Sobre a Tradução Haroldiana Da Ilíada - Tida Carvalho
-
Upload
hudson-rabelo -
Category
Documents
-
view
214 -
download
0
description
Transcript of Sobre a Tradução Haroldiana Da Ilíada - Tida Carvalho
ZUNÁI - Revista de poesia & debates
[ retornar - outros textos - edições anteriores - home ]
HAROLDO DE CAMPOS: TRADUTTORE, TRADITORE?
SOBRE A TRADUÇÃO DA ILÍADA
Tida Carvalho
Desde a infância do mundo Homero educa-o...
In: Xenofanias, tradução de Trajano Vieira.
Muitas línguas se entre-escutam
In: Ilíada, Canto II, V. 804. Tradução de Haroldo de Campos
Segundo Haroldo de Campos, “Homero não decai; a Ilíada não tem
recheio. Oscila entre o pico de Agulhas Negras e o Himalaia”. Para
traduzi-la, Haroldo opera com uma prática tradutória como ato de
escritura, que seria, paradoxalmente, um ato de violência (luta) e
liberdade (jogo livre): “(...) um exercício de tradução como criação,
uma luta verbal, livre e lúdica, no “ring” traçado pelas balizas literais do
texto original”[1] .
Haveria também a noção de “fidelidade ao espírito”, que se assemelha
ao conceito benjaminiano de tradução, analisado por Haroldo
anteriormente como “preso à clausura metafísica”: “ um esforço paralelo
de reinvenção minuciosa (...) a tradução se torna uma espécie de jogo
livre e rigoroso ao mesmo tempo, não é a literalidade do texto que
conta, permanece a noção de reação e de luta para reatualizar a voz do
texto de partida no texto de chegada.
Podemos pensar também que, dentro de uma perspectiva romântica, a
tradução parece ser impulsionada por um desejo de substituir o criador
na criação. Esse desejo é, em última instância, responsável por uma
possível rejeição da tradução de Haroldo de Campos, alguns leitores não
encontram a Ilíada de Homero, mas a Ilíada de Haroldo de Campos.
Para Trajano Vieira a tradução de Haroldo é a mais fiel, entre as que ele
conhece, à complexidade formal da Ilíada. Ressalta que aspectos da
oralidade e estilísticos da obra são traços que ressurgem de uma
perspectiva paramórfica, e não isomórfica, isto é, são reinventados de
modo original, e não reproduzidos mecanicamente. Segundo ele, “o
apuradíssimo labor verbal de Homero encontra, na tradução de Haroldo
de Campos, correspondências surpreendentes, que fazem dela um
marco não só da literatura de língua portuguesa”[2] . Seria um trabalho
homérico e hercúleo feito por Haroldo de Campos.
Evocando um traço relativo à personalidade do poeta-tradutor, pode-se
dizer que a natureza exuberante e solar de Haroldo de Campos cai como
uma luva no universo fosfórico da épica homérica.
No idioma grego, as palavras compostas são de uso frequente, e, desse
mecanismo de construção vocabular, Homero se utiliza para criar jóias
poéticas, como o epíteto de Aurora: rodokáktylos, “dedirrósea, como o
verteu Odorico Mendes. No segundo canto da Ilíada, Haroldo de Campos
oferece-nos um rol de palavras-montagem que faz jus a Homero e aos
escritores de sua predileção (como Joyce, Pound, Maiákovski, por
exemplo). Algumas: equinoforme, asas-frases, onirofúnebre, doma-
corcéis, anjo-de-Zeus, toda-súplice, neovindos, arrasa-urbes, mil-
corcéis, pés-de-brisa, rápido-fluente, folhidensa, entre tantos outros.
Podemos dizer que nessa incursão de Haroldo de Campos na seara
grega, através de sua linguagem, o passado volta a falar do futuro, uma
das formas mais fascinantes de ampliarmos o que
denominamos conhecimento. Até a consciência mitológica não se
fundamenta numa hipotética religiosidade visionária do poeta, mas no
caráter transtemporal do repertório que ele transmite. Busca-se o atual
no antigo e o antigo no atual, trabalho de Janus empreendido por
Haroldo de Campos em sua tradução e pelos que a leem.
