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Sobre o óbvio Darcy Ribeiro LUTAS ANTICAPITAL Sobre o óbvio Darcy Ribeiro Este ensaio que a Editora Lutas Anticapital aqui publica em forma de livro de bolso sintetiza muito do pensamento de Darcy Ribeiro. Como o leitor perceberá, ele traz duas questões que marcaram a trajetória desse mineiro de Montes Claros (MG): 1) por que a classe dominante sempre vence? 2) por que o Brasil não deu certo ou, como proferido por Darcy nes- ta palestra que agora se reedita: quais as causas do nosso fraco desempenho nesse mundo? O texto caracteriza-se pela linguagem coloquial visto ser resulta- do de uma palestra. Seu ponto de partida é a crítica – construída de forma bem humorada e até debochada – às teses conservadoras que predomina- ram sobre a interpretação do fracasso brasileiro para atingir padrões de desenvolvimento e de estágio civilizatório idênticos aos de outras nações, inclusive contemporâneas a nós. Teses defendidas por nossas elites e por parte da intelectualidade local colonizada desde sempre; teses tão óbvias que se explicariam por si só e que foram sacralizadas, por muito tempo, como verdades sobre nossa (má) formação. FERNANDO CÉZAR DE MACEDO | UNICAMP Darcy Ribeiro (1922-1997), como autor, não pode ser definido em um único escaninho do conhecimento. Ele foi um produtor incansável de livros e estudos. Mas não apenas um “estudioso”. A teoria e a prática estiveram intensamente atadas neste autor tão rico em abordagens. Ele foi um semeador de universidades, criando o projeto inicial de várias delas em países da América Latina, inclusive no Brasil, a UnB – Universidade Nacio- nal de Brasília, um dos motivos de seu exílio. Pela variedade de seus estu- dos, integrados sempre numa totalidade teórica e histórica, Darcy pode ser considerado um antropólogo – “especialidade” na qual ele talvez seja mais conhecido – mas é também um historiador, um sociólogo, um cientista político, um educador, para dizer o mínimo. Ou seja, melhor não tentar classificá-lo nestes termos, pois limitaria a compreensão da abundância de suas qualidades. ANGÉLICA LOVATTO | UNESP

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Sobre o óbvio

Darcy Ribeiro

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Este ensaio que a Editora Lutas Anticapital aqui publica em forma de livro de bolso sintetiza muito do pensamento de Darcy Ribeiro. Como o leitor perceberá, ele traz duas questões que marcaram a trajetória desse mineiro de Montes Claros (MG): 1) por que a classe dominante sempre vence? 2) por que o Brasil não deu certo ou, como proferido por Darcy nes-ta palestra que agora se reedita: quais as causas do nosso fraco desempenho nesse mundo? O texto caracteriza-se pela linguagem coloquial visto ser resulta-do de uma palestra. Seu ponto de partida é a crítica – construída de forma bem humorada e até debochada – às teses conservadoras que predomina-ram sobre a interpretação do fracasso brasileiro para atingir padrões de desenvolvimento e de estágio civilizatório idênticos aos de outras nações, inclusive contemporâneas a nós. Teses defendidas por nossas elites e por parte da intelectualidade local colonizada desde sempre; teses tão óbvias que se explicariam por si só e que foram sacralizadas, por muito tempo, como verdades sobre nossa (má) formação.

FERNANDO CÉZAR DE MACEDO | UNICAMP

Darcy Ribeiro (1922-1997), como autor, não pode ser definido em um único escaninho do conhecimento. Ele foi um produtor incansável de livros e estudos. Mas não apenas um “estudioso”. A teoria e a prática estiveram intensamente atadas neste autor tão rico em abordagens. Ele foi um semeador de universidades, criando o projeto inicial de várias delas em países da América Latina, inclusive no Brasil, a UnB – Universidade Nacio-nal de Brasília, um dos motivos de seu exílio. Pela variedade de seus estu-dos, integrados sempre numa totalidade teórica e histórica, Darcy pode ser considerado um antropólogo – “especialidade” na qual ele talvez seja mais conhecido – mas é também um historiador, um sociólogo, um cientista político, um educador, para dizer o mínimo. Ou seja, melhor não tentar classificá-lo nestes termos, pois limitaria a compreensão da abundância de suas qualidades.

ANGÉLICA LOVATTO | UNESP

Sobre o óbvio

Darcy Ribeiro

LUTAS ANTICAPITAL

Darcy Ribeiro

Sobre o óbvio

1ª edição

LUTAS ANTICAPITAL

Marília - 2019

Editora LUTAS ANTICAPITAL

Editor: Julio Okumura

Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos

Aires - Argentina), Bruna Vasconcellos (UFABC), Candido

Giraldez Vieitez (UNESP), Dario Azzellini (Cornell University –

Estados Unidos), Édi Benini (UFT), Fabiana de Cássia Rodrigues

(UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Júlio César Torres

(UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa Silva,

Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP),

Paulo Alves de Lima Filho (FATEC), Renato Dagnino (UNICAMP),

Rogério Fernandes Macedo (UFVJM).

Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva

e Renata Tahan Novaes

Capa: Mariana da Rocha Corrêa Silva

Impressão: Renovagraf

Ribeiro, Darcy.

R354s Sobre o óbvio/ Darcy Ribeiro. – Marília: Lutas Anticapital, 2019.

56 p.

ISBN 978-85-53104-12-3

1. Educação - Brasil. 2. Sociologia 3. Educação – Brasil – História. I. Título.

CDD 370

Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno

CBR 8/8211 - FFC – UNESP – Marília

1ª edição: janeiro de 2019

Editora Lutas anticapital

Marília –SP

[email protected]

www.lutasanticapital.com.br

Sumário

Nota.....................................................................7

Apresentação do livro..........................................11

Fernando Macedo

Quem é Darcy Ribeiro?.......................................23

Angélica Lovatto

Sobre o óbvio......................................................33

Darcy Ribeiro

Darcy Ribeiro | 7

Nota

Um espectro ronda o Brasil, o espectro do

anti-intelectualismo. Esse espectro anuncia tem-

pos difíceis, onde direitos e conquistas que

pareciam tão consolidados se desmancham no ar,

como poeira soprada pela ventania. Anuncia

também o temor do pensamento crítico, da busca

da verdade, da ciência e da universidade pública.

Em última instância, este temor pretende “apagar”

a história do Brasil.

Ao lado do anti-intelectualismo do atual

presidente, temos o pragmatismo da esquerda

hegemônica, que ignora a unidade dialética entre

sistematização da realidade e sua radical transfor-

mação prática, isto é, a Revolução.

Há tempos, uma parte importante das

forças progressistas e da esquerda abandonaram a

teoria revolucionária, o estudo da realidade e,

atualmente, se encontram perdidas e fragmentadas

no que fazer.

Combatendo nas trevas, nós, coorde-

nadores do Curso Técnico em Agropecuária

integrado ao Ensino Médio, com ênfase em

Agroecologia e Agrofloresta, optamos por resgatar e

preparar Livros de Bolso adequados ao Ensino

Médio e a todos aqueles que desejam iniciar a

leitura de clássicos do pensamento social latino-

americano.

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O curso é um dos frutos do convênio

UNESP-Centro Paula Souza – PRONERA-INCRA.

Preparados para este novo ciclo de lutas

sociais, onde vai vigorar um longo período de

resistência histórica, a Editora Lutas anticapital e

nós – coordenadores do cusro - nos comprome-

temos a publicar livros de qualidade acessíveis ao

público brasileiro, que tem “sede” de conhecimento

crítico.

Somos partidários do estudo da história na

perspectiva materialista e dialética. Temos partido,

o partido da ciência e somos comprometidos com

as lutas emancipatórias da classe trabalhadora.

As classes proprietárias declaram guerra

aos trabalhadores. No caso brasileiro, inter-

romperam as parcas vitórias da “Nova República”,

deram um golpe e enterraram a suposta

possibilidade de conciliar as classes sociais, ao

ejetar o lulismo do poder.

Para inaugurar a série de Livros de Bolso

optamos por selecionar um texto de Darcy Ribeiro

que desnaturaliza, com alto grau de ironia e

deboche, muitos dos mitos que regem a sociedade

brasileira.

Convidamos dois especialistas em Darcy, a

quem agradecemos pelo aceite da empreitada. O

professor Fernando Macedo, que ficou encarregado

de apresentar a palestra “Sobre o óbvio”, e Angélica

Lovatto, que fez uma sintética apresentação da

vida e obra deste intelectual latino-americano,

certamente um dos mais originais e criativos

pensadores do século XX.

Darcy Ribeiro | 9

Temos certeza que este pequeno Livro de

Bolso irá estimular muitos alunos-trabalhadores a

compreender os diversos desafios do Brasil, e lutar

de forma organizada para superação do capital.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura

e que possam surgir dela variadas reflexões.

