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Raquel França Abdanur LA ILÍADA POR CÉSAR BRIE: UM CANTO DE MEMÓRIA, LUTO E HISTÓRIA. Belo Horizonte 2009

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Raquel França Abdanur

LA ILÍADA POR CÉSAR BRIE: UM CANTO DE MEMÓRIA, LUTO E HISTÓRIA.

Belo Horizonte

2009

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Raquel França Abdanur

LA ILÍADA POR CÉSAR BRIE: UM CANTO DE MEMÓRIA, LUTO E HISTÓRIA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria da Literatura

Linha de Pesquisa: Literatura e Outros Sistemas Semióticos

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sara del Carmen Rojo de la Rosa

Belo Horizonte

Faculdade de Letras da UFMG 2009

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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários

Dissertação intitulada “La Ilíada por César Brie: um canto de memória, luto e história”, de autoria da mestranda Raquel França Abdanur, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

_______________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sara del Carmen Rojo de La Rosa – FALE/UFMG - Orientadora

_____________________________________________ Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre – FALE/UFMG

_____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Graciela Alicia Foglia – FALE/UFMG

____________________________________________ Prof. Dr. Julio Cesar Jeha

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários FALE/UFMG

Belo Horizonte, 10 de junho de 2009.

Av. Antônio Carlos, 6627 – Belo Horizonte - MG – 31270-901 – Brasil – tel.: (031) 3409-5112 – fax: (031) 3409-5490

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A minha filha Nina.

Meu sol.

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AGRADECIMENTOS

Durante a realização desta pesquisa, pude contar com a ajuda, o apoio e a compreensão de

várias pessoas.

Agradeço a Sara Rojo, pela orientação cuidadosa e dedicada, pelo incentivo e amparo

incondicional, e, principalmente, pela amizade.

A Júlia Morena, pelo companheirismo, generosidade e palavras que me confortaram nos

momentos de frustração.

Ao meu marido, Faustino Lebrón, pelo amor, pela inspiração e paciência constante.

A Nina, pelo afeto e compreensão de minhas ausências.

Aos meus pais, pelo estímulo absoluto.

A minha irmã, Elizabeth, pela leitura e pelas sugestões.

A Patrícia Mcquade, por dividir suas experiências em nosso grupo de estudos.

Agradeço aos meus amigos — em especial — a Guilherme, Luciana, Massimo e Alessandra,

pelos momentos de descontração.

Aos professores, Graciela Ravetti, Sabrina Sedlmayer, Georg Otte, Teodoro Assunção e

Tereza Virgínia, pela contribuição teórica; a Marcos Alexandre e Graciela Foglia, por

aceitarem o convite para avaliar este estudo.

Às funcionárias da Secretaria de Pós-Graduação, pela prontidão e colaboração.

Agradeço ao CNPq, pelo auxílio financeiro.

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Lo bello de contar cuentos, es que uno acaba por creérselos.

César Brie

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RESUMO

Esta dissertação examina as relações entre o teatro e a literatura na peça La Ilíada (2000), do

escritor, dramaturgo e diretor argentino César Brie (1954-). A análise tem como eixo principal

os conceitos de performance, intertextualidade e tradução teatral. A partir da perspectiva da

memória, desenvolvem-se reflexões sobre o caráter performático que atua em determinados

campos dessa escrita teatral, que remete ao julgamento das ações históricas e sociais do

passado no presente do contexto de produção. A partir da restauração da memória, este

trabalho tece considerações sobre a passagem do luto iliádico para a obra, por meio da

intertextualidade, tentando demonstrar a atualidade da temática da perda no contexto pós-

ditatorial latino-americano. O processo de construção do texto dramático é examinado à luz

da teoria da tradução teatral, que se move pelas rupturas de espaço e tempo, mediações de

culturas heterogêneas e determinação do lugar de enunciação. Articula-se o sentido político

da obra em questão com uma revisão do papel da democracia em contexto específico do texto

dramático.

Palavras-chave: César Brie. Performance. Tradução. Memória. Teatro latino-americano.

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RESUMEN

Esta disertación examina las relaciones entre el teatro y la literatura en la pieza La Ilíada

(2000), del escritor, dramaturgo y director argentino César Brie (1954-). El análisis tiene

como eje principal los conceptos de performance, intertextualidad y traducción teatral. Desde

la perspectiva de la memoria, se desarrollan reflexiones sobre el carácter performático que

actúa en determinados campos de esta escrita teatral, que remite al juicio de las acciones

históricas y sociales del pasado en el presente del contexto de producción. Desde la

restauración de la memoria, este trabajo realiza consideraciones sobre el pasaje del luto

iliádico para la obra por medio de la intertextualidad, tentando demostrar la actualidad de la

temática de la pérdida en el contexto postdictatorial latinoamericano. El proceso de

construcción del texto dramático es examinado bajo la luz de la teoría de la traducción teatral

que se mueve por las rupturas de espacio y tiempo, mediaciones de culturas heterogéneas y

determinación del lugar de enunciación. Se articula el sentido político de la obra en cuestión

con una revisión del rol de la democracia en contexto específico del texto dramático.

Palabras-clave: César Brie. Performance. Traducción. Memoria. Teatro latinoamericano.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ………………………………..…….. 20

FIGURA 2 – Cena de Otra vez Marcelo, de César Brie, 2004 …………………………..…. 26

FIGURA 3 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 …………………………………….... 33

FIGURA 4 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ………………………….…………... 41

FIGURA 5 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ……………………………….……... 46

FIGURA 6 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ……………………………….……... 50

FIGURA 7 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ……………………………….……... 54

FIGURA 8 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ………………………………….…... 62

FIGURA 9 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 ……………………………….……... 67

FIGURA 10 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 …………………………………….. 78

FIGURA 11 – Cena de La Ilíada, de César Brie, 2000 …………………………………...... 81

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ……………………………………………….....……....…...….… 11

1.1 Motivações ……………………………………………………........………….......... 11

1.2 César Brie e seu Teatro de los Andes .......................................................................... 13

1.3 Concretizações ............................................................................................................ 18

2 A QUESTÃO PERFORMANCE: O RESGATE E A HISTÓRIA ........................ 20

2.1 Do arquivo ao repertório ............................................................................................. 20

2.2 Pluralidade e a justiça da história ................................................................................ 26

2.3 Redefinição dos completos ......................................................................................... 33

3 A QUESTÃO LUTO: LAMENTO E MELANCOLIA NO PROCESSO DA

PERDA ....................................................................................................................... 41

3.1 Dos cantos iliádicos ao lamento contemporâneo ........................................................ 41

3.2 Interculturalismo no luto ............................................................................................. 46

3.3 Percursos alegóricos .................................................................................................... 57

4 A QUESTÃO TRADUÇÃO: ENUNCIAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO .. 62

4.1 Tradução e o lugar de enunciação ............................................................................... 62

4.2 A culpa e o Estado democrático .................................................................................. 71

4.3 Pelo filho que morre .................................................................................................... 78

5 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 88

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 95

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1 INTRODUÇÃO

Tantas veces te mataron, tantas te resucitarás

tantas noches pasarás desesperando.

A la hora del naufragio y la de la oscuridad alguien te rescatará

para ir cantando.1 María Elena Walsh

1.1 Motivações

O motivo pelo qual escolhi trilhar o caminho dos Estudos Literários foi, com certeza, meu

entusiasmado envolvimento com as disciplinas de literatura da habilitação em Língua

Espanhola, durante a graduação. As descobertas foram muitas e a maioria delas despertou

meu interesse e, principalmente, um grande prazer em pesquisar nessa área. Pude aprender —

resumindo, grosso modo e em poucas palavras — a edificar pontes entre a literatura e a teoria

literária. Não que não seja importante o prazer do livro, por si só, não conseguir ir dormir

sem, antes, debruçar-se sobre várias páginas, mas, durante meus anos de faculdade, esse

prazer tornou-se ainda mais intenso, ao ir descobrindo que meu olhar, meu entorno e minhas

experiências são fundamentais para tecer um outro texto: o meu texto. Aquele que me

pergunta por que o leio, que me instiga a relacionar sua história com a minha história e minha

época. É o que pretendo expressar, no desenrolar deste relato de pesquisa; construir as minhas

perguntas e meus desassossegos e tentar compreender os signos de minha contemporaneidade,

a desmedida violência, a falta de justiça e a aniquilação do outro.

Meu encontro com as obras de César Brie aconteceu no último ano do curso de Letras da

UFMG, em 2005. Convidada pela professora Sara Rojo a participar do Programa Institucional

de Iniciação Científica dessa universidade, tive a oportunidade de escolher dois dramaturgos

latino-americanos — o argentino César Brie e o chileno Ramón Griffero — para constituírem 1 “Tantas vezes te mataram, / tantas vezes ressuscitarás / tantas noites passarás / desesperando. / À hora do naufrágio / e à da escuridão / alguém te resgatará / para ir cantando.” (WALSH, 1993, p. 29).

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objetos de pesquisa do programa. Meu trabalho consistiu na produção de duas versões

brasileiras dos textos dramáticos Cinema Utoppia (1994), de Griffero, e Solo los giles mueren

de amor (1993), de Brie. O estudo foi orientado, em primeiro lugar, para a área específica de

tradução cultural e lingüística e, num segundo momento, para a reflexão sistemática sobre as

particularidades da linguagem do texto dramático.

Essa investigação foi importante para aqueles que mantinham uma relação com o teatro,

porque significou contar com mais peças hispano-americanas traduzidas, visando à redução

da carência existente. Posteriormente, meu trabalho foi selecionado como um dos melhores,

na área de Lingüística, Letras e Artes daquele ano, na UFMG, o que permitiu que minhas

traduções e dois artigos referentes a elas fossem incluídos no livro Antologia teatral da

latinidade,2 organizado pelos professores Marcos Antônio Alexandre, Maria Lúcia Jacob e

Sara Rojo. Com esse resultado satisfatório, percebi que o término de minha graduação

significou, também, o começo de novas buscas e a vontade de continuar contribuindo na área

que escolhi. O mestrado era uma delas; só não sabia se continuaria com textos dramáticos, e

daria continuidade aos estudos da iniciação científica, ou se enfrentaria novos desafios.

Em julho de 2006, surgiu a oportunidade de conhecer, pessoalmente, o argentino César Brie.

O primeiro contato foi assistindo à sua atuação na peça Otra vez Marcelo3 (2004), durante o

Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte (FIT) daquele ano. Não sei se por

influência dos meus estudos sobre esse dramaturgo, mas encantei-me com a peça, com a

profundidade do texto e com a poética do espetáculo. Até então, o que sentia era uma espécie

de realização íntegra, de haver presenciado uma apresentação do grupo que foi um dos alvos

de minha pesquisa.

Um segundo contato preencheu minhas expectativas e me fez escolher as obras desse autor

como objeto principal de minhas investigações literárias no programa de mestrado. Participei,

como observadora, entre os dias 28 de julho e 01 de agosto de 2006, da oficina Pensar a cena,

ministrada por César Brie, promovida pela organização do FIT. Foi uma experiência sedutora

2 JACOB, Lúcia; ALEXANDRE, Marcos; ROJO, Sara (2008). 3 Peça encenada no Espaço Funarte Casa do Conde, em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre os dias 28 de julho e 01 de agosto de 2006.

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e enriquecedora, porque pude acompanhar de perto o trabalho de idealização e criação de

imagens cênicas que delineiam o fazer teatral desse dramaturgo e do seu grupo Teatro de los

Andes. Durante aqueles cinco dias, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais dos

pilares ideológicos, teóricos e estéticos que estruturam a intensidade poética das obras do

grupo. Os encontros com o dramaturgo argentino resultaram, ainda, na publicação de um

artigo,4 no qual eu e minha colega de faculdade Juliana Leal5 pudemos fazer reflexões teóricas

sobre a elaboração e a construção de cenas do espetáculo Otra vez Marcelo. Brie enfatizara,

durante a oficina, que sua concepção cênica propõe o abandono das representações de

situações comuns da vida real, para se chagar a um plano altamente metafórico. Insistir na

cópia cotidiana, segundo esse argentino, é uma tarefa inútil e desestimulante. O acolhimento,

por Brie, dessa estética metafórica provém, segundo ele mesmo, “dos recursos anti-

naturalistas no ambiente cinematográfico” de Sergei Eisenstein.6 Esse cineasta e dramaturgo

russo empresta a Brie a imagem metafórica do menino empinando a pipa,7 “na qual o garoto

se refere à dimensão da realidade, e a pipa, a da imaginação”.8 A linha que liga o menino ao

seu brinquedo é o fio condutor entre o real e o imaginário, e é nesse espaço que se encontra,

segundo Brie, o seu fazer teatral.

