responsável por questionar as certezas iluministas é

Page 38: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

de matriz alemã, e não estava plenamente acessível aos franceses daprimeira metade do século XIX. Apesar de estar entre os poucos falantesde alemão da sociedade francesa da época, Allan Kardec provavelmentecompartilhava da crença geral de seu povo a respeito dos germanos: a dese tratarem de um povo grosseiro recém chegado às raias da civilidade eque ensaiava suas forças intelectuais numa filosofia prolixa, masessencialmente infrutífera.[1]

O posterior sucesso da filosofia alemã com todo o seu aparato crítico,a restauração da metafísica pelo Idealismo e as reviravoltas teológicasmarcou para sempre a face da filosofia, um fenômeno que a vaidadefrancesa ainda digere com atraso.

A filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida da França para aAlemanha, e desta para o mundo globalizado do pós-guerra. Resta saberem que medida isto depõe contra as filosofias práticas e populares.

Neste particular uma comparação entre Kardec e os outros filósofospopulares franceses é indispensável. A maioria deles, exatamente por serpopular, sofreu minimamente com a transformação da filosofiasistemática, e a popularidade dos pensadores políticos e religiosos, dospsicólogos e moralistas franceses continuou tão irretorquível sob a luz dossistemas alemães como quando em seu terreno natural do Iluminismoautóctone.

Redefinidos os fundamentos dos conceitos de razão e liberdade,sobre bases mais críticas e rigorosas, continuaram a viger na esfera práticaas conclusões e intuições sóbrias que a análise social e psicológicafrancesa ou inglesa haviam efetuado em dois ricos séculos demodernidade.

A filosofia atual se esforça por refinar a fundamentação metafísica eepistemológica da razão, de Deus, da liberdade e da relação entre sujeitoe objeto, etc., mas no campo prático e popular a maioria dos postuladosiluministas continua a viger como moeda válida de interpretação dosfenômenos naturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram os caminhos,mas permaneceram os resultados da filosofia. É bem mais ingênuo veralgo de “errado” em Platão, por incompatibilidade de seus métodos com

Page 39: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

os recentes, do que dispensar os métodos recentes na apreciação detrabalhos filosóficos pregressos; e a história da filosofia continua a serfonte de inspiração principal para os que pretendem reelaborá-la comvistas ao futuro.

Qual é, então, a base filosófica do Espiritismo, se o ecletismoespiritualista francês e o positivismo que o constituíram estão agora emcheque? Precisamente a mesma base que continuou a sustentar as outrasfilosofias práticas e populares após a substituição da Ilustração francesa,seu ecletismo e positivismo, pela filosofia crítica alemã.

Procurai então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau, Staël eTocqueville, e achareis o caminho para sustentar em linguagem atualizadaaqueles mesmos pressupostos que fomentam o método kardequiano. E oscaminhos para esta revisão técnica da filosofia espírita podem ser muitos,como muitas são as correntes mais recentes. O pragmatismo de James, afilosofia liberal e crítica de Popper e mesmo uma forma revisada daanalítica existencial de Heidegger, como foi intentado por Herculano Pires,podem ser boas soluções.

Particularmente acho que a forma mais apropriada seja adaMetafísica da Subjetividade, uma variante eclética que se apropria depraticamente todas as outras correntes contemporâneas numa forma ao

mesmo tempo clássica e crítica da metafísica, permitindo a validadedos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e liberdade.

Do século das luzes (crítica literária)

Page 40: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Despontou no mercado editorial uma obra como há muito não sevia. No geral um romance histórico, que desfila dramas pessoais e guardabelas lições morais, mas por detrás desta bem conhecida configuração daliteratura mediúnica guardam-se algumas jóias filosóficas: teorias sobre ahistória, a sociedade e a liberdade, que nos fazem lembrar os grandesclássicos de Emmanuel. Nada do mundo espiritual, nem vampirismos oulicantropia, magia negra e xamanismos ou qualquer destes atrativos daimaginação que abarrotam as estantes, desonrando conceitos sérios emparódias infantis redigidas em péssimo português.

Do século das luzes, de Rafael de Figueiredo, é uma obra sóbria docomeço ao fim. Simples, no melhor sentido da palavra, junta o virtuosismoliterário à clareza que o torna acessível a todos os leitores. Uma obra comcamadas, que comove pela narrativa, alimenta a curiosidade ou retratauma fase pouco conhecida dos primórdios do espiritismo; ou um pouco detudo isto junto.

Mesmo o seu processo de redação traz peculiaridades dignas denota. O autor revela no prefácio que o panorama geral do livro lhe surgiuem sonhos muito vívidos, e que inúmeros espíritos colaboraram para oseu desenvolvimento, de modo que é relativamente vaga a autoriaespiritual.

Uma outra característica que salta aos olhos é a presença de citaçõesdiretas de outros autores do período, algo incomum para o gêneropsicográfico, e que no caso da obra de Rafael parece cair como uma luva.O desenvolvimento psicológico das personagens batem rigorosamentecom o desenvolvimento da sociedade nas décadas que antecedem aRevolução Francesa, e os estudos feitos por elas a respeito de filósofoscomo Rousseau, Voltaire, Kant e Platão lançam novas e instigantesperspectivas sobre o papel deles na emancipação intelecto-moral dahumanidade, sem o que o Espiritismo e outros avanços do século XIX seriaimpensável.

O livro revela também partes da vida e do caráter de Mesmer, comquem conviveram brevemente os protagonistas; incomoda pela descriçãovívida dos terrores do Santo Ofício em fins do século XVIII e na pátria do

Page 41: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

progresso; arrebata a alma através do desenrolar da vida de Jean, santoanônimo como as figuras humildes e grandiosas de Emmanuel; transporta-nos, enfim, para a vida campestre e monástica da França absolutista,fazendo-nos conhecer bordéis e salões com tanta riqueza de detalhes que,não se tratasse de obra espirita, deveria garantir prêmios e títulos aoautor.

Mas o que mais nos motiva a celebrar este livro é o fato de termosencontrado nele algumas das teses principais que defendemos aqui nestecaderno virtual. De certa forma ele preenche uma das muitas pequenaslacunas que tentamos cobrir com um estudo histórico e filosófico doEspiritismo. As linhas de conexão entre o Iluminismo e o Espiritismo são aíevidentes. Os conflitos graves experimentados por intelectuais e almasnobres vinculadas ao catolicismo, tendo de rever muitas de suas posiçõesfundamentais graças ao progresso realizado por aquele século, retrataperfeitamente a guerra ideológica ainda vivida entre o novo e o velho, aliberdade e a autoridade.

Agradecidos, guardamos a esperança de receber outras obras tãoilustradas da mediunidade florescente de Rafael de Figueiredo

Lamennais e Kardec II

Figurando entre os pais do socialismo, Lamennais abstinha-sedas utopias da economia planejada e do monopólio do Estadosobre os destinos individuais, defendendo a dignidade dos esforçosda livre iniciativa.

É assim que nosso padre combate as utopias do estadopaternal dos socialistas utópicos com a mais forte defesa daliberdade. Seu aviso parece prenunciar a escravidão do “socialismo”soviético, chinês e cubano:

Page 42: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Não vos deixeis enganar por palavras vãs... A liberdade não é umcartaz que se lê na esquina. É um poder vivo que se sente em si eao redor de si... O opressor que com seu nome se encobre é o pioropressor. Une a mentira à tirania, e a profanação à justiça... Soisvós que quem escolheis os que vos governam, os que vos ordenamque façam isto e não aquilo? E se não sois vós, como sois livres?

Podeis exercer o vosso culto sem serdes perturbados, adorar aDeus e servi-lo em público de acordo com vossa consciência? E senão podeis, como sois livres?

Podeis dispor de vossos filhos como bem entenderdes, confiar aquem vos agradar o cuidado de instruí-los e formar seus costumes?E se não podeis, como sois livres?

Os próprios pássaros do céu e os insetos reúnem-se para fazerjuntos o que nenhum deles poderia fazer sozinho. Podeis vos reunirpara juntos tratar dos vossos interesses, para defender vossosdireitos?

Podeis, ao deitar-vos à noite, estar certo de que ninguém virádurante o vosso sono vasculhar os lugares mais secretos da vossacasa, arrancar-vos do seio da vossa família e jogar-vos no fundo deuma masmorra, porque o poder em seu medo desconfiou de vós? Ese não podeis, como sois livres?

A liberdade brilhará sobre vós, quando, à força de coragem eperseverança, vos libertardes de todas estas servidões.

A liberdade brilhará sobre vós... quando, para vos tornardes livres,estiverdes prontos a tudo sacrificar e sofrer.

A liberdade brilhará sobre vós quando, ao pé da cruz na qual Cristomorreu por vós, jurardes morrer uns pelos outros.[1]

Quantas desgraças não poderiam ter sido evitadas no séculoXX, e ainda hoje, se os pseudosábios atentassem a estas palavrasao invés de beber o vinho da revolução? Que decepção para oscristãos verdadeiros que impulsionaram o ideário socialista doséculo XIX, ao descobrirem da pátria dos espíritos que suas ideias

Page 43: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

não vingaram sequer entre os fiéis, pois os agito e o imediatismo deMarx, Che e Lênin falaram mais alto às paixões ávidas de sangueda multidão. Tudo porque no espírito partidário os socialistasimaginaram dever tudo sacrificar por uma justiça que se alienou dasconquistas igualmente sagradas da liberdade.

Ainda contra as utopias de um estado “padrinho”, liderado porintelectuais que “sabem o que é melhor para o povo”, escreveu onosso padre:

O povo é incapaz de atender aos seus interesses; para seu bemdeve ser mantido sempre sob tutela. Não cabe aos que detêm asluzes conduzir os que carecem de luz? Assim fala a multidão dehipócritas que quer conduzir os negócios do povo e engordar com asubstância do povo.

Sois incapazes de administrar a pequena propriedade comum,incapazes de saber o que é bom ou ruim, de conhecer as vossasnecessidades e supri-las; e, por isso, enviam-vos homens bempagos, à vossa custa, que gerirão vossos bens segundo lhesconvier...

Sois incapazes de discernir a educação adequada para vossosfilhos; e por amor a vossos filhos, eles os lançarão em cloacas deimpiedade e maus costumes. (O autor se refere aqui ao sistemapúblico de ensino, que na época pregava o positivismo, omaterialismo e o desprezo das antigas tradições associadas àreligião. Ele temia o monopólio do ensino pelo Estado tanto quantopela Igreja, considerando que uma única instituição jamais deveriadeter a totalidade dos meios de instrução)

Se o que diz essa raça hipócrita e ávida fosse verdade estaríeisbem abaixo dos animais, pois estes sabem tudo o que, segundoeles, não sabeis...

Existem animais estúpidos que são fechados em estábulos ealimentados para o trabalho... Existem outros que vivem noscampos em liberdade, que não é possível domar para a servidão,que não se deixam seduzir por carícias enganadoras, nem vencerpor ameaças ou maus tratos.

Page 44: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Os homens corajosos assemelham-se aos últimos; os covardes sãocomo os primeiros.[2]

Mas nações inteiras se assemelharam àquela classe deanimais que oferece a cabeça para a coleira. E convencidos de queter o sustento garantido pela mão do Estado seria melhor do quearriscar-se na luta pelos interesses próprios, trilharam os passos daprofética revolução dos bichos de Orwell.

Assim termina nosso estudo da doutrina social de Lamennais.Estando de todos os lados e de nenhum, não assusta queLamennais tenha terminado com mais desafetos do que afetos. Ossocialistas o consideraram liberal demais, estes últimos o tinhampor socialista, a Igreja o considerou um herege, e os materialistasum fanático. Não tinha mesmo como vingar uma doutrina políticatão apartidária e tão humana quanto a de Lamennais.

Sua veia profética, a qual nos dedicaremos agora, está namais perfeita sintonia com seus trabalhos políticos, já que sua visãodo apocalipse, do advento do consolador e da divisão do joio e dotrigo eram essencialmente visões de uma reforma da sociedade,com o fim do absolutismo, a vitória da democracia e do estado dedireito.

Enquanto o pensador político reúne em si o liberalismo e osocialismo, a responsabilidade pessoal e a necessidade de reformainstitucional, também o pensador religioso parece empreender adifícil síntese entre a ética e a profecia, o anúncio dos novos tempose o estudo da natureza humana.

A alegoria número um arranca o leitor de sua vida comum, deseu ambiente monótono ou irritadiço, para lançá-lo em mundomágico inteiramente desconhecido.

Que aquele que tem ouvidos ouça, que aquele que tem olhos, abra-os e observe, pois os tempos se aproximam. (...)

Page 45: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O Filho prometeu enviar o Espírito consolador, o Espírito queprocede do Pai e dele, e que é seu amor recíproco: ele virá erenovará a face da terra, e será como uma segunda criação.

Há dezoito séculos, o Verbo espalhou a semente divina, e o EspíritoSanto a fecundou. Os homens viram-na florescer, saborearamalguns de seus frutos, frutos da árvores da vida de novo plantadana pobre morada dos homens.

Digo-vos que entre eles foi grande o júbilo quando viram a luzsurgir, e todos sentiram-se penetrados pelo fogo celeste.

Hoje a terra tornou a ser tenebrosa e fria.

Nossos pais viram o sol declinar. Quando ele desceu por trás dohorizonte, toda a raça humana estremeceu. Depois houve nestanoite algo que não tem nome. Filhos da noite, o poente está negro,mas o oriente começa a aclarar-se.[3]

Esta passagem de tom familiar às profecias espíritas contidasem A Gênese de Karde nos dá a entender o porquê de ter sidochamado Lamennais a falange do Consolador, mal havia esfriadoseu corpo no túmulo. Está aí um bom exemplo da universalidade damensagem espírita, intuída duas décadas antes por Lamennais.

Na alegoria vinte e seis o filósofo já nos desvela uma parte domundo espiritual que tem diante dos olhos. Parece haver doismundos, em cuja fronteira Lamennais transita sem dificuldades:

O que os vossos olhos veem, o que as vossas mãos tocam, nãopassam de sombras, e o som que atinge os vossos ouvidos nãopassa de eco grosseiro da voz íntima e misteriosa que adora, e ora,e geme no seio da criação.

Pois toda a criatura geme, toda criatura está em trabalho de parto eesforça-se por nascer para a vida verdadeira, por passar das trevasa luz, da região das aparências para a das realidades (referênciaóbvia a Platão)

Page 46: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Esse sol tão brilhante, tão belo, não passa de roupagem, deemblema escuro do verdadeiro sol que ilumina e aquece as almas.(sol das almas é um conceito de Fénelon)

Esta terra tão rica, tão verdejante, não passa de pálido sudário donatureza: pois a natureza... Sob esse espesso invólucro do corpo,assemelhai-vos ao viajante que, à noite na tenda, vê ou acredita verfantasmas passando.

O mundo real está velado para vós. Aquele que se retira para ofundo de si ali o entrevê como algo longínquo. Poderes secretos,que nele dormitam, despertam por um momento, erguem uma pontado véu que o tempo retém com a sua mão enrugada, e o olhointerior encanta-se com as maravilhas que contempla.

Estais sentado à beira do oceano dos seres, mas não penetrais emsuas profundezas.[4]

Já não há mais dúvidas. Lamennais está mais do quehabituado aos transportes extáticos de Paulo, Plotino e Teresa. Elenão apenas vislumbra o mundo espiritual, mas viaja por ele comoBöhme e Swedenborg. Ao chegarmos ao fim do livro, e encontrandoa revelação de sua experiência mística, entendemos melhor a fontede suas profecias:

E a pátria me foi mostrada

Fui arrebatado para acima da região das sombras e eu via o tempocarregá-las com velocidade indizível através do vazio. Eu subia econtinuava subindo; e as realidades, invisíveis aos olhos da carne,apareceram para mim, e ouvi sons que não tem eco neste mundode fantasmas.

E o que eu ouvia, o que via, era tão vivo, minha alma captava tudocom tamanho poder que me parecia que tudo o que euanteriormente acreditara ver e ouvir não passava de vago sonhonoturno.

O que direi, pois, aos filhos da noite, e o que eles conseguemcompreender? Vi como um oceano imóvel, imenso, infinito, e nesse

Page 47: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

oceano, três oceanos: um oceano de força, um oceano de luz, umoceano de vida; e estes três oceanos, interpenetrando-se sem seconfundir, formavam um único e mesmo oceano.

E essa unidade era Aquele que é... E esses três eram um, e essestrês eram Deus, e eles abraçavam-se e uniam-se num santuárioimpenetrável da substância uma... E nas profundezas desse oceanoinfinito do ser, nadava, flutuava e dilatava-se a criação: tal comouma ilha que dilatasse incessantemente suas margens em meio aum mar sem limites.

E eu via os seres encadeando-se aos seres e produzindo-se edesenvolvendo-se em sua variedade inumerável, abeberando-se,nutrindo-se de uma seiva que jamais se esgota, da força, da luz eda vida d’Aquele que é.

Livre dos entraves terrestres, eu ia de mundo em mundo, assimcomo aqui embaixo o espírito vai de um pensamento a outropensamento; e sentia o que é a pátria; e embriagava-me de luz, eminha alma, carregada por ondas de harmonia, adormecia sobre asondas celestes, em um êxtase inenarrável.

E depois eu via o Cristo à direita de seu Pai, radiante de glóriaimortal. Santo, Santo, Santo é aquele que destruiu o mal e venceu amorte.

E o Filho inclinou-se sobre o seio do Pai, e o Espírito cobriu-os comsua sombra, e houve entre eles um mistério divino, e os céus emsilêncio estremeceram.

Por conta de Palavras de um homem de fé e outros escritos,Lamennais angariou o ódio declarado de seus mais íntimos amigose de seu irmão. Interpelado inúmeras vezes pela santa Sé, acabouesgotando sua enorme paciência, e finalmente abdicou dainterminável mea culpa,desligando-se de suas funções sacerdotaispara viver exclusivamente como escritor. Neste campo, contudo,era ainda mais detestado e perseguido pelos monarcas, a quem tãoferrenhamente combatia, e em seus quase sessenta anos de idade,

Page 48: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

o que na época e com uma vida agitada era uma avançadíssimaconta, foi premiado com um ano de prisão

Apesar do abatimento da saúde, dirigiu publicações a partir docárcere. Após o término da pena, dedica seus últimos anos a umatradução da Divina Comédia de Dante, a Assembleia Constituintede Paris e a exercícios parlamentares, morrendo em 1854.

Napoleão III intercede para que o enterro seja rápido e secreto,buscando evitar a comoção popular. Desaparecia do mundo um dospouquíssimos homens que conseguiu ungir-se de santidade noséculo das afetações.

É impossível que Kardec não estivesse muito familiarizadocom as ideias de alguém tão popular e controverso em sua própriaépoca. Foi certamente um missionário que abriu caminho pararenovação social e religiosa, com o que continuou a contribuir cincoou seis anos após o falecimento, integrando a falange doconsolador e respondendo por uma parte significativa dascomunicações das obras básicas e da Revista Espírita.

Nossos artigos sobre Pascal, Rousseau e Agostinhodemonstram bem o método que propusemos para este estudocomparativo, de modo que achamos desnecessário elencar ascomunicações de Lamennais como espírito. Terminamos aqui asérie filósofos e Kardec, embora outros pudessem ser inseridos.Nosso objetivo era apenas o de endossar os paralelos entre opensamento destes autores em vida e os que eles expressam emditados espirituais, além de confirmar se suas vidas práticasrespondem aos critérios da autoridade moral que se exige deespíritos mentores.

No caso de Lamennais, como nos outros, parece não haverdúvida quanto a afinidade de ideais e posturas entre o homem e oespírito.

Bibliografia:

Page 49: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. São Paulo:Martins fontes, 1998.

Lamennais e Kardec I

O interesse dos espíritas por Félicité de Lamennais deve sermáxime. Primeiramente por tratar-se de um dos espíritos que maisse comunicou com Kardec; em segundo lugar por ter sido em vida oexemplo do cristão perfeito. Sem o brilho de Pascal ou Fénelon,Lamennais teve a vantagem de não se contaminar por doutrinasestranhas e de época. Teve a sorte de vir após o Iluminismo, e comisso sua obra está livre de todos os laivos de ortodoxia, dogmatismoe superstição, despontando, contudo, um acentuado teor místico eaté profético, ao estilo do Velho Testamento e do Apocalipse.

Personalidade humílima, debatia em público como um político.Engajado em ataques intermitentes contra a Igreja, a sociedade e oEstado, não apresentava a altivez e a dureza de quem se habituouao combate mais aguerrido.

Page 50: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O sereno agitador

Lamennais nos lembra as personalidades inconfundíveis dePaulo, Huss e Gandhi. Transformadores avessos à revolução,inimigos do erro, mas jamais indispostos contra pessoa alguma,combateram o mal sem odiar os maus.

Sua vida jamais foi fácil. A cada instante este homem simplese bondoso enfrentou decepções amaríssimas e fracassos quefariam revoltar o homem comum. A juventude foi melancólica, masnão por ressentimentos pessoais, senão porque as injustiçassofridas pelos outros lhe torturavam. A ideia de que os pobrescareciam de proteção do Estado era-lhe um pensamento obsessivo.Contemporâneo de Marx, foi também socialista, mas de uma muitodistinta estirpe. Sem apologias à revolta armada, e alheio à filosofiamaterialista, não acreditava nas soluções econômicas que aindahoje se propagam com ares utópicos. Entendeu que para além dosonho, a realidade só poderia ser construída pela reforma docaráter individual, e olvidando os matizes políticos e econômicos,inaugurou o socialismo espiritual, que em toda a sua elevação nãofoi ainda compreendido pelos partidários das soluções exteriores.

No rebuliço do caldeirão cultural em que se formou etrabalhou, Lamennais adotou tardiamente o hábito clerical. Tinha aveia religiosa, mas abominava os movimentos de época quecoroavam a infalibilidade papal. Via a hipocrisia e o indisfarçado

Page 51: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

cinismo prático dos padres e bispos em escandalosa contradiçãocom as teorias pregadas por eles mesmos nos sermões. Aindaassim, em meio a dúvidas quanto a carreira a seguir, uma voz falou-lhe à consciência: “Chamo-te para carregar a minha cruz, apenasminhas cruz, não te esqueças.”[1]

Lamennais não se esqueceu, e sua já piedosa índole seinflamou de uma disposição para o trabalho que cresceria mais emais ao longo dos anos. Nas décadas de 1820 e 1830 surgeminúmeros tratados sobre sociedade e filosofia. Recluso, vivendouma vida monástica mais auto imposta do que compatível com suasobrigações, Lamennais produz sem cessar. Mas não é de seu estiloalongar-se em argumentos e perspectivas. Suas obras são concisase curtas, dominadas por imagens fortes e poéticas que ele tecia sobinspiração dos acontecimentos políticos e sociais, mas que quasesempre tinha um pano de fundo bíblico. Fundou mais de um jornaldurante a vida, onde, aí sim, era escritor prolixo. Em 1837 assume oimortal Le Monde, que quase não sobrevive após sua saída.

Dividimos os trabalhos de Lamennais segundo seu duplo viésfilosófico-profético. Na primeira parte falaremos da filosofia política esocial, e na segunda das visões do autor sobre a vinda doconsolador. Mas como a primeira parte é de longe a mais extensa,dividimo-la em tendências socialistas e liberais. Lamennais é umdos pais do socialismo, de modo que o primeiro artigo será sobreeste tema. No segundo artigo fecharemos a filosofia política desteautor falando um pouco sobre sua veia liberal, e trataremospanoramicamente de seus escritos proféticos.

De todas as suas obras uma se destaca como a coroação desuas ideias e energia psíquica. Palavras de um homem de fé,possui um tom só comparável a de Jeremias e do Apocalipse. Obraevidentemente inspirada, é uma coletânea de sonhos e imagensque Lamennais tinha em meditação profunda, e que ele habilmentetransportava para a forma narrativa.

Democrata irredutível, Lamennais escreve seu terceiro sermãoilustrando a ideia de que o gênero humano foi trancafiado numa

Page 52: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

caverna escura, enquanto os reis e nobres gozam dos frutos daterra vasta:

“E fui transportado em espírito para os tempos antigos, e aterra era bela, e rica, e fecunda; e seus habitantes viviam felizes,pois viviam como irmãos.” Este primeiro trecho tem um quê deinocência romântica, bem ao estilo do mito da perda do paraíso edas teorias utópicas de Rousseau sobre o “bom selvagem”. Mas acontinuação é mais simbólica do que filosófica.

E vi a Serpente esgueirar-se entre eles: fixou em muitos seu olharpoderoso, e a alma deles perturbou-se, e eles aproximaram-se, e aSerpente sussurrou-lhes ao ouvido.

E após ouvirem a palavra da Serpente ergueram-se e disseram:Somos reis!

E o Sol empalideceu e a terra adquiriu coloração fúnebre, como ada mortalha que envolve os mortos.

E ouviu-se um murmúrio surdo, um longo lamento, e no fundo docoração todos tremeram. (...)

O Medo foi de cabana em cabana, pois palácios ainda não havia, ea cada um disse coisas secretas que lhes provocavam arrepios.

E os que haviam dito: Somos reis, empunharam suas espadas eacompanharam o Medo de cabana em cabana. (...)

Amedrontados, os homens exclamaram: O assassínio voltou aomundo. E foi só isso, pois o Medo transitara-lhes a alma e impedia omovimento de seus braços.

E deixaram-se acorrentar, a si, a suas mulheres, e a seus filhos. Eaqueles que haviam dito: Somos reis, escavaram uma grandecaverna, e ali encerraram toda a raça humana, assim como seencerram animais num estábulo. (...)

E compreendi que deveria haver um reino de Satanás antes doreino de Deus. E chorei e esperei.

E a visão que tive era verdadeira, pois o reino de Satanás realizou-se, e o reino de Deus se realizará também; e os que disseram:

Page 53: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Somos reis, serão por sua vez encerrados na caverna com aSerpente, e a raça humana dali sairá; e, para ela, será como umnovo nascimento, como a passagem da morte à vida. Que assimseja.[2]

Vários pequenos detalhes nos chamam atenção. O primeiro emais relevante é que este processo ainda parece estar em curso,apesar de finda há algum tempo a era dos déspotas. Com todos osavanços da justiça, do direito, da democracia e da liberdadeindividual, ainda parece pertencer ao século seguinte o banimentoda raça dos déspotas para fora da Terra.

Cenas da mente de Lamennais

Também é belo observar como a indignação não se traduz emrevolta, nas palavras de Lamennais. É comum ver os agitadorespolíticos usarem como pólvora a indignação, incentivando adesordem, a rebelião e até o banho de sangue que é a revolução.Mas o socialismo espiritual de Lamennais, “espera e chora”, poisonde a palavra lúcida não puder transformar, o grito não haverá decolaborar. O quão tocante é o sentimento de Lamennais, masquanto ainda se o confunde com indiferença, com passividade...

Na quarta alegoria Lamennais diagnostica impecavelmente acausa da injustiça na ausência da fraternidade cristã. Esta sim aalavanca social capaz de solapar todo o mal. Assim ele diz: “Amai-vos uns aos outros, e não temereis nem os grandes, nem os

Page 54: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

príncipes, nem os reis.”[3] Que forma estranha de lutar pela justiça!Pensarão muitos. Não é outra, entretanto, que a forma do Cristo, daqual se esquecem muitos os que imaginam associar o evangelho aum socialismo de fundo materialista e puramente econômico.

E nosso padre continua atacando o nacionalismo: “Não digas:Aquele é de um povo, e eu sou de outro povo... Se um membro éatingido, o corpo todo sofre.” E a indiferença: “Não sejais como oscordeiros que, se o logo captura um, sentem medo por ummomento e em seguida tornam a pastar. Pois, pensam, talvez elese contente com a primeira ou com a segunda presa: e porquedeveria me preocupar com aqueles que o lobo devora? Sobrarámais pasto para mim.”

O curto sermão número cinco contém uma comparação entreos criminosos e os condenados, aos quais todos consideramosdignos de prisão e pena, e Jesus Cristo, um preso e condenado, aquem toda a multidão gritava “matem”. Por isso, conclui Lamennais,tende mais cuidado quando todos acusarem um condenado e ojulgarem digno de castigo, pois pode ocorrer de ser ele um mártir eum inocente. E ainda que seja culpado, como a mulher adúltera,não declarou o Cristo que ela saísse sem qualquer punição?

No sermão número sete o profeta moderno cria esta forteparábola:

Um homem viajava pelas montanhas e chegou a um local ondeuma grande rocha rolara sobre o caminho e o tomara por inteiro, efora do caminho não havia outra saída, nem à esquerda, nem àdireita.

Ora, esse homem, ao perceber que não poderia continuar suaviagem por causa do rochedo, tentou movê-lo para abrir passageme cansou-se muito com esse trabalho, e todos os seus esforçosforam vãos.

Percebendo isso sentou-se cheio de tristeza e disse: O que será demim quando a noite cair e me surpreender neste ermo semalimento, sem abrigo, sem qualquer defesa, na hora em que asbestas ferozes saem em busca de suas presas?

Page 55: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

E, enquanto estava absorto em seus pensamentos, surgiu outroviajante, e este, depois de fazer o mesmo que o primeiro fizera eapercebendo-se também impotente para mover o rochedo, sentou-se em silêncio e baixou a cabeça.

E depois deste chegaram muitos outros, e nenhum deles conseguiumover o rochedo, e o temor de todos era grande.

Finalmente um deles disse aos demais: Irmãos, oremos ao nossoPai que está no céu: talvez ele se compadeça de nós nesta aflição.

E suas palavras foram ouvidas, e eles oraram de todo o coraçãopara o Pai que está no céu.

E depois de orarem aquele que dissera: Oremos, disse ainda: Meusirmãos, aquilo que nenhum de nós conseguiu fazer sozinho, quemsabe não conseguiríamos fazer juntos?

E eles se ergueram, e todos juntos empurraram o rochedo, e orochedo cedeu, e eles seguiram seu caminho em paz.

O viajante é o homem, a viagem é a vida, o rochedo são asmisérias que ele encontra a cada passo em seu caminho.

Nenhum homem conseguiria erguer sozinho o rochedo, mas Deuscalculou seu peso de tal modo que ele nunca detenha os queviajam juntos.[4]

Este texto tão singelo capaz de nos comover tãoprofundamente parece ter sido extraído do evangelho. Diante dealegorias como esta caem todas as pompas da vaidade intelectual,que os filósofos sustentam nos seus intrincados jogos de palavras,e que geralmente a nada conduzem. A parte que mais nos toca érelativa à falta de percepção dos viajores, que não encontram asolução óbvia para o problema que a todos aflige. Mas um deleslembra-se de orar e pedir por inspiração. O que a frágil mentehumana não equaciona, pode sempre tomar do repositório infinitoda sabedoria universal. E a resposta dos céus veio aos ouvidosdeste mesmo homem que previamente já inspirado sugeriu aoração. Uma resposta que nada contém de mágico ou sobrenatural,

Page 56: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

consistindo numa simples conclusão lógica. Quase todos osproblemas poderiam ser assim solucionados.

Ainda no campo da teoria social Lamennais escreve o oitavosermão com uma gravidade assustadora:

Deus condenou todos os homens ao trabalho, e todos têm sualabuta, quer do corpo, quer do espírito; e aqueles que dizem: nãohei de trabalhar, são os mais miseráveis.

Pois, assim como os vermes devoram os cadáveres, os vícios osdevoram, e se não são devorados pelos vícios, são devorados pelotédio.

E quando Deus quis que o homem trabalhasse, escondeu umtesouro no trabalho, porque é pai, e amor de pai não morre. (...)

E Deus ainda lhes ditou esse preceito: Ajudai-vos uns aos outros,pois entre vós existem os mais fortes e os mais fracos, os enfermose os saudáveis; e entretanto todos devem viver.

E, se assim fizerdes, todos viverão, porque recompensarei acompaixão que tiverdes por vossos irmãos, e tornarei fecundo ovosso suor.

E o que Deus prometeu sempre se atestou, e jamais se viu carecerde pão quem tivesse ajudado seus irmãos.

Ora, em outros tempos viveu um homem malvado e amaldiçoadopelo céu. E esse homem era forte, e odiava o trabalho, de modoque disse: O que farei? Se não trabalhar, morrerei, e o trabalho meé insuportável?

Então, em seu coração introduziu-se um pensamento infernal. Saiudurante a noite, capturou alguns irmãos seus enquanto estesdormiam, e cobriu-os de correntes.

Pois, dizia, com varas e chicote eu os forçarei a trabalhar para mim,e comerei do fruto do trabalho deles.

E fez o que pensara; e outros, ao verem aquilo, fizeram o mesmo, enão houve mais irmãos, passou a haver senhores e escravos.

Page 57: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Esse foi um dia de luto em toda a terra.

Muito tempo depois veio um homem mais malvado que o primeiro...e disse consigo mesmo:

Talvez fosse possível eu acorrentar alguns e força-los a trabalharpara mim; mas seria preciso alimentá-los, e isso reduziria meuganho. Façamos melhor; que trabalhem por nada! Na verdade,morrerão, mas como o seu número é grande, acumularei riquezasantes que eles diminuam muito, e sempre restará um númerosuficiente deles.

Tendo-se pronunciado daquela maneira, dirigiu-se em particular aalguns e disse: Trabalhareis durante seis horas e ganhareis umamoeda pelo vosso trabalho. Trabalharei durante doze horas, eganhareis duas moedas, e vivereis bem melhor...

E eles acreditaram.

Ora, disso decorre que, tendo a quantidade de trabalho dobradosem que a necessidade de trabalho fosse maior, a metade dos queviviam outrora de seu labor não encontrou mais ninguém paraempregá-la.

Então o homem malvado, em que haviam acreditado, disse-lhes:Darei trabalho a todos vós, contando que trabalheis pelo mesmotempo e eu só vos pague a metade do que vos pagava; pois desejoprestar-vos esse serviço...

E como tinham fome, eles, suas mulheres e filhos aceitaram aproposta do homem malvado e abençoaram-no, pois – diziam – nosdá a vida.

E eles morriam por carência do necessário, e outros corriam asubstituí-los, pois a indigência se tornara tão profunda naquela terraque famílias inteiras se vendiam por um pedaço de pão.

E o homem malvado que mentira a seus irmãos acumulou maisriquezas que o homem malvado que os acorrentara.

O nome deste é TIRANO; o outro só tem nome no inferno.[5]

Page 58: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Este texto ressalta a situação desumana dos trabalhadores defábrica e camponeses do início da era industrial, um problema queincomodava sobremaneira a Marx e outros ideólogos do socialismoao longo de todo o século XIX. É difícil imaginar como uma situaçãotão injusta se mantinha, em gritante distonia não apenas com nossaépoca de direitos trabalhistas, salário mínimo e outras conquistasdo século XX, mas também em comparação com o estado dosservos medievais e citadinos da renascença, que era, apesar detudo, bastante melhor.

Esta situação atípica na história mundial, que muitos outrostambém consideravam pior que a escravidão, despertou críticas detodos os grupos, liberais ou socialistas, padres ou filósofos,burgueses ou mesmo nobres, encontrando finalmente na equaçãomoral-econômica de Tocqueville a fórmula da perfeita justiça social.

O que nos fere a sensibilidade contemporânea não é o fato deter havido, num momento de turbulência política e absolutismo, umtal estado de coisas, mas que ele tão imediatamente nos evoqueimagens do trabalhador fabril na China ou na Índia, do sertanejobrasileiro ou do pescador caribenho, do pastor africano e docarvoeiro russo, indivíduos que em pleno século XXI permanecemesmagados pela mesma indigência, pela mesma desumanidade porparte de estados, empresas e, principalmente, sociedades para osquais são invisíveis.

O aspecto transtornador do socialismo de hoje é o ser elepraticado por funcionários públicos, cujos vencimentos sãosuperiores a quatro, cinco, inúmeros salários mínimos, sem o menorcompadecimento para os que têm de se contentar com muitomenos. Que as greves de hoje não sejam pelos trabalhadoresescravos na Amazônia, pelas crianças das carvoarias e mandiocaisou pelos boias-frias, mas para o aumento dos salários de quem jáganha o bastante para ter um carro e viajar nas férias.

Todos queremos melhores condições, mas a comparação nãopode ser feita apenas com os que estão acima, ou o resultado seráa escandalosa cegueira das nossas atuais lutas sociais, poraumentos de benefícios para nossos próprios grupos, a exemplo

Page 59: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

dos políticos e juízes que nos despertam repulsa votando salárioscada vez maiores para si.

Quem quer que queira ser um socialista da lavra de Lamennaisdeveria dedicar ao pobre todas as suas forças e economias, para sódepois exigir dos outros a mesma postura. Mas o que se vê, bem aocontrário, é um discurso hipócrita e vergonhoso que atribuiresponsabilidades ao Estado, aos ricos, a quem quer que seja, quenão nós mesmos. E enquanto cada classe luta por seus interesses,seguindo a recomendação de Marx, ninguém trabalha em favor dopróximo, olvidando as sábias recomendações de Lamennais.

E se Lamennai nos dá o tom de um socialismo digno eenobrecido, faz o mesmo com o liberalismo, unindo-os na teoriasocial superior do cristianismo: liberdade e justiça;responsabilidade e solidariedade. Ensinando ao dualismo partidárioque só há uma humanidade.

(Continua em Lamennais e Kardec II)

Bibliografia:

LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. São Paulo:Martins fontes, 1998.

[1] Isto nos narra André Derval, responsável pela introdução e pelas notas da modernaedição de Palavras de um homem de fé, o livro mais célebre de Lamennais.

[2] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 9.

[3] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 11.

[4] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 18.

[5] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 21

Page 60: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Agostinho e Kardec III

Em A Cidade de Deus, Agostinho declara sem rodeios ser afilosofia platônica a preferencial entre os cristãos:

Se Platão disse ser sábio quem imita, conhece e ama a Deus, de cuja participaçãodepende ser feliz, que necessidade há de discutir as outras doutrinas? Nenhumase aproxima da nossa mais do que a doutrina de Platão.[1]

Compreenderam os platônicos, a quem vemos, não imerecidamente, antepostosaos demais em glória e fama, que nenhum corpo é Deus. Por isso, transcenderamtodos os corpos em busca de Deus. Compreenderam, além disso, que o mutávelnão é supremo Deus. Entenderam também que toda espécie, de qualquer modomutável, graças à qual todo ser é o que é, seja qual for o modo e seja qual for anatureza, não pode proceder senão de Quem verdadeiramente é porque éincomutavelmente.

(...)

Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam que Ele fez todas as coisase não pôde ser feito por ninguém.[2]

Mas após esta defesa intelectual do platonismo, Agostinhoataca duramente a doutrina da comunicação com os espíritos. Entreos platônicos, Apoleio destacou-se por desenvolver umacosmologia complexa, objetivando descrever todos os pormenoresda vida e atividades dos “demônios”. Estes seres desencarnados,por terem vivido na terra e estando ainda materializados por suaspaixões, seriam intermediários entre os deuses, seres já perfeitospela prática da filosofia, e os homens viventes na Terra. Apuleio seexcede nos contornos fantasiosos de suas descrições dos espíritos,mas apresenta alguns pontos lógicos no que toca a motivaçãodesta estrutura cosmológica em camadas hierárquicas.

Agostinho levanta-se indignado contra esta que pensa ser amais anticristã de todas as crenças, defendendo que os espíritos,por serem imperfeitos, seriam intermediários perigosos entre Deuse os homens. Desta forma, o que Apuleio e inúmeros platônicos

Page 61: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

defendem como argumento cosmológico, da ordem ascensional deperfeição dos espíritos, Agostinho rebate um tanto quantoimpropriamente através deste argumento moral. Estaria a partir deentão “corrigido” o platonismo, para servir aos propósitos doCristianismo em sua forma católica.

Por fim Agostinho investe com todas as forças contra aopinião de Porfírio, segundo a qual se deveria invocar espíritos dosmortos para aconselhamento, estudo e intercessão de favores.Porfírio havia desenvolvido esta doutrina junto aos magoscaldeus[3] adeptos da teurgia egípcia, país este em que vivia, e foiinclusive capaz de separar os espíritos em categorias, conformesuas atividades e grau de adiantamento moral. Conta-se até quePorfírio teria presidido cessões de materialização.

Plutarco afirmava, baseando-se principalmente nos relatossobre Sócrates, que os espíritos não possuem língua, mas secomunicam exclusivamente pelo pensamento. Porfírio e Proclodiscordariam veementemente desta afirmação, garantindo que tantoanjos quanto demônios utilizavam-se da língua local. Proclo, queexperimentou diretamente diversos oráculos e videntes, diz que osespíritos se comunicam em sua língua pátria, mas podem tambémse comunicar na língua do médium. Em raros casos observara axenoglossia, e pareceu muito impressionado que uma médiumfosse capaz de falar em uma língua desconhecida (o armênio).[4]

Estas ideias eram, portanto, atribuídas a todos os platônicos,embora nem todos realmente defendessem a comunicabilidade comespíritos. Por isso Agostinho se insurgiu contra o platonismo emgeral, a propósito de sua correção desta doutrina.

A obra continua com altos e baixos. Argumentos brilhantes semisturam a ataques malfadados à filosofia e a outras religiões daépoca, quase sempre com base no argumento de autoridade dasescrituras. Em nenhum ponto é feita uma defesa teórica daautoridade da Bíblia sobre a razão ou sobre outras espécies detradições religiosas, mas puramente se sustenta serem asescrituras “claramente mais autorizadas”. Em vista de uma defesa

Page 62: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

dogmática das absurdidades do Velho Testamento, tem nossosanto de rejeitar a razão em favor dos relatos do Gênese.

Entre um assunto e outro retornam os ataques àreencarnação, defendida então ainda por inúmeros cristãos, apesarda condenação pelo concílio de Nicéia, realizado décadas antes daredação de “A Cidade de Deus.”

Outro tema recorrente é a explicação filosófico-teológica dabondade de Deus e da exclusividade de Sua ação na criação domundo, elemento este em que foi realmente virtuoso. Tanto o vigorde sua lógica quanto a fidelidade a todos os valores e princípios dafé cristã se coadunaram, novamente, na defesa da ineficiência domal. O mal seria dotado de natureza defectiva, ao passo quesomente o bem seria efetivo. Desta forma, somente o bem operaria,enquanto o mal se caracterizaria pela falência ou corrupção deempreendimentos e coisas, incapaz de criar e engendrar obras.Completando as ideias expostas nas Confissões, estas análisesajudariam em muito o estabelecimento de uma perspectiva otimistapara a moral e a cosmologia cristãs, apesar da também presentedefesa da doutrina do pecado, ao qual se deu posteriormentedesmedida importância.

A filosofia de Agostinho diagnostica e decreta o fim da eraclássica e o início da Idade Média. Para o homem moderno isso soamal, mas para a época foi uma alternativa benéfica para o caosabsoluto. A era da razão havia dissolvido a sociedade. A que levoutoda a filosofia e ciências greco-romanas? Que ordem social haviase estabelecido com o auxílio do intelecto? Quais eram as glóriasdo Império? A escravidão grassava, os bárbaros choviam de todasas partes sobre as terras já não tão produtivas, as elites perdiam amedida da baixeza e da impiedade; ávidos por novas paixões, todasas classes pediam mais excessos nos circos da morte, nos festinsde glutonaria e embriaguez, nas orgias e nos múltiplosrelacionamentos amorosos, desprovidos de qualquer humanidade econsideração pela própria saúde ou integridade.

A ética e a teoria haviam feito sim inúmeros progressos.Contudo, as turbas ensandeciam enquanto os filósofos cultivavam o

Page 63: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

espírito em jardins afastados dos centos populosos. Os santos esábios gregos vagavam como mendigos maltrapilhos pelas ruasopulentas. Vergados pela descrença em qualquer possibilidade derenovação da natureza humana, mantinham-se cada vez maiscéticos e cínicos, adjetivos estes que inclusive nomearam duas dasescolas mais famosas da época.

Os pensadores cristãos identificaram neste estado de coisasuma falência da inteligência humana diante dos problemaspertinentes a vontade e ao sentimento. Agostinho foi um dos quemelhor perceberam o problema, e que melhores soluções propôs.Num mundo onde a razão não podia mais oferecer suascontribuições luminosas, somente a reforma dura, mesmo queartificial e imposta, do caráter poderia oferecer algum paliativo àdesordem. As disciplinas monásticas se desenvolveram a partirdeste precedente. Uma aversão natural ao período clássico surgiu,não como desprezo pela virtude dos filósofos, mas comoincredulidade em sua capacidade de promover o bem geral.

A Idade Média não foi um momento de queda. Nasceu deuma saciedade, um esgotamento de um meio de vida que de modoalgum podia se sustentar. Assim como ela mesma foi superadapelos seus excessos e erros, a era da fé tomou as rédeas de umacondução errada, ansiosa por fazer melhor.

A pergunta 495 de O Livro dos Espíritos contém uma respostaà quatro mãos; as de São Luís e as de Santo Agostinho. Espíritosafins, é possível que estejam de pleno acordo neste tocante etenham redigido juntos o segmento, mas em nosso estudo particularsobre Agostinho ressalta a sua afinidade sui generis com o tema eestilo de investigação. Só um mestre do solilóquio poderia imbuiruma explicação de cores tão vivas, de um tão marcanteconhecimento de causa. Acresce que a famosa “voz” do episódio daconversão e inúmeras das meditações reveladasem Confissões são por demais semelhantes ao que ele aqui expõe.A doutrina dos anjos guardiães também conta entre um dosprincípios defendidos por Agostinho em suas obras:

Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vósseres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos

Page 64: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicadosamigos do que todos os que mais intimamente se vos ligam na Terra? Eles seacham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aípermanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa missão.Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos cárceres, nem noshospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na solidão estais separadosdestes amigos a quem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente,ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderados conselhos...

Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo constrangido a vosobservar: “Não te aconselhei isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei oabismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz daverdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai osvossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vos esta terna amizade que reinaentre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles tem oolhar de Deus e não podeis enganá-los. (LE. Cap. IX, pergunta 495)

Dentre as numerosas e extensas comunicações de Agostinhodirigidas a Kardec o quão revelador já não nos é este curtofragmento. A beleza aludida pelos espíritos é a da presença dosseres amáveis e amados junto de cada homem, digno ou indigno,nobre ou corrupto. Doutrina esta tão cara aos orientais em seu cultoaos antepassados, e que aqui nos é apresentada com uma sutilanalogia entre olhar de Deus e o dos espíritos protetores. O juízo deDeus, elemento poderoso da moral dos povos, é tão mais sentidoquanto mais forte é a crença de que Ele tudo vê. Mas aqui não seestá apenas a afirmar a onipresença de Deus, que nossa menteainda não compreende e que muitas vezes acha vaga, comotambém a presença e ciência de parentes e amigos sobre nossosmais pequenos atos e pensamentos.

Sabedor deste processo, o homem pode divisar com clareza aseriedade de sua vida moral, devassada por seres que o conheceme que lhe são caros. A lembrança do pai, dos avós, da mãe, dosirmãos ou filhos, dos melhores amigos, envergonha o homem noíntimo quando nem a visão de Deus o havia feito retroceder de seuscrimes. É que o Altíssimo é visto como distante, sua perfeição moralinalcançável, enquanto a lembrança de alguém honrado enche devergonha aquele que se precipita. A Deus o homem exclama comhipocrisia: “Tu me fizeste assim; não reclames!”, mas ante a

Page 65: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

presença ou lembrança de um amigo impoluto a farsa édesbancada. Os filhos pródigos do mundo provam a força doesforço pessoal e a possibilidade da regeneração; os bons dãotestemunho da divindade que há em cada homem, e nós já nãopodemos encará-los sem corar, sabedores de que o homem,podendo ser perfeito, permanece com gosto em seus vícios.

Além disto, o apelo que a presença de entidades simpáticaspossui sobre o coração do homem é uma ferramenta poderosa queDeus usa em favor de ambos. O espírito sente a importância de suaindividualidade quando é pela sua intercessão que um pecadorirredutível dá brechas ao arrependimento. Esta mesma magia daafinidade pessoal dá aos protegidos uma especial sensibilidadepara captar as ideais e sensações que lhe tentam transmitir seusnumes tutelares.

No célebre ditado sobre o autoconhecimento, Agostinhoreafirma seu poder introspectivo em sentenças da mais simples eprofunda psicologia:

Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minhaconsciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se nãofaltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assimque cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma... Dirigi,pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com queobjetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisaque, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação quenãoousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-meneste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar no novo mundo dosEspíritos, onde nada pode ser ocultado?” (LE. Cap. XII, pergunta 919)

Aqui novamente a grandiosa ideia do olhar da justiça, cujafalta insubstituível tanto limita os princípios da ética materialista.Grifamos as palavras não ousaríeis confessar, imaginando que elasnão apenas resumem o dever do homem para com Deus, mas paracom sua própria razão. A famosa Crítica da Razão Prática, pelaqual Immanuel Kant imortalizou-se no apogeu da ética universal,não contem outro ensinamento.

Page 66: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A moral é, até certo ponto, relativa. Ela demanda, assim, umimperativo da razão, um princípio segundo o qual nossas noçõessubjetivas de bom e mau possam se converter num dever objetivopara com os outros. Para arrancar do ensimesmamento as noçõesde bem e de justiça, forçoso é dar-lhe caráter público. O que nassombras do anonimato nossa alma esconde, não pode escamotearsob a luz da publicidade. Eis, pois, o segredo da filosofiamoral: imaginar que todas as ações pudessem ser públicas. Se istofazemos, prontamente tememos revelar o que até poucojulgávamos inocente. Nosso comportamento se esconde na moralrelativa de não causar danos imediatos, mas se por omissões ementiras sustentamos esta situação, é falsamente que nosinocentamos, pois a retidão exige de nós a pureza de consciênciaindependente do tempo.

Uma outra máxima completa e emula esta: Agir de forma talque minha ação, ao ser imitada pelos demais e/ou aplicada poroutros a mim mesmo, receba o meu total consentimento. Enquantoa primeira elimina o autoengano, esta combate o egoísmo. Quemnão se revoltaria com o adultério cometido contra si mesmo? Quemanui de boa vontade que lhe mintam, mesmo nas pequenas coisas?Ainda que repudiemos estas ações, encontramos boas motivaçõespara fazê-las, o que caracteriza nosso profundo egoísmo.

Como se a pouco tivesse folheado a Crítica da Razão Prática,Agostinho continua:

Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão doamor-próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento seconsidera apenas previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto émuito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quandoestiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como aqualificaríeis se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não napodeis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duasmedidas na aplicação de sua justiça. (LE. Cap. XII, pergunta 919)

Com isto se explana a filosofia moral, sem que cheguemosperto de mandamentos positivos como o defazer aos outros o quegostaríamos que nos fizessem. Esta máxima do Cristo exige a

Page 67: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

caridade, enquanto que a da ética apenas a cordura e a honradez.Mas que dificuldade em cumprir apenas esta ética negativa, querestringe o nosso mal sem nos exigir o sacrifício e a renúncia. E quemundo se formaria ainda que somente esta primeira parte fosserealizada em nossas consciências.

Agostinho é, para parodiar a ele mesmo, toda uma cidadeespiritual digna de mapeamento cuidadoso. Somente o espírito deAgostinho, em seus ditados a Kardec, mereceria longos e gravesestudos. Mas finalizamos esta análise acreditando ter levantadoalgo da personalidade histórica de um dos grandes autores daCodificação. A comparação entre sua obra em vida, salvo todas aslimitações de época e comprometimentos com a dogmática daIgreja, e os ditados feitos a Kardec parecem revelar, mesmo quepara o crítico mais descrente, uma profunda afinidade de ideias esentimentos.

[1] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 306.

[2] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 308.

[3] Atual Iraque.[4] Helmut ZANDER. Geschichte der Seelenwanderung in Europa.

Agostinho e Kardec II

Continuando a sequência do primeiro texto que visavaintroduzir e contextualizar o papel de Agostinho, passamos a umsobrevoo por sua obra prima.

Assim se inicia este livro magistral, com nada menos do queum dos mais belos parágrafos que a cultura humana produziu:

Page 68: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado. É grande o vosso podere incomensurável a vossa sabedoria. O homem, fragmentozinho da criação, querlouvar-Vos; - O homem, que publica a sua mortalidade, arrastando o testemunhodo seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem,particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nosvossos louvores, porque nos criaste para Vós e o nosso coração repousa inquieto,enquanto não repousa em Vós. [1]

Paulo de Tarso, o grande ídolo de Agostinho

No terceiro capítulo do livro sétimo, Agostinho inicia umaescalada lírica que reveste o profundo processo psicológico de suaconversão. Este fragmento denota o assombro diante dasdificuldades de retorno à origem:

Por que assim, ó Senhor, Deus meu, quando Vós próprio sois a vossa alegriaeterna, e tudo o que está à vossa volta se alegra em Vós? Por que é que estaparte das vossas obras oscila em alternativas de queda e de progresso, deofensas e de reconciliações? Será esta a sua condição? Só lhe concedestes isso,quando da altura dos céus até os abismos da terra, do princípio ao fim dosséculos, do anjo ao mais pequenino verme, do primeiro ao último movimentodispúnheis todas as variedades de bens e todas as vossas obras justas no seulugar, e as determináveis no seu respectivo tempo? Ai de mim! Quão alto sois nasalturas e quão profundo nos profundos abismos! Nunca vos apartais de nós e,contudo, com que dificuldade nos voltamos para Vós.[2]

E a dificuldade estava exatamente no seguinte:

Page 69: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O inimigo dominava o meu querer, e dele me forjava uma cadeia com que meapertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria,contrai-se o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade.Era assim que, por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhe chameicadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, quecomeçava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de querergozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achavaapta a superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duasvontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual,batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma.[3]

Como contrariar a verdade desta revelação? Acaso alguém jádevassou mais profundamente o mistério da vontade? Quem podenegar que o “inocente” hábito, ao qual nos permitimos por fraquezae com consciência, seja a causa de todas as necessidades quedepois nos escravizam? Os vícios, as compulsões e obsessões, aspatologias mais absurdas começam com os maus hábitos, frágeis ediscretos em sua raiz, mas por isso mesmo é tentador justifica-los,defender sua inocuidade, “permitir-se”, como na linguagemadulterada de nossa geração.

Não há hoje palavra mais celebrada que o permitir-se. Como setodo o comedimento, toda a privação, remontasse a uma repressãotirânica, um exagero do pudor. A psicologia desviada prega, acultura exalta, as personalidades, especialmente as que hoje sedenominam “artistas”, idolatram a nova deusa. Permissividade é oseu nome; honestidade e autenticidade são seus falsos distintivosde autoridade, ficar “de bem consigo mesmo” é a sua mentirosapromessa.

Mas o clímax que hoje se vivencia não é mais que um retornodas mil Babilônias da história. Roma com sua licenciosidadeescandalosa, com seus cidadãos pervertidos a se consideraremlivres das amarras do passado virtuoso. A Paris e a Londres dasfestas e das orgias. Ricos e pobres cultuando a vadiagem e adepravação como conquistas da civilização e do progresso. Nossaépoca teve muitos precedentes. Só a generalização einternacionalização da imoralidade é uma novidade. É que a almatem em sua natureza este conflito, com potencial para elevar-se ou

Page 70: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

decair, e os meios se multiplicaram, tanto para a queda como paraa ascensão; preferindo as criaturas lamentavelmente a opção quelhes é mais próxima da realidade mental e dos hábitos arraigados.

Esta dicotomia da alma tem, entretanto, uma polaridade maisforte do que a outra, como se uma das tendências manifestasse odeterminismo universal do progresso, enquanto a outra constituimeramente um elemento de resistência. Bem e mal, de formaneoplatônica, são uma polaridade assimétrica. Todo o criado élimitado, fraco, mas a sua parte divina, aquilo que faz dela aimagem do criador, é sempre mais forte. Não obstante, este conflitonão é simples, porque apesar de constituir a parte mais fraca, aescuridão é a predominante na natureza humana, saída do lodo e aele habituada. A ascensão para a luz é estranha ao homem, mesmoque a própria treva de onde ele tenta, ou não, se desgarrar sejaproduzida pela luz.

Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docemente oprimido pelo pesodo século. Os pensamentos com que em Vós meditava pareciam-se com osesforços daqueles que desejavam despertar, mas que, vencidos pela profundezada sonolência, de novo mergulham no sono. Não há ninguém que queira dormirsempre. A sã razão de todos concorda que é preferível estar acordado. E contudo,quando o torpor torna os membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a horade sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, a prolonga-lo até aoaborrecimento, mesmo depois de haver chegado o tempo de levantar.

(...)

Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu, que já estavaconvencido, não tinha absolutamente nada que Vos responder senão palavraspreguiçosas e sonolentas: “Um instante, um instantinho, esperai um momento”.Mas este “instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-seprolongando.[4]

Este período de lutas desemboca na conversão, onde toda asensibilidade de Agostinho se transubstancia da guerra ao louvorbem-aventurado. O crente deseja cantar em altos brados a suaalegria, a sua libertação, e, naturalmente, só o pode fazer atravésdos Salmos. Assim enche-se o nono capítulo com os cânticos deadoração dos judeus, sua herança maior para a humanidade. Comdestaque para o salmo 4.

Page 71: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

“Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Para que amais avaidade e buscais a mentira?”[5]

“Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor.”[6]

“Oh! Estarei em paz! Oh! Viverei em paz no seu mesmo ser!”[7]

“Deus do meu coração, minha glória e minha vida”[8]

“aproveis esta oblação voluntária da minha boca.”[9]

Tão bem encadeada é a narrativa e tão orgânicos se tornamos salmos dentro deste edifício que se diria ser o mesmo autor odas confissões e o dos mais belos cânticos. Chega-se, afinal, aolivro X, e a religião se encontra com a filosofia, mas não mais emchoque. Divinamente aparentadas, ambas as disciplinas sefortalecem. Mas uma forte soberania da fé sobre a razão é a chavepara estas bodas.

O capítulo contém, pouco após o seu início, umesclarecimento sobre a necessidade da confissão. Nela ressalta-seuma compreensão lúcida da sabedoria paulina.

Vós, Senhor, podeis julgar-me, porque ninguém “conhece o que se passa numhomem, senão o seu espírito, que nele reside.”[10] Há, porém, coisas no homemque nem sequer o espírito que nele habita conhece. Mas Vós, Senhor, que ocriastes, sabeis todas as suas coisas. Eu, ainda que diante de Vós me despreze eme tenha na conta de terra e cinza, sei de Vós algumas coisas que não conheçode mim. “Nós agora vemos como por um espelho, em enigma, e não ainda face aface.”[11] Por isso, enquanto peregrino longe de Vós, estou mais presente a mimdo que a Vós. Sei que em nada podeis ser prejudicado, mas ignoro a quetentações posso ou não posso resistir. Todavia, tenho esperança, porque sois fiele não permitis que sejamos tentados acima das próprias forças. Com a tentação,dai-nos também os meios para a podermos suportar.[12]

Confessarei, pois, o que sei de mim, e confessarei também o que de mim ignoro,pois o que sei de mim, só o sei porque Vós me iluminais; e o que ignoro, ignora-lo-ei somente enquanto as minhas trevas se não transformarem em meio-dia, navossa presença.[13]

E chegando a um dos pontos mais altos de toda estaestonteante obra, vislumbramos a definição agostiniana de Deus. O

Page 72: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

filósofo-santo-poeta pergunta a tudo, céu e mar, animais e plantas,estrelas e elementos, e tudo é impotente para dar-lhe a imagem deDeus. Mas toda a criação exclama: “Foi Ele quem noscriou.”[14] Como nas ancestrais Upanixades, a busca ansiosa deAgostinho não é frustrada, apesar de ele não chegar ao Arquitetodo qual tudo se origina. Pois, para o assombro dos céticos, anatureza responde em festa ao interrogatório, e o crente reconhecesem esforço não ser o sol o seu Deus, mas a luz do sol; não ovento, mas a sua carícia; não as aves, mas o seu canto.

“...Amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo omeu Deus, luz, voz, perfume, alimento e abraço do homem interior, onde brilhapara a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma vozque o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o tempo não esparge,onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente umcontato que a saciedade não desfaz. Eis o que eu amo, quando amo o meuDeus.”[15]

Insaciado, Agostinho prossegue investigando as criaturas douniverso, e tudo lhe é ao mesmo tempo insuficiente e promissor.Obras e virtudes anunciam o Criador, mas ele não se apresentadiretamente. E num dos momentos de maior elevação do gênerohumano, Agostinho equaciona toda a teoria estética numa sentençaque um dia ainda deverá balizar a arte do futuro: “A minha perguntaconsistia em contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza.”[16]

Chagamos a parte propriamente filosófica do livro, onde asdificuldades metafísicas, epistemológicas e psicológicas exigem umtratamento mais vagaroso e técnico. Este trecho, respectivo aopoder da memória, torna-se a pedra angular da compreensãoagostiniana da alma, de suas faculdades, e em especial daliberdade.