Marília e Iaras, 24 de janeiro de 2019

Angelo Diogo Mazin, Daniela Bittencourt

Blum, Henrique Tahan Novaes, João

Henrique Pires e Joice Aparecida Lopes

Coordenadores do Curso Técnico em

Agropecuária, com ênfase em

agroecologia, integrado ao ensino médio

Convênio UNESP - Centro Paula Souza –

PRONERA (INCRA)

Escola de Educação Popular Rosa

Luxemburgo (MST - SP)

Bruno Mercurio e Natalia Oliveira

Produtores de Material Didático do Curso

Técnico em Agropecuária integrado ao

Ensino Médio

10 | S o b r e o ó b v i o

Darcy Ribeiro | 11

Apresentação do Livro

O texto Sobre o Óbvio é a transcrição da fala do

professor Darcy Ribeiro proferida no Simpósio

sobre Ensino Público, integrante da programação

da 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para

o Progresso da Ciência - SBPC, ocorrida entre os

dias 6 e 13 de julho de 1977, na Pontifícia

Universidade Católica – PUC na capital paulista.

Foi publicado pela primeira vez em 1979 como

capítulo de abertura do livro Ensaios Insólitos1. O

mesmo onde se encontra reeditado o prefácio que

ele escreveu para a edição venezuelana de Casa

Grande & Senzala de Gilberto Freyre para quem

“nunca ninguém prefaciou, no Brasil ou fora dele,

o livro com tão aguda inteligência e tão abrangente

sensibilidade.”2

“O mais lúcido dos marxistas brasileiros”3, nos

dizeres desse sociólogo pernambucano, Darcy

Ribeiro era um pensador autenticamente nacional

e um verdadeiro cidadão latino-americano que não

se submetia acriticamente a teorias vindas de fora,

mesmo as revolucionárias, como a do Partido

1 RIBEIRO, D. Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM, 1979. 2 FREYRE, G. Um livro brasileiro reeditado em espanhol. Diário de Pernambuco. Recife, 3 jul. 1977, p. 15. 3 Ibidem.

12 | S o b r e o ó b v i o

Comunista Brasileiro, no qual militou por um

tempo. Do mesmo modo, não procedeu como boa

parte da esquerda, sempre a pensar a revolução no

Brasil em abstrato, de cima para baixo, apartada

do cotidiano do povo e influenciada por visões

eurocêntricas de mundo.

Por isso, falava de um “socialismo moreno”,

umbilicalmente ligado à formação brasileira e às

tradições de seu povo; socialismo pensado e

soerguido a partir de dentro e para dentro, capaz

de emancipar e libertar o povo brasileiro em

direção a uma nova, autêntica e revolucionária

civilização autodeterminada nos trópicos. Quanto

às teorias conservadoras, ele considerava sua

assimilação como parte do processo de dominação

dos países imperialistas, para o qual nossas

universidades seriam verdadeiras correias de

transmissão.

Intelectual de grande erudição, foi antropólogo,

etnólogo, educador, ensaísta, romancista e criador

de universidades. Darcy fugiu à obviedade

acadêmica e colocou a mão na massa,

extrapolando suas ideias para além das dezenas de

livros e ensaios que escrevera. Morou dez anos

entre os índios brasileiros para melhor conhecê-los

e foi, no século XX, um de seus maiores defensores

no país. Dentre nossos grandes pensadores foi dos

que deu mais destaque ao papel e à herança

indígena em nossa formação e dos que mais os

defendeu.

No duro período de seu exílio após o golpe de

1964, aprofundou seu conhecimento sobre a

Darcy Ribeiro | 13

realidade dos países latino-americanos. Durante os

quinze anos em que teve seus direitos políticos

cassados – foi anistiado em 1979 – morou e

trabalhou no Uruguai, Chile, Peru e Venezuela.

Vem dessa época seus importantes trabalhos O

processo Civilizatório (1968), A América e a

Civilização (1970) e O Dilema da América Latina

(1978). Neste atual momento, em que nossa

diplomacia alimenta sentimento beligerante contra

alguns países da região, sustentado por um

nacionalismo às avessas, aderente a Washington, a

leitura desses livros ensina sobre o muito que

temos em comum com nossos hermanos y

hermanas do México ao Prata e como todos nós,

latino-americanos, padecemos dos mesmos inimi-

gos: o imperialismo, principalmente americano,

mas não somente, e nossas elites.

Darcy foi ministro, senador, secretário de

estado, vice-governador e chefe da casa civil.

Nesses cargos buscou sempre colocar em ação o

que pensava, enfrentando interesses secularmente

constituídos e fazendo desafetos. Na condição de

pessoa pública, foi responsável pela criação da

Universidade de Brasília – UNB, idealizou os

Centros Integrados de Educação Pública – CIEPS,

implementados nas gestões do governador Leonel

Brizola (1983-1987; 1991-1995) no Rio de Janeiro,

projetou e influenciou decisivamente, junto com os

irmão Villas Boas, a criação do Parque Nacional do

Xingu, criado em 1961, na condição de Senador da

República, foi o relator da Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (lei 9394/96), à época

14 | S o b r e o ó b v i o

chamada de Lei Darcy Ribeiro. Estas são algumas

heranças do servidor republicano que ocupou

tantos cargos no Estado brasileiro – eletivos ou

administrativos – por quase cinquenta anos. Mui-

tas outras poderiam ser enumeradas.

Multifacetado, apresentava capacidade criativa

a revelar a inquietação de um espírito em

permanente ebulição que se preocupava – nas

ações e nas ideias – em entender a formação do

Brasil, para sobre ele agir e poder transformá-lo.

Por isso, e pela grandeza de sua obra, foi um dos

nossos mais profícuos intérpretes, combinando seu

método de análise para interpretação da América

Latina, tornando-se, também, um dos mais

importantes estudiosos sobre a região. Poucos

como ele conciliaram tão apaixonadamente o

pensamento criativo e a ação transformadora.

Este ensaio que a Editora Lutas Anticapital

aqui publica em forma de livro de bolso sintetiza

muito do pensamento de Darcy Ribeiro. Como o

leitor perceberá, ele traz duas questões que

marcaram a trajetória desse mineiro de Montes

Claros e que são lembradas por Gilberto Felisberto

Vasconcellos4 na abertura de seu livro sobre nosso

autor: 1) por que a classe dominante sempre

vence?; 2) por que o Brasil não deu certo ou, como

proferido por Darcy nesta palestra que agora se

reedita: quais as causas do nosso fraco

desempenho nesse mundo? É possível afirmar que

a busca por essas respostas foi esforço permanente

4 VASCONCELLOS, G. F. Darcy Ribeiro – a razão

iracunda. Florianópolis: Editora UFSC, 2015.

Darcy Ribeiro | 15

de Darcy, especialmente após o golpe de 1964,

quando a utopia da intelectualidade brasileira de

esquerda foi destroçada pela violência instaurada,

e os sonhos de transformação e justiça social se

mostraram distantes.

O texto caracteriza-se pela linguagem coloquial

visto ser resultado de uma palestra. Seu ponto de

partida é a crítica – construída de forma bem

humorada e até debochada – às teses conser-

vadoras que predominaram sobre a interpretação

do fracasso brasileiro para atingir padrões de

desenvolvimento e de estágio civilizatório idênticos

aos de outras nações, inclusive contemporâneas a

nós. Teses defendidas por nossas elites e por parte

da intelectualidade local colonizada desde sempre;

teses tão óbvias que se explicariam por si só e que

foram sacralizadas, por muito tempo, como

verdades sobre nossa (má)formação.

E dentre as obviedades que em nossa terra

receberam status de verdades seculares está a tese

da inferioridade de nossa população miscigenada,

a nos transformar em um povo de segunda classe

(esta outra obviedade tomada como tese sagrada, o

que significa que o país não vai para frente pelo

povo que tem). Uma outra obviedade: os pobres

precisam dos ricos para viver, pois sem eles não

teriam emprego, renda ou caridade. Logo, deduz-

se, não existiria luta de classes em nossa

sociedade, mas um processo harmônico de

dependência dos pobres às ações benfazejas dos

endinheirados, com o que estes podem lhes cobrar

eterna gratidão. Qualquer rebeldia social deve ser

16 | S o b r e o ó b v i o

reprimida incondicionalmente por inadmissível

quebra dessa harmonia secular. Nossa história tem

inúmeros exemplos, nas cidades e no campo, dessa

repressão aos movimentos sociais reivindicatórios.

Mas se essência e aparência fossem idênticas,

não seria preciso ciência, ensinou-nos um

bicentenário pensador alemão. O papel da ciência é

o de ir além das obviedades e revelar as relações

que estão por de trás de cada fenômeno que não

são perceptíveis a olho nu. Claro que não se trata

da ciência imposta de fora e assimilada por nossas

elites (econômicas e intelectuais) com o pedantismo

a que Darcy sempre negou, razão pela qual fez

uma ciência clara, direta, quase coloquial como

suas falas, mas com grande profundidade,

erudição e compromisso com a realidade social e a

história do país, pensada a partir de dentro sem

negar, não obstante, o conhecimento produzido no

exterior.