1.2 César Brie e seu Teatro de los Andes

Nascido em Buenos Aires, em 1954, César Brie foi um dos fundadores do teatro Comuna

Baires. O grupo portenho nasceu em 1971, desenvolvendo suas atividades, em Buenos Aires,

até o ano de 1975, quando — naquele momento de intervenções repressivas, sofrendo

constantes ameaças de militares — seus integrantes resolveram se instalar na Itália, já que, na

Argentina, não faziam parte de militância direta e, portanto, não estavam protegidos dos

ataques da Triple A. Em 1980, funda o grupo Farfa, sob a direção de Iben Nagel Rasmussen.

O grupo é, hoje, parte do Odin Teatret, da Dinamarca. Nessa época, Brie participa de algumas

sessões do ISTA, a Escola Internacional de Antropologia Teatral, comandadas por Eugenio

4 ABDANUR; LEAL (2006). 5 Juliana Helena Gomes Leal é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. 6 BRIE apud ABDANUR; LEAL, 2006, p. 134. 7 A metáfora de Eisenstein ensejou o título do artigo citado anteriormente. 8 ABDANUR; LEAL, 2006, p. 134.

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Barba. Ainda com esse diretor italiano, trabalha em vários espetáculos, como ator e como

assistente de direção.

Em 1991, César Brie volta à América Latina, mas não à sua terra natal. Nesse mesmo ano,

funda, juntamente com Naira González e Giampaolo Nalli, o Teatro de los Andes, em Yotala,

um pequeno vilarejo nas proximidades de Sucre, na Bolívia. Yotala, uma região montanhosa

e de vegetação abundante, é considerada o “jardim de Sucre”. A sede do Teatro de los Andes

é uma fazenda, onde seus integrantes trabalham e vivem. Atualmente, o grupo, comandado

por Brie, está composto por cinco atores e atrizes de distintas nacionalidades; entre eles, a

brasileira Alice Guimarães Padilha. Trata-se, como define o próprio diretor, de uma granja-

teatro, onde ensaiam e alojam artistas, e um lugar de encontro e trabalho com atores e

diretores de várias partes do mundo.

As produções contam com pequenos recursos técnicos, porque o grupo se mantém com

recursos provenientes de oficinas de formação de atores, oferecidas à comunidade, de

eventuais patrocinadores, do capital arrecadado com ingressos para seus espetáculos e das

viagens com suas peças — o grupo realizou turnês por países como Brasil, Itália, França,

Índia, Chile, Argentina, entre outros. Em geral, as obras do grupo têm forte sentido social. As

personagens, em vários casos, são criadas a partir de pessoas reais, importantes por sua

atuação social; “é um testemunho que se transforma em universal”.9 Os temas partem de

inquietações de Brie, na maioria das vezes, mas é nas improvisações que os textos surgem, de

forma coletiva. Junto a essa proposta estética, Brie declara a necessidade de:

[…] formar un actor-poeta en el sentido etimológico del término: hacedor, creador. El que crea y hace. Para esto realizamos un entrenamiento cotidiano, físico y vocal, y trabajamos sobre formas de improvisación y composición. Tratamos de unir en nuestras obras las reflexiones sobre el espacio escénico, sobre el arte del actor y la necesidad de contar historias, de recordar, de "volver en sí". Nos proponemos un teatro que podría llamarse del humor y de la memoria.10

9 ABDANUR, 2005, p. 16. 10 “[...] formar um ator-poeta, no sentido etimológico do termo: fazedor-criador. O que cria e faz. Para isso realizamos um treinamento cotidiano, físico e vocal, e trabalhamos sobre formas de improvisação e composição. Tratamos de unir em nossas peças as reflexões sobre o espaço cênico, sobre a arte do ator e a necessidade de contar histórias, de lembrar, de “voltar em si”. Propomos um teatro que poderia se chamar do humor e da memória”. (http://www.utopos.org/LosAndes/Info.htm).

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O teatro de César Brie é, também, um constante diálogo “entre a técnica que possuímos — e

que poderíamos definir ocidental — e as fontes culturais andinas, expressas através dos

rituais, das festas e da música”.11 O resultado é um contar histórias, uma necessidade de

recordar. O que se leva para o palco é a memória, resgatando o que a História tenta

exterminar. O que é ainda relevante para o grupo, segundo Brie, é poder levar o trabalho a

lugares alternativos às salas convencionais de teatro, como escolas, praças e vilas: “El

contacto, el encuentro y el diálogo son imprescindibles para nuestro trabajo cultural. No el

aislamiento”,12 pois é a relação com o público que determina os sentidos das obras.

A escolha da obra La Ilíada (2000) justificou-se, em um primeiro momento, pelo

conhecimento prévio do texto, graças às pesquisas para o trabalho realizado no programa de

Iniciação Científica. Em um segundo momento, pela exigência da linha de pesquisa

(Literatura e Outros Sistemas Semióticos) do Programa de Pós-Graduação que escolhi, que

consiste no diálogo de uma expressão artística — nesse caso, o teatro — com a literatura. A

decisão, porém, de trabalhar com o texto dramático de La Ilíada foi tomada devido ao

interesse de pesquisar a temática pertinente à obra; ou seja, sua relação com as ditaduras

militares da América Latina e, também, com marcas contemporâneas da colonização.

A peça La Ilíada, escrita e dirigida por César Brie, associa o poema épico de Homero às

ditaduras militares do Cone Sul. O texto homérico narra a tomada da cidade de Tróia pelos

gregos, a guerra e o poder da força física, mas também as relações humanas em meio aos

conflitos sociais. A atualidade do texto do diretor argentino está na concentração do poema na

busca constante de Príamo13 pelo cadáver de seu filho, assim como milhares de famílias

latino-americanas que, ainda hoje, desconhecem o destino de seus entes desaparecidos

durante as ditaduras militares nesse continente. O texto dramático de Brie é dedicado a

Rodolfo Walsh, escritor e jornalista argentino, assassinado em 1976 — uma das personagens

da peça —, e a Marcelo Quiroga Santa Cruz, escritor e político boliviano, assassinado em

1980, cujo corpo ainda é procurado e reclamado pela família.

11 BRIE, 2004, p. 3. 12 “O contato, o encontro e o diálogo são imprescindíveis para nosso trabalho cultural. Não o isolamento.” (http://www.teatrodelosandes.com). 13 Na Ilíada, de Homero, rei de Tróia, pai de Heitor. No último canto do poema clássico, Príamo implora a Aquiles que lhe devolva o corpo do filho, para os procedimentos fúnebres.

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La Ilíada, de Brie, é a segunda produção de uma trilogia na qual o grupo Teatro de los Andes

“enfrenta o político”. A primeira delas é En un sol amarillo: memorias de un temblor (1999),

um paralelo entre uma catástrofe natural e a corrupção. O grupo se inspirou no terremoto

ocorrido, em 1998, em Alquile, distrito de Cochabamba, na Bolívia, e trata do descaso do

governo e suas manobras corruptas para se beneficiar do drama das pessoas afetadas pelo

terremoto. Tive a oportunidade de assistir, também, a esse espetáculo, durante o Festival

Internacional de Teatro (FIT), em 2008.14 A terceira é Otra vez Marcelo (2004), uma obra

sobre a coragem cívica e o desaparecimento e aborda a vida de Marcelo Quiroga, assassinado

durante a ditadura do governo de Bánzer, por lutar pela nacionalização dos recursos naturais

de seu país e pela soberania boliviana.

Nas últimas décadas, grande parte do teatro latino-americano vem se destacando pelo trabalho

realizado com base em uma estética fundada no diálogo intertextual e no cruzamento de

fronteiras entre a cultura local e outras culturas, criando vozes próprias, ao questionar o

sistema ocidental hegemônico que tolhe o pensamento e a liberdade transgressora de nós,

periféricos.15 O grupo boliviano faz parte de uma lista16 de grupos do Cone Sul que, por meio

de suas produções, atravessam fronteiras para estabelecer analogias ideológicas — ou

desconstruí-las — no macro-espaço da América Latina. A trilogia fundada no diálogo

intertextual, na qual se pode inserir o fazer teatral de Brie — principalmente de suas obras La

Ilíada e Otra vez Marcelo —, é utilizada para a reconstrução do sentido social, após as

repressões ditatoriais; portanto, a desconstrução de uma historiografia17 articulada na

linearidade do percurso macro da História, sem a intervenção do testemunho, do privado, do

pessoal. Assim, o diretor do Teatro de los Andes será produtor de novas articulações de

pensamento:

14 Peça encenada no Teatro Marília, em Belo Horizonte, Minas Gerais, nos dias 02, 03 e 04 de julho de 2008. 15 Periféricos no sentido de lugar: América Latina. 16 No artigo de Sara Rojo “Os estudos culturais e o teatro latino-americano do final do século” (1999), a autora cita os grupos Teatro del Sur (Argentina), Galpão (Brasil), TET (Venezuela), Buendía (Cuba), além de diretores, como os brasileiros José Celso Martinez e Gerald Thomas, o chileno Ramón Griffero, o mexicano Luis Tavira, etc. 17 No conceito de Gabriel Motzkin (apud SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 393), a ciência do passado, aquela que pode subsumir a experiência privada e pessoal do passado, eliminando, assim, a modalidade do testemunho.

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Um cruzamento capaz de fazer com que a lembrança não seja uma volta ao passado, a simples regressão de uma memória que sepulta a história no nicho de ontem, mas um ir e vir pelos cantos de uma memória que não se detém em pontos fixos, que transita por uma multidirecionalidade crítica de alternativas não combinadas.18

A desconstrução dos signos oficiais da arte representativa se materializa, no teatro de Brie,

por meio da captação pós-moderna de referências não-locais e culturais alternativas às

oficiais. A experiência desconstrutora do texto dramático La Ilíada, a partir do poema épico

de Homero, estrutura-se, também, junto à idéia de Eugenio Barba de que a verossimilhança

não se limita a uma mera imitação da realidade, sendo, sim, uma equivalência à vida19, e se

entrelaça, ainda, ao conceito de realismo reflexivo, do crítico argentino Osvaldo Pelletieri —

“de um tipo de produção que, sem ser uma imitação da vida, estabelece um diálogo constante

com o contexto e acaba por postular um tipo de utopia”.20 Ao se referir a outra época, César

Brie fala dos países latino-americanos, como Argentina e Bolívia, que ainda lutam para fechar

feridas abertas há trinta anos, questionando o uso arbitrário do poder e a violação de direitos

humanos. Dessa forma, o texto proporciona ruptura de fronteiras e estabelece um discurso

multicultural utópico:

La mezcla de razas, culturas, usos, las migraciones siempre crearon nuevas formas expresivas y musicales. Si bien se perdieron cosas antiguas, aquello que surgió del encuentro y la mezcla fue la forma con la que el hombre de hoy se expresa: hijo de su condición y experiencias, con la memoria abierta a lo que fue y la mente proyectada hacia adelante.21

18 RICHARD, 2002, p. 69. 19 Reflexões de Eugenio Barba em sua conferência realizada em 08/06/1998, durante o Encontro Internacional de Artes Cênicas (ECUM), em Belo Horizonte. 20 PELLETIERI apud ROJO, 1999, p. 54-55. Para a análise das produções da dramaturga argentina Griselda Gambaro. 21 “A mistura de raças, culturas, usos, as migrações sempre criaram novas formas expressivas e musicais. Mesmo que se perderam coisas antigas, o que surgiu do encontro e da mistura foi a forma com a qual o homem de hoje se expressa: filho de sua condição e experiências, com a memória aberta ao que passou e com a mente projetada para o futuro.” (http://www.utopos.org/LosAndes/Andes.htm).

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1.3 Concretizações

No primeiro capítulo desta dissertação, o texto dramático de La Ilíada será abordado em

concomitância com premissas teóricas que envolvem o desenvolvimento da escrita teatral de

César Brie, no caminho do resgate do passado histórico dos assassinatos de militantes

políticos das ditaduras militares do Cone Sul e, também, de uma revisão historiográfica do

processo de colonização. Tais temas serão analisados a partir do conceito de performance, de

pesquisadores como Graciela Ravetti (2002; 2003), Diana Taylor (2002) e Richard Schechner

(1985), juntamente com os conceitos benjaminianos da história (1994), memória e

esquecimento. O olhar artístico de Brie para o processo da conquista será analisado a partir

das redefinições de Walter Mignolo (2003) e Homi Bhabha (1998) para conceitos clássicos

como “colonial” e “moderno”. Fragmentos da peça Otra vez Marcelo serão usados para

completar a análise dos temas propostos.