A memória armazenaria imagens e conhecimento. As imagenssendo aquelas impressões sensíveis dos objetos, como cópiasdeles, meramente destinadas a informar, e acessadas pela mentecom a função de referenciar o que são as coisas e situações. Oconhecimento não se refere aos objetos, e, portanto, não se resumea cópia do que foi percebido. Ele encerra a classe de realidades

Page 73: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mentais independentes dos objetos exteriores, como a matemática.Enquanto a imagem é uma reprodução mental de uma coisa, oconhecimento é uma lembrança de uma lei, um padrão ou umprincípio, não podendo ser afetado pela confusão.

Agostinho se revela um mestre da psicanálise. Ele reconheceque há memórias tão obscuras, “escondidas em cavidadessecretíssimas da mente”, que só podem de lá ser arrancadas porforça de um agente externo, como algo que se refira diretamenteàquelas lembranças perdidas. Percebeu que a memória lembra-sede lembrar, como quando fazemos notas mentais para nãoesquecer algo, e mesmo nos recordamos de nos ter programadopara recordar algo. E o mais impressionante, a memória podetrazer, contra todo o juízo dos materialistas, uma sensação contráriaa que experimentamos agora. Pode o homem em meio ao prazeravivar a memória de suas tristezas e dores, ou em meio ao óciosentir em si as agruras do trabalho, ou ainda, padecendo deenfermidade, ter a sensação de gozar de perfeita saúde, tudo istocontradizendo as sensações mais fortes que o corpo lhe comunicanaquele instante. É por esta propriedade que o homem pode viverespiritualmente, não apenas no plano abstrato, mas até no planosensível e emocional, dando menor importância ao que experimentapresentemente o corpo.

Este mesmo poder de representar e evocar elementosausentes da percepção exerce o mais importante papel na vidahumana, a lembrança da felicidade. Pergunte-se a qualquer homemse é plenamente feliz, e excetuando-se pelos desacostumados amaiores reflexões todos responderão que não, ainda. Falta-lhesalgo, que os vulgares imaginam ser mais saúde, dinheiro ou apresença de pessoas pelas quais são enamorados, e os maissensatos saberão dizer: “não sei o que me falta, mas sei que háalgo do qual depende minha felicidade”.

O homem sente a falta de uma felicidade que jamaisexperimentou. Como pode ser assim? Agostinho imagina terencontrado a resposta na memória do esquecimento. Às vezes,quando nos esquecemos de algo, temos a sensação desteesquecimento. Ele não é completo, e embora não nos lembremos

Page 74: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

do quê, sabemos haver esquecido de algo. Quem nãoexperimentou esta sensação de achar ter algo ausente de suamemória, algo importante, mas sem poder inferir o menor detalhesobre este?

O homem tem um tal esquecimento radical na sua alma. Algoperdido que precisa reencontrar, e sem o que não está completo.Mas, a tragédia, ele sequer sabe o que perdeu. Só pode confiar noinstinto que lhe diz: “Encontrai este algo e sereis feliz”. Sabemostodos que a felicidade existe, e disto temos uma certeza profunda,mas a ninguém ocorre onde possa estar.[17]

Ora, a felicidade só pode estar no fundo da alma, naquilo queela tem de mais próprio, no seu ser. E não é outro senão Deus estefundo.

Poderemos então concluir que nem todos querem ser felizes porque há alguns quenão querem alegrar-se em Vós, que sois a única vida feliz? Não; todos quere umavida feliz. Mas como a carne combate contra o espírito e o espírito contra a carne,muitos não fazem o que querem, mas entregam-se àquilo quepodem fazer. Comisso se contentam, porque aquilo que não podem realizar, não o querem com avontade quanta é necessária para o poderem fazer.[18] (grifo nosso)

É por isso que muitos reconhecem, com razão, estar toda amoderna psicologia contida nas investigações de Agostinho. E nasequencia ele consegue aprofundar-se ainda mais:

Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou na falsidade.Todos são categóricos em afirmar que a preferem na verdade, como em dizer quedesejam ser felizes. A vida feliz é a alegria que provém da verdade... Encontreimuitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesseser enganado...

Por que a verdade gera ódio? Porque é que os homens têm como inimigo aqueleque prega a verdade, se amam a vida feliz, que não é mais que a alegria vinda daverdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outracoisa querem que o que amam seja a verdade. Como não querem ser enganados,não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, porcausa daquilo que amam em vez da verdade... Não querendo ser enganados edesejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando ela osdescobre.[19]

Page 75: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Não é este o processo que a psicologia atual denominaracionalização? E como se poderia explica-lo melhor do que nestestermos: “os homens, por tanto amarem a verdade, enganam-sequando ela é contra eles, porque o que fazem ou querem, não oquerem associar ao erro, e sim a verdade”? Assim cada homempensa estar sempre com a razão, no que todos a contrariam. Esta afonte de todas as disputas, no lar ou no templo, na vida pública ouna intimidade da própria consciência.

Pobre do homem que em seu orgulho foge da verdade paranão se permitir ver a si mesmo como um tolo. Quanto mais o faz,mais mergulha na própria tolice, e menores são suas chances deescapar a este destino vicioso, pois quão mais funda é a suacondição, quanto mais radical é o erro que ele sustenta, maisterrível será para o seu orgulho ter de confessá-los.

É também por isso que os filósofos, especialmente osfranceses, do século das luzes se associavam, em teologia, àcorrente dos agostinianos. A luz da razão, precursora da verdade,não pode luzir na presença das máscaras que o orgulho forja paraocultar as enfermidades da alma, fazendo-as parecer belas enobres.

Mas há esperança:

Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor etrabalho. A minha vida será então verdadeiramente viva, porque estará toda cheiade Vós. Libertais do seu peso aqueles que encheis. Porque não estou cheio deVós, sou ainda peso para mim.[20]

Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me oque me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.[21]

E ainda que o acusem de moralismo, não é o pedante quemencontramos nas Confissões, senão o homem honesto que se abreem público à devassa de suas fraquezas:

Mandais-me, sem dúvida, que me abstenha da concupiscência da carne, daconcupiscência dos olhos e da ambição do mundo... Mas na minha memória vivem

Page 76: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ainda as imagens de obscenidades que o hábito inveterado lá fixou. Quando,acordado, me vêm à mente, não têm força. Porém, durante o sono, não só mearrastam ao deleite, mas até à aparência do consentimento e da ação. A ilusão daimagem possui tanto poder na minha alma e na minha carne, que, enquantodurmo, falsos fantasmas me persuadem a ações a que, nem sequer as realidadesme podem persuadir.

Meu Deus e Senhor, não sou eu o mesmo nessas ocasiões?..

Onde está nesse momento a razão que resiste a tais sugestões quando estouacordado e permanece inabalável, quando as próprias realidades se lheintroduzem?[22]

Acusam-no de exagero e rigorismo, mas ele está a todo omomento confessando não praticar um regime estóico. Em relaçãoà gula comenta:

Sendo a saúde o motivo do comer e beber, o prazer junta-se a esta necessidade...Ora, o limite não é o mesmo para ambos os casos, pois o que basta à saúde éinsuficiente para o prazer...

Ouvi ainda outra voz “Aprendi a contentar-me com o que possuo; sei viver naabundância e sofrer a penúria. Tudo posso naquele que me conforta”[23] Eis comofala um soldado dos acampamentos celestiais, que não é o pó que nós somos.[24]

Este é um dos inúmeros trechos em que Agostinho revela suareverência absoluta por Paulo. Aqui também se descreve aimoderação com conhecimento de causa, e o fato de transparecersua humildade diante do apóstolo dos gentios revela a dificuldadede seguir-lhe o exemplo. “Quem será, Senhor, que não se deixearrastar um pouco para além dos limites da necessidade? Sealguém há, como é grande!... Eu porém não sou deste número.”[25]

Muito teríamos de dizer sobre o capítulo seguinte, acerca dotempo. Agostinho teve o mérito inolvidável de considerar o tempocomo grandeza psicológica, conquista que só foi amplamenteretomada por Kant, treze séculos depois.

Mas já esgotamos o espaço que poderíamos dedicar a estamonumental obra do santo de hipona. A seguir veremos as linhas

Page 77: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

gerais de outra de suas obras principais, A Cidade de Deus, e areaparição do célebre teólogo nos anos da Codificação.

(Continua em Agostinho e Kardec III)

Bibliografia:

AGOSTINHO, santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural

Agostinho e Kardec I

Aurélio Agostinho, Agostinho de Tagaste, Agostinho deHipona, ou Santo Agostinho, como é mais conhecido, foi uma daspersonalidades marcantes da história humana. O Cristianismo seriairreconhecível sem a marca de seu gênio. Católicos, protestantes,ortodoxos e mesmo espíritas, estes dissidentes tão distantes deseus primos da tradição, todos têem em Agostinho um guia ereferencial da pureza cristã, do zelo na defesa da fé, dos cuidadoscom a vigília incessante das obscuridades da alma e de um ardorpoético no louvor a Deus.

Aurélio Agostinho

Page 78: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Falar de Agostinho significa assumir diversos riscos; riscosque preferiríamos evitar se não fosse tão grande a necessidade detrazê-lo mais para perto de nós. Sem medo de sermos prolixos,dividimos este artigo em três partes, referentes respectivamente àvida e conversão, àsConfissões e uma última referente à Cidade deDeus e a presença dele na Codificação do Espiritismo. É queAgostinho não nos permite um gasto menor de espaço e esforçopara apresentação de suas ideias, nem pode seu pensamento,como o da maioria, ser separadas para fins didáticos, com o que semataria sua essência rica de propósitos e referências cruzadas. Emoutras palavras, só se compreende sua doutrina através de umcontato com sua biografia.

Agostinho era um cidadão romano, pertencente a uma classemédia. Numa sociedade complexa e diversificada, sua posição nãodistava muito da dos jovens de hoje, com seus divertimentoscoletivos, caça às garotas e total despreocupação com o futuro.Sem serem ricos, Agostinho e os seus não tinham preocupaçõesmateriais. O pai era um adúltero assumido, e vivia conforme umhomem de boa posição na sociedade romana. A mãe, sendo cristã,esperava sem ressentimentos ou perturbações, convencida de queDeus iria converter o filho pervertido e compensá-la pelos seusdesgostos após a morte.

Agostinho via no pai a força e a liberdade do estilo de vidaromano, com sua consciência desimpedida, e na mãe a figura dosfracos de espírito, com sua crença de escravos e perdedores.Apesar disto, uma parte de si a admirava na sua resignação estóicae na sua perseverança nos seus simplórios ideais.

Aos 18 anos viu-se pai de um filho, ao qual chamavajocosamente “filho dos meus pecados”. Aos 29, hábil nas letras e naretórica, decidiu mudar-se para Roma, em busca de melhoresvencimentos e prestígio. A mãe, receosa de que isto agravasseseus desregramentos, decidiu ir junto. Agostinho fingiu aceitar, e nodia da viagem, enganou-a, deixando-a numa capela enquanto partiaàs pressas.[1] Mas ela não desistira de resgatar a alma corrompidado filho, e anos depois o alcançou em Milão.

Page 79: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Abraçou a doutrina do maniqueísmo, que deixaria marcaspermanentes na sua e na visão de muitos outros cristãos. AdoravaCícero e os filósofos de seu tempo. Não fazia muitos comentáriossobre os poetas, mas a julgar pela sua própria habilidade líricadeveria conhecê-los razoavelmente bem. Como retor era imbatível.

O problema de Agostinho com o Cristianismo era todofilosófico. Não admitia que aquele modelo simplório de descrição domundo pudesse competir com a lógica da filosofia e o rigor dasciências e das artes liberais. Desde sua estadia em Roma já nãoera mais o hedonista e cínico da juventude, mas enxergando seuserros, voltava a cair no mesmo abismo ao qual estava acostumado.

A vida de Agostinho era tudo menos monótona. Convencidopela mãe, cuja fé simples e sincera admirava, ouvia as pregaçõesde santo Ambrósio em Milão. A seguir fugia destes flertes com oCristianismo para não despertar o deboche dos colegas daacademia. Mantinha diversos credos sem poder abraçar nenhumdefinitivamente.

Enfim o encontro com o platonismo e o neoplatonismo lhepropiciaram o contato com uma filosofia que ansiava pelaproximidade com a religião.

Neste ambiente intelectualmente agitado, foi Paulo quem aospoucos conquistou seu espírito. Nos textos do velho convertidoAgostinho reconhecia o pecador com quem podia se identificar; oarrependido que abandonara o orgulho da ciência do mundo e setransformara em santo.

Will Durant nos dá a seguinte descrição de suas crisespsicológicas e de sua solução:

Cortejou durante algum tempo o ceticismo da academia. Era um homem deemoções fortes, portanto não demorava muito em pender por um ou por outrojulgamento. Estudou Platão e Plotino em Roma; o neoplatonismo integrou-seprofundamente em sua filosofia e, por intermédio dele, dominou a teologia cristãaté o tempo de Abelardo. Tornou-se para Agostinho a porta de entrada para oCristianismo... Certo dia, estando sentado num jardim de Milão com seu amigoAlípio, pareceu-lhe ouvir uma voz a repetir-lhe muitas vezes no ouvido: “lê, lê”Agostinho pôs-se a ler um trecho de Paulo: “Não vos entregueis a orgias elibações, não sejais ambicioso nem estroina, não sejais belicoso nem invejoso;

Page 80: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

entregai-vos a Nosso Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejoscarnais.” Esta passagem trouxe a Agostinho uma grande transformação desentimentos e ideais; havia alguma coisa naquela fé que era mais ardente e maisprofunda que toda a lógica da filosofia. O Cristianismo lhe surgiu dando-lhe umasatisfação profundamente emotiva. Renunciando ao ceticismo de sua inteligência,encontrou, pela primeira vez em sua vida, um estímulo moral e paz para oespírito.[2]

Esta é, aliás, a história de toda a conversão espontânea. Umfenômeno que acontece nos raríssimos momentos em que um serhumano sente aquilo que está lendo de um livro sagrado.

Começava a carreira de escritor e pregador cristão, com umbrilhantismo que em muito ofuscava sua já reconhecida posição deretórico. Os alunos desta disciplina continuavam a chegar ao longoda vida de Agostinho, mas muitos se converteram ao Cristianismoatravés destas aulas. Poder-se-ia dizer que até então Agostinhobrilhara pelo seu agudo intelecto; agora brilhava ainda mais,atingindo fama mundial com este mesmo intelecto alimentado porum fogo divino do sentimento e da fé exaltados.

Caracterizou-se pela defesa mista da liberdade e da graça naeconomia da salvação, pelo rigor de seu ascetismo e pela forçainflamada com que defendia o Cristianismo de seus inúmerosperigos reais ou imaginários. Reforçou a doutrina do pecado, e decomo a posição do homem exigia dele a mais profunda entrega aDeus. Este último traço de maniqueísmo o fazia enxergar apenaspreto e branco nas questões morais e existenciais, ignorandocircunstancias e relativismos culturais ou pessoais numaapologética irredutível de um cristianismo monástico.

De todas as suas disputas a mais malfadada, do ponto devista espiritual, foi a que travou contra Pelágio, o herege queconseguiu furar todas as proibições do catolicismo e chegar aosgrandes pensadores do Renascimento e do Iluminismo.

Durant narra da seguinte maneira esta saga:

Veio da Inglaterra o mais forte de seus oponentes, Pelágio, um mongeindependente, o qual defendeu com veemência a liberdade do homem e o fato deque ele podia salvar-se pela prática de boas ações. Na verdade, diz Pelágio, Deus

Page 81: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

nos auxilia, dando-nos Sua lei e mandamentos, o exemplo e preceitos dos santos,purificando-nos com a água do batismo e o sangue de Cristo. Deus não faz pesara balança contra a nossa salvação ao fazer a natureza humana inerentemente má.Não houve pecado original, tampouco a queda do homem; somente aquele quecomete o pecado é que será punido; sua culpa não recai nos filhos. Deus nãopredestina o homem para o céu ou o inferno, não escolhe arbitrariamente aqueleque será condenado ou salvo; Ele deixa a nós mesmos a faculdade deescolhermos nosso destino. A teoria de que a depravação é inata na naturezahumana, disse Pelágio, é a maneira covarde de se atribuir a Deus a culpa pelospecados do homem. O homem é dotado de razão e, por isso, responsável pelosseus atos: “se devo fazer uma coisa é porque poso fazê-la.”

Pelágio chegou a Roma por volta de 400, viveu com famílias religiosas e granjeoua fama de se muito virtuoso... Um sínodo realizado no Oriente julgou o monge edeclarou-o ortodoxo; um sínodo africano, convocado por Agostinho, não aceitouesta decisão e apelou para o papa Inocêncio I, o qual declarou Pelágio umherético.

A disputa só foi concluída alguns anos depois com o Concíliode Éfeso, em que Pelágio e toda a sua doutrina forma condenadospara sempre. Esta marca haveria de ser transmitida do catolicismoao protestantismo, e jamais o Cristianismo aceitaria pacificamente asalvação pelo esforço e mérito, a inocência original do homem e acapacidade da razão de julgar o caminho mais apropriado para a fé.Graças a Agostinho, razão e fé se tornaram realidadesirreconciliáveis na tradição cristã. Por mais que Agostinho estivessesatisfeito em abandonar sua promiscuidade e vaidade intelectual,estes que ele considerava sérios pecados nunca produziriam tantomal para o mundo quanto a defecção da salutar doutrina dePelágio.

Page 82: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Pelágio

Seus erros e virtudes se misturam de tal modo que seriaimpossível, talvez, separá-los. Um menor ardor poderia terarrefecido em excesso a índole combativa, fonte de suaprodutividade; e uma tolerância mais filosófica poderia dar um arpagão que desmereceria seus escritos aos olhos do clero,diminuindo seu impacto. Se Agostinho errou muito no que toca asua intransigência, foi o espírito necessário num tempo de caos,pluralidade de doutrinas esdrúxulas e decadência final da sociedaderomana que desaparecia ante as marés bárbaras. Um homemmenos convicto provavelmente teria sido engolido pelas sombras doolvido, como ocorreu a maioria de seus opositores.

Feita esta apreciação, tem todo o cristão a obrigação de votara ele a mais sincera gratidão pelos escritos edificantes que legou aomundo. Nas Confissões, livro que imita o costume primitivo de seconfessarem os cristãos uns aos outros em público, Agostinhodeixa de lado suas inúmeras disputas ideológicas para alçar vôosde introspecção. São estes escritos, certamente, que lhe deram apalma posterior de autoridade máxima nos assuntos referentes aoautoconhecimento.

(continua em Agostinho e Kardec II)

Bibliografia:

DURANT, Will. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Rio de Janeiro: Record,2002.

[1] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Pg. 59.

[2] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Pg. 59.

Page 83: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Pascal e Kardec II

Continuamos com nossas considerações sobre Pascalexemplificando o demérito com que ele considerava o mundo e seusassuntos. Só assim podemos entender o “eremita” por detrásdos Pensamentos.

Vejamos o que pensa ele da política:

Costumamos imaginar Platão e Aristóteles usando grandes túnicas de pedantes. Eram pessoashonestas e, como as outras, riam com seus amigos; e, quando se divertiam em fazer assuas Leis e a suaPolítica, fizeram-nas brincando. Era a parte menos filosófica e manos séria desua vida. A mais filosófica consistia em viver simples e tranquilamente.

Se escreveram sobre política foi como para pôr em ordem um hospício; e, se fizeram mençãode falar dela como de uma grande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavam julgavamser reis e imperadores; entravam nos seus princípios para moderar a loucura deles na medidado possível.[1]

Não é esta a opinião mais justa possível sobre estes trabalhos? Nãoé mais veraz do que a dos críticos da filosofia política que atacam comtamanhas carrancas os velhos mestres, imaginando estarem também elescompletamente enervados e excitados durante a redação de seus escritospolíticos? Filósofo como os da Antiguidade, Pascal enxerga bem adiferença entre a índole dos que educavam e a dos modernos teoristas,que pretendem mudar o mundo. E a pretensão maior disto tudo estáexatamente em querer mudar o mundo, corrigi-lo, quando só se corrige ocaráter individual. Todas as utopias nascem da ignorância acerca destasimples verdade.

Faltando bases e objetivo para se aplicar ao estudo do mundo, ohomem deve voltar suas forças ao estudo de sua alma imortal e dascondições de sua salvação. A religião não é eleita por preferência, ou porgosto temático, mas por princípio de razão. A famosa aposta de Pascalestá longe de ser o fim dos Pensamentos, mas é certamente o seu clímax.O argumento é por demais extenso e intrincado, e nos exigiria aqui umaexposição integral seguida de comentários, mais do que dobrando o

Page 84: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

volume já excessivo deste artigo. Basicamente, portanto, são as seguintesas ideais implícitas:

1- O conhecimento humano é incapaz de decidir entre a existência ouinexistência de Deus; o mesmo vale para a alma; e o mesmo para asituação da alma após a morte. Se nosso conhecimento é incerto einconclusivo só nos resta apostar. Crentes e ateus, portanto, sãoessencialmente apostadores, nenhum possuindo mais conhecimento dosfatos do que o outro.

2- Se nos cabe apostar, é possível ainda calcular as consequências da aposta,deduzindo assim quais são as vantagens de ambos os partidos. Pelasvantagens, mesmo que apenas especulativas, pode-se proferir um juízoracional do que seja a aposta preferível.

3- A primeira opção, crer em Deus e na imortalidade da alma, direcionanossa vida ao bem, nos desvia dos vícios e torpezas. Tornar-se homem debem, piedoso e justo, perdendo-se com isto somente os prazeresinconstantes e frugais do corpo, é uma atitude recompensadora mesmoque nenhuma das esperanças de imortalidade se concretize. Apostar nareligião é, assim, uma escolha onde não se precisa abrir mão de nadaessencial, não acarretando senão em benefício do próprio convertido.

4- Ademais, a escolha entre uma vida que termina com a morte ou uma queconduz a outra vida, eterna, não oferece qualquer vantagem para ospartidários da primeira opção. Qual é a razão de se preferir uma vida àduas, uma limitada e finita à uma outra limitada e finita acompanhada deuma segunda infinita e beatífica? Os que optam pela imortalidade nãoperdem nada da vida mundana, e ganham uma extra.

5- Por fim, se abdicamos da imortalidade e vivemos somente para esta vida,certamente nos comprometemos com a outra, se houver. Mas seseguimos uma vida pia e virtuosa, podemos ganhar tudo numa possívelvida espiritual no além. Se, por outro lado, não houver vida após a morte,o ateu não ganha com isto mais do que o crente, já que nenhum érecompensado por crer ou descrer de algo.[2]

Page 85: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Pascal chegou desta forma à conclusão final de que, do ponto devista da lógica dos apostadores, os descrentes passam por tolos. Mas,condescende ele, a maior parte dos descrentes não atingiu este estadopor cálculo, e sim por inclinação, e eles próprios o confirmam. É-lhesanormal ou inconveniente crer, e provavelmente estão certos nestaafirmação, pois o homem crê naquilo que está habituado a enxergar,pensar, conversar e fazer. O argumento da aposta provavelmente fala altoà inteligência, mas o descrente permanece afastado da religião pelocoração e pela vontade.

Para isso há ainda outra solução, que nada tem de teórica, masexige uma dose maior de boa vontade. É preciso habituar-se aocomportamento da fé, de modo a nutrir a alma com as inclinações e ogosto pela religião. Somente a educação dos hábitos pode converteraquele que pela própria natureza se indispõe a algo. Pascal sugere, então,com muita sabedoria, a entrega compulsória a uma vida justa, aoscostumes da religião cristã, às leituras e conversações religiosas, atravésdos quais a alma aos poucos se adapta ao que antes lhe era antinatural.

Após conhecer um pouco do pensador, assombra-nos ainda mais apersonalidade do espírito comunicante. Quão difícil seria copiar-lhe oestilo, em caso de fraude. Que maestria seria necessária, a ponto deaumentar a dignidade do charlatão, ao invés de a diminuir. Se uma dasmédiuns ou o próprio Kardec o plagiou, deveria este ser elevado àcondição de filósofo e santo. Contudo, como a análise da autenticidadedestes ditados não nos interessa aqui, passemos imediatamente ao seuconteúdo.

Mestre da introspecção, é a Pascal que cabe o aconselhamentosobre como garantir a proximidade e o contato com os bons espíritos, noseguinte ditado presente em O Livro dos Médiuns:

Quando quiserdes receber comunicações dos bons Espíritos, importa vos preparardes, paraesse favor, pelo recolhimento, por sadias intenções e pelo desejo de fazer o bem, tendo emvista o progresso geral; porque lembrai-vos que o egoísmo é uma causa de atraso a todo oadiantamento. Lembrai-vos de que se Deus permite a alguns dentre vós receberem ainspiração de certos dos seus filhos que, pela sua conduta, souberam merecer a felicidade decompreenderem a sua bondade infinita, é porque quer, pela vossa solicitação e em vista dasvossas boas intenções, vos dar os meios de avançar em seu caminho; assim, pois, médiuns,

Page 86: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

aproveitai esta faculdade que Deus quer vos conceder. Tendes fé na mansuetude do vossoMestre; tende a caridade sempre em prática; não deixes jamais de exercer esta sublimevirtude, assim como a tolerância. Que sempre vossas ações estejam em harmonia com a vossaconsciência, é um meio certo de centuplicar vossa felicidade nessa vida passageira, e de vospreparar uma existência mil vezes mais doce ainda.

Que o médium entre vós que não sinta força para perseverar no ensinamento espírita seabstenha; porque não aproveitando a luz que o ilumina, será menos escusável do que umoutro, e deverá expiar a sua cegueira. (Cap. XXXI: Dissertações Espíritas)

E em quais capítulos de O Evangelho Segundo o EspiritismoKardecdestaca comunicações de Pascal?

Há uma comunicação no capítulo Amar o próximo como a si mesmo,e exatamente sob o subtítulo egoísmo:

Se os homens se amassem com mútuo amor, mais bem praticada seria a caridade; mas, paraisso, mister fora vos esforçásseis por largar essa couraça que vos cobre os corações, afim de setornarem eles mais sensíveis aos sofrimentos alheios. A rigidez mata os bons sentimentos; oCristo jamais se escusava; não repelia aquele que o buscava, fosse quem fosse: socorria assima mulher adúltera, como o criminoso; nunca temeu que a sua reputação sofresse por isso.Quando o tomareis por modelo de todas as vossas ações? Se na Terra a caridade reinasse, omau não imperaria nela; fugiria envergonhado; ocultar-se-ia, visto que em toda a parte seacharia deslocado. O mal então desapareceria, ficai bem certos.

Começai vós por dar o exemplo; sede caridosos para com todos indistintamente; esforçai-vospara não atentar nos que vos olham com desdém e deixai a Deus o encargo de fazer toda ajustiça, a Deus que todos os dias separa, no seu reino, o joio do trigo.

O egoísmo é a negação da caridade. Ora, sem a caridade não haverá descanso para asociedade. Digo mais: não haverá segurança. Com o egoísmo e o orgulho, que andam de mãosdadas, a vida será sempre uma carreira em que vencerá o mais esperto, uma luta deinteresses, em que se calcarão aos pés as mais santas afeições, em que nem sequer ossagrados laços da família merecerão respeito. (Cap. XI)

Este curto ditado revela inúmeros elementos de interesse geral. Oque primeiro desperta a atenção é a escolha de Pascal para um tema tãocaro ao Cristianismo, o amor ao próximo. Além disso, a forma com que oassunto é abordado não demonstra senão a mais pura intimidade. É compropriedade e segurança que o espírito comunicante transmite amensagem que, elaborada por outros, não guardaria a firmeza do

Page 87: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

conhecimento de causa. E o que se depreende da exortação para tomar oCristo como modelo de todas as ações? A de que o autor, salvo no caso deser hipócrita, já o faz. E isto já nos diz muita coisa sobre quem é o espíritoque encarnou como Pascal.

Por fim, do ponto de vista filosófico, encontramos uma infinidade deconceitos mesclados. As doutrinas sociais são implicitamentedesacreditadas, pois a solução para a “segurança da sociedade” é areforma do indivíduo. O diagnóstico dos problemas sociais aponta para oorgulho e o egoísmo, não para questões econômicas, políticas ouinstitucionais. Além disso, uma análise cuidadosa da atitude recomendadarevela a indiferença e a malícia, sob a alcunha do desdém, como desafio aser superado. Isto se justifica, e realmente dota de sabedoria estareflexão, porque o desânimo e o desgosto são os fatores de impedimentoda tomada de consciência transformadora, muito mais do que o combatedeclarado, que despertando nossa índole combativa, quase sempre nosserve de estímulo. Ao vermos nossos esforços desperdiçados pelodesdém, minam-se nossas forças mais íntimas, não temos por onde reagirao indiferente ou ao debochado, e amargamos a frustração dos mais carosideais, revestindo de espessa “couraça” o coração.

O homem de hoje conhece estes males mais do que qualquer de seusantecessores. O crime hoje não é maior, mas é mais numeroso, seja peloaumento drástico da população, seja porque os meios de informação nosnotificam prontamente de todas as desgraças e abominações de que anossa mente tem forme. Esgotado pelas notícias dos males infindáveis,perde a esperança, toma por ínfimos e inúteis todos os esforços queconstituem a saúde da alma, e perde-a.

Se ao menos pudesse acumular os bens do espírito ao invés de correratrás das mesquinharias terrenas... Sobre este assunto prossegue opensador em seu ditado sobre A verdadeira propriedade, no capítuloXVI, Não se pode servir a Deus e a Mamon:

O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo. Do queencontra ao chegar e deixa ao partir goza ele enquanto ali permanece. Forçado, porém, que éa abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas a posse real, mas, simplesmente, o usufruto.Que é então o que ele possui? Nada do que é de uso do corpo; tudo o que é de uso da alma: a

Page 88: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais. Isso o que ele traz e leva consigo, o queninguém lhe poderá arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do queneste. Depende dele ser mais rico ao partir do que ao chegar, visto como, do que tiveradquirido em bens, resultará a sua posição futura. Quando alguém vai a um país distante,constitui a sua bagagem de objetos utilizáveis nesse país; não se preocupa com os que ali lheseriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação a vida futura; aprovisionai-vos de tudoo de que lá vos possais servir.

(...)

Os lugares aqui não se compram: conquistam-se por meio da prática do bem.

(...)

De linguagem simples, esta comunicação guarda nos detalhes umaenorme força. Pela sua clareza, pela forma como apela à inteligência,agrada ao senso de justiça, desvela em poucas palavras o reino de Deusdiante de nossos olhos, tem ela um valor didático e evangelizadorinestimável para ilustração do gênero humano. Do extenso segundoparágrafo retiramos somente esta frase que o sintetiza. É o espírito dePascal evocando, como em vida, o despertamento da alma para asquestões que mais haviam de interessá-la: a de seu destino, a de suaverdadeira natureza e condição.

O ano de 1863 foi o mais frutífero em ditados de Pascal, embora amaioria deles só viria a despontar na Revista Espírita de 1865. Aí vemostrês textos volumosos, dos quais os dois primeiros muito específicos paranossa análise. Já o terceiro artigo, sobre a verdade, é inteiramentefilosófico:

A verdade, meu amigo, é uma dessas abstrações para as quais tende o espírito humanoincessantemente, sem jamais poder atingi-la. É preciso que ele tenda para ela, é uma dascondições do progresso, mas sua natureza imperfeita, e só por isso que é imperfeita, nãopoderia alcança-la. Seguindo a direção que segue a verdade em sua marcha ascendente, oespírito humano está na via providencial, mas não lhe é dado ver o seu termo.

Compreender-me-ás melhor quando souberes que a verdade é, como o tempo, dividida emduas partes, pelo momento inapreciável que se chama o presente, a saber: o passado e ofuturo. Assim também há duas verdades: a verdade relativa e a verdade absoluta. A verdaderelativa é o que é; a verdade absoluta é o que deveria ser. Ora, como o que deveria ser sobe

Page 89: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

por degraus até a perfeição absoluta, que é Deus, segue-se que, para os seres criados eseguindo a rota ascensional do progresso, só há verdades relativas. Mas porque uma verdaderelativa não é imutável, não é menos sagrada para o ser criado.

Vossas leis, vossos costumes, vossas instituições são essencialmente perfectíveis e, por issomesmo, imperfeitas; mas suas imperfeições não vos libertam do respeito que lhes deveis. Nãoé permitido adiantar-se ao seu tempo e fazer leis fora das leis sociais. A humanidade é um sercoletivo que deve marchar, senão em seu conjunto, ao menos por grupos, para o progresso dofuturo.

(...)

Porque o Espiritismo foi revelado entre vós, não creais num cataclismo das instituições sociais;até esse dia ele terá realizado uma obra subterrânea e inconsciente para aqueles que eramseus instrumentos. Hoje que ele aflora ao solo e chega à luz, a marcha do progresso, nem porisso, deve ser de uma lenta regularidade. Desconfiai dos espíritos impacientes, que vosimpelem para as vias perigosas do desconhecido.

(...)

Lembrai-vos disto: O Espírito humano se move e se agita sob a influência de três causas: areflexão, a inspiração e a revelação. A reflexão é a riqueza de vossas lembranças, que agitaisvoluntariamente. Nela o homem encontra o que lhe é rigorosamente útil para satisfazer asnecessidades de uma posição estacionária. A inspiração é a influência dos Espíritos extra-terrenos, que se mistura mais ou menos às vossas próprias reflexões, para vos impelir aoprogresso, é a ingerência do melhor na insuficiência da passagem; é uma força nova, que sejunta a uma força adquirida, para vos levar mais longe que o presente, é a prova irrecusável deuma causa oculta que vos impele para a frente, e sem a qual ficaríeis estacionários; porque éregra física e moral que o efeito não poderia ser maior que sua causa (...) A revelação é a maiselevada das forças que agitam o espírito humano, porque vem de Deus e só se manifesta porsua vontade expressa; ela é rara, por vezes mesmo inapreciável, algumas vezes evidente parao que a experimenta a ponto de sentir-se involuntariamente tomado de santo respeito. Repito,ela é rara e ordinariamente dada como uma recompensa à fé sincera, ao coração devotado.

(...)

Eis, meu amigo, tudo quanto te posso dizer sobre a verdade. Humilha-te ante o grande Ser, porquem tudo vive e se move na infinidade de mundos, que seu poder rege; pensa que se nele seacha toda a sabedoria, toda a justiça e todo o poder, nele também se acha toda a verdade.

Esta impactante comunicação traz todos os caracteres daautenticidade. É um trabalho filosófico e religioso a um só tempo; retirada razão toda a sua força de decidir quanto ao que seja a verdadeabsoluta, mas respeita e valoriza os seus méritos em face das verdadesrelativas; é trágica, mas impregnada de um perfume de esperança

Page 90: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

evangélica; reduz as forças humanas, afirmando que a reflexão nãoproporciona o avanço, mas não deixa de incutir a ideia deresponsabilidade na atração e no cultivo da inspiração e da revelação, queapesar de serem, nas suas palavras, a força exterior, só se manifesta napresença do mérito da fé, da pureza da alma e na elevação dopensamento. Trata-se de um texto pascalino nos mínimos detalhes.

Há outras mensagens ao longo da Revista Espírita, bem como outrostextos de Pascal em vida. A quem interessar eles servemmaravilhosamente ao propósito de educar a inteligência e enaltecer ossentimentos. Esperamos ter contribuído o suficiente para despertar ointeresse por estas leituras.

Bibliografia:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores; São Paulo: NovaCultural, 1999.

[1] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 118.

[2] Os argumentos da aposta são bem mais ricos e complexos, tomando umcapítulo inteiro dos Pensamentos.

Page 91: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Pascal e Kardec I

Blaise Pascal, o orgulho da raça humana, só não brilhou mais alto nodesfile da cultura porque sua morte precoce, devido a uma doença quetambém o debilitou, e o seu zelo cristão em apagar a própriapersonalidade impediram que as multidões, ávidas de acontecimentosimpressionantes, não se permitiu guardar as marcas de seu gênio sutil.

Entre os primeiros franceses, Pascal é também um nome que marcaa distinção eterna desta nação no cortejo dos povos. É destes homens quenos dão a impressão de terem contribuído mais do que povos inteiros, sónão sendo isto verdadeiro porque os padecimentos e trabalhos dossimples angariam aos poucos o mérito da regeneração pela expiação daspaixões.

Gênio e santo no sentido mais profundo dos termos; criançaprodígio como nenhuma outra, deduziu sozinho e sem qualquer instruçãoos princípios de Euclides em tenra idade. Adolescente, escrevia tratadoscientíficos de impacto permanente sobre o conhecimento. Inventou aosdezenove anos a máquina de calcular, primeiro computador eficiente dahumanidade. Repetiu os experimentos de Torriceli e os aperfeiçoou,destacando-se no estudo do vácuo, e, graças a esta última contribuição,inseriu-se na ponta dos debates sobre a natureza da matéria e dosátomos. Como matemático está ao lado de Descartes e Laplace, tendodesenvolvido o cálculo de probabilidade, para o jogo de dados, e criandoas bases do cálculo infinitesimal, de Leibniz e Newton, através de seuestudo sobre a exponenciação. Como filósofo, foi um dos pais doIluminismo na contramão do movimento racionalista, embora mestre dosmétodos empregados pelo Racionalismo. Estimulou o iluminismo dareligião, os estudos psicológicos e morais, e desenvolveu a imortal apostaque leva o seu nome. Como homem religioso conseguiu o tremendo feitode destacar-se ainda mais. É um dos maiores defensores da fé que ahumanidade já viu. Entre as primeiras inteligências do mundo, soubeesquivar-se da vaidade intelectual, considerando-se, inclusive, muitopobre e apagado; e tendo vivido sem pecado ou qualquer falha moral

Page 92: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

durante toda a sua vida, apontou ao mundo somente seus defeitos efraquezas, deixando como único conselho o método que usava paradesvelar a parte corrompida da própria alma. Não há dúvida de que, numapátria que se destaca pelos seus santos, ombreia com os maiores nomesda religião.

Pascal. Olhar lúcido e sereno.

Como qualquer outro homem, no entanto, Pascal cometeu erros, e,embora todos fossem desculpáveis pelo contexto e época em que vivia, aspessoas mesquinhas sempre encontram alegria na descoberta dos pontosfalhos, que logo ampliam na esperança de rebaixarem as mais dignasfiguras, evitando com esta técnica o confronto com a virtude que asconstrangeria.

Devido ao clima fascinado do Racionalismo, especialmente febril naFrança de Descartes, nosso autor buscou refugio numa espécie deconservadorismo fideísta daquele período, o Jansenismo. Graças a estainfluência, ele tornou-se defensor ferrenho dos dogmas e rituais dareligião católica, em consciente contradição com a razão, na qual tevereduzidas a confiança.

Incapaz de encontrar o meio termo entre o exagero do Racionalismo,preferiu escorar-se unicamente na fé; e apesar de ter contribuído com a

Page 93: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

domesticação das pretensões intelectuais humanas, se excedeu ao afirmarser preferível a adoção incondicional da religião revelada.

Mais tarde, com a intensificação do confronto entre fé e razão,desenvolveram-se respostas mais completas e satisfatórias, onde ambasas partes da querela puderam ser novamente entendidas como elementosde um mesmo todo harmônico. Mas seria demais cobrar também isto dopobre Blaise.

Pascal sozinho deveria garantir para a França a posição de liderançana cultura mundial; se ao menos as pessoas o conhecessem. O leitor nãoespere que este artigo pobremente escrito lhe faça jus, e nem mesmosirva como boa introdução ao seu pensamento. O que se pode fazer semum estudo especializado desta figura fascinante é caminhar em suasombra, e talvez com isso possamos guardar vaga de sua grandeza.

Sua obra principal são os Pensamentos, uma sequência de aforismosconectados pela temática, mas fragmentados pela falta de estrutura.Pascal morreu antes de completar o que deveria ser a sua segunda maiorobra, ou talvez até mesmo a primeira, a Apologia, que teria o objetivo defazer uma defesa da religião cristã e sua excelência. Mas os Pensamentos,ainda que dividindo espaço com uma infinidade de críticas sociais,psicológicas e considerações filosóficas e literárias, já cumpre muito bem afunção de defender filosoficamente o Cristianismo.

Sua tese mais primária é a da divisão do espírito em duasexcelências, o espírito de geômetra e o de finura. O primeiro correspondea razão, enquanto o segundo ao sentimento. Mas os medíocres e oshomens falsos não possuem nenhum dos dois, e raciocinam geralmenteerrado, enquanto os que possuem uma destas virtudes geralmente têmdificuldade em pensar da outra forma. Aos dotados de fineza, osargumentos de razão parecem estéreis e incapazes de produzir, em seusresultados, verdadeira satisfação. Aos dotados de razão, os argumentos daintuição e do sentimento parecem loucos e obscuros, pois são incapazesde dissecá-los e identificar com clareza suas origens.

O sentimento vê as coisas de um só golpe, precisa navegar entre asnevoas com segurança. A razão enxerga às claras, e só apreende o objeto

Page 94: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

divisado à distância e pacientemente analisado. Ambos se afastam e sedesgostam da atividade que não lhes é típica, como procedem osmedíocres em relação aos dois. É que, como em tudo, aprecia-se somenteaquilo que se sabe e faz. Dito de forma direta pelo próprio autor:

Os Geômetras que são somente geômetras possuem o espírito reto, desde, porém, que lhessejam bem explicadas todas as coisas por definições e princípios; de outro modo, tornam-sefalsos e insuportáveis, pois são retos apenas em relação aos princípios bem esclarecidos.

E os sutis, que são simplesmente sutis, não são capazes da paciência de descer aos primeirosprincípios das coisas especulativas e da imaginação, que nunca viram no mundo e que estãocompletamente em desuso.[1]

Naturalmente o ideal seria desenvolver ambas as virtudes, e somentecom ambas se pode atingir uma vida moral e religiosa verdadeira.Contudo, já é muita coisa possuir-se uma propensão para uma únicavirtude, o que denota enorme progresso realizado, e ainda que dotadoapenas de razão ou de sentimento, o homem pode se tornar um homemde bem, por noção do dever ou pela compaixão.

Enquanto não possui as duas virtudes, ou nenhuma, o espírito devecuidar de educar-se, o que se realiza preferencialmente pela conversa. Aconversa é o ponto profundo do contato com outros humanos, e é por elaque se atingem as virtudes ou vícios de outrem com maior precisão. Porisso as conversações com cafajestes e patifes é corruptora, enquanto apresença dos nobres e bons cidadãos é sempre edificante. Que verdademais simples e completa. E quão evidente não é a ligação estreita entre aatual degeneração do caráter e a vulgaridade do vocabulário, nas músicase nas conversações, o estímulo incessante pelos temas revoltantes, peloscrimes hediondos, pelos escândalos, pelas torpezas dos artistas e pessoaspúblicas, que nos provocam uma excitação patológica caracterizada pelasconversas raivosas, pelos comentários vingativos, pela vontade desobressair na conversa com um tema mais picante, um crime maisbárbaro...

A formulação exata de Pascal é:

Page 95: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Do mesmo modo como se corrompe o espírito, corrompem-se o sentimento. O espírito e osentimento são formados pelas conversas. O espírito e o sentimento corrompem-se pelasconversas.

Dessa maneira, boas ou más conversas formam-no ou o corrompem. Escolher bem, paraformá-lo ou corrompe-lo é o mais importante de tudo; e somos incapazes dessa escolha se jánão o formamos, sem o corromper. Isso compõe um círculo, e são bem-aventurados aquelesque dele escapam.[2]

Mas após esta explicação técnica ele desfia inúmeros exemplosvaliosos. Quem já não esteve, em nossos tempos, envolvido num debatesobre pedófilos, assassinos, terroristas, traficantes, etc; e não disse ououviu: “– Se fosse comigo eu matava.” Ou ainda “– Tínhamos de ter penade morte.” A emoção não teria se convertido em rancor se não fosse pelaconversação inapropriada, pela forma deseducada como é conduzida. E épelo mesmo motivo que tão difíceis e tão enfadonhos nos parecem ostextos ou comentários apresentados na norma culta da língua, comdesenvolvimento complexo ou exigências de vocabulário. Joanna deÂngelis é um dos alvos preferidos deste tipo de crítica, e isso dentro deum ambiente onde a leitura e a disciplina do pensamento são contadosentre as virtudes maiores.

No fio da navalha entre a disciplina da linguagem (que éindiretamente a do pensamento e da emoção) e a moralidade, está amodéstia. Esta última é o termômetro da moralização da fala. “Quereisque falem bem de vós? Não o faleis vós mesmos.”[3] Ou no sentido aindamais preciso do Evangelho, a boca fala do que está cheio o coração.

Maledicência e xingamento são vícios tão arraigados que praguejarcontra Deus e a “má sorte” deve estar até em segundo lugar. E se issofosse tudo, não estaríamos tão mal. Não, temos ainda de elogiar a nósmesmos, não somente por um trabalho bem feito, mas nossa inteligência,nossa virtude, nossa bondade, ainda quando ninguém o faça. “Aoshomens não se ensina a ser homens de bem, e tudo o mais se lhes ensina;e de nada se gabam mais que de ser homens de bem. Só se jactam desaber o que não aprenderam.”[4]

Page 96: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Poucas coisas, segundo Pascal, nos são mais aversivas. O ridículo doshomens não é apresentar inúmeros defeitos, mas sua pretensão, suaarrogância, sua empáfia em imaginar-se excelente onde é mais carente.“Como explicar que um coxo não nos irrite e um espírito coxo nosaborreça? É que o coxo reconhece que andamos direito, e um espíritocoxo afirma que nós é que mancamos; se assim não fosse, teríamospiedade e não raiva.”[5]

Há um fio sutilíssimo entre os males que praticamos com consciênciae os em que somos dirigidos pelo inconsciente, e poucos traçaram estalinha com maior maestria do que Blaise Pascal. Primeiramente, pode-sedizer que o espírito é mais consciente quanto mais voluntária seja a ação,e inconsciente quando a ação for involuntária, fruto de hábito ou instinto.A vontade é, assim, elemento constitutivo da consciência, e o exercício dopoder da vontade aumenta ao mesmo tempo a consciência.

Há diferença universal e essencial entre as ações da vontade e todas as outras.

A vontade é um dos órgãos principais da crença, não porque a forme, mas porque as coisas sãoverdadeiras ou falsas de acordo com o ângulo pelo qual as vemos. A vontade, que se satisfazmais em um do que em outro, afasta o espírito da consideração das qualidades que não desejaenxergar; de sorte que o espírito, marchando de comum acordo com a vontade, detém-se aolhar do ângulo que esta aprecia. Julga-se desse modo pelo que se vê.[6]

Nada é mais difícil do que educar a vontade; aí está o problema. Paramelhor compreender o dilema, devemos analisar a compulsão automáticada vontade, a inclinação de conservação e bem-estar de si, o amor-próprio. E aqui vai todo um tratado:

A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amar senão a si e não considerar senãoa si. A que pode conduzir? Será incapaz de impedir que o objeto do amor apresente-se repletode defeitos e misérias: deseja ser grande e se julga pequeno; quer ser feliz e se acreditamiserável; pretende ser perfeito e acha-se cheio de imperfeições; quer ser objeto de amor eda estima dos homens e nota que seus defeitos não merecem senão repulsa e desprezo. Esseembaraço produz nele a mais injusta e criminosa paixão que se possa imaginar; porque cria umódio mortal contra essa verdade que o repreende e o convence de seus defeitos. Seu desejoseria destruir essa verdade; não podendo destruí-la em si mesmo, a elimina quanto pode emseu conhecimento e no dos outros; isto é, coloca todo o seu zelo em encobrir os própriosdefeitos a si mesmo e aos demais, e não suporta que lhe façam vê-los, nem que os vejam.

Page 97: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Sem dúvida, é um mal possuir tão numerosos defeitos; mas é um mal ainda maior tê-los todose não desejar reconhece-los, porque então se lhes acrescenta também uma ilusão voluntária.Não queremos que os outros nos enganem; não julgamos justo que pretendam ser estimadospor nós mais do que merecem; não é, assim, igualmente justo que os iludamos e queiramosque nos estimem mais do que merecemos.

Dessa maneira, quando os outros apenas vêem em nós imperfeições e vícios, os quais naverdade temos, é evidente que não nos provocam danos, uma vez que não são eles oscausadores dessas imperfeições, e que nos fazem um bem, porque nos auxiliam a nos livrar domal que é a ignorância das imperfeições. Não devemos nos zangar porque eles as conhecem enos desprezam, pois é justo que nos conheçam por aquilo que somos e que nos desprezem sesomos desprezíveis. Esses seriam os sentimentos naturais de um coração cheio de retidão ejustiça.

(...)

Há diferentes graus nessa repulsa à verdade; é possível dizer, porém, que até certo ponto elaexiste em todos, porque é inseparável do amor-próprio. Assim, essa falsa delicadeza é queobriga aqueles que têm necessidade de repreender os demais a optar por tantos rodeios a fimde não os magoar. Precisam amenizar nossos defeitos, fingir que os desculpam, mesclarelogias e testemunhos de afeição, de estima. Mesmo assim, tal remédio não deixa de seramargo ao amor-próprio. Tomamos dele o menos possível, e sempre com aversão, e muitasvezes com um secreto despeito contra os que nos mostram a ele. Por isso ocorre que, quandoalguém se interessa em ser amado por nós, foge de prestar-nos um serviço que, sabe, nos édesagradável; trata-nos como queremos ser tratados: odiamos a verdade, a verdade nos éocultada; desejamos adulação, a temos; gostamos de ser enganados, engana-nos.[7]

E além de nos cercarmos de amigos lisonjeiros, ao invés dossinceros, que detestamos como inimigos, buscamos avidamente pelosvícios nos grandes, para desculpá-los em nós mesmos; mesmo quandonão existe vício algum.

Jesus comia carne, dizem uns; bebia vinho, os outros. Muito naturalem quem tem de escolher entre uma refeição com carne ou o pão purotodos os dias. Mas hoje chega ao infinito a variedade de alimentosnaturais ou sintéticos, locais ou importados, quase todos mais baratos doque a carne que custa a vida de um ser indefeso.

“– O próprio Cristo molhava o pão no vinho!” É uma verdade, edisto temos relato em duas ou três passagens dos Evangelhos. Masespere; que nos garante que estas não foram as únicas ocasiões nos trêsanos de ministério? E qual é a passagem que relaciona este ocasional

Page 98: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

consumo à embriaguez, ao entorpecimento do juízo, que é quase o únicoobjetivo dos que bebem por esporte? Nenhuma. Ainda assim, odesavergonhado que rola pela sarjeta identifica nos santos amigos decopo. Eis a natureza humana. A madame jamais se convence de que umanobre ação não seja secretamente impulsionada por algum interesse fútil,por uma oportunidade de aparecer. O político em tudo vê a mentira e amalícia; nenhuma ação lhe parece virtuosa, sobretudo se empreendidapor partidários dos grupos alheios. O vagabundo jura para si que todos ostrabalhadores são profundos infelizes; hipócritas que se gabam daescravidão voluntária de se desgastarem em atividades outras que adiversão e o ócio. E assim, ao final, estão todos satisfeitos, pois mentem acontento para si próprios, e acreditam-se, ao invés de viciados, emperfeita consonância com o restante da humanidade.

Decorre daí que o jogo e a conversa das mulheres, as guerras, os altos empregos sejam tãodisputados. Não que exista felicidade verdadeira nisso, nem que se imagine que a realbeatitude constitua-se em possuir o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que sepersegue: nada disso nos interessaria se nos fosse oferecido. Não é essa vida indolente etranquila que nos proporciona tempo para refletir sobre nossa infeliz condição, que buscamos;como não são os perigos da guerra, nem os aborrecimentos dos empregos; é o ruído, que nosafasta da reflexão acerca da nossa condição e nos diverte.

Por isso os homens amam tanto o ruído e a agitação; por isso é a prisão um suplício tãohorrível; por isso o prazer da solidão transforma-se em algo incompreensível. E por isso,finalmente, ser o maior objeto de felicidade da condição dos reis essa preocupação constantedos outros em diverti-los e em proporcionar-lhes todo o tipo de prazeres.[8]

(...)

Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao tormentode tão grande dor, por que não está triste neste instante, e o vemos tão desprovido de taispensamentos dolorosos e inquietantes? Não há por que estranhar: acabam de entregar-lheuma bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto.Como pretendeis que medite sobre seus tormentos quando tão nobre assunto o ocupa? Trata-se de uma ação, com efeito, digna de encher sua grande alma e de expulsar todos os demaispensamentos de seu espírito. 69

Chegamos, sem o percebermos, do autoengano à diversão. Talvezporque esta passagem seja realmente imperceptível, mas, reconhecePascal, a diversão não precisa ser evitada sempre. Consciente de que ela éum paliativo para seus problemas, o homem deve moderar o seu

Page 99: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

emprego, mas, enquanto é homem e não anjo, a ele é permitido entregar-se ocasionalmente à diversão quando seus problemas não possam serresolvidos, ou quando suas dores não possam ser compreendidas pelareflexão e pela piedade.

Outra forma mais sutil e prejudicial de autoengano é a vaidade, estasim desprovida de qualquer aspecto positivo.

Não nos satisfazemos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: desejamos viverna ideia dos outros uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir. Trabalhamosincansavelmente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos overdadeiro. E se temos tranquilidade, ou generosidade, ou fidelidade, apressamos em fazê-losaber a todos, a fim de relacionar estas virtudes a esse nosso outro ser; e de bom grado asdestacaríamos de nós para uni-las a ele; e seríamos prazerosamente covardes para adquirir areputação dos corajosos.[9]

E finalmente atingimos a conclusão essencial do início dosPensamentos, a de que a vontade tem em seu patrimônio, pelo poder deceder ou impor sua própria determinação, o móvel central da vida moral.

Não é vergonhoso para o homem sucumbir à dor e é-lhe vergonhoso sucumbir ao prazer. Eisso não decorre do fato de vir-nos a dor de outra parte, enquanto buscamos o prazer, poispodemos procurar a dor e sucumbir a ela sem essa baixeza. De onde vem, então, que sejaglorioso para a razão sucumbir sob o esforço da dor e vergonhoso sucumbir pelo esforço doprazer? É porque não é a dor que nos tenta e atrai; nós mesmos é que a buscamos porvontade própria e desejamos que nos domine; de sorte que somos senhores da coisa; nisso é ohomem que sucumbe ante si próprio (o homem animal sucumbe ante a imposição doespiritual); no outro caso, é ante o prazer que o homem sucumbe. Ora, só o domínio e oimpério dão a glória, e a servidão dá a vergonha.[10] Obs: O comentário entre parênteses énosso.

Nunca antes o estoicismo fora defendido com tamanha clareza, comtão inescapáveis consequências lógicas. Às almas que ainda não haviamsido convertidas pelo perfume de nobreza do sacrifício, foi agora ofertadaa prova ética da superioridade da abnegação no patrimônio da vontade.Muito também se pode aprender com Espinosa e Kant a este respeito.

Observe-se, contudo, que Pascal não demoniza o prazer, não oproíbe. O prazer possui também o seu mérito na economia da saúde

Page 100: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

psíquica. Mas de quanto prazer precisa o homem? O que ele está dispostoa condenar em troca do prazer? A qual dever, qual compromisso estápronto a abdicar? Nisto está o aspecto abominável do prazer, pois naencruzilhada entre o certo e o errado, entre o dever e o escândalo, elecede, por fraqueza, ao caminho da queda, desde que ao final deste seencontre um pequeno prazer.

A alma se inclina, por sua natureza animal, ao prazer, que lhe estáferreamente associado como condição de sobrevivência da vida biológica.A comida, o sexo, o descanso, o domínio sobre outros, e inúmeros outroselementos lhe são, enquanto animal, necessários, e, por isso, prazerosos.Mas o homem já não é integralmente animal. Ele está lapidado pelasociedade, pela religião, pela ciência, já começou a divisar pela inteligênciaoutros fins e outros propósitos mais nobres, mas que quaseinvariavelmente contrariam a disposição da carne. A disciplina exigidapelo estudo contraria o instinto de conforto e divertimento, a dignidadediante da instituição moral, não a social, do casamento o compunge arespeitar o regime monogâmico, os obrigações profissionais, das quaissempre depende o bem-estar de outros, nos convidam ao sacrifício dopróprio descanso, da fortuna, da fama... Mas a isto nada nos inclina. Nãohá necessidade biológica associada ao dever, e por isso ele não nos atrainaturalmente. Todo o seu apelo é espiritual, ou seja, intelectual,consciente. Se nos habituamos a ceder ao prazer quando nos cabia vencera sua inclinação em favor da consciência, permanecemos nas névoas daanimalidade, do instinto, da escravidão aos impulsos que não cessam enão possuem qualquer orientação.

Só assim se compreende e avalia com justiça certas proposições dePascal, ou de outros moralistas, que de outra forma pareceriamdogmáticas. Estas mesmas sentenças parecem, ao contrário, tãosuavemente justas e equilibradas à luz da doutrina como um todo, quenão se pode despertar qualquer animosidade contra as suas elevadasexigências. Portanto:

Se o homem fosse feliz, ele o seria tanto mais quanto menos se divertisse, como os santos eDeus. – Sim; mas não é ser feliz ver-se confortado pelo divertimento? – Não, porque ele vemde longe e de fora, e assim é dependente e, portanto, sujeito a sofrer a perturbação de milacidentes, que tornam as aflições inevitáveis.[11]

Page 101: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Se não fosse pelo divertimento nós perceberíamos um constanteincômodo, e este nos levaria ao esforço árduo do crescimento. Mas comoencontramos a cada instante uma nova distração, um novo prazer,conseguimos caminhar insensivelmente para a morte. As agruras da vida,enviadas por Deus para nos despertar, quase não surtem efeito. Oinstante de incômodo, especialmente o incômodo com nós mesmos,desaparece com a excitação que corremos para a próxima distração (nadamelhor do que filmes, jogos e música...) e finalmente chegamos à morteadormecidos, como desejamos, apesar de pequenos desafios queameaçaram nosso sono.

Por tudo isso, a razão leva o homem mais e mais para um estilo devida religioso, o que será o objeto de nosso próximo artigo sobre Pascal.

(continua em Pascal e Kardec II)

Bibliografia:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores; São Paulo: NovaCultural, 1999.

Rousseau e Kardec

Enfim chegamos a um dos pontos que era o objetivo deste espaçodesde a sua criação. A partir daqui veremos ao longo de alguns mesescoletâneas de biografias e ideias de alguns dos filósofos que participaramda Codificação do Espiritismo junto a Kardec. Dentre os inúmeros espíritosque se destacaram na liderança do movimento de revelação, os santos epensadores ocupam posição privilegiada. Entenderemos um pouco dotrabalho de alguns dos representantes da segunda classe, de modo que a

Page 102: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

sua atuação na falange do Consolador se torne não apenas mais clara,como justificada a sua presença.

Começamos por um personagem controverso, Jean JacquesRousseau, que em aspectos morais e psicológicos não parece figurar entrea camada superior das almas esclarecidas. Não obstante, seu impactosobre o mundo o coloca no rol limitado dos homens que pelo pensamentomudaram os rumos da civilização. E não se pode negar que muitos dosconflitos experimentados pelo escritor estão diretamente associados à suacondição de inspirado e sensitivo, como se defere inclusive de seusescritos biográficos.

Rousseau foi excepcional desde a infância. Tendo a felicidade denascer na região de Genebra, um dos raros bastiões onde a liberdade e oprogresso não encontravam os entraves da Igreja ou do próprio Estado noséculo XVIII, o menino revelou-se desde cedo amante das letras, comnotável tendência para o gênero de fantasia, típica preferência nutridapelas almas cujo pensamento certamente está habituado a outrosambientes mais amplos que os da Terra.

De índole sensível e impetuosa, experimentou quase tudo o que eradado ao homem de seu tempo; mendicância, aventuras amorosas,patronagem por parte de autoridades, perseguição e exílio,incompreensão e loucura.

Foi sempre um inspirado, tomado quase que obsessivamente pelasideias de justiça, sinceridade e da felicidade possível na Terra. Todos osseus escritos inflamam o espírito, como que a exigir uma atitude imediatapor parte do leitor.

Negativamente pesa-lhe a defesa da vontade da maioria, teoria quedescambou nas absurdas ideologias do comunismo e do fascismo, comprejuízos humanos para todas as minorias e indivíduos não alinhados coma vontade das massas, muitos deles simplesmente por participarem desdeo berço de uma classe discriminada. Esta discriminação das aristocracias edos ricos, enquanto não violenta por parte do próprio autor, incentivoumuitas atrocidades por parte de almas sanguinárias que souberam seaproveitar da reivindicação por justiça. Acresce a isto o temperamento

Page 103: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

inconstante que tanto lhe dificultou a vida prática, a paranoia e aindiferença para com os filhos. Por fim, a ideia de que o homem é bom emseu estado primitivo, responsabilizando a civilização pela sua corrupção, énão apenas infundada como perigosa, pois serviu para alienar gerações depessoas insatisfeitas com a sociedade, as quais passaram a buscar umafuga dela ao invés de sua correção.

