Sobre o Pragmatismo de Willian James. Verdade e Realidade

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Sobre o Pragmatismo de William James. Verdade e Realidade Sobre o Pragmatismo de Wiliam James Verdade e Realidade 1 Como falar do pragmatismo depois de William James? E o que poderíamos dizer sobre isso que já não se encontre dito, e bem melhor dito, no livro surpreendente e encantador do qual temos a tradução fiel? Nós evitaríamos tomar a palavra, se o pensamento de James não fosse o mais freqüentemente diminuído, ou alterado, ou falseado pelas interpretações que lhe são dadas. Muitas idéias circulam que arriscam a se interpor entre o leitor e o livro, e a difundir uma 1 Este ensaio foi composto para servir de prefácio à obra de William JAMES sobre o Pragmatismo, tradução de E. LE BRUN (Paris, Flammarion, 1911). Henri Bergson 1

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BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses Universitaires de France, 27ª edição, 1950, pág. 239-251.Tradução: Maristela Bleggi Tomasini. Proibida a utilização comercial

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Sobre o Pragmatismo de William James. Verdade e Realidade

Sobre o Pragmatismode Wiliam James

Verdade e Realidade1 

Como falar do pragmatismo depois de William James? E o

que poderíamos dizer sobre isso que já não se encontre dito, e bem

melhor dito, no livro surpreendente e encantador do qual temos a

tradução fiel? Nós evitaríamos tomar a palavra, se o pensamento de

James não fosse o mais freqüentemente diminuído, ou alterado, ou

falseado pelas interpretações que lhe são dadas. Muitas idéias

circulam que arriscam a se interpor entre o leitor e o livro, e a

difundir uma obscuridade artificial sobre uma obra que é a própria

claridade.

Compreender-se-ia mal o pragmatismo de James, se não se

começasse por modificar a idéia que se faz de modo corrente da

realidade em geral. Fala-se do “mundo” ou do “cosmos”; e essas

palavras, de acordo com sua origem, designam alguma coisa de

simples ou, ao menos, de bem composto. Diz-se “o universo”, e a

palavra faz pensar em uma unificação possível das coisas. Pode-se

ser espiritualista, materialista, panteísta, como se pode ser

1 Este ensaio foi composto para servir de prefácio à obra de William JAMES

sobre o Pragmatismo, tradução de E. LE BRUN (Paris, Flammarion, 1911).

Henri Bergson

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Sobre o Pragmatismo de William James. Verdade e Realidade

indiferente à filosofia e satisfeito com o senso comum: sempre se

representa um ou muitos princípios simples pelos quais se

explicaria o conjunto das coisas materiais e morais.

É que nossa inteligência é apaixonada pela simplicidade.

Ela economiza o esforço, e quer que a natureza seja arranjada de

modo a não reclamar de nós, para ser pensada, senão a menor soma

possível de trabalho. Ela dá como justo o que é necessário em

matéria de elementos ou de princípios para recompor com eles a

série indefinida de objetos e de eventos.

Mas se, em lugar de reconstruir idealmente as coisas para

maior satisfação de nossa razão, nós nos ativéssemos pura e

simplesmente àquilo que a experiência nos dá, nós pensaríamos e

nos exprimiríamos de maneira inteiramente diferente. Enquanto

nossa inteligência, com seus hábitos de economia, se representa os

efeitos como estritamente proporcionais às suas causas, a natureza,

— que é pródiga, — coloca em causa muito mais do que é

requerido para produzir o efeito. Enquanto nossa divisa é “Apenas o

que é preciso”, a da natureza é “Mais do que é preciso”, — muito

disso, muito daquilo, muito de tudo. — A realidade, tal como James

a vê, é redundante e superabundante. Entre essa realidade e aquela

que os filósofos reconstroem, eu creio que foi estabelecida a mesma

relação que entre a vida que nós vivemos todos os dias e aquela que

os atores nos representam, à noite, sobre o palco. No teatro, cada

um não diz senão aquilo que é preciso dizer e não faz senão aquilo

que é preciso fazer; há cenas bem recortadas; a peça tem um

começo, um meio e um fim; e tudo está disposto da maneira mais

parcimoniosa possível em vista de um desfecho que será feliz ou

trágico. Mas, na vida, diz-se uma multidão de coisas inúteis, faz-se Henri Bergson

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uma multidão de gestos supérfluos, não há situações nítidas; nada se

passa tão simplesmente, nem tão completamente, nem tão

agradavelmente quanto quereríamos; as cenas apropriam-se umas

das outras; as coisas não começam nem terminam; não há desfecho

inteiramente satisfatório nem gesto absolutamente decisivo, nem

dessas palavras decisivas e sobre as quais se permanece: todos os

efeitos são deteriorados. Assim é a vida humana. Assim é, sem

dúvida também, aos olhos de James, a realidade em geral.