E porque essência e aparência não sejam

idênticas, embora estejam articuladas, essas

obviedades, que ganham status de mito, são

descontruídas pelo autor que aponta sua razão de

ser: existem para preservar a estrutura social e

para manter o poder dos ricos. Portanto, não é nos

defeitos do povo que estaria a razão de nosso

atraso, mas na estruturação da sociedade. E, ao

responder aquelas questões, Darcy derruba as

obviedades (ou seriam mitos?) revelando uma

outra obviedade: não é no povo que reside a razão

de nosso atraso, mas em nossa classe dominante:

Darcy Ribeiro | 17

Nesta indagação – vejam como é ruim

questionar! – acabamos por dar uma virada na roleta da ciência. Ela veio revelar que aquela obviedade de sermos um povo de segunda classe não podia mesmo se

manter, porque escondia uma obviedade mais óbvia ainda. Esta nova verdade nos assustou muito, levando tempo para engolir a novidade. Sobretudo nós

universitários, sobretudo nós inteligentes. Sobretudo nós bonitos. Falo da descoberta de que a causa real do atraso brasileiro, os culpados de nosso subdesenvolvimento

somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas (RIBEIRO, 2019, p. 33)

Essa classe dominante “conseguiu estruturar o

país como uma economia extraordinariamente

próspera” (RIBEIRO, 2019, p. 34) que nos colocou

entre os mais ricos países do mundo, mas com

uma profunda desigualdade e injustiça sociais.

Uma riqueza construída moendo gente. Por isso

Darcy disse que nossa sociedade é perfeita para os

que estão em cima. Qualquer tentativa de

mudança e melhoria no quadro social, mesmo que

dentro da ordem burguesa como as que nós

assistimos neste século XXI, esbarra sempre em

reações da classe dominante que tem verdadeiro

pavor ao ascenso das classes oprimidas e não

admite qualquer alteração da ordem vigente.

E como a História parece se repetir como

tragédia ou como farsa, as coisas no Brasil

permanecem exatamente as mesmas, em essência,

ainda que aparentemente mudem (e de fato

18 | S o b r e o ó b v i o

mudam para permanecerem iguais). Isto porque,

em cada momento decisivo de nossa história,

quando o país poderia se rebelar soberanamente

contra seu destino vaticinado desde os tempos

coloniais pelas potências hegemônicas, ele

retrocede para o óbvio curso traçado por sua classe

dominante. E que destino é este? O de ser uma

grande plataforma exportadora de commodities,

uma economia que moi gente e que cria riqueza

para os de fora e para poucos de dentro. Seu povo

e seu território existem não para servir a um

projeto nacional, mas para atender a imposições do

imperialismo e aos interesses da elite nativa.

Foi assim em 1964, quando poderíamos ter feito

as reformas de base e fomos interditados pela dita-

dura militar. Tem sido assim, desde 2016, quando

poderíamos avançar nas conquistas sociais mas

andamos para trás no que tange aos nossos

direitos. A agenda social dos anos sessenta foi

bloqueada pelo golpe que derrubou Jango assim

como os avanços sociais pós 1988, que foram

resultados de lutas do povo e não concessão de

qualquer governo, começaram a retroceder após o

golpe que afastou a presidenta Dilma.

O importante é garantir a valorização da

riqueza privada concentrada na mão de poucos.

Como “os ricos daqui vivem uma vida muito mais

rica do que os ricos de lá” (RIBEIRO, 2019, p. 41),

e para garantir que eles continuem assim, busca-

se superar os percalços de nossa economia em

crise cortando direitos trabalhistas, fazendo

reforma previdenciária e/ou mudando as políticas

Darcy Ribeiro | 19

de cotas e o financiamento das universidades,

desde que não se mexa na riqueza do andar de

cima.

A classe dirigente tem sido extraordinariamente

competente em seu projeto de produzir riqueza,

afirmou Darcy, mas avesso a qualquer repartição

dela. “Só que este projeto para ser implantado

precisa de um povo faminto, chucro e feio”

(RIBEIRO, 2019, p. 34). E o sistema educacional

cumpre um papel decisivo nisso porque não é

pensado para emancipar seu povo, mas para servir

a classe dominante, especialmente a universidade.

Em uma entrevista para o jornal do Brasil, uma

semana após palestrar Sobre o Óbvio, Darcy

afirmou “que a universidade serve às classes

dominantes. Não tem nada a ver com o povo”5.

Era o contexto dos anos setenta. Quarenta anos

depois da frase do Mestre, a universidade pública

ampliou o acesso aos mais pobres, aos estudantes

da rede pública e criou um sistema de cotas

étnicas para diminuir as diferenças e os

preconceitos, ou seja, para dissipar as obviedades.

Mas como a estruturação social deve manter o

“povo faminto, chucro e feio”, os avanços começam

a ser contestados. A recorrência da nossa história,

como tragédia ou como farsa, mantém a atualidade

do texto porque a interpretação por trás dos fatos é

o que faz sua leitura pertinente, embora o contexto

tenha se alterado.

Por isso, as explicações do autor sobre nossa

5 RIBEIRO, D. Educação Brasil/77. Jornal do Brasil. 20

jul. 1977, p.32.

20 | S o b r e o ó b v i o

classe dominante são atualíssimas. Hoje, assim

como ontem, vemos que no país qualquer avanço

que possa alterar a estrutura desigual da

sociedade é interditado. E isso é obra

competentíssima de nossas elites, como veremos

no texto.

Em seu último livro, Darcy voltaria a dizer em

forma de desabafo algo que já estava expresso

dezoito anos antes neste texto Sobre o Óbvio,

o ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da

sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve,

aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e

ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta para esmagar

qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.6

Para não continuar adiando o fundamental, e

para mostrar a atualidade do Mestre, uma citação

sua que, escrita há quarenta anos, parece muito

adequada para a reflexão sobre o momento em que

vivemos, no qual a onda reacionária nos pressiona

6 RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

[1995], p. 408.

Darcy Ribeiro | 21

a esquecer o passado (ou mesmo negá-lo) e

reivindicar um “Brasil acima de tudo”:

Esqueçamos tudo isso, mas cuidado! Não nos esqueçamos de enfrentar, agora, a tarefa que fracassamos ontem e que deu

lugar a tudo isso. Não nos esqueçamos de organizar a defesa das instituições democráticas contra novos golpistas militares e civis para quem em tempo

algum do futuro ninguém tenha outra vez de enfrentar e sofrer, e depois esquecer os conspiradores, os torturadores, os censores e todos os culpados e coniventes

que beberam nosso sangue e pedem nosso esquecimento.7

Campinas, 15 de janeiro de 2019

Fernando Cézar de Macedo

Professor Livre-Docente do Instituto de

Economia da UNICAMP e pesqui-sador do Centro de Estudos do Desenvolvimento Econômico – CEDE.

7 RIBEIRO, 1977, p. 277.

22 | S o b r e o ó b v i o

Darcy Ribeiro | 23

Quem é Darcy Ribeiro?

Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além

de antropólogo, sou homem de fé e de

partido. Faço política e faço ciência movido

por razões éticas e por um fundo de

patriotismo. Não procure, aqui, análises

isentas. Este é um livro que quer ser

participante, que aspira a influir sobre as

pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a

encontrar-se a si mesmo.

Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.8

Quem é Darcy Ribeiro? Em primeiro lugar

um brasileiro extraordinário que ainda segue

menos reconhecido no Brasil do que deveria. Mas

absolutamente reconhecido e divulgado em todos

os países da América Latina por seus livros,

estudos e projetos.

Esse foi o destino de muitos pensadores

brasileiros desterrados a partir do golpe militar de

1964, que baniu, prendeu, torturou, matou ou

exilou, por muitos anos, as melhores cabeças deste

país. A injustiça historiográfica que se perpetrou

contra esses autores trouxe um desconhecimento

injustificável no Brasil de suas vidas e obras.

8 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3ª.ed., São Paulo: Global, 2015. 367 p.

24 | S o b r e o ó b v i o

Darcy Ribeiro (1922-1997), como autor,

não pode ser definido em um único escaninho do

conhecimento. Ele foi um produtor incansável de

livros e estudos. Mas não apenas um “estudioso”.

A teoria e a prática estiveram intensamente atadas

neste autor tão rico em abordagens. Ele foi um

semeador de universidades, criando o projeto

inicial de várias delas em países da América

Latina, inclusive no Brasil, a UnB – Universidade

Nacional de Brasília, um dos motivos de seu exílio.

Pela variedade de seus estudos, integrados sempre

numa totalidade teórica e histórica, Darcy pode ser

considerado um antropólogo – “especialidade” na

qual ele talvez seja mais conhecido – mas é

também um historiador, um sociólogo, um

cientista político, um educador, para dizer o

mínimo. Ou seja, melhor não tentar classificá-lo

nestes termos, pois limitaria a compreensão da

abundância de suas qualidades.

Claro que também foi um homem da

política. E um homem de partido. Foi ministro do

governo João Goulart, assessorou governos de

esquerda latino-americanos como Salvador

Allende, no Chile, fomentou universidades no Peru

e Venezuela, foi vice-governador do Rio de Janeiro

no governo Leonel Brizola, foi Senador da

República. Aliás, semeou não só universidades,

mas especialmente o grande projeto de colocar

crianças brasileiras na escola o dia inteiro,

conhecidos como CIEPs – Centros Integrados de

Educação Pública, na experiência do governo do

estado do Rio de Janeiro. E até o final de sua vida

Darcy Ribeiro | 25

sempre questionava publicamente por que a

educação no Estado de São Paulo, considerado o

estado mais desenvolvido da nação e do

continente, tinha índices educacionais que ficavam

abaixo até mesmo do nosso vizinho Paraguai.