Contam entre seus méritos a inauguração na cultura humana doamor a natureza, que alimentou o romantismo e posteriormente aecologia; o despertamento para a necessidade de transformação ecombate a injustiça, que nem sempre se realizou de forma revolucionáriae obscura, e a forma inovadora de fazer filosofia, que abriu caminho parauma inédita filosofia do sentimento e da intuição em plena era deracionalismo. Finalmente, suas teorias sobre a educação, ao passo quesimplórias, tiveram preciosa colaboração no desenvolvimento dapedagogia humanizada da atualidade.

A leitura de todas as obras do pensador é uma necessidade para osque se interessam por qualquer destes temas. Como nosso espaço nãopermitiria analisar em detalhe o discurso sobre a desigualdade ou abiografia do gênio, limitamo-nos ao Emílio, sua obra mais completa etambém mais religiosa. Isto nos permitirá vislumbrar um pouco do que foio homem, para que possamos compará-lo ao espírito comunicante doLivro dos Médiuns e da Revista Espírita.

No aspecto moral, identificamos facilmente a índole socrática, comequilíbrio entre epicurismo e estoicismo, e uma relativa predominância doespiritualismo platônico. Em meio a esta mediação, o que se observa noresultado final é uma teoria sóbria, simples e que soa muito forte aosouvidos de todas as pessoas, independente de sua orientação ideológica.Os conceitos de moderação e prudência, da Antiguidade, parecemfinalmente revividos como que trazidos à tona por uma alma daquelaépoca gloriosa:

De onde vem a fraqueza do homem? Da desigualdade que se encontra entre sua força e seusdesejos. São nossas as paixões que nos tornam fracos, pois fora preciso, para contentá-las,mais forças do que nos dá a natureza. Diminuí pois os desejos; será como se aumentásseis asforças: quem pode mais do que deseja, as tem, de resto; é certamente um ser muito forte.[1]

Page 104: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Indo um pouco mais fundo, o pensador identifica no amor próprio aorigem primeira da vontade. É pelo divino instinto de conservação eautoestima que o homem busca o prazer, o poder e mesmo a felicidade.Mas este mesmo instinto, virtuoso por natureza, pode corromper-se,hipertrofiar-se em egoísmo, e nisto está inteiramente certo nosso sábiogenebrino. A neutralidade natural se converte em malícia. Conforme umfragmento do Emílio:

A fonte das paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única que nasce com ohomem e não o deixa nunca durante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão primitiva, inata,anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são, em certo sentido, senãomodificações. Assim, se quisermos, todas são naturais. Mas essas modificações em sua maioriatêm causas estranhas sem as quais não ocorreriam nunca; e essas modificações, longe de nosserem vantajosas, nos são nocivas; mudam o primeiro objeto e vão contra o seu princípio.[2]

A parte em que a psicologia de Rousseau desliza é quando ele tentapropor uma solução para a corrupção humana. Responsabilizandoexclusivamente a civilização, ao invés do próprio homem, ele acredita queo combate aos vícios consiste apenas em reformas sociais, exteriores aoproblema. Afastados os vícios, em melhor ambiente, o homemautomaticamente manifesta todas as virtudes, que lhe são naturais. Nãoexiste esforço ou mérito neste cálculo, e muitas das utopias sociais que seseguiram estavam baseadas na expectativa e crença nesta simplessolução. Afastemos a propriedade privada, e tudo se conserta, depoisafastemo-nos das cidades, para as comunidades alternativas, e em todo olugar, a experiência o provou, continuam os crimes e os vícios.

Mas talvez esta seja apenas a nossa interpretação de Rousseau. Aliás,a única unanimidade sobre ele é a de que seus textos se contradizem, sãoambíguos e vagos, às vezes até incompreensíveis.

Novamente o que perdoa nosso revoltado filósofo é o fato de que elevivia exatamente numa sociedade em que a injustiça parecia triunfante, opoder desmedido e cruel, a sociedade dividida em privilegiados eexpoliados. Esta indignação fica evidente em certas passagens muito

Page 105: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

semelhantes a algumas das que figuram noEvangelho segundo oEspiritismo:

Os homens não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem cortesãos, nem ricos; todosnascem nus e pobres, todos sujeitos às misérias da vida, às tristezas, aos males, àsnecessidades, as dores de toda espécie.[3]

Mas logo a seguir, no mesmo capítulo, ele modera o discurso edefende a tolerância e a compaixão para com os maus, assemelhando-semuito mais ao discurso liberal do que ao revolucionário, mais aoCristianismo do que ao socialismo:

São nossas paixões que nos irritam contra as dos outros; é nosso interesse que nos faz odiar osmaus; se não nos fizessem nenhum mal, teríamos por eles mais piedade que ódio. O mal quenos fazem os maus leva-nos a esquecermos o que fazem a si mesmos. Perdoaríamos maisfacilmente seus vícios, se pudéssemos conhecer quanto seu coração os pune. Sentimos aofensa e não vemos o castigo; as vantagens são aparentes, o tormento interior... As paixõesque partilhamos nos seduzem; as que chocam nossos interesses nos revoltam, e, por umainconseqüência que nos vem delas, censuramos nos outros o que desejaríamos imitar.[4]

Como compreender semelhante teoria, que ao passo que nosdesperta a sede de justiça, nos admoesta a não odiar o injusto? Comocompreender um pensador político e moral que serve de inspiração aoliberalismo e ao socialismo, a doutrina da tolerância e a da justiça, quandotodos os pensadores políticos os compreendem como realidades opostase irreconciliáveis? A resposta, segundo nossa própria compreensão, estáem ser o nosso respeitável autor uma contradição para o mundo,escândalo para os doutos e prudentes, louco de pedra para a razãoterrena. Sua sabedoria é divina, sua teoria política é cristã, absurdidadepara todos os ideólogos. Solidariedade para com o pobre, compreensãopara com o rico; sede de justiça, e com urgência, mas não por ódio, e simpor amor ao gênero humano. Nem uma classe, nem outra, mas umafraternidade humana em que o rico, ao invés de eliminado e perseguido,conscientize-se de seus vícios e modere os seus abusos, em que o pobre,ao invés de invejoso e violento, se movimente rumo a justiça, ao invés decontra o injusto.

Page 106: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Se Rousseau cometeu inúmeros erros de conceito e contradições, eledeixa ao menos transparecer esta superioridade da intenção, que só nãose revela ao mais cego e mais fanatizado leitor.

Esta perspectiva diferenciada tem tudo a ver com a epistemologiaexótica de Rousseau. Mais do que cética, ela é socrática, em um sentidoque só foi ressuscitado graças a Descartes, Pascal, Fénelon e Voltaire, osmestres da sobriedade intelectual da Era Moderna, responsáveis por todaa luz de Paris. Assim diz Rousseau pela boca do vigário de Saboia:

Consultei os filósofos, folheei seus livros, examinei suas diversas opiniões; achei-os todosorgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo em seu pretenso ceticismo, nada ignorando,nada provando, zombando uns dos outros; e este ponto comum a todos se me afigurou oúnico em que todos têm razão. Triunfantes quando atacam, carecem de vigor quando sedefendem... Pequena parte de um grande todo cujos limites nos escapam, e que seu autorentrega a nossas loucas disputas, somos bastante vãos para querermos decidir o que seja essetodo em si mesmo e o que somos em relação a ele.[5]

Esta decepção e desânimo com a razão não se refletem emirracionalismo, ou em cinismo, apesar de ambos estarem muito próximos.O que de fato acontece é que o sentimento, para Rousseau, é forte obastante para arrancar o homem da incerteza, e conduzi-lo por onde nãopode o entendimento. É assim que a continuação do argumento do vigárioé mais esperançosa:

Sei somente que a verdade está nas coisas e não em meu espírito que as julga, e quantomenos ponho de mim nos julgamentos mais certo estou de aproximar-me da verdade: assim, aregra de entregar-me ao sentimento mais do que à razão é confirmada pela razão.[6]

Ao chegar propriamente a sua filosofia da religião, Rousseau associasua sobriedade e ceticismo filosóficos à humildade tipicamente cristãdiante dos mistérios da criação. Numa linha agostiniana ele começa:

Percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim, vejo-o ao redor de mim; maslogo que quero contemplá-lo, logo que quero procurar onde se acha, o que é, qual suasubstância, ele me escapa e meu espírito perturbado não percebe mais nada.[7]

Page 107: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Não poderia ser um trecho das Confissões de Agostinho? Este tipo demeditação se tornou, afortunadamente, muito comum na França entre osséculos XVII e XIX, quando ela era para todos os efeitos a verdadeiraherdeira dos apóstolos.

Nosso Grand Finale não poderia ser outro que a defesa daliberdade:

Nenhum ser material é ativo por si mesmo, e eu o sou... minha vontade é independente demeus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou sou vencedor e sinto perfeitamente em mimmesmo quando faço o que quis fazer ou quando não faço senão ceder a minhas paixões.Tenho sempre o poder de querer, não a força de executar... o sentimento da minha liberdadesó se apaga em mim quando me depravo e impeço enfim a voz da alma de erguer-se contra alei do corpo... Quando me perguntam qual é a causa que determina minha vontade, eu mepergunta qual é a causa que determina meu julgamento: porque é claro que essas duas causasnão são senão uma; e se se compreende bem que o homem é ativo em seus julgamentos, queseu entendimento não é senão o poder de comparar e julgar, vê-se que seu orgulho é apenasum poder semelhante ou derivado daquele; escolho o bom como julgou o verdadeiro, se julgaerrado, escolhe o mal. Qual é a causa que determina a vontade? Sua faculdade inteligente, seupoder de julgar; a causa determinante está em si mesmo.[8]

Esta apologia do juízo pode ter muito a ver com a educaçãoprotestante de Rousseau. Num curto comentário de suas confissões eleexpõe com sarcasmo a sua estranheza diante da religião católica, a qual sóconheceu após abandonar a pátria em busca de aventura: “Naturalmenteos protestantes tendem a ser mais instruídos que os católicos. A doutrinados primeiros exige discussão, a dos segundos submissão.“

Em resumo, Rousseau parece ter englobado todas as questões eatividades de sua época. Além de pensador político destacado, literatovirtuoso, poeta, cientista natural com imenso impacto sobre os estudosbotânicos, era um profundo cristão, talvez não exemplar, mas envolvidocom a própria transformação a ponto de experimentar as fortes angústiasdo conflito interior que caracteriza todas as almas em busca deregeneração.

Como espírito, parece ter participado secundariamente daCodificação do Espiritismo. Seu papel é duplamente o de apresentar suaopinião, enquanto filósofo, e, com isso, reforçar a autoridade do

Page 108: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Espiritismo através de seu “aval”, enquanto celebridade intelectual. A suadissertação em O Livro dos Médiunscontém, além de referências tambémimportantes para a interpretação de sua obra, uma pequena confissãoquanto a reencarnação:

Penso que o Espiritismo é um estudo todo filosófico das causas secretas, dos movimentosinteriores da alma, pouco ou nada definidos até aqui. Explica, mais ainda do que descobre,horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridas antes de chegar ao objetivo supremonão são revelações, mas uma confirmação importante. Estou tocado pelas verdades queeste meio coloca às claras. Disse meio com intenção, porque, ao meu pensar, o Espiritismo éuma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupação pelas questões morais estáinteiramente para ser criada; discute-se a política que examina os interesses gerais; discutem-se os interesses privados, apaixona-se pelo ataque ou a defesa das personalidades; os sistemastêm seus partidários e seus detratores; mas as verdades morais, as que são o pão da alma, opão da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos sãoúteis aos olhos da multidão, salvo o da alma; sua educação, sua elevação são quimeras aptaspelo menos para ocuparem o ócio dos padres, dos poetas, das mulheres, seja na condição demoda, seja na condição de ensino.

Se o Espiritismo ressuscita o Espiritualismo, dará à sociedade o impulso que dá a uns adignidade interior, a outros a resignação, a todos a necessidade de se elevarem até o Sersupremo esquecido e desconhecido pelas suas ingratas criaturas.[9] (Capítulo XXXI,Dissertações espíritas.)

Aqui está Rousseau inteiro: sua religião empolgada e empolgante,livre de dogmas e interiorizada, a indignação com o estado dahumanidade, e uma evocação ao seu poder inato de renovação, e,finalmente, todos os esforços voltados para a investigação das sutilezas domecanismo moral, em seus aspectos psicológicos e metafísicos. Ocomentário sobre a reencarnação dá o que pensar. Teria ele nutridocrenças e intuições sobre ela, ou apenas fazia alusão à popularidade dotema em meio aos sábios em geral?

No ano de 1861 ele apresentou uma dissertação mediúnica sobre oestado da literatura no ano anterior, lastimando a degeneração da altacultura na França, apesar dos avanços na pintura e nas ciências. O filósofoconsidera que este empobrecimento das obras filosóficas e literárias sedeve, sobretudo, ao despreparo dos jovens franceses.

Page 109: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

É de lamentar que Rousseau não tenha se comunicado mais,especialmente no que se refere às suas teorias políticas. Isso poderia terajudado muito a esclarecer os espíritas quanto ao seu papel de cidadãos eatores políticos, mas, naturalmente, a proposta das comunicações feitas aKardec tinha objetivos específicos e já extensos demais.

Fica em nós o desejo de ver este espírito publicar, através damediunidade ou encarnado, novos de seus brilhantes tratados.

Bibliografia:

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou da Educação. São Paulo: Difel, 1979.

Budismo: o cinismo compassivo.

Por bastante tempo adiamos a necessidade de incluir o Budismo em nossoestudo comparado das religiões e sistemas filosóficos. Este atraso é decerta forma um ato de respeito em relação a uma tão grande e complexatradição, o que não admite senão um estudo minimamente atencioso deseus textos clássicos e de sua historiografia. A parte final dos textoscanônicos nos caiu em mãos recentemente, e aqui estamos.

Para começar a tratar do Budismo como um todo é necessário limitá-lo o mais rigorosamente possível à doutrina original de SiddhartaGautama, ou Buda Sakyamuni, visto que os desmembramentos destaacabaram por se tornar mais variados e contraditórios do que os dequalquer outra religião ou filosofia, com possível exceção do platonismo.

Mesmo atendo-se aos fundamentos mais elementares do Budismohá que se lidar ainda com o problema de sua extensão. Afinal o mestreviveu e ensinou por muitas décadas, e seus primeiros discípulos eramnumerosos e letrados o bastante para nos garantir uma vasta herança já a

Page 110: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

partir do primeiro século após sua morte. Semelhantemente aoCristianismo, o Budismo dividiu-se quase instantaneamente em seitas egrupos que disputaram acirradamente a autoridade sobre a doutrina, demodo que heresia e ortodoxia se confundiram como em nenhuma outraescola. Em vista disto é possível dizer quase qualquer coisa sobre oBudismo primitivo, sem que se possa expressar minimamente algo deseguro sobre o pensamento íntimo do iluminado.

O que se pode dizer com segurança, contudo, é que o Budismo é umalinha filosófica extremamente crítica, fundada nos Upanixades, e quepretendia contestar todos os elementos ritualísticos e dogmáticos dareligião instituída. É bem plausível crer que Buda era mais Sócrates do queCristo, mais intelectual do que santo, e ao menos tão cínico quantocompassivo.

A imagem que posteriormente se criou, no entanto, é a de um Budadeus, figura angélica de adoração e santo protetor para o qual se dirigemas orações da maioria dos fiéis. Relações que se estabeleceram emcontato com o xamanismo primitivo do Tibet, da China e da Birmânia.

O famoso Budismo tibetano do Dalai Lama é talvez a pior expressãoda doutrina original do Budismo, ao menos em sentido teórico edoutrinário; e com ampla aplicação de fórmulas mágicas, clericalismo eortodoxia, representa tão bem a liberalidade do Budismo primitivo quantoa Igreja romana faz juz à simplicidade dos apóstolos. Isto dizemos semolvido dos méritos e da verdadeira santidade apresentada por membrosisolados de seu corpo sacerdotal.

O Budismo é mais do que cético, é cínico. Ele não apenas põe emquestão os valores e os elementos do conhecimento, senão anulacompletamente o seu papel na economia filosófica e religiosa.

Platão era cético; ele exigia provas sólidas para qualquer espécie deafirmação e desprezava opiniões e ideias particulares. Budaprovavelmente desprezaria a própria ideia de provas e argumentos,defendendo que Platão estava tão próximo da verdade quanto qualquerum desprovido dos conhecimentos que ele propagava. Não obstante oBudismo conserva uma única verdade dogmática, derivada da observação

Page 111: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

empírica. Esta verdade desdobrada em quatro partes consiste unicamentena existência radical e inevitabilidade do sofrimento, e por isso mesmo asdemais soluções teóricas e religiosas lhe soam sempre pueris. Afinal, se osofrimento persiste entre sábios e sacerdotes, seu saber não pode valertanto quanto eles pretendem.

O ponto alto desta ausência de conhecimento é a doutrina da não-alma, ou não-mente, que muito se confunde, tanto lá quanto cá, com aaniquilação da individualidade. A primeira aparição da doutrina doanatman (não-alma) foi no tratado Samiutta-Nikaya,[1]onde se afirma quetudo o que sofre é irreal, pois transitório, de modo que corpo, mente,consciência, sendo fontes de sofrimento, só podem ser irreais. Emabsoluta semelhança à proposição junguiana sobre o ego e o self, oBudismo ataca a egoidade presente na consciência, na mente e no corpocomo a fonte de toda a sombra. Ao dizer que o self é impessoal, obudismo não está a negar o espírito, senão a alma, no sentido dapersonalidade egóica que se entende como autosubsistente e bastante.

O ponto alto do tratado lida com o monge Yamaka, cuja a alegaçãoherética foi „Assim como entendo a doutrina do abençoado, o monge queobteve a dissolução do corpo não existe após a morte, e é aniquiladojuntamente com tudo o que constituia seu sofrer.“ Tal alegação foiconsiderada escandalosa, e um grupo de monges liderados pelo velhoSariputta. O sapiente monge iniciou sua exortação lembrando: „Nãotraduza com tuas palavras o abençoado, oh Yamaka, pois o abençoadonão deve nunca ser traduzido para os nossos termos.“ E prosseguiu assim:

„De acordo Yamaka, com a doutrina original, toda a forma, seja elapassada, presente ou futura, subjetiva ou com existência exterior, sutil ougrosseira, pérfida ou excelente, longínqua ou imediata, a visão corretasegunda a alta doutrina é „isto não me pertence, isto não sou eu... Digaagora Yamaka, você considera a forma como sendo o santo?

Não, absolutamente, irmão.

Você considera, Yamaka, o santo restrito à formas?

Não, absolutamente, irmão.

Page 112: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Você considera o santo distinto de forma?

Não, absolutamente, irmão.

Que então é o santo, Yamaka, se não é corpo, mente, sensação,consciência; seria por acaso a união destes o santo?

Não, absolutamente, irmão.

Considera então Yamaka, que tu falhas em estabelecer a existência dosanto na vida presente; é razoável dizer „Assim como entendo a doutrinado abençoado, o monge que obteve a dissolução do corpo não existe apósa morte, e é aniquilado juntamente com tudo o que constituia seusofrer.“?

Irmão Sariputta, foi devido à minha ignorância que eu difundi esta loucaheresia, mas agora que recebi a tua instrução eu a abandono, pois adquiria verdadeira doutrina.

Mas e se ocorrer, irmão Yamaka, de te perguntarem o que ocorre com omonge após a dissolução do corpo, o que dirás?

Eu responderei, irmão, da seguinte maneira: a forma era transitória, e istoque era transitório era mau, e o mau cessou e desapareceu. Assim,sensação, percepção, predisposições e consciência eram transitórios, e oque é transitório é mau, e estes males desapareceram ou cessaram.“

A lógica é fina, mas não tão complexa a ponto de permitir umainterpretação literal. Está claro que verbalmente Yamaka continuaprofessando aproximadamente a mesma doutrina, mas ela agora elevou-se e qualificou-se de modo extraordinário. As alegações budistas sobre acessação não permitem, portanto, a tradução „aniquilação“,especialmente se objetivam o self original, fonte desconhecida e inefáveldo ente transitório e concentrado, que desapareceu com a iluminação.

Este tipo de filosofia não apresenta dificuldades para o pensamentoocidental. Místicos como Goethe associam o conhecimento ao elementoconcentrado, sombrio e grosseiro que podemos discernir, isolar e

Page 113: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

compreender. Todos estes elementos, contudo, incluindo nós mesmos,são as partes visíveis de um ser mais dinâmico que quer libertar-se daconcentração egoística material e expandir-se em um outro elementolivre, indeterminado, indiscernível e, portanto, incompreensível. Nossamente, estando limitada, está fadada a apenas perceber o limitado. Mas amente liberta pode vislumbrar o todo indeterminado e incognoscível, oqual, por não ser compreendido, nomeamos através de uma linguagemnegativa, simbólica e obscura.

Esta noção trágica das filosofias negativas está intimamenteassociada à temporalidade e ao estado de finitude humana, ambosvariações da perda ou restrição da liberdade. Como o yoga e outrasvertentes da filosofia indiana, o Budismo é libertarista, esperando nãomenos do que a liberdade sem restrição, e lamentando tudo o que aconstrange. Às vicissitudes do corpo e da mente, as flutuaçõesininterruptas dos acontecimentos e sensações, são imputadas as causasdo sofrimento. O Budismo eleva tanto a noção trágica da temporalidade eda espacialidade que precisa escapar para a esfera do “Nada” onde hápossibilidade de serenidade real. Mas ao contrário do que possa parecer,esta libertação do movimento não é o fim do espírito, mas a suasupremacia, já que a realidade sensória, que deve ser eliminada,corresponde a um círculo vicioso e corrupto do movimento, o tumulto, aperturbação.

“O Buda ensinava o caminho e os meios de morrer para a condição humana,para a escravidão e o sofrimento, a fim de renascer para a liberdade, abeatitude e o incondicionado do nirvana. Hesitava, porém, em falar desseincondicionado para não cair em contradição, pois ele havia admoestadoos brâmanes e os ascetas justamente porque discorriam muito sobre oinexprimível e pretendiam poder definir o Si... Tudo que se pode dizerdo habitante do nirvana, é que ele não é deste mundo.”[2]

O mais importante da percepção _ aliás, corretíssima _ de Eliadesobre os ensinamentos diretos de Buda, é que eles jamais apontam paraum ateísmo, como interpretam algumas de suas correntes tradicionais e,

Page 114: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

em geral, como é entendido no ocidente e no sul asiático. A evasiva deBuda em descrever o estado de liberação é uma proteção epistemológicaque visa evitar a mistificação dos temas que ele reconhecia comoincompreensíveis. Qualquer descrição deste estado seria não apenasredutiva, como igualmente contraditória, visto que as definições matam aessência do indefinido, do incondicionado.

Supor, no entanto, que este “nada” epistemológico represente umNada ontológico é um erro grave. Traduzindo de maneira mais direta: Onirvana é um nada para o conhecimento, porque os conceitos, limitados,não o comportam, mas não é um nada no sentido de se opor ao Ser, aoReal e a Verdade, e é lamentável que o budismo em geral seja associado aesta segunda orientação.

O monge vietnamita Thich Nhat Hanh, renomado pacifista do séculoXX, afirmava que o conhecimento budista sobre a realidade éinteiramente negativo, e que equivale às concepções da física modernasobre as partículas fundamentais da matéria. Em última análise estasdefinições apontam para a nossa ignorância e incapacidade de descrever arealidade, não para uma irrealidade[3].

O “Sutra do Diamante” (Prajna-Paramita) e a coletânea canônica doDhammapada, que formam a base dos ensinos budistas primitivos,versam unicamente sobre este assunto, e não há uma única referência emque Buda aponte para uma não-realidade ou ausência absoluta, referindoantes sempre um desconhecido, um estado tão radicalmente distinto detoda a limitação espacial, temporal e conceitual que se tornaimpronunciável e se apresenta como um incognoscível.

No fundo místico do budismo há um “grande coração compassivo”para o qual os budistas dirigem suas orações. É a este conceito e a estaexperiência que se deve valorizar quando falamos que a verdade éEspírito, para todos os seres iluminados, não para o conceito de um Deuspessoal ou para um teísmo em que Deus se apresenta como substânciadistinta da criação.

Se tudo o que o homem entende de Deus é o ídolo, o conceito queele mesmo cria e adora conforme o ponto de vista mais material, então a

Page 115: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

compreensão deste homem está fadada a voltar-se contra este deusantropomórfico, que estará sempre numa posição inferior ao própriohomem, visto que é sua criação.

Este indivíduo pode, inclusive, abandonar toda a concepçãoconceitual de Deus e voltar-se para o Deus “em ato”, que se revela nadisciplina do monge, na instrução do sábio e na ação caritativa do santo,mesmo que este aspecto muito verdadeiro de Deus, por inabilidadefilosófica de seus seguidores, seja nomeado como Universo, Humanidadeou Nada.

Em “A Caminho da Luz” revela-se a natureza original do Budismo emsua verdadeira pureza, fundado na percepção da existência de um Deustão grande e absoluto, que incompreensível. Esta percepção nunca foialheia a inúmeros praticantes e correntes budistas, e inclusive já está emcurso como que uma renascença do monismo budista, através detrabalhos como o de Masao Abe, que afirma a correlação estreita entre oZen Budismo e a mística alemã de Eckhart e Jakob Böhme.

Para o mestre Abe esta mística mostra que Deus, em última análise,é profundo mistério, um vazio ou nada para nossa consciência, mas édeste nada aparente que brota tudo, e esta contradição mostraclaramente que o nada aparente é algo desconhecido, mas efetivo. Abechega a afirmar que o Budismo é panenteísta, ou seja, enxerga tudo-em-Deus, a partir da consciência de que o abismo profundo é a fonte do ser.

Diogo Feijó, o pai espiritual do Brasil

Um século depois dos EUA, o Brasil também veria surgir em seu solo umafigura de intenso magnetismo pessoal, distinta pela excelência de suasvirtudes e pelo brilho de sua inteligência.

Como no caso de Benjamin Franklin e dos pais da pátria da Américado Norte, Diogo Feijó educou-se integralmente no seu país, mais

Page 116: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

especificamente no interior de São Paulo. Considerando-se que a capitaldeste estado provavelmente não estava entre as três cidades maisimportantes do Brasil, pode-se inferir que os estudos no interior do estadose realizaram em ambiente rural de acentuadas dificuldades. Nãoobstante, o padre obteve ilustração invulgar através da dedicação pessoale do espírito autodidata, pré-requisito que por muito tempo elamentavelmente foi obrigatório para todos os letrados do Brasil.

Feijó foi, com todas as limitações de sua formação, uma luz naeducação dos jovens. Primeiro a introduzir os estudos de filosofia comseriedade no país, tendo precária, mas corajosamente confrontado ocurrículo básico da Igreja católica com lições sobre Kant, o iluminismo e osideais libertários, sua influência e valor cultural vão muito além doapagado papel que os livros de história geralmente lhe atribuem.

Os Cadernos de Filosofia, que presentemente analisamos, contêmuma doutrina moral complata aos moldes da filosofia iluminista. Se não éoriginal, ao menos contribuiu para a inserir em língua portuguesa eterritório nacional princípios distintos dos que se pregava nos semináriosde então, e em todas as páginas o vigor e a desenvoltura com que ainteligência de Feijó apresentam o tema deixam claro a excelência de suaprópria meditação.

Em nossa economia moral íntima, conforme as leituras do padre-regente, duas propensões naturais teriam o papel de motores doautomatismo do comportamento humano. Estas propensões seriam oamor de si, o que hoje quase sempre qualificamos como egoísmo, e aestima de si, um instinto nobre e solidário, correspondendo à decêncianatural, não adquirida por educação ou esforço, que todo o indivíduo temem si pelo simples fato de ser filho de Deus.

O amor de si ou amor próprio é a fonte básica de todos os males, namedida em que pelo seu mau uso ou exagero é que o homem ultrapassaos interesses de seus semelhantes, e contraria a vontade de Deus. Deessência positiva, porque natural, o amor de si tem na sua formaespontânea e limitada a nobre função de preservar o animal biológico quepor assim dizer serve de hospedeiro para a alma. Garantindo a reprodução

Page 117: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

da espécie, a saúde do corpo ou o direito a propriedade adquirida, o amorde si cumpre sua elevada finalidade; o que deixa de ocorrer somentequando se extrapola a medida do necessário, provocando excesso danosoao corpo (p.ex. sexual, alimentar, etc) ou invadindo o espaço em quetambém deve vigorar o amor próprio de outrem, prejudicando este últimona obtenção de seus fins legítimos.

A estima de si, em contrapartida, é a propensão natural dapersonalidade humana ao bem. Enquanto a primeira busca o prazer,medida da satisfação da vontade na preservação do eu, esta segundapropensão é o instinto inato do dever, do respeito que deve o indivíduo aseus semelhantes, e mesmo da necessidade de por eles devotar-se ouabnegar-se. É de certa forma o instinto gregário ressaltado por Aristóteles.

Estas propensões automáticas naturalmente não garantiriam a vidaética do sujeito, não fosse o concurso da razão esclarecendo o indivíduosobre o funcionamento deste automatismo da vontade, e oferecendo-lhea opção de direcionar sua volição não mais conforme as propensões,senão conforme a regra da conduta estabelecida por ela (a razão). Avolição inconsciente das propensões passa assim à volição racional e,portanto, livre.

Mas aqui há uma diferença fundamental para com a agendailuminista que ele reproduz quase na íntegra. Aquém da função dainteligência em dar a norma de comportamento correta para a vontade,Feijó reforça a preponderância da piedade sobre a norma, observandoque a consciência pode inclusive vacilar diante de apuros e dilemasteóricos ou éticos. Nisto, contudo, pode auxiliá-la a revelação, que comolei objetivada que corresponde à lei subjetiva escrita na consciência. Arevelação é a voz de Deus prometendo através dos profetas e do Filho aperfeita justiça. O que a consciência sugere, mas não pode garantir, arevelação promete com firmeza: “Sê virtuoso e serás feliz!”[1] É o motefundamental de toda a religião.

Certificado pela revelação, o homem tem a força necessária paraenfrentar todas as privações que as grandes tarefas podem exigir. Se umavida de agrura e sacrifício se fazem necessária ao cumprimento do dever,

Page 118: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

especialmente se este inclui o bem coletivo, a promessa da felicidadeeterna é o único lenitivo com o qual pode consolar-se.

Pois bem; o que garantiria então a correção do comportamento, seapesar do que apontavam razão e revelação a vontade permanecia emposse de todo o poder deliberativo? Não poderia o homem enxergar ocerto e desejar, ainda e contudo, o erro? Não, responde o pensadorbrasileiro, pois tanto a razão quanto o sentimento de piedade aplicariamsobre o sentimentos do homem o aguilhão do arrependimento e daconsternação sempre que a vontade teimar em ignorar os avisos da mentee do coração. A regra moral que Deus permite aos homens desvendar porestudo e experiência não apenas sugere o bem, mas pune o mal. Épreciso, portanto, estudar quais são as condições em que nossaconsciência exerce sobre nosso organismo moral esta imputação.

As exigências morais que o padre iluminista impunha a si mesmo, eaconselhava aos demais, eram das mais rigorosas. Praticamente qualquerdesvio da intenção, do pensamento ou do desejo poderia ser imputadomoralmente ao homem. Omissão, conivência e negligência do deverseriam tão imputáveis quanto a própria execução do crime, embora emgrau menor. Jamais uma participação, mesmo que inconsciente, numafalha moral pode ser ignorada do juízo da consciência, quanto menos dodivino. O indivíduo só estaria isento da participação no mal se ele além denão o desejar tiver feito todos os esforços a sua disposição para o evitar erepudiar, inspirando nos demais o mesmo zelo. Observemos nas própriaspalavras do magnífico regente a tábua das imputações em todos os seusdetalhes:

... quando o homem faz quanto pode para corrigir seus hábitos e moderarsuas paixões; quando o arrependimento do pecado retrata o efeito desseshábitos e paixões, eu não sei como se lhe pode imputar semelhantesações ou omissões.

As ações praticadas com diminuição de liberdade serão mais ou menosimputáveis, segundo a força do sentimento moral e motivos mais ou

Page 119: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

menos obrigantes oferecidos pela razão, segundo temperamento eeducação...

Como muitos podem ser autores de uma só ação deve-se examinar-lhe ograu de influência que cada um teve nela, para se-lhe imputar.

Pode o autor ser causa única ou cooperadora; cooperar igualmente oucom desigualdade; ser causa principal ou subalterna; ser causa próxima ouremota; imediata ou mediata.

Pode influir no entendimento suscitando a ideia da ação, por conselho,exemplo ou por qualquer sinal. Pode influir na vontade mandando,ameaçando, rogando facilitando ou aprovando.

(E por último o motivo que todos reconhecem ser o predominante) Podeinfluir na ação deixando de fazer o que devia para embaraçá-la.[2]

Em relação aos deveres para consigo mesmo, que se dividem emdeveres para com o corpo, a vontade e o espírito, todos compartilham arecomendação da disciplina e educação dos hábitos. O esforço derepetição do comportamento virtuoso, saudável ou feliz, garantiriam, paraFeijó a adequação do corpo, da vontade e do espírito às tarefas elevadas,descondicionando o homem de seus padrões atávicos e instintos incultos.

Por fim o dever da beneficência extrapola completamente o âmbitoda ética restritiva e exige uma noção positiva. A beneficência é aobrigação de fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fizessem, o quenão se confunde com as limitações do nosso comportamento visando nãoo prejudicar. O dever da beneficência, mais que isso, exige o sacrifício, acaridade e o devotamento do indivíduo aos demais, sem outro interesseque não seja o do bem alheio e coletivo. É de acordo com este dever quese executam as ações heroicas e santificadas que marcam umacomunidade no curso da história, e é o cumprimento dele que maisressalta um indivíduo aos olhos de Deus.

Saindo do plano teórico da filosofia moral para o aspecto maisprático da edificação e da confissão de fé, nosso patrono espiritual revela

Page 120: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ainda maior familiaridade e grandeza no trato dos assuntos pertinentes àreforma interior. Reproduzimos a seguir pequenos trechos dotexto Retrato do homem de honra e verdadeiro sábio:

O sábio e homem honrado põe a sua felicidade em temer a Deus, e em lheser fiel; olha o pecado como o maior dos males e quisera antes perdertudo que cometê-lo.

Fala sempre com o maior respeito de Deus, de religião, das coisas santas,e dos maiores: nem murmura deles, nem o consente fazer, se pode. Nãose envergonha de ser devoto, nem de o parecer; mas evita exteriores, quefaria ridicularizar a piedade.

Nenhum interesse é capaz de o fazer mentir e faltar à verdade; mas nãojura por ela: e sabe guardar segredo a tempo, e sem mentir jamais...

É dócil e afável até com os pequenos: nunca mostra desigualdade dehumor e de gênio, que o faça odioso e insuportável; tem sempre um rostosereno, e esta amável alegria, companheira da inocência e da bondade docoração; naturalmente é civil e político com todos e se contrafaz para nãomolestar alguém...

Seu gosto é fazer bem, antes que lho peçam, e quando não pode, sedesculpa em termos tão sinceros e corteses, que obriga e encanta; ejamais se jacta do benefício que faz; nem se esquece do que lhe fazem...Não tem inveja da fortuna dos outros... Sabe se acomodar-se a todos osespíritos e a todos os gênios, quando a decência e a sabedoria opermitem; e se porta de modo que a ninguém desagrada...[3]

O texto completo é longo, mas todo ele marcado pela mesmadignidade. Seria conveniente que todo o gênero humano o conhecessemais de perto. Para resumir, no entanto, observamos que a ninguém édado falar e escrever com um força que não possui, e se nosso sábio epiedoso autor nos encanta com o retrato do modelo de homem moral, éporque pôde retirar de si esta viva imagem, que para nós quase comoutopia se apresenta. Todos os que que se habituaram a ler discursosmorais e religiosos sabem o quão detestavelmente vazios e

Page 121: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

evidentemente hipócritas são os termos daqueles que pretendem emularuma virtude que não possuem; e tentando imitá-la, deturpam-na.

Em toda a sua vida Feijó nos apresentou este mesmo retrato daretidão. Renunciando ao poder que muitos cobiçavam e que ele aceitoucomo obrigação do dever, deu a prova de que em nenhuma circunstânciaestava à venda a sua consciência. A dedicação com que exerceu o cargo deregente do Império, motivado exclusivamente por amor à pátria e aopovo, deveria envergonhar para sempre todos os homens públicos quesequer pensaram em os desonrar. Este que foi provavelmente o nomemais ilustre dentre os que nos governaram, não obteve o cargo nem pordireito, como os imperadores, nem pelo voto, como os presidentes, mas,como para destacar-lhe a distinção, foi escolhido em situação de urgência,quando a nação necessitava de uma figura dotada de inquestionávelcaráter e destacada competência. A quem, em nosso atual cenáriopúblico, poderíamos apontar?

Ao lado do cortejo inumerável de infelizes réprobos da pátria,elevados pelo seu poder ou pela irresponsabilidade das multidões aopapel de líderes, restará sempre o nome de Feijó como símbolo doorgulho coletivo. Nele podem os brasileiros, como em muito poucosoutros indivíduos de nossa memória, buscar a inspiração para ocumprimento dos destinos do país.

Bibliografia:

FEIJÓ, Diogo A. Cadernos de Filosofia. Ed. Miguel Reale. São Paulo: Grijalbo, 1967.

Benjamin Franklin, o pai espiritual da América

Page 122: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Quando as nações se organizam e assumem um papel efetivo nahistória, é invariavelmente por intermédio de certos gênios do campopolítico, cultural, econômico, religioso ou militar. A passagem de umapopulação de seu estado informe e caótico para a ordem de estado, comcertos valores e leis instituidos, requer sempre, o que é comprovado peloestudo histórico, o recurso do carisma pessoal e do sacrifício de alguns noinstante crucial de fundação da pátria.

A vida de Benjamin Franklin é uma daquelas que mais servem derepositório inesgotável de aprendizado e admiração por parte daquelesque a analisam, reforçando a tese de que não é pelo acaso nem aqualquer um dada a glória de orientar um povo em sua marcha pelodeserto, rumo ao descanço na terra prometida.

De origem extremamente pobre, tendo de instruir-se por esforçopróprio, trabalhando desde o início da adolescência, como era comum aosjovens da época, e saindo ainda muito jovem pelo mundo em busca deoportunidades de estudo e carreira, Benjamin expressava sem ressalvas ossinais do gênio universal que haveria de se tornar.

Escritor de panfletos, artigos jornalísticos e satíricos; pioneiro naspesquisas sobre a eletricidade, figura de liderança em qualquer associaçãoque gozou da graça de sua presença, patrono da insurreição contra a Grã-Bretanha em favor da independência, organizador e inspirador mor daconstituição, filantropo destacado, moralista e delegado científico ediplomático dos EUA na Europa, o pai da pátria americana parece terexercido não apenas todos os encargos de prestígio social e intelectual,como os fez sempre com uma força incomparável, o que garantiu osresultados duradouros de todas as suas diversas iniciativas.

A sociedade de ciências médicas de Paris teria pronunciado sobreele: “Se um americano, um filósofo de terras selvagens, solucionou algunsdos maiores desafios da ciência europeia, a razão há de ser mesmo algouniversal.”[1] Veja-se que até os franceses o elogiavam.

Ao invés de citar suas evidentes contribuições políticas, gostaríamosde destacar uma obra filantrópica que, embora com muito menosprojeção, demonstra ainda melhor o caráter caritativo que logo lhe tornou

Page 123: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

respeitado em todo o país. Falamos da primeira biblioteca públicaestabelecida nas Américas.

A organização da biblioteca da Filadélfia, por volta dos anos 1730,foi um dos eventos mais relevantes para o desenvolvimento da culturaamericana, e uma prova do vigor dos ideais puritanos e iluministas noNovo Mundo. Sem a iniciativa de Franklin e outros amigos por eleselecionados, que não apenas organizaram, como inclusive doaram de seuacervo pessoal a maioria dos livros, a iniciativa jamais teria seconcretizado. O espírito dos Estados Unidos dava aí uma mostra dainiciativa e da capacidade de associação comunitária que logo lhegarantiria o sucesso econômico e político que conhecemos. Em nenhummomento ocorreu aos idealizadores da biblioteca solicitar apoio deentidades governamentais ou instituições. Ao invés disto organizaram efinanciaram todo o empreendimento de uma entidade pública, somentecom o trabalho dos indivíduos, nem sempre abstados.

Naquela época, quase toda a ilustração política em língua inglesaestava limitada aos Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke, emesmo este título era desconhecido da maioria dos americanos. Após aorganização da biblioteca por Franklin, este tornou-se rapidamente umdos livros mais requisitados, e foi tão impactante a sua repercussão quenove dos delegados responsáveis pela assinatura da Declaraçãode Independência afirmam só ter lido a versão doada por Franklin.[2] Estefato é mais que suficiente para alertar-nos para as dificuldadesgigantescas de se obter livros nas Américas do século XVIII. Os desafiosenfrentados pelos latino-americanos devem ter sido bem mais graves.

A biblioteca da Filadélfia acabou tornando-se mais do que umrepositório de livros; Franklin observou logo que parte do atraso científicoda América se devia aos altíssimos preços da aparelhagem científica, cujositens eram sem exceção importados. Para que o pesquisador americanonão permanecesse impedido de prosseguir com seus estudos, a sociedadede amigos fundadores da biblioteca dispôs também uma linha de fundospara a compra deste equipamento.

Page 124: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Já é bem conhecido, por outro lado, o papel de Franklin comocientista. Sua célebre experiência com a pipa foi apenas o final de umalonga série de estudos com diversos materiais, o que só se pôde efetivarcom aparelhos inventados e construídos por ele. A guerra entre ascorrentes empirista e racionalista acerca da eletricidade foipermanentemente desequilibrada em favor dos primeiros, tudo graças aoimpacto do trabalho de Franklin. Por quase dois séculos (até as revoluçõesde Einstein), a filosofia foi expulsa do investigação científica; fato que,conquanto doa aos amantes da filosofia, foi extremamente benéficonaquele momento histórico.

Mais interessante do que seus inúmeros trabalhos caritativos,empresariais, científicos e comunitários são suas meditações éticas ereligiosas. O cronograma diário do pai da pátria era dominado por oitohoras de trabalho “obrigatórias”, onde naturalmente a obrigação eravoluntária, pois ele era dono do próprio negócio, duas horas de intervalopara almoço, que incluía a leitura de jornais, um momento após o trabalhopara a “questão do entardecer”, momento em que ele se perguntavasempre a mesma coisa: “Que bem fiz eu no dia de hoje?”. Em sua buscapor uma disciplina de vida quase monástica ele estabeleceu também oshorários inalteráveis para o sono, as refeições, a música e eventuaisconversações.

Por volta desta mesma época, o sábio criou para si uma tábua devirtudes; mandamentos que ele se comprometia a seguir no melhor desuas forças, juízo e possibilidades. Começando pelas que ele consideravamais fáceis de cumprir (difícil dizer se para si ou para todo o gênerohumano) e terminando nas virtudes heroicas da castidade e da humildade,que ele considerava só serem apresentadas pelos santos. Esta última teriauma única regra: “imitar as vidas de Jesus e Sócrates”. Regra que, noentanto, o pai da América considerava virtualmente impossível de secumprir à risca.

Entre as virtudes primárias ele elenca o comedimento, oumoderação, e o silêncio, ambas essencialmente formas de autocontrole edisciplina. Mas através destas simples virtudes o homem pode não apenas

Page 125: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

educar-se para outras maiores como evitar inúmeros males para si e paraos que lhe estão próximos.

Exatamente como o outro herói pátrio que analisaremos a seguir,Antônio Diogo Feijó, Benjamin relaciona intimamente a virtude ao devercívico. A moralidade não é, para estes gigantes, uma regra de conduta ouamadurecimento pessoais, senão os meios para o bem geral. Ambosmoralistas e políticos, combinação que nos soa tão estranha atualmente,acreditavam ser o papel dos homens reformarem-se o mais rápida ecompletamente possível, para que o destino longamente ansiado epreparado pela Providência possa se concretizar.

Daí o fato de ser para Franklin a humildade a virtude maior.Somente aqueles capazes de devotamento e abnegação podemempreender grandes feitos públicos. Se um indivíduo desonra sua nação,nos mais pequenos detalhes, se tem seus interesses ou mesmo ideias emprimeiro plano, jamais poderá levar consigo a liderança moral dasociedade, estando suas obras fadadas a expirar na memória coletiva. Osgrandes feitos só se eternizam quando escorados pela autoridade moralque a todas as almas cativa, em todas as épocas. Somente estes podemrealmente alimentar a chama do ideal e do sacrifício coletivo com que seestabelece o progresso. Sem isto todos os líderes são agitadores ehipócritas, capazes de excitar e manobrar por um momento o ânimo dasmassas, mas desprovidos de força para arrastar consigo os corações aomartírio.

[1] Carla MULFORD. Cambridge Companion to Benjamin Franklin. Pg. 79.

[2] Carla MULFORD. Cambridge Companion to Benjamin Franklin. Pg. 13.

Page 126: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O vazio de um mundo sem sonhos.

Como ser de liberdade, condenado a escolher seus próprios rumos ediretrizes, o homem não tem outra missão senão aquela que impõemomentaneamente sobre si mesmo.

Enquanto as provas são inerentes à vida, derivando diretamente dosdesafios que ela a todos impõe, e ao passo que a expiação dos males estáa cargo do automatismo da lei moral quanto física de causa e efeito, atarefa missionária diferencia-se por sua dependência total da adesãovoluntária.

Num sentido menos espiritual, como o da filosofia existencialista, ohomem pode propor-se qualquer espécie de projeto de vida, sendo suarealização pessoal um subproduto da aplicação deste projeto. A desgraça,para a popular filosofia existencialista do século XX, estaria em não sepossuir um projeto, situação na qual o homem, não tendo referenciaisexternos de julgamento, perderia a capacidade de valorizar e julgar osfatos de sua existência.

O que podemos aproveitar desta filosofia, mesmo quandoacreditamos em valores essenciais e conhecíveis, é a realidade psicológicadesta afirmação, uma vez que a grande descoberta do existencialismo estáem saber que a posição do homem em relação ao mundo está na razãodireta da forma como ele escolhe reagir e se relacionar com ele.

Ora, isto é perfeitamente admissível ao homem religioso,particularmente ciente da esterilidade da crença na ausência docompromisso. Ideias e valores tem a sua força na medida em que osassumimos e com a energia com que os assumimos. Fora isto não háressonância entre a crença e a vida prática, entre o que aceitamos com aopinião e o que acolhemos com a vontade e o sentimento.

Nossa vida tem o sentido que fazemos, e tal é em consequência aimportância dos projetos. É pelos nossos projetos que organizamos todo onosso ser _ intelectual, volitivo e sentimental _ para o enfrentamento dosdesafios do mundo. Sem um projeto, ou vários, nossa existência émeramente automática; a inteligência se limita a entender, sem criar; a

Page 127: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

vontade se restringe ao desejo, sem inflamar-se diante dos grandesdesafios ou renovar-se para a persistência nos trabalhos árduos; e osentimento, pobre e lastimável, atrofia-se em órgão destinado aoentretenimento, desperto somente por estímulo exterior e casual,perdendo toda a sua função dignificadora e embelezadora que, aplicada aum propósito qualquer, torna-o um sonho, um ideal.

O combustível do projeto idealizado para o futuro não demandarefinamento para dar partida no motor da vontade humana. A maissimples meta tem poder suficiente para organizar e focar o turbilhão dosdesejos dissonantes em um objetivo de vida, ainda que temporário; opensamento reage deixando de vagar em perturbação, e fixa-sealegremente nos planos e análises das condições de execução; o homemontem perdido na sucessão das ideias e interesses desencontrados, meroreceptor de notícia, estímulo e influencia, passa instantaneamente aprodutor destas e de outras relações.

Imagine-se um homem que, assolado pelo desânimo da falta deperspectivas, tem toda a sua ação limitada à manutenção do corpo e àcata de distração que lhe mantenha o espírito longe do desgosto depensar em seu estado. Ponha-se uma única meta de difícil realização aeste indivíduo e o veremos transformar-se como por encanto. Logo ocidadão é todo planos, fala de seus objetivos com empolgação, esquece-sedo prazer imediato e poupa, ou estuda, ou se exercita em algum esporteou arte. Visto de fora este homem recebe com frequência críticasmaliciosas por voltar suas forças para fins tão mundanos como a aquisiçãode um carro, o progresso na ginástica ou a conclusão de um pequenocurso, mas se suspeitassem dos benefícios que o mesmo colhe, setivessem em mente que há pouco este alegre e dedicado indivíduo estavamergulhado em marasmo e talvez a beira da depressão, outra seriadecerto sua atitude.

Qualquer cometimento sério é meritório, diríamos mesmo que ésagrado, pelos resultados que traz ao indivíduo que se lança ao trabalho.O milagre de resgatar uma vida do vazio e da paralisia, tornando-a útil àcoletividade e saudável para o seu dono, é também um milagre da fé,visto que a fé é, entre outras, a forma básica da confiança e do

Page 128: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

comprometimento existencial consigo mesmo e com o mundo. Convença-se um homem de que o mundo está contra ele, de que todos os seusesforços não serão recompensados, de que ele não possui valor oucapacidade, e ele não alimentará sonho algum. Desperte-se nele, aocontrário, uma autoconfiança inabalável, fazendo desta criatura humilde oherdeiro da divindade, coloque-se diante de seu olhar um universobenigno que o ampara em todos os seus projetos mais nobres, e logo eleestará com a mente fervilhando das mais elevadas concepções.

Quando a fé mingua, o sonho esmorece com ela, e quando o sonho,que é o compromisso com a transformação, deixa de orientar o projeto devida de um indivíduo, este perde a parte melhor da liberdade, a sua forçacriativa e expansiva. Resta somente uma liberdade ética, de escolher entreo certo e o errado, mas não há mais liberdade para crescer, para seexpandir.

A conduta moral correta é por si só meritória, mas ela é improvávelse não estiver constantemente impulsionada pelo espírito de sacrifício ededicação extremos que somente a fé num projeto nobre proporciona.Por isso é tão importante ter-se um referencial; ele não constitui umavirtude por si mesmo, mas cria em nós um vigor, uma disposiçãopsicológica e existencial para superar barreiras internas que antespareciam maiores.

É de pouca importância o resultado final de um programa grandioso.Se o sonho se realiza ou não, é questão secundária. O valor de sonhar estáem fazer crescer diante dos olhos da imaginação o próprio valor, e comele a própria responsabilidade. Não há que se desacreditar da importânciada colheita, pois também ela é necessária para a economia do mundo,quanto para a do espírito, mas no estágio em que a humanidade seencontra o exercício é muitas vezes mais essencial do que os seusresultados, de modo que lançar-se a um objetivo fútil e banal agoraprepara o homem para esforços maiores no futuro. Com que outropropósito poderia a ordem do mundo dispor-nos a tantas ocupações vãs?Por que afinal tem a Suprema Inteligência tanto gosto em nos deixarentregues à nossa própria liberdade, se em todas as nossas ínfimas e

Page 129: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

simplórias atividades não estivéssemos também sutilmente envolvidosnuma tarefa grandiosa?

Tal tarefa não há de ser outra que a construção de nós mesmos, epara ela concorrem decerto todos os nossos esforços num cenário em quenem o mundo nem a humanidade parecem tirar grande proveito deles.

O filosofia moral do liberalismo (o político, não o econômico) dizque o valor de um homem está no grau de exigência que ele impõe sobresi mesmo. Se a exigência é mínima, o seu valor é equivalente, mas senossa exigência for extrema, também elevado será nosso valor, pois nossoesforço produz sempre resultados proporcionais. Esta percepção coincidecom a velha sabedoria das religiões e filosofias que pregam o desapego,considerando os frutos aparentes sempre como consequênciascondicionadas a outros fatores exteriores ao trabalho do indivíduo.Garantidos, no entanto, são os frutos interiores que toda atividade ensejapelo simples fato de nos ocuparmos dela com persistência.

A disciplina, a força de vontade, o conhecimento, o hábito, ahabilidade, a simpatia, o gosto, o apreço e a sabedoria se adquirem comesforço, mesmo quando o propósito deste não está a altura de sua funçãoengrandecedora do espírito. Por isso podemos dizer com desassombroserem as metas mais vulgares sumamente úteis para o crescimentointerior.

Mas, ao passo que toda a atividade justa é proveitosa, os objetivoselevados guardam para nós recompensas ainda mais desejáveis. E se nosdesembaraçamos de compromissos com os resultados, nada nos obsta atraçar limites cada vez mais altos às nossas exigências pessoais, já que afrustração pelo eventual insucesso deve desaparecer na medida em quedermos mais valor ao comprometimento do que aos seus produtosvisíveis.

As pessoas mais exitosas no cultivo do espírito sempre foram as quese dedicaram aos ideais mais elevados. A arte, a ciência, a religião, ajustiça, a humanidade, a saúde, a educação, o progresso, a ordem; estesos objetivos das almas que mais crescem aos olhos de Deus. O empenhode qualquer ação em prol destes fins exige uma cota extra de sacrifício,

Page 130: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

paciência, estudo, tolerância, devotamento e transformação íntima, demodo que a existência aparentemente mais fugaz e apagada aos olhos domundo pode ter sido a mais radiante para a aquisição do patrimônioeterno. Além disso o simples fato de almejar os objetivos mais elevadoscoloca a mente em estado diferenciado, minorando instantaneamente osmalefícios da visão acanhada da vida presente e das circunstânciasisoladas. O ideal alarga os horizontes do futuro e enobrece o passado e opresente. As conquistas do homem tornam-se mais evidentes, e menosrelevantes os seus vícios e misérias. A grandeza do espírito nunca é maisevidente do que quando nos deparamos com ideias e realizações de altacomplexidade em tempos remotos. Imagine-se a complexidade damatemática, o talento do escultor, o gênio do político, a grandeza dosanto de há dois mil anos, e nosso ser não pode experimentar senãoassombro e admiração, reverenciando intimamente aqueles que com tãopouco tanto fizeram.

Quanto mais alto elevar-se nossa visão, mais nos obrigaremos asubir. Até o ponto em que nos parecerá viável desejar o que estas grandesalmas desejaram. Se conseguirmos manter esta expectativa sobre nós

mesmos, não de uma forma tirânica, mas com a consciência de que esta éuma meta auto-imposta, as nossas energias logo saberão organizar-senuma frequência correspondentemente mais intensa.

Moral não!

Este texto pretende responder a um questionamento geral quanto aopropósito dos estudos meramente teóricos do Espiritismo. É deconhecimento comum entre os adeptos desta filosofia o fato de haveralguma divergência entre os adeptos de uma versão intelectualista e os deuma outra mais evangélica da Doutrina Espírita.

Muitas pessoas, inclusive parentes e amigos que acompanham estapágina, observaram que ela pode estar excessivamente voltada para apauta teórica do Espiritismo, dando a entender, esperamos que

Page 131: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

erroneamente, um desinteresse nosso pelas questões mais propriamentemorais. Queremos defender por este texto a alegação de que, muito aocontrário, as questões morais, práticas e evangélicas ocupam o topo dopódio de nossas preocupações, o que está de certa forma implícito emtodo o nosso trabalho, mas que, de fato, exige um esclarecimentoespecífico.

Ocorre que não queremos ferir a inteligência do leitor, nem desonrara sua confiança, desviando-nos para objetos alheios ao nosso domínio.

A exposição teórica exige tão somente leitura, que por sua vez nãodemanda mais do que a mera alfabetização, disponível à maioria. Aexortação à bem-aventurança não prescinde da autoridade moral que só avivência proporciona. Não reconhecendo em nós esta vivência, soa-nossempre mal recomendar a virtude. Por isso nos esforçamos para não ofazer, ou fazê-lo estritamente conforme a recomendação de terceiros,devidamente citados como os autores da prédiga.

Um antigo ditado dos sábios medievais afirma que o própriosatanás, apesar de toda a sua malícia, tem pudor de falar das coisassagradas, que inclusive o constrangem. O mesmo pode ser aplicado aqualquer pessoa que se sinta hipócrita ao discursar sobre virtudes que nãopossui; e até os falsos profetas, cujo deleite é a dissimulação da aura deelevação, não são capazes de a emular, tratando exclusivamente dasbençãos mais materiais e das ameaças do inferno. Nada conhecendo daverdadeira pureza, não a podem encenar.

Observe-se se não é assim que os falsos cristãos de hoje pregam,com a linguagem afetada e um apego excessivo às metáforas maisgrosseiras das escrituras. Acreditamos ser este o caminho inevitável de umdiscurso divorciado da lucidez que somente a experiência assegura.

É por isso que não fazemos e não recomendamos que se façaprosélito da virtude, salvo no caso de se a possuir. Os riscos envolvidos aose falar daquilo que se desconhece é o de transmitir informação errôneaou de contradizer-se, pelo comportamento, aquilo que foi dito. São riscosdemasiado grandes para quem guarda respeito pelo objeto do discurso, eem relação ao que é divino nosso pudor deve ser ilimitado.

Page 132: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Não há, contudo, do que nos lamentarmos, as pessoas autorizadas afalar da virtude com conhecimento de causa são em número suficiente.Basta-nos reproduzir os seus relatos e recomendar os seus escritos, e comisto fazemos muito, sem nos comprometermos. O Espiritismo tem acontento os seus próprios santos e santas, e assume ainda os de outrastradições com igual veneração. Mas ah, quantos de nós e quãofrequentemente lhes ouvimos as palavras e seguimos o exemplo. Muitopelo contrário, se nos oferecem a própria experiência os acusamos devaidosos.

Cito o caso de Divaldo Franco, de quem já ouvimos pessoalmente oupor vídeos os inúmeros exemplos diretos de exercício das mais altasvirtudes sacrificiais e de perseverança. Quantas não foram as vezes queconstatamos com tristeza os comentários jocosos de outros ouvintesdeste explêndido orador e herói moral.

_ Vê!_ diz o galhofeiro_ o homem aponta a si mesmo comoexemplo. Que orgulho.

Infeliz do que assim procede, pois se tivesse mais comedimento emdestilar semelhante veneno poupar-se-ia de inúmeros compromissosnefastos, típicos de quem semeia a intriga pelo verbo indisciplinado. É tãoraro surgir entre os pobres homens um que ostente dois ou três traços deum caráter mais depurado. E quando surgem e o exercem sem mácula pormuitas décadas, ainda é com modéstia que o divulgam, cuidando para quediminua ao máximo o mérito pessoal e cresça, às vezes exageradamente,o mérito da boa inspiração. Tais homens e mulheres levantam o ânimodos vacilantes e dão a prova concreta da grandeza de espírito que adisciplina e a dedicação de muitas vidas pode produzir nos indivíduos;também em nós outros. Se um destes homens de bem fala abertamentesobre uma provação que viveu ou um gesto de nobreza que praticou éestritamente, não o duvideis, para enternecer no íntimo o ouvinte, eporque o exemplo, quando pode ser dado em primeira mão, éinvariavelmente mais forte do que ao ser reproduzido em segunda.

Não é por outro motivo que o Cristo veio ao mundo viver asmisérias humanas, pois se outro pudesse causar o mesmo efeito, bastaria

Page 133: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

a leitura dos feitos dos profetas. E quantas vezes não lembrou o messiasda importância de estar ele conosco, vivendo e exemplificando suadoutrina, e de que logo após a sua partida seria esquecido?

O espírito dos que habitam a Terra é por demais frágil, sua memóriaé por demais nebulosa para que ele retenha firmemente o que aprendeupor relato. É preciso ver, ouvir e testemunhar a virtude face a face, sem oque nosso ser não se confrange. É preciso que venham ainda muitossantos e profetas, que vivam os dons celestiais diante de nós, e que falemcom a voz da autoridade, antes que comecemos a seguir-lhes os passos.

Quando e enquanto os tivermos diante de nós, sejamos todoouvidos, seja a nossa atitude de pura recepção, para que imantados a umdestes espíritos mais maduros possamos imitiar-lhes o comportamento,uma vez que entre as crianças a imitação consiste o melhor recurso deaprendizado.

O monstro democrático e a espada da justiça.

Alexis de Tocqueville em seu livro Democracia na América,seguramente o mais importante tratado sobre a democracia jamaisescrito, escreve estas palavras tão atuais quanto nunca:

A sociedade está quieta, não porque esteja ciente de sua força e bem-estar, senão, aocontrário, por acreditar-se fraca e frágil; ela teme morrer ao menor esforço. Todos sentem quetudo vai mal, mas ninguém possui a coragem e a energia necessárias para buscar algo melhor;temos desejos, mágoas, sofrimentos e alegrias que não produzem nada duradouro,semelhantes às paixões do idoso que fenecem na impotência.[1]

Não, o autor não conheceu o Brasil. Ele se referia aos Estados Unidosem um de seus melhores momentos, em fins da década de 1830, quandoo erudito pensador político visitou a grande jovem nação sob o encargo deanalisar o modelo jurídico e especialmente o sistema carcerário dosamericanos.