Certamente, nossa experiência não é incoerente. Ao

mesmo tempo em que ela nos apresenta coisas e fatos, ela nos

mostra parentescos entre as coisas e relações entre os fatos: essas

relações são tão reais, tão diretamente observáveis, segundo Willian

James, quanto as coisas e os fatos eles mesmos. Mas as relações são

flutuantes, e as coisas são fluidas. Está longe daí esse universo árido

que os filósofos compõem com elementos bem recortados, bem

arranjados, e onde cada parte não está mais somente ligada a uma

outra parte, como nos diz a experiência, mas ainda, como quereria

nossa razão, coordenada ao Todo.

O “pluralismo” de William James não significa outra

coisa. A Antiguidade representava-se um mundo fechado, parado,

finito: é uma hipótese que responde a certas exigências de nossa

razão. Os modernos pensam, de preferência, em um infinito: é uma

outra hipótese que satisfaz outras necessidades de nossa razão. Do

ponto de vista onde James se coloca, — que é aquele da experiência

pura ou do “empirismo radical”, — a realidade não aparece mais

como finita nem como infinita, mas simplesmente como indefinida.

Ela corre, sem que nós possamos dizer se é em uma direção única,

nem mesmo se é sempre e em toda parte o mesmo rio que corre.Henri Bergson

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Nossa razão está menos satisfeita. Ela se sente menos à

vontade em um mundo onde ela não encontra mais, como num

espelho, sua própria imagem. E, sem nenhuma dúvida, a

importância da razão humana está diminuída. Mas o quanto a

importância do próprio homem, ele mesmo, — do homem inteiro,

vontade e sensibilidade, tanto quanto inteligência, — vai se

encontrar aumentada!

O universo que nossa razão concebe é, com efeito, um

universo que ultrapassa infinitamente a experiência humana, sendo

próprio da razão prolongar os dados da experiência, estendê-los

pela via da generalização, enfim, fazer-nos conceber muito mais

coisas do que jamais perceberíamos. Em semelhante universo, o

homem é considerado como fazendo pouca coisa e ocupando pouco

espaço: o que ele concede à sua inteligência, ele retira de sua

vontade. Sobretudo, havendo atribuído ao seu pensamento o poder

de tudo abraçar, ele está obrigado a representar-se todas as coisas

em termos de pensamento: suas aspirações, seus desejos, seus

entusiasmos, ele não pode pedir esclarecimentos sobre um mundo

onde tudo aquilo que lhe é acessível foi considerado por ele, de

antemão, como traduzível em idéias puras. Sua sensibilidade não

saberia esclarecer sua inteligência, da qual ele faz a própria luz.

As filosofias, em sua maior parte, restringem, pois, nossa

experiência no lado sentimento e vontade, ao mesmo tempo em que

a prolongam indefinidamente no lado pensamento. O que James nos

pede é não mais prolongar a experiência pelas vias hipotéticas, é

também não a mutilar naquilo que ela tem de sólido. Nós não

estamos inteiramente seguros daquilo que a experiência nos dá; mas

nós devemos aceitar a experiência integralmente, e nossos Henri Bergson

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sentimentos fazem parte disso ao mesmo título que nossas

percepções, ao mesmo título, por conseqüência, que as “coisas”.

Aos olhos de Willian James, o homem inteiro conta.