Foi fundamental, para a elaboração do segundo capítulo, minha participação na disciplina

oferecida pelo professor Teodoro Rennó Assunção, intitulada “Seminário de Literatura Grega

I: morte, heroísmo e ritos fúnebres na Ilíada”, no primeiro semestre de 2008. Os encontros

para a análise da Ilíada de Homero permitiram-me aproximar de reflexões relacionadas aos

Estudos Clássicos — área bem pouco explorada por mim, até então. Essa aproximação é

lenta; portanto, as questões iliádicas desse segundo capítulo não serão tratadas com a esperada

profundidade de um conhecedor da área; serão apenas objeto de reflexão para se estabelecer

relação com o texto contemporâneo do autor Brie. O capítulo envolve as questões do luto no

poema clássico e sobre como seu sentido mítico é transportado à La Ilíada atual. A revisão

sobre o estado fúnebre da antiga Grécia, a partir de teóricos clássicos como Gail Holst-

Warhaft (1992) e James Redfield (1975), serve como fio condutor para a construção do

diálogo com o estado enlutado pós-ditatorial latino-americano traçado por teóricos

contemporâneos, como Idelber Avelar (2003) e Nelly Richard (2002).

No terceiro capítulo, será elaborado um estudo sobre as particularidades da tradução teatral, a

partir, principalmente, das reflexões teóricas de Patrice Pavis (2008); um traçado panorâmico

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da construção do texto dramático em questão com as premissas das rupturas de espaço e

tempo, mediações de culturas heterogêneas e determinação do lugar de enunciação. Será,

também, explorado o sentido político da obra La Ilíada, buscando-se suporte teórico nos

críticos teatrais argentinos Federico Irazábal (2004) e Jorge Dubatti (2006). A

contextualização do discurso crítico do texto dramático resultará numa revisão da democracia

argentina pós-período da ditadura militar, a partir das críticas de Giorgio Agamben (2004)

sobre as medidas excepcionais que imperam nas democracias de Estados contemporâneos.

A síntese dos principais aspectos da investigação sobre o fazer teatral de César Brie, a

importância da busca na literatura para se fazer o diálogo com a contemporaneidade e a

possibilidade de uma tradução do texto dramático pesquisado serão os temas contemplados na

conclusão deste estudo.

Para esta pesquisa, foi usada a tradução da Ilíada, de Homero (2001), feita por Carlos Alberto

Nunes, acatando conselhos dos professores Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa e Teodoro Rennó

Assunção. Segundo eles, trata-se de uma tradução mais literal, sem recriações, como, por

exemplo, a de Haroldo de Campos (2001; 2002), e, portanto, mais adequada ao tipo de

pesquisa que seria realizado. Optou-se, também, por manter, nas traduções dos fragmentos do

texto dramático para a Língua Portuguesa, os nomes das personagens do poema clássico, tal

qual Nunes os usa em sua tradução, a fim de manter um equilíbrio na língua desta dissertação.

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2 A QUESTÃO PERFORMANCE: O RESGATE E A HISTÓRIA

Sabe, no fundo eu sou um sentimental Todos nós herdamos no sangue lusitano

uma boa dosagem de lirismo...( além da sífilis, é claro) Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar

Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...22 Chico Buarque e Ruy Guerra

2.1 Do arquivo ao repertório

FIGURA 1 – La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Resgatar: talvez seja essa a ação mais pertinente que circula na busca dos sentidos na escrita

teatral de La Ilíada, de César Brie. A oscilação do verbo faz pulsar, aí, um permanente clima

de ir e vir, deixar e buscar, buscar e retornar. São alguns os elementos que o texto deixa

projetar como resultados possíveis para a constituição de vínculos entre as ações. Se,

primeiramente, pensa-se o espaço da cidade de Tróia como processo de resistência, para

impedir a sua tomada pelos gregos, é possível enxergar a retomada do mesmo espaço para

22 Fado tropical, 1972-1973. Para a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html>. Acesso em: 08 abr. 2009.

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uma restituição atmosférica da conquista da América Latina pelos europeus. Pode-se, também

— através do recurso da intertextualidade —, estabelecer uma relação entre a queda dos

guerreiros troianos, o ultrajamento de seus cadáveres e a persistência de Príamo em buscar o

corpo do filho, Heitor, com a problemática das famílias de desaparecidos e dos não-

sepultados durante as ditaduras militares latino-americanas, nas décadas de 1970 e 1980. Ir

até os processos colonial e ditatorial e entender, nos fragmentos dos fatos históricos, a

resistência física e cultural; vir ao presente e trazer o sentido de tal passado. Esses

movimentos de resgate e seus vínculos temporais vão se construindo a partir do conceito da

performance como um enunciador teórico que proporciona um outro olhar sobre as

representações artísticas de caráter crítico.

Durante meu primeiro semestre como mestranda do Programa de Estudos Literários da

FALE/UFMG (2007), estabeleci contato com o conceito de performance — apresentado na

disciplina intitulada “Seminário de Literatura e outras disciplinas: Literatura, teatro, cinema e

performance: diálogos possíveis”, ministrada pela professora Sara Rojo. No meu entender

primário do conceito, esse era um termo ligado somente à prática e ao desempenho de

expressões corporais, num determinado espaço cênico. O resultado dos encontros nos

permitiu abrir um leque mais amplo de pensamentos direcionados a uma nova forma de

analisar, no âmbito acadêmico: os discursos artísticos e sociais, que vão, desde a cena teatral,

rituais, manifestações políticas e sociais, até a escrita literária. Ao conhecer os estudos sobre

performance de autores como Diana Taylor (2002), Richard Schechner (1985), Graciela

Ravetti (2002; 2003) e Renato Cohen (2007), foi-nos possível entender o termo como um

prospecto teórico que se movimenta no interior do arquivo — registros, documentos, escritos

canonizados, monumentos, restos arqueológicos, etc. —, fazendo com que o objeto analisado

o questione e indague sobre seus paradigmas, para se chegar ao repertório — “um conjunto de

saberes paralelos ao conhecimento impresso”23 — e, assim, fazer surgir novas possibilidades

de compreender o homem e sua práxis social, política e artística. Dessa forma, os estudos da

performance são

um construto teórico que funciona como um articulador móvel de diversas práxis, tendo como eixos centrais: estabelecer um diálogo anímico/sígnico com um outro (Deus, público, leitor), reescrever e resgatar a memória, valorizar tanto o processo quanto o resultado de ações e desempenhos e

23 HILDEBRANDO; NASCIMENTO; ROJO, 2003, p. 9.

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modificar o estatuto anterior à performance nos âmbitos do ‘fazer saber, fazer acreditar e fazer fazer’.24

O pensamento teórico acerca da performance como re-escritura e resgate da memória e,

portanto, do passado, vem se formando com base no caráter performático das expressões

artísticas da década de 1960, atribuído ao remanejamento de seus conceitos pré-estabelecidos,

à rearticulação de seus objetivos e à ruptura com os processos tradicionais da relação entre o

artista e o espectador. Heranças do Futurismo e do Dadaísmo25, as performances dessa época

baseiam-se, em seus deslocamentos, para os espaços não tradicionais do teatro, no corte com

o texto dramático como marcação principal da montagem cênica e na criação de fios

condutores entre o cênico e os rituais do corpo, e entre os elementos característicos de outras

artes, como as visuais e a música, e se interessam principalmente

[...] em pesquisar novos modos de comunicação e significação [...], uma prática que, apesar de utilizar o corpo como matéria-prima, não se reduz somente à exploração de suas capacidades, incorporando também outros aspectos, tanto individuais quanto sociais, vinculados com o princípio básico de transformar o artista na sua própria obra, ou, melhor ainda, em sujeito e objeto de sua arte. 26

Os novos modos de comunicação e significação da realização artística implicam entender a

performance como uma expressão que se aproxima da vida e não que a represente.27 A

distância que separa o texto homérico da escrita contemporânea de Brie restringe-se, à medida

que o resgate dos temas ficcionais e históricos de antigas civilizações propicia um novo

discurso no presente: “Polidoro: [...] Cuando Troya cayó, quemada / exterminada usurpada

violada, / él me asesinó y abandonó en el mar mi cadáver. / Tendido en la arena, me sacude el

flujo de las olas, / en el juego alterno de las mareas. / Y no tengo sepulcro ni duelo.”28 O

grupo Teatro de los Andes não representa a Ilíada de Homero, mas estabelece, sim, uma nova

24 HILDEBRANDO; NASCIMENTO; ROJO, 2003, p. 9. 25 Movimentos das décadas de 1910 e 1920 que propunham “uma vasta abertura entre as formas de expressões artísticas, diminuindo de um lado a distância entre vida e arte, e, por outro, que os artistas se convertessem em mediadores de um processo social (ou estético-social).” (GLUSBERG, 2007, p. 12). 26 GLUSBERG, 2007, p. 43. 27 COHEN, 2007, p. 38. 28 “Polidoro: [...] Quando Tróia caiu queimada / exterminada, usurpada, violada, / ele me assassinou e abandonou no mar meu cadáver. / Estendido na areia, me sacode o fluxo das ondas, / no alternado jogo das marés. / E não tenho sepultura nem luto”. (BRIE, 2000, p. 2).

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relação, em outro espaço e tempo. Dessa forma, o grupo boliviano torna-se não somente o

sujeito da montagem, mas também o objeto de sua arte, que expressa uma linguagem única e

própria dos dias atuais. A inserção das personagens Rodolfo Walsh29 e Marcelo Quiroga30 —

ambos de dimensão testemunhal fantasmagórica, por se tratar de militantes políticos

assassinados durante as ditaduras argentina e boliviana, respectivamente — posiciona La

Ilíada brieniana31 no contexto performático que venho desenvolvendo. Mesmo sendo essa a

obra principal de minha dissertação, parece-me importante estabelecer, no desenrolar da

análise, comparações com a peça Otra vez Marcelo, pois ambas fazem parte da mesma

trilogia proposta pelo grupo, posicionam-se dentro do mesmo marco histórico latino-

americano e apresentam algumas personagens em comum. Por outro lado, trata-se de uma das

montagens do Teatro de los Andes que tive a oportunidade de assistir32, o que me proporciona

o entendimento da construção cênica como complementação dos sentidos da escrita de La

Ilíada buscados neste estudo.

Resgatar do passado a história de políticos assassinados não confere às obras uma dimensão

única de se ocuparem do passado. Não se trata de obras com um formato biográfico ou

documental. Ambas rompem a fronteira da história e da ficção. Além de performance de

protesto, querem também nos mostrar a urgência de entender o processo histórico não apenas

por sua linearidade arquivada, mas, igualmente, por meio da memória e do imaginário social.

De acordo com Diana Taylor, “la memoria es un fenómeno del presente, una puesta en escena

actual de un evento que tiene sus raíces en el pasado. A través de la performance se transmite

la memoria colectiva”.33 A propósito, Graciela Ravetti — seguindo a linha de pensamento de

Taylor e Jacques Derrida — desenvolve a teoria da “assinatura plural”, em que explica que o

29 Rodolfo Walsh – escritor e jornalista argentino – foi assassinado, em março de 1977, durante o governo ditatorial de Videla. Militante na campanha contra a opressão do período, Walsh está na lista dos trinta mil desaparecidos argentinos. 30 Marcelo Quiroga Santa Cruz — escritor, intelectual e político boliviano — foi assassinado em 1980, sob as ordens do General Luis García Meza, durante a ditadura de Hugo Bánzer. Membro do parlamento dessa época, Marcelo Quiroga representava uma ameaça aos interesses políticos desse governo por lutar pela nacionalização dos recursos naturais da Bolívia — o petróleo — e pela soberania nacional de seu país. Até os dias atuais, a família do escritor boliviano ainda luta na justiça para encontrar seu corpo. 31 A partir daqui, neologismo criado por mim para designar a obra de César Brie. 32 Peça encenada no Espaço Funarte Casa do Conde, Belo Horizonte, Minas Gerais, entre os dias 28 de julho e 01 de agosto de 2006. 33 “A memória é um fenômeno do presente, uma encenação atual de um evento que tem suas raízes no passado. Através da performance se transmite a memória coletiva.” (http://www.hemi.nyu.edu/archive/text/hijos2.html).