Darcy Ribeiro defendeu durante sua vida

inteira uma integração dos povos latino-

americanos, na ideia tão pouco conhecida no

Brasil, da formação de uma Pátria Grande. No livro

lançado em 1986, América Latina: a Pátria Grande,

retrata o subdesenvolvimento latino-americano,

oriundo de nosso passado colonial, mas não só.

Aparecem ali as consequências dos golpes

militares, patrocinados especialmente pelo imperi-

alismo estadunidense, que tentava interceptar por

completo qualquer possibilidade de soberania de

nosso continente. Logo no primeiro bloco do livro

aparece o tema: “A América Latina existe?”, ensaio

onde ele explica a uniformidade sem unidade do

continente e seus antagonismos essenciais.

A expressão Pátria Grande remete ao

sonho bolivariano – que vem da importante figura

histórica de Simon Bolívar, o Libertador – da

formação de uma pátria integrada por todos os

povos que lutavam contra o jugo colonialista que

imperava em nosso continente. Esse

desconhecimento no Brasil sobre o tema da Pátria

Grande e do papel de Simon Bolívar foi fruto –

especialmente no pós golpe de 1964 – de uma

postura de colocar o Brasil de costas para a

América Latina, condição sine qua non para o

isolamento das forças progressistas e

26 | S o b r e o ó b v i o

revolucionárias que aqui se acumulavam e que, na

união com os povos hermanos, poderia ter trazido

no contexto da chamada Guerra Fria, uma ruptura

inevitável com os regimes imperialistas dos

Estados Unidos e da Europa Ocidental, à época.

Darcy Ribeiro, em seu retorno do exílio, resgata

este tema, elucidando também – e apresentando da

melhor forma possível – o autor brasileiro Manuel

Bomfim (1868-1932), que ele “descobriu” que

existia como grande pensador das coisas do Brasil,

no exílio, numa biblioteca no Uruguai! Ou seja,

outro grande nome desconhecido ou pouco

valorizado em sua própria terra. Nesse sentido, o

principal livro de Manuel Bomfim, pelo qual

encantou-se foi América Latina: males de origem,

publicado originalmente em março de 1903.

Gilberto Felisberto Vasconcellos,9 grande

conhecedor da vida e obra de Darcy Ribeiro,

defende que o autor é um pensador brasileiro que

pode ser considerado o ponto de ligação da

América Latina, pois escreveu sobre todos os

países latino-americanos.10 Seu exílio e o interesse

germinal em entender a formação do povo brasi-

leiro, a partir de sua experiência com os indígenas,

o teria levado a isso: “De 1964 a 1972 [Darcy] viveu

9 Outro grande pensador brasileiro, que estuda e conhece o nosso folclore como ninguém e também é daqueles intelectuais que não pode ser simplesmente classificado

em um único escaninho das ciências sociais. É jornalista, escritor, sociólogo e muito mais. É, ainda, professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. 10 Cf. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. Darcy Ribeiro: a razão iracunda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.

Darcy Ribeiro | 27

o exílio intelectual mais fecundo na história das

ciências sociais, teve no entanto péssima recepção

no meio acadêmico por ter rompido com a cabeça

colonizada do intelectual brasileiro”11 Essa

diferença de Darcy Ribeiro, em relação aos pensa-

dores que não rompiam com essa condição de

submissão intelectual ao que vinha acriticamente

de fora do país, é seu bem e seu mal. Valoroso pela

atitude corajosa, foi autor perseguido, sobre quem

o Brasil silenciou. Em seu livro, Darcy Ribeiro: a

razão iracunda, Vasconcellos conta que, aos 27

anos, editorialista na Folha de São Paulo, ouviu de

Claudio Abramo: “Você nunca vai entender o Brasil

se não conversar com Darcy”. Mais ou menos na

mesma época o grande cineasta brasileiro Glauber

Rocha – outro herege valoroso praticamente

desconhecido das gerações atuais – deu o mesmo

aviso a Vasconcellos: “Você precisa procurar o

Darcy para entender o que é a colonização”.12

A originalidade de Darcy Ribeiro está na

totalidade de sua produção teórica que, após sua

formação na Escola de Sociologia e Política de São

Paulo, foi inicialmente impulsionada pelo trabalho

de etnólogo, que o levou a viver em meio aos índios

por longos dez anos. Essa experiência o marcou

profundamente. Ele queria um retrato do Brasil de

corpo inteiro. Percebeu que a questão não era

apenas entender os índios, mas entender a

formação do povo brasileiro como um todo. E a

pergunta que o moveu intelectual e politicamente,

11 VASCONCELLOS, op.cit., p.16. 12 VASCONCELLOS, op.cit., p.15.

28 | S o b r e o ó b v i o

especialmente após a derrota sofrida com o golpe

militar, foi: Por que mais uma vez a classe

dominante vencia? Por que o Brasil não tinha dado

certo?13 Aliás, sem passarmos despercebidos pela

impressionante atualidade desta pergunta, cumpre

destacar que foi no exílio no Peru que ele se

colocou a escrever o livro ao qual se dedicaria ao

longo de 30 anos e que resultou, antes de sua

publicação definitiva em 1995, a um conjunto de

mais de 2 mil páginas escritas, publicadas em

cinco impressionantes livros do autor, a saber:

1968: o processo civilizatório – etapas da evolução

sociocultural; As Américas e a civilização; 1971: o

dilema da América Latina – estruturas de poder e

forças insurgentes; 1972: os brasileiros – teoria do

Brasil e Os índios e a civilização. A partir deste

último livro, ele edita uma Suma etnológica

brasileira, na coleção Antropologia da Civilização.

Tudo isso porque o autor não ficou satisfeito com a

primeira versão de 400 páginas (iniciado no Peru

em 1964) do livro, já citado, que depois veio a ser

conhecido como O povo brasileiro, de 1995.

É possível imaginar o cuidado investigativo

e as minúcias de desenvolvimento etnográfico e

histórico do autor para poder chegar à origina-

lidade de sua tese? Na primeira versão, em 1964,

ele sentiu que faltava uma teoria de base empírica

das classes sociais, no mundo brasileiro e latino-

americano. E que faltava também uma tipologia

das formas de exercício do poder e de militância

13 Cf. RIBEIRO, op.cit., 2015.

Darcy Ribeiro | 29

política, fosse conservadora, reordenadora ou

insurgente. E, finalmente, que faltava ainda uma

teoria da cultura, capaz de dar conta da realidade

brasileira e latino-americana, mobilizando cons-

ciências para movimentos profundos de

reordenação social. E tudo isso, ao mesmo tempo

em que se dedicava ardentemente à pesquisa,

semeando universidades e fazendo projetos de

intervenção prático-política em variados países do

continente. Haja fôlego e energia! E, durante

décadas, esse precioso brasileiro ficou renegado ao

esquecimento da historiografia brasileira? Rene-

gado nos currículos dos cursos da universidade

brasileira? Francamente, resgatá-lo e colocá-lo na

ordem do dia, é missão número um de qualquer

pessoa que se preocupe de fato com os destinos da

vida nacional.

A tese originalíssima decorrente desse

esforço é, em resumo apertado, a seguinte: os

brasileiros se sabem, se sentem e se comportam

como uma só gente. E por isso são uma etnia nova:

o povo brasileiro. Uma entidade nacional distinta

de quantas haja, que fala uma mesma língua, só

diferenciada por sotaques regionais. Mais que uma

simples etnia, o Brasil seria uma etnia nacional,

um povo-nação, assentado num território próprio,

enquadrado dentro de um mesmo Estado, unitário,

para nele viver seu destino. E mudá-lo, se

conseguir. No entanto, o autor alerta que isso não

deve cegar-nos para disparidades, contradições,

antagonismos que subsistam. Defende que, para o

povo brasileiro, não houve outra alternativa do que

30 | S o b r e o ó b v i o

fundir-se numa única etnia, forçada pela

aniquilação quase que completa de cada etnia

anteriormente originada (seja índia, negra

transplantada, branca transplantada). Para

sobreviver, essas etnias se misturaram irreme-

diavelmente. Sob pena de extermínio completo!

Teria ocorrido justamente o contrário no restante

da América espanhola, que resultou – em sua

grande maioria – numa sociedade multiétnica,

dilacerada também, mas pela oposição de

componentes diferenciados e imiscíveis. Mas ele

adverte: então teriam sumido os signos da múltipla

ancestralidade do povo brasileiro? Não! Sobrevi-

veram na fisionomia somática e no espírito dos

brasileiros, mas não se diferenciaram em

antagônicas minorias raciais, culturais ou regio-

nais. No caso da escravidão, por exemplo, ela foi

tão longa que não havia alternativa: não tinham

como preservar-se isoladamente e se reproduzir.