Ele conta mesmo muito em um mundo que não o esmaga

mais com sua imensidade. Fica-se espantado com a importância que

James atribui, em um de seus livros2, à curiosa teoria de Fechner

que faz da Terra um ser independente dotado de uma alma divina. É

que ele vê aí um meio cômodo de simbolizar, — talvez mesmo de

exprimir, — seu próprio pensamento. As coisas e os fatos dos quais

se compõe nossa experiência constituem para nós um mundo

humano3, ligado sem dúvida a outros, mas tão distanciado deles e

tão perto de nós que devemos considerá-lo, na prática, como

suficiente para o homem e suficiente para si mesmo. Com essas

coisas e esses eventos nós fazemos corpos, — nós, quer dizer, tudo

aquilo que nós temos consciência de ser, tudo aquilo que nós

experimentamos. Os sentimentos poderosos que agitam a alma em

certos momentos privilegiados são forças tão reais quanto aqueles

das quais se ocupa o físico; o homem não as cria, não mais do que

ele não cria o calor ou a luz. Banhamo-nos, de acordo com James,

em uma atmosfera atravessada por grandes correntes espirituais. Se

muitos dentre nós aí se obstinam, outros se deixam levar. E existem

almas que se abrem inteiras ao sopro benfazejo. Estas são as almas

2 A Pluralilistic Universe, Londres, 1900. Traduzido para o francês na “Biblioteca

de Filosofia Científica” sob o título de Filosofia da Experiência.

3 Muito engenhosamente, André CHAUMEIX sinalou semelhanças entre a

personalidade de James e aquela de Sócrates (Revue des Deux Mondes, 15

outubro de 1910). O cuidado de levar o homem à consideração de coisas humanas

para ele mesmo tem algo de socrático.Henri Bergson

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místicas. Sabe-se com que simpatia James as estudou. Quando

apareceu seu livro sobre A Experiência Religiosa, muitos aí não

viram senão uma série de descrições muito vivas e de análises

muito penetrantes, — uma psicologia, diziam eles, do sentimento

religioso. — Quão enganados estavam sobre o pensamento do

autor! A verdade é que James debruçava-se sobre a alma mística

como nós saímos, em um dia de primavera, para sentir a carícia da

brisa, ou como, à beira-mar, olhamos os pássaros e vemos os barcos

e o inchaço de suas velas para saber de onde sopra o vento. As

almas que o entusiasmo religioso preenche são verdadeiramente

elevadas e transportadas: como não nos levariam elas a perceber o

real, assim como numa experiência científica, a força que transporta

e que eleva? Aí está, sem dúvida, a origem, aí está a idéia

inspiradora do “pragmatismo” de William James. As verdades que

ele mais nos induz a conhecer são, para ele, verdades que foram

sentidas e vividas antes de serem pensadas4.

Em todos os tempos diz-se que há verdades que despertam

o sentimento tanto quanto a razão; e em todos os tempos também se

diz que, ao lado das verdades que nós encontramos feitas, existem

outras que nós ajudamos a formar, que dependem em parte de nossa

vontade. Mas é preciso observar que, em James, esta idéia toma

uma força e uma significação novas. Ela desabrocha, graças à

4 No belo estudo que consagrou a William James, — Revue de métaphysique et

de morale, novembro de 1910, — Émile Boutroux faz ressaltar o sentido todo

particular do verbo inglês to experience, que quer dizer, não constatar friamente

uma coisa que se passa fora de nós, mas provar, sentir em si, viver por si mesmo

tal ou qual maneira de ser.Henri Bergson

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concepção da realidade que é peculiar a esse filósofo numa teria

geral da verdade.

O que é um julgamento verdadeiro? Nós chamamos

verdadeira a afirmação que concorda com a realidade. Mas em que

pode consistir esta concordância? Nós gostamos de ver aí algo

como a semelhança do retrato ao modelo: a afirmação verdadeira

seria aquela que copiaria a realidade. Reflitamos sobre isso, todavia:

nós veremos que é unicamente em raros casos, excepcionais, que

esta definição do verdadeiro encontra sua aplicação. Aquilo que é

real é tal ou qual fato determinado, acontecendo em tal ou qual

ponto do espaço e do tempo, é do singular, é do inconstante. Ao

contrário, a maior parte de nossas afirmações são gerais e implicam

numa certa estabilidade de seu objeto. Tomemos uma verdade tão

vizinha quanto possível da experiência. Esta por exemplo: “o calor

dilata os corpos”. De que poderia ela a reprodução? É possível, em

certo sentido, reproduzir a dilatação de um corpo determinado em

momentos determinados, fotografando-o em suas diversas fases.