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homem, como ser individual, alcança ser “identificável em sua grupalidade”.34 As

personagens Marcelo Quiroga — em Otra vez Marcelo — e Polidoro e Rodolfo Walsh — em

La Ilíada — alcançam uma condição de arquivos, seus próprios arquivos, aqueles que

assinam, e a linguagem dramática as transforma em um arquivo performático, um chamado

para que, por meio dessa individualidade, seja possível levar essa problemática a uma

dimensão plural:

Marcelo: No les bastó haberme matado, destrozado mi cuerpo, escondido mis restos, necesitaron bularse de mi familia, vengarse en ellos para vengarse de mí.35 Walsh: Rodolfo Walsh, escritor periodista. Asesinado en Buenos Aires en 1977. Seis meses antes había muerto Victoria mi hija.36

Todas as ações contidas no passado determinam o presente e se projetam no futuro, mesmo

que o presente traga consigo o grau do “indicativo”, o grau de realidade. Nessa linha do

pensamento de Richard Schechner (1985), pode-se entender que Otra vez Marcelo, apesar de

não mudar o fato passado, já que esse aconteceu e é imutável, é uma leitura desse passado no

presente. Performance, para Schechner, é resgatar um sentido do passado. Essa peça foi

construída a partir de depoimentos e lembranças da própria família da personagem e de seus

discursos políticos. Schechner afirma que existe passado verificável e não-verificável, e

atribui uma importância maior ao que pode ser verificável. Por outro lado, Taylor mostra que,

normalmente, a história tradicional atribuiu um valor maior ao que é arquivo e a memória

corporificada — ou seja, o repertório —, em geral, é rejeitada pelo discurso oficial. Pode-se

pensar, portanto, que o resgate performático da peça caminha pelo viés de repertório, de

Taylor, mas é juntamente com o sentido de Schechner que a performance do Teatro de los

Andes “possibilita rever o papel da Arte na construção de nossos imaginários sociais e

históricos”.37

Para Schechner, a principal característica da performance é essa restauração de

comportamento, e isso só é possível quando “the practitioners of all these arts, rites and

34 RAVETTI, 2003, p. 38. 35 “Marcelo: Não bastou terem me matado, despedaçado meu corpo, escondido meus restos, precisaram zombar de minha família, vingarem neles para vingarem de mim.” (BRIE, 2005, p. 38). 36 “Walsh: Rodolfo Walsh, escritor jornalista. Assassinado em Buenos Aires em 1977. Seis meses antes tinha morrido Victoria minha filha”. (BRIE, 2000, p. 10). 37 ROJO, 2006, p. 308.

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healings assume that some behaviors.38 Essa afirmação se conecta com os conceitos de “ser

pensante” e “ser pensado”, de Taylor. A partir do significado da palavra quíchua Yuyachkani39

(“eu estou pensando, eu estou lembrando, eu sou seu pensamento”40), a autora vai dizer que o

trabalho teatral do grupo peruano é performático porque estabelece diálogo entre o sujeito

pensante e o sujeito pensado:

A construção recíproca e mútua que liga o ‘eu’ ao ‘tu’ não traduz uma identidade política compartilhada ou negociada – ‘eu’ não sou ‘você’, nem clamo ser ou agir por você. O ‘eu’ e o ‘tu’ são um produto das experiências e memórias de cada um, dos traumas históricos, dos espaços formados, das crises sócio-políticas.41

De acordo com Taylor, essa ruptura representa uma performance. Na cena peruana de “Dança

do Diabo”42 — do mesmo grupo teatral —, há uma restauração do comportamento andino

para estabelecer uma relação com a violência atual do Sendero Luminoso, da mesma forma

que, em Otra vez Marcelo, a cena em que a personagem Cristina usa uma máscara e dança

uma música de carnaval andino — revelando as duas faces do ditador Barrientos — é uma

tradição resgatada que nos remete ao poder que exercem as intenções econômicas estrangeiras

sobre o futuro da Bolívia: “Marcelo: Nos acaban de amenazar diciéndonos que ha

comenzado a correr el plazo para la aplicación de sanciones en contra de Bolívia”.43 Pode-se

encontrar o mesmo resgate de comportamento na escrita de La Ilíada, porque há um

deslocamento do espaço de resistência física de Tróia para o âmbito da resistência indígena,

durante a conquista espanhola: “Hécuba: Como todas las ciudades cerca de la costa / Tenía

torres, pájaros y viento del oeste / Y tú te bañabas a orillas del mar / Hasta que los griegos

trajeron la guerra”.44 Além da semelhança de sentido nas cenas, é possível, ainda, estabelecer

a mesma relação com os nomes Teatro de los Andes e Yuyachkani e afirmar que ambos os

grupos carregam em suas próprias designações a tradição andina e, normalmente, a conectam

38 “Os praticantes de todas as formas de arte assumem-nas como comportamento.” (SCHECHNER, 1985, p. 35). 39 Grupo de teatro coletivo do Peru, criado em 1971. Objeto principal de análise do artigo “Encenando a memória social: Yuyachkani”, de Diana Taylor (2002). 40 TAYLOR, 2002, p. 15. 41 TAYLOR, 2002, p. 15. 42 Performance do grupo teatral peruano Yuyachkani apresentada na Fiesta de la Candelária en Puno. 43 “Marcelo: Acabam de nos ameaçar, dizendo que começou a correr o prazo para a aplicação de sanções contra a Bolívia”.(BRIE, 2005, p. 26). 44 “Hécuba: Como todas as cidades perto do litoral / Tinha torres, pássaros e vento do oeste / E tu banhavas à beira mar / Até que o gregos trouxeram a guerra.” (BRIE, 2000, p. 2).

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com a realidade, rompendo a fronteira entre o sujeito pensante e o sujeito pensado e criando,

para Taylor, performance viva. Tanto para Schechner quanto para Taylor, a restauração e o

resgate de comportamentos do passado incorporam instâncias de ordem ritualísticas, como

danças e lutas características de grupos determinados. Somam-se — principalmente no

entendimento de Taylor — determinadas relações com situações do presente que culminam

em atos performáticos. Pode-se dizer, entretanto, que os resultados dos atos somente

introduzem um parcial julgamento no presente, mas não há uma crítica completa.

FIGURA 2 – Cristina. Otra vez Marcelo, 2004. Direção de César Brie. Fonte: http://www.teatrodelosandes.com.

2.2 Pluraridade e a justiça da história

Por outro ângulo, a restauração de comportamento, mediada pelo resgate da memória social,

atua como um pressuposto para a teoria que estabelece o caráter performático das narrativas

literárias latino-americanas. Graciela Ravetti considera a caracterização de tal escrita quando

esta apresenta um espaço no qual o sujeito expõe comportamentos sociais que transgridem o

modelo vigente.45 Essa autora associa o performativo às narrativas biográficas, ou, mais

especificamente, quando a literatura passa pelo corpo, pela “exposição radical do si-mesmo do

45 RAVETTI, 2002, p. 49.

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sujeito enunciador, assim como do local da enunciação”.46 Esse sujeito assume o papel de

mediador de um ato de fala — o ilocutório — e se torna comprometido com as alterações e

determinações das relações entre emissor e receptor.47 Nessa análise, pode-se pensar César

Brie como um enunciador / autor performer, porque, segundo a elaboração teórica de Ravetti,

“[sua] palavra consegue dar um salto a outras linguagens, a imagens geradas por outras leis, e

o diálogo que se instala faz uma alquimia que reforça os sentidos”.48 A autora estende a teoria

do performático na narrativa ao campo social:

A performance na América Latina, ademais do campo especificamente artístico, aparece nas práticas sociais como uma linguagem consolidada, como uma história apelativa que transita entre o cômico e o patético, o heróico e o trágico, o que a coloca como representativa da comunidade que se projeta como utopia ou programa a ser desenvolvido. Pode ser vista como um ato de presença com significação a futuro e como uma recuperação seletiva do passado ritualizado ou encenado.49

Se, para Ravetti, a performance na América Latina estabelece uma relação com as práticas

sociais — além da ligação com a biografia —, pode-se pensar La Ilíada como texto

performático também de caráter social, posto que, assim como a manifestação de protesto das

mães e avós da Praça de Maio — que todas as quintas-feiras reclamam a ausência de suas

vítimas —, a atualidade sociológica do texto brieniano está na união do poema épico às

famílias latino-americanas impossibilitadas de sepultar os parentes, desaparecidos durante os

anos de ditadura. Por meio do recurso da intertextualidade, Brie insere o passado clássico e

heróico na tragicidade de um fragmento histórico da América Latina; o texto ficcional assume

seu caráter performático no papel mediador que serve para transmitir, alterar e determinar

pulsões de ordem identitária no receptor. De acordo com as afirmações de Ravetti sobre a

performance na Literatura, é somente na ficção que se encontra a possibilidade de se

reconstituir o passado da guerra clássica e fazê-lo interagir com a repressão militar, de “se

apropriar de um código e de um contexto e de redefini-lo para o presente”.50 A

intencionalidade do dramaturgo argentino está em representar os apelos de uma comunidade,

e culmina em uma utopia:

46 RAVETTI, 2002, p. 47. 47 RAVETTI, 2002, p. 48. 48 RAVETTI, 2002, p. 63. 49 RAVETTI, 2002, p. 52. 50 RAVETTI, 2002, p. 56.

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Encontrar las formas de representar la violencia, sugerirla, mostrarla en su brutalidad y en su esencia y, por otro lado, desvelar lo que la violencia aniquila, el rostro del ser humano en su lado mejor: el del amor y de la compasión.51

Ao entrelaçamento do performativo biográfico e social, soma-se uma terceira instância:

segundo Ravetti, “a performance determina textos nos quais acontecimentos históricos

exercem poder estruturador sobre experiências pessoais reconhecíveis que atuam como

dissipadoras de leituras identificatórias”.52 Em La Ilíada, o signo histórico nomeado como

“período da ditadura militar” será reinventado no universo ficcional de Brie. A adaptação da

carta de investigação e denúncia de Walsh53 será o principal elemento para a construção de

mais uma cena que nos faz remeter o texto dramático ao citado período histórico latino-

americano. A letra do jornalista e escritor argentino se transforma em corpo, em pulsões, e

essa escrita se dispersa em leituras para o espectador no espaço cênico:

Walsh: Rodolfo Walsh, escritor periodista. Asesinado en Buenos Aires en 1977. Seis meses antes había muerto Victoria mi hija. (Abre un libro) La Ilíada: “Junto a su padre luchaba Arpalión / Una flecha aguda se hundió en su nalga / partió la vejiga, se incrustó en el hueso / Mojaba la sangre los brazos del padre / mientras lo llevaba a Troya y lloraba. / Por un hijo que muere no hay recompensa”.54

51 “Encontrar as formas de representar a violência, sugeri-la, mostrá-la em sua brutalidade e em sua essência e, por outro lado, revelar o que a violência aniquila, o rosto do ser humano em seu melhor lado: o do amor e o da compaixão.” (http://www.utopos.org/losandes/andes.htm). 52 RAVETTI, 2002, p. 57. 53 “La carta abierta de um escritor a la Junta Militar” (A carta aberta de um escritor à Junta Militar): carta escrita pelo jornalista argentino, Rodolfo Walsh, e enviada por correio a vários jornais de seu país no mesmo dia de seu desaparecimento. Nascido em 1927, desde 25 de março de 1977 seu nome consta na lista dos desaparecidos da ditadura militar da Argentina, iniciada em 1976. A editora argentina “De la flor” a publica, como apêndice, na edição de 1984 do livro de Rodolfo Walsh Operación masacre. 54 “Walsh: Rodolfo Walsh, escritor jornalista. Assassinado em Buenos Aires em 1977. Seis meses antes tinha morrido Victoria minha filha. (abre um livro) Ilíada: ‘Junto a seu pai lutava Harpalião / Uma flecha aguda afundou em sua nádega / partiu a bexiga, se incrustou no osso / Molhava o sangue os braços do pai / enquanto o levava a Tróia e chorava / Por um filho que morre não há recompensa’”. (BRIE, 2000, p. 10).