Nesse sentido, as únicas microetnias tribais que

sobreviveram como ilhas, ficaram cercadas pela

polução brasileira e já não podem afetar a

macroetnia. Enfim, Darcy defende que o povo

brasileiro é um povo novo, um novo modelo de

estruturação societária, fundada miseravelmente

num tipo renovado de escravismo e numa servidão

continuada ao mercado mundial. O Brasil emergiu,

portanto, como um “renovo mutante”, remarcado

de características próprias, mas atado

genesicamente à matriz portuguesa.

Sem condições de desdobrar toda a tese de

Darcy Ribeiro aqui, e correndo o risco calculado de

Darcy Ribeiro | 31

ser imprecisa nas mediações necessárias, resta

indicar que esses diversos modos rústicos de ser

dos brasileiros, construídos historicamente, com

exploração continuada e sangue, permitem

distingui-los hoje como sertanejos, caboclos,

crioulos, caipiras, gaúchos, além é claro de ítalo-

brasileiros, teuto-brasileiros e nipo-brasileiros. O

povo brasileiro teria sido, enfim, resultado de

diversos implantes coloniais, viabilizados pela

integração forçada, através de lutas cruentas,

levado a cabo pelas velhas classes dirigentes

brasileiras num processo continuado, violento e

deliberado de supressão de toda identidade étnica

discrepante.

A obra deste autor ainda precisa ser

apreendida, ensinada e repisada para as gerações

contemporâneas. Daí a importância da iniciativa

da Editora Lutas Anticapital em publicar esse livro

de bolso que fará toda a diferença para o

aprendizado sobre a realidade brasileira e latino-

americana, que o generoso Darcy Ribeiro dedicou a

vida para construir e divulgar.

Santo André, 23 de janeiro de 2019

Angélica Lovatto

Professora do Departamento de Ciências

Políticas e Econômicas da Faculdade de

Filosofia e Ciências da UNESP (Marília).

Coordenadora do Grupo de Pesquisa

(CNPq) “Pensa-mento político brasileiro e

latino-americano”.

E-mail: [email protected].

32 | S o b r e o ó b v i o

Darcy Ribeiro | 33

Sobre o óbvio

Darcy Ribeiro

Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os

cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio de-

les – nosso negócio – é lidar com o óbvio. Aparen-

temente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de

forma tão recôndita e disfarçada que se precisa

desta categoria de gente – os cientistas – para ir

tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a

obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é

que parece um jogo sem fim. De fato, só consegui-

mos desmascarar uma obviedade para descobrir

outras, mais óbvias ainda.

Para começar, antes de entrar na obvieda-

de educacional – que é nosso tema – vejamos al-

gumas outras obviedades. É óbvio, por exemplo,

que todo santo dia o sol nasce, se levanta, dá sua

volta pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem

que isto não é verdade. Mas foi preciso muita astú-

cia e gana para mostrar que a aurora e o crepúscu-

lo são tretas de Deus. Não é assim? Gerações de

sábios passaram por sacrifícios, recordados por

todos, porque disseram que Deus estava nos enga-

nando com aquele espetáculo diário. Demonstrar

que a coisa não era como parecia, além de muito

difícil, foi penoso, todos sabemos.

Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou

mais óbvia ainda, é que os pobres vivem dos ricos.

34 | S o b r e o ó b v i o

Está na cara? Sem os ricos o que é que seria dos

pobres? Quem é que poderia fazer uma caridade?

Me dá um empreguinho aí! Seria impossível arran-

jar qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí! Sem

rico o mundo estaria incompleto, os pobres estari-

am perdidos. Mas vieram uns Barbados dizendo

que não, e atrapalharam tudo. Tiraram aquela

obviedade e puseram outra oposta no lugar. Aliás,

uma obviedade subversiva.

Uma terceira obviedade que vocês conhe-

cem bem, por ser patente, é que os negros são

inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um

esforço danado para ganhar a vida, mas não as-

cendem como a gente. Sua situação é de uma infe-

rioridade social e cultural tão visível, tão evidente,

que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas.

Não é assim, não. É diferente! Os negros foram

inferiorizados. Foram e continuam sendo postos

nessa posição de inferioridade por tais e quais

razões históricas.

Razões que nada têm a ver com suas capa-

cidades e aptidões inatas mas, sim, tendo que ver

com certos interesses muito concretos.

A quarta obviedade, mais difícil de admitir

– e eu falei das anteriores para vocês se acostuma-

rem com a idéia – a quarta obviedade, é a obvieda-

de doída de que nós, brasileiros, somos um povo

de segunda classe, um povo inferior, chinfrin, va-

gabundo. Mas tá na cara! Basta olhar! Somos 100

anos mais velhos que os estadunidenses, e esta-

mos com meio século de atraso com relação a eles.

A verdade, todos sabemos, é que a colonização da

Darcy Ribeiro | 35

América no Norte começou 100 anos depois da

nossa, mas eles hoje estão muito adiante. Nós,

atrás, trotando na história, trotando na vida. Um

negócio horrível, não é? Durante anos, essa obvie-

dade que foi e continua sendo óbvia para muita

gente nos amargurou. Mas não conseguíamos fugir

dela, ainda não.

A própria ciência, por longo tempo, parecia

existir somente para sustentar essa obviedade. A

Antropologia, minha ciência, por exemplo, por

demasiado tempo não foi mais do que uma doutri-

na racista, sobre a superioridade do homem bran-

co, europeu e cristão, a destinação civilizatória que

pesava sobre seus ombros como um encargo histó-

rico e sagrado. Nem foi menos do que um continu-

ado esforço de erudição para comprovar e demons-

trar que a mistura racial, a mestiçagem, conduzida

a um produto híbrido inferior, produzindo uma

espécie de gente-mula, atrasada e incapaz de pro-

mover o progresso. Os antropólogos, coitados, por

mais de um século estiveram muito preocupados

com isso, e nós, brasileiros, comemos e bebemos

essas tolices deles durante décadas, como a me-

lhor ciência do mundo. O próprio Euclides da Cu-

nha não podia dormir porque dizia que o Brasil ou

progredia ou desaparecia, mas perguntava: como

progredir, com este povo de segunda classe? Dom

Pedro II, imperador dos mulatos brasileiros, sofria

demais nas conversas com seu amigo e afilhado

Gobineau, embaixador da França no Brasil, teórico

europeu competentíssimo da inferioridade dos

pretos e mestiços.

36 | S o b r e o ó b v i o

O mais grave, porém, é que além de ser um

povo mestiço – e, portanto, inferior e inapto para o

progresso – nós somos também um povo tropical.

E tropical não dá! Civilização nos trópicos, não dá!

Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de

mestiços e tropical, outra razão de nossa inferiori-

dade evidente – demonstrada pelo desempenho

histórico medíocre dos brasileiros – além dessas

razões, havia a de sermos católicos, de um catoli-

cismo barroco, não é? Um negócio atrasado, extra-

vagante, de rezar em latim e confessar em portu-

guês.

Pois além disso tudo a nos puxar para

trás, havia outras forças, ainda piores, entre elas,

a nossa ancestralidade portuguesa. Estão vendo

que falta de sorte? Em lugar de avós ingleses, ho-

landeses, gente boa, logo portugueses... Lusitanos!

Está na cara que este país não podia ir para frente,

que este povo não prestava mesmo, que esta nação

estava mesmo condenada: mestiços, tropicais,

católicos e lusitanos é dose para elefante.

Bom, estas são as obviedades com que

convivemos alegre ou sofridamente por muito tem-

po. Nos últimos anos, porém, descobrimos meio

assombrados – descoberta que só se generalizou aí

pelos anos 50, mais ou menos – descobrimos real-

mente ou começamos a atuar como quem sabe,

afinal, que aquela óbvia inferioridade racial inata,

climático-telúrica, asnal-lusitana e católico-

barroca do brasileiro, era como a treta diária do sol

que todo dia faz de conta que nasce e se põe. Haví-

amos descoberto, com mais susto do que alegria,

Darcy Ribeiro | 37

que à luz das novas ciências, nenhuma daquelas

teses se mantinha de pé. Desde então, tornando-se

impossível, a partir delas, explicar confortavelmen-

te todo o nosso atraso, atribuindo-o ao povo, saí-

mos em busca de outros fatores ou culpas que

fossem as causas do nosso fraco desempenho nes-

te mundo.

Nesta indagação – vejam como é ruim

questionar! – acabamos por dar uma virada prodi-

giosa na roleta da ciência. Ela veio revelar que

aquela obviedade de sermos um povo de segunda

classe não podia mesmo se manter, porque escon-

dia uma outra obviedade mais óbvia ainda. Esta

nova verdade nos assustou muito, levamos tempo

para engolir a novidade. Sobretudo nós, bonitos.

Falo da descoberta de que a causa real do atraso

brasileiro, os culpados de nosso subdesenvolvi-

mento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor

parte de nós mesmos: nossa classe dominante e

seus comparsas. Descobrimos também, com susto,

à luz dessa nova obviedade, que realmente não há

país construído mais racionalmente por uma clas-

se dominante do que o nosso. Nem há sociedade

que corresponda tão precisado aos interesses de

sua classe dominante como o Brasil.