Mesmo, por metáfora, eu posso ainda dizer que a afirmação “esta

barra de ferro se dilata” é a reprodução daquilo que se passa quando

eu assisto à dilatação da barra de ferro. Mas uma verdade que se

aplica a todos os corpos, sem concernir especialmente a algum

daqueles que eu vi, não copia nada, não reproduz nada. Nós

queremos, todavia, que ela reproduza alguma coisa e, em todos os

tempos, a filosofia procurou nos dar satisfação sobre esse ponto.

Para os filósofos antigos, havia, acima do tempo e do espaço, um

mundo onde tinha sede, por toda eternidade, todas as verdades

possíveis. As afirmações humanas eram, para eles, tanto mais

verdadeiras quanto mais fielmente copiavam essas verdades eternas. Henri Bergson

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Os modernos fizeram descer a verdade do céu sobre a terra. Mas

eles a vêem ainda como alguma coisa que preexistiria às nossas

afirmações. A verdade estaria depositada nas coisas e nos fatos:

nossa ciência iria aí procurá-la, retirando-a de seu esconderijo,

trazendo-a para a luz. Uma afirmação tal como “o calor dilata os

corpos” seria uma lei que governa os fatos, que reina, senão acima

deles, ao menos em meio a eles, uma lei verdadeiramente contida

em nossa experiência e que nós nos limitaríamos a extrair dela.

Mesmo uma filosofia como aquela de Kant, — que quer que toda

verdade científica seja relativa ao espírito humano, — considera as

afirmações verdadeiras como dadas por antecipação na experiência

humana. Uma vez esta experiência organizada pelo pensamento

humano em geral, todo o trabalho da ciência consistiria em

atravessar o invólucro resistente dos fatos no interior dos quais a

verdade está alojada, como uma noz em sua casca.

Esta concepção da verdade é natural ao nosso espírito e

natural também à filosofia, porque é natural representar-se a

realidade como um todo perfeitamente coerente e sistematizado

sustentado por uma armadura lógica. Esta armadura seria a própria

verdade. Nossa ciência não faria senão encontrá-la. Mas a

experiência pura e simples não nos diz nada de semelhante, e James

atém-se à experiência. A experiência nos apresenta um fluxo de

fenômenos. Se tal ou qual afirmação relativa a um deles nos permite

dominar aqueles que se seguirão ou mesmo simplesmente prevê-los,

nós dizemos desta afirmação que ela é verdadeira. Uma proposição

tal como “o calor dilata os corpos”, proposição sugerida pela vista

da dilatação de um certo corpo, faz com nós prevejamos como

outros corpos se comportarão em presença do calor; ela nos ajuda a Henri Bergson

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passar de uma experiência antiga a experiências novas, é um fio

condutor, nada mais. A realidade corre, nós corremos com ela. E

nós chamamos verdade a toda afirmação que, em nos dirigindo

através da realidade móvel, nos dá domínio sobre ela e nos coloca

em melhores condições para agir.

Vê-se a diferença entre esta concepção da verdade e a

concepção tradicional. Nós definimos, de ordinário, a verdade por

sua conformidade àquilo que já existe; James define-a por sua

relação com aquilo que não existe ainda. O verdadeiro, segundo

William James, não copia alguma coisa que foi ou que é: ele

anuncia aquilo que será ou, de preferência, prepara nossa ação sobre

aquilo que vai ser. A filosofia tem uma tendência natural a querer

que a verdade olhe para trás. Para James, ela olha para frente.

Mais precisamente, as outras doutrinas fazem da verdade

alguma coisa de anterior à ação bem determinada do homem que a

formula pela primeira vez. Ele foi o primeiro a vê-la, dizemos nós,

mas ela o esperava, como a América esperava Cristóvão Colombo.

Alguma coisa a escondia de todos os olhares e, por assim dizer, a

encobria. Ele a descobriu. Muito diferente é a concepção de

William James. Ele não nega que a realidade seja independente, em

grande parte ao menos, daquilo que nós dizemos ou pensamos dela;

mas a verdade, que não pode ligar-se senão àquilo que nós

afirmamos da realidade, parece-lhe ser criada por nossa afirmação.