Page 134: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A análise se aplica, entretanto, ao caso brasileiro, como a outros emque a inspiração democrática dos Estados Unidos vingou, apesar dospesares, e o quadro um tanto quanto tristonho pintado por um idealistaque via pela primeira vez a realização política somente concebida pelosfilósofos é até certo ponto um sintoma positivo do vigor da democracia.

Ocorre que este estado angustiante de coisas descrito porTocqueville inexiste sob o governo aristocrático, onde o povo tem apenasa opção de servir ou rebelar-se. Na democracia revolução e servidão nãofazem o menor sentido. É uma utopia falar de revolução para umasociedade democrática, pois cada indivíduo já goza de uma liberdade, ouda posse de uma certa quantidade de bens, que torna qualquer sonhorevolucionário um possível pesadelo para o cidadão mediano; e a merapossibilidade de criar um pesadelo é ameaça suficiente para que aspessoas desistam de qualquer sonho, no que agem com muito acerto. Aservidão, como obediência civil absoluta, também não encontra eco ondeas pessoas já provaram o gosto da liberdade, por menor que seja. Ahumanidade viu apenas progresso da tirania para a democracia, jamais umretrocesso, pelo que se pode supor que este movimento seja irreversível.

Alexis de Tocqueville

Entretanto, como observa o perspicaz escritor político, uma novavariação do mal social é inaugurado com a democracia, a ditaduraintelectual das massas. Não é mais uma elite que exerce o governoabsoluto da opinião, mas a massa irrefreável, que com o poder do voto, daopinião pública e das instituições democráticas exerce coerção quase

Page 135: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

irresistível sobre as opiniões minoritárias. Se a maioria é socialista, logo aescola extrapola sua função educacional para ser palco ideológico doprofessor adepto. Se a maioria é materialista, a mídia debocha daprofissão de fé e das questões de foro íntimo que só competem aoindivíduo. Se a maioria é amante do futebol, os recursos públicos sãovoltados para este esporte, asfixiando os sonhos daqueles queapresentam maior talento para o vôlei, a dança ou a ginástica. De todas asformas, não importa qual seja a ideologia dominante, ela apropria-seindevidamente das instituições democráticas e desvia capacidades erecursos de sua verdadeira função. A massa é burra, porque não temindividualidade, é desumana, pelo mesmo motivo. Seus interesses são osgenéricos, pois ela não tem alma, mente ou coração próprios, mas é antesuma coisa amorfa que se apossa das almas, mentes e corações, tornandotudo impessoal para atingir seus fins.

A única proteção contra esta ditadura invisível da massa é o rigor nadefesa dos direitos individuais. Para que a minoria não seja esmagada poruma ditadura da opinião das massas, é preciso restringir a democraciaaquelas questões que ultrapassam o foro íntimo e o direito do indivíduo,ou em outras palavras, aquilo que não interessa ao público. Minhas idéias,crenças pessoais, religião, posição, propriedades, corpo e trânsito devemser rigorosamente protegidos de um súbito assalto da opinião pública,pois esta, não sendo racional, previsível ou disciplinada em nenhumaspecto, pode querer apossar-se de qualquer um destes valores dos quaissomente eu sou o senhor legítimo. Após me usar para seus finstemporários e instáveis, a massa seguirá para outros interesses,encontrará outro alvo para a histeria coletiva que sempre se justifica como moralismo sofistico dos justiceiros, mas deixará para trás o rastro dedestruição das vidas individuais.

Nos lugares em que a ditadura da maioria se estabeleceu semnenhuma restrição, como a União Soviética, Cuba e China, as vidas dedezenas de milhões de pessoas foram brutalmente arrancadas das mãosàs quais pertenciam. Crianças instruídas nas escolas a denunciar os pais,desaparecidos ou condenados pelo fato de falar ou escrever contra opartido, e todos os horrores da tortura e da castração foram perpetrados

Page 136: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

por não haver restrição à arbitrariedade da massa ensandecida. E mesmonos EUA, onde os direitos individuais encabeçam desde sempre asdiretrizes da constituição, o coro das massas, em seus modismos esimplismos, conseguiu arrebatar de alguns aqueles mesmos direitosfundamentais que as leis preservam, mas que a sociedade pode sempredenegrir.

Com a relativa vitória do modelo americano sobre a ditaduraoficializada das massas, espraiaram-se os valores do estado de direito, danecessidade absoluta de uma constituição efetiva, da preservação dosdireitos universais do cidadão e da democracia inclusiva, isto é compreservação da voz das minorias.

Ainda assim, como ocorre desde a sua fundação nos EUA, ademocracia representativa moderna carece permanentemente devigilância e regulação para não descambar em ditadura da opinião, o quepoderia fazer com que, solapadas as leis e instituições, uma ditadura defato se instaure.

Combater este processo é a obrigação de todo o cidadão livre eracional, e para isto pode ele contribuir zelando para que a opinião públicanão extrapole os seus limites de legitimidade. Ao professor cabe formarum cidadão apto a ter uma opinião própria, não formar a opinião. Aodivulgador cabe trazer a notícia e, na medida do possível, apresentar osdistintos partidos, seus prós e contras, não aderir a uma posição, pelo quedeixa de ser comunicador para ser propagandista. O funcionário públicodeve repartir os recursos e gerar facilidades de acordo com asnecessidades de todos e de cada um, jamais segundo suas crençaspessoais e interesses partidários. São diretrizes quase ideais, visto quepoucos as aplicam, mas não há dificuldade na sua compreensão ouexecução, requerendo apenas mudança de atitude de nossa parte.

Se nos preservamos de abusar dos cargos e acesso às instituições,podemos exercer nossa crença, ideologia e opinião com uma qualidadediferenciada, bafejadas pela nossa própria autoridade como sujeitos livrese idôneos. Esta é a força legítima de que qualquer um pode lançar mão

Page 137: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

responsavelmente, e todos os verdadeiros reformadores da humanidadenão usaram mais do que ela.

Mas para além destas diretrizes éticas o direito individual nãoencontra outra proteção contra o abuso da tirania democrática que não ado poder legislativo.

Somente o poder legislativo está imune aos ataques de histeria,irresponsabilidade ou indiferença da opinião pública, pois o judiciárioguarda uma distância segura do voto, mecanismo sempre corruptívelpelas massas. Por isso é tão fundamental que o judiciário tenha um papeldestacado na constituição, o que não acontecendo redundará emcapitulação absoluta do direito à arbitrariedade da massa. Numademocracia como a do Brasil, onde o judiciário é fraco, a impunidadeimpera, o desmando dos poderosos é desavergonhado, o cinismo dos quese sustentam na estupidez da massa é total. Nos EUA, apesar de todos osseus defeitos, o judiciário é temido pelos vigaristas, não importa o quãoalto estejam, o crime tem o pudor de não se mostrar à luz do dia, e atémesmo a cultura se habituou, pela força e independência do judiciário, aconsiderar imperdoáveis as infrações mais leves. O cidadão comum julgaem foro íntimo os políticos, e uma vez condenados pela consciência dosindivíduos, os homens públicos renunciam intimidados. Nós, por outrolado, não temos enraizada esta convicção na supremacia da lei sobre ospoderes circunstanciais, e tanto o cidadão ignora o descalabro, dando-opor natural, como o criminoso perde a medida da discrição e da própriamalícia.

É neste sentido que Tocqueville escreveu ainda em meados do séculoXIX:

Quando, após examinar a organização da Suprema Corte em detalhe, você considera asatribuições que lhe foram dadas, você facilmente descobre que jamais constituiu-se tãoimenso poder judicial entre qualquer povo.

A Suprema Corte jaz acima de qualquer outra conhecida, tanto pela natureza de seus direitosquanto pelo tipo de objeto do seu julgamento.

Em todas as nações civilizadas da Europa, os governos sempre mostraram grande relutânciaem permitir que sistema judicial ordinário decidisse questões que envolvessem o própriogoverno. Tal relutância é certamente maior quanto mais absoluto for o governo. Na medida

Page 138: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

em que a liberdade cresce, ao contrário, o círculo das atribuições das cortes sempre se amplia;mas jamais uma nação europeia cogitou de que toda a questão judicial, não importa suaorigem, deve ser deixada para os juízes da lei ordinária.[2]

Este trecho luminoso requer uma muito demorada meditação. Comoprocedeu-se esta revolução radical da justiça terrena, que ainda não foisuficientemente absorvida pela minoria que seja das nações? A Europa eas recém independentes nações americanas levaram décadas paraassimilar parte dos preceitos do federalismo, da democracia liberal e doestado de direito americano, e ainda hoje é com ressalvas sérias que oBrasil pode ser considerado democrático quando um cidadão comum nemem sonho pode processar o governo e as grandes empresas amparadoapenas por seus direitos.

Como aqueles homens rústicos da América colonial, poucos delesrealmente bem educados e ainda assim mais homens práticos,empresários, do que pensadores, puderam elaborar um sistema em queuma enorme liberdade para as comunidades dos estados coincide com aforça da união; um sistema em que a democracia é garantida, não pelomecanismo intuitivo da vontade da maioria, mas pela limitação eregulação sábia desta vontade por vezes tirânica, restrição esta que éexercida pelo órgão máximo da defesa das leis contra todas asarbitrariedades pessoais e/ou coletivas, o judiciário. Talvez este povotivesse mesmo, como acreditava, os seus delegados guiados do alto poruma força maior do que a de seus juízos individuais. Entregues a um idealque inauguraria no mundo as primícias da era da liberdade, elesprovavelmente ali estavam por escolha e amparo daquela em quedepositavam a razão e a esperança de todos os seus esforços: a mão daProvidência.

[1] Alexis de TOCQUEVILLE. Democracy in America. Pg. 22.

[2] Alexis de TOCQUEVILLE. Democracy in America. Pg. 244.

Page 139: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Adolfo Bezerra de Menezes, o profeta filósofo do Ceará.

A cada século e em cada nação Deus permite nasçam homens emulheres especiais, que pela sua depuração completa e ascensãointelectual arrastam multidões; verdadeiros clarões na noite, fazem valeras palavras poéticas de Atos:

“Porque era homem de bem e cheio do Espírito Santo e de fé. E muita gente se uniu ao Senhor”. (Atos,

11:24)

Conhecido como doutor, renomado pela caridade com que procediano atendimento dos mais pobres que acorriam às centenas ao seuconsultório, o gênio cearense radicado por muitas décadas na capitalimperial não era menos notado em sua própria época pela estaturaintelectual.

Dominando à perfeição línguas clássicas e modernas, compredileção pelo francês e pelo latim, estendendo sua compreensão atodas as sutilezas da ciência médica e da filosofia espírita, tendoelaborado um tratado minucioso sobre a influencia espiritual naspatologias psiquiátricas e um não menos brilhante estudo filosófico-teológico que engloba temas tão melindrosos quanto a filosofiaalexandrina e um extenso domínio da teologia e da história da Igrejacatólica, o nosso pensador completo e profícuo bem mereceria também aalcunha de filósofo, e isto no sentido mais tradicional da Antiguidade,quando o nome indicava a posse de um saber panorâmico.

Bezerra de Menezes popularizou-se como doutor, mas é possívelque tenha trabalhado mais como deputado e vereador em seus váriosmandatos; e se o seu papel político não foi o de um Rui Barbosa ou de umRio Branco, é bem verdade que participou de forma decisiva na melhoriadas condições urbanas do Rio de Janeiro. Palestrando e estudando osproblemas da causa abolicionista, defendendo pioneiramente os direitostrabalhistas, preocupando-se em proteger os trabalhadores contratadoscom a obrigatoriedade do aviso prévio de 30 dias, apoiando as causas da

Page 140: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

saúde pública e da educação, chegou a exercer grande influência nascâmaras em que atuou. Foi talvez o primeiro a se incomodar seriamentecom a poluição causada pelo lixo urbano. Enfim, um dos membros davanguarda do partido liberal.

Como empresário tomou parte de diversos programas, presidindoalguns deles, que em muito contribuíram para a implantação de linhasférreas e bondes em todo o estado do Rio de Janeiro.

É fácil aparentar humildade quando não se possui nem título, nemreconhecimento, nem cargos de relevo ou autoridade. Qualquer umimagina-se modesto perdido na multidão. Ser reconhecido comosumidade da cultura, doutor, Sua Excelência, ostentando publicamente osbrasões do mérito pessoal e da sociedade, e ainda assim manter-se decenho grave e atitude servil é tarefa para pouquíssimos.

Cícero e Goethe foram pensadores universais; ambos acumularamas atividades de político, poeta, cientista e filósofo, enriquecendo parasempre as comunidades em que viviam e tudo dedicando à glória de seupovo. Não souberam, entretanto, esquivar-se da vaidade pessoal ouconciliar a benemerência que praticavam no campo da cultura à caridadecotidiana no trato com subordinados ou para com os mais simplórios quenão podiam desfrutar de suas conquistas sofisticadas no campo das letrase das ciências.

Também entre os santos e mártires, em contrapartida, não nosocorre um único que tenha conciliado de modo tão completo a virtudeestoica e o sentimento compassivo à uma estatura intelectual de impactosobre a cultura e as instituições.

Bezerra de Menezes deve ser ainda descoberto em sua inteiragrandeza, ficando como marco referencial para as gerações futuras que,conforme acreditamos, buscarão resgatar a sua biografia na intenção de

extrair dela um dos modelos mais perfeitos para a evolução do espíritohumano.

Page 141: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A fé, mãe da razão.

Um nobre ditado romano diz: “Volenti nihil difficile” o que significaaproximadamente “a quem quer, nada é difícil”. Esta é uma verdadecontroversa nos dias de hoje, e não é sem justiça que muitos se revoltamcontra ela. Com todas as vantagens que temos em relação à Antiguidade,especialmente no tocante ao esclarecimento e à ciência, é notória araridade com que se encontra hoje homens e mulheres dotados daquelecaráter de mármore tão típico dos tempos de Sócrates e Cícero, JoãoBatista e Paulo.

É por isso que uma exortação mais entusiástica nos soa tãoinapropriada; pensamos querer, e uma vez que não logramos sucesso nosrimos do entusiasmo dos santos e mártires, dos estóicos e dos idealistas.Querer, para aquela espécie de homem que viajava a pé com uma sacolade figos à cinta, não se resume a desejar, como para nós, ou aempreender duas tentativas, com a índole revoltada a insinuar que ouniverso está a receber uma segunda oportunidade de se curvar ao nossocapricho. Há dois mil anos, ou mesmo há menos tempo, o quererpressupunha antes de qualquer coisa o sacrifício, a perseverança de todauma vida, o renovar desgastante da luta frente a obstáculos diários,alguns deles já nem tidos como tais, tal a dureza de que se revestiam opovo no geral e os seus heróis em especial.

Imagine-se um Diógenes, que abandonou uma vida confortável paraviver como um cão (daí o nome cínico, de sua escola, pois kinis em gregosignifica cão), dormindo ao relento, sempre seminu e faminto. Sãoconhecidas as anedotas sobre seu encontro com Alexandre, sua caneca eseus passeios noturnos com a lanterna, que mais pela excentricidade doque pela admiração moral acabaram se tornando lendárias. A verdade éque este pensador tudo sacrificou pelos outros, fazendo de si um exemploda abnegação, do abandono material e do desprendimento de si. Umavida absolutamente miserável, sustentada pela fé de que o seu exemplohaveria de incomodar o seu próximo e fazê-lo refletir.

Page 142: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Diógenes queria, assim como Sócrates soube querer a justiça e averdade a ponto de tomar um cálice de veneno por elas; ou como o Cristoquis a reforma da humanidade a ponto de não se esquivar do suplício dacruz. Todos foram derrotados, de um ponto de vista material, porque omundo realmente não se dobra à nossa vontade, mas todos são vitoriososdo ideal, e provaram que querer é perseverar sendo aquilo que se elegeuno íntimo.

Àquele que quer, nada é difícil, porque saberá transportempestades e dissabores, incompreensões e fracassos exteriores,vencendo, no entanto, quanto aquilo que interessa, a fidelidade à suaprópria escolha. Mas este querer deve ser espiritual, o único compatívelcom nosso poder, circunscrito ao nosso império. Queira-se as conquistasmundanas, as posses de bens e pessoas, os títulos, e mesmo os triunfosserão temporários e efêmeros.

Nesta era de cupidez, mesquinharia e vaidade não é o querer quearrefeceu, mas o seu propósito e significado que foram corrompidos. Forade si, o homem busca o que não lhe pertence, e fica entre o padecimentoda decepção e o gozo ensandecido seguido pela perda. A vontade estáespoliada de seu patrimônio, não porque abrandou-se a chama doespírito, senão porque os enganos do mundo deslocaram as suas forçaspara uma região sob a qual ela não exerce o seu império.

Fala-se no “segredo”, fórmula de sucesso dos vãos e dosgananciosos. Cientistas pseudo-sábios apresentam as maravilhas da “físicaquântica” em linguagem “espiritualista”. Tudo entre muitas aspas e commuitas ressalvas, pois se a ciência e a religião, a matéria e o espírito hãode encontrar-se numa grande síntese, esta só pode ser uma que integresuas diferenças, ao invés de subjugar a irredutível liberdade do espírito auma magia materialista.

Mas ainda não é disto que queremos falar. Primeiro é precisoexpurgar toda a sombra de animalidade dos temas espirituais. Vontade,liberdade, razão, são as partes mais nobres e depuradas das potências quepodem servir às necessidades materiais do homem, como desejo,individualismo e astúcia. Feita esta separação inicial precisamos subir a

Page 143: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

um outro nível de discurso correspondente à elevação do objetocontemplado.

A fé, espiritualmente falando, é o poder pelo qual o indivíduosustenta a sua iniciativa, seja ela uma ação física, moral ou puramenteteórica. Sempre que o homem espera um resultado para as suas ações,precisa ele prestar oferenda de confiança a si mesmo e/ou a Deus. Se aforça de vontade é a energia bruta que move toda ação, a fé é a posturaexistencial, voluntária, de confiar no êxito da empreitada. A fé não moveos membros ou o pensamento, mas ela dá convicção intelectual, firmezade espírito e segurança emocional para que a vontade se desdobre nadireção almejada. Com a vontade o homem caminha, com a razão eleplaneja o percurso, e com a fé ele se convence de que o viagem érealizável.

O oposto da fé não é a dúvida, e sim a desconfiança. A primeira éuma ferramenta intelectual que pode ter emprego positivo. A segunda éuma postura existencial que paralisa o indivíduo impedindo-o de agir ou,na melhor das hipóteses, diminuindo o seu empenho e dedicação. Duvidarnão prejudica a fé; desesperar sim. E é perfeitamente possível manter-seem dúvida e, não obstante, lançar-se corajosamente num caminho incertoque se elegeu. A fé, aliás, prova a sua força na presença da dúvida, pois docontrário a sua convicção não encontra desafios.

Nenhuma escolha filosófica é possível sem a fé, porque a filosofia,enquanto questionamento radical acerca dos elementos e fundamentosprimeiros, baseia-se completamente na liberdade interpretativa. Qualquerproposição de verdade é, segundo a filosofia, uma pressuposição, jamaisum dogma. E uma vez que se admite o caráter volitivo e hipotético detodas as doutrinas, cada uma delas exige de seus partidários um votoinicial de confiança. Por mais que se afirme haver razões, experiências ouintuições pessoais que justificam a adoção de uma doutrina emdetrimento das demais é inevitável reconhecer que os partidários dedoutrinas opostas evocam estas mesmas prerrogativas, e a escolha estásujeita, em última análise, à confiança ou fé que o sujeito tem em seupróprio julgamento. Há motivos racionais para se ser isto ou aquilo,inclinações pessoais para tal ou qual concepção da vida, da ciência, da

Page 144: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

justiça, e se este impasse fala mais alto do que a confiança nos rumosassumidos, o desespero se instala, e nenhum fundamento mais pode serlançado.

Por mais que a concepção vulgar de fé e razão instaure entre elas acizânia, é filosoficamente impossível a existência da segunda fora daprimeira. A eficácia da razão ao invés do caos, a confiança de que as regrasde nosso entendimento realmente coincidem com as regras da natureza,não constituindo apenas uma impressão do nosso ponto de vista, e aconvicção de que haja um valor intrínseco na ordem que a torne preferívelà irracionalidade são problemas que os filósofos só puderam resolveratravés do estabelecimento de pressupostos fundamentais, proposiçõesde fé.

Sócrates combateu o relativismo dos sofistas postulando a fé noscritérios e princípios lógicos de julgamento. Ele demonstrou que estaconfiança na razão é uma questão de opção, e que não pode ser impostadogmaticamente, mas que sem ela não se poderia encontrar regrasimparciais segundo as quais o conhecimento pudesse ser avaliado. Paraque se possa questionar e debater livremente é preciso que os princípiosda argumentação sejam independentes das pessoas envolvidas nelas. Emoutras palavras, precisam ser universais.

Descartes resolveu sua dúvida radical postulando a existência de umDeus garantidor da eficácia da razão. Se não houver esta pressuposição defé, segundo ele, seria impossível escapar da circularidade destrutiva dadúvida metódica. A razão não elimina a dúvida, e não pode enfrentá-lacom a força da persuasão argumentativa. A validade da razão precisa serpostulada, acreditada por princípio, para que o seu poder deconvencimento passe a valer.

Kant operou sua famosa crítica da razão reconhecendo que aescolha entre desconfiança ou confiança no conhecimento é uma escolhapragmática. O conhecimento é válido porque assim nos parece, e porquese não o for não podemos prosseguir com empreendimento algum. Nãopodemos jamais saber como é a verdade, mas, limitados à nossa

Page 145: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

perspectiva humana, podemos ao menos trabalhar com o que nos pareceser.

Esta fé não é sempre nem necessariamente uma fé em si mesmoapenas. Ela pode ser e frequentemente é uma fé em sentido religioso,uma fé metafísica na estrutura da natureza, na garantia de um Deus bome justo, uma pressuposição de que um espírito criador não poderia incutirem nós uma inteligência falha e sem correspondência com a verdade.

Assim como há razões para se ter fé, é preciso fé para se ter razões,de modo que a convicção proporcionada pelo entendimento e a convicçãono próprio entendimento se dependem e alimentam mutuamente. Os quecrêem prescindir da fé por possuírem a razão cometem assim um

atentado lógico aos fundamentos de suas convicções, pois tudo o quefor eleito como critério tem o crédito que lhe for atribuídovoluntariamente, por fé.

Visão a partir do centro da natureza: A “heresia” mística no segundo século doProtestantismo.

Jakob Böhme: sapateiro e visionário, considerado por Hegel o pai da filosofia alemã.

Page 146: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Jakob Böhme não é um autor que dispense apresentações no Brasil.Ele influenciou toda a mística da Idade Moderna, da Maçonaria aoEspiritismo (via teosofia). Na Teologia ou na filosofia alemãs ele tem umpapel de destaque, embora também marginalizado a partir do século XIXem função da predominância da “desmistificação”. Este é, aliás, oproblema com Böhme, ele era um alquimista, em parte um cabalista, edefinitivamente um escritor esotérico, e não o ajuda muito dizer que eleera tudo isto “no bom sentido” das palavras. Nosso tempo simplesmentenão o perdoa por associar-se a Paracelso e a uma linguagem bíblicaprofética e simbólica.

Não obstante Böhme foi um dos pensadores que abriu o mundoprotestante para a revisão da ortodoxia luterana, dando fôlego àinterpretações liberais, pessoais e plurais do Protestantismo que hoje setraduzem em ampla liberdade interpretativa, espiritualismo, inclusão degênero, liberalidade política, etc, dentro do ambiente ocidental, que deuma forma ou de outra é marcado pela vitória intelectual doProtestantismo sobre o Catolicismo.

Além disto, aquele que supõe ser um pensador irrelevante pelosimples fato de ele ter uma visão animista ou mesmo mágica do mundo,deve, logo de saída, eliminar de sua biblioteca Newton, Kepler e Bruno. Docontrário terá de aceitar que razão e fé, ao menos numa época maiseclética do que a nossa, conviviam harmonicamente, e completavam-seno exercício de revelação das leis naturais. E neste tocante somosforçados a rever aquelas concepções que nossa cultura julgou por bemexcluir sem um cuidadoso exame, observando-se, com isso, que há boasrazões para considerá-las superiores, em diversos aspectos, àquelas queprevaleceram.

Jakob Böhme é um destes pensadores que indubitavelmente pesouna balança histórica da formação do espírito moderno, seja pela suaatuação no campo da filosofia, exaltando o estudo da natureza, seja pelasua atuação no campo da teologia, apresentando uma concepçãofilosófico-mística de Deus em confronto com a dogmática estabelecida porLutero e dando importantes passos para conciliar o determinismoprotestante com a noção de liberdade individual. Tal tendência para o

Page 147: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

pensamento sintético e o fato de ter escrito em alemão lhe garantiram oreconhecimento e muitas vezes o título de primeiro filósofo teutônico.

O sapateiro de Görlitz, entretanto, jamais pretendeu elaborar umsistema de ciência, filosofia ou teologia, tendo sido arrastado a esteministério por força de suas visões místicas espontâneas iniciadas poucoapós o término de seu aprendizado na guilda dos sapateiros e queculminaram numa invocação para o início imediato de seu ministériocomo escritor, em 1610. A primeira destas visões se deu na forma de umhomem que posteriormente Böhme identificaria como um anjo, a lheprofetizar a sua missão. Eis a descrição do místico e amigo Franckenbergacerca desta primeira revelação de Böhme:

Enquanto ele dava conta de fechar a loja após a última encomenda, ouviuum homem chamá-lo pelo seu nome de batismo, o que ninguém alideveria saber. Encarou o homem de porte vistoso e olhos brilhantes, quelhe disse: Jacob, você é pequeno, mas será grande e tornar-se-á umapessoa e um homem totalmente distinto, de modo que o mundo seespantará contigo! Em vista disso seja piedoso, tema a Deus e honre a Suapalavra; de resto leia sempre a sagrada escritura, de onde terás consolo eorientação, pois você terá de sofrer muita miséria e desolação, mas temconfiança e firmeza, porque tu és amado de Deus e ele te abençoa! Ohomem desapareceu das vistas de Jacob, mas ele jamais se esqueceu desua feição ou de seu aviso...

Terminada a sua aprendizagem de sapateiro, aos 25 anos, ele teve outravisão: Foi conduzido de Görlitz ao centro da natureza, de onde vislumbrouo móvel do mundo e encontrou muitos amigos e seres simpáticosdesconhecidos.[1] *

Böhme não era douto, senão de suas intuições originais. Mas apesardisto, não era tampouco um ignorante. Conhecia muito bem a Bíblia e leuParacelso, Schwenkenfeld e Weigel. O diferencial dele em relação àmística, o que faz de sua doutrina uma teosofia, é o fato de que ele nãofoge do mundo, vendo nele, ao contrário a “carne de Deus.”[2]

Page 148: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O transporte místico de Böhme ao “centro da natureza” é fenômenoincontroverso na literatura religiosa. Paulo parece tê-lo experimentado(Segunda aos Coríntios: 12), Plotino escreveu um extenso tratado sobrecomo atingir o transporte místico, santos de várias religiões o relatam, eSwedenborg afirmava obtê-lo sem grande esforço. Todos estesprivilegiados garantem que a união mística transforma radicalmente acompreensão que se tem da realidade. Mas o que mais chama atenção norelato de Böhme é o ter encontrado muitos seres amigos e simpáticos,embora desconhecidos.

Este relato é interessante por estar livre da interpretação simbólicaque os santos católicos geralmente empreendem através dos arquétiposdos santos e anjos, e que alguns místicos protestantes repetem em certamedida. A descrição de Böhme, ao contrário de suas teorias, parece estarpurificada de simbolismo esotérico. Também é peculiar o fato de nãohaverem figuras conhecidas, sem que isso impedisse a automáticaidentificação, por simpatia, com estes seres amigos. A memória doinconsciente profundo, responsável pelos registros emotivos, ou o simplesprocesso de sintonia lhe conduz a esta conclusão que o entendimento nãosabe discernir analiticamente. Não é este o fenômeno de visualizar afisionomia de um completo estranho e nele reconhecer um amigo, ou oprocesso análogo pelo qual dois desconhecidos “reconhecem-se”instantaneamente como amantes?

A sensibilidade para este tipo de percepção é tão rara quanto bemaceita em linguagem científica, mas a literatura e o instinto populardesimpedido depõem a favor dela. Místicos famosos como Dante e Keplerencontraram em sonho seus guias e patronos espirituais. Vergílio no casodo primeiro, Arquimedes no segundo. E em ambos os casos os ilustresescritores afirmam ter experimentado aquela tomada de consciência quesó o sonho ou a visão mediúnica proporcionam, de ver-se alguém pelaprimeira vez e saber intimamente de quem se trata, e de que este é umamigo de longa data.

Mas voltando a Böhme, seu mérito está principalmente na formacomo seguiu a risca a orientação recebida através de suas visões. A

Page 149: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

tradução para linguagem mundana desta experiência de vislumbrar ofundamento de tudo é uma filosofia mística.

Para o sapateiro, todo ente é um universo completo em si mesmo, eguarda a “mensagem” ou a “assinatura” de suas origens. Assim, apesquisa científica de qualquer elemento natural é autoconhecimento, e oautoconhecimento revela, por sua vez, as leis intrínsecas da natureza.

A mística de Böhme é um tratado especulativo sobre um elementoimponderável, a vontade, não um dizer assistemático e obscuro sobre algodesconhecido. Naturalmente que não se trata também de uma filosofiacrítica, pois o conhecimento da vontade divina é dado por revelaçãoimediata que, embora universalmente acessível, nem sempre estáconcretamente presente em todos os indivíduos. O ar de mistério destafilosofia provém da incapacidade de conceituar a vontade, mas ela ésempre perseguida por Böhme até os limites da cognoscibilidade.

Na sequência de seus seguidores, como Leibniz (em parte), Goethe eo Idealismo, a vontade torna-se a matéria-prima do mundo, o intelecto é aordem que estrutura esta vontade em inúmeras formas e assim a místicaassume o duplo papel de reconhecimento da assinatura de Deus em tudo(processo intelectual idealista) e escolha pelo essencial, liberdade de serreal (processo voluntarista místico). Assim descreve ele a liberdade davontade:

Mas isso deves saber, que no regimento da tua alma tu és o senhor de timesmo; não se levanta nenhum fogo a partir do círculo do teu corpo eespírito, tu o despertas por ti mesmo. Verdadeiro é isto, todos os teusespíritos fluem para ti e se elevam de ti; e na liberdade um espírito temmais força em ti do que outros.

Se uma fonte do espírito se eleva, isto não está oculto à alma: Ela podeimediatamente acordar as outras fontes do espírito, que se opõem aofogo insurgente, e podem apagá-lo. [3]

O que ele chama de espíritos são os ânimos da alma. Nenhum delesse levanta sem que o indivíduo o saiba. Não há como se esquivar da

Page 150: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

responsabilidade sobre o ânimo, que é o fluxo inconsciente da vontade,pois nós não apenas o identificamos, como podemos usar outro ânimoconsciente contra aquele que não nos convém. É a mais pura psicologiaanalítica, não espantando que Jung fosse um admirador da linguagemalquímica.

Os ânimos se levantam sem aviso, pois são muitos e muitas são assuas causas. Motivos corpóreos, atávicos, vícios, memórias conscientes ounão. Mas o espírito pode despertar de seu estado passional, em que osânimos vem e vão sem controle, para o estado “vivo”, em que o ânimo écriado ou modelado conforme o esforço e buscando certos fins.

Este despertamento é mais propriamente um renascimento, nalinguagem dos místicos, e o seu outro nome é fé. A fé não é, portanto,uma crença em conteúdos dogmáticos ou históricos, podendo-se inclusivesubmeter estes à crítica. Ela resume-se numa transformação do caráter,numa decisão por assumir o controle da vida, ou melhor dizendo, dosconteúdos emotivos e volitivos da alma, direcionando-os com zelo edevoção. Devotamento, aliás, é a palavra chave para a fé verdadeira, poisse ela não depende da crença em dogmas, alinhando-se antes comoestado existencial, a sua relação com o divino deixa de ser teórica para servital. A fé viva é uma postura de doação, ato livre de oferta das forças,pensamentos, sentimentos e ações do indivíduo.

A fé, ou renascimento, como tal exige muito mais do que uma adesãoà doutrina Cristã (ou possivelmente outra religião), senão uma completa evoluntária transformação íntima, que não se resolve num instante,precisando ser sustentada com lutas e sacrifício a longo prazo. Böhmeestá, assim, na linha dos pietistas que iniciaram um processo colossal derevisão do Protestantismo. Em oposição à fé que salva sem obras, e que jánaquele primeiro século pós-Reforma produziu uma certa complacênciamoral, eles pregavam a necessidade da reforma íntima, a importância dolivre-arbítrio e da luta constante contra o mal moral.

Esta luta da vontade consigo mesma pelo controle do seu ânimo, dosseus sentimentos, é dificultada pelos hábitos ancestrais do homem, já queele esteve quase desde sempre entregue à dissolução e dispersão

Page 151: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

provocada pelas paixões. As paixões em si não possuem tanta forca, maselas geram imagens que as estimulam ainda mais. No animal as paixõessão limitadas à necessidade e sua satisfação, mas no homem, como a almaquer satisfazer suas necessidades com mais urgência do que no reinoanimal, criam-se imagens, desejos, que estimulam a paixão para muitoalém de sua força natural. A imagem é o estado normal da mentehumana, desacostumada a reflexão profunda, à disciplina e educação dossentimentos e pensamentos, e assim a mente está constantementetomada por imagens que estimulam a sensualidade, a violência, o orgulho,a ganância, o ócio, e assim por diante.

A imagem possui um imenso poder, pois além de a mente estarmais habituada a ela do que ao pensamento livre, imparcial e regrado, ede ela estar já perfeita e simbioticamente associada a energia emocionalque quer estimular, a sua afluência à mente é ininterrupta, pois a menteentende que precisa ocupar-se sempre de algo, evitando com isto oentorpecimento da vida. O mecanismo natural e salutar que dificulta afixação de idéias estimulando a troca emocional e a dinâmica mentaltorna-se empecilho ao movimento posterior de focalização do espírito eeducação sentimental, mas toda passagem bio-psicológica para um nívelsuperior é marcada pelo confronto entre o velho, estabelecido, e o novo,que precisa estabelecer-se com esforço.

As duas fontes de orientação do espírito, razão evontade/sentimento, conduzem a Deus. A primeira revela em tudo aassinatura do Criador, e persuade o homem pela inteligência a adotar obom caminho e a conhecer o livro da natureza, autobiografia e romancede Deus. A segunda revela no interior do homem o poder de Deus, comoconhecimento intuitivo e imediato do “fogo divino” que há em tudo. Seeste poder estiver passivo, será regido pelos desejos de prazer e poder emsuas múltiplas variações. O homem pode, entretanto, tomar-se a simesmo a partir do uso ativo deste mesmo poder, deixando de ser escravodas imagens produzidas pelas paixões, e emergindo do caos e doturbilhonamento para a ascensão gloriosa de seu ser como vontadeindividual, focada na ação e na criação, à semelhança de Deus.

Page 152: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

*Todas traduções são nossas.

Bibliografia:

BÖHME, Jakob. Schriften Jakob Böhmes. Organizador, Hans Kanser. Leipzig: Im Insel, 1923.

BERDIAEFF, Nikolas. Jakob Boehme Mysterium Magnum: Études sur Jakob Böhme. Paris:Aubier, 1945.

[1] Abraham von FRANCKENBERG. Lebensbeschreibung Jakob Böhmes.SchriftenJakob Böhmes (S. J. B.) Pg. 24-25.

[2] Nikolas BERDIAEFF. Études sur Jakob Böhme. Pg. 7.

[3] Jakob BÖHME. Aurora. S. J. B. Pg. 156-157.

Carta ao MaterialismoÉ a filosofia materialista a causa do consumismo, do hedonismo e de uma atitude

existencial pautada na superficialidade? Esta a pergunta que exige resposta, em vista dorecente artigo “Materialismo é Consumismo?”, de Daniel Alves da Silva Lopes Diniz, publicadono site www.abiblioteca.webs.com sobre a posição Espírita acerca da filosofia materialista.Escrevi ao site pedindo um direito de resposta, e fui atendido positivamente, confirmandominha impressão inicial de tratar-se de um espaço de debate onde se destacam a civilidade e aprobidade.

Antes de qualquer pormenor gostaríamos de afirmar enfaticamente: o materialismonão tem ligação necessária com o consumismo, a falta de ideais e valores, ou com oautoritarismo dogmático; mas esta relação é possível e frequente, aumentando na proporçãodireta em que o seu proponente possua mais fervor doutrinário e menos sobriedade filosófica.O mesmo se pode dizer da religião em geral; sua relação com a superstição, o obscurantismo eo moralismo pedante não é obrigatória, mas lamentavelmente rotineira.

Ao apresentarmos uma forma de pensamento é necessário estabelecer o ponto de vistasegundo o qual se a julga. É o da teoria pura? Então cabe discutir se há falácias envolvidas,quais são as premissas e axiomas a partir dos quais se desenvolvem os argumentos. É o damanifestação social, na forma de credo ou doutrina? Então nos cabe discutir as consequências

Page 153: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

desta doutrina para a vida prática. São esferas distintas onde cabem críticas igualmenteindependentes.

No artigo publicado por este site, pareceu-me haver uma correta distinção entre acrítica filosófica do Materialismo, apresentada por mim no livro Genealogia do Espírito, e acrítica ao materialismo como movimento social e formador de padrões de comportamento,feita por Suely Schubert em seu livro Mentes interligadas e a Lei de Atração. Mas mesmotratando-se de recortes, tanto de meu texto quanto daquele referente à autora, é digno denota o fato de o Materialismo não ser apresentado de forma jocosa. E a má impressão que osegmento possa provocar não me parece justificada diante dos textos na íntegra. A título deesclarecimento, portanto, confirmo o tom condenatório dos trechos destacados, sem que comisso admita, no todo das obras, qualquer discriminação ou condenação do Materialismo.

Prefiro, de toda maneira, falar somente sobre o escrito do qual sou autor e pelo qualsou responsável, pois somente em relação a ele posso proferir um juízo definitivo.Em Genealogia do Espírito não se pode encontrar uma passagem que discrimine oMaterialismo, ou qualquer outra doutrina. Isso seria contrário aos fundamentos basilares doEspiritismo, que pregam o respeito a todas as crenças sinceras.

Isso não significa que eu me abstenha da crítica. Eu as tenho, aliás, em quantidade,como também as tenho para com diversas religiões, ideologias políticas e idéiasindependentes, o que inclui o próprio Espiritismo; e estou convencido de que a crítica é onosso instrumento mais eficaz de aproximação, desde que tenha sempre um cunhoconstrutivo. Igualmente crítico é o referido artigo “Materialismo é consumismo?”, mas a críticasevera que ele impõe aos textos analisados e ao Espiritismo enquanto tal é, não obstante,respeitosa e civilizada. O que não considero apropriado em nenhuma circunstância é odesprezo pelas e a condenação das idéias alheias, e isso jamais fiz conscientemente.

Minhas ressalvas filosóficas quanto ao Materialismo se resumem no fato de que ele secristalizou como doutrina dogmática, especialmente na associação com o Cientificismo e oCeticismo dogmáticos. Este é um acontecimento ideológico que em nada depõe contra oMaterialismo crítico de pensadores conscientes e moderados como Herbert Spencer e CarlSagan. O Socialismo igualmente desenvolveu-se como ideologia dogmática em sua formamarxista, pregando uma distinção de classes sociais, uma boa e outra maléfica, à semelhançade um racismo transferido para a esfera social. Isto não significa, também, que devamoscondenar o Socialismo como filosofia, conforme foi proposto com muita correção e tolerânciapelos filósofos de Frankfurt, ou pelos espiritualistas franceses da era pré-Marx. O problematodo está em se pregar aquilo que não se faz. O Materialismo é uma doutrina, como oEspiritismo, o Socialismo, o Budismo, o Catolicismo e até mesmo o Ceticismo, enquanto esteúltimo tem uma forma normativa e persuasiva; e toda doutrina é construída pela razãohumana, limitada pelas nossas carências e condicionamentos. Nenhuma doutrina teórica podeafirmar-se na posse da verdade, em detrimento de outras elaborações que a interpretam dediferente maneira. Todas representam esforços humanos na busca pela verdade; são, emtermos de filosofia da ciência, especulação.

Qual é a origem do Materialismo? É a mente humana elaborando uma concepção demundo a partir de sua experiência, inclinação pessoal e vontade. Qual é a origem do

Page 154: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Espiritismo? Exatamente a mesma; só mudam a experiência, a inclinação pessoal e a vontade,que direcionadas para outras vivências e interesses justificam outra doutrina. Qual é então oproblema com o Materialismo? É o fato de ele comumente negar esta origem na mentehumana, como proposta interpretativada realidade, e afirmar-se, ao contrário, na posse deprerrogativas especiais, geralmente baseadas no respaldo da ciência. A ciência, contudo, não ématerialista, senão neutra e imparcial, independente da doutrina filosófica que queira figuraro mundo como puramente material ou povoado de espíritos. Ao tentarem se apropriar dométodo científico como se fosse este um produto da filosofia materialista, os materialistascometem um crime contra a ciência e contra sua própria doutrina, que perde a dignidadefilosófica de que goza por direito como uma proposta racional de interpretação do mundo.

Assim pervertida, a doutrina materialista se assemelha à instituição da Igreja, que aomonopolizar a interpretação da revelação bíblica, o único acesso a verdade reconhecido na EraMedieval, condenava à marginalidade todas as demais idéias. Mas não é preciso que seproceda desta forma. As religiões podem respeitar-se no campo da interpretação dasEscrituras, reconhecendo-se limitadas ao campo da proposição de teorias religiosas. OMaterialismo igualmente pode conviver com outras filosofias que busquem interpretar osdados da ciência, ao invés de condicioná-los ao seu esquema doutrinário. A este Materialismoque reconheça a possibilidade de uma doutrina filosófica alternativa, mesmo que a considerepior do que ele mesmo, só poderíamos render louvores. Ao Materialismo que execra eespezinha a experiência pessoal de fé e sentido das demais doutrinas, que acredita-se ointermediador oficial entre ciência e filosofia, tal qual a Igreja atribuía-se a exclusividade dainterpretação bíblica e da intermediação entre Céus e Terra, verdade e teoria, contra este têmde se revoltar todas as pessoas intelectualmente honestas.

O que fazer quando as sumidades e as figuras mais respeitáveis do Materialismo atual,como Richard Dawkins, adotam exatamente a postura fundamentalista e dogmática decondenar “com respaldo da ciência” outras filosofias que não as suas? E o que pensar quandoos partidários do Materialismo aderem em massa a este tipo de ditadura ideológica?

Estamos no século XXI! Os embates entre filosofia crítica e ideologia já foram travados.A ciência já desceu de seu pedestal positivista para o papel de formuladora falível de hipótesesa serem confrontadas com a experiência (Popper). Não é mais cabível o materialismoideológico, o único que me permito criticar. Nem se justificam mais as idéias retrógadas de quea arqueologia desmente a Bíblia (relato essencialmente simbólico e desde sempre desprovidode função científica), de que o darwinismo comprova a inexistência de Deus ou de forças vitaisque possam atuar em paralelo com o processo de seleção natural, de que o Big Bang foiprovocado pelo acaso...

As teorias científicas versam sobre nossa experiência sobre o mundo, não sobrequestões filosóficas de por que ou para que ele funciona desta ou daquela forma. As doutrinasfilosóficas, por outro lado, têm o direito e o dever de elaborar respostas especulativas paraaquelas e outras questões que extrapolam as possibilidades de observação. E neste âmbitotodas as propostas devem ser respeitadas e criticadas com base em sua lógica interna eadequação à experiência. Jamais pode uma doutrina apropriar-se da ciência, ou da revelaçãoreligiosa, ou de qualquer outra esfera de conhecimento, para sustentar uma autoridade

Page 155: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

inquestionável em detrimento de outras. Mas todas as doutrinas, infelizmente, o fazem, pois amanutenção da postura crítica é um esforço constante e desgastante demais para a maioriados partidários de qualquer uma delas. Devemos temer o olvido e o relaxamento crítico porparte de qualquer doutrina, mas especialmente quando ela está culturalmente associada ainstituições de poder político ou um programa cultural reconhecido como foro privilegiado dejulgamento da verdade. Ocorre de o Materialismo ser a doutrina especulativa mais próxima,na mentalidade geral, da ciência, que é o nosso foro privilegiado de julgamento na EraModerna. Somente por isso gera-me ele mais desconforto do que outras doutrinasespeculativas desprovidas de prerrogativas especiais.

Minha opinião sobre os materialistas? São representantes de uma doutrina racional esóbria, dedicados ao progresso do saber, mas constantemente ameaçados pela tentaçãodogmática; e isto é reforçado pela crença geral de nossos tempos de que aciência é materialista, assim como já foi dominante a crença de que o Cristianismo fossecatólico. O materialista não é per si desprovido de valores morais, mas está mais sujeito aodesespero existencial, ao niilismo e ao cinismo do que pessoas religiosas, já que crença numaobjetividade moral imprime nos últimos uma forte sensação de responsabilidade diante de umjuiz absoluto. Contra todos estes revezes deve e pode conscientizar-se e preservar-se.

Acredito sinceramente ser possível defender a convicção espírita e empreender críticaao materialismo, na medida em que temos o direito de expor de modo argumentativo a nossaposição, nossos agrados e desagrados por estas ou aquelas idéias. Esperamos receber críticassemelhantes dos materialistas, uma vez que, na condição de buscadores da verdade, tenhaminteresse em nos esclarecer quanto ao seu ponto de vista, raciocínios e vivências. A defesa denossos pontos de vista e a avaliação crítica das perspectivas alheias não implica, contudo, quenão possamos nos valorizar mutuamente, aproveitando os esforços coletivos rumo aoprogresso do saber.

Psicologia: a ciência da alma.

Embora a psicologia moderna seja uma ciência com método eobjetivos próprios, sua fundamentação doutrinária requer ainda uma boadose de filosofia, o que infelizmente só é admitido por uma parte dosgrandes sistematizadores da psicologia. Toda doutrina, as ciênciasincluídas, pressupõem um ponto de partida filosófico que lhe define avalidade. Nas ciências naturais este papel é desempenhado, geralmente,por premissas positivistas genéricas, ou, mais recentemente, pela filosofiada ciência enquanto disciplina específica. Já com as ciências humanas, poroutro lado, pode-se observar uma discussão qualificada com a filosofia,

Page 156: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mas ainda assim há distinções entre os pensadores que confessam estaherança, como Jung em relação a Kant e Goethe, e os que não amencionam, como Freud em relação a Schopenhauer e outros românticos.

De qualquer modo interessa-nos sobremaneira a relação entrepsicologia e filosofia, já que ambas se completam na descrição e análise dasubjetividade humana. Uma predominantemente debruçada sobre amanifestação empírica da alma em sua economia vital, a outra maisorientada para a especulação sobre as estruturas invariáveis do espírito.

Quem primeiramente empreendeu uma unificação relevante destasabordagens foi o filósofo e médico estóico Posidônio (135 a.C. – 51 d. C.),cuja obra foi lamentavelmente perdida, restando dela apenas citações efragmentos reunidos por outros autores. Mesmo que seu nome não tenhaalcançado grande destaque no mundo antigo, sendo conhecidobasicamente pelos estóicos e investigadores da natureza, seu impactoprofundo sobre a medicina de Galeno e a filosofia de Cícero e Sênecatornou populares as suas idéias centrais.

Posidônio

Posidônio se confrontou com os dois grandes psicólogos de suaépoca, Epicuro, representante das paixões: prazer e poder, e Crísipo,defensor da tese de que todas as ações humanas resumem deliberaçõesracionais. Posidônio parecia chocado com o fato de ambos os grandesfilósofos serem incapazes de entender o lado oposto da questão, eestabeleceu uma síntese em sua doutrina, na forma das três afinidades

Page 157: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

humanas, poder, prazer e razão. As primeiras corresponderiam ao aspectoanimal da alma, a última ao aspecto espiritual e divino. Nas palavras dopróprio Posidônio: Algumas pessoas equivocam-se ao pensar que aquiloque pertence aos poderes irracionais da alma, como seus fins naturais, sãofins naturais sem qualificação; o que estes não apreendem é que prazer epoder em detrimento do próximo é a meta do aspecto animal da alma,enquanto a sabedoria, bem como tudo o que é bom e moral, são os finsdo aspecto divino e racional.” (Fi6iEK)[1]

Esta hierarquia, no entanto, implicava o governo da razão sobre asvolições, não um desprezo destas últimas, sem as quais a vida perderiatoda a sua concretude. O mérito de Posidônio está em não apenasreconhecer a existência das paixões, mas reconhecê-las como forçaspositivas (pois, para os estóicos, tudo o que é natural é correto e bom).Como em Platão ou Aristóteles, bem e mau, num sentido moral, não sãocategorias relacionadas às paixões, e sim à razão. As paixões podem serboas ou más na ausência da razão, e são sempre boas na sua presença.Posidônio evoca a metáfora platônica da alma como uma biga puxada pordois cavalos, prazer e poder, e conduzida pelo cocheiro, a razão. Sem ocondutor ela estaria desgovernada e perderia seu objetivo; sem os cavalosela perderia sua força motriz, ficando inerte e inútil.

O ponto complexo desta dinâmica psicológica é o fato de que, paraPosidônio, a razão tem uma influência mínima no estímulo ou repressãodas paixões. Ela tem grande poder de compreensão, mas pouco poderpara disciplinar a paixão. Desta forma, muitas vezes os cavalos tentammudar a direção imposta pelo condutor, complicando a viagem.

Este conflito é provocado por dois motivos: o primeiro,correspondente ao erro de Crísipo, é desconsiderar a influência daspaixões sobre a própria deliberação racional. A razão escolhe, mas éauxiliada na escolha pelos interesses semi-independentes das paixões. E osegundo corresponde ao erro de Epicuro em desconsiderar o poder darazão em eleger fins capazes de satisfazer as paixões. Se isso fosseverdade só restaria reprimir as paixões com um racionalismo artificial, ouentregar-se a elas; ou convento ou carnaval. Com isto Posidônio atingiuuma compreensão avançada da constituição psicológica humana e de seus

Page 158: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

desdobramentos na vida prática, percebendo que os elementos ou forçasda mente são ao mesmo tempo distintos e comunicantes. Em outraspalavras, a razão podia elaborar justificações para interesses das paixões,e as paixões poderiam ter “interesses espirituais”, educados peloconsórcio com a razão.

Para moralizar é preciso transformar a emoção tanto quanto a razão.Cada pessoa carrega em si todas as forças que nela geram conflitos e sãoresponsáveis pelo bem ou mal, de modo que o indivíduo é responsávelpelas emoções que deixa despertar em si ou descontrolar no contato como estímulo externo. Se a emoção, por outro lado, estiver em contatoíntimo com a inteligência, não será por mera argumentação que a alma seinclinará para o bom caminho, senão antes porque a inteligência soubefalar à emoção em sua linguagem, despertando nela a consciência de quesua própria realização depende de tal ou qual fim. É inútil tentar agredirou olvidar a emoção no esforço moralizador. O que se obterá com isso,repetimos é uma adesão artificial à lei moral, que termina com revoltacontra esta lei imposta. Convento seguido de carnaval, se a razão reprimiuo prazer, ou pior, moralismo ditatorial, se a razão corrompeu a vontade depoder.

Um quadro simbólico e simplificado do comportamento humanopoderia ter este formato.

Vontade de prazer Vontade de poder

Sob opressão do intelecto. Culpa, repressão. Moralismo, vaidade.

Sem intelecto. Hedonismo, vício. Violência, medo.

Em consórcio harmônico com ointelecto. (estoicismo)

Alegria. Segurança, coragem.

O esquema dispensa maiores explicações. Há versões introvertidase extrovertidas de cada disfunção. Culpa quando o intelecto quer abafar oprazer, mas não o logra, repressão quando é bem sucedido; moralismo

Page 159: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

quando se logra abafar a vontade de poder, vaidade quando a inteligênciaa estimula. E assim por diante.

Posidônio diz, segundo Galeno, que devemos silogisar da seguintemaneira: “Coisas que não dão a mente grandeza de espírito, confiançainabalável ou paz de espírito não são bens. Riqueza, saúde e semelhantesnão produzem estas características mentais. Portanto não são bens.” ( Emais tarde Posidônio acrescenta que o que nos conduz a estas coisas é oacaso, e não há bem proveniente da arbitrariedade. O bem é sempre algoexercido, pois assim a sua realização depende exclusivamente de quem opersegue; as coisas casuais, por outro lado, são aquelas que não podemosrealizar por nossa forca apenas, logo são exteriores.

Devemos votar-lhes apenas um interesse moderadodespreocupado, já que não nos são nem inerentes, nem constantes. Tudoisso pode ser facilmente provado pela razão. Quão ridículo é aquele quepersegue a riqueza ou a saúde sem os obter, e não percebe que a suaposse depende grandemente de sorte, destino e condições do ambiente.Quão igualmente ridículo não é aquele que possui riqueza e poder e seacha o único responsável pelo seu gozo, orgulhando-se de sua pretensacapacidade, até que um vento do destino tudo lhe arranca. Estes sãoinclusive piores do que os primeiros, porque enquanto fruem de bem-estar acham-se melhores que os demais. O homem racional não se deixaperturbar nem pelo orgulho, quando frui de conforto, nem pelalamentação, quando é dele privado. Se esforça por obter prazer e poder,mas sem desesperar-se ou acomodar-se por eles. Sabendo da casualidadedas condições materiais, tenta espiritualizar sua busca por prazer e poder.Logo o seu prazer se torna o deleite da alma, e o poder se direciona doexterior para o interior, para o governo da própria vida.

Este pensamento teve enorme impacto sobre o estoicismo,modificando significativamente o seu tratamento da psicologia eespraiando-se daí para o cristianismo nascente. Perdeu, entretanto, suariqueza de detalhes, na medida em que sua obra não pode serconservada, o que logo extinguiu o interesse por um estudo aprofundadode suas teorias.

Page 160: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O mesmo esquema parece só ter surgido dois mil anos depois com apsicologia junguiana, que acomoda as distintas fontes de energia da alma,o prazer identificado por Freud e a vontade de poder identificada porAdler.[2] A este reconhecimento de uma dupla modulação da energiapsíquica o sábio suíço acrescenta uma significativa síntese entre estasforças imanentes da alma e a razão, reconhecidamente através de Kant ede Goethe,[3] que lhe permitem elaborar o conceito de símbolo, onde arazão não está mais isolada, senão perfeitamente acomodada àsnecessidades e interesses anímicos.

Com excepcional sensibilidade para os marcos de fronteira entre asdistintas partições da alma, sem, contudo, permitir que as diferenciaçõesse traduzissem em uma insípida rigidez técnica, o psicólogo mais completodo século XX apresenta o quadro vivo da dinâmica psíquica, com amplavalorização das expressões religiosas e morais, que até então não haviamsido justamente reconhecidas em sua relevante função de sentido e naspeculiaridades de sua experiência.

Embasados nesta excelência que nos dispensamos de pormenorizar,os numerosos estudos comparativos entre a psicologia de Jung e oEspiritismo, ressaltando-se indubitavelmente a obra de Joanna de Ângelis,revelam-se pertinentes e apreciáveis no que tange a formulação de umafutura e mais ampla ciência da alma.

De nossa parte observamos nas obras desta autora uma fantásticasensibilidade para as nuanças psicológicas que não necessita estar vestidasob um tecnicismo aparente, , ao contrário, experiência e ciênciaabrangentes dos fenômenos mais variados da vida psíquica. Aos críticosda linha psicológica de Joanna de Ângelis, alguns dos quais alegam que aobra não atinge o objetivo de estabelecer uma psicologia espírita,escapam as prerrogativas e premissas lucidamente declaradas nasentrelinhas do texto, as quais invertem de maneira satisfatória estasmesmas críticas.

Esperam os polemistas que Joanna parta de Jung para o Espiritismo,quando ela insiste em fazer o inverso, escapando, assim, de aplicar aoEspiritismo uma ciência cujos fundamentos conceituais são extremamente

Page 161: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

vagos. Não é preciso grande conhecimento sobre o assunto parareconhecer que as dificuldades quanto a credibilidade de Jung estão nafundamentação de sua análise, o que igualmente se aplica a Freud. Osresultados saltam aos olhos, a perspicácia revela assombrosa intuição epoder de observação, mas o ponto de partida carece de uma justificaçãofilosófica exaustiva, comprometendo tanto a solidez teórica. Com oEspiritismo ocorre o oposto; já que a psicologia é inteiramentedesdobrada de uma bem estabelecida filosofia prévia. Na ordem teóricaseguem-se a justificação da validade do conhecimento espírita em geral, acosmologia e o estudo do sistema da natureza em seus detalhes (incluindoa natureza da alma humana) e só então chega-se ao interesse nosdetalhes da vida prática. A psicologia está, desta forma, amplamenteescorada sobre uma visão de mundo onde o homem encontra-seelucidado como ser espiritual, radicado na carne e a ela conectado por umcorpo energético. Este ser está contextualizado num mundo que possuifundamento moral objetivo, sendo por isso afetado por choques derealidade no contato com valores concretos que traz em seu íntimo, epossui um histórico de vidas pretéritas cujos efeitos podem ser rastreadospara critério de esclarecimento de tendências e situações críticas dopresente. Todos estes elementos estão ausentes na moderna psicologiaatual que se vê em conflito com a visão de mundo materialista da ciência aqual quer pertencer. Por isso, mesmo ao negar esta concepção de mundo,uma teoria como a de Jung acaba por abdicar da fundamentação por elamesma exigida, abstendo-se de afirmar qualquer coisa sobre suaproveniência, condenando-se a posição de sistema excelente, mas cujasbases precisam ser lançadas como que do nada, e a critério de confiança.

Até onde podemos ajuizar, o que não significa que assim sejarealmente, Joanna de Ângelis está a lançar diante de nossos olhos umprojeto psicológico inteiramente fundamentado pela metafísica ecosmologia espíritas, e isto há décadas sucessivas, sem que alguém sedignasse de secundá-la no esforço de sistematizá-lo em linguagemacadêmica; os terapeutas e investigadores espíritas parecem acolher commuito mais satisfação as precárias e quase dogmáticas formulações dapsicanálise ou da psicologia analítica ao invés de assumirem umapsicologia integrada a um sistema de conhecimento plenamente

Page 162: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

fundamentado, e que lhes está à disposição. Será que o fazem porimaginar que a disciplina acadêmica seja mais criteriosa do que a doutrinanão acadêmica do Espiritismo? Ou apenas porque a linguagem destasescolas soa melhor em público, enquanto a linguagem do Espiritismo ficamelhor restrita ao âmbito privado? Seja qual for o motivo, uma coisa écerta: do ponto de vista filosófico o Espiritismo permite a análiseintrospectiva de acordo com sua visão de mundo, a maioria das correntesde pensamento contemporâneo não o faz. Com isto elimina-se a primeirapergunta. A segunda deveria igualmente descaracterizar-se, na medidaem que as idéias mais bem fundamentadas deveriam sempre soar melhordo que as vacilantes, em qualquer círculo social.

Bibliografia:

JUNG, Carl G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.

JUNG, Carl G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1997.

JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1980.

KIDD, I. G. Posidonius: III. The translation of the fragments. Cambridge: Cambridge University

Press, 1999.

[1] KIDD. Posidonius: III. The translation of the fragments. Pg. 19.

[2] C. G. JUNG. Psicologia do inconsciente.

[3] O que nos parece implícito em A vida simbólica e A dinâmica do inconsciente.

Page 163: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O lugar do Espiritismo no pensamento brasileiro

Ao mesmo tempo em que se insere num contexto global da históriahumana, o Espiritismo guarda também a particularidade de uma profundaassociação com a cultura brasileira. Historicamente não se podedesconsiderar o fato de ter ele prosperado no Brasil em proporções eefeitos imensamente maiores do que em outras terras. Filosoficamentedeve haver também razões para isso. Em ambos os casos, no entanto,estamos lidando com uma lacuna constrangedora em termos de pesquisa.

Se já impressiona o fato de haver pouquíssimos estudos espíritassobre a relação e situação de sua doutrina frente à filosofia e religiosidadenacionais, quão mais impactante não é descobrir que o Espiritismo,elemento exótico para a generalidade da cultura ocidental e que tantainfluência exerce sobre a religiosidade e o pensamento brasileiros, nãopossui a mais rasteira menção nos tratados destinados a esgotar agenealogia cultural do país.

Na vasta obra de Antônio Paim, o mais excelente historiador dopensamento brasileiro, não há uma única menção aos filósofos espíritas,ou tampouco ao papel do movimento espírita na construção das raízesmorais e no imaginário religioso do povo brasileiro. Também nos estudosantropológicos de Meira Penna, ilustríssimo pesquisador da cultura, só seencontram referências redutivas e estereotipadas da prática espírita, paranão dizer condenações preconceituosas, prejudicando assim sua análisefinal do espírito da nação. Estes são, apesar disto, os pensadores querendem ainda algum respeito à religião, sendo por isso inapreciavelmentemais completos do que os historiadores e sociólogos que, por orientaçãoideológica marxista, excluem logo de saída o elemento espiritual dacultura, ou condenam-no como dejeto cultural do arcaísmo português edo primitivismo africano e ameríndio a ser brevemente superado.