Assim é que, desde então, lamentavelmen-

te, já não há como negar dois fatos que ficaram

ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas

qualidades ou defeitos do povo que está a razão do

nosso atraso, mas nas características de nossas

classes dominantes, no seu setor dirigente e, in-

clusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que

38 | S o b r e o ó b v i o

nossa velha classe tem sido altamente capaz na

formulação e na execução de projeto de sociedade

que melhor corresponde a seus interesses. Só que

este projeto para ser implantado e mantido precisa

de um povo faminto, chucro e feio.

Nunca se viu, em outra parte, ricos tão

capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para

sub-julgar o povo faminto no trabalho, como os

nossos senhores empresários, doutores e coman-

dantes. Quase sempre cordiais uns para com os

outros, sempre duros e implacáveis para com su-

balternos, e insaciáveis na apropriação dos frutos

do trabalho alheio. Eles tramam e retramam, há

séculos, a malha estreita dentro da qual cresce,

deformado, o povo brasileiro. Deformado e cons-

trangido e atrasado. E assim é, sabemos agora,

porque só assim a velha classe pode manter, sem

sobressaltos, este tipo de prosperidade de que ela

desfruta, uma prosperidade jamais generalizável

aos que a produzem com o seu trabalho, mas uma

prosperidade sempre suficiente para reproduzir,

geração após geração, a riqueza, a distinção e a

beleza de nossos ricos, suas mulheres e filhos.

Por esta razão, é que a segunda parte des-

ta minha fala será o elogio da classe dominante

brasileira. O que aspiramos, objetivamente, é retra-

tá-la aqui em toda a sua alta competência. Mais

até do que competente, acho que ela é façanhuda,

porque fez coisas tão admiráveis e únicas ao longo

dos século, que merece não apenas nossa admira-

ção, mas também nosso espanto.

Darcy Ribeiro | 39

A primeira evidência a ressaltar é que nos-

sa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil

como uma sociedade de economia extraordinaria-

mente próspera. Por muito tempo se pensou que

éramos e somos um país pobre, no passado e ago-

ra. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade.

Éramos e somos riquíssimos! A renda per capita

dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas

Gerais – eles duravam em média uns cinco anos no

trabalho – mas a renda per capita dos nossos es-

cravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum

trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na

Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da

época – como um escravo trabalhando num enge-

nho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais;

ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante

italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo.

Aqueles empreendimentos foram um sucesso for-

midável. Geraram além de um PIB prodigioso, uma

renda per capita admirável. Então, como agora,

para uso e gozo de nossa sábia classe dominante.

A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil,

se inventou um modelo de economia altamente

próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer,

livre de quaisquer comprometimentos sentimen-

tais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, in-

ventamos e fundamos um sistema social perfeito

para os que estão do lado de cima da vida. Senão,

vejamos. O valor da exportação brasileira no século

XVII foi maior que o da exportação inglesa no

mesmo período. O produto mais nobre da época

era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do

40 | S o b r e o ó b v i o

mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou

várias vezes a quantidade de ouro existente no

mundo. Também, então, reinou para os ricos uma

prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o

produto mais importante do mercado mundial até

1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o mo-

nopólio dele. Nestes três casos, que correspondem

a conjunturas quase seculares, nós tivemos e des-

frutamos uma prosperidade enorme. Depois, por

algumas décadas, a borracha e o cacau deram

também surtos invejáveis de prosperidade que

enriqueceram e dignificaram as camadas proprie-

tárias e dirigentes de diversas regiões. O importan-

te a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no

Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma

economia especialíssima, fundada num sistema de

trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que

ele não consumia – produzir para exportar – permi-

tia gerar uma prosperidade não generosa, ainda

que propensa desde então, a uma redistribuição

preterida.

Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos

estatutos da escravidão, não houve problema. De-

pois, porém, o povo trabalhador começou a dar

trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou

na marra, de que seu reino não era para agora,

que ele verdadeiramente não podia nem precisava

comer hoje. Porém o que ele não come hoje, come-

rá acrescido amanhã. Porque só acumulando ago-

ra, sem nada desperdiçar comendo, se poderá pro-

gredir amanhã e sempre. O povão, hoje como on-

tem, sempre andou muito desconfiado de que ja-

Darcy Ribeiro | 41

mais comerá depois de amanhã o feijão que deixou

de comer anteontem. Mas as classes dominantes e

seus competentes auxiliares, aí estão para conven-

cer a todos – com pesquisas, programas e promo-

ções – de que o importante é exportar, de que é

indispensável e patriótico ter paciência, esperem

um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa

crescer; sem um bolo maior – nos dizem o Delfim lá

de Paris e o daqui – sem um bolo acrescido, este

país estará perdido. É preciso um bolo respeitável,

é indispensável uma poupança ponderável, uma

acumulação milagrosa para que depois se faça,

amanhã, prodigiosamente, a distribuição.

Bem, esta classe dominante promotora da

prosperidade restrita e do progresso contido, reali-

zou verdadeiras façanhas com sua extraordinária

habilidade. A primeira foi a própria Independência

do Brasil, que se deu, de fato, antes de qualquer

outra na América Latina, pois ocorreu no momento

em que Napoleão enxotava a família real de Portu-

gal. Com ela saem de Lisboa 15.000 fâmulos. Ima-

ginem só o que representou isto como empreendi-

mento? Não falo de epopéia de transladar esta

multidão de gentes para além-mar, - afinal, mais

negros se importava todo ano. Falo da invasão do

Brasil por 15.000 pessoas das famílias nobres de

Portugal. Foi como refundar o país, pelo menos o

país dominante.

Com eles nos vinha, de graça, toda aquela

secular sabedoria política lusitana de viver e so-

breviver ao lado dos espanhóis, sem conviver nem

brigar com eles. Toda aquela sagacidade burocráti-

42 | S o b r e o ó b v i o

ca, toda aquela cobiça senhorial com seu espanto-

so apetite de enricar e de mandar. Portugal, em

sua generosidade, nos legava, na hora do declínio,

sua nobreza mais nobre. Aquela cujo luxo já está-

vamos habituados a pagar, para ela aqui continuar

regendo uma sociedade confortável! para si própria

como o fora o velho reino, e até mais próspera.

O resultado imediato desta transladação

da sabedoria classista portuguesa foi a capacidade,

prontamente revelada, pela velha classe dominante

– agora nova e nossa – em episódios fundamentais.

Primeiro o de resguardar a unidade nacional que

foi o seu grande feito. Tanto mais em relação ao

que sucedeu à América Espanhola que, sem-rei-

nem-lei se balcanizou rapidamente. O Brasil, que

estava também dividido em regiões e administra-

ções coloniais igualmente diferenciadas, conse-

guiu, graças a essa sabedoria, preservar sua uni-

dade para surgir ao mundo com as dimensões

gigantescas de que tanto nos orgulhamos hoje.

A outra façanha da velha classe, foi sua

extraordinária capacidade de enfrentar e vencer

todas as revoluções sociais que se desencadearam

no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia

esmagar todos os que reclamavam o alargamento

das bases da sociedade, para que mais gente parti-

cipasse do produto do trabalho e, assim, reafirmar

e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coro-

aram tal feito com outro ainda maior, que foi o de

escrever a história dessas lutas sociais como se

elas fossem motins.

Darcy Ribeiro | 43

Recentemente descobrimos, outra vez as-

sustados – desta vez graças às perquirições de José

Honório – que o Brasil não é tão cordial como que-

reria o nosso querido Sérgio. Durante o período

das revoltas sociais anteriores e seguintes à Inde-

pendência, morreram no Brasil mais de 50 mil

pessoas, inclusive uns sete padres enforcados. O

certo é que nossos 50 mil mortos são muitos mais

mortos do que todos que morreram nas lutas de

independência da América Espanhola, tidas como

das mais cruentas da história. Os nossos, porém,

foram surrupiados da história oficial das lutas

sociais por serem vítimas de meros motins, revol-

tas e levantes e, como tal, não merecem entrar na

crônica historiográfica séria da sabedoria classista.

Além destas grandes façanhas, nossa clas-

se dominante acometeu tarefas gigantescas com

uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de

assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo

admirável, foi a nossa Lei de Terras, aprovada em

1850, quer dizer, 10 anos antes da América do

Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá

deles.

A lei brasileira não só foi anterior, como

muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira

na diferença de conteúdo social com respeito à

legislação da América do Norte, bem demonstrativo

da capacidade da nossa classe dominante para

formular e instituir a racionalidade que mais con-

vém à imposição de seus altos interesses. A classe

dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um

juízo muito simples: a forma normal de obtenção

44 | S o b r e o ó b v i o

da prioridade é a compra. Se você quer ser proprie-

tário, deve comprar suas terras do Estado ou de

quem quer que seja, que as possua a título legíti-

mo. Comprar! É certo que estabelece generosamen-

te uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se

você puder provar, diante do escrivão competente,

que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos,

um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o

registre como de sua propriedade legítima. Como

nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase

ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta

via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou

e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da

civilização, foram competentemente apropriadas

pelos antigos proprietários que, aquinhoados, pu-

deram fazer de seus filhos e netos outros tantos

fazendeiros latifundiários.