Nós inventamos a verdade para utilizar a realidade, como nós

criamos dispositivos mecânicos para utilizar as forças da natureza.

Poder-se-ia, parece-me, resumir todo o essencial da concepção

pragmatista da verdade em uma fórmula tal como esta: enquanto

Henri Bergson

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para as outras doutrinas uma verdade nova é uma descoberta, para

o pragmatismo ela é uma invenção5.

Não se segue daí que a verdade seja arbitrária. Uma

invenção mecânica não vale senão por sua utilidade prática. Do

mesmo modo, uma afirmação, para ser verdadeira, deve aumentar

nosso império sobre as coisas. Ela não é menos a criação de um

certo espírito individual, e ela não preexistia, não mais, ao esforço

desse espírito, como o fonógrafo, por exemplo, não preexistia a

Edison. Sem dúvida, o inventor do fonógrafo deveu estudar as

propriedades do som, que é uma realidade. Mas sua invenção

sobrepôs-se a esta realidade como uma coisa absolutamente nova,

que não seria talvez jamais produzida se ele não houvesse existido.

Assim uma verdade, para ser viável, deve ter sua raiz nas

realidades; mas essas realidades não são senão o terreno sobre o

qual esta verdade brota, e outras flores bem poderiam brotar, se o

vento para aí trouxesse outras sementes.

A verdade, de acordo com o pragmatismo, é, pois, feita

pouco a pouco, graças aos aportes individuais de um grande número

de inventores. Se esses inventores não houvessem existido, se

outros houvessem existido em seu lugar, nós teríamos tido um

corpo de verdades inteiramente diferente. A realidade foi e

evidentemente permanece aquilo que ela é, ou quase; mas outros

teriam sido os caminhos que haveríamos de traçar para a

5 Eu não estou seguro de que James tenha empregado a palavra “invenção”, nem

de que ele tenha explicitamente comparado a verdade teórica a um dispositivo

mecânico; mas eu creio que essa aproximação é conforme ao espírito da doutrina,

e que ela pode nos ajudar a compreender o pragmatismo.

Henri Bergson

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comodidade de nossa circulação. E não se tratam aqui somente de

verdades científicas. Nós não podemos construir uma frase, nós não

podemos mesmo hoje pronunciar uma palavra, sem aceitar certas

hipóteses que foram criadas por nossos ancestrais e que poderiam

ter sido diferentes daquilo que elas são. Quando eu digo: “meu lápis

acaba de cair debaixo da mesa”, eu não enuncio, certamente, um

fato da experiência, porque aquilo que a visão e o tato me mostram

é simplesmente que minha mão se abriu e deixou escapar o que

segurava. O bebê fixado em sua cadeira que vê cair o objeto com o

qual brinca, não imagina, provavelmente, que este objeto continua a

existir; ou, de preferência, ele não tem a idéia nítida de um “objeto”,

quer dizer, de qualquer coisa que subsista, invariável e

independente, através da diversidade e da mobilidade das

aparências que passam. O primeiro que ousou acreditar nesta

invariabilidade e nesta independência elaborou uma hipótese: é esta

hipótese que nós adotamos de modo corrente todas as vezes que

empregamos um substantivo, todas as vezes que falamos. Nossa

gramática teria sido outra, outras teriam sido as articulações de

nosso pensamento, se a humanidade, no decorrer de sua evolução,

houvesse preferido adotar hipóteses de outro gênero.

A estrutura de nosso espírito é, pois, em grande parte,

nossa obra ou, ao menos, a obra de alguns dentre nós. Aí está, se me

parece, a tese mais importante do pragmatismo, ainda que ela não

tenha sido explicitamente destacada. É por aí que o pragmatismo

continua o Kantismo. Kant havia dito que a verdade depende da

estrutura geral do espírito humano. O pragmatismo acrescenta, ou

ao menos implica, em que a estrutura do espírito humano é o efeito

da livre iniciativa de um certo número de espíritos individuais. Henri Bergson

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Isso não quer dizer, ainda uma vez, que a verdade depende