Este desprezo pelo papel do Espiritismo como movimento filosófico eforça moralizadora da sociedade brasileira é injustificável em face dageneralidade da crença na reencarnação, que é estatisticamente maior doque em qualquer outra nação ocidental, do trâmite entre religiões afro-brasileiras e catolicismo, muitas vezes mediado filosófica, teológica esocialmente pelo Espiritismo, em cujo quadro doutrinário estão santos

Page 164: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

católicos e fenômenos animistas lado a lado, da função social destacada eem franca desproporção com o seu percentual na população, exercidaatravés de instituições de caridade e iniciativas comunitárias, e dosnúmeros expressivos do mercado editorial espírita, também discrepantecom sua participação na população. Nas estatísticas atuais do IBGE osespíritas ocupam a primeira posição em anos de instrução, enquantojudeus e agnósticos/ateus disputam a segunda posição. É preciso mais doque conveniência pessoal para ignorar dados como estes e limitar-se areproduzir o juízo herdado da Igreja ou da academia de que tudo isso nãopassa de uma superstição muito popular. Trata-se de uma transcrição dahonestidade científica.

Por outro lado, não se pode culpar unicamente o pesquisador quelança uma visão externa sobre o tema, se da própria tradição não surgemrespostas qualificadas a este tipo de atitude. Todo intérprete tem suaspeculiaridades de estilo e interesse, quando não uma ideologia própriacom agenda propagandística. É necessário, portanto, que os espíritassaiam de sua área de conforto junto à própria comunidade e escrevampara o público leigo e/ou acadêmico. Enquanto esta função permaneceaté certo ponto discriminada no seio do movimento espírita, ora taxadacomo desperdício de energias, ora como perda de enfoque motivada pororgulho e pretensões mundanas do fiel, é natural que os antologistas eenciclopedistas da cultura ignorem o que só puderam conhecerindiretamente.

Para se ser ouvido em certos meios não basta que se seja pornatureza apropriado à temática, ou gozar de um direito conquistado pelomérito no exercício das funções em questão, mas é preciso tambémdominar a linguagem que aquele meio exige. O Espiritismo é ummovimento filosófico rico e dinâmico por si mesmo, aqueles que a ele sededicam bem o sabem, mas ele tem falhado em dialogar com a linguagemfilosófica corrente. Tem também uma vinculação profunda com a históriado Brasil e com a formação da identidade nacional, mas insiste eminterpretar a si próprio e se apresentar como elemento transplantado daFrança, sem um embate adequado com os elementos nativos quepermitiram a sua rápida difusão e sua permanência. Se o Espiritismo não

Page 165: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

aclara suas origens junto às figuras estabelecidas do pensamentobrasileiro à época de sua chegada ao país, como esperar que estasmesmas figuras tenham nele um ponto de identificação? Conquanto sejacomum às novas filosofias o ímpeto de se destacarem da tradição comouma novidade revolucionária, é obrigatório reconhecer que nenhumanovidade se estabelece sem que o terreno esteja previamente preparadopor idéias semelhantes. Kardec o fez esplendidamente em relação àcultura francesa, mas o mesmo não foi até hoje empreendido a contentopelos pensadores espíritas brasileiros.

O que gostaríamos de oferecer neste ensaio são pequenasreferenciais que auxiliem o culturalista brasileiro a enquadrar maiscorretamente o Espiritismo, ou sirvam de estímulo ao pesquisadorespírita/do Espiritismo na formulação de teses e coletâneas aptas arelacionar o Espiritismo ao quadro geral da cultura brasileira, comdestaque para a filosofia, mas apenas porque este é o campo onde nossaslimitações pessoais são menos completas.

Primeiramente é forçoso assumir que o Espiritismo conta compoucos filósofos de profissão, ou estes não se dedicaram minimamente aestabelecer ligações com a tradição filosófica em geral. Muitas vezes osfilósofos espíritas partem de uma formação autodidata focada nasfilosofias francesa e antiga, talvez por um instinto mais ou menosconsciente de emulação de Kardec.

Até onde sabemos, os dois únicos escritores com formação emfilosofia a se dedicarem a este mister foram Carl du Prel, professor deLeipzig em fins do século XIX, e José Herculano Pires, professor de filosofiada USP nos anos 60 do século passado e membro do Instituto Brasileiro deFilosofia, também tendo atuado como professor de psicologia e sociologia.O primeiro desenvolveu um aparato filosófico e psicológico muitoelaborado a partir das obras de Kant, Schopenhauer e Fries, que eracomplementado por estudos sobre fisiologia, hipnotismo e mesmerismo,também populares na Alemanha de fins do século XIX. A teoria de du Prelteve enorme influencia sobre Jung, que replicou a abordagem kantiana dapsicologia, abrindo espaço significativo para uma ciência subjetivado numinoso, o elemento de mistério intuído pelos limites do

Page 166: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

conhecimento humano. O segundo tratou resumidamente de Descartes,Bergson e Heidegger, identificando nos dois primeiros umafundamentação da independência do espírito em relação a matéria, ereinterpretando o último de forma extremamente original. Para HerculanoPires, o pensamento ontológico de Heidegger na sua busca pelo modo deconstituição do ser é uma descrição perfeita do espírito conformeapresentado pelo Espiritismo. As limitações de Heidegger quanto àfinitude da existência humana são, para Herculano, perfeitamente válidas,na medida em que ao ser humano só estejam disponíveis as experiênciasdesta vida, mas graças ao fenômeno da mediunidade é possível estenderde forma crítica o estudo fenomenológico da existência aos aspectos não-corpóreos, mas ainda perfeitamente descritíveis pela analítica existencial.Em outras palavras, com a fenomenologia mediúnica a existência extra-corpórea passa a ser concreta, não abstrata.

Ainda é muito pouco, mas já é um começo para estudos queobjetivem o enquadramento da filosofia espírita em comparação às linhase escolas de maior renome.

Do ponto de vista da genealogia cultural brasileira basta dizer que oEspiritismo tem ligação com todos os principais movimentos do períodoimperial. Por um lado bebe ele fartamente da tradição espiritualagostiniana (Pascal, Fénelon, Lammenais e o próprio Agostinho sãoconsiderados espíritos patronos da revelação espírita). Como produtofrancês, ao menos em certa medida, estava também perfeitamenteintegrado ao quadro da elite intelectual brasileira, extremamente ligada àParis. O Espiritismo pode ainda ser referido ao ecletismo espiritualista doséculo XIX, com sua apologia à perfectibilidade humana, e sua tese geralde que todas as revelações guardam uma parte de verdade, e todos osmovimentos históricos contribuem para a marcha do progresso dosindivíduos e da sociedade. Por fim, o Espiritismo está desde o começoligado ao positivismo, ao liberalismo e ao socialismo franceses, todosmovimentos capitais para a formação do pensamento brasileiro. Bastalembrar que eram espíritas assumidos o renomado astrônomo CamilleFlammarion e o escritor socialmente engajado Victor Hugo.

Page 167: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Visão histórica e cultural do Espiritismo

Até aqui foram apresentados pequenos ensaios sobre religiões efilosofias de diferentes povos, com destaque para a Antiguidade,objetivando responder as nossas próprias exigências traçadas no textointrodutório sobre a perspectiva crítica do Espiritismo. Reunimosalgumas poucas informações sobre assuntos diretamente ligados àabordagem culturalista e metafísica do Espiritismo, mas não apenasfaltam estudos específicos sobre o Espiritismo na África, na Rússia, noxamanismo americano, australiano ou indonésio, como seria precisoum tratamento competente sobre os temas que bisonhamenteapresentamos. Não obstante, nosso esforço principal era o de ilustrar oquão viáveis são estes estudos, e o quanto se poderia avançar emhistória e filosofia espírita se levarmos a sério a sua pretensão deuniversalidade, não considerando-o um produto do século XVIII.

Por outro lado, e ao mesmo tempo, toda a teoria científica,paradigma filosófico e descoberta de fenômenos até então ignorados oumal interpretados não apenas pode, mas precisa estender a sua validadepara além de quaisquer limites temporais ou geográficos. O Espiritismo ofaz sem esforço e com muita força de persuasão; diria até que o fazmelhor do que qualquer outra filosofia, na medida em que, sem excluirnenhum dos problemas e fenômenos compreendidos nas demais, tem avantagem de explicar rigorosamente um amplo espectro de outrosproblemas e fenômenos patentes e até então sem o mínimo tratamentoconceitual.

Do ponto de vista teórico, ensaios sobre história do pensamento,filosofia ou religião comparada atestam de forma excepcional aabrangência e consistência de uma doutrina; e do ponto de vista práticoeste contato interpretativo com outras tradições viabiliza a aproximação,a compreensão e a tolerância para com elas. Isso já é verdade até para asperspectivas reducionistas, que negam a base das filosofias ou religiõesalheias por reduzi-las a um elemento comum. Com as teorias afirmativas,como é o caso do Espiritismo, este efeito é potencializado ao extremo, jáque as tradições alheias não são reduzidas segundo um elemento comum,

Page 168: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mas integralmente afirmadas e valorizadas em seus valores essenciais. Asinúmeras leituras espíritas sobre o Velho e o Novo Testamentodemonstram bem este caráter positivo de uma teoria mais abrangenteque explica mais sem desmentir as alegações do sistema anterior. Ossantos e profetas continuam santos aos olhos do Espiritismo, suasrevelações e experiências não são desmentidas, mas complementadas. Ecomo bem sabemos, o mesmo pode ser aplicado ao Hinduísmo, Budismo,Taoísmo e ao Islamismo.

Um dos motivos principais de fazermos aqui uma pausa paraesclarecimento está na impressão que o site possa ter transmitido, pornossa culpa, de que o propósito desta coletânea seja enciclopédico. Seisso fosse verdade não estaríamos oferecendo serviço algum, visto quetodos os ensaios aqui desenvolvidos não superam em detalhamento asenciclopédias virtuais mais vulgares e às quais hoje todos têm acesso,como a Wikipédia. Nosso objetivo não é de forma algum apresentar umaenciclopédia da filosofia e da religião, ou sugerir que o leitor deva seilustrar sobre todos estes temas a fim de fazer um estudo filosófico doEspiritismo. Ao contrário, nosso único propósito é demonstrar que, pelasua própria natureza fenomenalista, racionalista e fraternalista, por suacombinação não sectária de ciência, filosofia e religião, o Espiritismo podeser “enxergado” em toda a parte, o que faz dele uma verdadeira ecompleta cosmovisão.

Outra questão relevante neste “balanço” do site até aqui é aprioridade dos estudos sobre a Antiguidade. Um estimado amigo queanalisou estes ensaios nos chamou atenção para o fato de que algunsdeles não são voltados nem para o Espiritismo, nem para a filosofia, o queem princípio fere a proposta temática deste site. Só nos resta anuircompletamente. Afinal o que o judaísmo arcaico ou a filosofia milenarchinesa podem ter a ver com o Espiritismo? Nada! O Espiritismo, poroutro lado, pode e deve ter a ver com as experiências religiosas e teóricasmais antigas, pois é ele quem pretende englobar as doutrinas isoladas esuperar suas contradições num modelo mais abrangente. Não se podeesperar que tradições cuja intenção básica seja a de bastarem-se a simesmas dêem partida a iniciativas agregadoras. É ao Espiritismo que cabe

Page 169: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ir de encontro a elas, pois é ele quem está constituído como propostaexplicativa e complementadora.

Caso esta seja realmente uma necessidade ou pretensão da doutrinaespírita, ela não precisa se desgastar no estudo dos detalhes de umahistória da filosofia ou uma história da cultura. Basta-lhe demonstrar suaaplicabilidade aos princípios gerais, e para isso nada é mais efetivo do queretornar à matriz de cada cultura e linha de pensamento. Se levantamosuma correspondência sólida entre o Espiritismo e as bases do pensamentoindiano, por exemplo, não é necessário um estudo pormenorizado deinúmero autores desta tradição, pois as afirmações válidas para a matrizpodem ser generalizadas com alguns reparos às suas ramificações.

Na teoria interpretativa do Espiritismo parecem estar pressupostasduas teses fundamentais sobre a cultura: a primeira se refere àuniversalidade da revelação espiritual em todos os povos e épocas, o queé uma tese arrojada, mas possível de sustentar diante das similaridadesentre crenças e filosofias religiosas; a segunda se refere à absolutidade docristianismo, ou seja, a capacidade do Cristianismo de abranger todas asoutras crenças e filosofias ou ao menos apresentar uma equivalênciasatisfatória. Embora estas teses não sejam diretamente declaradas elaspodem ser inferidas de tudo o que o Espiritismo prega no âmbito de suahistória da cultura. São paradigmáticas as palavras do Espírito de Verdadeno sexto capítulo do Evangelho segundo o Espiritismo: “...reuni o bemesparso no seio da humanidade”.

Este posicionamento possui, como qualquer definição, um aspectoagregador e um aspecto segregador, pois o conceito mais abrangenteprecisa também separar e distinguir para não se confundir com umaafirmação vazia. A sua parte positiva é que, ao reconhecer o gérmen deverdade na essência de todas as filosofias humanas, reúne-as e dignifica-as. A sua parte mais delicada e possivelmente danosa é que a afirmaçãode um caráter especial do Cristianismo pode dar a entender que as demaiscrenças e filosofias não passem de formas primitivas e/ou decadentesdele. Expurgar esta impressão é tarefa do Espiritismo bem como doCristianismo, ao que são obrigados pela sua teoria explicativa abrangente,

Page 170: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

e esta tarefa só pode ser posta em prática através de uma atitudelegitimadora diante das demais crenças e religiões.

É comum ouvirmos expressões de suposta tolerância por parte dosespíritas, discriminando sua própria doutrina a título de exemplo dehumildade. Este comportamento não é mais racional ou louvável do que ode considerar as demais posições como estágios infantis da religião,correspondentes ao espírito menos amadurecido dos que asprofessam. Não é preciso desvalorizar-se para valorizar os outros, nemnegar sua própria virtude para agir com dignidade. Espiritismo eCristianismo podem com toda a segurança afirmarem a sua autoridadeuniversal enquanto tomarem todos os seres humanos por filhos de Deus,louvarem todos os santos, profetas e guias espirituais de outras religiões eposicionarem os praticantes dignos de outras crenças na dianteira dospraticantes indignos de sua própria. Com isto distinguem-se, no geral, dequase todas as outras doutrinas filosóficas e religiosas, que junto aexcelentes verdades guardam quase invariavelmente o sectarismo dasidéias de origem puramente humana.

A doutrina oficial do catolicismo e o seu escalão político sediado novaticano são um perfeito exemplo de quão personalista pode se tornar areligião. O próprio Cristianismo não sobreviveu à soberba da teologiaexclusivista, dos rituais espúrios e hierarquizados, da máquina econômicae política da igreja romana. Que pensar de uma filosofia que ponha osseus adeptos no paraíso e os seus opositores no inferno; aos seus averdade e aos demais o engano e a mentira? E por mais absurdo que sejanão é assim que procede a maior parte das religiões sob a Terra?

É, portanto, perfeitamente razoável afirmar que o Espiritismo, ououtras doutrinas semelhantes, qualifica-se e distingue-se de outrascrenças e filosofias pelo seu caráter progressista, universalista e crítico.Enquanto o Espiritismo toma diversas referências católicas como Franciscode Assis e Vicente de Paulo como modelos de perfeição humana, o mesmonão se pode dizer da postura católica em relação ao Espiritismo, quedesde o princípio direcionou-se para a associação da prática espírita com amagia negra, a queima de livros no auto de fé de Barcelona e adiscriminação ostensiva. Não há contradição em abraçar o universo da fé

Page 171: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

católica num gesto conciliador e, ao mesmo tempo, condenar a suapostura e estrutura obsoletas e anti-cristãs. Aliás, chega a ser umaredundância lógica pregar a tolerância e repudiar o partidarismo.

É preciso enfrentar diretamente temas deste tipo para evitar asambigüidades no julgamento e a inconsequência de opiniões. A naturezado saber humano é progredir através da reformulação de teorias que nosajudem a agrupar os diferentes aspectos da vida, e estas teorias não nosoferecem nada se não puderem incluir de modo proveitoso as teoriasprévias. Não cabe aqui um verniz de tolerância politicamente correta queao final se traduza em indiferença, pois se tudo é indiferente, igual oudependente do gosto de cada um não há qualquer critério racional paraefetuar um julgamento, e estamos confessando escolher com base em

dogmas prévios. Uma vez que não o queremos mais, precisamos definirfronteiras e pontes claras entre as diversas estruturas de pensamento.

A filosofia de Jesus

O Espiritismo tem na pessoa de Jesus o ideal e exemplo dedesenvolvimento máximo do espírito; as demais denominações cristãs otem como Deus-Filho, pessoa da Trindade Divina; os estudiosos dedicadosa uma análise histórico-crítica do Novo Testamento, nem sempre movidospor compromissos de fé, tomam-no por seu papel social, não ignorando,porém os seus dotes e capacidades singulares; islâmicos consideram-noum dos mais importantes profetas; budistas e hinduístas diversos já sepronunciaram sobre Ele como sendo um grande iluminado, guru e mesmoum ser divino. De qualquer que seja a perspectiva adotada, seria precisodesconsiderar completamente o relato dos Evangelhos para desprezar oumesmo reduzir ao plano de pensador comum a figura de Jesus. Fazsentido, portanto, supor que um indivíduo tão universalmente admirado erespeitado pelo seu ensino, a ponto de influenciar sobremaneira a culturaocidental, com reflexos sobre outras, tenha uma filosofia própria.

Page 172: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Tratar da filosofia de Jesus, no entanto, continua a ser um trabalhoextremamente ingrato, porque paradoxalmente este complexo einesgotável pensador é tido pela maior parte da tradição filosófica comorevelador religioso apenas, ao qual não se aplicariam as categorias dodiscurso filosófico. Ainda que esta conclusão absurda tenha sidocontestada por inúmeros nomes ilustres, a concepção vulgar, incluindo acultura acadêmica, repete os papéis estereotipados atribuídos pelosteólogos mais ortodoxos, sejam os católicos ou protestantes, de Cristo edos apóstolos em seus papéis dogmáticos.

Estranhamente o pensador que orienta toda a ética, metafísica epsicologia do Ocidente, especialmente querido pelos racionalistas detodos os tempos, teve a sua profundidade filosófica pervertida pelasdisputas clericais iniciadas pouco após a sua morte. E com isso não queronem me referir aos pontos em que evidentemente Jesus possuiascendência absoluta sobre o pensamento humano, tais como a questãoda imortalidade, a ética, a dignidade humana, a teologia, oautoconhecimento, etc. Prefiro levantar um dos problemas mais graves dametafísica e ontologia, onde suas ideias tão frutíferas continuam aoferecer ilimitados contributos, sem que sejam ainda reconhecidas.

Um daqueles pontos nos quais a razão parece estar em conflitoconsigo mesma, para reproduzir a feliz expressão de Kant, é o conflitoentre livre-arbítrio e determinismo. Questão que deve a sua formataçãomoderna, senão a sua essência, aos problemas e soluções levantados pelopensamento de Jesus. Em nenhum outro pensador os dois elementosestão tão presentes, tão harmoniosamente unificados, de modo que sequalquer outra influencia tivesse sido determinante nesta questão, afilosofia deveria ter pendido para um dos dois. Se estoicos ou epicuristastivessem prevalecido na orientação da tradição europeia, tenderíamospara o determinismo. Se o platonismo ou o aristotelismo tivessemprevalecido, seríamos excessivamente confiantes no nosso poder. Asíntese de Jesus equilibrou de tal modo esta questão que o conflito passoua ser, ou insolúvel ou marcado pela igualdade complementar das duasforças, correspondendo esta última variante ao que se produziu de maiselevado na filosofia e teologia humanas.

Page 173: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A defesa que Jesus faz do livre-arbítrio transcende todas ascategorias segundo as quais se havia julgado o poder do homem,elevando-o às alturas da Divindade, fazendo do homem até então vistocomo animal, ou na melhor das hipóteses cidadão, o herdeiro do Deusúnico e absoluto. É tão grande a liberdade, na concepção de Jesus, que afé do homem pode transportar montanhas, e todas as forças de sua almaestão sob o seu controle.

A fé, aliás, é exaltada sem qualquer restrição, sendo que “tudo oque for pedido com fé, será obtido”[1], e o rabi galileu atribuía as curas emilagres à fé dos requerentes, lembrando-lhes que “fora feito segundo asua fé”[2]. Em nenhum momento Jesus diz aos discípulos que eles sãoincapazes de repetir os seus feitos por ausência de talento ou habilidade,mas garante-lhes, ao contrário, que nada lhes é impossível, e osrepreende sempre por não terem a fé suficiente para tal ensejo.[3]

Quanto ao patrimônio íntimo Jesus inovava colocando todos ossentimentos e pensamentos sob a tutela da consciência. Enquanto a éticalidava até então com atos, Jesus ressalta a liberdade de consciência,estendendo a nossa responsabilidade aos “pecados cometidos empensamento”[4]. Recomendando a vigilância, estava ele afirmando anecessidade de regrar as emoções e ideias. Transformando o amor emmandamento, ele contrariou completamente a ideia de um amorpassional ou fruto de inclinação, gosto, tendência e lançou as bases aindaincompreendidas da reforma emocional. Ao impor o amor a Deus e aopróximo como mandamento maior, assegura-nos de que qualquer pessoatem o governo de seus sentimentos, sendo responsável pela amargura,aridez ou floração interior. Pregou a verdade que liberta, e afirmou que oshomens andavam até então como escravos de seus pecados[5], estandolibertos a partir de então pela revelação de que o espírito é senhor de seudestino, a par de todos os hábitos, costumes, instintos, atavismos ecompromissos sociais.

Ao mesmo tempo e sem diminuir em nada esta prerrogativa deliberdade, Jesus apresentou uma visão da Providencia tão absoluta,onipotente e imanente a todos os fenômenos da criação que mesmo osJudeus se espantavam com a sua convicção de que todas as coisas são

Page 174: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

determinadas por Deus. Recomendou a resignação incondicional àsagruras da vida e às provações enviadas pela divindade. Apontou Deuscomo o Pai e Senhor da vida, em cujas mãos devemos nos depositar comdesassombro, sem preocuparmo-nos com o dia de amanhã.[6] Reuniu nosublime Sermão da Montanha as condições da iluminação com destaquepara a entrega, abnegação e confiança na direção que Deus dá ao mundo,dando a entender que o futuro está em Suas mãos. Orou sempre a Deusque tudo transcorresse conforme a Sua vontade[7]. Baseou a própriagrandeza na destruição da vontade pessoal e na submissão a vontade doPai, apresentando-se assim como revelação máxima de Deus, na exatamedida em que não reconhecia ser nada fora Dele.[8]

Esta doutrina de implicações oceânicas gera há dois mil anos umestarrecimento da razão. Os que a aceitaram de modo humildeencontraram nela a serenidade e a consolação do determinismo divino e aresponsabilidade e grandeza da liberdade individual. Os muitos quetentaram equacionar as suas intrincadas estruturas reduziram-nas aspróprias limitações e enfatizaram os polos correspondentes as suaspreferências.

Santo Agostinho concentrou-se na ideia de Deus, depositando Nele,causa de tudo, a decisão sobre a salvação humana, e deixando ao livre-arbítrio apenas a decisão entre aceitar ou não a eleição. Pelágio,enfocando a divindade e responsabilidade do indivíduo, colocou nas mãosdo homem a salvação ou queda, confrontando a ideia de Agostinho sobrea eleição pela Graça de Deus, e estabelecendo a necessidade de obraspara a elevação do espírito. Graças ao poder político do bispo de Hipona,Pelágio foi fortemente perseguido e finalmente julgado como herege,pesando fortemente sobre os ombros do santo africano aresponsabilidade pelo desequilíbrio filosófico e doutrinário doCristianismo.

Lutero e Erasmo, o reformista protestante e o católicorespectivamente, repetiram a mesma disputa mais de mil anos depois,dando sinais de que a humanidade pouco evoluiu na interpretação dafilosofia de Jesus. Enquanto Lutero condenou o livre-arbítrio em seulivro De servo arbitrio (Sobre o arbítrio escravo), Erasmo o exaltou em seu

Page 175: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

livro-resposta De libero arbitrio(Sobre o livre-arbítrio). Lutero acreditavaque a única coisa em poder do homem é a sua entrega a fé. Se o fizesse, ohomem converter-se-ia por força do poder de Cristo, e a fé revelada otransformaria. As boas obras seriam uma mera consequência destaconversão. Erasmo, racionalista e liberal, rebatia que haviam muitasinterpretações conflitantes sobre as escrituras, e que era impossíveldistinguir com certeza a fé correta da equivocada, a aparente da sincera, eque por isso a razão deveria fiscalizar a fé, e o homem deveria manter oseu livre-arbítrio e juízo crítico, embora aceitando a orientação dasescrituras. Erasmo também enxergava passagens em que Jesus sugere olivre-arbítrio, e por isso concluía que, na dúvida, o homem deveria agircomo se a salvação dependesse de suas obras, esforçando-se por simesmo como se não estivesse salvo, ao invés de entregar-se a ideiadogmática de estar garantido pela fé.

Ainda outras vezes a história da teologia e da filosofia polarizou-se numadicotomia do pensamento de Jesus, em detrimento da completudemagnífica que a sua síntese harmônica oferecia. Mas conquanto estasdiástoles do pensamento tenham provocado contendas, foi tambémimportante para o exercício do raciocínio que estas divisões didáticas esimplificadoras da dialética cristã ocorressem. Se ao menos pudermosaprender com este processo de evolução histórica, podemos evitar acontinuidade desta cisão, e reconstituir a metafísica de Jesus em suapotencia integradora original, onde livre-arbítrio e Providencia implicam-se mutuamente, ao invés de se contradizerem.

[1] MATEUS 21:22; MARCOS 11:24.

[2] MARCOS 5:34; LUCAS 7:50 & 8:48; MATEUS 9:22.

[3] Como no episódio em que Pedro caminha sobre as águas, bem como naexortação de JOAO 10:34.:“vós sois deuses, e tudo o que eu faço também podeisfazer, e ainda mais” E em Marcos 9:23.:“Tudo é possível para aquele que crê”.

[4] MATEUS 5:27.

Page 176: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

[5] JOAO 8:33-34.

[6] MATEUS 6:28

[7] Não só na oração do pai nosso como também em MATEUS 7:21 & 12:46-50;JOAO 4:34, e muitas outras passagens mais indiretamente.

[8] JOAO 5:19-38 & 14:8-10

A absolutidade do Cristianismo

É indiscutível que o pensamento ocidental tenha surgido na Grécia.O helenismo é o traço marcante de todas as culturas mediterrâneas apóso reinado universal de Alexandre da Macedônia, e esta predominância doespírito grego só fez crescer com a expansão do Império Romano.

Os críticos religiosos e exegetas querem acusar Paulo de“platonizar” o cristianismo. Há inúmeros tratados, cada qual com sua cotade verdade, sobre como o pequeno movimento judaico transformou-sesob a influência de inúmeros intelectuais gregos numa filosofiaabrangente. Todos ignoram, entretanto, que o ambiente cultural eintelectual da Palestina à época de Augusto já era marcadamentehelenizado. Historiadores mais cuidadosos como Eduard Zeller noslembram de que o popular movimento místico e moralizador dos essêniosnada mais era do que uma síntese do judaísmo com as filosofias gregas,particularmente o estoicismo e o platonismo; que a Septuaginta nasceunuma comunidade de judeus helenizados do Egito, acrescentando à Bíbliao nada judaico Eclesiastes; que não apenas Paulo, como a maioria dosdoutores da lei dominava o grego e o latim; que a Síria, a Capadócia, aLídia e as ilhas gregas eram morada de grandes comunidades judaicas jámuito helenizadas, a ponto de se tornarem, algumas seitas distintas,outras ecléticas o bastante para abraçar elementos do esoterismo persa,dos mistérios caldeus ou da mitologia egípcia. A imagem que Paulo nospassa pelas suas epístolas é a de um enorme cosmopolitismo onde aconvivência com todos estes elementos era natural e inevitável. Seria

Page 177: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

muito ingênuo imaginar que estas influencias não existissem à época deJesus, mas fossem onipresentes quinze, vinte anos após a crucificação.

A evidência da presença grega na Palestina e na vida intelectualisraelita é importante indício de que Jesus, se não amplamente versadoem filosofia grega, era ao menos familiarizado com o intercâmbio entreesta e a sua cultura. Os relatos de suas discussões com os sacerdotes dotemplo de Jerusalém ainda na infância, o domínio das escrituras e aerudição apresentados nos debates com os fariseus, com Pilatos e comNicodemos atestam a educação invulgar de Jesus. Por fim, mas não menosimportante, a boa convivência com samaritanos, romanos, gregos, sírios etoda a espécie de interlocutor, sem restrições ou distinções,frequentemente valorizando estrangeiros não judeus em detrimento dossacerdotes (como na parábola do bom samaritano), ou mulheres emdetrimento dos homens, demonstram o universalismo da mensagem deJesus, em franca contradição com a ortodoxia hebraica e suas tradições.Não foi com esforço ou alterações que Paulo estendeu a Boa Nova aosgentios, senão graças a sua própria essência universalizante.

Não fosse a doutrina de Jesus universal, jamais poderia pretender-se absoluta, e esta é uma exigência das mais essenciais para a religiãocristã. A absolutidade do cristianismo, com seus matizes, prós e contras,depende integralmente de sua mensagem não estar restrita a comunidadejudaica. Nenhuma das chamadas religiões mundiais, aliás, merece esteposto enquanto restringe a atuação de seu deus ou salvação a um grupoétnico ou cultural. Esta é uma premissa metafísica básica das religiõesmundiais: o seu deus precisa ser universal, onipresente. E o cristianismonão quer apenas afirmar a universalidade de seu deus, mas o caráterabsoluto da sua revelação.

Este tema torna-se extremamente problemático com o advento damodernidade e o confronto com outras religiões mundiais. Mas aindamais dramático é o confronto entre a exigência de absolutidade docristianismo e o fundo cético e relativista da modernidade. A críticahistórica e científica das sagradas escrituras gerou o célebre conflito entreciência e religião, típico e exclusivo da cultura ocidental, embora agora jáabsorvido por todos os demais povos civilizados. A resistência do clero

Page 178: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

(não do cristianismo enquanto tal) contra o avanço do esclarecimento e areação deste, consistindo numa equivalente exclusão do diálogo com areligião, provocou a cisão do espírito ocidental responsável ainda hojepela fragmentação do pensamento, perda dos valores e referenciaiscoletivos, deterioração das noções básicas de identidade histórica dospovos ocidentais, entre outras dificuldades.

Uma delimitação precisa da natureza absoluta do cristianismo faz-se, portanto, urgente. Sem esta seria melindroso lidar com qualqueraspecto da religião crista, sob risco de desintegrá-la e reduzi-la a umaproposta moral relativa, compatível com as expectativas e exigênciasfilosóficas atuais, ou retrogradar ao estado dogmático e autoritário doabsolutismo cristão conforme pregado pela ortodoxia predominante emtodas as denominações (romana, grega e protestante) até meados doséculo XVIII.

De forma sintética a parte “podre” da absolutidade do cristianismoestá na sua exclusividade dogmática, que não dista em nada daexclusividade e absolutismo de qualquer outra religião dogmática,resumindo-se na ideia de que esta é a revelação final e exclusiva para asalvação. No cristianismo ortodoxo isto é tão presente quanto nasmitologias primitivas, já que o conceito mais fundamentalista de trindadeafirma uma supremacia da pessoa de Jesus sobre todas as demaisrevelações. Neste aspecto não há distinções significativas em relação aojudaísmo, o islamismo ou o hinduísmo, também notadamenteabsolutistas. Este aspecto negativo e dogmático foi duramente combatidodurante toda a Era Moderna, e mesmo antes dela.

Os que melhores resultados apresentaram contra a absolutidadedogmática do cristianismo foram os neo-protestantes, tambémconhecidos como protestantes liberais. Este grupo, conforme definidopelo historiador das religiões Ernst Troeltsch, é composto por inúmerosmembros de um movimento tardio de “reforma da Reforma”, que incluicríticas históricas, racionalismo filosófico e científico, e uma teologia cristãmais pluralista. Seus expositores mais reconhecidos são Spinoza (emboranão fosse cristão), Lessing, Herder e o Idealismo alemão, mas no sentidode Troeltsch este neo-protestantismo engloba movimentos contra-

Page 179: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

reformistas católicos (Fénelon, Lammenais, Rousseau, etc), espiritualismode vários tipos (incluindo o Espiritismo, os Rosacruz, a Teosofia, etc),orientalismos amalgamados ao cristianismo e outras manifestaçõescontemporâneas de crença, viabilizadas pelo espírito individualista elibertário da reforma protestante. Enquanto o protestantismo ortodoxo,por assim dizer, elaborou uma nova base dogmática para o cristianismo, oneo-protestantismo ou protestantismo liberal é a proliferação deinterpretações livres do cristianismo, baseada na nova concepçãomoderna de que o espírito crítico de interpretação individual da religião étão melhor quanto mais independente da ortodoxia das igrejas. Nestemovimento está também implícito um retorno ao cristianismo primitivoda época “pré-clerical”. Os seus adeptos defendem ferrenhamente anecessidade de independência para a interpretação do “espírito” dasescrituras, e que toda a forma de ortodoxia corresponde a umcondicionamento à “letra”, seja a original, seja a estabelecida pelateologia dogmática.

Arejado pelo confronto com a crítica racional, histórica e cultural, ocristianismo reestrutura-se ainda, apesar de bolsões conservadores comoos do fundamentalismo neo-pentecostal (nossas famosas igrejas“evangélicas”) e católico. Dentro do protestantismo de alto nível,representado pelo Luteranismo, Presbiterianismo e outras facçõessectárias como os Quaker, predomina o espírito liberal, pluralista etolerante que nos países católicos acaba restringindo-se aos grupos maisheterodoxos como o Espiritismo. De qualquer forma, a presença degrupos cristãos liberais já é tão difundida, e tão precária é a situação dasinstituições mais conservadoras, que o fim do absolutismo dogmáticocristão está praticamente consumado entre as camadas mais educadas dapopulação do mundo ocidental.

Uma supremacia arrogante não é mais tolerável entre os cidadãosrazoáveis da era do conhecimento e da liberdade, não obstante, anatureza do cristianismo não se permita privar de uma força absolutizanteintrínseca à especificidade de sua revelação. Para compreender o aspectopositivo da absolutidade do cristianismo é preciso identificar as suascaracterísticas elementares, ou melhor dizendo, aquelas que prescindem

Page 180: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

de uma apologia dogmática e podem encarar as exigências e critériosmodernos sem se desgastar.

Importantíssimo, entretanto, é que este discurso não se prive doviés crítico e pluralista que engrandeceu o cristianismo moderno e opurificou de todo o seu aspecto dogmático que, ao contrário, nivelou-ocom as crenças mais mundanas e o sectarismo típico das ideologias desupremacia étnica e cultural. Um sintoma inconfundível desta patologia éo menosprezo das demais tradições religiosas, e por isso é tão importantea estima e o zelo respeitoso por todas as crenças, vistas como revelaçõesda verdade e dignificadas por esta perspectiva. Este é um dos motivospelo qual apresentamos aqui, em diversos artigos, uma análise apreciativade diferentes culturas da Antiguidade, de modo que a nossa apologia daabsolutidade do cristianismo não soe exclusivista ou sectária.

A revelação cristã distingue-se das demais sem confrontá-las. Éabsoluta por incluí-las, não por negar a sua validade. Poder-se-ia mesmodizer que é absoluta na exata medida em que reconhece todas as demaise se integra a elas. O cristianismo é absoluto enquanto afirma a divindadede todas as criaturas, a salvação universal, o amor a Deus e ao próximocomo mandamento central, a paternidade de Deus em relação aoshomens, o perdão incondicional das ofensas, a caridade estendida até aosinimigos, a eficácia da intenção e do sentimento sobre os dogmas etécnicas. Ele traz a revelação da imortalidade geral, da misericórdiairrestrita de Deus, e da ascensão do sentimento sobre a crença, da fécomo atitude existencial sobre a fé como adesão a um dogma, da reformado comportamento pela intenção, não pela exigência social ou ritual.

Mas todas estas características, conquanto sublimes atestados dadivindade de sua origem, não o distinguem tanto da parte superior eeminentemente espiritual de outras grandes religiões. A humanidadeproduziu a contento exemplos de santidade, concepções abrangentes deDeus, explicações complexas e consoladoras sobre o destino humano e osignificado da vida. Aquilo que diferencia radicalmente o cristianismo emsua absolutidade são basicamente dois eventos: a ressurreição e arevelação do Pai na figura do Cristo.

Page 181: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A ressurreição é o acontecimento ímpar na história mundial quecomprova a vitória sobre a morte. Nenhuma outra revelação lhe éequivalente, pois os profetas e fundadores de religião sempre gozaram devisões ou audições especiais, privilegiadas, comunicadas aos seusdiscípulos sob exigência de confiança nestes relatos. A ressurreição é aexposição pública e notória da imortalidade do espírito e da suaindependência do corpo, compartilhada irrestritamente diante de umamultidão de discípulos de Jesus no evento da ascensão aos céus.

A conversibilidade de identidades entre Deus e Jesus, e a auto-revelação deste segundo como o exemplo e semelhança do Pai, conformerepetidamente afirmado no Evangelho de João, é a revelação completa efinal de Deus, sem superação possível no passado, presente ou futuro.Toda a revelação de Deus foi e é feita a um profeta, que a transmite empalavras humanas para a comunidade. Somente com Jesus a revelação foiintegralmente exposta em espírito e verdade, já que ao responder àexigência de Filipe, “mostra-nos o Pai”, Jesus deu-se a si mesmo como aconcretude de Deus diante dos olhos e ouvidos de todos, em exemplo deconduta, pensamento e sentimento perfeitamente divinos. Enquantotodos os profetas e iluminados falaram de sua experiência com o sagrado,Jesus atualizou em si esta experiência, personificando e encarnando osatributos divinos em sua máxima expressão possível neste mundo. Aotrazer o Deus extraterreno e misterioso das alturas para a forma familiardo Pai, converteu-se no Filho modelar imediatamente presente e passívelde imitação por parte de seus discípulos, estreitando assim a relação entreo homem e Deus e criando uma ponte permanente entre a Terra e osReino dos Céus. Enquanto todos os emissários de todos os povos sereconheciam justamente como mensageiros, Jesus espelhou diretamentea glória de Deus, aproximando das inteligências mais simples e dossentimentos mais duros a presença divina, e é desta forma que eleresponde a Filipe: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tensconhecido? Quem me vê a mim vê o Pai. Como dizes tu: Mostra-nos oPai?”.

Page 182: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A essência do judaísmo

O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel definiu a essência dojudaísmo como a consciência da separação entre o homem e a suaorigem. Na figuração personalista do deus de Israel, o homem encontra-se“face a face” com um antagonista, ou “outro” com quem tem uma relaçãode temor e louvor. A consciência do judaísmo seria, para este filósofo,uma etapa muito avançada da descoberta espiritual humana, pois, emcomparação com outros povos, os hebreus teriam a vantagem dereconhecer o drama da diferença. Mesmo as civilizações mais avançadas,a exemplo dos gregos, não teriam no entender de Hegel uma consciênciaclara da diferença. Os distantes deuses olimpianos ou as deidadesindianas, ligadas também a distintos elementos da natureza, falhariam emcriar este sentimento concreto de distancia e separação tão claro no VelhoTestamento.

Ao contrário dos panteões politeístas, onde os deuses nãoconseguem ocultar seu mistério, já que estão diretamente ligados a coisasou atividades distintas, o Deus Supremo de Israel é o inteiramente“outro”, grande e incompreensível demais para a mente humana. Seusatributos são efetivamente espirituais, e não se resumem a patrocinaresta ou aquela profissão, fenômeno natural ou emoção; eles transcendemo mundo, e o homem está no mundo; os deuses do panteão também.

A essência do cristianismo, ainda segundo Hegel, só poderia ternascido das entranhas do judaísmo. Isto porque o cristianismo tem comomissão reunificar o que estava distinto, unir o separado, e nas religiõesonde não havia drama e conflito entre Deus e os homens não haviatambém sentido em uma reunião. Não diminuindo os méritos das outrasreligiões, o judaico-cristianismo tem uma poderosa vantagem filosófica,aclarando a diferença intrínseca da subjetividade em relação ao divino, ereconciliando-os.

Até onde está certo o filósofo? Difícil dizer. Mas devemos nos inteirarda essência do judaísmo, seja ela qual for, se quisermos compreender ocristianismo.

Page 183: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O judaísmo é definitivamente a religião do deus que se revela aomundo; não conheceu em suas origens a especulação. E um deus que serevela o faz sempre por um motivo ético, ou seja, mostra-se parainfluenciar de alguma forma o comportamento daqueles a quem serevelou. Cientes de que o seu deus não se havia revelado apenas para serconhecido, os hebreus guardaram firmemente as noções de promessa edestino. O Senhor falou aos homens, não para dizer eis-me aqui, mas paraenviar-lhes mandamentos, promessas e consolação. Em resumo, Elemostrou-se para mudar o mundo, não para notificá-lo de Sua presença.

Todas estas idéias estão entre os fundamentos pétreos do judaísmo.Os mandamentos: aquilo que o deus espera de nós; as promessas: aquilocom que o deus garante recompensar os que cumprem seusmandamentos e se mantêm fiéis a ele; e a consolação: a aliança que deusfaz com o seu povo, de estar sempre presente com ele.

Mas o Velho Testamento inclui muito mais do que a revelação deDeus. Poder-se-ia dizer até que ele é minimamente dedicado à narrar arevelação, e majoritariamente voltado para outros assuntos. Cada umdestes assuntos segue seus próprios critérios, lógica e interesses, e oscríticos ou defensores da Bíblia cometem verdadeiras barbaridades aotentarem fazer dela um texto uniforme e coerente.

Entre as funções dos distintos livros que compõem o VelhoTestamento estão: 1- O resumo de toda a cultura de todo um povo.2-História, não apenas dos judeus, mas de povos vizinhos; 3- Leis;4-Sabedoria (o mais próximo de uma filosofia judaica); 5-Poesia(Salmos ecânticos); 6- Profecias.

Pois bem, profecias seriam as revelações do deus de Israel aos seuseleitos, versando sobre assuntos propriamente religiosos, comomandamentos, promessas e consolações, ou assuntos de utilidade pessoale comunitária. Todos os outros cinco elementos são de origem humana, enão é preciso muita argumentação para provar isto. Que os registroshistóricos estejam apenas secundariamente ligados a revelação divina éuma evidência de princípios. Não obstante, tanto judeus quanto cristãosde diversas denominações incluem elementos da história, leis sociais e

Page 184: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

costumes descritos pelas escrituras sob a égide da teologia, prestandocom isto um terrível desserviço a esta.A maior parte dos ataques à Bíblia, todos sabem, objetiva suas narrativasmitológicas, registros históricos imprecisos e leis sociais correspondentesa uma vida pastoril muito primitiva. Embora estes aspectos não tenhamnenhuma relação direta com a revelação profética, o fato de a religiãooficial estabelecer um vínculo entre as diferentes funções das escriturasgera uma dificuldade tremenda no julgamento por parte de pessoas nãoespecializadas quanto à validade e os critérios de verdade do VelhoTestamento. Ainda pior, a forma irresponsável de homogeneizar o Velho eo Novo Testamento como um texto único acaba por denegrir o último,também desmerecido em função dos problemas do primeiro.

É, portanto, obrigatória uma leitura teológica, histórica efilosoficamente crítica da Bíblia, sem o que a compreensão dos detalhes setorna impossível, e o conjunto, erroneamente indiscernível, se tornaobscuro e irracional.

Para começar, a história concreta do povo de Israel só começa a sercientificamente comprovável a partir de Moisés (+ou – 1500 a.C.). É difícilsaber qualquer coisa sobre o período anterior ao do cativeiro no Egito. Sópodemos acreditar que o relato é mais ou menos próximo da realidade, eas histórias de Abraão, Isaac e Jacó foram bem preservadasoralmente. Até Moisés, as mensagens transmitidas aos patriarcas nãoeram muito distintas das que os religiosos caldeus, gregos e egípciosrecebiam. Os anjos eram bem conhecidos dos babilônicos antes dosjudeus, e os egípcios eram os únicos a acreditar num Deus único.

Os judeus não eram monoteístas, o que é muito óbvio na leitura doVelho Testamento, inclusive até a época de Elias. Eles tinham na melhordas hipóteses um deus único para o povo hebreu,que se destacava empoder e qualidade em relação aos demais deuses, constantementedemonizados, e cada povo possuía como seu protetor um destes outrosdeuses. Foi provavelmente no Egito que Moisés, ou um grupo depatriarcas judeus, aprendeu a idéia do Deus único (agora sim com “D”maiúsculo), criador do mundo. Assim Moisés pôde desenvolver uma

Page 185: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

história coerente que inclui a gênese do mundo por Deus e as origens dopovo judeu.

Naturalmente, a mitologia desenvolvida no Gênese tem o seugrande valor simbólico, como também as mitologias de outros povos, enos permite não apenas olhar para uma visão de mundo primitiva dacriação e funcionamento do cosmos, como também e principalmenteextrair informações valiosas sobre a filosofia, as revelações e as intuiçõesdos primeiros profetas judeus.

Também é Moisés que recebe de Deus para criar leis e regras para oseu povo. Ele estabelece algumas sob inspiração divina (mandamentos) ese esforça para criar outras conforme seu juízo e capacidade. Depois deMoisés, os heróis e profetas de Israel passaram a transmitir informaçõesorais, novamente, com exceção dos Salmos, que eram escritos comopoemas de louvor.

Quando Davi se torna rei de Israel, Deus revela-se a ele com adisposição para uma nova aliança com os hebreus. A mensagem diz quechegou o tempo de os judeus viverem em cidades, não mais vagando pelodeserto. Assim exige-se a construção de grandes templos para asatividades religiosas, em torno dos quais devem fixar-se para sempre astribos.

Repetimos, até aqui poucos destes relatos eram escritos. Haviaalgumas leis, partes do Pentateuco e salmos em papiro, mas a tradição ehistórias mais importantes continuaram a ser transmitidas oralmente, atéque a primeira versão da escrituras foram compiladas durante o exílio naBabilônia, em 515 a.C. Desde então acrescentaram-se ainda livrosdiversos, como Jeremias e Isaías.

Após este curto esforço “iluminista”, voltando a essência da religiãojudaica, a linha mestra da religião judaica é a manifestação de Deus aosseus escolhidos, os mais fiéis entre os fiéis. Ele garante a descendência deAbraão, salva Noé e sua família, conduz Moisés pelo deserto, alça Davi dopasto ao trono, é a segurança dos profetas; mas a nenhum deles Deusgarante a sua bênção gratuitamente, de modo que a necessidade domérito é cristalina em todas as passagens. Escolhidos pela virtude,

Page 186: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

permanecem sob o amparo divino enquanto se mantêm nesta virtude.Não encontram tampouco facilidades mundanas, mas amargam vidasásperas onde fome, miséria, doença e perdas de entes queridos são umaconstante (chegando ao extremo com o exemplo de Jó). Não há enganos efalsas promessas ao eleitos do Senhor; seus méritos são espirituais, eassim também sua recompensa; ouvem a voz dos céus, recebem visitasdos anjos, têm sonhos premonitórios, manifestam sinais diante damultidão, mas tudo isto é pela obra, e os judeus mais antigos estavamplenamente cientes disto, na medida em que não glorificam os profetas epatriarcas pelos seus milagres, mas Deus que os elevou e glorificou.

De todas as figuras simbólicas da Bíblia a mais primitiva e a maisdireta, resumindo todas as demais passagens, é a de Sansão. O herói nãoera apenas forte. Era invencível. Podia enfrentar um exército. E a suaincomparável fortitude lhe era garantida tanto quanto ele se mantivessefiel ao contrato que tinha com Deus: um acordo simples de uma únicaregra.

O intérprete das escrituras não se deve deixar enganar pelo aspectoinfantil da narrativa. O essencial na questão não é ocomprimentodos cabelos, senão o próprio contrato, a promessa. Sua lição moral é a dehonrar a palavra empenhada e dignificar a expectativa de Deus em relaçãoaos poderes que lhe foram concedidos. Todo o fiel deve enxergar-se comoum Sansão; deve espelhar-se nos patriarcas e profetas, e seguir a risca osmandamentos, que são a forma pública do contrato com os céus.

Nosso esclarecimento científico e a crítica filosófica da modernidadenos fizeram desprezar os simbolismos bíblicos, mas estes ataques sóferem o sentido literal do Velho Testamento. É claro que no sentidofundamentalista dos criacionistas e das massas ingênuas que aindaacreditam nas fábulas do Gênese, da arca, de Jonas na barriga da Baleia, aBíblia contradiz frontalmente a razão e tudo o que descobrimos sobre omundo. Mas no seu simbolismo moral, que encerra o seu real propósito,ela continuará sempre atual e rica de significado.

Na simplicidade das imagens bíblicas está o homem colocado diantede seu Criador, com a opção de cumprir as regras que Este transmite ao

Page 187: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mundo, de acordo com a compreensão da época e de cada indivíduo. Afidelidade humilde e o zelo sincero são as palmas da vitória quanto a tudoo que se refere ao elemento religioso da vida. E aqueles que souberemmanifestar estas virtudes nas pequenas coisas estarão preparados para asgrandes missões e provações.

Os mistérios de Elêusis

Elêusis é uma vila antiquíssima, mesmo para os padrões gregos, nasproximidades de Atenas, famosa por seu santuário dedicado a Deméter epelo culto de iniciados que ali se formou. Estes iniciados dos mistérioseleusianos eram frequentemente pessoas de grande renome e faculdadesdestacadas, de modo que a inferência geral de que o culto selecionava asalmas mais nobres da nação era inevitável. Só este precedente já seriasuficiente para garantir a fama do culto de Elêusis, em analogia com associedades secretas modernas, que ao reunirem líderes, artistas ecientistas sob o seu brasão acabam por adquirir uma aura especial.

Cavernas de Elêusis, onde os rituais ream realizados.

O culto torna-se ainda mais interessante quando nos notificamos desuas especiais características e simbolismos, e de que a sua influencia foiincomparavelmente maior sobre as personalidades da elite intelectualgrega do que sobre a elite política e econômica. Enquanto o oráculo deDelfos era o ponto de peregrinação dos reis e celebridades na busca deorientação, com suas profecias geralmente divulgadas sem maiores

Page 188: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

precauções, o santuário de Elêusis prescrevia um voto de segredoabsoluto sobre todos os seus preceitos. Do público geral somente o mitode Perséfone era conhecido, e sem a sua chave de leitura ele não passa deuma história parcamente interessante. O motivo principal deste olvidoestá no rigor com que eram punidos os levianos que divulgavam osmistérios para o público geral. Em caso de evidente má fé o traidorpoderia ser punido com a morte, mas raramente se chegava a tanto,bastando na maioria das vezes o banimento da Ática, confisco dos bens epropriedades e o desprezo e repudio públicos. É notório o exemplo deAlcibíades, que bebeu em excesso e imitou para uma plateia tambémembriagada as cerimônias iniciáticas, tendo recebido todas as puniçõessociais e materiais cabíveis.

Com isto perderam-se os princípios essenciais e as ideias maiscomplexas do culto, especialmente aqueles que se denominavam altosmistérios e eram restritas aos veteranos. A falta de registro e a fidelidadeao voto de segredo, não impedia, contudo, que os seus membros sedeclarassem publicamente. Grandes nomes da vida espiritual grega, comoÉsquilo, Sócrates, Platão e Xenofonte, sabidamente membros do culto,garantiam-lhe a fama, apesar de serem desconhecidos os seus postulados.Posteriormente, com a ascensão de Roma, os mistérios tornaram-sevulgares e empobrecidos, sendo palco de cerimônias pomposas das quaistomavam parte os imperadores e senadores. Desta época provêm quasetodos os detalhes conhecidos sobre as cerimônias, mas elas já nãocorrespondem senão palidamente ao que o culto de Elêusis pregava emsua época áurea, entre 800 e 200 a.C. Cícero, o maior e mais completointelectual romano, conheceu Elêusis já tardiamente, em sua fase dedeclínio, e ainda assim afirmou que os seus mistérios constituem a maiorcontribuição de Atenas para a humanidade.

Com todas as restrições à divulgação dos mistérios, restam apenasduas fontes de acesso ao seu ensino original, a saber, o mito de Perséfonee a comparação das doutrinas de seus membros conhecidos. O primeiro épúblico, e faz parte do acervo mitológico e religioso da Grécia, enquanto adoutrina dos membros famosos apresenta interessantes similaridades em

Page 189: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

pontos peculiares, dando indícios razoavelmente confiáveis do que os seusmembros compartilhavam.

De uma forma muito resumida faremos uma exposição da filosofia ereligião de Elêusis, como chave de leitura para o mito de Perséfoneapresentado em seguida.

Basicamente tudo nos mistérios é derivado do processo dereencarnação, comparado às estações do ano e às fases da vida. Esteprocesso é entendido como o intercâmbio entre dois mundos, sendo omundo das almas a pátria verdadeira e original, enquanto o mundomaterial seria uma extensão ou subproduto do mundo espiritual. A vidano mundo material seria uma espécie de punição, comparada ao outono einverno, quando a natureza morre e enfrenta a dureza do frio e dadesfolha. A vida no mundo espiritual seria a primavera e verão da alma, eo indivíduo só seria feliz neste outro mundo. O objetivo da vida materialseria o de enfrentar agruras e batalhas para o fortalecimento do espírito,assim como o inverno serve prepara a natureza para um renascimento naprimavera, selecionando neste processo as plantas e animais mais fortes ehábeis. O problema do mundo material não está, portanto, nos seusdesafios, que proporcionam o crescimento, mas sim no esquecimento queas almas fracas experimentam em contato com a matéria. Os iniciados deElêusis não são ensinados a crer neste processo, mas se “lembram”sozinhos desta realidade por força de sua grandeza espiritual.Acreditavam também que eram atraídos uns aos outros por similitude,como estrangeiros no mundo material que se reconhecem facilmentepelas suas diferenças em relação aos nativos. Era esperadonaturalmente que não se espantassem jamais com os ensinos, mas queos encarassem como óbvios ou até já os conhecessem antes de seremadmitidos no culto. Outro sinal característico dos mistérios era a ênfasena pluralidade dos mundos habitados, na possibilidade de setransmigrarem as almas para estes outros mundos, o que os conduzia ateoria da panspermia, ou seja a disseminação universal da vida ao redorde todas as estrelas do universo.

Page 190: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Quando Emmanuel nos apresenta as personagens Lívia e Basílio emseu magnífico romance Ave Cristo, ele nos dá a entender que o anciãoteria tido contato com os mistérios de Elêusis e de Alexandria, e acanção das Estrelas revela não apenas um conhecimento exato deEmmanuel acerca dos mistérios como nos traz contribuições ímparespara o seu resgate. Eis a primeira estrofe da canção:

Estrelas – ninhos de vida,

Entre os espaços profundos,

Novos lares, novos mundos,

Velados por tênue véu.

Aladas rosas de Ceres,

Nascidas ao sol de Elêusis,

Sois a morada dos deuses,

Que vos engastam nos céus.

A canção segue com ricas revelações sobre a harmonia universal, opropósito das lutas terrenas e exaltações às virtudes estóicas da paciência,abnegação e retidão. Todos são cristãos em essência, mas há boas razoespara crer que eram elementos retirados do culto de Elêusis, motivo peloqual Emmanuel deu especial ênfase a ele no primeiro parágrafo. Vejamos,as moradas celestiais estariam “veladas por tênue véu”, exatamente comoos eleusianos pregavam. As almas mais antigas e experimentadas nãofariam esforço para remontar pela razão, memória ou sugestão os pontosessenciais do conhecimento que tinham no mundo espiritual. “Aladasrosas de Ceres” é talvez o verso mais revelador, já que Ceres é o nomeromano para a deusa Deméter, adorada no culto de Elêusis. Por queBasílio teve especial interesse em dedicar sua canção aos mundosespirituais à deusa Ceres, a princípio responsável pela agricultura?

Page 191: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Os únicos que viam um papel diferenciado em Ceres ou Demétereram os iniciados de Elêusis. O próximo verso confessa diretamente aproveniência da informação, já que as estrelas não poderiam nascerliteralmente em Elêusis. Só podemos supor que o autor está se referindo àrevelação feita naquele local sobre estas coisas. “Sois a morada dosdeuses, que vos engastam nos céus” coincide também com o ensino dosespíritos quanto à formação das galáxias e sistemas estelares sob adireção dos espíritos superiores, aqui entendidos como os deuses.Lembramos que muitos iniciados, incluindo Sócrates e Platão, alegavammanter contato com os deuses e daímones, estes últimos correspondendoa intermediários entre os deuses e os encarnados. Platão também afirmaque os deuses são almas de homens como nós, desenvolvidas até aperfeição, e que por nossa vez seremos também deuses, conforme seobserva nos trechos que destacamos no artigo anterior sobre a“mediunidade e a literatura clássica”.

Com todo este aparato de leitura histórico, sutilmente confirmadopor Emmanuel, podemos abordar com segurança o mito fundador dosmistério.

Deméter, deusa da agricultura e da fertilidade, vivia feliz com suafilha Perséfone, um verdadeiro encanto do Olimpo. A jovem era perfeita edespertou o desejo de Hades, senhor do mundo dos mortos. Este, com apermissão de Zeus e consentimento dos demais deuses, raptou Perséfonee a levou para o mundo das sombras subterrâneas. Deméter ficourevoltada com o rapto da filha e com o consentimento dos demais deuses,e afastou-se do Olimpo, indo parar em Elêusis. De lá a deusa puniu todo omundo com uma seca tremenda que ameaçou com a fome todos os serese matou o gado que era sacrificado aos demais deuses. Arrependido, Zeuspediu a Deméter para extirpar a maldição, e em troca devolver-lhe-ia afilha. Desta vez foi Hades quem se sentiu traído, mas não podendocontrariar a ordem de Zeus entregou Perséfone. Antes de despachá-la domundo inferior, contudo, deu-lhe de comer sementes plantadas lá, o quecriou em Perséfone um vínculo com o mundo da escuridão. Assim quePerséfone retornou ao Olimpo, Deméter perguntou-lhe se havia comidoalgo de lá, e ao ouvir a confirmação foi tomada de profunda tristeza,

Page 192: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

embora nada mais pudesse ser feito para remediar o feitiço. Perséfoneficou assim condenada a passar metade do ano nas sombras de Hades, e aoutra metade estaria liberta para viver com os demais deuses no Olimpo.Analogamente, o mundo passaria a apresentar uma época de declínio einfertilidade (outono e inverno), quando Deméter entristecida pela partidada filha amargaria a solidão, e uma época de frutificação e claridade(primavera e verão), correspondente ao retorno de Perséfone e a alegriade Deméter, que distribuiria então pelo mundo suas bênçãos.

O mito é rico de significado, mas não chega a ser difícil deinterpretar. Perséfone está vinculada a dois mundos totalmente distintos,a morada de felicidade do Olimpo e o exílio sacrificial no mundo inferiorda escuridão e da dor. Este movimento não era realizado uma vez, masinúmeras, indicando que a alma estaria repetidamente alternando umaexistência nas alturas e outra nas trevas inferiores. Este estágio no mundode sofrimento tinha, contudo, o seu lado positivo, pois mesmo com umperíodo de infertilidade no ano, a alegria de Deméter ao rever a filhacriava anualmente uma época de grande abundancia para todo o mundo.A alma, similarmente, aprenderia nas agruras do mundo material a amar evalorizar as belezas da pátria espiritual. A saudade com que Perséfoneaguarda o fim de seu período nas sombras também é muitorepresentativa. Ela indica a saudade do espírito exilado na carne, que selembra de suas origens sublimes e não se entrega à existência vulgar doshabitantes do mundo inferior. Perséfone é eternamente uma estranha noabismo do Hades, e assim também as almas nobres jamais se rebaixam aonível do mundo das ilusões materiais, mas suspiram por seu retorno àpátria verdadeira, tudo suportando com desinteresse e indiferença.Perséfone jamais se deixa confundir com os habitantes do Hades, sendoem todos os aspectos a imagem da perfeição, candura e generosidade acontrastar com o vale dos dementados e agonizantes. Este seu papel nomundo inferior é o de atenuante dos seus horrores, pois a partir de suaestadia lá existe sempre a esperança de encontrá-la em meio ao país daamargura e do esquecimento.

Muito mais poderia ser dito sobre o mito de Perséfone e as sutilezasdos mistérios de Elêusis, mas a nossa ignorância ultrapassa em muito o

Page 193: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

que sabemos, de modo que é arriscado tentar especulações maiselaboradas, correndo-se sempre o risco de afastarmo-nos dos fatosperdendo-nos no devaneio de hipóteses inautênticas. Fica, portanto, oconvite à releitura destes poucos elementos divulgados, enquanto novas emais completas revelações de historiadores e dos próprios espíritosseguem o seu passo lenta, mas seguramente.