Foi assim, brilhantemente, que a nossa

classe dominante conseguiu duas coisas básicas:

se assegurou a propriedade monopolística da terra

para suas empresas agrárias, e assegurou que a

população trabalharia docilmente para ela, porque

só podia sair de uma fazenda para cair em outra

fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum con-

seguiria terras para ocupar e fazer suas pelo traba-

lho.

A classe dominante norte-americana, me-

nos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu

que a forma normal de obtenção de propriedade

rural era a posse e a ocupação das terras por quem

fosse para o Oeste – como se vê nos filmes de faro-

este. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e

Darcy Ribeiro | 45

tantos acres e ali se instalar com a família, porque

só o fato de morar e trabalhar a terra fazia proprie-

dade sua. O resultado foi que lá multiplicou um

imenso sistema de pequenas e médias proprieda-

des que criou e generalizou para milhões de mo-

destos granjeiros uma prosperidade geral. Geral

mas medíocre, porque trabalhadas por seus pró-

prios donos, sem nenhuma possibilidade de edifi-

car Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as

nossas. É notório que aqui foram melhor preserva-

dos os interesses da classe dominante que graças à

sua previdência, pôde viver e legar com prosperi-

dade e exuberância. Em conseqüência, os ricos

daqui vivem uma vida muito mais rica do que os

ricos de lá, comendo melhor, servidos por uma

famulagem mais ampla e carinhosa. Como se vê,

tudo foi feito com muito mais sabedoria, prevendo-

se até a invenção da mucama que nos amamenta-

ria de leite e de ternura.

O alto estilo da classe dominante brasileira

só se revela, porém, em toda a sua astúcia na

questão da escravidão. A Revolução Industrial que

vinha desabrochando trazia como novidade maior

tornar inútil, obsoleto, o trabalho muscular como

fonte energética. A civilização já não precisava

mais se basear no músculo de asnos e de homens.

Agora tinha o carvão, que podia queimar para dar

energia, depois viriam a eletricidade e, mais tarde,

o petróleo. Isso é o que a Revolução Industrial deu

ao mundo. Mas os senhores brasileiros, sabiamen-

te, ponderaram: - Não! Não é possível, com tanto

negro à toa aqui e na África, podendo trabalhar

46 | S o b r e o ó b v i o

para nós, e assim, ser catequizado e salvo, seria

uma maldade trocá-los por carvão e petróleo. Dito

e feito, o Brasil conseguiu estender tanto o regime

escravocrata, que foi o último país do mundo a

abolir a escravidão.

O mais assinalável, porém, como demons-

tração de agudeza senhorial, é que ao extingui-la, o

fizemos mais sabiamente que qualquer outro país.

Primeiro, libertamos os donos da onerosa obriga-

ção de alimentar os filhos dos escravos que seriam

livres. Hoje festejamos este feito com a Lei do Ven-

tre-Livre. Depois, libertamos os mesmos donos do

encargo inútil de sustentar os negros velhos que

sobreviveram ao desgaste no trabalho, comemo-

rando também este feito como uma conquista li-

bertária. Como se vê, estamos diante de uma clas-

se dirigente armada de uma sabedoria atroz.

Com a própria industrialização, no passa-

do e no presente, conseguimos fazer treta. Nisto

parecemos deuses gregos. A treta, no caso, consis-

tiu em subverter sua propensão natural, para não

desnaturar a sociedade que a acolhia. A industria-

lização, que é sabidamente um processo de trans-

formação da sociedade de caráter libertário, entre

nós se converteu num mecanismo de recoloniza-

ção. Primeiro, com as empresas inglesas, depois

com as yankees e, finalmente, com as ditas multi-

nacionais. O certo é que o processo de industriali-

zação à brasileira consistiu em transformar a clas-

se dominante nacional de uma representação colo-

nial aqui sediada, numa classe dominante gerenci-

al, cuja função agora é recolonizar país, através

Darcy Ribeiro | 47

das multinacionais. Isto é também uma façanha

formidável, que se está levando a cabo enorme

elegância e extraordinária eficácia.

A eficácia total, entretanto, eficácia diante

da qual devemos nos declinar – aquela que é real-

mente o grande feito que nós, brasileiros, podemos

ostentar diante do mundo como único – é a faça-

nha educacional da nossa classe dominante. Esta

é realmente extraordinária! E por isto é que eu não

concordo com aqueles que, olhando a educação

desde outra perspectiva, falam de fracasso brasilei-

ro no esforço por universalizar o ensino. Eu acho

que não houve fracasso algum nesta matéria,

mesmo porque o principal requisito de sobrevivên-

cia e de hegemonia da classe dominante que temos

era precisamente manter o povo chucro. Um povo

chucro, neste mundo que generaliza tonta e ale-

gremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal.

Mantido ignorante, ele não estará capacitado a

eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de

populismo demagógico. Perpetua-se, em conse-

qüência, a sábia tutela que a elite educada, ilus-

trada, elegante, bonita, exerce paternalmente sobre

as massas ignoradas. Tutela cada vez mais neces-

sária porque, com o progresso das comunicações,

aumentam dia-a-dia os riscos do nosso povo se ver

atraído ao engodo comunista ou fascista, ou traba-

lhista, ou sindical, ou outro. Assim se vê o equívo-

co em que recai quem trata como fracasso do Bra-

sil em educar seu povo o que de fato foi uma faça-

nha. Pedro II, por exemplo, nosso preclaro impera-

dor, nunca se equivocou a respeito. Nos dias que a

48 | S o b r e o ó b v i o

Argentina, o Chile e o Uruguai generalizavam a

educação primária dentro do espírito de formar

cidadãos para edificar a nação, naquelas eras,

nosso sábio Pedro criava duas únicas instituições

educacionais: o Instituto de Surdos e Mudos, e o

Instituto Imperial dos Cegos. Aliás, diga-se de pas-

sagem, o segundo deles, mais tarde, por mãos de

outro Pedro monárquico – o Calmon – passou a

servir de sede – é um edifício muito bonito – à rei-

toria da então chamada Universidade do Brasil.

Antes tiraram os cegos de lá, naturalmente.

Duas são as vias históricas de populariza-

ção do ensino elementar. Primeiro, a luterana, que

se dá com a conversão da leitura da Bíblia no su-

premo ato de fé. Disto resulta um tipo de educação

comunitária em que cada população local, munici-

pal, trabalhada pela Reforma, faz da igreja sua

escola e ensina ali a rezar, ou seja, a ler. Esta é a

educação que generalizou na Alemanha e, mais

tarde, nos Estados Unidos, como educação comu-

nitária.

A outra forma de generalização do ensino

primário foi a cívica, napoleônica, promovida pelo

Estado, fruto da Revolução Francesa, que se dis-

pôs a alfabetizar os franceses para deles fazer ci-

dadãos. Aqueles franceses todos, divididos em

bretões, flamengos, occipitães, etc., aquela quanti-

dade de gente provinciana, falando dialetos atra-

vancados, não agravada a Napoleão. Ele inventou,

então, esta coisa formidavelmente simples, que é a

escola pública regida por uma professorinha pri-

mária, preparada num internato, para a tarefa de

Darcy Ribeiro | 49

formar cidadãos. Foi ela, com o giz e o quadro-

negro, que desasnou os franceses, e desasnando,

os faz cidadãos, ao mesmo tempo em que generali-

zava a educação.

Como se vê, temos duas formas básicas de

promover a educação popular: uma, religiosa, que

é comunitária, municipal; outra, cívica, que é esta-

tal e, em conseqüência, federal. O Brasil, com os

dois pedros imperiais, e todos os presidentes civis

e todos os governantes militares e que os sucede-

ram de então até hoje, apesar de católico, adota

forma comunitária luterana. Ou seja, entrega a

educação fundamental exatamente aos menos

interessados em educar o povo, ao governo muni-

cipal e ao estadual.

Pois bem, prestem atenção, e se edifiquem

com a sabedoria que os nossos maiores revelam

neste passo: ao entregar a educação primária exa-

tamente àqueles que não queriam educar ninguém

– porque achavam uma inutilidade ensinar o povo

a ler, escrever e contar – ao entregar exatamente a

eles – ao prefeito e ao governador – a tarefa de ge-

neralizar a educação primária, a condenavam ao

fracasso, tudo isso sem admitir, jamais, que seu

imposto era precisamente este.

O professor Oracy Nogueira nos conta que

a nobre vila de Itapetininga, ilustre cidade de São

Paulo, em meados do século passado, fez um pedi-

do veemente a Pedro Dois: queria uma escola de

primeiras letras. E a queria com fervor, porque ali

– argumentava – havia vários homens bons, paulis-

tas de quatro e até de quarenta costados, e ne-

50 | S o b r e o ó b v i o

nhum deles podia servir na Câmara Municipal,

porque não sabiam assinar o nome. Queria uma

escola de alfabetização para fazer vereador, não

uma escola para ensinar todo o povo a ler, escrever

e contar. Vejam a diferença que há entre a nossa

orientação educacional e as outras tradições. Aqui,

sabiamente, uma vila quer e pede escola, mas não

quer rezar, nem democratizar, o que deseja é for-

mar a sua liderança política, é capacitar a sua

classe dominante sem nenhuma idéia de generali-

zar a educação.