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De acordo com Ravetti, a performance se dá no híbrido, na mescla de gêneros — história,

práticas sociais, biografias — que, conseqüentemente, envolve uma contaminação de todas as

partes envolvidas. No final do primeiro ato de La Ilíada, projeta-se o hibridismo55:

Ceres 2: El destino llegó también para Diores / Píroo lo golpeó con una piedra en la peirna / Le quebró los huesos, los tendones. / Le cayó de espaldas en el polvo. Mientras se moría / Tendía los brazos a sus compañeros / Píroo le hundió su lanza en el vientre / Todas las entrañas cayeron en la tierra / Sobre los ojos del héroe bajó la tiniebla. […] Ceres 3: Gualberto Vega cayó en la sede de la COB / Una bala le atravesó el corazón / Sobre sus ojos bajó la oscura sombra. Ceres 1: A Marcelo Quiroga le dispararon también / Lo reconocieron en las escaleras / Traspasaron las balas el tierno cuerpo.56

Na primeira fala, há uma recomposição das violentas cenas da tomada de Tróia, que produz

no leitor uma “proximidade distanciada e uma distância próxima”57 da conquista sangrenta da

América Latina; as armas primitivas, como a lança e a pedra, remetem-nos ao macro-

contexto das cenas de barbárie que envolviam índios e europeus. Como um salto, que

desestabiliza o leitor, surgem, estranhamente, cenas da mesma espécie que projetam a

violência no micro-espaço da ditadura boliviana da década de 1980. O autor, de acordo com

certas afirmações de Homi Bhabha58 a respeito da literatura como espaço de reconhecimento

de especificidades históricas e diversidades culturais, insere, numa mesma esfera, essas

divisões históricas, afirmando a possibilidade do diálogo do público — a macro-história da

conquista — com o privado —, a micro-nomeação dos “caídos” da ditadura boliviana — e

esse momento híbrido faz de La Ilíada um exemplo das “artes performáticas [que] interferem

na política e a política na arte”.59 Dessa forma, torna-se possível entender que, diferentemente

55 A partir de Homi Bhabha (1998), condição liminar, fronteiriça e de passagem que possibilita a abertura de uma nova instância. 56 “Ceres 2: Chegou também o destino para Diores / Píroo o golpeou com uma pedra na perna / Quebrou-lhe os ossos, os tendões. / Caiu de costas no pó. / Enquanto morria / Estendia os braços aos seus companheiros / Píroo afundou-lhe sua lança no ventre / Todas as entranhas caíram na terra / Sobre os olhos do herói baixou a treva. [...] Ceres 3: Gualberto Vega caiu na sede da COB / Uma bala lhe atravessou o coração / Sobre seus olhos baixou a escura sombra. Ceres 1: Dispararam em Marcelo Quiroga também / Reconheceram-no nas escadas / Transpassaram as balas o terno corpo.” (BRIE, 2000, p. 8-9). 57 RAVETTI, 2002, p. 57. 58 BHABHA, 1998, p. 35. 59 RAVETTI, 2002, p. 57.

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de Taylor e Schechner, a performance híbrida60 abrange, de forma mais completa, o

julgamento das ações históricas e sociais do passado no presente.

Esse julgamento historiográfico de La Ilíada se aplica pela decisão do autor de inserir, em sua

performance, interesses ideológicos de caráter também revisionista. A crítica que se instala no

texto pode se sustentar, na teoria de Ravetti, concomitantemente com o campo da memória

histórica, traçado por Paul Ricoeur. Segundo o autor — e isto se adere ao pensamento da

literatura como único lugar onde se pode reinventar o passado —, é somente no estado não-

histórico61 que se pode inventar a ação injusta e, também, o ato de justiça. Se se pensa La

Ilíada como um texto que propõe ao espectador/leitor olhar o processo histórico não por uma

direção cristalizada, mas pelo viés da memória e do não-histórico, pode-se entender que é

somente no espaço ficcional de Brie que Polidoro, o filho assassinado de Príamo, pode

reclamar justiça:

Polidoro: [...] Y yo, y yo desventurado, por obtener un sepulcro / afloraré, afloraré en la orilla. ¡Tío! / He rezado a los dioses, los dioses que cuentan / para que me concedan una tumba, y me conduzcan entre / los brazos de mi madre, aterrorizada por mi sombra / ¡Tío!/ Aquello que pedí, va a serme concedido /¡Tío!/ El agua, el agua, me lleva el agua… mamá, mamá…62

O espaço não-histórico na escrita de La Ilíada não pretende somente recuperar as ações

catastróficas do passado, nem tampouco criar uma nova história; trata-se de um lugar de

denúncia da doença histórica tradicional e, também, um espaço fundador da necessidade de

estabelecer novas significações que concedam sentidos mais persuasivos ao presente. O

60 Define-se performance híbrida, em La Ilíada, a partir das cenas que remetem mesclas temporais de fragmentos históricos. O texto dramático como destruidor das continuidades e constâncias da tradição histórica, fornecendo, portanto, elementos para traduzir e negociar uma nova linguagem crítica da história. 61 Termo ligado à filosofia de Nietzsche, entendido por mim, com medição de texto de Paul Ricoeur, para designar a problemática do excesso de história, na era moderna, que atormentava a visão do filósofo alemão. Segundo ele, no estado não-histórico pode-se produzir tanto a “acción injusta” como “cualquier acto de justicia.” (NIETZCHE apud RICOEUR, 2000, p. 379). 62 “Polidoro: [...] E eu, e eu desventurado por conseguir uma sepultura / aflorarei, aflorarei nas margens. Tio! Tenho rezado aos deuses, os deuses que contam, / para que me concedam uma tumba, e me levem entre / os braços de minha mãe, apavorada por minha sombra / Tio! Aquilo que pedi, será a mim concedido / Tio! A água, a água, a água me leva... mamãe, mamãe...”. (BRIE, 2000, p. 2).

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tratamento que a história oficial63 aplica aos militares responsáveis pelo genocídio praticado,

nas décadas de 1960, 1970 e 1980, em vários países da América Latina, visa ao crescimento e

à preparação da economia para o futuro promissor desses países e nega a responsabilidade

pelo delito contra a humanidade. Os governantes militares se enquadram na denominação de

história monumental, que “no es definida en primer lugar por el exceso, sino por la utilidad

que ocultan ‘modelos que hay que imitar y superar’; por esa historia, ‘la grandeza se

perpetúa’”;64 ou seja, aquela história que agarra um signo significativo no passado e o arrasta

para o presente como um modelo de funcionamento de algum setor do sistema hegemônico.

La Ilíada rompe com a história monumental, coloca, à frente do herói militar, o filho morto

pedindo sepultamento, mas sem elementos binários clássicos — bons e maus, gregos e

troianos:

Brieseida: Eran hombres que dejaron caer sus corajes como otoños. A mí me dijeron que griegos y troyanos se mezclaban unos con otros bajo los árboles tupidos. Todos buscaban sus muertos. Difícil era reconocerlos. […] Aquiles: Aquí está tu hijo, cuando llegue el Alba / Te lo llevarás. Ahora comamos. / Luego llorarás por el hijo muerto. […] Apolo: Aquiles degolló a una oveja, la puso en el fuego / Repartió el pan y sirvió el vino. / Dividió la carne y mientras comían / Príamo admiraba su forma y belleza, parecido a un dios. / Y Aquiles observaba el rostro noble del anciano / y oía su voz. […] Aquiles: Viejo, rescataste a tu hijo, es hora de partir.65

No desdobramento da história oficial, a escrita de Brie percorre o caminho da história crítica

— outra forma esboçada por Ricoeur —, fazendo uma revisão do passado militarista,

questionando e testando sua convalidação monumental. De acordo com esse teórico, “la

historia crítica designa el momento del olvido merecido. En este caso, el peligro para la vida

coincide con su utilidad”;66 portanto, a negação no campo histórico do genocídio pode ser

63 A partir de Paul Ricoeur (2000), a história oficial não como método historiográfico, mas como cultura histórica, ou seja, o confronto entre utilidades e conveniências triunfantes e o campo da memória. 64 “Não é definida, em primeiro lugar, pelo excesso, senão pela utilidade que ocultam ‘modelos que há que imitar e superar’; por essa história, ‘a grandeza se perpetua’”. (RICOEUR, 2000, p. 380). 65 “Briseida: Eram homens que deixaram cair suas coragens como outonos. Disseram-me que gregos e troianos se misturavam uns com os outros debaixo das árvores tupidas. Todos procuravam seus mortos. Difícil era reconhecê-los. [...] Aquiles: Aqui está teu filho, quando chegar o Alba / O levarás. Agora comamos / Em breve chorarás pelo filho morto. [...] Apolo: Aquiles degolou uma ovelha, a colocou no fogo / Repartiu o pão e serviu o vinho. / Dividiu a carne e enquanto comiam / Príamo admirava sua forma e beleza, parecida a de um deus / E Aquiles observava o rosto nobre do ancião / e ouvia sua voz [...] Aquiles: Velho, resgata teu filho, é hora de partir.” (BRIE, 2000, p. 9-19). 66 “A história crítica designa o momento do esquecimento merecido. Neste caso, o perigo para a vida coincide com sua utilidade”. (RICOEUR, 2000, p. 381).

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tratada como um acontecimento esquecido, devido ao mal-estar que causaria a todo um

sistema. Essa emergência de narrar as rupturas de um fato faz parte da nova história que

preconiza Walter Benjamin em seu ensaio “Sobre o conceito de história” (1994). Para esse

autor alemão — via estudos de Jeanne Marie Gagnebin —, história e narrativa não só

constituem um diálogo; ambas são tecidas a partir do mesmo fio condutor que leva ao

entendimento profundo da existência. Foi por intermédio dos estudos sobre a importância da

narração para a constituição do sujeito que Benjamin teceu seus conceitos sobre a História.

Em suas análises teóricas sobre a Literatura — principalmente a partir das obras de Kafka e

Proust —, pode-se compreender que tanto História quanto Literatura estão enraizadas na

problemática da composição do passado, do lembrar, da memória e, portanto, da identidade

da existência humana. Entende-se, nesse sentido, que essa narrativa que possibilita a

constituição do diálogo com a História aproxima-se da narrativa performática, que sustenta

Graciela Ravetti. Gagnebin ressalta que todo o périplo para a reconstituição do lembrar

passará, condicionalmente, pelo

[...] refluxo do esquecimento: esquecimento que seria não só uma falha, um ‘branco’ de memória, mas também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração.67

Pensa-se essa atividade de apagar, renunciar e recortar como mecanismo da memória. É

possível, portanto, aqui, estabelecer também um vínculo com a visão de Heidegger —

mediante o estudo de Ricoeur — de que o esquecimento está no mesmo patamar que a

memória; ou seja, que é o esquecimento que a possibilita:

Así como la espera de algo sólo es posible sobre la base del estar a la espera, de igual modo el recuerdo sólo es posible sobre la base del olvidar, y no al revés; porque, en la modalidad del olvido, el haber-sido abre primariamente el horizonte en el que el Daisen perdido en la exterioridad puede acordarse de lo que se preocupa.68

67 GAGNEBIN, 1994, p. 4. 68 “Da mesma forma que a espera por algo só é possível sobre a base do estar à espera, a lembrança só é possível sobre a base do esquecer, e não ao revés; porque, na modalidade do esquecimento, o ter-sido abre primeiramente o horizonte no qual o Dasein perdido na ‘exterioridade’ pode se lembrar do que se preocupa.” (HEIDEGGER apud RICOEUR, 2000, p. 566).

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Chega-se à conclusão, acima, de Heidegger: para lembrar, é preciso esquecer. E Benjamin

exemplifica o movimento da memória a partir de um recorte panorâmico da Odisséia. O véu

que tece Penélope durante o dia e o desfaz durante a noite pode ser tratado como um

movimento de rememoração na narrativa, porque tece para “lembrar do esposo ausente,

portanto da fidelidade conjugal”,69 e desfaz — esquece —, para ser lembrado na manhã

seguinte. Essa memória seletiva vincula-se a teses como a da inquietação de uma nova escrita

historicista no lócus enunciativo do discurso nacionalista ocidental, porque tanto a memória

quanto o esquecimento funcionam a partir de interesses do progresso, na modernidade. Ao se

pensar as personagens de La Iíada e de Otra vez Marcelo como constituintes da lembrança da

luta e dos assassinatos de pessoas que enfrentaram e desafiaram o poder e,

performaticamente, contêm a pluralidade do resultado repressivo latino-americano, pode-se

entender que ambas as obras consistem na defesa de um processo histórico esclarecedor,

esquecido por interesses de ordens política e ideológica.

2.3 Redefinição dos completos

FIGURA 3 – La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

69 GAGNEBIN, 1994, p. 5.

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Essa impossibilidade de dissociação entre história e memória, no contexto ditatorial de La

Ilíada, transcende — a partir de um mesmo plano de interesse autoral — uma dimensão

esclarecedora também do período colonial latino-americano. As cenas que resgatam esse

contexto — já descritas anteriormente — proporcionam o não-esquecimento da barbárie

ocorrida na conquista da América, no século XV, encoberta pelas comemorações de valor

simbólico — o descobrimento da América — que abrangem uma rememoração oca dos

acontecimentos históricos relacionados a essa época, como a negação étnica do passado

histórico de civilizações aniquiladas pelos conquistadores / colonizadores.