O espiritualismo de Aristóteles

Após o nosso texto sobre Platão permaneceu no ar uma exigência de fazer justiça aAristóteles. Afinal, aquele outro texto inspirado em Popper e em renomados platonistascontemporâneos coloca o discípulo principal da Academia sob pesadas acusações, que podemofuscar a importância ímpar de Aristóteles no desenvolvimento do pensamento humano, dareligião Cristã, do realismo ético, da lógica, da estética, de diversas ciências... Aristóteles étambém combatido devido a incompreensão que se tem sobre seu conceito de ciência,especialmente no tocante a física e a astronomia. Seus avanços e contribuições preciosas sãosistematicamente ignorados em favor da paródia infantilizada de uma ascensão apoteótica das

Page 194: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

ciências durante a Renascença, como se Hiparco, Euclides, Arquimedes, Hipácia, Anaxágoras,Aristóteles e outros pesquisadores antigos fossem supersticiosos, irracionais e incapazes deuma observação crítica da natureza.

É bem verdade que Aristóteles seja mais dogmático do que Platão, mas ele nãoo é num sentido do dogmatismo religioso, por exemplo, nem pode ser considerado maisdogmático do que a maioria dos demais filósofos. O seu é um dogmatismo racional, o que querdizer que ele acreditava no poder da razão para resolver todas as questões, e isso não significaa adoção de máximas e crenças transmitidas por autoridade, como no dogmatismo que asigrejas costumam propagar. Além disto, é possível que Aristóteles seja um dos indivíduos quemais contribuiu com as ciências em todos os tempos, ao lado de Galileu, Newton, Pasteur,Darwin ou Einstein, e em relação a maioria destes tampouco ele poderia ser considerado umdogmático. A maioria dos cientistas acredita firmemente no poder da matemática e da sualógica, na invariabilidade e objetividade da observação. Estas são crenças que fazem mal aofilósofo dedicado à epistemologia, mas que são moedas válidas nas ciências, úteis até certoponto, na medida em que é necessário uma certa fé na prática e no método para se prosseguircom uma linha de pesquisa. Claro, Aristóteles não possuía um método científico tão rigoroso,ou estava aberto a competição com outras teorias, mas as suas observações criteriosas e a sualógica impecável propiciaram tanto avanços no conhecimento quanto na doutrina do método.

Muito do que nos soa anti-científico não passa de propaganda da ideologiamaterialista, aquela que o vulgo associa à ciência, e que condena impiedosamente hipótesesespiritualistas como a necessidade de um arquiteto inteligente para o cosmo e a existência deuma força vivente dirigindo a vida para o desenvolvimento de suas formas. São hipótesesexplicativas para problemas legítimos que Aristóteles encontrou na natureza, e que desde oséculo XIX passaram a ser descartadas “por questão de princípio”. E é isto que queremos agoraresgatar.

Aristóteles é incompreensível sem um amplo e minucioso estudo da filosofia eda história da Academia de Platão. Esta é a sentença fundamental para um acerto de contascom as discrepâncias e injustiças cometidas contra Aristóteles, dentre as quais a maior delas éa suposta “separação” ou “briga” entre ele e o mestre, o que jamais ocorreu ou se justifica. Osmitos quanto ao confronto derivam quase todos dos comentários do Aristóteles maduro sobreo mestre, décadas depois da morte deste, e que se baseiam nas distinções naturais que ocaminho próprio de Aristóteles necessitava enfatizar. Este desenvolvimento pessoal eindependente da filosofia, coisa que Platão sempre incentivou e esperou de seus discípulos,corresponde integralmente ao distanciamento que o próprio fundador da Academia teve paracom seu ídolo e mestre da juventude. O quadro do distanciamento entre Aristóteles e Platão,portanto, se assemelha ao mesmo quadro entre Platão e Sócrates, com uma semelhançaimpressionante de características.

Em primeiro lugar o Platão poético da juventude, com seus diálogos realmentecombativos, metáforas, simbolismos e estreita vinculação entre a estética e a epistemologia,quase correspondendo nele o arrebatamento estético ao acesso intelectual à verdade, já eratido como fase terminada e superada na época em que Aristóteles ingressava na Academia. Oambiente liberal do mestre, seu amadurecimento e o próprio contato com outros alunos e

Page 195: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

professores haviam transformado o ensino platônico. O cavaleiro solitário do Fédon,da Apologia, doBanquete e do Górgias, que vingava intelectualmente a morte de Sócrates ebuscava preservar o seu legado, era agora o filósofo mais bem estabelecido e sucedido domundo, sem necessidade nem do caráter combativo nem da nostalgia de uma época áurea desuas conversações com o mestre. Ele próprio era agora o mestre para o qual discípulos detodas as partes do mundo viajavam na esperança de obter sabedoria e virtude. Ele era então afigura de quem se esperava as respostas, e não um jovem modesto cantando as proezas deseu mentor. A estas diferenças de postura somam-se as profundas experiências da Academia ede suas viagens. Dotado de inigualável lucidez, Platão não demorou a absorver as críticas quelhe eram dirigidas e adaptar seu método a elas. Alunos brilhantes de todas as partes, entreeles muitos matemáticos, ajudaram a expandir o seu saber sempre aberto à inovação emudança. Ao mesmo tempo, as exigências que ele mesmo e o seu papel de referencialuniversal da filosofia lhe impunham tornaram-no muito mais cuidadoso, técnico e afirmativonos seus pronunciamentos.

Nesta época chegava a Academia o jovem Aristóteles, enquanto ela iniciavauma nova fase com a escrita do Teeteto, um diálogo já mais voltado para a especulaçãoanalítica do que para a busca de consensos gerais. O caráter cético e jovial do jovem Platão eraabertamente ironizado e criticado na Academia, talvez por ele mesmo, de modo que o estilológico e a minúcia da análise de categorias que tanto influenciou Aristóteles não está emcontradição com o que ele então via na Academia. O mestre inclusive desaprovava ostrabalhos dos alunos que copiavam pedantemente o seu estilo e doutrina, fomentandojustamente as inovações, as particularidades e a originalidade de cada aluno. Aristóteles foidesde cedo um dos que mais correspondeu a esta expectativa do mestre, confrontando-o comcompetência e forçando sempre os limites de sua filosofia. Esta postura não foi o que osseparou, mas pode-se até imaginar, foi a causa da admiração do mestre desde o princípio.

Platão chegava de suas viagens com novos problemas sobre física, medicina eantropologia que ele mesmo não tinha tempo ou interesse em trabalhar, mas que transmitiaaos seus alunos, muitos dos quais se ocupavam destas disciplinas já antes de ingressarem nocolégio. Não foi de modo algum Aristóteles quem criou as novas disciplinas, ou que combateuo diálogo platônico, ele apenas continuou uma ruptura e desenvolvimento que correspondiama toda a comunidade da Academia, e que era diretamente patrocinado pelo mestre. O sistemade Platão permaneceu coerente e harmônico, mas havia crescido tanto para além dos diálogosda juventude, eram tão distantes as suas fronteiras daquelas mais estreitas e monótonas dopassado, que a suposta revolução de Aristóteles não foi mais do que um passo para alémdestas fronteiras já muito largas. Distante do jovem Platão, estava ele ainda bem próximo dovelho.

O primeiro dos escritos aristotélicos é um diálogo que lembra muito oFédon, Eudemo.Neste livro expõe o estagirita com proeza uma crítica aos materialistas e a doutrina de que aalma seria apenas uma harmonia de funcionamento do corpo físico. Aristóteles defende tãoconvictamente a imortalidade da alma quanto o mestre em seu escrito original. (JAEGER 1923,p.38) Aristóteles começa lembrando que a harmonia é um conceito dependente de um oposto,a desarmonia, e que alma não possui um conceito oposto como uma não-alma. Enquanto adesarmonia é claramente identificada num conjunto, um oposto para a alma não existe nem

Page 196: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

na experiência nem no pensamento. Não havendo para ela um pólo oposto, não pode sersubmetido ao conceito de harmonia, ou outro predicado qualquer que possuam um estadocontrário, só podendo então ser uma substância. Se a alma é uma substância, não pode serdependente do corpo, que é uma outra substância, desta vez material, provando-se assim aimortalidade da alma.

Este argumento tem ainda validade, e mesmo restringindo a alma ao conceito demente, não se escapa das implicações de que ela deve ser uma substância, pois o oposto deuma substância é sempre o nada. Uma não mente, ou não espírito, só são pensáveis comoausência de suas funções e qualidades, e tudo aquilo de cujo oposto só podemos pensar aausência é por princípio uma substância. O materialismo em geral tenta passar por cima destaconclusão lógica reafirmando que a alma é sim uma harmonia entre propriedades fisiológicas,o que, no entanto, só poderia ser assumido como verdade se para isso houvesse uma provaconclusiva. Na dúvida, a hipótese mais lógica é a de que a alma seja uma substância, pois ahipótese contrária apresenta este conflito de terminologia descoberto por Aristóteles.

Também se encontra no Eudemo uma defesa da personalidade da alma após a morte,baseada na memória, que é um atributo intelectivo da alma. A permanência da memória seriaentão o critério para que a personalidade sobrevivesse, em contradição com um princípiointelectual apenas, conforme defendido por muitos filósofos. Não apenas neste texto, masainda em outros defendeu Aristóteles a preexistência da alma antes da sua conexão com ocorpo e a conseqüente possibilidade de reminiscência de conhecimentos anteriores aonascimento. A interpretação de que Aristóteles negaria estes pontos está muito mais ligada aocondicionamento das interpretações católicas do que aos estudos clássicos do filósofo. Emoutro fragmento o filósofo afirma: “A alma penetra visionariamente o futuro ao libertar-se docorpo, durante o sono ou na proximidade da morte, e então percebe sua verdadeira naturezae é arrebatada pelo firmamento estrelado.” (Frag. 10 R)

O protréptikos é o outro texto destacado da fase platônica de Aristóteles, guardandoenorme número de conceitos de sua filosofia posterior, como as noções de potencias e ato,desenvolvimento das formas, a função ética do conhecimento e a impossibilidade de secombater a filosofia. O primeiro argumento significativo é em favor da filosofia como únicaforma de legitimar a vida humana. Uma vida precisa de filosofia para afirmar qualquer escolhaou projeto existencial, e igualmente é preciso filosofar para combater a filosofia. Não se podelegitimar qualquer conclusão sem um desenvolvimento lógico e dialético, de modo que paraqualquer posicionamento consciente e justificado é preciso filosofar. Aristóteles tambémespecifica sua noção de substancia em relação ao platonismo. Enquanto este último tem asubstância como a essência já dada das coisas, a sua origem ideal, Aristóteles acrescenta aideia de evolução e desenvolvimento, télos, de modo que a essência das coisas só se revela nasua ação, não numa análise sobre elas. Um animal não se permite definir somente pela suaforma e atributos, como pensou Platão, mas principalmente pelo seu papel, pelo que ele faz.Um Leão é, desta forma, além de um animal quadrúpede, forte e feroz, um predador. Estaúltima característica é a única relacionada à sua ação, e a mais importante. Um homem nãotem a sua essência medida pelos seus talentos, origem, aparência e disposições, mas pelo queele realmente faz e realiza. Enquanto Platão definiria um homem como bom pela sua natureza,ideias e inclinações, Aristóteles diria que esta definição só pode ser dada ao final da vida, como

Page 197: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

observação dos atos deste homem. A essência não pode ser apreendida inteiramente noestado inicial, ela se revela no desdobramento da existência dos seres. A substância não éassim apenas a estrutura a partir da qual é feita uma coisa ou ser, mas a sua destinação, aessência não é o quê, mas para quê.

Pouco depois da morte de Platão, Aristóteles deixa a Academia e inicia um ciclo deviagens que vai culminar na Macedônia, onde ele inicia a educação do então não tão grandeAlexandre. Nesta fase marca-se ainda mais a sua cisão com a escola platônica num ponto que éem quase todos os aspectos um avanço, a abjeção das Ideias. E o equívoco aqui é imaginar queesta esteja ligada ou acarrete numa negação da imortalidade da alma e de um mundoespiritual que lhes correspondesse. Os dois primeiros escritos confirmam que Aristóteles nãocogitava em associar o “além” ao mundo das ideas. Este último seria somente uma abstraçãoepistemológica e metafísica do platonismo, nada mais. Uma metáfora a qual Aristótelescontinuou a recorrer para exemplificar a independência da teoria das coisas mundanas, massem atribuir qualquer existência às ideias como formas reais, existindo por si próprias nummundo ideal. As essências das coisas, sua parte intelectiva, princípios organizadores, deveriaestar estreitamente vinculada à própria coisa. Não haveria, portanto, ideia e leis num “lugar”esperando para se unirem a matéria e formar coisas. As coisas já teriam em si leis e matériacomo partes inseparáveis e constituintes. A matemática, por exemplo, não teria nenhumarealidade em si, existindo num mundo independente de figuras, fórmulas e grandezas, masseria uma proporção das coisas, ou entre as coisas. Real e verdadeira, masdependente deste mundo e desta realidade.

Novamente a difundida conclusão de que isto eliminaria a possibilidade de vida após amorte é errônea, pois o mundo dos mortos e as próprias almas não compõem uma “outra”realidade em contradição ou diferenciação com a nossa, mas seria parte da mesma realidade,apenas invisível para nós. As almas não seriam ideais, mas reais, daí a famosa conclusão deAristóteles de que elas não teriam existência imaterial, já que tudo o que existe temsubstância, matéria. A confusão com a terminologia de Aristóteles é produzida por umainterpretação platônica fraca, que associa o material ao mundano, e o ideal ao espiritual.Quando Aristóteles fala de matéria não está se referindo a corpos sólidos e grosseiros, mas ao“conteúdo” das formas, aquilo que diferencia uma coisa hipotética de uma real. Platão atribuirealidade às ideias, como se a dor fosse uma entidade com significação e existência em simesma. Aristóteles diz que a dor só possui realidade se for concreta, vivenciada, a ideia de dornão possui esta realidade, é uma representação derivada da coisa real, que precisa serentendida e experimentada. Para Aristóteles toda a realidade é matéria intelectualizada, forcaorganizada. Não há separação de mundos e realidades em oposição. O corpo é matéria eenergia organizadas segundos certas leis, a alma é outra forma de matéria e energiaorganizada segundo outras leis.

Esta diferenciação não deprecia nenhuma das duas visões, pois está claro queAristóteles não desenvolveu conceitos conflitantes com suas origens platônicas, senão apenasnovos e complementares. A teologia platônica consistia em afirmar a supremacia absoluta doespiritual sobre o material. O mundo das ideias existiria, desta forma, por antecipação e emcompleta independência. Seria imóvel e inalterável a estrutura das ideias. O mundo materialseria uma cópia imperfeita e decadente, e a matéria um princípio grosseiro, sombrio e

Page 198: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

desprovido de qualquer qualidade positiva. Se a matéria possui organização e vida é porqueuma forca espiritual a habita, porque o reflexo das ideias lhe dá ser e qualidades positivas,como beleza, utilidade, equilíbrio ou justiça. Aristóteles, por outro lado, não apenas não vê asideias separadas da matéria, como não admite um princípio vil e pernicioso no universo. Tudotem sua razão de ser, e, portanto, o seu bem. O universo não é dividido em mundo das ideias edas coisas, com as primeiras sendo eternas e as segundas criadas, mas é inteiramente criadopor Deus. Somente Deus estaria fora da cadeia de causa e efeito que tudo regula.

Assim desenvolveu Aristóteles a primeira e talvez ainda hoje a mais consistente teoriada criação. Ele percebeu que a definição de movimento é mecânica, transmissão de forca deum para outro objeto, uma cadeia de causalidade sem ator, apenas com elementos passivos.Esta definição revela-se insustentável quando buscamos a origem do movimento, e nosdeparamos com uma série infinita de corpos movidos por outros, sem que nenhum seja oresponsável final pelo início do movimento. Embora muitas pessoas até ilustres aindaacreditem na hipótese do movimento eterno, ela é uma paradoxo, logicamente inaceitávelcomo hipótese científica ou filosófica. O Big Bang também não resolve nada, pois a tãopropagada singularidade que teria dado origem ao universo nada mais é do que a maiorprestidigitação da ciência moderna, que varre para debaixo do tapete a série de causalidadeafirmando que o primeiro movimento surgiu “espontaneamente”. Afirmar que o movimento éeterno ou negar o problema da sua origem nada resolve, pois a sua conceituação não permitequalquer outra definição senão a de que é preciso um ator no início da cadeia. Explicar omovimento a partir da passividade é uma falácia assombrosamente popular, mas insistir nissonão a torna racional. A energia inicial precisa ser criada, não pode “estar sempre aí”, pois atransmissão mecânica é passiva, não tem uma existência fundamentada em si mesma, senãopor definição uma existência derivada. Foi então que conclui Aristóteles, o movimento exigeuma causa ativa, uma forca autônoma que não seja influenciada por outra, o que sóprolongaria o problema da cadeia mecânica. Este primeiro motor universal, que deu origem atodas as coisas, é a causa intencional de todos os movimentos do universo.

Foi Aristóteles quem deu a Deus o papel de criador em termos filosóficosirrefutáveis. Até então este papel só era atribuído de maneira mitológica a Deus, como noGênese, e Platão não conseguiu justificar bem o papel de Deus no processo da natureza. É porisso que o filósofo peripatético afirma: “Deus é espírito, se não for algo ainda mais elevado queo espírito.” (Frag. 49 R) Fora da cadeia mecânica, passiva, ele é o sujeito que por sua vontadesegundo seu juízo escolhe ativamente dar existência ao mundo.

Referências:

GILL, Mary Louise & LENNOX, James G. Self-Motion from Aristotle to Newton. New Jersey:Princeton University Press, 1994.

JAEGER, Werner. Aristoteles: Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung. Berlin:Weidman, 1923.

Page 199: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Oráculo de Delfos: mil anos de experiência com a mediunidade

Sobre a história antiga do oráculo pouco se sabe, e todas asinformações se misturam a lendas. É quase certo que o monte Parnaso eraoriginalmente um santuário de Gea, a deusa terra, e é impossível saberquando o templo de Apolo que deu fama ao lugar foi construído. Mesmodepois desta reformulação, a história do oráculo é muito controversa,sendo que somente com Homero iniciam-se os relatos diretos e maiselaborados. Ainda assim, embora Homero e Ésquilo fossem certamenteiniciados nos mistérios gregos, suas informações são muito poucoconfiáveis, já que não podem ser distinguidas de elementos poéticos efantasiosos típicos da composição de cenário das tragédias e dramas.Como critério geral convém considerar verdadeiro somente aquilo que éunânime ou muito frequente nos relatos de diferentes autores, mas comisto sobram pouquíssimas informações.

O que se pode afirmar com certeza é que o oráculo era dirigido porum sacerdote homem, responsável final pela intermediação com osdevotos. Era este sacerdote que interpretava a pítia, acertava os preçosdas adivinhações, quando eram cobradas, e decidia se a Pítia deveria ounão ser consultada conforme a gravidade e pertinência do assunto. Nãopor acaso muitos, inclusive no mundo antigo, atribuíam as profecias eadivinhações a este sacerdote, apresentando a profetisa como suamarionete ou uma hábil atriz sob cuja fachada o sacerdote principal dotemplo buscava manipular a elite grega. A esta tese chamaremos “teseconspiratória” do oráculo.

Um segundo fato amplamente comentado é a existência decavernas nos arredores do monte Parnaso que supostamente expeliriamum gás com propriedades alucinógenas. Embora muitos materialistastrombeteiem esta tese como a tão aguardada “explicação científica” paraas profecias, ela foi na verdade levantada por Plutarco, que conheciaprofetisas romanas que se valiam do mesmo recurso próximo a fontestermais e vulcânicas na Itália. A hipótese em geral é bastante sólida, poisdesde a antiguidade remota fontes de gás vulcânico eram usados emdiferentes países como santuários proféticos, e o entorpecimento

Page 200: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

provocado por ele pode sim ter um papel relevante nos ritos dos antigosgregos. Isto inclusive reforça os indícios de que o oráculo de Delfos teriasido anteriormente um santuário em honra a deusa terra, pois os locaisescolhidos para este mister eram preferencialmente os dotados destasfissuras e cavernas profundas, ou fontes vulcânicas. Esta seria a “tesematerialista” de explicação do oráculo.

Apesar de que as teses conspiratória e materialista possamcontribuir para a compreensão de muito do que se sabe sobre o oráculo,sendo razoavelmente verdadeiras em certo sentido, elas não fazem jus àsprincipais e mais famosas passagens da história que nos são relatadaspelas fontes mais sérias e criteriosas, como os filósofos e historiadores.Nenhuma das duas nos permite compreender como certas adivinhaçõesimprováveis eram feitas com sucesso e relativa freqüência. A ideia de umgrupo supersticioso e mal intencionado dirigindo a comunidade crédula étambém ridícula quando se observa a infinidade de relatos dos maioresintelectuais gregos atribuindo ao oráculo as sentenças mais sábias e asideias mais complexas. No mínimo há que se convir que o grupo envolvidonas atividades proféticas compunha uma elite intelectual competente obastante para ser reconhecida pelos maiores nomes da cultura grega.

Se por um lado há razões para suspeita quanto a naturezamediúnica das profecias, pois elas eram eventualmente pagas, envoltasem enigmas e simbolismos, e inclusive se conheciam muitos casos decharlatanismo e encomendas de falsas adivinhações, é também verdadeque em certas épocas Pítias e sacerdotes de Delfos foram admirados comosumidades intelectuais e referencias de honradez, e suas mais famosasprofecias não poderiam ser plausivelmente creditadas ao charlatanismoou ao delírio.

O papel da Pítia também está coberto de mistificações grosseiras,associado ao posterior culto das vestais romanas, que eram jovensgeralmente virgens envolvidas em atividades estritamente ritualísticas. APítia grega era sempre eleita por volta dos 50 anos ou mais para ummandato vitalício. Quase sempre era esposa e mãe, não correspondendoàs idealizações que a retratam como uma jovem virginal. Trajava,entretanto, um manto alvo como símbolo de sua pureza, pois era proibida

Page 201: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

de manter relações sexuais após assumir o ministério. Também eraforçada a abandonar a família que tivesse, não podendo sequer revê-los.Habitava o templo e era a partir de então considerada noiva de Apolo, emforte consonância com a vida monástica das freiras católicas. As Pítiaseram rigorosamente selecionadas pela conduta impecável, vidadevocional e por “ligações conhecidas com os deuses”. Em geral a figurada Pítia é a da mulher de meia-idade respeitada na comunidade por seusascendentes morais e piedade, comumente uma conselheira da aldeia, dequem se sabia já ter tido visões ou ouvido vozes dos deuses.

Sobre o estado profético há inúmeras descrições, sendo a melhordeles a de Plutarco, que observa que nas Pítias mudanças expressivas devoz durante as mensagens. Outras fontes ainda certificam que a Pítia nãofalava por enigmas, e que os sacerdotes seriam responsáveis porconverter a mensagem em uma charada. Esta informação éprovavelmente verídica, pois fontes históricas seguras relatam a fúriavingativa dos reis e tiranos ao receberem profecias contrárias a suavontade. Convertendo as profecias em charadas os sacerdotes produziamuma ambigüidade que garantia a sua imunidade contra os requerentes,transferindo para eles a responsabilidade de interpretar a profeciaconforme a sua própria capacidade e/ou preferência. De uma certa formapoderíamos dizer que o oráculo falava por parábolas, ocultando assim oseu ensinamento para os mais sensatos.

Por suas prerrogativas de excelência na seleção das Pítias esacerdotes, e por seu histórico de adivinhações corretas e recomendaçõesprudentes, o oráculo tornou-se um elemento político e social irrefutável.Os reis ouviam atentamente os seus pronunciamentos, e a maioria daspessoas religiosas não cogitava de lidar com um assunto grave sem umaconsulta, se ela fosse possível. Licurgo, rei de Esparta e organizador daconstituição desta cidade teria recebido inspiração do oráculo nas linhasprincipais da sua carta de direitos. Pausânias, também rei de Esparta, teriarecebido mensagens semelhantes sobre as leis apropriadas para a cidade.Esta intimidade entre o oráculo e os reis é amplamente documentada porAristóteles, Heródoto e Diodorus Siculos. Parte da mensagem que o reiLicurgo teria recebido diz: “Tão longo honrardes as vossas promessas e

Page 202: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

oferendas ao oráculo, renderdes perfeita justiça uns aos outros e aosestrangeiros, dignificando pura e santamente os anciãos de vossa terra...Zeus senhor dos céus vos poupará e salvará... Somente o amor aodinheiro, e nenhuma outra causa, há de destruir Esparta.”

Também Atenas foi agraciada com uma profecia sobre sua épocaáurea, marcada pelo século de Péricles. Pouco antes deste períodoconclusivo para a cultura humana e no início dos embates entre Atenas eEsparta, o oráculo profetizou: “Ó Atenas, bastião guerreiro, após muitosofrimento, sacrifício e dor, se perseverares contra todos os infortúnios oteu nome será alçado à altura do vôo das águias, onde permanecerá parasempre.”

O oráculo também fez fama por suas parábolas morais, das quaisuma foi habilmente registrada por Sólon. Segundo este sábio, o oráculodifundia ocasionalmente mensagens de teor instrutivo acerca das coisasdivinas e das leis naturais, em caráter extraordinário em relação as suasatividades normais de adivinhação. Numa destas histórias os irmãos Bitone Cleobis preparavam um carro para conduzir a mãe, sacerdotisa, de Argospara o templo de Hera. Por que as bestas de carga não chegavam, osirmãos tomaram sobre si os arreios e arrastaram a carruagem pelas cincomilhas e meia até o templo. A mãe maravilhada abençoou-os assim:Recebem a maior bênção que os deuses possam conceder aos homens.Os irmãos voltaram alegremente para casa, e amanheceram mortos nodia seguinte (presumivelmente não pelo esforço). A lição que Sólon retirada anedota é a de que a libertação da vida terrena é a maior bençãopossível.

Heródoto conta uma outra passagem de cunho moral, quandoEstrabo perguntou a Pítia se deveria mudar-se para Corinto, e ela teriarespondido: “Corinto é abençoada com imensa fortuna, mas eu por mimficaria em Tenea.” Referindo-se a humilde cidade em que Estrabo já vivia,e que era conhecida pela conduta digna de seus habitantes.

É conhecido que o oráculo possuía em seu pórtico a inscrição“conhece-te a ti mesmo”. Esta é, contudo, apenas a inscrição mais famosa.As três frases apareceram por volta de fins do século VI a.C. e são

Page 203: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

atribuídas aos sete sábios, mas o mais provável é que sejam dos própriossacerdotes de Apolo com possíveis influencias dos sete sábios do séculoVI. Além da sentença mais famosa havia também “Nada em excesso” e “Sevais confiante encontrarás rápido a tua destruição”.

Quanto ao poder divinatório do oráculo nenhuma passagem oatesta mais do que a do matuto que tentou ridicularizar o oráculocolocando um pássaro vivo em um saco, e propondo-se a perguntar aooráculo se a ave estava ou não viva. Caso o oráculo afirmasse que sim, elesufocaria a ave, e se o oráculo dissesse que ele estava morto, ele liberariaa ave viva. A Pítia foi capaz de captar-lhe o pensamento e proferiu:“Amigo, tu podes mostrá-lo vivo ou morto, pois a resposta está em seupoder.”

Por estes fragmentos já se percebe o quão ricos são estes registros.A papirologia atual conta com mais de 600 registros diretos de perguntasfeitas ao oráculo em quase oitocentos anos de atividade, contendo asrespectivas respostas. Os assuntos são os mais diversos, desde perguntaspessoais sobre doenças e casamentos até projetos de fundação de novascidades (notadamente Siracusa) foram apresentados ao oráculo. Tambémpor inúmeras fontes históricas e poemas temos retratos mais ou menosfiéis deste que foi o centro da religiosidade grega em seu auge.

Seria desejável, e aqui deixo o convite, que uma pesquisa extensafosse feita incluindo todo este material e organizando-o conforme ascategorias desenvolvidas na Codificação. Daí surgiria um retrato muitoclaro dos procedimentos da prática mediúnica, do conteúdo do ensinotransmitido através das Pítias e das implicações sociais, culturais ehistóricas desta que afinal foi uma instituição pública, amplamenteconhecida, de “endereço fixo” e duradouro a operar o intercambio entre onosso mundo e dos deuses.

Referência:

Page 204: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

PARKE, H. W.; WORMELL, D. E. W. The delphic Oracle.Oxford: BasilBlackwell, 1956.

A filosofia chinesa

A China é um continente a parte, com população, tamanho ecomplexidade cultural mais que suficiente para se igualar a Europa, aoOriente Médio e a Índia no que se refere ao seu papel nodesenvolvimento da civilização. Englobando a Coréia e o Japão, seus filhosespirituais, e estendendo sua influencia sobre o Vietnã, o Camboja e oLaos, com menor presença sobre os demais países do Sudeste Asiático,compõe o grupo cultural majoritário ao lado do conjunto quedenominamos “Ocidente”.

A recente ascensão econômica e tecnológica da China e de todo oExtremo Oriente forçaram a mentalidade ocidental para fora de sua áreade conforto, que alcança até o pensamento indiano do qual proveio acultura e o povo europeu, de modo que o papel dos povos orientais noprogresso técnico e no refinamento da civilização tornou-se agora,imprevisível e extraordinariamente, uma realidade para nós.

As dificuldades de tradução e compreensão permanecem, noentanto, imensas e quase insuperáveis. Enquanto a filosofia indiana foiescrita em sânscrito, a mãe de todas as línguas européias, e está baseadanos adjetivos e verbos, como a filosofia européia, o pensamento chinêsestá radicado na sua língua simbólica. As filosofias indo-européiaspossuem dois questionamentos básicos. O primeiro deles é se os adjetivospertencem intrinsecamente ao sujeito, como sua essência ou se sãoacidentes. O segundo deles está relacionado principalmente com o verbo“ser” e suas variantes (tornar-se, poder ser, permanecer, etc). Isto é abase da lógica e da metafísica ocidental e indiana, a saber, a análise deafirmações com a finalidade de confirmar se algo é aquilo que se afirma

Page 205: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

sobre ele, se a essência ou o ser de alguma coisa permanece com as suasmudanças e transformações. A língua chinesa não possui nem osmecanismos complexos de predicação nem o verbo “ser”, impedindocompletamente o desenvolvimento da lógica e da metafísica. A gramáticapraticamente não existe, e faltam-lhe elementos que qualquer linguistaocidental consideraria vital para a expressão dos pensamentos maisbásicos. Ainda assim, a China desenvolveu uma filosofia toda própria queassombra e fascina os que dela se aproximam.

Para começar a tratar da filosofia chinesa é preciso ter em menteesta diferença radical da língua escrita e falada, especialmente daprimeira. Os chineses não têm como desenvolver argumentos lógicos apartir de sua língua, por isso refinaram a expressão de ideias inteiras pormeio de imagens. Seus argumentos são representativos, ao invés dedemonstrativos. Imagine-se, por exemplo, expressando a ideia de que acasa de seus pais era bonita, e que sua mãe foi também muito bonita najuventude. Você seria obrigado a dizer: “casa de meus pais bonita”,deixando o interlocutor na dúvida se ela ainda é ou se foi apenas nopassado. Provavelmente você deveria acrescentar alguma informaçãopara deixar claro que a casa não existe mais, ou está feia agora. O mesmovaleria para sua mãe, você teria que dizer: “Minha mãe jovem bonita”. Opensamento chinês não é poético e singelo por opção. Ele não tem outraalternativa.

Com isso a filosofia chinesa adaptou-se desde muito cedo àsmáximas e axiomas, buscando sempre a definição perfeita de ideias ecoisas. A vantagem deste processo é permitir uma grande precisão esobriedade no trato das questões. Não existe pensamento abstrato, ideiasem si ou princípios metafísicos. Tudo é o que é e mesmo as coisas maisesotéricas são apresentadas como concretas. A desvantagem é a perda dedimensão crítica, pois as línguas indo-européias permitem com a suaespeculação sobre o “ser” das coisas um questionamento quanto a suarealidade. Os chineses apresentam grande dificuldade em separar o que éreal do que é possível ou hipotético, de modo que ou aceitam ideiasmágicas e místicas como absolutamente concretas, ou comoabsolutamente falsas. Os inúmeros episódios da história da China

Page 206: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mostram a guerra entre facções religiosas e céticas, num extremismo raroentre as classes intelectuais da Europa e da Índia. Enquanto os sábiosocidentais e indianos tem como certo o relativismo, um certo grau dedúvida e a convivência entre múltiplas hipóteses razoáveis, os sábioschineses estão em perpétua discordância quanto aos elementos maisbásicos da civilização. Um outro reflexo desta menor capacidade críticadas línguas orientais é o conservadorismo. Se Confúcio estava certo nãohá porque rever o seu ensino. A doutrina é aprendida, não desenvolvida.Assim pensavam os próprios fundadores das escolas religiosas efilosóficas. Todos acreditavam estar reproduzindo o pensamento anterior,jamais inovando.

Os ideogramas possuem ainda uma particularidade digna de nota.Quase todos são montados a partir de outros mais simples. Os famosostermos Ying e Yang, por exemplo, podem ser formados por diversosideogramas, mas um deles é particularmente sugestivo. O ideogramapara Ying, que sozinho representa gelado e escuro, junto com oideograma do sol formam o Yang. Esta simbologia é muito interessante,pois o Yang (princípio da luz e da ação) é formado a partir do seu opostomais o sol. Desta forma oYang representa também o “reflexo” do sol noelemento passivo que é o Ying. Os chineses adoram desdobrar osideogramas ou comparar as suas formas entre si, e consideram osresultados destas combinações uma verdadeira investigação filosófica.Achar uma semelhança entre os símbolos para “Brasil” e “quente” nãoseria considerado uma coincidência para a maioria deles, mas umarevelação de que a natureza da língua esconde mistérios simbólicos.

Por estas linhas gerais se percebe que o pensamento chinês conviveem paz com o dogmatismo. Isso não apenas propiciou o surgimento dassuperstições, ritualismo e mitos, como também abriu espaço para ocomunismo, a superstição travestida de ciência social. Mas seria umainconsequência bárbara supor que esta antiga e requintada civilização nãopossui compensações e contrapesos que a tornam em vários aspectossuperior à nossa. O país do meio, como se autodefiniu por quase três milanos, teve o seu primeiro grande código legal com Fo Hi, por volta de3.500 antes de Cristo. Esta assombrosa data era considerada pelos

Page 207: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

chineses do século VI a.C como a Idade Antiga, enquanto o períodoiniciado por volta de 1200 a.C. seria a Idade Moderna, coincidindo com afixação dos judeus na Palestina após a fuga do Egito e a guerra de Tróia.

A época que marcou definitivamente o pensamento chinês foi adecorrida entre os séculos VII e IV a.C, também em paralelo com idades deouro da Índia e da Grécia. É impressionante imaginar que Buda e Patanjalina Índia, Tales, Pitágoras, Heráclito e Sócrates na Grécia e Confúcio e Lao-tsé na China dividiram o mesmo período. Até então a China era compostapor uma grande diversidade de crenças e políticas mais ou menosuniformes. A religião era baseada em três princípios: a mitologia,responsável pela educação básica dos elementos da natureza e do caráterhumano, geralmente com deuses ligados aos fenômenos celestes, aosventos, ao sol e a lua; a ética, que era tanto um princípio político derespeito às leis quanto uma recomendação religiosa; e o culto aosantepassados.

Os sábios da era clássica trabalharam com todos estes conceitos,dividindo-se quase naturalmente por áreas de interesse. Lao-tsé, queconta como o maior mestre religioso da história chinesa, desenvolveu umaética naturalista, racionalizou a natureza e organizou a religião segundo osprincípios de uma união mística genérica com a natureza e os demaisseres humanos. O taoísmo desenvolvido a partir dele conservou adoutrina da serenidade, da paciência e tolerância acima de todas asmotivações terrenas.

Page 208: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Lao-Tsé.

Lao-tsé pregava a necessidade de afastamento da vida social e umavida ascética e extremamente frugal, onde apenas as alegrias da paisagembucólica e do autocultivo deveriam ocupar o espírito. Identificou o silenciocomo a técnica mais perfeita de meditação e instrução. Via a energiadivina em todas as coisas, a harmonia completa, a beleza e a perfeição emtodas as pessoas, objetos e fenômenos.

Confúcio opôs-se ao mestre por desejar uma filosofia mais terrena emais de acordo com as necessidades do mundo político e social. Para issodeu absoluta importância ao conceito de justiça, baseado nas máximas de“não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem”, e “nãoaplicar aos subordinados regras que nós mesmos não gostaríamos deseguir”. Desinteressado das questões transcendentais, concentrou-seexclusivamente no comportamento humano. Não tinha pretensão deformar santos, como Lao-tsé. Almejava apenas a educação do cidadãocomum de modo que cada indivíduo optasse livremente por converter-seem célula obediente e produtiva da sociedade. Confúcio foi sumamenterealista, prudente e reto, exigindo metas simples e possíveis de serematingidas pelas massas. Sua filosofia, segundo ele mesmo, só possuía aautoridade de seu próprio exemplo. Não reconhecia-se erudito dos textosantigos ou portador de uma mensagem revolucionária. Acreditava epregava, ao contrário, ser apenas um seguidor fiel das tradições e leis,cujo único mérito era esforçar-se para honrar a educação recebida de seuspais e avós. Pragmático, dizia que a reforma do cidadão em homemhonesto era a máxima felicidade que a civilização poderia oferecer, e oúnico recurso garantidor da paz, da prosperidade e da segurança.

Confúcio também foi, juntamente com os legalistas, o pai dosconcursos públicos. Seus discípulos conseguiram aplicar a ideia emalgumas províncias, o que se tornou para sempre uma das maioresconquistas da China.

Page 209: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Confúcio.

Os funcionários do governo de todas as nações eram até entãoescolhidos pelos soberanos e pela aristocracia. Com a ideia de concursospúblicos baseados no mérito os chineses conseguiram estabelecer umacasta burocrática cuja competência era medida pelo conhecimento dostextos ao invés do agrado aos soberanos. Esta casta burocrática nãoapenas garantiu uma educação contínua e permanente na maior parte daChina, pois os pais desejavam educar os seus filhos para ascensão socialatravés dos concursos, como garantiu a estabilidade e a qualidade das leiscontra o arbítrio e até a insanidade dos soberanos. Enquanto Roma viaseus loucos imperadores perverterem as noções básicas de direito, sendosucedida pelos selvagens regentes bárbaros da Idade Média, a China,embora submetida a autoridade absoluta de seus monarcas, preservousempre uma culta elite administrativa a ditar altas e polidas normas deconduta.

A terceira força do pensamento chinês clássico é o legalismo, quesequer possui uma figura de destaque. Pode-se dizer até que o legalismoexistiu desde sempre, como forma básica da cultura oriental, mas eletambém experimentou grande desenvolvimento por volta dos séculos V eIV a.C. O legalismo prega basicamente a incapacidade do homem depromover a própria educação moral, de modo que as leis e o governopossuem um papel essencial na garantia da moralidade dos indivíduos.Por mais anti-liberal e alienígena que nos pareça esta ideia ela teve um

Page 210: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

papel muito importante na cultura chinesa, e não difere tanto dopragmatismo ocidental quanto às leis. Longe de ser um dogmatismo ouuma prescrição de passividade apenas, o legalismo tenta conscientizar osindivíduos de que a vida coletiva não pode ser organizada sem a abdicaçãode parte da liberdade dos cidadãos. Estes precisam se apagar em nome doEstado, ou a ordem não passará jamais de uma utopia. Por isso olegalismo prega que as leis devem ser seguidas não importa o quãoerradas elas pareçam. A moral da consciência individual deve serreprimida, pois os indivíduos discordam uns dos outros produzindo o caos.Somente a moral do governante é relevante, já que ela distingue naprática quais punições e recompensas estão em vigor.

Como uma reação natural ao tradicionalismo dos legalistas e deConfúcio, o sábio Mozi desenvolveu uma linha de pensamento queprioriza a moral individual. Mozi considerou hipócritas os conservadores epragmáticos que almejavam a ordem social, e os acusou de perverterem amoral natural em favor do interesse político. Sua doutrina pregava então oamor universal a todas as criaturas, a busca da justiça e do bem a qualquercusto, mesmo que fosse necessário lutar contra o governo, os sacerdotese a própria família. Apesar disto não tinha menos interesse pelas questõessociais do que seus contemporâneos. Ele acreditava que a bondadeindividual seria o melhor método de garantir a ordem e a paz, pois estasúltimas seriam produzidas automaticamente. Ao invés disto, as escolaséticas concentradas nas leis e no respeito a tradição não seriam capazesde reformar o indivíduo, produzindo uma paz ilusória e temporária.

Page 211: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Mozi.

Este enfoque prático das filosofias chinesas facilitou a proliferaçãodo budismo que chegou ao país em princípios do século IV. Mais tarde aChina acomodou também o Islamismo e o Cristianismo, ambos comexpressivo número de seguidores, embora conservando as suas formasmais ortodoxas e rígidas. Se por um lado o diálogo não é o forte dafilosofia chinesa, originando esta multiplicidade de variações estanques ecristalizadas de tradicionalismo, é também verdade que o pensamentochinês vai fundo aos conceitos e produziu algumas das imagens maispoéticas da religião, alguns dos mandamentos mais veneráveis da moral ealguns dos princípios mais sóbrios da política de todos os tempos.

Quando Lao-tsé se deparou com a ideia de unidade da natureza,não foi através de um argumento lógico que ele no-la apresentou. Suasabedoria foi formulada em duas linhas desprovidas sequer de umelemento de ligação, mas que compõem apesar disto um quadrocompleto:

Folhas caindo tocam-se umas as outras;

A chuva toca a chuva.

Deve interessar-nos uma profundidade poética e filosófica queindepende de toda a estrutura que tomamos por imprescindível, a

Page 212: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

exemplo de como pode a mesma mente humana elaborar distintoscaminhos que se completem rumo à verdade. Além disso são dignas denota as semelhanças entre o pensamento padrão do Extremo Oriente e oEspiritismo. Desde o budismo, mas talvez antes são gerais os conceitos dereencarnação e carma. A noção de energia vital é incontestável em todasas nações sob a área de influencia chinesa, com destaque para o Japãoonde a força vital é diretamente associada ao poder da vontade. É a partirdesta energia bioplástica, o Chi ou Ki, que se originam os fenômenosparanormais. Acredita-se que os parentes interessam-se pelas suasfamílias e continuam a protegê-las do além, crença esta que originou oculto aos mortos e entidades protetoras do lar. Os místicos orientais maisdo que acreditam na possibilidade de comunicação com os mortos, eles atem como amplamente comprovada pela experiência.

A par das diferenças de concepção, a experiência iguala de maneiraimpressionante as crenças de todas as civilizações.

Mistificação e esoterismo: Os riscos do espiritualismo

Todo o tipo de espiritualismo, que não deve ser confundido com religião,possui vantagens e desvantagens muito particulares. Isto porque oespiritualismo é um conjunto de princípios filosóficos que se propõe aexplicar o cosmo em contraposição ao materialismo. Esta contraposiçãoresume-se tão somente em defender a existência de um elementoespiritual no universo, seja intelectual ou apenas volitivo.

Schopenhauer e Nietzsche, embora ateus, não são de modo algummaterialistas, senão marcadamente espiritualistas, pois acreditam numaforça imaterial (e, portanto, espiritual) intrínseca ao universo, a vontade.O Budismo, além de apresentar vertentes ateístas nega também umarealidade concreta ao intelecto e a vontade conforme as entendemos,mesmo assim também pode ser considerado espiritualista, pois para osbudistas a matéria é um subproduto da natureza mental-volitiva do eu. A

Page 213: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

maioria dos espiritualistas, porém, crê em Deus ou numa força absoluta,dotada de realidade concreta.

Os espiritualistas concordam quanto à insuficiência dos sentidos naapreensão da realidade. Para eles, é necessária uma espécie de intuiçãoou sensibilidade especial para o elemento sutil da vida enquanto tal quetranscende a materialidade, e, portanto, os sentidos físicos. Nietzscheidentificava através desta sensibilidade metafísica uma pulsão vital, avontade de poder, que orientaria a evolução das espécies e produziriaformas cada vez mais fortes, até culminarem no super-homem. Já os Yogisacreditam investigar diretamente a energia sutil através de técnicasrefinadas de meditação e controle respiratório, de modo a adquiriremsuas habilidades extraordinárias, especialmente a resistência a todo o tipode desconforto e privação material. Judeus, cristãos e muçulmanosacreditam numa espécie de capacidade intuitiva para reconhecer avalidade dos profetas, de modo que o “espírito reconhece o espírito”, esuas escrituras compartilham um elemento bem seletivo que identifica asalmas propensas à recepção da mensagem divina como dotadas de “olhose ouvidos espirituais”. O Espiritismo leva ao extremo o enfoque nasensibilidade espiritual, apontando para o intercambio permanente entreo mundo físico e o além, para a interconexão entre todos os seres, vivosou mortos, e enfatizando a capacidade universal de movimentar energiassutis através de qualquer ato mental.

Todas as formas de espiritualismo, exatamente por trabalharemcom esta sensibilidade para os fenômenos mais discretos e sutis danatureza, correm o risco de superexcitar a imaginação, dando margem atodo tipo de superstição e crendice. É, portanto, um risco grave para osespiritualistas a falta de cautela em relação a novidades, modismos epersonalismos. O Espiritismo em particular prega o trato científico doselementos espirituais da natureza, buscando evitar exatamente aproliferação de crenças e dogmas conflitantes quão ineficazes. Econquanto seja difícil manter o Espiritismo sob a tutela de rigorescientíficos, estando ele difundido em todas as camadas da sociedade, asreferencias mínimas ao método crítico permanecem questão de urgência

Page 214: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

se o que se pretende é evitar a progressiva fragmentação em seitasesotéricas.

Fique bem entendido que não apoio qualquer discriminação contragrupos que comportam novidades e particularidades, mas a definição deesotérico é a mais apropriada neste caso. Isto porque esotéricocorresponde àquelas comunidades privilegiadas por um conhecimentoque outros não possuem, ou com tradições, práticas e regras que só sãoconhecidas ou restritas a esta comunidade. Esotérico não é umequivalente para insensato ou irracional, mas para alguém ou algumasociedade que acredita estar em posse de uma revelação especial. Emboraisto seja possível, não é recomendável, pois quem se acredita na posse deum privilégio destes não tem como averiguar sua veracidade de formaracional.

O Espiritismo nega firmemente a ideia de uma revelação restrita ouespecial para um grupo étnico ou religioso qualquer, e isto por motivoscientíficos e filosóficos. Científicos porque um fenômeno natural tem deapresentar-se universalmente, e não apenas para os crentes. Filosóficoporque este privilégio contraria a justiça divina, senso absurdo supor queum conhecimento benéfico ao gênero humano fosse reservado a umgrupo de eleitos. Quando os romanos se queixaram a Paulo, alegando queos judeus tinham uma tradição profética que facilitava a vida regrada, oapóstolo dos gentios rebateu como absurda a ideia de que Deus sórevelara suas leis aos judeus:

“Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder comotambém a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde oprincípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foramcriadas. Tais homens são por isso indesculpáveis; porquanto, tendoconhecimento de Deus não o glorificam como Deus... antes se tornaramnulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coraçãoinsensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, e mudaram aglória do Deus incorruptível em semelhança da imagem do homemcorruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis... Pois elesmudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura,em lugar do Criador...” ROMANOS: I, 20.

Page 215: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O que Paulo já estabelecia nas epístolas só aumenta com osurgimento da ciência e a Idade da Razão. A revelação não pode contrariaro conhecimento comum, nem a fé contradizer a lógica e a observaçãomundana. Por mais que haja formas complementares de conhecimento,todos devem submeter-se aos critérios de validade pública para quepossam integrar um corpo doutrinário coerente. Ao assumir umarevelação exclusiva estaremos cortando os laços com os critérios devalidade universal do conhecimento, que consistem na exposição ediscussão pública dos fenômenos. O fenômeno mediúnico já é por demaismelindroso para que descuidemos de uma averiguação cuidadosa.

Para evitar os personalismos e a criação de facções esotéricas, cadaqual pretendendo gozar de informações específicas e privilegiadas sobre omundo dos espíritos, Kardec formulou cláusulas científicas e racionaismuito precisas. Entre elas citamos só de passagem o controle universal doensino dos espíritos e as repetidas afirmações de Kardec e dos espíritossobre o privilégio da dúvida sobre a certeza.

O controle universal do ensino dos espíritos é o fio da balançacientífica de Kardec. Como a maioria dos fenômenos é de caráterintelectual, e a sua medição física impossível, o julgo científico da doutrinaespírita não pode prescindir de um controle comparativo dascomunicações em si. Ao tempo de Kardec já haviam inúmeras teorias e atémesmo crenças enraizadas sobre a natureza do mundo espiritual, demodo que ele identificou suas contradições e os perigos de mistificaçãoinerentes a prática da mediunidade. A resposta técnica para o problemafoi o da amostragem geral das comunicações espíritas em diferentescidades e países, por diferentes médiuns e preferencialmente através decomunicações espontâneas. Desta forma elimina-se toda a possibilidadede personalismo, pois os julgamentos são baseados na maioria dosresultados, e não naqueles peculiares a este ou aquele grupo. Asemelhança ou unanimidade em relação a temas muito complexos, aidentidade de terminologias, metáforas, exemplos e hipóteses vindos demédiuns desconhecidos e em condições incomunicáveis, depõem contra

Page 216: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

qualquer possibilidade de adotar-se uma concepção formulada porinfluencia do meio ou da personalidade dos médiuns.

Adicionalmente ao controle universal das informações Kardecpropunha a postura crítica mais rigorosa mesmo em relação aquelesconhecimentos que parecessem unânimes majoritários entre os médiuns.Longe de adotá-los apenas segundo o critério “democrático” do controleuniversal, expunha-os ao crivo da razão e questionava a sua pertinência,coerência, aplicabilidade e se a teoria em questão acrescentava algo aoque já se sabia.

Sem condenar o esoterismo, podemos afirmar categoricamente queele não pertence à prática espírita, e que inclusive a confronta. Por estasrazoes somos forcados a reconhecer que toda a forma de esoterismoconstitui uma agressão dos princípios mais básicos do Espiritismo. Nãoobstante, as influencias esotéricas são perceptíveis e até frequentes entreadeptos do Espiritismo.

Com base na definição feita até aqui discriminamos com segurançaalguns dos elementos esotéricos que não poderiam figurar entre osensinos e práticas dos espíritas:

1- Os rituais: Pois todo tipo de ritual é, por definição, uma imposiçãocomportamental que prescinde de justificação. O passe a fluidificação daágua, por exemplo, são amplamente justificados dentro dos conceitosespíritas referentes aos fenômenos naturais, e se estabeleceram porconfirmação de seus resultados positivos através da experiência. Apreferência por roupas ou adereços da cor branca, por outro lado, nãopossui nenhuma destas prerrogativas, sendo difundida de mododogmático e ritualístico, por forca de tradição e argumentos deautoridade. É, pois, uma prática esotérica, na medida em que seusdefensores alegam haver razões para o seu uso, mas estas "razões" nãosão justificáveis de forma realmente lógica, apenas aceitas comorevelação dos espíritos.

2- Todas as revelações provenientes de uma só fonte: Uma vez que sópodemos garantir uma análise racional de informações amplamenteverificadas através de vários médiuns sem predisposição prévia a

Page 217: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

determinadas ideias. Assim, todas as informações extras transmitidas porvia mediúnica devem ser colocadas primeiramente sob suspeita até que secomprove a sua suficiente justificação racional, não importando para istoo renome do médium. Desta forma, a revelação dos casos de licantropia,claramente um acréscimo em relação às informações de que já sedispunha na época de Kardec, só estabeleceu-se como plausível por suaconcordância lógica com a Doutrina dos Espíritos, já que se sabe que operispírito é elemento plástico submisso ao pensamento e que imagens efixações patológicas podem imprimir-lhe condensações energéticas delongo prazo, e também porque esta informação foi repetida por múltiplasfontes seguras e independentes. Por outro lado, revelações que nãopossuam sintonia direta com a Doutrina dos Espíritos e que se liguemexclusivamente a um médium ou espírito devem ser desconsideradas semmaiores preocupações como não-espíritas. Enquanto não se firme racionale empiricamente toda a inovação nas revelações mediúnicas deve ser tidacomo esotérica, ou seja, incomprovada, restrita a classe de revelaçõesespeciais a determinado grupo ou pessoa, o que não quer dizer que sejaobrigatoriamente falsa.

3- Toda a informação importada de outro sistema não científico: É comumentre os espiritualistas flertar com outras denominações análogas. Místicaindiana, sobretudo o yoga, acumpultura, tai chi, umbanda, xamanismo,cartomancia e outras práticas são todas mais ou menos enquadráveiscomo esotéricas. Novamente isto não implica a sua falsidade, apenas asua insuficiência em justificar-se racional e cientificamente. Os seuspraticantes e os espíritas simpatizantes devem ter a honestidade de nãoatribuir a estes processos o nome de ciência, a não ser de modo muitogenérico, como conhecimento e experiência adquirida. Alguns destespossuem até um aspecto científico, mas abraçam elementos rituais,revelações não racionalizadas, simbolismos e hábitos injustificadostransmitidos por autoridade da tradição, sendo desta forma, ao menosparcialmente, esotéricos. Na medida em que sejam esotéricas, nenhumadoutrina espiritualista possui afinidade com o Espiritismo. Isto não é umacondenação a estas práticas, mas uma exigência de que se apresentem

Page 218: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

despidas de seus elementos esotéricos, para que então possam ser

aceitas de acordo com os critérios de racionalidade do Espiritismo.

É o Espiritismo um Panenteísmo?

Artigo publicado na revista Reformador, de Junho de 2006. De lá para cá otermo "panenteísmo" popularizou-se muitíssimo, sendo empregado em diversosartigos espíritas, embora nem sempre corretamente. Também surgiram por partede católicos e protestantes "acusações de panenteísmo" contra o Espiritismo,escritos estes que deixam entrever uma concepção antropomórfica tão grosseiraque acabam por fazer apologia ao que pretendiam combater. Em geral opanenteísmo firmou-se como a concepção superior e mais avançada da teologiadeste início de século, em todas as denominações cristãs.

Desta forma temos hoje essencialmente as seguintes variantes teológico-metafísicas: Dualismo, que defende a existência de duas realidades distintas eindependentes, algumas vezes ressaltando a incapacidade de Deus de interferir naesfera material, com suas leis próprias.

O Panteísmo, que iguala completamente Deus e a Criação, afirmando sero primeiro um termo que descreve o conjunto e a totalidade do segundo, ou que osegundo seria uma mera ilusão, resultado de uma visão parcial e falha do todo,que é Deus. Assim o panteísmo “mata” necessariamente a realidade de Deus oudo mundo, pois somente um dos dois pode ser efetivamente real, enquanto o outroseria subordinado. Os panteístas gostam de metáforas que diluem asindividualidades e particularidades como: cada pessoa ou criatura é uma onda dooceano universal, ela pertence e nada mais é do que um pedaço do oceano vistoseparadamente.

E por fim o Panenteísmo seria um esforço de unificar as duas concepçõesanteriores, ou seja, a de que Deus e o mundo são uma unidade orgânica e a deque ambos são, em certa medida, independentes e individuais. A dificuldade queos panenteístas enfrentam atualmente é a de superar as diversas conotações eambigüidades lógicas deste em certa medida.

***

Page 219: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Tanto para a filosofia quanto para a teologia e mesmo para o misticismo arelação entre Deus e a Substância do Universo é um dos pontos mais relevantespara uma teoria da religião.

Antes mesmo de considerar as implicações morais da existência de Deusenquanto supremo legislador é preciso investigar teoricamente as “condições deSua existência”, tarefa que ocupou filósofos e teólogos desde o início dos tempos,uma vez que destas concepções derivam os conceitos e o entendimento mesmoda relação homem/Deus, Deus/Mundo, Deus/destino, e outras implicações queconstituem o cerne da Religião.

Para se ter ideia da importância deste assunto lembramos que o ateísmo éfruto da revolta contra uma péssima imagem de Deus, o Deus humano e exterior,escondido em algum recanto dos céus. Uma compreensão filosófica simplista oudeturpada da natureza de Deus pode, portanto, resultar nos maiores absurdosquanto a interpretação de Sua influência no Mundo, gerando doutrinas baseadasno medo, na expectativa, na dicotomia da vida, que resultam invariavelmente emangústia, descrença e rebeldia.

Ainda na raiz das tradições religiosas mais avançadas da Antigüidade, taisquais as da Índia, do Egito, da Mesopotâmia, da Judéia e da Grécia, vê-se umamultiplicidade de perspectivas que variam entre o dualismo radical, doutrina que semanifesta ainda nas igrejas cristãs arcaicas e no Islamismo institucional, até asmanifestações monistas mais complexas.1

Na tradição ocidental o dualismo, doutrina que opera irreconciliável cisãoentre espírito e matéria, Deus e Mundo, normalmente opondo-os, ocasionandoinclusive desprezo e demonização do aspecto terreno da existência, foi sempreassociado ao antropomorfismo e a aspectos mais populares da Religião. E a ideiade dois mundos, o dos deuses e o dos homens, com distintas naturezas, casou-seperfeitamente com as elaborações primitivas de deuses humanóides, com traçosfísicos e psicológicos similares aos humanos.

Por sua simplicidade estas idéias ganharam terreno em todas as culturas,enquanto os princípios mais espiritualizados da Religião permaneceram nos cultosiniciáticos. De espírito simples, os homens daquele tempo, como muitos de hoje,precisavam representar por imagens fortes e distintas as duas esferas da realidadehumana, usando a imaginação para preencher as lacunas de conhecimento sobrea vida espiritual, e opondo de maneira simplista os “dois mundos”, como se fossemantagônicos, e não se dividiam também os deuses em forças do mal e do bem, docéu e da terra, estando esta última invariavelmente entregue ao mal.

Mesmo nos textos de Platão, malgrado sua compreensão da matéria comocópia de modelos arquetípicos preexistentes, o que denota um monismo deprincípio, nota-se uma certa depreciação do elemento material como impuro eoposto ao Bem.

Page 220: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Tal concepção colabora com a imagem de um Deus separado, alheio aomundo material, como se a este não houvesse também criado e nele não serevelasse.

Foi decerto no Egito e na Índia que surgiu a idéia do Pan-en-teísmo2,expressão cunhada no século XIX por Karl C. F. Krause para designar acompreensão filosófica de Deus sempre presente e atuante na Natureza, comomantenedor e vivificador eficaz e perene de tudo o que existe. Não confundir coma doutrina do Panteísmo, que afirma que “Tudo-é-Deus”, e que foi rejeitada pelosEspíritos nas perguntas 14, 15 e 16 de “O Livro dos Espíritos”, pois a afirmação deque tudo seja Deus gera decréscimo ou de Deus ou do homem à algo semindividualidade definida, visto que sendo a mesma coisa um dos dois torna-seatributo do outro.

De um ponto perdido no tempo a Índia e o Egito parecem ser osnascedouros da religião filosófica, e por nosso registro cultural ocidental somosobrigados a nos concentrar no segundo de onde parte a ciência e a sabedoria denossa tradição. As marcas que o faraó Ramsés II, o Akhenaton, e HermesTrimegisto deixaram para a posteridade nos indicam a sombra da sabedoriaegípcia em seu esplendor original.

Fundamentado na consciência clara da ligação entre todas as coisas daNatureza, sua dependência direta de Deus, o Sol dos mundos, o Vivificador deTudo, Trimegisto proclama que todas as coisas são uma substância desprendidade Deus, e que as diferenças existentes entre as manifestações desta emanaçãose devem ao teor vibratório que elas atingiram, ou seja, o grau em que se agitamimpulsionados pela crescenteVontade que todos os seres possuem, a força davida que cresce neles até torná-los plenos de vida, pensamento, ação.

Após o contato com o Egito os judeus transformaram a sua crençapatriótica do deus guerreiro numa religião avançada e espiritualizada. Embora aimagem antropomórfica apareça em alguns livros da Bíblia, a Cabala hebraicaconserva no conceito de Ensof a idéia de que Deus vive e atua em todos oslugares, todos os seres, todos os povos.

Na Gália, na Península Ibérica, na Britânia, na Germânia e nos Balcãsadoravam-se os carvalhos, as flores, os porcos, os cervos e os trovões comodivinos que são, obras das forças harmônicas e presentes em tudo que eles nãoconceituavam, mas pressentiam como sendo a própria Natureza e o próprioUniverso.

Orfeu, poeta grego da era pré-clássica, bebeu desta fonte e trouxe à Gréciatanto a teoria da metempsicose quanto a visão de um Universo animado esustentado pela Vontade Absoluta.