A imagem de Babel é um pilar para se pensar a tradução conforme
Walter Benjamin e Haroldo de Campos a praticam. O tradutor vence a
melancolia da impossibilidade de recuperar a língua adâmica ou o texto
original e se transforma em criador.
Haroldo de Campos praticou e teorizou sobre esse tipo de tradução
criativa, que denominou “transcriação”. O prefixo “trans” sublinha a
descentralização da ideia de origem, entendendo a tradução como
travessia, mudança, transformação. Traduziu a Ilíada, cantos da Divina
Comédia, trechos do Fausto de Goethe, entre outros textos de grande
complexidade. Traduzir a forma, o indizível, a possibilidade de efeito
estético, esse é o caminho de Haroldo. Sua hýbris é não se sentir punido
e navegar, com vontade e determinação, cada vez mais para o extremo
da confusão babélica, quebrando hierarquias, descentralizando a origem,
alegrando-se com a multiplicação das línguas.
Numa de suas últimas entrevistas, dada a Cláudio Daniel, também
poeta, organizador de uma coletânea de poetas neobarrocos, Jardim de
camaleões, assim Haroldo fala de sua tradução daIlíada:
Haroldo: O projeto de “trans-helenizar” a Ilíada homérica foi
insuflado pelo constante entusiasmo de Ezra Pound e de James
Joyce pelo rapsodo grego. Mas o foi também pela opinião de
Auerbach, para quem as duas matrizes poéticas do Ocidente são
a obra de Homero e a Bíblia hebraica. Um constante e atento
instigador, durante o curso do trabalho (dez anos, como a Guerra
de Tróia...) foi Trajano Vieira, jovem helenista, professor de grego
da Unicamp e tradutor (excelente) do trágico clássico da
Hélade[3] .
Continuando a discussão sobre o trabalho da tradução, Haroldo de
Campos afirma ser possível transformar o original na tradução de sua
tradução[4] . O objeto é estético e não está mais perdido: ele está em
plenitude em sua recriação sensível. O jogo da tradução aumenta sua
tensão com a mescla do literal e da criação. Pensemos no fragmento
“multitudinous seas”, de Galáxias,em que a viagem na escrita se
transforma em uma viagem pelos mares homéricos e vice-versa. O texto
começa com uma citação de Shakespeare: multitudinous seas
incarnadine (Macbeth, Ato II, cena II). A citação é retirada de uma cena
em que Macbeth percebe que nem toda a água do oceano seria capaz de
tirar de suas mãos o sangue da morte que praticou e que, ao contrário,
suas mãos tornariam o mar, verde, vermelho (“Will all great Neptune's
ocean wash this blood clean from my hand? No, this my hand will rather
the multitudinous seas incarnadine, making the green one red”). O
fragmento continua: multitudinous seas incarnadine o oceano oco e
regougo a proa abrindo um sulco a popa deixando um sulco como uma
lavra de lazúli uma cicatriz contínua na polpa violeta do oceano se
abrindo como uma vulva violeta a turva vulva violeta do oceano oinopa
ponton cor de vinho ou cor de ferrugem[5] .
A presença literal da expressão de Macbeth funciona simultaneamente
como uma metonímia do texto, do universo e do drama da personagem.