Entende-se, portanto, a aproximação de dois períodos diferentes da História da América

Latina — para o autor de La Ilíada, iguais, no quesito violência — como uma fratura das

divisões clássicas da História como “colonial” e “moderna”. Uma das questões em Walter

Mignolo (2003) — como parte de sua teoria pós-colonial — compreende a incapacidade de

desvincular modernidade e colonialismo, porque o processo de consolidação dos Estados

modernos é uma função dentro da dimensão internacional do poder, e não uma unidade

autônoma. De acordo com esse mesmo autor, a América Latina torna-se parte do conjunto

periférico, no momento colonial, quando as expansões marítimas espanhola e portuguesa

inauguram a era moderna. O lugar periférico se acentua quando a Inglaterra, a França e a

Alemanha se fortalecem e colocam — no século XVIII — a Europa como “centro de uma

história universal”.70 Segundo Mignolo, essa consolidação do poder é a máquina geradora da

subalternização, denominada “sistema mundial moderno/colonial”. Fazendo uso do conceito

de “colonialidade do poder”, do sociólogo peruano Aníbal Quijano, Mignolo afirma que o

imaginário colonial do colonizador — atribuindo-lhe a razão, a bondade, a civilização e a

racionalidade — e do colonizado — tendo a maldade, a barbárie e a imoderação como suas

marcas identitárias — é reproduzido no interior de cada nação, tornando visível a diferença

colonial. Nessa diferença se legitima, por conjecturas, “a subalternização do conhecimento e a

subjugação dos povos”. E conclui Mignolo:

[...] Assim, a geopolítica do conhecimento torna-se um conceito poderoso para evitar a crítica eurocêntrica do eurocentrismo e para legitimar as epistemologias liminares que emergem das feridas das histórias, memórias e experiências coloniais.71

70 DUSSEL apud MIGNOLO, 2003, p. 166. 71 MIGNOLO, 2003, p. 66.

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A condição fraturada do discurso liminar está no exemplo da questão colonial de La Ilíada. É

no pensar a partir das fraturas, e não da organização nelas, que o fazer teatral do Teatro de los

Andes torna-se uma linguagem legitimadora, mas não somente como contrapartida da História

tradicional, e sim como uma ruptura performativa com os projetos históricos globais que

pretende resgatar (buscar) uma lógica diferente.72 As fraturas que emergem do texto de Brie

— pelo recurso da intertextualidade — refletem a idéia de Bhabha de entre-lugar, de

condição fronteiriça, de híbrido,73 concomitantemente com o discurso liminar de Mignolo. O

autor de O local da cultura articula os termos para designar o lugar de voz da diferença

cultural. E essa diferença

[são] culturas de contra-modernidade pós-colonial [que] podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para “traduzir”, e portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da modernidade.74

Se, para Bhabha — assim como para Mignolo —, a voz da diferença cultural é uma re-

escritura, pode-se pensar os entre-lugares que emergem das fraturas do texto brieniano como

traduções enunciativas dialógicas, no sentido performativo do resgatar, porque

tenta[m] rastrear deslocamentos e realinhamentos que são o resultado de antagonismos e articulações culturais – subvertendo a razão do momento hegemônico e recolocando lugares híbridos, alternativos, de negociação cultural. 75

Pensando o lugar enunciativo da personagem Walsh — Argentina, pós-colônia, América

Latina, 1977, período ditatorial — entende-se, nos parâmetros de Bhabha (1998), que a

emergência da personagem em narrar o assassinato da filha, e o seu próprio, posiciona o texto

do dramaturgo argentino no conjunto participativo de um tempo de necessidades de resgates,

de revisões e de intervenções para renovar o passado. Tais necessidades provêm de

72 MIGNOLO, 2003, p. 47. 73 Os termos, híbrido, condição fronteiriça e entre-lugar remetem à noção de umbral, instância liminar, de passagem, que se permite reabrir uma seqüência; aproxima-se do conceito de performance como híbrido, de Graciela Ravetti, através de Homi Bhabha, tratado, neste estudo, nas páginas 28 e 29. 74 BHABHA, 1998, p. 26. 75 BHABHA, 1998, p. 248.

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imposições totalitárias e globalizadas que têm reflexos sobre grupos que vivem em

negociação76 constante com o modelo moderno:

A contribuição da negociação é trazer o “entre-lugar” desse argumento crucial; ele não é autocontraditório, mas apresenta, de forma significativa, no processo de sua discussão, os problemas de juízo e identificação que embasam o espaço político de sua enunciação. [...] o grupo liberatório que inicia a instabilidade produtiva da mudança cultural revolucionária é ele mesmo portador de uma identidade híbrida. Seus elementos estão presos no tempo descontínuo da tradução e da negociação.77

Os signos de fragmentação da tradução, da negociação e do pensamento liminar, de Mignolo,

tornam-se justamente a via contrária, pela qual caminha a performance brieniana, e, segundo

Bhabha, é no trânsito por esse caminho que a diferença cultural tem a “possibilidade de evitar

a política da polaridade”.78 A temática de La Ilíada não é a busca constante das famílias pelos

seus desaparecidos, o reclamar por seu sepultamento digno, a explanação da luta pró-

indígena, trata-se do nem um nem outro, mas de uma mescla de tudo isso, e é justamente essa

mistura que se cristaliza na tradução performativa de Brie:

Hécuba: No perdi nada, renuncio a todo. / ¿Mis hijos ya no están?, yo los rechazo / No pari a nadie, no crié a nadie / Yo no tuve nietos. / Nadie quemó a Troya, nadie vivió aquí, / No hubo torres sin mar golpeando en las murallas… / Renuncio a la memoria. Lo que contamos volverá a existir, / No existen el nunca más, ni el para siempre. Los / carniceros aprenden del grito de sus víctimas. Las víctimas / no aprenden. Hasta el último instante no saben que son / víctimas. No se aprende de lo que no se reconoce…79

76 A partir da teoria da tradução, de Walter Benjamin, a negociação, segundo Bhabha, consiste na performatividade da tradução, “o elemento estrangeiro ‘destrói também as estruturas de referência e a comunicação de sentido do original’ não simplesmente negando-o, mas negociando a disjunção em que temporalidades culturais sucessivas são ‘preservadas no mecanismo da história e ao mesmo tempo canceladas”. (BHABHA, 1998, p. 312). 77 BHABHA, 1998, p. 57, 68. 78 BHABHA, 1998, p. 69. 79 “Hécuba: Não perdi nada, renuncio a tudo. / Meus filhos já não estão? Eu os rechaço / Não pari ninguém, não criei ninguém / Não tive netos / Ninguém queimou Tróia, ninguém viveu aqui, / Não houve torres nem mar golpeando nas muralhas... / Renuncio à memória. O que contamos voltará a existir, / Não existem o nunca mais nem o para sempre. Os / carniceiros aprendem com o grito de suas vítimas. As vítimas / não aprendem. Até o último instante não sabem que são / vítimas. Não se aprende o que não se conhece”. (BRIE, 2000, p. 20).

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Essa tradução representa tanto a pulsão da totalidade como a da singularidade, porque, de

acordo com Bhabha, no cerne do texto brieniano produz-se a heterogeneidade da História,

desestabilizando a noção de uma temática repetitiva e homogênea. A linguagem que

transborda da tradução performática de Brie caracteriza o discurso da diferença cultural das

personagens. Essa diferença eleva-se, principalmente, de Rodolfo Walsh e Marcelo Quiroga

como representações universalizadas das vítimas da repressão militar e das desaparições desse

período —; ao mesmo tempo, representações heterogêneas da história tradicional. Apesar do

conjunto da militância vitimada se compor de pessoas brancas, de classe média, cidadãos

cumpridores de seus deveres — portanto, aceitos e protegidos pelo modelo moderno de

sociedade —, no momento em que passam a praticar atos contrários aos interesses do sistema

totalitário, são postos à margem e inseridos em uma “colonialidade”80 do poder — crianças

seqüestradas, filhos torturados e assassinados, desaparecimento dos corpos, impossibilidade

de sepultamento. Aí, o outro — ou a minoria englobada, na designação de Mignolo (2003), de

subalternização do conhecimento — que, no espaço da escrita brieniana, mantém-se no

interior da hierarquia da “colonialidade” do poder — possivelmente representada pelo

totalitarismo da ditadura —, é o morto que almeja o enterro, é o clandestino estrangeiro em

sua própria terra e o exilado, é o outro ausente, o invisibilizado, o objeto do esquecimento,

aquele que “perde seu poder de significar, de negar, de iniciar seu desejo histórico, de

estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional”.81 Nas metáforas do outro,

surgem o exilado, o torturador e suas vítimas; o texto brieniano como expoente do

colonizador/colonizado dos tempos atuais:

Briseida: Vamos Mines, respira, recupera, escaparemos, nos perderemos en los bosques hasta que todo haya terminado. Viveremos como bestias, pero viveremos. / Diomedes: Que ninguno piense en regresar a casa / Antes de haberse acostado con una troyana / Esposa de un muerto / Y de haber vengado los gemidos de Helena. Briseida: Las esclavas llorábamos por / Patroclo muerto y no era verdad, Llorábamos por nosotras / Por nuestro destino de presas de guerra / De esclavas, de objetos, de mujeres solas / Cada uno lloraba su propio dolor. 82

80 MIGNOLO, 2003. 81 BHABHA, 1998, p. 59. 82 “Briseida: Vamos Mires, respira, recupera, escaparemos, nos perderemos nos bosques até que tudo haja terminado. Viveremos como bestas, mas viveremos. / Diomedes: Que nenhum pense em regressar à casa / Antes de ter se deitado com uma troiana / Esposa de um morto / E de ter vingado os gemidos de Helena. / Briseida: Nós, escravas, chorávamos por / Pátroclo morto e não era verdade / Chorávamos por nós / Por nosso destino de presas de guerra / De escravas, de objetos, de mulheres sozinhas / Cada um chorava por sua própria dor.” (BRIE, 2000, p. 3, 5).

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A tradução da violência do contexto épico para o texto contemporâneo é, certamente, mais um

expoente esclarecedor da tradição dos oprimidos de Benjamin e a figuração do outro nas

personagens de Brie. Vários fragmentos do texto demonstram a disposição do autor de

mostrar a urgência da articulação de fatos excluídos do discurso oficial para revelar, assim

como o historiador preocupado de Benjamin, que “também os mortos não estarão em

segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”:83

Walsh: Más de cien soldados rodearon la casa / Con tanque, helicóptero, ametralladoras / Victoria, en camisón corrió hasta la azotea / El combate duró una hora y media / Mi hija conocía el trato que ejército y marina / Dispensaban a los prisioneros, y pensaba / Que el pecado no era hablar, sino caer viva. / De pronto hubo silencio, Victoria se levantó, / Se acercó a la cornisa / Flaca, de pelo largo, en camisón de noche / Alicia en el país de las pesadillas / “No nos matan ustedes”, dijo a la tropa / “Nosotros elegimos morir” y luego / llevó una pistola a la sien, y apretó el gatillo.84

“Cair viva” nas mãos do inimigo significa estar sujeita às torturas e, conseqüentemente, a

revelar ações e nomes de companheiros. O jornalista e escritor argentino — e personagem de

La Ilíada — mostra, ao narrar a morte da filha, que, mesmo ela cometendo suicídio diante das

tropas militares, seu silêncio não é o vencedor:

Ceres 2: Dieron en Carlos Flores, que estaba detrás. / Cayeron ambos. Los llevaron heridos / Hasta la sede del Estado Mayor / Coro: Los insultaron, ultrajaron, torturaron / Hasta que los alcanzó la fría muerte / Y el destino implacable. / Ceres 2: Los cuerpos… aún los parientes buscan / Los cuerpos para el duelo. / Ceres 1: Sin sepulcro yacen en algún lugar. / Ceres 2: De ellos quedan el nombre y la memoria / pero no la tumba.85

83 BENJAMIN, 1994, p. 224-225. 84 “Walsh: Mais de cem soldados rodearam a casa / Com tanque, helicóptero, metralhadoras / Victoria, de camisola, correu até o terraço / O combate durou uma hora e meia / Minha filha conhecia o tratamento que exército e marinha dão aos prisioneiros, e pensava / Que o pecado não era falar, senão cair viva. / De repente houve silêncio, Victória se levantou / Se aproximou da cornija / Magra, de cabelo comprido, de camisola / Alice no país dos pesadelos / ‘Não nos matam vocês’, disse à tropa / ‘Nós escolhemos morrer’ e em seguida / levou um revólver à cabeça, e apertou o gatilho.” (BRIE, 2000, p. 10). 85 “Ceres 2: Deram em Carlos Fuente, que estava atrás / Ambos caíram. Foram levados feridos / Até a sede do Estado Maior / Coro: Foram insultados, ultrajados, torturados / Até que os alcançou a fria morte / E o destino impecável / Ceres 2: Os corpos... os parentes ainda procuram / Os corpos para a dor / Ceres 1: Sem sepulcro jazem em algum lugar / Ceres 2: Deles restam o nome e a memória / mas não a tumba” (BRIE, 2000, p. 9 ).