Como não admirar a classe desta nossa

velha classe que no caso da terra, adota uma solu-

ção oposta à granjeira norte-americana; e no caso

da educação, adota exatamente a solução comuni-

tária yankee... Varia nos dois casos para não vari-

ar. Isto é, para continuar atendendo aos seus dois

interesses cruciais: a apropriação latifundiária da

terra e a santa ignorância popular.

Mas a amplitude de critérios não pára aí,

visto que para o ensino superior se fez o contrário.

A escola superior, e não a primária, é que foi estru-

turada no Brasil segundo uma orientação napoleô-

nica. Como os franceses, criamos uma universida-

de que não era universidade, mas um conglomera-

do de escolas autárquicas. Napoleão precisou fazer

isto, talvez, para liquidar a vetustez da universida-

de medieval, porque ela estava dominada, conta-

minada, impregnada da teologia de então. Era

preciso romper aquele quadro medieval para pro-

gredir. Para isto, a burguesia criou as grandes

escolas nacionais, formadoras de profissionais,

Darcy Ribeiro | 51

advogados, médicos, engenheiros, assépticos de

qualquer teologismo.

O Brasil não tinha tido uma universidade.

Começa pelas grandes escolas. Recorde-se que as

dezenas de universidades do mundo hispano-

americano foram criadas a partir de 1.550, for-

mando ( ) . No Brasil, quem tinha dinheiro para

educar o filho em nível superior, mandava-o para

Coimbra. Como eram poucos os abastados, em

todo o período colonial, apenas conseguimos for-

mar uns 2.800 bacharéis e médicos. Isto significa

que, por ocasião da Independência, devia haver, se

tanto, uns 2.000 brasileiros com formação superi-

or, aspirando a cargos e mordomias. Havia, por

conseqüência, um vasto lugar para aqueles 15.000

fâmulos reais que caíram sobre o Rio de Janeiro, a

Bahia e o Recife, convertendo-se, rapidamente, no

setor hegemônico da classe dominante, classe diri-

gente, do país, logo aquinhoada com sesmarias

latifundiárias e vasta escravista.

O Brasil cria as suas primeiras escolas

depois do desembarque da Corte. E as cria para

formar um famulário local. Mas as organiza se-

gundo o modelo napoleônico, federal e não munici-

palmente. Elas nascem como criações do governo

central, estruturadas em escolas superiores autár-

quicas que não queriam ser aglutinadas em uni-

versidades. Nossa primeira universidade, só se ( )

em 1.923. E se cria por decreto, por uma razão

muito importante, ainda que extra-educacional: o

rei da Bélgica visitava o Brasil, e o Itamarati devia

dar a ele o título de Doutor Honoris causa. Não

52 | S o b r e o ó b v i o

podendo honrar ao reizinho como o protocolo re-

comendava, porque não tínhamos uma universida-

de, criou-se para isto a Universidade do Brasil.

Assim, Leopoldo se fez doutor aqui também. Assim

foi criada a primeira universidade brasileira. Uma

universidade que, desde então, se vem estruturan-

do e desestruturando, como se sabe.

Mas o modelo se multiplicou prodigiosa-

mente como os peixes do Senhor. Hoje contamos

com mais centena de universidade e milhares de

cursos superiores onde já estuda mais de um mi-

lhão de jovens. São tantos, que já há quem diga

que nossas universidades enfrentam uma verda-

deira crise de crescimento, asseverando mesmo

que seu problema decorre de haver matriculado

gente demais. Teriam elas crescido com tanta de-

masia que, agora, não podendo digerir o que têm

na barriga, jibóiam. Eu acho que o conceito de

crise-de-crescimento não expressa bem o fenôme-

no. Nosso caso é outro. O que ocorre com a univer-

sidade no Brasil é mais ou menos o que sucederia

com uma vaca se, quando bezerra, ela fosse encer-

rada numa jaula pequenina. A vaca mesmo está

crescendo naturalmente, mas a jaula de ferro aí

está, contendo, constringindo. Então o que cresce é

um bicho raro, estranho. Este bicho nunca visto é

o produto, é o fruto, é a flor acadêmica dessa clas-

se dominante sábia, preclara, admirável que te-

mos, que nos serve e a que servimos patriotica-

mente contritos. Cremos haver demonstrado até

aqui que no campo da educação é que melhor se

concretiza a sabedoria das nossas classes domi-

Darcy Ribeiro | 53

nantes e sua extraordinária astúcia na defesa de

seus interesses. De fato, uma minoria tão insignifi-

cante e tão claramente voltada contra os interesses

da maioria, só pode sobreviver e prosperar contan-

do com enorme sagacidade, enorme sabedoria, que

é preciso compreender e proclamar.

Sua última façanha neste terreno, sobre a

qual, aliás muito se comenta – às vezes, até de

forma negativa – foi a mobralização da nossa edu-

cação elementar. A nosso ver, o MOBRAL é uma

obra maravilhosa de previdência e sabedoria. Com

efeito, é a solução perfeita. Quem se ocupe em

pensar um minuto que seja sobre o tema, verá que

é óbvio que quem acaba com o analfabetismo adul-

to é a morte. Esta é a solução natural. Não se pre-

cisa matar ninguém, não se assustem! Quem mata

é a própria vida, que traz em si o germe da morte.

Todos sabem que a maior parte dos analfabetos

está concentrada nas camadas mais velhas e mais

pobres da população. Sabe-se, também, que esse

pessoal vive pouco, porque come pouco. Sendo

assim, basta esperar alguns anos e se acaba com o

analfabetismo. Mas só se acaba com a condição de

que não se produzem novos analfabetos. Para tan-

to, tem-se que dar prioridade total, federal, à não-

produção de analfabetos. Pegar, caçar (com e cedi-

lha) todos os meninos de sete anos para matricular

na escola primária, aos cuidados de professores

capazes e devotados, a fim de não mais produzir

analfabetos. Porém, se se escolarizasse a criançada

toda, e se o sistema continuasse matando os velhi-

nhos analfabetos com que contamos, aí pelo ano

54 | S o b r e o ó b v i o

2.000 não teríamos mais um só analfabeto. Perce-

bem agora onde está o nó da questão?

Graças ao MOBRAL estamos salvos! Sem

ele a classe dominante estaria talvez perdida. Ima-

gine-se o ano 2.000, sem analfabetos no Brasil!

Seria um absurdo! Não, graças à previdência de

criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza,

de não gastar os escassos recursos destinados à

educação onde se deveria gastar, de não investir

onde se deveria investir – se o propósito fosse gene-

ralizar a educação primária – podemos contar com

a garantia plena de que manteremos crescente o

número absoluto de analfabetos de nosso país.

Também edificante, no caso do MOBRAL, é

ele se haver convertido numa das maiores editoras

do mundo. Com efeito, a tiragem de suas edições

se conta por centenas de milhões. É espantoso,

mas verdadeiro: neste nosso Brasil, se não são os

analfabetos os que mais lêem, é a eles que se des-

tina a maior parte dos livros, folhetins, livrinhos

coloridos que se publica oficialmente, maravilhoso,

em quantidades astronômicas. Pode-se mesmo

afirmar que o maior empreendimento eleitoral –

eleitoral, não editorial – do país é o MOBRAL, como

instituição educativa e como co-editora.

Naturalmente que há nisto implicações.

Uma delas, a originalidade ou o contraste que fa-

remos no ano 2.000. Então, todas as nações orga-

nizadas para si mesma s e que vivem como socie-

dades autônomas, estarão levando a quase totali-

dade da sua juventude às escolas de nível superi-

or. Neste momento, nos estados Unidos, mais de

Darcy Ribeiro | 55

70% dos jovens já estão ingressando nos cursos

universitários. Cuba, mesmo, - os cubanos são

muito pretenciosos – está prometendo matricular

toda a sua juventude nas universidades. Primeiro,

eles tentaram generalizar o ensino primário. Con-

seguiram. Generalizaram, depois, o secundário.

Agora, ameaçam universalizar o superior. Parece

que já no próximo ano [1978] todos os jovens que

terminam os seis anos de secundário entrarão para

a universidade. É claro para isso, a universidade

teve de ser totalmente transformada. Desenclaus-

trada.

Meditem um pouco sobre este tema e

imaginem o efeito turístico que terá, num mundo

em que todos tenham feito curso superior, um

Brasil com milhões de analfabetos... Pode ser um

negócio muito interessante, não é? Sobretudo se

eles continuarem com essas caras tristonhas que

tem, com esse ar subnutrito que exibem e que não

existirá mais neste mundo. O Brasil poderá então

ser de fato, o país do turismo, o único lugar do

mundo onde se poderá ver coisas assim, de outros

tempos, coisas raras, fenomenais, extravagantes.

Em conseqüência, a crise educacional do Brasil da

qual tanto se fala, não é uma crise, é um

programa. Um programa em curso, cujos frutos,

amanhã, falarão por si mesmos.

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Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em

agroecologia, integrado ao Ensino Médio.

Parceria UNESP – Centro Paula Souza – PRONERA.

Escola de Educação Popular Rosa Luxemburgo

(MST – Iaras – SP)