É o ponto em que Haroldo tangencia a tragédia de Skakespeare. A frase,
que inicia o fragmento, traduz a fala de Macbeth em uma outra
proposta: as mãos sujas de sangue se transformam nas mãos do poeta,
que mancha os mares que escreve com suas leituras. Assim como as
mãos de Macbeth, as mãos do poeta-tradutor também não seriam
facilmente lavadas pelo oceano. Sua escrita incorpora e transforma as
citações de Shakespeare e de Homero (oinopa ponton, o oceano cor de
vinho), utilizando-as como signos de sua viagem pela escrita, que singra
os mares literários e deixa rastros, “a proa abrindo um sulco e a popa
deixando um sulco”. As marcas de suas leituras “turvam sua escrita de
vermelho”. A tensão entre a literalidade da forma e sua recriação
concretiza um novo texto, que, sem se subjugar ao original, potencializa
seu brilho, iluminando a estrutura de seu universo. Para esse tipo de
tradução, Haroldo de Campos nos diz que o essencial não é o resgate da
mensagem, mas a “reconstituição do sistema de signos em que está
incorporada esta mensagem, da informação estética, e não da
informação meramente semântica”[6] .
Outro estudioso e tradutor da literatura grega, Donaldo Schüler, no texto
“Haroldo de Campos, tradutor da Ilíada”, no livro A construção da
Ilíada, tece considerações a respeito da tradução de Haroldo e da
presença luxuosa e competente de Trajano Vieira. Para ele, Haroldo
nunca vai à poesia sem sólido apoio teórico e escolhe bem. Antes, num
momento de grande beleza de seu texto, ele diz que as luzes de Homero
foram outras, diferentes da dos Iluministas do século XVIII: “Homero
ainda se deliciava com o sabor da literatura cantada. Como seus
auditórios não eram frequentados por eruditos sisudos, não se cansava
de repetir. Incoerências, contradições e omissões não o afligiam.
Cantava para agradar. Quem escutava versos de Homero sentia a
presença de deuses. As pessoas ficavam tomadas de pasmo.
Confundiam Homero com a vida.” Já Haroldo não confunde Homero com
a vida mas lhe dá vida nova.
Seguindo o comentário de Donaldo Schüler, na tradução de Haroldo
encontramos versos que interessam à Psicanálise, pois em seu trabalho
já há a presença do irracional que nos desafia porque queremos
destripá-lo para encontrar-lhe a lógica. Este é o exemplo escolhido por
Schüler:
Decide o coração (e lhe parece bem):
Enviar – ruinoso – o sonho ao atreide Agamênon.
“Oneiros” – chamou (e as asas frases tatalaram):
“alcança, oniro-fúnebre, os navios aqueus. [...]
A musicalidade que Haroldo de Campos, transcriador, sobrevaloriza em
sua tradução é apontada também neste exemplo: Haroldo nos oferece –
em lugar de “Agamenão, filho de Atreu” – atreide Agamênon. Haroldo
transcreveu Homero literalmente, alterando só o necessário para
enquadrar o sintagma grego na sintaxe portuguesa. Ficou exótico. Grego
(como qualquer outra língua) nos será sempre idioma estranho. Ganhou
a poesia, sem dúvida; atreide Agamênon obriga a parar, pensar, sentir.
Preservou-se a música que uma tradução menos atenta destruiria”.
No caso de ruinoso Haroldo desloca o adjetivo. Em Homero ele é atributo
de sonho (óneiron). Entre travessões, como aparece na tradução, ele
tanto pode ser atributo de coração quanto desonho. Quem era ruinoso, o
coração de Zeus ou o sonho enviado a Agamênon? A tadução é
intencionalmente ambígua. [...] Essa ousadia distancia Haroldo de
Homero. A ousadia é grave. Na tradução de Haroldo, ruinoso é o coração
de Zeus, muito mais do que o sonho. Homero, embora crítico, não se
atreve a tanto. E ao se atrever a tanto, Haroldo de Campos é muitas
vezes criticado por “inventar” uma Ilíada sua, não a de Homero.
Vamos, seguindo Schüler, a Ôneiros. “A sonoridade é grega mas o
sentido foi-se. Onde Homero insiste no mesmo substantivo, Haroldo
apresenta três expressões distintas: sonho, Ôneiros e oniro-fúnebre. O
que se ganha com a mais recente tradução de Homero vem de um
cuidadoso leitor e tradutor de Finnegans Wake. A tradução de Haroldo
de Campos não pode ser surda à sinfonia joyceana. “Joyce dissolve
antimetafisicamente todos os conceitos fixos. Até nomes próprios sofrem
contínuas modificações. Na tradução de Haroldo, Joyce contaminou
Homero. Um Homero recriado será sempre um Homero imprevisível”.