Pitágoras aprendeu de Orfeu e dos próprios sacerdotes egípcios, com osquais viveu cerca de trinta anos, chegando a um extrato bastante puro da antigasabedoria. Entendeu que as diversas substâncias do mundo se diferenciam pelo

Page 221: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

grau de complexidade que atingiram, que uma harmonia perfeita se manifesta nanatureza como Leis, e na mente como Razão.

Sócrates e Platão coroam o ensinamento antigo pré-cristão com amoralização da doutrina panenteísta, vendo Deus como Sol das almas, a Verdadealcançável pelo intelecto virtuoso e conhecedor de si mesmo, que lança luz sobreas sombras dos vícios e ilusões, extinguindo-os. Pregam a reforma dapersonalidade como via de regeneração da natureza real da alma e divulgam aessência da filosofia antiga para toda a coletividade.

Faltava ainda ao mundo o exemplo da vitória completa da personalidade eda possibilidade de se chegar a uma virtude e pureza divinas. Quando Jesus veioao mundo a humanidade viu que a luz divina pode brilhar através de um de nós.Vislumbrou-se o destino das criaturas terrenas e a meta do longo progresso. Seusapóstolos dão testemunho registrado de sua doutrina e vida. Resguardadas asdiferenças intrínsecas entre as duas esferas de existência, os apóstolos nos dizemque “vivemos e nos movemos em Deus”, que “nós somos deuses”, que “osmansos herdarão a Terra”, tudo isso referindo-se a este mundo. Uma visão bemdiferente do pessimismo dualista que o enxerga como maldito e impuro.

Os heróis da era cristã tentaram resgatar a pureza e a sublimidade da ideiafilosófica de Deus que se apagou sob o julgo da Igreja de Roma, malgrado osesforços de Plotino e da escola de Alexandria no início da Era Cristã. Francisco deAssis viu pedras, animais e plantas como seres divinos. Na Renascença uma sériede intelectuais, sendo Bruno o maior deles, reavivam as doutrinas da sabedoriaantiga, do infinito, dos muitos mundos habitados, do Deus que se mostra em todasas coisas. A Reforma nas mãos de Huss e Lutero proclamam uma vida cheia deDeus, a simplicidade dos evangelhos e a liberdade da consciência, dom divino quedignifica o homem e faz dele verdadeira imagem de Deus.

Na modernidade Paracelso, Böhme, mestre Eckhart, Espinosa e Leibnizdefenderam a ideia da unidade fundamental do Mundo como substância emanadade Deus, em distintos graus de perfeição, mas em harmonia entre si no Todo danatureza. A revolução silenciosa da religião na Europa, ao contrário de suas lutasintestinas em espaço público, levou quatro séculos para atingir seu apogeu napoesia de Goethe e na filosofia de Hegel, na Alemanha, e culminarem nasistematização da Doutrina Espírita na França.

A doutrina Espírita nos diz que o Espírito também é composto de matéria,embora quintessenciada, que o vida dorme no mineral, para atravessarprogressivamente as carreiras vegetal e animal até despertar plenamente nainteligência do Espírito. André Luiz nos diz, em “Evolução em dois Mundos”, que oUniverso é a condensação do hausto do Criador. León Denis nos fala claramenteem “Depois da Morte”:

“O que a ciência derruiu para sempre foi a noção de um Deusantropomorfo, feito à imagem do homem, e exterior ao mundo físico. Porém, a

Page 222: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

essa noção veio substituir uma outra mais elevada, a de Deus, imanente, semprepresente no seio das coisas.”

Sim, o Espiritismo é também um Panenteísmo, pois afirma que tudo promana deDeus, e portanto tudo é bom e divino. O desprezo pela matéria é despropositadoem nossa doutrina. Ela também nos diz, como a antiga sabedoria, que vivemos enos movemos em Deus.

Bibliografia:

DENIS, León – Depois da Morte / FEB, Rio de Janeiro. 1974

DURANT, Will. _ A História da Filosofia. in: Os pensadores / Nova Cultural,São Paulo. 1996

_______, Will. _ O livro de Ouro dos Heróis da História / Ediouro, São Paulo.2001

KARDEC, Allan _ A Gênese / FEB, Rio de Janeiro. 1999

______, Allan _ O Livro dos Espíritos / FEB, Rio de Janeiro. 2003

REALE, Giovanni e Dario ANTISERI – História da Filosofia . Vol. II / Paulos, SãoPaulo. 1990

XAVIER, Francisco Cândido & André Luiz – Evolução em dois mundos / FEB,Rio de Janeiro. 1977

1 Doutrinas que professam a unidade e conexão de todas as coisas a partir de suaorigem em Deus.

2 Pan=tudo; Teo= Deus. Pan-en-teísmo literalmente significa Tudo em Deus.

Page 223: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O Espiritismo na literatura clássica - Roma.Outro artigo publicado na revista Reformador, de Dezembro de 2008.

***

Como bem se sabe, toda a cultura latina é uma expressão ampliada eadaptada da grega. De modo que somente pelas características mais cotidianas etécnicas da vida se diferencia a alta cultura da Grécia Clássica e da Roma Antiga.No mais, a educação do patrício romano consiste no estudo dos clássicos,preferencialmente nos originais em grego.

Não assusta que a sua literatura seja quase que uma cópia daquela, ondeo panteão de deuses, a mitologia, a filosofia implícita e os temas tendem a serepetir.

Assim que Cícero expressa crenças gregas, assumidamente adquiridas emcontato com esta tradição.

“Pois que estou longe de concordar com aqueles que tardiamente promulgam aopinião de que a alma perece com o corpo, e que a morte aniquila todo o ser, poroutro lado, há que se valorizar a autoridade dos antigos, aqueles que estabeleceramritos para os mortos, os quais certamente não seriam feitos com o pensamento de queos mortos estão totalmente desinteressados destas observâncias... ou ainda segundaaquela doutrina; que segundo alguns foi pronunciada pelo oráculo de Apolo ao maissábio dos homens, e que dizia não uma coisa hoje e outra amanhã, como fazemmuitos, mas repetia sempre a mesma coisa, sustentando que as almas dos homenssão divinas, e que saem do corpo, que o retorno aos céus é acessível a elas, e queeste retorno é direto e fácil na proporção de sua integridade e excelência.”[1]

É interessante o caráter prático que distingue o povo latino da maneira depensar grega, estritamente teórica, pois nenhum filósofo grego diria serem astradições comprovantes do interesse dos espíritos em nossas vidas. À mentalidadegrega agrada a teoria, a abstração, e o grego argumentará sempre que a almaaprecia o rito fúnebre porque há para isso uma razão, e a explicará segundo anatureza da alma, a qual apraz a amizade, a lembrança.

Cícero, sendo pragmático, argumenta conforme os fatos. 1- Faz-se ritosaos antepassados. Logo alguém que instituiu estes ritos sabia serem capazes deagradar aos espíritos. 2- Há doutrinas que falam da divindade humana e darelação entre pureza moral e libertação da alma. O filósofo latino procede porobservação de fatos e relatos.

Page 224: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Em termos semelhantes se expressa Vergílio, embora não faça, como ofilósofo, um elenco de argumentos. Como era comum às tradições do passado,incluindo naturalmente a Bíblia, a literatura clássica confunde criatividade etradição, lenda e memória histórica da fundação dos povos e destino das nações.

A Eneida, que sem dúvida é a obra maior da cultura romana, é um relatofictício que guarda profundas intuições históricas e espirituais sob suas metáforas.Tratando somente das segundas, encontramos uma descrição impressionante dosuicídio de Dido, rainha de Cartago, ao ser abandonada por Enéas. Ainda notemplo da pátria, durante a decisão de matar-se, “crê ouvir a voz e os gritos dechamamento do seu marido...”.[2]

Instantes antes do suicídio, Enéas vê em sonho a imagem de um deus“desconhecido”, que lhe diz:

“... não vês os perigos que te cercam no porvir? Ela, decidida a morrer, revolve em seucoração enganos e crime cruel, e flutua numa varia agitação de furores. Porque nãofoges depressa, enquanto ainda podes...”[3]

Atento a uma mensagem tão clara e direta, Enéas não receia em lançar-seao mar com seus marujos rumo à Itália, enquanto Dido, recebendo os informes doocorrido, perfura-se com a espada da família. Entretanto não consegue morrer,porque literalmente está presa ao corpo, e agoniza terrivelmente.

“Então, a onipotente Juno, compadecida da sua prolongada dor e da penosa morte,envia-lhe Íris, do alto do Olimpo, para libertar aquela alma em luta com os laços docorpo. Pois, como sucumbia a uma morte não prescrita pelo destino nem merecida,mas perecia, infeliz, antes do tempo e presa a um súbito furor...”[4]

Temos aí uma página verdadeiramente espírita, relatando a aventuraprimitiva daquilo que se observa nas páginas de André Luiz ou Manoel Philomenode Miranda. A boa Íris tem o papel de verdadeira mensageira da luz, atuando emfavor de uma transição menos terrível de Dido, que por sua vez não conseguelibertar-se do corpo.

Mais tarde Enéas tem de descer ao Tártaro, nas mesmas condiçõesem queUlisses havia feito na Odisséia de Homero. Enquanto o herói de Ítaca encontravaaí a sua mãe, Enéas vê o pai, Anquises, no mundo das sombras. Anquises fala aEnéas:

“Logo que o dia supremo da vida deixou o corpo, os infelizes não estão de tododesembaraçados do mal... e o mal que longo tempo se acumula no fundo delesmesmos, necessariamente cresce... Por isso são castigados com penas e sofrem... aseguir somos enviados para o amplo Elísio... Finalmente, depois que um longo dia,volvido o círculo dos tempos, apagou a mancha profunda e purificou a origem celeste,

Page 225: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

faísca do sopro primitivo... o deus os chama para as bordas do rio Letes, a fim de queesqueçam o passado... e comecem a querer voltar para corpos.”[5]

Esta página riquíssima aponta discretamente para várias grandesverdades. Os espíritos que não se desembaraçaram do mal são aqueles que oacumulam por longo tempo em si mesmos, revelando a lei do mérito e indicandoque há justiça e conhecimento de causa no processo de separação das almascondenadas. E o mais impressionante, após os sofrimentos expiatórios de suasfaltas a alma se vê purificada, e é reconduzida ao corpo.

Estes dois exemplos, de Cícero e Vergílio, são suficientes para ilustrar oquão vivos estavam ainda os conhecimentos de Orfeu, Pitágoras, Platão e outrossábios gregos, que a cultura romana então absorvia avidamente.

Nos anos que se sucederam os homens mais sábios do mundo romano jáestavam envolvidos com o cristianismo nascente, tanto que não há obrasexpressivas da literatura pagã após o ano de 60 d.C. aproximadamente.

Os melhores elementos daquela cultura, entretanto, foram absorvidos etransmitidos à rica tradição cultural dos dois séculos posteriores, cumprindo assima sua missão de educar as populações latinas para o cultivo da virtude e dasabedoria.

Bibliografia:

CICERO, Marcus Tullius. Ethical writings of Cícero: De Amicitia. Traduzido porAndrew Peaboy. Boston: Little Brown, 1887.

VERGÍLIO. Eneida. São Paulo: Cultrix, 2001.

[1] Marcus Tullius CICERO. De Amicitia (Da Amizade).

[2] VERGILIO. Eneida. Pg. 81.

[3] VERGILIO. Eneida. Pg. 83

[4] VERGILIO. Eneida. Pg. 86.

[5] VERGILIO. Eneida. Pg. 127.

Page 226: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A mediunidade na literatura clássica - GréciaReproduzo aqui meu artigo publicado na revista Reformador, de Junho de

2008.

***

Com este texto pretendemos abrir caminho para discussões e exposiçõesde fatos incontestavelmente mediúnicos, seja na exposição de obras da literaturaclássica, seja no processo de sua escrita.

É bem conhecida a importância dos poetas e literatos de todas as épocassobre a religião e a cultura. Muitas vezes são indivíduos positivamente inspirados,além de trazerem grande bagagem de conquistas na área da sensibilidade e damemória, como frequentemente ocorre entre artistas. A vantagem da literatura estáem que este campo da arte está na fronteira entre a pura arte, de um lado, e asciências humanas e a filosofia, de outro. A argumentação tem, portanto, papelgarantido nas grandes obras literárias.

Sob o termo literatura também se englobam relatos menos artísticos,ensaios e trabalhos de caráter mais teórico, de modo que os diálogos de Platão ouos livros da Bíblia estão perfeitamente inseridos sob ele.

Uma boa mostra da forte presença da mediunidade entre os gregos, e quenos ajuda a compreender como eles tinham consciência do fenômeno, é apassagem do diálogo platônico “Timeu”, onde os ministros do Deus Supremo, osdeuses menores ou “demônios”, deveriam seguir a ordem de criar o corpo humanode modo que ele fosse o mais próximo possível do Deus Supremo. Nestepropósito deram ao homem um órgão (supostamente o fígado) que percebe ainspiração divina, destacando-se que a inspiração não acomete aos homens maissábios, mas aos mais tolos ou que parecem loucos:

“Nenhum homem em sua sobriedade atinge o estado de inspiração profética, masquando ele recebe a palavra profética, ou a sua inteligência é afastada peladormência, ou ela se torna equívoca pelo estado de possessão, e aquele que quiserinterpretar as palavras divinas, seja obtidas em sonho ou acordado, ou determinarracionalmente o significado das visões de aparições, compreendendo os resultadosdestes fenômenos para o bem ou mau dos homens, no passado, presente ou futuro,deve primeiramente recuperar sua sobriedade.”[1]

No entanto, continua Platão. Nem sempre um homem se lembra daquiloque disse em estado profético, de modo que é conveniente haver um ou maistestemunhas durante a profecia e as visões. Assim, aqueles que estão em seu

Page 227: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

estado de perfeita sobriedade, podem interpretar melhor a narrativa daqueles queestiverem inspirados.

Observa-se claramente que Platão não está defendendo um argumento,está meramente descrevendo um fato, tal era a naturalidade com que lidava comfenômenos deste tipo.

Igualmente clara é a conclusão a que ele chega no “Íon”:

“E assim Deus arrebata a mente dos poetas, e os utiliza como seus ministros, assimcomo também usa adivinhos e os santos profetas, de modo que nós que osescutamos, sabemos que a sua fala não provém deles, e eles não pronunciampalavras vazias neste estado de inconsciência, mas é o próprio Deus quem fala, eatravés deles Ele conversa conosco.”[2]

Somando-se os dois relatos percebemos que o estado profético ouinspirado descrito pelo filósofo tem importantes implicações científicas. ComoKardec ele (ou talvez seu mestre Sócrates) parece ter avaliado rigorosamente oprocesso a ponto de formular uma compreensão teórica bastante correta dafenomenologia mediúnica. Estão perfeitamente descritos o estado de passividadedo médium e o fato de a comunicação não provir dele, o caráter transcendente dacomunicação, a possibilidade de poder se processar no sonho ou no estado detranse, o fato de a mediunidade ser, muitas vezes, uma missão atribuída aos“ministros de Deus.”

Platão também dava a entender, nestas e em outras obras, que o estadoprofético destes inspirados podia ser utilizado por outros para obter informaçõessobre a realidade maior, para além do mundo dos sentidos. Muitos dosconhecimentos platônicos parecem ter sido obtidos por esta via, conforme elemesmo admite, embora os historiadores prefiram imaginar que ele os obtevealhures, da Ásia Menor, da Índia, do Egito.

Lembramos também que era costume entre os gregos consultar as pítias(ou pitonisas) seja no famoso oráculo de Delfos, seja em lugares e seitas menosfamosos. Os relatos de Heródoto e a literatura grega deixam a entender que assacerdotisas do templo profetizavam tanto por “encomenda” quantoespontaneamente.

Também não nos perderemos na imensidão dos relatos mitológicos, queentre uma fantasia e outra sugerem fenômenos de vista mediúnica, incorporação,previsões, etc; nem a evidência direta da inspiração através das “musas”.Atentamos tão somente, a título de exemplo, à obra madura de Homero, aOdisséia, onde ele dá importantes indícios de que as práticas mediúnicas lhe eramcomuns.

No canto XI, quando Odisseu (ou Ulisses) tem de descer ao Hades, eleencontra a sombra de sua mãe. Após as apresentações e explicações necessárias

Page 228: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

o herói tenta abraçar três vezes a mãe, e não a podia tocar, percebendo que ela sedesvanecia como uma sombra ou como se fora “feita de sonho”. Indignado elepergunta a mãe o que ocorre, e ela lhe responde:

“... Esta é a condição de todo homem mortal quando morre, pois os nervos já nãounem mais carne e ossos:

A potente energia do fogo o consome todo quando toda a vida abandona a brancaossada e o princípio vital se nos torna o mesmo que um sonho.

Mas procura volver o quanto antes a luz, e recorda de tudo isto, de modo que possacontá-lo à tua esposa.”[3]

Percebe-se diversas características interessantes neste encontro. Aprimeira é o modo com que ambas as personagens se expressam sobre asubstância da mãe, que “parece um sonho”, sugerindo claramente que a viagemde Odisseu ao Hades não foi feita em sonho, mas que ele estava desperto diantedos mortos e podia constatar serem eles formados de outra substância.

A segunda informação importante é a recomendação da mãe de que eledeveria recordar do que se passou, recomendação importante considerando-seque o próprio Platão já havia dito em sua análise da mediunidade que “...ou a suainteligência é afastada pela dormência, ou ela se torna equívoca pelo estado depossessão...”. Homero, muito antes de Platão, apresenta a mesma idéia, sugerindo anecessidade de um esforço posterior ao contato com os mortos, no sentido de serecordar do ocorrido.

Por fim não é menos importante, embora sutil, a recomendação da mãe deOdisseu para que ele “conte à esposa” o que se passou. É o caráter prático dacomunicação, e denota o interesse caritativo do espírito em instruir e alertar osencarnados. Em toda a literatura, seja a mais artística ou mais ensaística, osrelatos mediúnicos geralmente recomendam a divulgação ou a transmissão dainformação a outros. Só em raríssimos casos, quando a informação envolve riscospara alguém, há recomendações para que se mantenha o segredo.

A obra de Homero tem duas grandes vantagens, a de ser uma obra deformação da própria cultura helênica, estabelecendo paradigmas da própriareligião a partir daí, e a de expressar um virtuosismo literário até hoje admirável,dando idéia de quão impressionante ela deve ter sido para a Grécia num momentoem que ela sequer havia estabelecido a sua civilização.

A viagem de Odisseu ao Tártaro também tornou-se um paradigma naliteratura ocidental. Vergílio faz o seu Enéias descer ao mundo dos mortos, cercade oito séculos depois de Homero, e depois Dante descreve na “Divina Comédia”uma viagem do Inferno, passando pelo Purgatório, ao Céu, tomando a sombra de

Page 229: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Vergílio como guia nesta inusitada peregrinação, mais de mil anos depois de seuconterrâneo da Roma antiga.

Por este motivo a Odisséia tem a prerrogativa de ter despertado asintuições latentes de inúmeros outros pensadores e artistas, os quais a partir deentão estariam sempre mais próximos de semelhante viagem ao mundo dosmortos.

Bibliografia:

HOMERO. Odisea. Buenos Aires: Planeta, 2007.

PLATÂO. Íon. Classical Library. Disponível em:

http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/8_Ion.htm.

______. Timeu. Classical Library. Disponível em:

http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/17_Timaeus.htm

[1] http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/17_Timaeus.htm

[2] http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/8_Ion.htm

[3] HOMERO. Odisea. Pg. 195.

Método e epistemologia de Platão

Dentre todos os nomes que a história registrou sob a categoria desábios, não foram Descartes ou Kant, Bacon ou Locke, Spinoza ou Leibnizque Kardec identificou como precursores do Espiritismo. Dentre tantosnomes ilustres aos quais poderia se associar com inúmeras vantagenssociais e acadêmicas, o mestre lionês escolheu Sócrates e Platão por

Page 230: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

patronos, construindo sob a rocha os fundamentos filosóficos da Doutrinados Espíritos. Tivesse ele eleito os gênios de sua época, e muitoprovavelmente o Espiritismo teria sido absorvido como subproduto dascorrentes filosóficas daquele momento. Mas, ancorado no caráter heróicoe na lucidez imperecível dos luminares da filosofia, resgatou sensatamentea conexão com as fontes do espírito filosófico mais puro, superando astransições de ocasião e modismos.

Não obstante o reconhecimento oficial do Codificador e deinúmeros outros autores, as figuras emblemáticas dos pais da razão nomundo, Sócrates e Platão, parecem estranhamente esquecidas pelaliteratura e debates espíritas mais recentes, coincidindo com fenômenosde “simplificação” e massificação da mensagem kardequiana.

Tal estado de coisas é ainda mais lamentável quando os avanços dahistoriografia e filologia do século XX lançaram tantas novas luzes sobreestes sempre célebres pensadores. Esta revolução ainda está em curso,mas os estudos de Platão já recomeçam a despertar interesse ao longodos anos 1980, e hoje já se pode dizer que retornaram ao centro dosinteresses filosóficos e teológicos. Para uma filosofia como a Espírita queaponta o platonismo como origem e fundamento filosófico este fato éincontornável, e deve despertar o máximo interesse.

Idealismo platônico?

O primeiro ponto em que se precisa fazer justiça ao filósofo não serefere exatamente a uma das reformas interpretativas supracitadas, mas auma questão mais básica, a saber, a confusão entre idealismo e realismoem Platão. Se em sentido muito genérico e abrangente a sua filosofiapode enquadrar-se como idealista, este não é definitivamente o caso setomamos o termo em seu significado técnico dentro da tradição filosófica.Platão é um realista, acredita que nosso conhecimento corresponde a umapercepção do “Real” e não a uma formulação mental independente darealidade. O equívoco é oriundo do modelo ontológico (ou seja, darealidade) que o filósofo emprega, onde existe um mundo físico e um

Page 231: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

mundo das idéias ou formas originais. Muitos leigos e inclusive filósofosde profissão inferem que a existência de um mundo ideal independentedo mundo físico significa um irrealismo ou idealismo, quando na verdadeos termos da filosofia platônica deixam claro o fato de que o mundo dasidéias é real, independente da mente humana e, portanto, não existeidealismo.

Embora o senso comum rejeite fortemente a doutrina platônica dasidéias é muito fácil provar a sua necessidade lógica, até certo ponto,partindo de uma idéia pura para cada atributo. Platão demonstra emprimeiro lugar que o atributo tem que ser distinto da coisa, por reductioad absurdum. O dedo anelar é maior do que o mínimo, mas menor do queo médio. Isto equivale a dizer que ele é maior e menor ao mesmo tempo,dependendo dos outros objetos com os quais for comparado. Um objeto,portanto, não pode esgotar jamais a definição de grandeza ou pequeneza.(Hippias 523a-524d) O erro do filósofo Hippias no diálogo platônico quetraz o seu nome foi confundir a determinação com uma coisadeterminada, a predicação com o seu objeto. Mas é óbvio que nenhumobjeto imaginável esgota completamente o princípio de uma predicação,já que é sempre possível imaginar outro objeto que tenha o mesmo oumaior significado predicativo.

Apesar de todas as variações e discordâncias da filosofia este foi umponto jamais questionado, uma vitória permanente do platonismo sobreas fases pré-filosóficas da racionalidade. Predicações são feitas a partir decritérios e princípios, independentes de coisas, que estão condicionadas aacidentes e condições físicas. Que se aceite o mundo das idéias platônico,atribuindo uma existência separada para as propriedades das coisas, ouderive-se as propriedades das coisas mesmas, como faz Aristóteles, não sepode de modo algum confundir a natureza incorpórea de umapropriedade com a natureza condicionada do objeto, pois este segundoestá sempre em função comparativa aos outros objetos, e este relativismosó desaparece no conceito enquanto tal. A ciência moderna, que assumeestas determinações, nos apresenta exatamente uma visão da naturezacomposta dematéria e propriedades. Mesmo convivendo juntas, de modoaristotélico, elas não são exatamente a mesma coisa, e faz sentido tratar

Page 232: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

as propriedades de modo independente, como princípios matemáticos, oufalar de propriedades in abstracto, como a gravidade, a inércia, a evoluçãodas espécies, etc.

A essência do platonismo está nesta percepção sobre apossibilidade de estabelecer determinações, que depende destaindependência da propriedade determinativa em relação às coisas. Osataques sofridos pelo platonismo geralmente se originam da confusãoentre o mundo das idéias, um plano de existência efetivo e independentepara as propriedades das coisas, que é apresentada por Platão como uma“hipótese razoável”, e o assim chamado idealismo platônico, que consisteneste problema de fundamentação do conhecimento reproduzidofielmente pela ciência e lógica contemporâneas. Este segundo princípiopoderia ser mais bem acolhido se a tradução geral de eidos (forma) como“idéias” fosse eventualmente modificada para o termo “propriedades”,que produz muito maior conforto ao ouvinte materialista. Claro que atradução como idéia condiz com a hipótese do mundo das formas, mas seesta é uma hipótese subordinada e a fundamentação do conhecimento éuma conquista permanente, convém adequar esta segunda àsterminologias em que ela pode ser melhor absorvida.

Platão em momento algum crê ser possível uma análise a priori dasidéias, o que equivale a dizer que ele não é um idealista no sentidoepistemológico, tanto quanto não é no sentido metafísico. Oconhecimento das idéias depende inteiramente daobservação do mundo,sem a qual a sugestão para as definições das coisas e suas relações nãopoderia ser desperta (reminiscência). Conquanto haja um conhecimentoinato, ele só é disparado pelos sentidos, e a observação é tão importantequanto a razão pura na rememoração das idéias.

Lógica versus dialética.

Com isto entramos mais diretamente na epistemologia platônica eseus problemas. Todos sabem que a filosofia do fundador da Academia éexposta em diálogos, e que o seu método de investigação é a dialética.

Page 233: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Mas aqui há elementos de análise relevantes. O primeiro deles é distinguirlógica de dialética. A primeira trata da relação entre sentenças, orações. Alógica trabalha a congruência entre certas premissas e certas conclusões.Se duas ou mais frases são aceitas como premissas válidas, é possível queuma conclusão lógica seja extraída delas. O que a lógica não pode fazer édefinir conceitos, pois não há como aplicar as suas regras de congruênciase não houver vários elementos para uma comparação. Aí entra adialética, que é a disciplina especializada na definição racional deconceitos. A dialética não busca a congruência, senão a distinção, adeterminação (dar termo, fim) dos conceitos.

Enquanto a lógica busca as conclusões de um argumento, a dialéticadefine e elabora os termos exatos da argumentação, evitando que oequívoco entre as peças prejudique a arquitetura maior objetivada pelalógica. O problema da dialética é a sua imprecisão se comparada a dalógica. A lógica é infalível, pois pressupondo-se a veracidade das premissaschega-se fatalmente à conclusão. A dialética é ambígua por natureza, oscontornos e fronteiras exatos entre um e outro termo são sutis, às vezessubjetivos, às vezes estão fora de nosso conhecimento atual, forçando-nosa trabalhar com definições provisórias. Isso produziu em Aristóteles umdesconforto em relação à dialética, e uma preferência pela lógica. Decisãoque foi repetida pela tradição medieval escolástica, e impregnou-se namentalidade moderna, apesar dos esforços desta última para separar-sedaquela. A dialética, por pressupor a imprecisão do conhecimento, foiconsiderada um recurso vulgar e inferior, enquanto a certeza da lógicaprevaleceu como regra epistemológica impulsionando o racionalismo e opositivismo. Ocorre que a suposta fraqueza da dialética era reconhecidapor Platão como a sua maior força, já que ela permanecia comolembrança constante dos limites da capacidade humana.

Segundo a análise de Karl Popper, que é indiscutivelmente o maiorfilósofo do conhecimento do século XX, quiçá da história mundial, noslivros O mundo de Parmênides e Conhecimento objetivo, Platão é o únicopensador crítico da história humana antes do século XX. Isto quer dizer, oúnico a combinar ceticismo e conhecimento de forma crítica,estabelecendo condições epistemológicas equivalentes às da ciência

Page 234: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

moderna, com espaço para falseamento e refutação de suas conjecturas.E isto tem muito a ver com a dialética e com a forma de sua exposição pordiálogos.

Diálogo versus exposição.

O diálogo foi erroneamente interpretado como estilo literário ouopção estética de Platão. Mas já no século XIX Eduard Zeller, FriedrichNietzsche e antes deles teólogos e filósofos como Schleiermacheratentaram para o fato de que o diálogo compõe parte essencial daepistemologia platônica. Ele teria o duplo efeito de evitar o conflito entreos personalismos filosóficos e garantir uma observação plural dosfenômenos, de modo a aperfeiçoar a precisão dos termos. A dialéticadeveria ser preferencialmente feita em diálogo, e os termos deveriam serparcialmente definidos por análise, mas pela sua ambigüidade precisavamtambém ser consensuais.

Quando nos expomos ao diálogo alguém sempre levanta prós econtras inesperados e em geral as pessoas se contrapõem naturalmente,evitando as polarizações e extremismos na definição dos termos ideais. Aconvenção é a ferramenta ideal de conhecimento, pois nela estãosatisfeitos os interlocutores opostos, com suas diferentes perspectivas, e aproximidade das idéias é a máxima possível. Isso chocou diversos filósofosque não queriam um conhecimento baseado em acordos e convençõesestabelecidos em diálogo, mas em certezas absolutas, mas é exatamenteo que as metodologias de pesquisa mais modernas pregam.

Por isso os diálogos apresentam sempre a deixa de Sócrates:Queremos um conhecimento universalmente válido da justiça? etc, etc. Seo interlocutor diz: “Não, isso é impossível Sócrates!” então eles sedespedem e seguem suas atividades. Mas se o interlocutor diz. “Claro!Não desejo outro senão o critério que nos permita ajuizar sempre e emcomum sobre este assunto.” então preencheu-se a cláusula contratual dainvestigação dialógica, e os interlocutores estão trabalhando dentro dasregras de um acordo.

Page 235: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O problema grave está em imaginar que estas etapas dos diálogosão só cenário, quando na verdade não existe cenário ou elementosdispensáveis nos livros de Platão. Tudo tem sentido e propósito. Cadafrase, especialmente estas recorrentes, é cuidadosamente colocada paraensinar aos alunos o método correto de filosofia e ciência. Nada ali tempapel literário ou estilístico.

Segundo Popper e Zeller, Aristóteles ficou tão enraivecido comalguns dos diálogos, e com o fato de parecerem infrutíferos, de nãoatingirem os consensos esperados, etc, que considerou o método umaciência inferior. Ele refinou a lógica para poder extrair as definições determo dela, ao invés de aplicá-la só às relações de sentença como Platãopropos. Com isto perdeu-se a idéia de consenso e a de dialética.Aristóteles também acusou Platão de ser um dogmático e definir as Idéiasconforme o seu próprio gosto, quando na verdade o seu método lógicoabsolutista é que o fazia. Assim Popper condena Aristóteles pelo fim datradição crítica e início dos sistemas filosóficos dogmáticos. Ele nãoentendeu que o método dialógico e dialético do mestre só permitiaestabelecer investigação quando os interlocutores concordassem com ostermos gerais, ou achou isto insuficiente, desejando uma espécie degarantia completa para o conhecimento. Para Popper isto foi uma atitudeintransigente de Aristóteles, e prova de sua incapacidade de tolerância edúvida cética para entender a parte relativista do platonismo.

O que é um pouco mais complicado é a demonstração de que estepequeno relativismo, a idéia de um conhecimento desenvolvido porconsenso e acordo, não equivale em quase nada ao relativismo atual daassim chamada pós-modernidade. Esta corrente moderna generalizou acrítica cética aos princípios do conhecimento, implodindo a racionalidade,e fechando o próprio acesso a um conhecimento da realidade. Segundoesta vertente da filosofia contemporânea a importância lingüística, sociale psicológica do saber é exagerada a ponto de ele tornar-se inteiramenteincerto e provisório. Isso certamente não equivale ao método crítico deconhecimento, que assume todas as possíveis implicações exterioressobre os conceitos e sobre a racionalidade, mas sem reduzir o espaçopróprio destes e a sua legitimidade.

Page 236: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

De uma forma muito complexa Platão achava que os termosdefinidos em consenso eram os mais próximos da verdade em si mesma,não uma convenção social desvinculada da realidade. Embora o mundodas idéias com seus arquétipos eternos de Bem e Justiça existamontologicamente antes do mundo físico, que é a sua conseqüência, estesarquétipos e idéias são reconstruídos com eficiência somente peloconsenso. É como se a mente isolada fosse frágil demais para atingir averdade, ao passo que o diálogo pudesse proporcionar umaperfeiçoamento da cognição individual, aumentando o grau deaproximação da verdade. Vou seguir a linha de descobertas de Popperpara demonstrar isto.

A revolução do conhecimento matemático.

Os responsáveis pela teoria das idéias são os pitagóricos. Foram elesque diagnosticaram o progressivo movimento abstrativo dos demais pré-socráticos, caminhando de elementos arquetípicos como água, vento,infinito, etc, sempre para princípios menos materiais e difíceis de seconfundirem com os elementos naturais. Atingiram assim a consciência deque os números e relações puramente mentais podiam ser aplicados atudo, sem se confundirem com nada de concreto, devendo assimconstituir a essência final. Ao lado deste e de outros grandes méritos, aescola de Pitágoras se congelou numa dogmática adoração da aritméticacomo interpretação perfeita e infalível da realidade.

Os primeiros problemas surgiram quando se tratava de dízimas, poiseles não davam números exatos, mas isso foi resolvido com o astutorecurso de atribuir às dízimas um papel simbólico de quase n Assim0,99999... guarda apenas uma distância infinitesimal de 1, e pode serdescrito como quase um, em sentido abstrato, já que em sentido concretonão poderia haver tal grandeza.

O problema ficou incontornável quando um dos membrosintroduziu problemas geométricos egípcios, muito dependentes de raiz de2 e pi. Depois de tentarem contornar o problema como erro, a escola se

Page 237: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

escandalizou com a possibilidade da existência concreta dos irracionais, oque acarretaria numa incapacidade de descrever com certeza a realidade.Obcecados eles expuseram centenas de casas decimais de pi e raiz dedois, para descobrir que não havia regra nenhuma para prever aprogressão. Não importa o quão bom fosse o matemático, um númeroinfinito de casas estaria para sempre inacessível. A razão não poderiadominar sequer a sua língua mais submissa e adequada, a matemática, e orestante do conhecimento estava comprometido.

Os pitagóricos abafaram a história, mas alguém vazou o problemagerando grande furor entre céticos e sofistas, que apontavam para ainutilidade da razão. Platão resolveu definitivamente o problema, unindoo juízo crítico de Sócrates ao seu domínio de matemática. A solução nãoera reformular a matemática, mas a epistemologia. Logo de cara Platãoassumiu a geometria como a matemática superior, e colocou a famosaplaca na porta da academia: “Aqui não entram os que não sabemgeometria”. Isto porque a geometria, em acréscimo a aritmética, mostravao mundo equilibrado entre ordem e caos, sendo os irracionais a suaexpressão perfeita, digna de louvor e adoração eterna. A possibilidade decontinuar a descoberta e precisar sempre mais os irracionais, e apercepção de que geralmente algumas poucas casas de precisão eramsuficientes para todos os fins práticos, levaram-no a conclusão de que osnúmeros eram conhecidos e desconhecidos ao mesmo tempo. Oconhecimento seria, a exemplo da geometria, suficiente, mas sempreimperfeito. (POPPER. Die Welt des Parmenides, 1998. p.337-338)

Isto não implica em relativismo, pois a geometria em si seria exata eperfeita, havendo no plano da realidade um valor real para os númerosirracionais. Somente o nosso saber seria imperfeito e relativo, poisestamos condicionados aos nossos sentidos muito limitados que nosimpedem uma visão abrangente e exaustiva dos fenômenos, bem como acompreensão plena dos princípios. Ao mesmo tempo em que a ciência nosrevela a realidade, devemos guardar humildade em relação ao nossosaber, pois ele é evidentemente imperfeito.

Tais correções sobre a metodologia científica de Platão sãoimportantes porque destacam a sua diferença qualitativa em relação aos

Page 238: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

demais filósofos, em termos de liberalidade, lucidez, crítica, embasamentoempírico e garantias contra qualquer acusação de dogmatismo. Aexcelência do método em perfeita concordância com a mais avançadaepistemologia moderna engrandecem ainda mais os resultados teóricosalcançados por esta filosofia. Podemos então concluir que o filósofodefensor da reencarnação, da comunicabilidade com os mortos, daevolução da alma humana através de sua desmaterialização, do livre-arbítrio, da moralidade justificada pela razão, de Deus como o Sumo Beme do mundo das idéias se diferencia de todos os demais por ser o quecombateu com mais seriedade o próprio personalismo e concepçõesprévias em favor de uma investigação imparcial da verdade.

Yoga e Espiritismo: As tecnologias do transe.

Georg Feuerstein foi até agora o único comentador ocidental a reunirprofunda experiência prática em Yoga e o domínio intelectual da literaturaem sânscrito sobre o assunto. Seu conhecimento seguro da filosofiaocidental também lhe dá uma vantagem especial sobre os autoresindianos, que quase nunca conseguem transmitir as sutilezas de suafilosofia sem empobrecê-la ou fazê-la parecer esotérica. Somos, portanto,imensamente gratos ao autor daEnciclopédia do Yoga e de A tradição doYoga, e a sua definição de yoga como a tecnologia do êxtase tornou-secom toda a razão lugar comum, fazendo apenas uma modificação denossa parte e apresentando as técnicas comparadas de Espiritismo e Yogacomo as tecnologias do transe, querendo com isto simbolizar suas técnicasexatas e eficazes de transcendência.

Fora do desenvolvimento da tradição intelectual européia é difícildistinguir uma linha de pensamento que mereça o nome de ciência,mesmo que reconheçamos os muitos méritos de diversas doutrinasasiáticas, africanas e nativo-americanas. O Yoga é talvez a única doutrinamerecedora deste título, embora ainda com diferenças essenciais do

Page 239: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

método desenvolvido entre a Renascença e a Era Moderna. A explicaçãopara este caráter especial do Yoga está na cultura extremamente liberalda Índia, que sempre admitiu a investigação crítica, a dúvida, a diversidadede idéias e a importância do confronto entre teoria e experiência, mesmonas épocas em que a Europa não gozava destas condições. Se uma ciênciapode, além disto, ser medida pelo seu poder prático de modificar arealidade, então o Yoga merece ainda mais o título, pois os seus efeitosconcretos são indubitáveis.

Todas as religiões da Índia adotam o Yoga, único ponto em queconcordam, quando ademais estão em conflito quanto a existência deDeus ou dos deuses, de quem e como é ou são as divindades, e quais assuas relações com o mundo. Somente o Yoga impôs-se por força dos fatosque ele produz como unanimidade, apesar das distintas interpretaçõesque cada sistema aplicou a ele. O Budismo, ao passo que rejeitousimplesmente tudo da religião indiana, exceto a idéia dekarma/reencarnação, adotou todas as técnicas de Yoga: a meditação, osmantras, os exercícios respiratórios e físicos, o pragmatismo e oempirismo. Os persas, geograficamente próximos da Índia, semprereceberam sua influência, com destaque para o Yoga. Enquanto a religiãoIslâmica rechaçava qualquer influencia filosófica ou teológica, os místicospersas abraçavam o Yoga, absorvendo suas técnicas de transe e com elasconstituindo o Sufismo, a mística muçulmana.

Os exercícios espirituais que não possuem nenhuma influência do Yogatestemunham igualmente ao seu favor pela imensa semelhança querevelam para com ele. O Estoicismo, a mística espanhola de Ignácio deLoyola e Santa Teresa D’Ávila, os pietistas, os quakers, os taoístas e osprofetas hebreus, todos os grandes místicos compartilham o amor aosilêncio e ao isolamento, o ascetismo e a sobriedade, a concentração e aadoração que elevam a alma ao estado de êxtase. Reunindo todas astécnicas utilizadas por todos estes grupos, quase sempre com grandesuperioridade, devido ao estudo milenar e ininterrupto que os sábiosindianos lhe dedicaram, o Yoga é o vértice do conhecimento e da práticamística de toda a humanidade.

Page 240: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Quanto aos praticantes, é indiferente se são ateus ou crentes, se orampara um santo vivo ou fixam-se somente em um som, se fazem esforçosmoralizadores ou se dedicam-se ao acúmulo de poder (os siddhis), todosconcordam que o conhecimento relaciona-se à lei natural, não estandosubordinado a crença. Naturalmente, cada praticante tentará justificarsuas convicções pessoais dentro de seu método meditativo ou de ascese,mas concederá sempre que a técnica terá ao menos alguma eficácia paraqualquer usuário. Somente o materialismo impede a prática do Yoga, poissendo a ciência do espírito, fundada na investigação empírica dofenômeno místico e iluminativo, é impossível e ilógico exercê-lo semestar-se convencido de uma realidade espiritual. Isto o praticante do Yoganão toma como dogma, mas como evidência derivada dos estágios maiselementares dos exercícios. Trabalhando a energia mental e sutilconcentrada nos chacras, modificando sua sintonia espontaneamenteatravés da disciplina respiratória, postural e psicológica, dominando osinstintos e desejos através da intenção fortalecida pelos exercícios decontrole psicossomático, o yogi se certifica empiricamente da sua própriatranscendência. Não existe nenhuma postulação da existência do espírito.Ela é simplesmente constatada e observada, tornando-se uma obviedadepara os yogis.

O yoga das academias não lembra muito o dos ascetas indianos.

Uma outra característica marcante do Yoga é a sua ênfase no livre-arbítrio. Mircea Eliade, o grande historiador das religiões, diagnosticouimortalidade e liberdade como os conceitos centrais do exercício

Page 241: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

iluminativo, e estava completamente correto ao fazê-lo. Ao contrário dospensadores abstratos indianos, que eventualmente defendem uma visãode mundo determinista, o Yoga, bem como o Budismo e outros derivados,pressupõe e prescreve a liberdade por questão de princípios. A idéia dedomínio sobre o corpo e a mente, de uma técnica disponível a todos, semquaisquer privilégios, é sumamente libertária e coaduna-seinevitavelmente com a convicção de que o destino pessoal está em poderdo indivíduo.

Jamais vingou entre os místicos indianos a idéia de Graça, como umasalvação por eleição divina. O esforço pessoal e a conseqüenteresponsabilidade são os únicos elementos reconhecidos no processoiluminativo. O Budismo, por exemplo, é enfático ao afirmar que o seucaminho de oito passos é “perfeitamente praticável”. Ressaltando estecaráter pragmático e menos dependente de crenças e dogmas, os yogis dediversas escolas são unânimes na sua convicção de estarem de posse deuma técnica eficaz, no sentido pleno da palavra. Não existe motivo teóricoou moral para a prática. Nenhum yogi concordaria que a sua adesão aométodo foi provocada por argumentação, sugestão ou imposição religiosaou filosófico. Como bons empiristas, os ascetas indianos só reconhecem omotivo técnico para a prática: “Praticamos porque funciona.Recomendamos porque traz resultados.”

Mas em que consistem estes resultados? É o que todos se perguntam.Poderíamos dizer resumidamente que o Yoga se divide em aspectosfísicos, psicológicos e espirituais. No aspecto mais propriamente físico oYoga objetiva comprovar a completa submissão do corpo ao espírito. Estaetapa, embora introdutória, é comumente supervalorizada, especialmenteno ocidente, porque os resultados visíveis da ascese são geralmente muitoimpressionantes, incluindo resistência ao frio e ao calor, capacidade dejejum prolongado, diminuição drástica das horas de sono por dia,resistência a dor, vigor e disposição ampliados, além da reconhecidacapacidade de sustentar posturas desconfortáveis.

Numa espécie de plano intermediário entre a mente e o corpo estãoos exercícios respiratórios, que objetivam refinar o domínio do espíritosobre as funções físicas e mentais. A respiração é a interface físico-

Page 242: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

psíquica por excelência, pois ela é uma função intermediária entre os atosinvoluntários e os voluntários. Ao passo que qualquer pessoa está cientede sua capacidade de alterar o próprio ritmo respiratório, a maioria daspessoas vive sem o fazer, a semelhança dos animais que respiraminconscientemente. O controle e a conscientização respiratória têm assimo duplo papel de revelar este elemento voluntário nos atosaparentemente involuntários e exercitar.

Fio da navalha que separa a matéria do espírito, a respiração é oelemento chave para equilibrar a relação entre estes princípios. Se ela éautomática, o indivíduo está entregue ao instinto e aos desejos animais,na fase inicial do seu progresso espiritual, se ela é profunda, serena ebenéfica, a inteligência predomina sobre o instinto e a vontade sobre oimpulso. Esta percepção não é exclusiva dos yogis, senão um reflexo dosenso comum sobre o ritmo respiratório. Em qualquer lugar ou época umarespiração descompassada, ofegante, o ronco e a apnéia noturna, ou atéem vigília, são sinais de uma saúde comprometida e uma vida emdesequilíbrio.

Controlando uma função tão aparentemente involuntária quanto arespiração, aumentam em muito as chances de controle da mente, opróximo passo do Yoga. Inaugurando a psicologia profunda três mil anosantes de Freud, os yogis certificaram-se de que a mente é assaltada porconteúdos simbólicos, relacionados a memórias, hábitos e desejos,geralmente inconscientes. Aqui também observa-se a uniformidade daspráticas espirituais, pois todas elas em todos os países diagnosticam estaflutuação incontrolada da mente como o maior desafio a concentração, aoração e a meditação. O Yoga estabelece a disciplina física (incluindosexual e alimentar) e respiratória como os pré-requisitos do saneamentopsicológico, pois a vontade se fortalece pela ascese, e a consciênciaacostuma-se à vigília sobre os atos involuntários. Paralelamente é urgentea transformação ética do sujeito, sem o que a consciência de culpa e oestímulo constante aos vícios de que é portador permanecem em espaçoconfortável. Pela força dos elementos atávicos do automatismo humano,o relativismo moral é sempre uma ilusão, pois o nosso caráter primitivistaimpõe-se invariavelmente sobre as propostas salutares e equilibradas.

Page 243: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Urge assim uma reforma moral imediata e permanente, para que o pesodos condicionamentos passados (karma) se transforme em herançapositiva através da ação meritória.

Pode-se dizer que estas três etapas já garantem o sucesso do yogi, econduzem seguramente às demais. O cuidado e estado de alertaconstante em relação ao comportamento físico, respiratório e a condutamoral transformam o sujeito de um repetidor inconsciente dos instintos econdicionamentos adquiridos a autor livre e ciente de todos os seus atos.A disciplina mental avança assim para a meditação, que é lograda semmaiores esforços quando a vontade já está fortalecida pela conduta reta eesmerada. A conscientização quanto ao corpo, a respiração e a condutaética também dão à consciência um poder de concentração inusitado, poisela habituou-se ao esforço de vigilância, não sendo nem ludibriada peloinconsciente nem cedendo aos primeiros sinais de fadiga em convite aodesforço. A mente focada pela meditação adquire clareza e profundidade,constância e desenvoltura do “lixo mental” que obstrui a mentedestreinada. Resolvem-se assim problemas mais sérios, possibilitam-se osesforços mentais prolongados e a manutenção de um padrão mentalelevado, livre dos empecilhos e tropeços a que estão sujeitas as mentesentregues aos automatismos e desejos, tão cegos quanto caóticos.

O homem moderno aprendeu com a psicanálise a existência doselementos involuntários e inconscientes, e entregou-se passivamente aeste diagnóstico, acreditando estar em seu poder apenas a aceitação dopróprio descontrole sobre si. Abandonando a si mesmo a este “estado denatureza”, viu-se animalizar enquanto a tecnologia escalava os ápices doprogresso material. Quão infantil não é este pretenso homem civilizadocomparado ao asceta de trinta séculos atrás, que não parou fascinadodiante da descoberta dos seus determinismos inconscientes, mas educoua vontade através de ingentes esforços, intelectualizando a matéria etrazendo a luz da consciência as marcas da memória atávica que até entãoo regiam, esperando apenas que ele amadurecesse o bastante para fazê-lopor si mesmo.

O Espiritismo tem muito a ver com o Yoga. A começar pela sua ênfasena predominância dos fatos sobre a crença, da razão sobre a tradição. O

Page 244: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Espiritismo, também antes da psicanálise, diagnosticou com segurança afunção inconsciente da mente, e detalhou a sua causa na vagareminiscência do pretérito e na influência sutil exercida por outrasmentes. Estabeleceu diversas técnicas de vigilância visando diminuireste predomínio do inconsciente sobre o consciente, coroando a oraçãocomo estágio meditativo avançado de elevação do padrão vibratório damente, exigindo para isto o abandono das fórmulas automáticas das“rezas” e impondo o ato espontâneo, criativo e sincero da comunhãosentimental e intelectual com o plano do espírito. Desenvolveu umaciência psico-físico-espiritual sobre os fluidos energéticos de naturezamental e semi-mental que nos caracterizam a vida, identificando oscentros de força nos plexos solares nos mesmos locais que os yogisidentificaram os seus chacras, relacionando as doenças destes centrosàs marcas provocadas por erros trágicos em vidas passadas, eincentivando a mudança especial de conduta em relação aos órgãos efunções lesadas, quais sejam: relacionamentos estáveis e dignos para osportadores de esterilidade ou disfunções sexuais, temperança alimentare emotiva para os deficientes do sistema digestivo, atitude compassivapara os que apresentam disfunções cardíacas ou imunológicas,disciplina para os que padecem dos males da fala e da respiração,responsabilidade para os atingidos por transtornos psíquicos.

Alargando o campo de estudo e esclarecimento sobre as relaçõesentre vontade e intelecto (espírito) energias e hábitos (mente) e saúdefísica (corpo), o Espiritismo também reproduziu a noção yogi de controlevoluntário das formas-pensamento, a fluidoterapia e a manipulação diretadas ondas mentais que nos constituem a realidade imediata (aura),popularizando inusitadamente a prática do passe como recurso detransformação magnética e da “sintonia” como método garantido decontrole do fluxo psíquico, regrando e aperfeiçoando os antigos hábitosde invocação das musas e gênios inspiradores. Na aplicação do passe, nareunião mediúnica ou no simples culto evangélico o Espiritismodesenvolveu a prática da focalização da mente em padrão superior,contribuindo sobremaneira para isto a conscientização quanto às idéias eemoções exteriores que tomam de assalto o indivíduo interessado no

Page 245: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

próprio melhoramento, e que se tornam desta forma compreensíveis,perdendo a sua influência na medida em que o indivíduo não maisconfunde-se quanto a sua proveniência.

Concluímos, portanto, que o Espiritismo reproduz as práticas econceitos das tradições místicas e ascéticas universais, com particularsemelhança em relação ao Yoga, e que o caráter desmistificado de ambasas doutrinas, juntamente com o fato de atingirem tantos pontos deconcordância, contribui em muito para a validação de ambos como

métodos, senão científicos, ao menos cientificamente eficazes.

Filosofias da Índia

Segundo consenso geral, as primeiras formas organizadas dereligião, contando com códigos escritos, rituais regulares e princípiosfilosóficos elaborados foram as do sub-continente indiano, na extensãoentre o Indo e o Ganges. Esta região era desde 12 ou 13 mil a.C.dominada pelos arianos, povo que recebeu este nome porqueantigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano não é mais doque a forma ancestral da grafia e pronuncia equivalente ao iranianoatual.

Países de língua indo-européia, em verde escuro, e híbridas em verde claro. (60% da população mundial)

próprio melhoramento, e que se tornam desta forma compreensíveis,perdendo a sua influência na medida em que o indivíduo não maisconfunde-se quanto a sua proveniência.

Concluímos, portanto, que o Espiritismo reproduz as práticas econceitos das tradições místicas e ascéticas universais, com particularsemelhança em relação ao Yoga, e que o caráter desmistificado de ambasas doutrinas, juntamente com o fato de atingirem tantos pontos deconcordância, contribui em muito para a validação de ambos como

métodos, senão científicos, ao menos cientificamente eficazes.

Filosofias da Índia

Segundo consenso geral, as primeiras formas organizadas dereligião, contando com códigos escritos, rituais regulares e princípiosfilosóficos elaborados foram as do sub-continente indiano, na extensãoentre o Indo e o Ganges. Esta região era desde 12 ou 13 mil a.C.dominada pelos arianos, povo que recebeu este nome porqueantigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano não é mais doque a forma ancestral da grafia e pronuncia equivalente ao iranianoatual.

Países de língua indo-européia, em verde escuro, e híbridas em verde claro. (60% da população mundial)

próprio melhoramento, e que se tornam desta forma compreensíveis,perdendo a sua influência na medida em que o indivíduo não maisconfunde-se quanto a sua proveniência.

Concluímos, portanto, que o Espiritismo reproduz as práticas econceitos das tradições místicas e ascéticas universais, com particularsemelhança em relação ao Yoga, e que o caráter desmistificado de ambasas doutrinas, juntamente com o fato de atingirem tantos pontos deconcordância, contribui em muito para a validação de ambos como

métodos, senão científicos, ao menos cientificamente eficazes.

Filosofias da Índia

Segundo consenso geral, as primeiras formas organizadas dereligião, contando com códigos escritos, rituais regulares e princípiosfilosóficos elaborados foram as do sub-continente indiano, na extensãoentre o Indo e o Ganges. Esta região era desde 12 ou 13 mil a.C.dominada pelos arianos, povo que recebeu este nome porqueantigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano não é mais doque a forma ancestral da grafia e pronuncia equivalente ao iranianoatual.

Países de língua indo-européia, em verde escuro, e híbridas em verde claro. (60% da população mundial)

Page 246: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Apesar de que já houvesse escritos religiosos, pois os havia naChina, na Mesopotâmia e no Egito, a civilização proto-ariana do norteda Índia, Paquistão e Irã oriental destacava-se pela independência deque seu código e culto religioso gozavam frente à arbitrariedade degovernantes, fossem religiosos ou políticos. Isto é importante porque asleis sagradas e rituais essenciais mudavam drasticamente de acordocom o interesse dos déspotas em todas as regiões, sendo a primeiraexceção a religião védica.

Os famosos Vedas nada mais são do que estes textosarquimilenares compilados a partir de cânticos e ditados até entãotransmitidos oralmente. A sua versão escrita, inaugurando a época dasreligiões organizadas, data de 1500 a.C. aproximadamente. Mas oscânticos mais novos já tinham séculos quando foram escritos, e os maisvelhos podem datar de dois ou três mil antes de Cristo. Devotos eindólogos mais entusiasmados costumam defender uma cronologiamítica com cifras absurdas, às vezes de 50 mil anos ou mais. Não existe,no entanto, nenhuma base empírica ou lógica para estas afirmações.

Com a popularização dos textos védicos e a instituição da religiãoindependente dos trânsitos de governo, proliferou na região umacultura sacerdotal distinta de todas as demais até aquele período, quese caracterizava pela liberdade de pensamento e especulação abstrata.Com isto, surgiram os Upanixades, originalmente como comentárioselaborados e interpretativos sobre os Vedas. Mesmo sendo muito maisjovens do que os Vedas, os Upanixades ainda são tão antigos quanto àstábuas de Moisés, com aproximadamente 3400 anos, alguns um poucomenos.

Enquanto os textos védicos são míticos, ritualísticos e impregnadospor uma linguagem autoritária que lembra muito o Pentateuco, emespecial as leis, os Upanixades são compostos geralmente por alegoriasrefinadas e abstratas, especulação filosófica e poesia espiritualizada.Categorias que podem ser encontradas em todas as tradições religiosas.

Page 247: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O Chandogya Upanixade, por exemplo, apresenta-nos a idéia deinvestigação filosófica das essências das coisas. Um pai tentarepreender o filho que se gabava excessivamente de sua ciência. Ele lhediz assim:

“Traga-me um fruto da árvore de nyagrodha

_Aqui está pai.

_Abre-o.

_Está aberto, pai.

_Que vês aí.

_Umas sementinhas.

_Abre uma.

_Ei-la aberta.

_Que vês aí.

_Nada.

O pai disse: _ Meu filho, na essência sutil que não percebes aí, nesta essênciaestá o ser da enorme árvore nyagrodha. Nisto que é a essência sutil, todosos seres têm o seu Eu. Isto é o verdadeiro, isto é o Eu, e tu, Svetaketu, tués isto...”[1]

Nesta alegoria de profundo valor reflexivo, o Upanixade demonstraque os princípios ou leis são exatamente a parte invisível e imponderávelda realidade. E antes que o astuto homem moderno responda que oconhecimento científico já desvendou a natureza do desenvolvimento dasemente através da estrutura de DNA, lembramos que o sábio pai dahistória não está excluindo a imanência da lei numa estrutura material,tanto que ele sabe perfeitamente que a semente, material, éimprescindível para o crescimento da planta. Confrontado com a noção deDNA da semente ele também admitiria que sem esta estrutura física ofenômeno de metamorfose da planta seria impossível, mas ele estáconsciente de que é a ordenação da matéria, seguindo princípios e leis,

Page 248: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

invisíveis e imateriais, enfim, é o fato de haver uma lógica na disposiçãoda parte material da semente que a permite tornar-se árvore. Esta lógica eordenação compõem a parte imutável, permanente e espiritual de todasas coisas, e é para ela que a história está atentando.

Num aspecto mais moral as Upanixades se revelam ainda maisinstigantes. O Yogatattva Upanishad diz:

“As almas individuais são prisioneiras dos prazeres e desgraças que asafetam neste mundo; para livrá-las da ilusão é preciso dar-lhes oconhecimento de Brahman (A Suprema Realidade, Essência do Universo),graças ao qual o indivíduo já não é mais afetado pela doença, nem pelavelhice, nem pela morte e não sofre mais o risco de renascer. E esteconhecimento é adquirido com dificuldade, mas é um navio que permiteatravessar o rio dos renascimentos; pode-se atingi-lo por mil caminhosdiferentes, mas ele é realmente Um, refúgio supremo além do qual nadaexiste. Alguns procuram seu caminho na prática dos ritos ensinados nosescritos védicos: eles caem por ignorância nas malhas do ritualismo. Nemos ritualistas nem os deuses (espíritos superiores) podem explicar essaRealidade indizível; e como essa forma suprema que só a alma conhecepoderia ser conhecida pelas escrituras?”[2]

Esta passagem impressiona pela liberalidade e pela grandeconsciência ecumênica e crítica. A crítica do ritualismo e do apegodogmático aos Vedas lembra a recomendação sábia de Paulo paratranspor a letra e apreender o espírito dos textos. Mas considerando-seque o texto indiano antecede em mais de mil anos o do apóstolo de Tarso,e supera também a filosofia grega que permitiu ao judeu helenizado estegrau de tolerância intelectual, somos forçados a render homenagem erespeito a esta antiga filosofia, a qual muitos críticos ocidentais aindaconsideram desmerecedora do título de racional.

Os Upanixades, como toda grande filosofia espiritualista, prima pelaunidade monista do universo em Deus. O Dhyanabindu Upanixade, porexemplo, lembra que aquela parte essencial e imortal de todas as coisas, oser dos seres, é a força divina onipresente:

Page 249: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

“E todos os seres que existem são atravessados pela Alma (Atman), comoas pérolas por um fio. O espírito sereno, o pensamento claro, assenta-seem Brahman (A Suprema Realidade. Essência ou Alma do Universo), quemo conhece. Sim, como o óleo nos grãos, o perfume na flor, a Alma está nocorpo do homem, e o envolve e habita!”[3]

O Hamsa Upanishad apresenta em feições ainda mais poéticas aunidade divina do universo desdobrado a partir da substância pensanteabsoluta:“Ele entra em todos os seres, o Pássaro Migrador (Brahman), e torna-sepresente neles como o fogo nas varetas de atritar. Ou como o óleo nosésamo. Saber isso é vencer a morte. (...) Ele é o Pássaro Supremo,resplandecente como a luz de dez milhões de sóis e pelo qual todas ascoisas foram permeadas.”[4]

As conseqüências éticas, ecumênicas e sociais deste espiritualismomístico são louváveis. O Sri Isopanixade mostra, no sexto mantra, como aprópria idéia de Deus produz um ponto de vista universalista e espiritual:

“Aquele que vê que tudo está relacionado com o Senhor Supremo, que vêque todas as entidades vivas são suas partes integrantes, e que vê que oSenhor Supremo está dentro de tudo, não odeia nada nem ninguém.”[5]

Não é minha intenção fazer uma análise cuidadosa dos Upanixades,motivo pelo qual termino esta curtíssima e superficial exposição da vasta ecomplexa literatura sagrada indiana sem nem mesmo uma conclusãogeral. Isto também tem a ver com o fato de que a Índia originou todas asgrandes linhas de pensamento que vemos em conflito na história dafilosofia ocidental: Diversos tipos de ateísmo, uns materialistas outrosespiritualistas; monismos predominantes pontuados por dualismos oupoliteísmos de vários tipos; adoração dos elementos da natureza emexpresso panteísmo, ou teísmos de Deus único com entidadessubordinadas que lembram o catolicismo. Da teologia indiana veminclusive a idéia de trindade, onde um Deus supremo se divide emdistintas pessoas, cada qual com uma existência real e independente.