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Alguns anos depois, no contexto da ditadura boliviana, a narração do ocorrido com vários

companheiros de Marcelo Quiroga indica que o poder militar continuava com a vitória. Os

outros que narram o discurso da diferença cultural em Brie vêm à tona como ilhotas

flutuantes no meio do oceano, que desfazem a imagem grandiosa e uniforme das ditaduras

argentina e boliviana, marcadas, no discurso oficial, como períodos de grande avanço

econômico e questionando “sempre cada vitória dos dominadores”.86 As interrogativas do

fazer teatral de Brie abrem novas portas aos nossos sentidos, assim como o artista mexicano

Gómez-Peña, que nos incita a enxergar a diferença:

A noção falida de um cadinho [melting pot] foi substituída por um modelo que é mais apropriado aos novos tempos, o da caldeirada menudo. De acordo com este modelo, a maioria dos ingredientes derrete, mas alguns pedaços teimosos são condenados a simplesmente flutuar.87

Segundo Bhabha, são esses fragmentos teimosos que possibilitam levar adiante “as exigências

do passado e as necessidades do presente”.88 Esses requerimentos pretéritos habitam tanto na

ideologia do Teatro de los Andes como em nós mesmos. Estamos sempre resgatando

momentos que tiveram um sentido em nosso passado e insistem em tê-lo também no presente.

Transcender essa noção para a esfera da temática de Brie é concordar com a necessidade de se

preservar uma memória que, muitas vezes, a História tratou de aniquilar.

De várias formas, tais movimentos de aniquilação foram expostos nesta parte da investigação

do texto dramático de La Ilíada. Seu remanejamento faz parte de uma teoria atual que

sustenta a dissociação das dicotomias falsas e verdades evidentes, sempre apoiadas em

“sistemas completos, absolutos y autónomos que tienden hacia un centro bien definido y

solidamente establecido”,89 seja deslizando sobre a herança colonial, nos termos de Bhabha e

Mignolo; no resgate de um sentido nos comportamentos do passado, como propõem Taylor e

Schechner; seja na narrativa performática de Ravetti e pela nova leitura dos fragmentos da

História para negar o progresso da modernidade em Benjamin e Ricoeur. Todos esses

86 BENJAMIN, 1994, p. 224. 87 GÓMEZ-PEÑA apud BHABHA, 1998, p. 300-301. 88 BHABHA, 1998, p. 301. 89 “sistemas completos, absolutos e autônomos que se direcionam a um centro bem definido e solidamente estabelecido.” (ANSPACH apud ROSTER; ROJAS, 1992, p. 178).

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caminhos contribuem para determinar o papel do fazer teatral de Brie como ampla

manifestação performática, acrescida de forte interesse social, político e histórico, que o

remete ao interior das investigações teóricas da questão das controversas provenientes do

sistema hegemônico moderno, nas quais o alvo maior é o embate da diferença social. Essa

manifestação artística representa, também, o poder do testemunho no espaço da discussão dos

problemas do passado que se refletem no tempo do presente, nos julgamentos de caráter

críticos do aqui e agora. Nos espaços fronteiriços da escrita e suas personagens

universalizadas, caracterizaram os pilares para estabelecer a dialógica. Nesse caso, é a forma,

à maneira de Brie, de fazer ver que o passado não tão remoto da história latino-americana

necessita ser resgatado e ser entendido por outros olhares.

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3 A QUESTÃO LUTO: LAMENTO E MELANCOLIA NO PROCESSO DA PERDA

Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu 90

Chico Buarque

3.1 Dos cantos iliádicos ao lamento contemporâneo

FIGURA 4 – La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Sonhos, presságios e lamentos. A intervenção onírica de Zeus instiga a investida dos aqueus

sobre a cidade de Tróia. O próprio prólogo da ficção homérica anuncia o encontro do leitor

com a perdição de numerosos heróis. O vaticínio feminino de Andrômaca e Tétis prevê tanto

a morte de Heitor quanto o doloroso estado de luto de Aquiles. A sombra fantasmagórica de

90 Pedaço de mim, 1977-1978. Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html>. Acesso em: 08 abr. 2009.

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Pátroclo expressa o desejo da finalização funérea. Essas são cenas típicas do conjunto iliádico

que antecipam os estados de sofrimento e o indefinível vazio produzido pela morte. A

narrativa homérica é, por si, um grande presságio. A catástrofe que se abaterá sobre a cidade

dos valentes troianos é inevitável; daí, os lamentos de Hécuba e Andrômaca, conscientes de

seus destinos escravizados junto aos próprios filhos. Os relatos da Ilíada, em grande parte,

são, portanto, antecipados pelo poeta, caracterizando uma função que vai além das

experiências, além do que os olhos vêem. Visões poéticas que remetem, principalmente, a

questões trágicas. O poeta-adivinho assemelha-se seu lamento àquele próprio da feminilidade

e se distancia das dores másculas dos heróis da batalha. A glória dos guerreiros é exaltada em

todos os cantos, mas o desfecho da ficção, atribuído aos funerais de Heitor e às lamentosas

palavras de Helena e Andrômaca, sobrepõem-se a kleos, avisando ao leitor que o choro e a

dor sempre foram protagonistas no conjunto. Sonhos anunciadores, presságios catastróficos e

lamentos do vazio resultante. Instala-se, na Ilíada, o luto. Não somente o luto pelo cadáver, o

luto da morte, mas o luto da perda. Da perda de conquista, da perda de liberdade, da perda do

que poderia ser e nunca será.

Recriar o poema homérico para o cenário latino-americano é seguir, de acordo com Idelber

Avelar (2003), a “tradição da literatura enlutada”.91 A atmosfera do luto ilíádico, essa pulsão

lamentosa de “autoluto pela morte de outro”,92 deixa-se inserir na escrita teatral pós-ditatorial

de César Brie. Mesmo extraindo as personagens que atualizam o argumento do autor

argentino — como Marcelo Quiroga Santa Cruz e Rodolfo Walsh93 —, é possível notar, por

exemplo, na luta de Príamo para resgatar o corpo do filho Heitor,94 o elo entre as

temporalidades. Voltar a localizar as personagens é, portanto, afirmar, explicitamente, a

intenção autoral de expor quadros representativos do luto não resolvido desse contexto. A

91 AVELAR, 2003, p. 136. 92 STATEN apud AVELAR, 2003, p. 136. 93 Marcelo Quiroga Santa Cruz — escritor, intelectual e político boliviano — foi assassinado em 1980, sob as ordens do General Luis García Meza, durante a ditadura de Hugo Bánzer. Membro do parlamento dessa época, Marcelo Quiroga representava uma ameaça aos interesses políticos desse governo (por lutar pela nacionalização do petróleo) e à soberania nacional de seu país. Até hoje, a família do escritor boliviano luta, na Justiça, para encontrar seu corpo. Rodolfo Walsh — escritor e jornalista argentino — foi assassinado em março de 1977, durante o governo ditatorial de Videla. Militante na campanha contra a opressão do período, Walsh está na lista dos trinta mil desaparecidos argentinos. 94 As personagens Príamo e Heitor, no contexto da obra de César Brie, são representações simbólicas de todas as famílias da América Latina que buscam pelos restos dos parentes desaparecidos durante repressões ditatoriais.

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Ilíada de Homero — em sua condição de inauguradora dessa literatura — é um relâmpago do

passado que se projeta no tempo presente.

Se, no capítulo anterior, os estudos da história e da memória formaram a consistência analítica

para caracterizar a obra de Brie como uma performance de caráter crítico, a questão do luto

iliádico representa, no andamento desta investigação, uma incisão nesse corpus performático,

o que permitirá imergir na temática universal do processo da perda. A partir da adaptação

contemporânea de Brie, observa-se a totalidade do luto, a partir de um espaço referencial

enunciador — América Latina — no qual a problemática dos desaparecimentos políticos em

épocas repressivas restitui um passado que gera, no presente, reflexões sobre os absurdos da

violência, da guerra, do esquecimento da História e, sobretudo, dos laços familiares rompidos.

Eis algumas passagens que projetam as temáticas:

Diomedes: Que ninguno piense em regresar a casa / Antes de haberse acostado con una troyana / Esposa de un muerto / Y de haber vengado los gemidos de Helena. [...] Relator: Chocaban los escudos, las lanzas, el furor / Se meszclaban los gritos de alegría y dolor / De los que mataban y de los que morían / La sangre mojaba la tierra. [...] Trabajador: también sugerimos respetuosamente que se apilen los cuerpos en las celdas frigoríficas, para poder cumplir del mejor modo posible con nuestra labor. Firman: trabajadores de la morgue judicial de Córdoba, Argentina, junio de 1980. [...] Andrómaca: Otros lo echarán: ‘tú no tienes padre’ / Le dirán. Astianacte, hijo / Que antes te sentabas en brazos de Héctor / Pronto sufrirás al padre perdido.95

O luto homérico é parte de um quadro de questões que determina os versos da Ilíada como

pilares da composição social e cultural da civilização grega. Nesse cenário, pode-se dizer que

a poesia assume – juntamente com modalidades relacionadas com o pensamento racional,

como a História e a Filosofia — um papel estruturador e educador de povos, atingindo a

transmissão e resgate de costumes, tradições, crenças, rituais, valores, ética social, política e

95 BRIE, 2000. “Diomedes: Que nenhum pense em regressar à casa / Antes de ter dormido com uma troiana / Esposa de um morto / E de ter vingado os gemidos de Helena.” (BRIE, 2000, p. 5), “[...] Relator: Colidiam os escudos, as lanças, o furor / Misturavam-se os gritos de alegria e de dor / Dos que matavam e dos que morriam / O sangue molhava a terra.” (BRIE, 2000, p. 8), “[...] Trabalhador: Sugerimos também, respeitosamente, que se empilhem os corpos nas câmaras frigoríficas para poder cumprir, do melhor modo possível, com nosso trabalho. Assinam: trabalhadores do necrotério judicial de Córdoba, Argentina, junho de 1980.” (BRIE, 2000, p. 11), “[...] Andrômaca: Outros o largarão: ‘tu não tens pai’ / Lhe dirão. Astianacte, filho / Que antes te sentavas em braços de Heitor / Breve sofrerás o pai perdido.” (BRIE, 2000, p. 5).

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guerreira. Aquiles e Príamo são os grandes protagonistas do estado de luto do extenso poema.

Ambos — pela morte de seus entes queridos Pátroclo e Heitor, respectivamente — derramam

lágrimas que caracterizam um lamento de morte normalmente feminino e um louvor dedicado

a grandes heróis. Nas linhas de Dangerous voices (1992), Gail Holst-Warhaft aponta que o

lamento feminino diz respeito a um ato extensivo da sua própria condição. Algumas

personagens homéricas exemplificam o argumento dessa autora. O incontrolável choro de

Briseida pela morte de Pátroclo revela não só a dor pela perda do amigo; mostra, também,

uma lamentação de natureza fílmica de sua própria vida. Ao relembrar que o marido fora

morto pelo mesmo herói que a levou como escrava, Briseida chorava “ao mesmo tempo, o

grande e pessoal infortúnio”.96 Com a morte de Heitor, o destino de Briseida será uma

antecipação do que acontecerá com Andrômaca. A esposa do glorioso herói troiano já havia

pressagiado seu futuro no canto IV, caracterizando, assim, nas palavras de Holst-Warhaft,

que:

The kinswomen’s lament for their menfolk killed in battle are not filled with praise of their heroic feats, but generally focus on the plight of the bereaved. Their laments form an integral part of the elaborate rites for the dead.97

O exaltado luto de Aquiles por Pátroclo mostra a feminilidade do herói aqueu perante o

sofrimento da perda. Sabe-se, da cultura grega, que os rituais da cerimônia do luto são,

normalmente, praticados pelas mulheres. Nesse sentido, no canto XVIII, a poesia de Homero

toma um curso oposto, pois a condição de chefe do funeral é, em todo o seu processo poético,

atribuída a Aquiles. Juntamente às tarefas designadas às mulheres, Aquiles evidencia,

também, características de ânimo próprio do lamento feminino. A morte de Pátroclo

representa, para o herói de pés velozes, o luto por sua própria morte. O guerreiro está ciente

de sua condição de morrer jovem, um destino já desenhado por sua mãe Tétis. O começo da

elaboração de vingança pela morte do amigo certamente culminará no rompimento de sua

vida, mesmo que, no enredo da Ilíada, a morte de Aquiles seja somente uma antecipação do

poeta. Para o teórico clássico James Redfield (1975), o luto homérico não enfatiza a memória

do passado, mas, certamente, a definição de uma nova situação. Depois da morte, “the living

96 NUNES, 2001, p. 304 (XIX, 302). 97 “O lamento das parentas pelos homens mortos em batalha não é preenchido pelo louvor de seus feitos heróicos, mas geralmente concentra-se na condição da enlutada. A forma de seu lamento é parte integrante dos complicados rituais para o morto.” (HOLST-WARHAFT, 1992, p. 114).