Daí muitas vezes acontecer de um leitor armado até os dentes não
encontrar Homero na tradução de Haroldo.
Para Schüler, esse também grande tradutor dos clássicos e de Joyce, “e
as asas-frases tatalaramficou ótimo! “palavras aladas”, como já
conhecíamos, tornou-se uma fórmula desgastada pelo uso e pelo abuso.
Haroldo revitalizou o que se banalizara”. São esses exemplos que ele usa
para mostrar que a tradução de Haroldo é alegre, viva, imaginativa,
inteligente, poética.
Em suma, não se deve insistir em tradução fiel. Seria surpreendente que
um trabalho que se apresenta como recriação nos devolvesse o Homero
do oitavo século a. C. Os recursos poéticos apontados por Trajano Vieira
na introdução fortalecem a ideia de um Homero final, poeta singular, que
elevou a tradição épica a novo patamar. Há muitas fidelidades na
tradução de Haroldo: fidelidade à poesia, ao tempo e à cultura do
tradutor. Haroldo de Campos dialoga com Homero. Com o Homero
antigo fala, na tradução um Homero haroldiano, brasileiro. A tradução de
Haroldo é polissêmica, atilada, viva, inventiva, coloquial quando as
circunstâncias o exigem, ele cria a todo instante neologismos
sonoros: lutulenta, transnavegando, multifértil, polilágrimo,
multipalavraso... Essas e tantas outras palavras aladas podem tirar o
chão do leitor de Homero,strictu sensu.
Considera a leitura de Trajano Vieira esclarecedora e também poética.
Trajano Vieira mostra que, na Ilíada, a dívida de Homero à literatura oral
não prejudica cuidadosa elaboração verbal, a presença simultânea de
oralidade e poeticidade nos poemas homéricos. Lucra-se na
convergência das duas correntes[7] .
Homero era móvel, agitado pelas ondas, tendo sempre de partir de
novo, ele próprio é um homem-fronteira, nas palavras de Hartog, e um
homem memória, assim como nosso “bardo” Haroldo de Campos. Em
todos os lugares Ulisses é hóspede e estrangeiro. Segundo Bakhtin, uma
cultura não se reconhece senão na fronteira com outros mundos
espirituais. Ulisses é nossa própria consciência cultural que negocia com
outras culturas e mantém sua capacidade de escutar e surpreender-se. É
através dessa viagem interminável que a cultura contemporânea lançou-
se a si mesma, pois não há nada mais difícil que compreender-se a si
mesmo. Símbolo de incerteza, Ulisses é também um símbolo da
esperança que a cultura tem de sobreviver.
ENTREVISTA COM TRAJANO VIEIRA
Para Trajano Vieira, “é lícito deduzir que o herói épico combate
para atingir a imortalidade que lhe propicia a poesia e lhe nega a vida”.
A dramaticidade do mundo heróico reflete a dramaticidade da atividade
poética, pois ambos, herói e poeta, trabalham para superar a
transitoriedade. É sobre a tradução da Ilíada, por Haroldo de Campos,
que nos fala Trajano Vieira, que o acompanhou nesta “recriação”.
T. C: Haroldo de Campos, no texto “Odorico Mendes: o patriarca
da transcrição”, sobre a tradução de Odorico Mendes para a
Odisséia, fala de um legado tradutório e de preceitos endossados
por Walter Benjamin, no sentido de que o tradutor, ao invés de
“fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua”,
deve tomar rumo oposto e mais árduo, ou seja, “submetê-la ao
impulso violento que vem da língua estrangeira”. Como um leitor
de Haroldo de Campos, que não conheça a língua grega, pode
saborear o trabalho logopaico do transcriador Haroldo de
Campos?