Page 250: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Por volta de 500 a 450 a.C., enquanto a Grécia via a formação daescola pitagórica e a juventude de Sócrates, todas as formas imagináveisde especulação religiosa já haviam sido tentadas na Índia. As disputassobre os meandros dogmáticos e rituais, os conflitos entre as váriasescolas, produziu a revolta cética baseada numa doutrina extremamentepragmática e desprovida de conteúdo teológico, o budismo. Na mesmaépoca o sábio Patânjali tentou isolar a ciência indiana sobre práticasascéticas, respiratórias e místicas das doutrinas religiosas.Semelhantemente a Sidarta Gautama, Patânjali achava que o excesso deteorias religiosas era mais prejudicial do que benéfico à elevação da alma,e criou um método rígido, racionalista e empirista para separar o Yoga,conhecimento prático, de qualquer crença, dando origem à grandetradição de místicos treinados. Agnósticos por natureza, os yogis podem egeralmente aderem adicionalmente a uma religião, inclusive a islâmica,mais recentemente.

Patanjali, o compilador do Yoga.

De natureza totalmente distinta é a literatura épica formada nesteperíodo tardio da cultura em sânscrito. O colossal Mahabarata, contendoa história da guerra entre duas famílias do mesmo clã, rico deconsiderações filosóficas e devocionais, é de muito longe a maior obraliterária da antiguidade. Mais de dez vezes maior do que a Ilíada e aOdisséia reunidas. Um único e pequeno fragmento deste livro, oBhagavad-Gita, contém virtualmente todo o conhecimento necessáriopara a vida santificada, e por isso acabou popularizando-se como um livroà parte.

Page 251: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

O médico, político, filantropo e jornalista Adolfo Bezerra deMenezes, em sua obra Estudos Filosóficos, faz a análise daquele magníficolivro indiano, dedicando-lhe páginas poéticas e apaixonadas. Segundo ele:“o Bhagavad-Gita é um livro tão elevado, tão luminoso, que nem mesmo aBíblia pode pretender estar acima dele.” [6] Vejamos de relance o que dá aeste livro um aspecto tão elevado.

Logo na introdução o deus encarnado Krishna diz a seu discípuloArjuna: “Aqueles que são videntes da verdade concluíram que o não-existente (o corpo material) não permanece e o eterno (a alma) nãomuda. Isto eles concluíram estudando a natureza de ambos.”[7] A frasefaz referencia à prática do yoga, considerada a ciência dos indianos,juntamente com a matemática, a medicina e a lógica. Cada uma destasseria responsável por revelar as leis que regem os distintos fenômenosnaturais, sendo o yoga particularmente importante por estar ligado àrevelação das leis energéticas e mentais mais sutis.

O conceito de reencarnação, presente desde eras remotas na religiãoe filosofia indiana, encontra no Gita a sua expressão mais clara, quandoKrishna diz: “Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamentepassa da infância à juventude e à velhice, do mesmo modo, chegando amorte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa ponderada não ficaconfusa com esta mudança.”[8]

O Gita segue instruindo Arjuna, o discípulo do iluminado, a desapegar-se dos frutos de suas ações, a agir conforme a posição em que foicolocado por Deus, a praticar austeramente a investigação de si mesmo,yoga, e a adorar a Deus em todos os pensamentos e ações.

Existem extensas enciclopédias que tentam reunir as filosofias e ateologia indiana, mas nenhuma delas é considerada completa. Asmelhores em línguas ocidentais são:

1. a história da filosofia na Índia de Shurendranat Dasgupta, disponível eminglês em dois ou três volumes, dependendo da edição. Esta obra garanteum contato em primeira mão com um autor indiano dominante dosânscrito (que é uma língua morta) desde a infância e não apenas fluente,mas virtuoso no inglês.

Page 252: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

2. Paul Deussen foi provavelmente o maior indólogo de todos os tempos,reunindo uma obra vasta sobre a Índia, onde se destacam Introduçãogeral da filosofia dos Vedas aos Upanixades.

3. Mircea Eliade, o célebre historiador da religião, viveu anos num mosteiroindiano e doutorou-se também neste país com uma tese sobre Yoga. Seuconhecimento não é tão vasto quanto o dos indologistas, mas a suacompetência filosófica permitiu-lhe elaborar uma conceituação muitoqualificada das principais correntes. Estas teorias e experiências pessoaispodem ser encontrados em Yoga: Imortalidade e Liberdade.

4. Também um escritor originalmente interessado em Yoga, como Eliade,Georg Feuerstein também superou em muito as necessidades de umaexposição dos exercícios e princípios desta prática, apresentandoadicionalmente uma análise longa, sistemática e exaustiva de todas asreligiões, filosofias e respectivos conceitos da macro-cultura indiana.

[1] Aldous HUXLEY. La Filosofia Perenne. Pg. 12.

[2] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados daantiguidade. Pg. 180-181.

[3] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados daantiguidade. Pg. 109.

[4] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textos sagrados daantiguidade. Pg. 146-147.

[5] Swami PRABHUPADA. Sri Isopanisad. Pg. 29.

[6] Aliás, neste livro de dois volumes que é a coletânea de seus artigos publicadosno jornal O Paiz, Adolfo Bezerra de Menezes nos surpreende como acirradopolemista, dotado de vastíssima erudição sobre teologia, filosofia e história docristianismo primitivo e de outras grandes tradições religiosas, especialmente asda Índia e do Egito.

[7] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo 2, Verso 16. Pg.92.

[8] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo 2, Verso 13. pg.88.

Page 253: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Espiritismo no Islã

O Espiritismo apresenta-se como “uma ciência que trata danatureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com

o mundo corporal”, segundo a definição de Kardec em O que é oEspiritismo, e isso pressupõe e exige a natureza universal destesmesmos fenômenos. Não é, portanto, o Espiritismo, comparável aqualquer conjunto de crenças religiosas, pois nenhuma delas coloca-sesob as mesmas exigências.

Apresentar-se como ciência e filosofia separa-o conclusivamentedas demais religiões, mas isto não é apenas um privilégio e um mérito,como também uma permanente desvantagem. Isto porque, ao afirmar-secomo ciência, restringe-se e coloca-se sob risco a segurança da crença,que toda a religião tem garantida por dogma.

Dentre os inúmeros riscos a que se expõe uma religião compretensões científicas está o de provar o caráter universal de seusfenômenos, e sua completa independência da respectiva crença neles ounuma filosofia que os apóie. Por isto é tão importante para os espíritasbuscar a comprovação de seus pressupostos dentro de tradições religiosasdistintas, um hábito ressaltado nas coletâneas e artigos de Kardec naRevista Espírita.

Poucas coisas podem beneficiar mais uma hipótese científica do quedescobrir a presença de seus fenômenos num ambiente em que eles sãoconsiderados impossíveis. Se a ciência em questão é acusada de dependerde uma disposição cultural, nenhuma outra descoberta é mais alentadorado que a de que seus fenômenos estão bem enraizados numa cultura quea condena.

É o caso de religiões que possuem uma postura declaradamentecontrária a fenômenos espíritas, como o catolicismo e o islamismo.Encontrar estes fenômenos ou os elementos de uma filosofia espírita numtal ambiente é depor fortemente contra a idéia de uma explicação culturalpara sua existência. E no presente texto quero falar da presençainconfundível de fenômenos e filosofia espírita entre os muçulmanos,

Page 254: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

cujos conselhos oficiais negam a abominam os conceitos de reencarnaçãoe comunicação com os mortos.

Muhammed Iqbal, poeta, pensador e político influente do início doséculo XX propôs uma renovação espiritual do Islã, colaborando para adivulgação de místicos e filósofos muçulmanos dos séculos passados numaperspectiva espiritualista arrojada. Para ele cada partícula do universo éum “eu”, um espelho do Criador buscando o seu desenvolvimento.

Entre os grandes mestres espirituais do Islã está o persa Rumi,considerado por muitos o maior homem santo do Islamismo, abaixo doprofeta Mohammed. Algumas de suas passagens, escritas por volta de1250, apresentam não apenas idéias reencarnacionistas, masevolucionistas, numa forma tão elaborada como só foi vista novamente noséculo XVIII. Rumi diz:

“Toda a forma que tu conheces tem a sua origem no mundo divino. Se aforma desaparece, isso não tem conseqüências, porque o originalperdura... Não temas, a água desta fonte é ilimitada.

Quando tu vieste a este mundo dos seres criados, uma escada se fezdiante de ti, de modo que tens de percorrê-la. Inicialmente tu foste uminanimado, então te tornaste planta; depois disto te modificaste emanimal. Por fim chegaste a humano, possuidor de conhecimento,inteligência e fé. Depois te tornarás anjo. Então este mundo estaráterminado para ti, e o teu lugar será nos céus. Melhora-te também até noestado de angelitude. Passe para a profundeza gloriosa, de modo queaquela única gota, que és tu, possa tornar-se um oceano.”

O caráter de Rumi era tão impecável que seus contemporâneos ochamaram de o homem perfeito, ou homem sem pecado. E seus escritoseram tão apreciados que um ditado foi cunhado com os seguintes dizeres:“Rumi não é profeta, e seus textos vêm dele mesmo. Não obstante, tudo oque escreve é tão sagrado quanto as próprias Escrituras reveladas.”

Page 255: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Rumi.

A doutrina de Rumi se baseava na idéia de que toda a criatura é aimagem e semelhança de Deus, portanto espiritual e santa. Tudo é divino,e tudo está permeado pelo divino. O cosmo está envolto numa forçainvencível, que é o amor de Deus. Esta força faz todos os seres subiremem direção a Deus, passando por muitas fases evolutivas em diferentescorpos e experiências, inclusive em outros mundos inimagináveis para ohabitante da Terra. O amor de Deus arrasta tudo para o alto, para aprofundidade e liberdade do espírito, e os seres se agrupam porsemelhança numa marcha ascensional.

O homem santo também não se limitava a filosofar. Compôs todauma doutrina de comportamento e purificação mística baseada no amor.Combateu a idéia de indignidade da raça humana, que não via comopecadora, mas inteiramente santa e divina. Difundiu em sua comunidadeuma mística do amor ao próximo e a natureza, muito semelhante àrenovação que Francisco de Assis tentou desencadear na Igreja católicaexatamente no mesmo período.

Outro místico e filósofo importante é Al Farabi. Grande leitor dePlatão, Aristóteles e Plotino, criou uma cosmologia filosófica muitocomplexa para o Islamismo, segundo a qual os seres seriam atraídos porum magnetismo espiritual constante em direção ao “centro de simesmos”. O resultado deste processo de desenvolvimento seria o auto-

Page 256: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

conhecimento, coincidindo com o conhecimento de Deus que é a fonte doespírito.

Al-Farabi foi uma das maiores inteligências da história. Criouinstrumentos e estilos musicais inovadores, provou a existência do vácuo,reformulou a matemática e a lógica, chocou muitos pensadoresmuçulmanos ao afirmar que o Corão deve ser submetido ao crivo da razãoe que o homem possui livre-arbítrio. Sua cultura era tão ampla e tão geralque o seu nome foi preservado inclusive na Europa, especificamente noidioma português, através da palavra Alfarrábio, sinônimo de escritosantigos, extensos e difíceis.

Uma homenagem aos sábios espiritualistas muçulmanos não possuivalor se deixar de fora a menção honrosa de Ibn Arabi. Este grandeintelectual e místico espanhol desenvolveu técnicas de respiração emeditação que lembram em muito as do yoga, objetivando o aumento daforça de vontade e do autodomínio através do controle severo darespiração. Também recomendava e praticava diariamente meditaçõeslongas, baseadas na contemplação de Deus e repetição de suas glórias.

A vida mística de Arabi começou com uma estranha visão. Ele viu-serepentinamente atirado para o alto, como se voasse para os seus, massem sair do lugar onde estava. Viu aproximarem-se três figurasmajestosas, que ele reconheceu como sendo Moisés, Jesus e Maomé. Ostrês tinham uma mensagem para ele. Jesus recomendou-lhe a vigilância,Moisés o estudo, e Maomé recomendou: “Esteja sempre comigo.”

Arabi seguiu fielmente os três conselhos, o melhor que podia, eestudou filosofia e religião. Anos depois, em fins do século VI, ele teveoutra visão impressionante. Diante dele desfilaram em instantes todos osprofetas e homens santos de diferentes religiões e ele os reconhecia semque nenhuma palavra fosse dita. Ao despertar do transe uma única liçãoecoava em sua mente: “Todos os profetas foram enviados por Deus”.

A partir desta fase as visões se tornaram comuns para Arabi, mas nãomais espontâneas. Ele desenvolveu uma técnica de concentração que lhepermitia entrar em transe voluntariamente, o que viabilizava visões maislongas. Algumas delas eram muito simbólicas, lembrando as visões do

Page 257: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Apocalipse de João. Outras eram inteiramente relacionadas à sua vidaterrena. Nestas últimas incluíam-se visões do futuro, seu ou de outros,intuições sobre o que outras pessoas faziam a distancia e mensagensdiretas, geralmente na forma de um comando ou conselho.

Fenômenos de vidência, premonição, vozes diretas, inspiração,aparições luminosas, curas espirituais e filosofia espiritualista incluindofreqüentemente idéias reencarnacionistas são comuns no Islamismo,embora impopulares. Sempre houve pessoas que defendiam práticas ou acrenças espíritas, e costumeiramente elas eram tidas como santas erespeitáveis. Nomes menos famosos do que estes podem não ter sidoregistrados na história, mas o estudo das tradições orais, ditados e lendasdos diversos povos islâmicos pode trazer interessantes revelações sobre oquanto de Espiritismo há nesta difundida cultura.

A virtude dos estóicos

A virtude essencial dos estóicos era a verdade. Eles não pregavamsempre uma vida frugal e ascética. O rigor e a disciplina eram maisconseqüências do que postulados fundamentais. Na base de tudo estava apreocupação de se atingir um estado de perfeita honestidade, desinceridade consigo mesmo e com os outros. Todo o resto é secundário noestoicismo, mas evidentemente a maioria dos que se ocupam em manterum grau elevado de sinceridade encontrarão obstáculos psicológicos quegeralmente só podem ser superados com uma disciplina heróica.

Os estóicos, como todos os socráticos, são intelectualistas convictos,e acreditam no papel essencial da razão para a vida feliz. Os hedonistas eepicuristas, aos quais se atribui popularmente uma espécie de inimizadeem relação aos estóicos, eram igualmente intelectualistas queacreditavam no papel preponderante da razão para evitar o desprazer, afrustração e o ressentimento. Todas as escolas socráticas, não importa asua ênfase, tinham em comum a consciência da fragilidade doconhecimento humano, o que lhes conferia a famosa humildade socráticade jamais considerar suas posições como verdades absolutas, senão

Page 258: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

sempre como propostas sensatas, mas falíveis de entendimento darealidade. Também compartilhavam a importante característica de seconcentrarem todos sobre a moral. Considerando que o conhecimento éincerto e a vida uma realidade, convém não investir tanto tempo nainvestigação do mundo e voltar as forças do espírito para a meditaçãosobre a vida, e sobre como ela pode ser melhor. Naturalmente esteesforço de reflexão sobre a possibilidade de uma vida melhor só fazsentido se houver uma crença prévia de que a razão é eficaz nesta tarefa.Desta forma todas as escolas socráticas se ocupavam exaustivamente coma correção do intelecto, pois atribuíam a maioria dos sofrimentos da vida aerros de interpretação, expectativas ilógicas e fantasiosas, auto-engano,desinformação e mentira.

A mentira ocuparia para os estóicos um papel mais importante doque para os demais socráticos, pois eles a enxergavam como síntese detodas as demais fraquezas intelectuais. Seu diagnóstico apontava para oorgulho e a malícia como a fonte da mentira. Quem transmite umainformação é sempre responsável pela atitude com que o faz. Se a posturado comunicante é humilde e consciente, ele confessará estar expressandouma opinião ou um raciocínio lógico, mas falível. Se esta postura,entretanto, for de malícia, o comunicante tem interesse em enganar oouvinte. Se a postura for arrogante, segura de si e dogmática, ocomunicante incute suas crenças e arrazoados nos ouvintes, revestindo-asde aparência de verdades absolutas.

Os estóicos eram excelentes psicólogos, e perceberam que esteserros de postura muitas vezes são inconscientes, fruto de má educação ouhábito. Por isso propunham uma educação filosófica muito semelhante auma psicoterapia, em que o estudante buscava identificar em si as causasde seus enganos, idéias fixas, dogmas e vícios. Este exercício eramarcadamente liberal e individual, não havendo qualquer tábua devalores ou normas que o praticante fosse obrigado ou mesmoaconselhado a seguir. Mais ainda do que o psicoterapeuta atual, o mestreestóico não interferia na auto-análise do discípulo, limitando-se a fazer asua própria auto-análise pública. As aulas dos maiores mestres, comoEpicteto, consistiam exclusivamente em confissões públicas de seus

Page 259: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

defeitos e vícios e no método usado por ele para corrigi-los. Os discípulosdeveriam fazer uma análise semelhante, raramente ou mesmo nuncarecorrendo ao mestre para orientação. Este método guarda semelhançasóbvias com as práticas de meditação dos yogis e budistas.

Epicteto.

O famoso livro “Meditações” de Marco Aurélio sequer foi feito parapublicação, sendo apenas um resumo de análises que ele escrevia sobre epara si mesmo. As exortações contidas no livro não são prescrições moraispara um leitor, mas determinações que ele dava a si mesmo, conformesua própria índole e de acordo com os objetivos que ele mesmo seimpunha. Os estóicos eram famosos por ser muito tolerantes emisericordiosos com os seus semelhantes, jamais exigindo posturas dedisciplina ou condenando aqueles que não as adotavam. É, portanto,absurdo creditar-lhes uma postura taciturna e crítica, a não ser com basena prática popular do estoicismo, que muito lembrava a circunspecção dasordens monásticas cristãs. Muitos estóicos, a exemplo do imperadorMarco Aurélio, tinham boa condição de vida e participavam plenamenteda vida social, a qual nunca condenaram.

A idéia de que os estóicos fossem reclusos ou eremitas vem de umaconfusão quanto as suas críticas dirigidas ao apego e a servidão aos bensmateriais. Estas críticas eram motivadas pelo seu interesse esclarecedorem afirmar que tal apego não é necessário à felicidade, e pode tornar-sefonte de sofrimento, e não do desprezo pelos bens ou estilo de vida em si.O foco dos estóicos jamais foi a ascese do corpo ou a pobreza, mas atransformação do ponto de vista. Alguns mestres consideravam em sua

Page 260: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

auto-análise ser essencial a ruptura radical com a sociedade, e o faziam.Raramente, entretanto, o recomendavam aos seus discípulos, elembravam que este afastamento da vida econômica e social era um traçode fraqueza pessoal em resistir ao domínio das facilidades e comodidadesenganosas da vida.

O que se pregava efetivamente era a necessidade da correçãointelectual e psicológica sobre a vida. Riqueza ou saúde, fama ou amizadepodem esvair-se sem que o seu dono nada possa fazer. A morte atingeinexoravelmente a todos, independente de sua posição, conhecimento,respeitabilidade ou poder. A beleza que atrai agora pode esconder umcaráter pérfido, e mesmo que assim não seja desaparecerá com os anos.Entendida esta transitoriedade da vida, o filósofo estóico conclui pelafutilidade das amarras físicas e sociais, e se volta prioritariamente para asabedoria que não lhe escapa nas horas de infortúnio ou de distração.

É a ilusão e o auto-engano que fazem os acidentes da vidaparecerem glórias. Que dizer de um imperador cujo direito de governo eautoridade foi conferido por ter nascido? E não são maiores os méritosdos governantes eleitos, pois sendo a maioria dos homens estúpidos ouviciosos a vontade da maioria não representa qualquer superioridade. Porisso os estóicos lembram sempre do desinteresse prudente em relação aqualquer honraria. Jamais deve o homem julgar-se merecedor de elogios eglórias, pois os que o fazem podem ser apenas maus juízes, ou as glóriasimerecidas, fruto do acaso. Somente o orgulho engana o homem e o fazpensar que a sua grandeza está em seu mérito. Nada, a não ser nossaopinião e nosso comportamento, está em nosso mérito. Se o nossocomportamento resulta em fracasso ou sucesso, isso tem a ver comfatores que vão desde o clima propício até a influencia de milhares deoutras pessoas, e não se pode jamais imaginar que a ação individual éresponsável pelos resultados. Entendendo que muitas coisas não estãoem nosso poder, os estóicos se libertam da ansiedade e da expectativa dequaisquer resultados, novamente em exata relação aos ascetas orientais.

Um estóico jamais persegue a glória, pois sabe que ela nemdepende dele, nem significa qualquer coisa além da opinião alheia sobre agrandeza. Se a glória lhe cai nas mãos, como no caso de Marco Aurélio, ele

Page 261: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

a considera um acidente ou uma vontade da Providencia, não tendo emambos os casos de que se orgulhar. Age no seu melhor para que suaposição seja bem exercida, e tem em conta que ela não é melhor ou maiordo que a de um camponês ou pescador, pois o mesmo destino que lhe pôsno trono e ao pescador na sua choupana poderia ter invertido os papéis.Também não foge da riqueza ou da fama, a não ser que as considereprejudiciais ao seu estado de espírito. Age com a mesma naturalidade eimparcialidade com que agiria na pobreza e no anonimato. Respeita ehonra o privilegio de que desfruta, como alguém que tem em conta algode valor que lhe foi confiado. Nada considera seu, a não ser o que está emseu domínio, o seu próprio espírito.

Ninguém expressa melhor este sentimento de liberdade e estaresignação absoluta quanto ao que não pode ser mudado do que Epicteto.Escravo durante a maior parte de sua vida, o filósofo tinha a certezaprática de que nossos atos e méritos são limitados de todas as formaspossíveis. Ele não regulava o que comia, nem a que horas se levantava,nem onde dormiria, nem o que faria durante o dia ou com quem passariaseu tempo livre. Sua vida limitava-se a obedecer as determinações de umsenhor severo e compartilhar seus momentos livres com outroshabitantes da casa, com os quais também não escolheu conviver. Nãoobstante era muito feliz e dizia que nenhum homem possuía maisliberdade que ele, já que na vida todos somos limitados por inúmerascondições da natureza e da sociedade. O homem ordinário, observava ele,geralmente é menos livre do que o escravo filósofo, pois pensa que ésenhor de seu destino e está escravizado pela própria mente, repetindohábitos mecânicos quase invariavelmente.

Tal era a sua abnegação e resignação que ele sequer sentia-seatingido pelas desgraças mais amargas, pois, dizia, não se pode lamentarcontra natureza ou a Providencia. Tudo o que está fora de nosso poderdeve ser aceito, o que está em nosso poder, deve ser mudado, sobre nadadeve-se preocupar ou ansiar. Tão real era esta convicção que certa vez aoreceber bastonadas de seu senhor, o filósofo teria comentado comserenidade: “Senhor, assim quebrarás certamente a perna do teuescravo.” Como que indignado por esta observação e porque o escravo

Page 262: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

não demonstrasse medo, o amo bateu ainda mais forte sobre a canela,que partiu-se com um grande estalo. Após os primeiros instantes de dor, eobservando no amo a expressão de arrependimento, Epicteto conclui semqualquer rancor: “Vês senhor, danificaste a tua propriedade.”

Com a imensa popularidade dos estóicos entre as classes cultas doImpério Romano, é mais do que natural que os primeiros cristãosabsorvessem muito desta filosofia, especialmente pelo seu caráter menosabstrato e cunho moralizador. Através do Cristianismo uma parte dafilosofia estóica sobreviveu, até nós.

Espiritismo e filosofia alemã.

Nos dias atuais é de impressionar o quão pouco se sabe sobre opapel dos filósofos alemães no desenvolvimento do Espiritismo. Certo éafirmar que, do ponto de vista cultural, a Alemanha é o único país acontribuir para a formação do Romantismo e do Idealismo, correntes depensamento essenciais ao desenvolvimento do Espiritismo na Europa.

Não quero falar tanto de como surgiram o Romantismo e oIdealismo, remeto o leitor ao meu artigo “O descobrimento da Alemanhapor Madame de Stael”. Basta dizer que, exceto por Rousseau, a Françanão teve colaboração nas fases iniciais destes grandes movimentos, e pormais que a França e a Grã-Bretanha tenham importância fundamental noprogresso científico da Era Moderna, suas bases filosóficas jamaispermitiriam aflorar uma filosofia como a do Espiritismo. Infelizmente,como comentei nos textos anteriores deste blog, a consciência históricado Espiritismo tende a se limitar muito a história da Roma antiga e daFrança moderna.

Para desfazer este mal entendido é preciso remontar a Europa doséculo XVII, quando o racionalismo se estabelecia. Todos conhecem bem aimportância de Descartes, dos empiristas ingleses e dos cientistas comoGalileu, Copérnico e Kepler. O que nem sempre é igualmente conhecido,foi o surto de misticismo e piedade religiosa ocorridos na Alemanha neste

Page 263: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

período. Enquanto as outras nações civilizadas da Europa entravam na EraModerna pelo caminho da ciência, com uma filosofia mecanicista para anatureza, separada do espírito, compondo o famoso dualismo cartesiano,a Alemanha formulava uma visão mais mística, embasada nas tradições doplatonismo e do hermetismo egípcio, onde a natureza e o espírito eram amesma coisa.

Embora o mundo latino também tivesse os seus expoentes místicosno mesmo período, como Giordano Bruno, este tipo de filosofia só eraadotado com muitas ressalvas e restrições, enquanto na Alemanha, areação à ortodoxia luterana provocou uma adesão mais geral ao surtoespiritualista. Ocorre que o cânone luterano original fazia a salvação daalma depender exclusivamente da fé. Isso fez nascer nos países luteranosuma geração inteira de crentes formais, que se justificavam apenas pelasua adesão de fé a Bíblia, mas que não possuíam uma vida cristã. Adegeneração social chegou a um ponto intolerável para as almas maispiedosas, que fizeram um movimento de restauração da piedade cristã.Este movimento conhecido como Pietismo, visava restabelecer em mundoprotestante a pureza da mensagem sentimental e mística de Jesus. Seusadeptos evitavam a igreja, cujo culto consideravam meramente social, efaziam encontros caseiros onde a Bíblia era lida de maneira mística eemotiva. Cada crente visualizava as passagens do Evangelho como seestivesse presente nas cenas narradas, e vivenciava efetivamente as curas,as repreensões morais e as exortações à virtude feitas pelo Cristo. Comisto o crente sentia-se em uma comunhão profunda com o Messias e comDeus.

Filósofos iluministas como Wolff e Kant, que costumam ter má famaentre os espiritualistas, eram pietistas convictos, e aderiam a estaspráticas. Eles também contribuíram para dar uma linguagem maisuniversal ao pietismo, evocando uma moral pessoal, vinda exclusivamenteda consciência, independente de mandamentos externos. Também entreos pietistas existiam inúmeros indivíduos conhecidos por imensas obras decaridade. August Hermann Francke, por exemplo, criou uma cidade inteiravoltada para a educação. Retirou crianças das ruas e da criminalidade,

Page 264: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

oferecendo-lhes lares e ensinando-lhes profissões simples. Em sua escola

estudavam conjuntamente os filhos dos ricos e estes órfãos recolhidos das ruas.

O ensino ia do pré-escolar até a pós-graduação em teologia, e eratal a sua excelência que pessoas vinham de longe para estudar na escola efaculdade criada para aqueles ex-desabrigados. Por volta de 1700, Francketambém instituiu revolucionariamente a educação para meninas em todosestes níveis, com o mesmo conteúdo que a dos meninos. Isto foi feitomais de cem anos antes da formação das escolas públicas na França.

Os pietistas se caracterizavam por uma religião privada e muitofervorosa, mas com grande liberdade e juízo crítico. Sem respeitaremhierarquias e dando pouca distinção aos pastores, privilegiando o cultocaseiro, eles ajudaram a reformar a Alemanha com suas tradiçõesconservadoras da mesma forma que os céticos e livre-pensadores faziamnas demais nações da Europa. A Alemanha pulou a fase atéia e sensualistaque caracteriza a França e a Inglaterra do século XVII, entrando na EraModerna através de uma reforma libertária de cunho fortementeespiritualista.

O que distinguia os pietistas em dois grupos era a concepção danatureza. Uns a consideravam essencialmente material e mecânica, comoKant, outros essencialmente divinizada e vivente, como Böhme, Herder eGoethe. Todos, entretanto, eram reencarnacionistas.

A ideia de reencarnação na Alemanha não surgiu com Leibniz em1714, conforme se pensa e divulga muito. Leibniz cogitou da ideia depalingenesia, mas considerava-a estranha ao cristianismo. Sua filosofia dasmônadas pressupõe sim uma evolução do princípio espiritual, mas esta sóocorreria durante a vida na Terra e depois continuaria no mundoespiritual. Não haveria retorno a Terra. Foi Christian Wolff quemintroduziu o conceito de reencarnação em 1730, usando exatamente oargumento da mônada de Leibniz. Com o seu conceito de metempsicoseracional, Wolff reformulou a tradição Greco-egípcia sobre reencarnaçãoacrescentando que as mônadas espirituais de Leibniz não esgotavamtodas as experiências na Terra em uma única vida. A Terra ofereceria umaquantidade tão variada de vivências e experiências que a alma poderia

Page 265: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

tirar muito proveito de um retorno constante a este mundo, sem repetiros caminhos já trilhados.

Christian Wolff teve impacto imediato sobre a filosofia alemã emtodos os aspectos e a reencarnação não foi o último deles. Lessing tornar-se-ia o primeiro e mais vigoroso defensor desta ideia. Estabelecendo osprincípios da teologia racional protestante. Entre outras reformas nosistema teológico, Lessing adotou a ideia de reencarnação e a de queJesus Cristo não seria o filho único de Deus e sim o revelador de que todossomos um com o Pai. Ele não queria com isso uma redução da figuradivina do Cristo, mas lembrar que a mensagem do Evangelho é a dedivindade universal de todos e todas as coisas. Só existem seres divinos, eos conflitos, o mal e o sofrimento só existem enquanto esta herança não éposta em ação.

Foi Lessing quem popularizou o conceito de palingenesia na Alemanha.

Outro seguidor de Wolff foi Kant, que estabeleceu em sua “teoriado céu” a doutrina dos corpos sutis. A alma teria, para ele, um corpointermediário entre a natureza física e a espiritual. Este corpo sobreviveriadepois da morte do corpo físico, conservando a memória, a sensibilidade eas características pessoais. Com isto, acreditava Kant, estaria explicada atransmigração da alma pelos corpos com a conservação da personalidade.Ele também insistia que a evolução do espírito em razão e moralidadetornaria este corpo espiritual mais puro, de modo que a vida na Terraseria progressivamente mais difícil para estas almas, e elas deveriam subir

Page 266: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

a mundos igualmente mais puros. Nestes outros mundos, a alma teriacorpos leves, podendo voar e transmitir o pensamento sem impedimentosda nossa esfera material. Mais tarde, entretanto, Kant chegaria àconclusão de que estas ideias não poderiam compor uma filosofiapropriamente dita, pois esta especulação era impossível de sercomprovada com a experiência disponível, mas jamais renegou suasdisposições em matéria de convicção pessoal.

Neste período, entre 1770-1780, tornou-se moda na Alemanha aleitura de Rousseau, o grande filósofo místico da latinidade, traduzido emtermos claros e populares da linguagem iluminista. Rousseau iriainfluenciar sobremaneira a Herder e Goethe, que colheram nele a suafilosofia do sentimento, juntando-a com a idéia alemã de reencarnação.Herder teve papel crucial na formação da doutrina da história, e dentrodela inseriu seu conceito de reencarnação. Ele vislumbrava a marcha dascivilizações como a ascensão do espírito ao longo de suas labutas noprocesso evolutivo para a perfeição divina. Assim, os progressosintelectuais e morais das distintas eras da história, seriam ocultamenteinfluenciados pelos progressos das nossas almas em constanteaprendizado, que reencarnando de uma para outra civilização,produziriam o progresso que aos olhos humanos se dá por meiosmeramente sociais.

Goethe, por sua vez, criou a primeira doutrina consistente demetamorfose e evolução biológica, mais de cinqüenta anos antes deDarwin, em fins do século XVIII. Ele inferiu que o princípio vital dos seresorganizaria e dirigiria a metamorfose do embrião ao indivíduo adulto, dasemente à planta, e poderia propiciar metamorfoses de um animal emoutro, por evolução. Estas metamorfoses Goethe atribuiu, em parte, aoprocesso de reencarnação, que transmitiria as forças das mônadasespirituais de um organismo para outro. Se o organismo receptor nãopudesse mais conter a força da mônada desenvolvida, ele deveriaadaptar-se com uma metamorfose, e esta seria a causa da evolução dasespécies.

Não poderíamos terminar sem citar Heinrich von Schubert, médicoe biólogo inspirado por Mesmer, Goethe e Herder. Por volta do começo

Page 267: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

do século XIX, Schubert realizou pesquisas diversas tentando cruzar ateoria do magnetismo animal de Mesmer com as teoriasreencarnacionistas alemãs. Lembramos que Mesmer era ateu ematerialista, e acreditava que o magnetismo animal era um fenômenomaterial ordinário. Schubert defendeu então em suas pesquisas que osono seria o desprendimento do espírito do corpo, propiciando osfenômenos de magnetismo divulgados por Mesmer. O uso destesfenômenos em estado de vigília não contradiz esta teoria, pois odesprendimento do sono seria possível, segundo ele, através de um transeou estado profundo de concentração. Além desta ligação entre o sono e omagnetismo, Schubert também fez pela primeira vez a análise dos sonhoscom base numa teoria espiritualista racionalizada. O sonho seria arecapitulação simbólica das experiências do espírito enquantodesprendido do corpo. A mesma idéia seria defendida por Kardecquarenta anos depois.

É desnecessário prosseguir com a lista de nomes. O fato é que existeuma ampla documentação desta passagem histórica do conceito dereencarnação via Romantismo da Alemanha para a França, por volta de1805-1820. Enquanto este momento histórico não for competentementeanexado às obras de história do Espiritismo, estes importantes autorespermanecerão injustiçados.

Nossa herança oriental.

Quando Napoleão chegou ao Egito, narra Tolstoi em seu épicoromance Guerra e Paz, ele percebeu que a vastidão dos horizontes, onúmero imenso da população e o papel histórico dos continentes africanoe asiático tornavam-nos muito mais importantes do que a Europa. Diantedo caudaloso Nilo, ele teria percebido o quão patético parecia o seuexaltado Sena, e a idéia de governar o mundo a partir de Paris lhe pareceupela primeira vez uma infantilidade. Se uma nova ordem mundial pudesserealmente se estabelecer, não seria jamais isolada na ponta da penínsulaeuropéia, mas fincada no coração do mundo, no Egito ou na Rússia.

Page 268: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Ainda segundo o brilhante escritor russo, esta súbita revelação dairrelevância física da Europa foi o que causou no imperador dos francesesuma obsessão pela conquista da Rússia.

Mais de um século depois, Hitler tentou levar a termo o mesmoprojeto de transposição do Cáucaso. No plano estratégico do TerceiroReich os recursos e a posição intermediária entre Europa e Ásia tornavama Rússia e o Cazaquistão aquisições vitais ao projeto de superpotênciaalemão. A Alemanha deveria substituir a União Soviética como asuperpotência do eurocaucaso ou extinguir-se como nação.

O que os conquistadores perceberam com muita perspicácia é que aEuropa só mantinha sua posição central no concerto das nações por umacondição temporária de liderança técnica, cultural e política. Ambosanteviram a vulgarização das instituições que garantiam a ordem e doconhecimento que propiciava a riqueza e o poder europeus.

Do ponto de vista geográfico a Europa não passa de uma penínsulada Ásia. Tão grande quanto a península indiana ou indochinesa, mas maisisolada, a ponto de permitir o desenvolvimento de uma cultura própriacomo em nenhuma outra província asiática seria possível. Acrescenta-se aisto as vantagens combinadas de terras férteis, clima temperado, o queevita doenças tropicais, e a boa sorte de ter recebido constantes levas depopulações arianas oriundas da Índia, Paquistão e Afeganistão. Povosestes que estavam entre os mais avançados nas eras primeiras dacivilização.

Cruzando o tamanho reduzido com estas condições privilegiadastemos como resultado um ambiente exótico e quase artificial de mesclade culturas, prosperidade agrícola e industrial, além de obstáculosgeográficos que permitiam a especialização e evitavam o domínio de umimpério universal. Um exemplo disto é a linha divisória que se estende dosAlpes a foz do Reno, e que sempre dividiu os povos latinos e germânicosnesta região. Em qualquer outro ambiente da Eurásia, exceto na Indochinaque compartilha as mesmas características, um espaço tão pequenoconservou-se politicamente fragmentado. Impérios como o persa, omongol, o chinês e os da Índia somavam territórios bem maiores do que o

Page 269: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

de toda a Europa Ocidental. Mesmo o Império Romano, do qual osocidentais tanto se orgulham, não conseguiu se estender senão pormetade da península.

Esta fragmentação política garantiu a Europa mais vantagens do quedesvantagens. A principal vantagem foi a forte noção de independênciadesenvolvida pelos povos europeus, que sentiam-se hábeis e livresevitando a incorporação por potencias conquistadoras muito maiores.Com o isolamento natural esta autoconfiança estabeleceu-se como umsentimento de liberdade que os povos da planície asiática,freqüentemente invadidos e incorporados por impérios estrangeiros, nãocompartilhavam. A desvantagem mais acentuada, por outro lado, é que asensação de separação e isolamento das populações favorecia umsentimento de diferenciação racial e cultural, propiciando guerrasconstantes. No subcontinente indiano ou no Cáucaso, onde amiscigenação e a troca cultural sempre foram intensas, culturasnotadamente mais tolerantes se desenvolveram, o que só é contrariadopela recente recrudescência do Islamismo xiita. Este último, por sua vez,ao contrário do que se pensa, constitui uma minoria mínima dentro doIslã, não passando de 16% do total de muçulmanos, e sua versãofundamentalista só intensificou-se no século XX.

Ainda falando em geografia imagine-se o mapa da Eurasia. Emboraa Europa seja realmente o ponto mais ocidental do continente, é erradodefini-la simplesmente por “Ocidente”, pois o Oriente Médio cobre aparte sudoeste desta placa continental. Visto a partir da Ásia Central,incluindo a Europa neste quadro, o Oriente Médio é na verdade oOcidente, e a Europa só ocupa o noroeste. Numa definição cultural emque o Ocidente é a Europa, todos os demais sete direções cardinais sãodefinidos como Oriente. E isto para não falar na África, que estando ao sul,com muitas regiões mais ocidentais do que a Itália e a Grécia, porexemplo, é em geral definida também como Oriente.

Enquanto a definição de civilização ocidental é inconseqüente doponto de vista geográfico, ela tem pouco sentido do ponto de vistahistórico e cultural. As primeiras definições de oriente-ocidente remontamas grandes civilizações da antiguidade européia, a helênica e a romana.

Page 270: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Ambas tinham na Síria e na porção central da Turquia o marco do início doOriente. O Ocidente seria o espaço helenizado da costa mediterrânea daTurquia até a Península Ibérica. Esta concepção se acentuou muito com adivisão do Império Romano em versões oriental e ocidental, estando aÁfrica sob administração do Império Romano do Oriente, o que justificavaa classificação de regiões tão ocidentais como Cartago como sendo partedo Oriente. A posterior divisão da Igreja católica em Romana e Ortodoxa,uma ocidental e a outra oriental, também acentuou a divisão da Europa ea concepção de que o oriente começava nas fronteiras com a Bulgária e aUcrânia.

Excetuando-se, portanto, algumas concepções minoritárias, oOcidente foi em geral a definição da civilização crista, não ortodoxa, daEuropa central e ocidental. É comum até hoje ouvir definições deeuropeus sobre a Rússia como sendo um país de costumes orientais. Comisto concluímos que, de um ponto de vista conservador, o Ocidente édefinido como a parte central e ocidental da Europa. Talvez principiandoem São Petersburgo e Odessa. De um ponto de vista muito mais genéricoe inclusivo, a parte européia da Rússia e até a Armenia poderia ser incluídanesta definição. De um ponto de vista religioso e filosófico, por outro lado,todos os povos de orientação crista ortodoxa são orientalistas, sendo quesomente a Grécia costuma ser “perdoada”, pelo seu papel histórico naformação do Ocidente, e é por isto que na nossa análise faz mais sentidoadmitir uma visão conservadora da civilização ocidental.

Não é preciso mais do que uma olhada rápida no mapa paradescobrir o quão insignificante é esta região que só cobre parte da Europadiante da África e Ásia que a cercam e a fazem parecer uma penínsulaespremida em meio a dois verdadeiros continentes. O que assusta,entretanto, é que o imaginário do homem ocidental médio faz parecer oseu mundo tão grande quanto o “Oriente”.

Nossos livros de história resumem, com poucas menções ao Egito ea Mesopotâmia na Idade Antiga e a outros países a partir do século XIX, ahistória desta célula geográfica que é a Europa ocidental e central, e aindaassim com raríssimas referências à Polônia, Romênia, República Tcheca eHungria. E mesmo dando todo o crédito aos países da Europa Ocidental

Page 271: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

pelas suas conquistas determinantes no desenvolvimento intelectual emoral do mundo, a sua pretensão hegemônica no campo cultural é umamegalomania, para não dizer uma esquizofrenia coletiva.

Doa e quem doer, goste-se ou não, o que em geral definimos comoOriente é de longe a parte majoritária do planeta, em população e cultura.Estou convencido de que é preciso ir ainda além da valorização de WillDurant do papel dos povos asiáticos e africanos na formação do Ocidente.Em seu brilhante livro Nossa herança oriental ele afirma que o berço doOcidente é o Oriente. Vou além e afirmo que o futuro do Ocidente étambém ser reabsorvido no Oriente, e isto não constitui uma tragédia,mas um evento salvador que reabsorverá a nossa civilização no organismomaior da cultura humana. O insulamento que fez aflorar as magníficasculturas do Japão e da Europa Ocidental não é mais necessário oupossível. Não é necessário, pois não há mais a ameaça de invasõesbárbaras. E não é mais possível porque o insulamento não existe mais naera da livre informação e do livre transito de pessoas. A Américatampouco, que deteve a tocha da civilização ocidental sob a forma dosvalores americanos por menos de um século, pode sustentar esta“pureza” artificial. Suas ondas de imigrantes e seu acentuado fascínio pelaÍndia e pelo Extremo Oriente já abriram as portas à reintegração.

Sob todos os aspectos que consigo imaginar, não existe vantagemou sentido no prejuízo cultural e religioso contra o orientalismo. E ocristianismo não pode sustentar uma postura isolacionista em relação àsdemais religiões universais, que igualmente não o podem fazer. Sairia nafrente daria o exemplo de boa vontade o grupo religioso que se dedicasseseriamente a uma proposta integradora mais ampla. De modo algum istosignifica a perda das especificidades de cada grupo, das conquistas e daidentidade histórica que cada fé e cultura possuem pela razão óbvia de terum local de origem. Mas no mundo unificado que começamos avislumbrar o mínimo que se espera de um segmento cultural que nãoqueira ser tomado de roldão. Esta agenda mínima de boa convivência eintegração inclui, a meu ver:

1- Ações positivas de diálogo interreligioso e ecumenismo.

Page 272: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

2- Estudo comparativo das religiões, em todos os aspectos (filologia, história,teologia, filosofia, sociologia)

3- Fomento do cosmopolitismo e do esclarecimento religioso.

É muito difícil imaginar uma cultura ou religião que sobreviva até ofinal deste século sem estas iniciativas, a não ser como foco de atraso econflito.

Acho que o Espiritismo tem exercido influencia louvável nestesaspectos, com exemplos profundos de tolerância e engajamento socialentre populações de crenças distintas, com o interesse e a aceitação deelementos pluralistas, a exemplo de autores russos e indianos naliteratura mediúnica, do respeito e admiração declarados que a maioria,senão a totalidade dos espíritas tem por figuras católicas como SãoFrancisco, protestantes como Jan Huss, hindus como Gandhi, e assim pordiante.

Entretanto, nunca é demais reafirmar estas questões e lembrar doquanto é essencial a intensificação deste ritmo integrador numa época emque todas as mudanças ganham velocidade.

Perspectiva crítica do Espiritismo.

Se há algo em que a filosofia pode contribuir para a melhorcompreensão do Espiritismo e sua inserção na pauta de debatesespecializados é o enfoque histórico-crítico que ela viabiliza. Istoporque a filosofia é uma disciplina de crítica, a única, aliás. Enquanto aciência é obrigada a pressupor o seu objeto de estudo antes deinvestigá-lo e enquanto a religião pressupõe um relacionamentopossível com o Sagrado, preocupando-se estritamente em estabeleceras regras deste relacionamento, a filosofia é a única atividade humanaque se esgota a si mesma. Ela coloca sob o crivo da razão sua própria

Page 273: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

condição de existência, e uma mera definição do que seja filosofia não éo ponto de partida, mas o fim de todos os esforços filosóficos.

Por mais que isto choque o senso comum, as ciências partem dedogmas fundamentais e não de um método crítico. Claro que o métodocientífico é racional, eficiente e muito elaborado, mas ele só apresenta osseus rigorosos critérios em confronto com os seus objetos de investigação:

os fenômenos e as teorias sobre eles. A ciência jamais volta as suas armascontra si mesma, como a filosofia o faz, e todos são capazes dereconhecer os seguintes dogmas científicos básicos:

1- Existe uma realidade objetiva garantindo a existência de fato de tudo oque vivenciamos e experimentamos. Por outras palavras, nossa existêncianão é apenas um sonho, mas está radicada numa realidade independentede nós.

2- Somos capazes de investigar esta realidade com o poder de nossaobservação judiciosa.

3- Para que o item 2 seja verdadeiro, devemos ser capazes de estabelecerexatamente o que é uma observação judiciosa. Temos, portanto, umaidéia bem definida do que é lógica, verdade, e outros elementos mentaisnecessários a este juízo.

Um cientista que duvide seriamente destas condições acabadesistindo do seu trabalho e torna-se um filósofo.

Aquilo que separa, portanto, a tarefa e a utilidade dos trabalhoscientíficos e dos trabalhos filosóficos é uma questão de princípios que,por sua vez, regulam interesses distintos. Se queremos discutir o que épossível conhecer, e como o conhecimento deve se organizar, devemosfilosofar. Se, por outro lado, desejamos sair desta enrascada inicial, epartir corajosamente por uma trilha menos fundamentada, mas quetraz muito mais resultados, devemos fazer ciência ou matemática.

Não haveria crise entre estas duas grandes disciplinas racionais,filosofia e ciência, se ambas estivessem totalmente conscientes destepapel. Mas o fato é que o impacto popular e emocional da ciência éincomparável devido aos resultados práticos que somente ela

Page 274: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

proporcionou a humanidade. Duvidar e fundamentar o conhecimentogarante segurança contra todo o tipo de preconceito e posturasingênuas, mas não nos traz conforto, segurança, saúde e diversão namesma proporção em que a tecnologia o faz. Isto produziu umproblema de julgamento inteiramente compreensível, de que a ciênciaseria um critério de verdade de maior validade do que a suacompanheira mais velha, a filosofia, que em inúmeros séculos não podeapresentar os mesmos resultados.

Justiça seja feita, a filosofia produziu menos idéias frutíferas, doponto de vista prático, do que a ciência. Ela monopolizou, por falta dealternativa melhor ao seu método, o conhecimento acerca da natureza,conduzindo muitas vezes a labirintos estéreis de teorias sem suficientebase de comprovação empírica. Por outro lado, ela fez muito com osmétodos que possuía, e se a ciência é de algum modo um dos frutos dafilosofia, esta última é também responsável pelos méritos que a novadisciplina colher. Ademais, agora que temos o método científico paratratar de questões naturais, a filosofia volta suas forças sobre os temasque realmente pode tratar de modo privilegiado, uma vez que nãodepende em nenhuma medida de investigação empírica, senãoexclusivamente de análise de princípios e julgamentos de valor.

Estes métodos são atualmente a teoria do conhecimento, queinvestiga exatamente as condições em que o conhecimento é possível, seé que o é; a ética, que investiga a possibilidade de fundamentação deregras para a conduta, segundo valores como a felicidade, liberdade e ajustiça; a estética, que se pergunta acerca da possibilidade de estabelecervalores universais de julgamento da qualidade e natureza da obra de arte;a lógica, que se pergunta se é possível e como procede uma análiseinteiramente imparcial; ametafísica, vértice e guia das demais disciplinas,definindo que tipo de relacionamento é possível entre as demais esferas eem que sentido cada uma delas pode aspirar a uma realidade objetiva.Eles não englobam, contudo, todas as disciplinas filosóficas encontradasnos manuais e nas universidades, mas as matérias restantes podem serderivadas destas principais. Assim temos a filosofia da religião e acosmologia derivando principalmente da metafísica e da teoria do

Page 275: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

conhecimento, a filosofia política como uma expansão da ética doindivíduo para a sociedade, e assim por diante.

Todas estas disciplinas contribuem em muito para o estudocriterioso de um conjunto teórico vasto e abrangente, como é oEspiritismo. Os seus muitos aspectos como religião, ciência e filosofia, suasimplicações éticas, suas teorias sobre a realidade e o papel do homemdentro dela, são só a ponta de um iceberg capaz de consumir gerações deestudos e pesquisas. Mas, não obstante a filosofia esteja na raiz doEspiritismo como em nenhuma outra religião na história humana, aperspectiva filosófica nem sempre é aplicada entre os seus divulgadores, eeu diria até mesmo entre os seus teóricos. Para delimitar bem eexemplificar o que digo, escolho dentre as possibilidades que a filosofiapermite, a de uma análise histórico-crítica do Espiritismo.

Quando falamos neste tipo de análise, queremos explicitar o papeldo desenvolvimento histórico de um grupo de idéias dentro do sistemaorgânico da cultura, traçando suas origens e linhas de influencia, seusdesdobramentos e impacto, e situando geográfica e culturalmente ofenômeno observado. Neste tocante o Espiritismo vulgar mostra-sedemasiadamente carente, em contradição com a qualidade e a lucidez dealgumas de suas obras basilares. Desta maneira, surge um abismo entre aconsciência esclarecida de autores como Kardec, Denis, Bezerra deMenezes, Herculano Pires e autores espirituais diversos, e a idéia geral dainserção histórica do Espiritismo. Do lado dos primeiros temos umagenuína filosofia da história, por parte dos últimos temos uma crençaingênua quanto a exclusividade do Espiritismo dentro do processohistórico, como se ele estivesse destacado dos acontecimentos gerais.Prova conclusiva em favor desta afirmação é o fato de que há décadas nãohá interesse em pesquisa histórica do Espiritismo, ou ela se limita a temasevangélicos ou diretamente ligados aos primórdios do Espiritismo porcomeços do século XIX. Conquanto todos estes trabalhos sejam de sumaimportância, estamos convencidos de que este cenário precisa mudar.

Em parte, o problema de consciência histórica do Espiritismo podeestar relacionado com as obras históricas de autores espirituais comoEmmanuel e Humberto de Campos. Isto porque, apesar das insistentes

Page 276: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

afirmativas destes espíritos de que suas obrasA caminho da luz e Brasil:Coração do mundo, pátria do evangelho, respectivamente, tratam dahistória de um ponto de vista exclusivamente espiritual e insuficiente doponto de vista propriamente histórico, o público geral tende a ignorarestas ressalvas e adotá-las como referencia histórica, sem maioresconsiderações.

Este erro de compreensão e recepção de obras como estas, criouuma consciência histórica sem contato com a realidade do mundo, emfranca contradição com as ressalvas feitas pelos autores citados, que nãoqueriam uma substituição do trabalho historiográfico humano,documentado, geograficamente situado, etc.

Dentre os inúmeros problemas causados por esta falha decompreensão, cabe citar a autocompreensao histórica de muitos espíritascomo pertencentes a um movimento sem bases na cultura de onde este éproveniente, ou seja, a cultura francesa, católica, racionalista e positivistado século XIX, em sua maior parte, e seus contemporâneos protestantesna Inglaterra e Estados Unidos.

Para detalhar ainda mais a importância desta perspectiva histórica,basta ressaltar que apesar dos pesquisadores espíritas renomados dediversas procedências, como Aksakof, Zöllner, Du Prel, Lombroso eBozzano, o Espiritismo não vingou minimamente em seus países deorigens, apesar do entusiasmo de milhares de adeptos na Rússia,Alemanha e Itália. Com isto se pode concluir, no mínimo, que odesenvolvimento do Espiritismo dependeu, ao menos em parte, dascondições privilegiadas das nações mais liberais e laicizadas, tais quais astrês primeiras citadas, e com isto já podemos tirar inúmeras conclusõestécnicas frutíferas.

Esta e outras questões de alta importância para um estudosistemático do Espiritismo são anuladas em seus pontos de partida seabdicamos ou olvidamos do estudo filosófico constante desta tradição.Com isto, corremos o risco de perder o vínculo de identidade e verdade dodesenvolvimento da doutrina espírita, substituindo-o pela mitologia.

Page 277: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

Bem entendido, mitologia não é necessariamente a descrição dasidades recuadas sobre a formação do mundo e acontecimentos mágicos,senão a descrição de qualquer acontecimento histórico do ponto de vistaexclusivamente dogmático. Se dizemos, portanto, que o Espiritismo é ummovimento de revelação dos espíritos, cuja época e forma foramassinalados por Deus, estamos abdicando de uma explicação histórica ecrítica para adotar exclusivamente uma explicação mítica, ou seja,narrando um evento histórico de uma forma que não pode ser confirmadaou racionalmente analisada. Uma tal explicação das origens de umacontecimento não nos permite nenhum tipo de estudo racional sobre asidéias espíritas, obrigando-nos, ao contrário, a depositar fé incondicional ecega no dogma da revelação.

Esta perspectiva está em claro confronto com as bases da propostaespírita, que é a de uma fé racional, implicando com isto a dúvidasistemática e o julgamento criterioso de elementos revelados ou outrashipóteses explicativas. É, portanto, inaceitável a idéia de que o Espiritismose resume numa revelação. Sua natureza exige um duplo ponto departida, coisa extraordinária na história das religiões, que seria o de umarevelação dependente de condições históricas. Seus inúmerosformuladores compartilhavam desta percepção, afirmando sempre que arevelação generalizada do Espiritismo dependia inteiramente de certosprogressos sociais e científicos que permitissem uma compreensãomínima dos fenômenos naturais e morais implicados. Ao menos quanto aisto guardou-se no Espiritismo um senso histórico profundo, a ponto detornar-se senso comum a concepção de que ele não poderia ter surgidoem épocas anteriores, ou em outro lugar que não fossem os países maiscivilizados da Europa Ocidental. O conhecimento mínimo de história tornaeste preceito plenamente compreensível.

Como dito anteriormente, em nenhuma religião a revelação divinadepende de condições culturais prévias, e isto quase descaracteriza oEspiritismo como religião segundo os critérios de classificação existentes.Ele mesmo se reconhece corretamente como terreno de fronteira entrereligião, ciência e filosofia. Sem limitar-se a nenhum dos três, compartilhaelementos de todos, e isto lhe dá a sua exclusividade. Retirar dele o seu

Page 278: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

senso histórico seria matar-lhe uma parte vital de seu aspecto filosófico,condenando-o a reproduzir os modelos dogmáticos de religião. E é porisso que cabe insistir num projeto vigoroso e constante de crítica históricado Espiritismo.

Conforme entendo, este projeto deveria conter ao menos asseguintes linhas de pesquisa:

1- Análise histórica do Cristianismo e do paganismo helênico e druídico;

2- Análise de religião comparada em torno dos conceitos principais doEspiritismo, como reencarnação, comunicabilidade com os mortos, justiçadivina, progresso e pluralidade dos mundos habitados;

3- Análise teológica e histórica da Reforma, do Renascimento e da IdadeModerna;

4- História da cultura, enfatizando a história da filosofia, da ciência e dareligião referentes à formação da mentalidade dos séculos XVIII e XIX.

Cada um destes temas possui naturalmente seus desdobramentos, enenhum deles deixou de ser explorado por autores espíritas. Nãoobstante, como em todos os demais temas estes estudos devemprosseguir e jamais se pode considerá-los concluídos. Se a história deRoma ou do Egito antigo ainda vêem novidades e descobertas intrigantesaflorarem nos dias atuais, após milhares de anos de estudos, comocogitar-se esgotar em poucas décadas a investigação sobre ummovimento complexo numa época infinitamente mais rica de detalhes,contradições e inovações?

O desafio atual da filosofia.

Page 279: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

A estrutura cultural sobre a qual os avanços técnicos e sociais da EraModerna foram edificados está em momento de crise. Este diagnóstico étão mais certeiro quanto menos as pessoas parecem se preocupar com afilosofia e com todas as questões de valores que orientam as suasdecisões práticas e teóricas. A ciência enfrenta impasses, a políticaensandece, a sociedade se esfacela e a ordem moral é diluída, originandotodos estes processos.

Não há que considerar este processo apenas do ponto de vistanegativo, pois ele tem o seu lado revolucionário, e toda a transformaçãoexige destruição e reciclagem de elementos antigos. Mas imaginar que ograu sem precedente de “barbarismo cultural” praticado pela nossa eraseja normal e justificável é também ignorar as tragédias dos povos aolongo da história.

Enquanto períodos de anarquia, relativismo e degeneração sãocomuns nas fases de transição pelas quais passam as civilizações, étambém fato que nunca foram enfrentados tantos desafios quanto oscriados pela tecnologia contemporânea. A poluição é o nosso refugo detodos os tempos, mas a indústria e os meios de vida atuais tornaram-naexcessiva. A guerra é ameaça constante da humanidade, mas mesmovivendo uma época de reduzidos conflitos, comparada a qualquer outra,os temores e ansiedades provocados pelas armas de destruição em massae pela proliferação do terrorismo alimentam os instintos perenes derevanchismo e agressividade. A miséria, conquanto sempre tenha existido,faz contraste com a riqueza sem paralelo gozada não mais pelosgovernantes apenas, mas por populações inteiras, tornando ainda maisamarga e revoltante a experiência daqueles que vêem faltar todo onecessário em meio a uma sociedade que ostenta e desperdiça demaneira insana.

Entretanto, nenhum destes desafios seria insuperável se não fosse aconhecida estagnação de nossa capacidade moral, cujo desenvolvimentoclaramente não acompanhou o salto de entendimento e domínio danatureza. Não podendo dominar-se nem compreender-se, o homemintensifica muitas vezes os males provocados pela técnica e pelos meiosde vida modernos, que poderiam ser atenuados ou inteiramentesuprimidos com uma parcela não tão grande de bom senso esensibilidade. Carecendo do fio da balança intelecto-moral, materializadono mundo pela tradição e técnica filosófica, a ciência confunde-se entreseu papel de investigação natural e o de ajuizamento quanto aosprincípios do conhecimento e da ação. Ao passo que a maior parte da

Page 280: Sou professor e escritor com formação em filosofia e ...bvespirita.com/Filosofia e Espiritismo (autoria desconhecida).pdf · podem ser impossíveis, mas o respeito estÆ ao alcance

humanidade permanece agindo mais por instinto do que sob a tutela darazão, a parte esclarecida compra sem critério o engodo dos modelosexplicativos da comunidade científica, que em muito extrapola oproveitoso papel da pesquisa científica, e descamba para as maisesdrúxulas cogitações filosóficas, carecendo, no entanto, para isto, demétodo e termos adequados que só a filosofia possui.

Em resumo, vivemos uma época em que a filosofia e a ciência seconfundiram, não só porque a primeira falhou em diversas das suasespecialidades quanto a uma explicação satisfatória da natureza, masprincipalmente porque a segunda julgou ser isto motivo para tirar dafilosofia o seu papel insubstituível de elaborar uma síntese explicativa domundo. Tanto o público leigo quanto inúmeros cientistas especializadosignora que o materialismo, por exemplo, defendido como teoria científica,é em termos corretos uma teoria metafísica, ou seja, uma teoria que tentadar explicação final para a realidade, e por questões de princípios, não porquestões de fatos. Tanto o leigo quanto o cientista médio acreditam queproblemas como o do funcionamento da mente, a existência ou não delivre-arbítrio e mesmo a existência ou não de Deus são problemascientíficos, passíveis de serem solucionados com meio de explicaçõesgenéticas, neurológicas, astronômicas, evolutivas, etc; quando na verdadesão problemas filosóficos que nenhum avanço nestas áreas pode decidir.

Mesmo que muitos cientistas estejam conscientes destas limitaçõesde sua especialidade, a verdade é que uma ideologia da ciênciaestabeleceu-se na sociedade com a mesma força persuasiva que aideologia católica exercia sobre o mundo medieval, dificultando o juízoclaro e imparcial, já que tornou-se como que uma heresia discordar daciência e tentar delimitar o seu papel ao campo dos fenômenos que ela sepropõe a tratar. Neste contexto, a exposição, discussão e o esclarecimentobásico sobre o que é e para que serve a filosofia se faz urgente.