de cada um de nós: o mesmo equivaleria a crer que qualquer um de

nós poderia inventar o fonógrafo. Mas isso quer dizer que, das

diversas espécies de verdade, aquela que está mais perto de

coincidir com seu objeto não é a verdade científica, nem a verdade

do senso comum, nem, mais geralmente, a verdade de ordem

intelectual. Toda verdade é um caminho traçado através da

realidade; mas, entre esses caminhos, existem aqueles aos quais nós

poderíamos dar uma direção muito diferente, se nossa atenção fosse

orientada num sentido diferente ou se houvéssemos visado a um

outro gênero de utilidade; isso é o contrário de a direção ser

marcada pela própria realidade: isso é o que corresponde, se se pode

dizer, a correntes de realidade. Sem dúvida, estas dependem ainda

de nós numa certa medida, porque nós somos livres para resistir à

corrente ou para segui-la; e, mesmo que nós a sigamos, podemos

inflecti-la diversamente, estando associados ao mesmo tempo em

que submetidos à força que aí se manifesta. Não é menos verdade

que essas correntes não são criadas por nós; elas fazem parte

integrante da realidade. O pragmatismo chega assim a inverter a

ordem na qual temos o costume de colocar as diversas espécies de

verdade. Fora verdades que traduzem sensações brutas, seriam as

verdades de sentimento que teriam na realidade as raízes mais

profundas. Se nós convimos em dizer que toda verdade é uma

invenção, será preciso, eu creio, para permanecer fiel ao

pensamento de William James, estabelecer entre as verdades de

sentimento e as verdades científicas o mesmo gênero de diferença

que entre o barco à vela, por exemplo, e o barco a vapor. Um e

outro são invenções humanas, mas o primeiro não dá ao artifício Henri Bergson

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senão uma fraca parte, ele toma a direção do vento e torna sensível

aos olhos a força natural que utiliza; no segundo, ao contrário, é o

mecanismo artificial que tem maior lugar; ele encobre a força que

põe em jogo e assina-lhe uma direção que escolhemos por nós

mesmos.

A definição que James dá da verdade integra sua definição

da realidade. Se a realidade não é esse universo econômico e

sistemático que nossa lógica gosta de se representar, se ela não é

sustentada por uma armadura de intelectualidade, a verdade de

ordem intelectual é uma invenção humana que tem por efeito

utilizar a realidade de preferência a nos introduzir nela. E se a

realidade não forma um conjunto, se ela é múltipla e móvel, feita de

correntes que se entrecruzam, a verdade que nasce de uma tomada

de contato com qualquer uma dessas correntes, — verdade sentida

antes de ser concebida, — é mais capaz que a verdade simplesmente

pensada de perceber e de armazenar a própria realidade.

É, pois, enfim, a esta teoria da realidade que deveria fixar-

se primeiramente uma crítica do pragmatismo. Poder-se-á erguer

objeções contra ela, e o faríamos nós mesmos, no que lhe concerne,

certas reservas, mas ninguém contestará sua profundidade e

originalidade. Ninguém, não mais, após haver examinado de perto a

concepção da verdade que aí se correlaciona, desconhecerá sua

elevação moral. Diz-se que o pragmatismo de James não é senão

uma forma de ceticismo, que ele rebaixaria a verdade, que ele a

subordinaria à utilidade material, que ele desaconselharia, que ele

desencorajaria a pesquisa científica desinteressada. Uma tal

interpretação não viria jamais ao espírito daqueles que leram

atentamente a obra. E ela surpreenderá profundamente aqueles que Henri Bergson

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tiverem a oportunidade de conhecer o homem. Ninguém amou a

verdade com mais ardente amor. Ninguém a procurou com mais

paixão. Uma imensa inquietude o incitava, e, de ciência em ciência,

da anatomia à psicologia, da psicologia à filosofia, ele ia, atento aos

grandes problemas, descuidado do resto, esquecido de si mesmo.

Toda sua vida ele observou, experimentou, meditou. E, como se não

houvesse feito o bastante, ele almejava ainda, embalando seu último

sono, almejava ele experiências extraordinárias e esforços mais que

humanos pelos quais ele poderia continuar, — depois da morte, —

a trabalhar conosco, para o maior bem da ciência, para a maior

glória da verdade.

BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Presses

Universitaires de France, 27ª edição, 1950, pág. 239-251.

Tradução: Maristela Bleggi Tomasini [email protected]

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