T.V: Creio não haver uma receita específica para a ocorrência da
fruição literária. Caberá ao leitor identificar na linguagem do
texto traduzido a informação estética original. No caso da
tradução da Ilíada, citaria algumas delas: no plano vocabular,
criação de termos compostos inusitados; exuberante variedade
sintática, com cortes precisos de versos e usos funcionais de
encadeamentos; recuperação notável de efeitos sonoros;
reimaginação das “metáforas fixas” representadas pelos epítetos.
T.C: Qual o grau de helenização na tradução de Haroldo de
Campos?
T.V: Não saberia como apresentar uma medição nesse campo.
Novamente, diria que cabe ao leitor identificar aquilo que faz de
um texto uma obra original. Concisão, clareza, informação nova
são apenas alguns dos parâmetros presentes nessa tradução.
Note-se, por exemplo, a versão dos símiles extremamente
concentrados, ao longo do poema. A imaginação verbal do
tradutor nessas passagens surpreende sempre.
T.C: Como funcionaria a transhelenização em progresso na Ilíada
de Haroldo de Campos?
T.V: O processo de estranhamento literário sempre foi uma
diretriz norteadora nos trabalhos de tradução de Haroldo de
Campos. Transpor, no limite do possível, a novidade estética para
a língua de chegada é a tarefa principal do tradutor interessado
efetivamente em literatura, e não exatamente em comentários
técnicos ou filológicos.
T.C: Por que a Ilíada e não a Odisséia? Ou a Odisséia seria um
projeto futuro que não se realizou? (Talvez Haroldo de Campos
estivesse satisfeito com a tradução já feita por Odorico Mendes?).
T.V: Haroldo de Campos manifestava, em conversas pessoais, no
final da vida, a intenção de traduzir a Odisséia.
T.C: Este trabalho homérico/hercúleo/heróico corresponde ao que
o senhor diz: “é lícito deduzir que o herói épico combate para
atingir a imortalidade que lhe propicia a poesia e lhe nega a vida”.
“A dramaticidade do mundo heróico reflete a dramaticidade da
atividade poética pois ambos, herói e poeta, trabalham para
superar a transitoriedade”. De que forma podemos unir a
imortalidade da tradição literária grega e o trabalho tradutório de
Haroldo de Campos?
T.V: Haroldo de Campos costumava observar que, em termos de
tradução de poesia, o que contava era o resultado: “bons ou
maus poemas”. Caberá à história literária apontar o lugar a ser
ocupado pela tradução da Ilíada de Haroldo de Campos. O que
posso lhe dar é uma opinião pessoal, de leitor. Desconheço outra
versão da Ilíada mais fiel aos elementos estéticos do original.
T.C: Como era o virtual laboratório didático/poético entre o
professor de língua grega,Trajano Vieira, e o poeta transcriador
Haroldo de Campos?
T.V: No começo, dava-lhe aulas de língua grega, mas logo essas
aulas se transformaram em encontros de leitura e comentários
específicos sobre a linguagem da Ilíada. Registro que Haroldo de
Campos tinha estudado o idioma em outra época, antes da
retomada que resultou no trabalho sobre a Ilíada.
Agora, em 2011, surge a tradução da Odisséia, feita por Trajano Vieira
(que não nos contou nada a respeito à época da entrevista, março de
2011). Para a sua tradução ele utilizou o dodecassílabo, o mesmo padrão
métrico usado por Haroldo de Campos em sua versão da Ilíada.Segundo
Trajano, no prefácio à sua tradução, depois de concluída sua tradução da
Ilíada, em 2002, de tempos em tempos, Haroldo de Campos comentava:
“Bem, acho que só nos resta ‘atacar’ a Odisséia”. Era um projeto que ele
me propunha com frequência, o qual não foi possível levar a cabo. Não
preciso dizer que a oportunidade de oferecer à sua memória esse
trabalho, independente da qualidade que tenha conseguido atingir, é
algo que muito me alegra[8] .
Estamos depois de Babel. A torre ruiu há tempos e somos todos
poliglotas de ouvido. Vivemos sob a mediação da tradução. Para George
Steiner, ao falar das traduções de Homero para o inglês, há uma
“vivacidade que se percebe nas estruturas, uma legibilidade dinâmica
como a de um elemento radioativo atravessando um tecido orgânico,
que advém da própria natureza da tradução. Porque é no processo de
tradução e através dele que a língua percebe-se, de fato, a si mesma. A
tradução obriga a uma introspecção diacrônica e formal, a um
investimento explícito e a uma ampliação de seus instrumentos
históricos, coloquiais e metafóricos. Simultaneamente, a tradução
submete a língua à pressão de suas limitações. Ela solicita modos de
percepção e designação que essa língua havia deixado mal
desenvolvidos ou que havia abandonado totalmente. Um ato de tradução
implica uma súmula de balanço, por assim dizer, para a língua em
questão”[9]
Cada tradutor compete – de maneira mais ostensiva ou menos – com a
grande família de seus predecessores e seus contemporâneos. Com
atitude respeitosa, desafiadora, imitando-os ou não, ele “assume” tanto
Homero quanto os “Homeros” já em circulação. As traduções falam das
reciprocidades “em ação” entre diferentes tradutores e leitores de
Homero, continua George Steiner. Haroldo de Campos se instala nessa
linha tradutória e corporifica a problematização de Borges quanto à
tarefa do tradutor: “Não há problema tão consubstancial com a literatura
e com seu modesto mistério como o proposto por uma
tradução”[10] . Fernando Pessoa já nos dizia em suas “Páginas de
Estética”, que um bom poeta deve demonstrar em um verso que leu
Homero. A tradução é a atualização da tradição.
BIBLIOGRAFIA:
BORGES, J. L. Discussão. São Paulo: Difel, 1986.
CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
CAMPOS, H. Galáxias. São Paulo, Ex-Libris, 1984.
CAMPOS, A. e H. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo: Perspectiva,
1971.
CAMPOS, H. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago,
1998.
HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. Volume I e II. 4. ed. São
Paulo: Arx, 2003.
SCHÜLER, Donaldo. A construção da Ilíada. Porto Alegre, L&PM, 2004.
STEINER, George. Nenhuma paixão desperdiçada. Trad. Maria Alice
Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
VIEIRA, Trajano. Xenofanias. Releitura de Xenófanes (c. 570-528 a. C.).
Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo, Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2006.
VIEIRA, Trajano. Odisséia/Homero, edição bilíngue. Tradução, posfácio e
notas de Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011.
NOTAS:
[1] Conferir p. 26 do prefácio à segunda edição do Panaroma do
Finnegans Wake.
[2] Cf. a introdução de Trajano Vieira para o Vol. I da tradução
da Ilíada, de Haroldo de Campos, sobretudo as páginas 23 e 24.
[3] Entrevista publicada na revista et cetera, nº 1, Curitiba, 2003, com
o título “A Viagem da Palavra por tempos e espaços.
[4] Cf. pág. 82 de Pedra e luz na poesia de Dante.
[5] Cf Galáxias, terceiro fragmento.
[6] Cf “A palavra vermelha de Hoelderlin” em A arte no horizonte do
provável, p. 100.
[7] Cf: “Haroldo de Campos, tradutor da Ilíada. No livro A construção da
Ilíada, p. 134/143.
[8] Cf. Nota prévia à tradução da Odisséia, p. 8.
[9] Cf. o texto “Homero em inglês”, no livro Nenhuma paixão
desperdiçada, de George Steiner, p. 102/103.
[10] Cf. “As versões homéricas”, Discussão, de Jorge Luís Borges, p. 71.
*
Tida Carvalho é doutora em Literatura Comparada pela UFMG,
professora de Literatura do Mestrado em Letras da Unincor, Três
Corações e pós-doutoranda na UFMG com o trabalho As vanguardas no
tempo – um lance de viagem da e na linguagem jamais abolirá o
barroco: o resgate d´A máquina do mundo galáctico de Haroldo de
Campos.