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person is thus dismissed, and a new social figure, the absent one, is created”.98 Já no último

canto do poema, encontra-se Príamo na tenda de Aquiles, implorando-lhe o corpo de Heitor,

para os procedimentos fúnebres. Embora as grandes temáticas da Ilíada sejam o combate e a

glória dos guerreiros, o desfecho da grande batalha é atribuído à complicada súplica de um pai

para resgatar o corpo do filho. O lamento de Príamo, que surge no canto XXII, já antecipa o

trágico destino da cidade de Tróia, de suas mulheres e filhos, e, portanto, do seu próprio:

[...] mortos os filhos queridos, as filhas privadas do dia da liberdade, violado o recinto sagrado dos tálamos, os meus netinhos jogados ao solo durante a refrega, e em servidão, pelos duros Aqueus arrastadas, as noras. E quando, alfim, qualquer Dânao me houver da existência privado, com bronze agudo ferindo-me, ou seta de longe atirada, hão de arrastar-me ante os muros altivos os cães voradores, que à minha mesa criei para guarda do belo palácio. E quando o sangue me houverem bebido, agitados, hão de eles pôr-se ante o pórtico. A um moço que tomba no campo da luta, é decoroso jazer trespassado no solo fecundo; belo de ver é ele sempre, apesar de sem vida encontrar-se. Mas profanarem os cães as vergonhas, a cândida barba e a venerada cabeça de um velho que a vida perdesse, é para os míseros homens, sem dúvida, o quadro mais triste.99

São poucas as vezes em que Príamo aparece no poema e, sempre, a relevância dessa presença

está associada à condição de pai do grande guerreiro troiano. Como Heitor representa a forte

defesa dos troianos, sua morte significa sua desgraça.100 O antecipado lamento de Príamo — o

qual imagina sua própria morte — relaciona-se diretamente com as manifestações de luto. No

canto XXIV, essa relação se intensifica: “Enquanto a mim, só desejo para o Hades baixar,

sem que aos olhos me surja o triste espetáculo do incêndio e do saque de Tróia”.101 Segundo

Teodoro Assunção (2000), a fala de Príamo parece “traduzir pela imitação simbólica do morto

um desejo intenso de já pertencer ao reino dos mortos”.102 Tenta-se concluir, portanto, que

esse exaltado sofrimento — tanto de Aquiles como de Príamo — determina suas condições

futuras, claramente antecipadas por eles mesmos. Se o destino das mulheres enlutadas, no

conjunto iliádico, vincula-se à escravidão, o dos homens está explicitamente ligado à morte.

Ambos os estados enlutados confirmam que o poeta, além de dar uma importância maior ao 98 “A pessoa viva é assim despedida, e uma nova figura social, o ausente, é criada”. (REDFIELD, 1975, p. 180). 99 NUNES, 2001, p. 332 (XXIV, 62-76). 100 ASSUNÇÃO, 2000, p. 180. 101 NUNES, 2001, p. 367 (XXIV, 245-246). 102 ASSUNÇÃO, 2000, p. 182.

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funeral como representação dramática única do lamento feminino, deixa ver que a narrativa

admite, em sua dimensão, temas opostos, como a glória e o luto, e o lamento pode estar

inserido em ambos.

3.2 Interculturalismo no luto

FIGURA 5 – Príamo e Aquiles. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

O lamento iliádico protagoniza grande parte da cena trágica do Teatro grego do século V

a.C..103 As obras Hécuba e Troianas — ambas de Eurípides — ajudaram na recriação

contemporânea das personagens de La Ilíada. A metodologia de Brie o aproxima do fazer

teatral dos gregos antigos, porque se sabe que as composições teatrais da época de Ésquilo,

Sófocles e Eurípides eram, naturalmente, em forma de trilogias e, também, que os

dramaturgos gregos propunham montagens cênicas por meio de um trabalho com atores-

criadores.104 Graças ao recurso da intertextualidade, a escrita de Brie se manifesta com um

caráter intercultural. Seu processo de construção da escrita segue sobre as formas pré-

determinadas pelo “original” de Homero e pelas obras da Tragédia grega. De acordo com

Patrice Pavis (2008) — em considerações sobre os estudos específicos da releitura de obras

103 WERNER, 2004, p. XI. 104 Comentário da professora Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (FALE/UFMG), extraído de seu parecer sobre meu projeto final de dissertação.

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clássicas —, a linguagem em versos e a permanência das personagens épicas no texto de Brie

não constituem somente em parte esse processo, caracterizam, também, o início de um

diálogo cultural. A obra se torna um cruzamento de culturas, quando aprofunda numa análise

social e política e evita a simples preocupação da releitura estética. Ao mesmo tempo em que

mantém o modelo clássico, o autor argentino insere as personagens Walsh e Quiroga, que

geram a problemática sociológica do luto em um contexto específico rompendo fronteiras de

tempo e espaço. Essa transferência cultural, segundo Pavis, não acontece automaticamente,

porque se trata de uma busca na cultura de origem de elementos que respondam a

necessidades concretas do autor:

Atualmente, a clivagem entre valores clássicos provados e valores modernos a serem provados não existe mais: não se acredita mais na universalidade geográfica, temporal e temática dos clássicos. A sua encenação opta por uma atitude decididamente relativista e consumidora, em conseqüência pós-moderna, visto que o seu único valor reside, doravante, na sua integração a um discurso que não está mais obcecado nem pelo sentido, nem pela verdade e nem pela totalidade ou coerência. 105 (Grifos do autor)

Vista como uma tradução que admite, além de uma apropriação da cultura-fonte, uma

adequação própria, a obra intercultural outorga a seu leitor/espectador não uma bagagem

cultural fechada, que transita de uma temporalidade a outra, mas fornece-lhe os códigos para

que esse público possa relativizar o maior número de mensagens possível, principalmente as

de ordem política:

Representar Racine ou Molière é contribuir para manter a sua marca na consciência e no imaginário do público; porém não saberíamos conserva-los como um quadro, visto que a matéria linguajar de que são feitos, o contexto que representam e o público que reclamam para ser recebidos e compreendidos estão submetidos a variações imperceptíveis, as quais a encenação, se quiser simplesmente mantê-las vivas, deve absolutamente levar em conta.106

Pode-se dizer, com apoio em Pavis (2008), que trazer para o presente um texto clássico não

significa simplesmente “espanar” uma obra velha e dar-lhe cara de nova, mas acreditar-se na

constância de um olhar original sobre algo que se acreditava “arquivado”. Tampouco existe,

de acordo com Hans-Thies Lehamann (2007), uma repetição. Ao se repetir um fato original,

105 PAVIS, 2008, p. 13. 106 PAVIS, 2008, p. 46.

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ver-se-á o mesmo modificado. No momento em que se altera o contexto, a identidade do

“original” é dissolvida. Quando Lehamann expressa que “não se trata do significado do

acontecimento repetido, mas do significado da percepção repetida, ou não se trata do fato

repetido, mas da própria repetição”,107 seu argumento está associado ao resgate de sentido do

passado da performance, de Schechner — teoria já abordada no primeiro capítulo desta

dissertação. Aquele que vê, na obra clássica, a repetição de tempos passados, outorga ao

teatro uma função de museu, e o espaço do teatro não é a memória de museu; trata-se da

memória como:

[algo, quando não visto,] se torna quase visível entre imagem e imagem, quando algo não ouvido se torna quase audível entre som e som, quando algo não sentido se torna quase perceptível entre as sensações. 108

Nota-se, no documentário HACIENDA DEL TEATRO (2003), sobre o processo da

montagem de La Ilíada, que a intervenção da mitologia andina constitui um elemento da

função dialógica da obra. A cena da batalha entre aqueus e troianos é embalada por atores

dançando a chacarera. Sempre se atribui essa dança ao folclore argentino, mas sua origem

está no Sul boliviano e, ainda hoje, é praticada por esse povo. Trata-se de uma dança com

ritmo ágil, de caráter alegre e festivo. Já a cena de Príamo resgatando o corpo de Heitor é

marcada pelo ritmo da morenada, outra dança andina que tem como característica básica

passos lentos e pesados. A particularidade dessa ação teatral é que a música de fundo tem

muito da música grega. As transições mitológicas podem ser uma possível explicação para o

antagonismo de elementos que aparecem no decorrer da encenação. Eis uma das falas da cena

da batalha:

Aquiles: No rueguen troyanos, no tengo piedad / De pie, de rodillas todos morrirán / Sus vientres abiertos, las tripas al sol / Los cuellos cortados, chorreará la médula / Fuera de las vértebras, crujirán los huesos / Romperé cabezas, rodarán los ojos, / Como agua de ducha correrá el cerebro / Fuera de la herida. Así hasta el final.109

107 LEHAMANN, 2007, p. 310. 108 LEHAMANN, 2007, p. 318. 109 “Aquiles: Não roguem, troianos, não tenho piedade / De pé, de joelhos todos morrerão / Seus ventres abertos, as tripas ao sol / Os pescoços cortados, jorrará a medula / Fora das vértebras, rangerão os ossos / Partirei cabeças, rodarão os olhos, / Como água de ducha correrá o cérebro / Fora da ferida. / Assim, até o final”. (BRIE, 2000, p. 17).

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E as palavras de Príamo, enquanto resgata o cadáver do filho Heitor:

Príamo: Buscaremos leña, haremos la hoguera. Vamos a quemarte hijo. Te volverás viento. Podrás descansar. Pero yo hijo mio no conozco el reposo. Si duermo te soño, si despierto te pienso. Hazme descansar Héctor, caminar sin verte, dormir sin soñorte. Quiero olvidarte hijo, que te vuelvas sombra, que te vuelvas niebla, que seas recuerdo. […] Quisiera cambiar. Que Zeus me conceda partir en tu lugar, quedar insepulto, cuerpo de buitres y tú renacer. Hijo, demasiado vivo estás dentro de mí.110

Ao retratar a batalha clássica ou a procissão de luto com passos de danças andinas de origem

pré-colombianas, Brie confere uma tonalidade semiótica contrária à proposta do texto “de

origem”. O resultado é o oxímoro de Brie, esclarecendo que “la relación [debe] ser siempre

una tensión opuesta. Si la imagen es dulce, el texto debe ser cruel, si la imagen es cruel, el

texto debe ser dulce”.111 Nos estudos da Semiótica Teatral, Marco De Marinis (1997) afirma

que o sentido de tensão dado, intencionalmente, à significação da cena provoca, no

espectador, um choque com suas experiências. E o corte nessa bagagem é um dos objetivos da

cena atual do teatro, já que uma obra que rompe com a tradição linear é aquela em que os

espaços vazios são “márgenes de indeterminación mediante los cuales él [el espectador] podrá

elaborar su propio punto de vista, siguiendo o bien ignorando las marcas previamente

dispuestas”.112

Mais um exemplo dessas contraposições de sentidos é o ritmo cômico atribuído às

personagens-deuses da mitologia grega. A cena de ciúme de Hera e o jogo sensual entre Zeus

e uma Tétis que usa pés de pato provocam uma tensão na seriedade das divindades de

Homero. O Zeus de Brie veste terno e usa lenço no pescoço e é quase um mero mortal que se

excita com os seios siliconados de Hera, contrapondo-se ao mito clássico, que não se desvia

110 “Príamo: Procuraremos lenha, faremos a fogueira. Vamos te queimar, filho. Tornar-te-ás vento. Poderás descansar. Mas eu, filho meu, não conheço o repouso. Se durmo te sonho, se desperto te penso. Faz-me descansar, Heitor, caminhar sem te ver, dormir sem te sonhar. Quero te esquecer, filho, que te tornes sombra, que te tornes névoa, que sejas lembrança. [...] Queria mudar. Que Zeus me conceda partir em teu lugar, ficar insepulto, corpo para abutres e tu renascer. Filho, demasiado vivo estás dentro de mim.” (BRIE, 2000, p. 19-20). 111 “A relação deve ser sempre uma tensão oposta. Se a imagem é suave, o texto deve ser cruel, se a imagem é cruel, o texto deve ser suave”.(HACIENDA DEL TEATRO, 2003). 112 “Margens de indeterminação mediante os quais ele [o espectador] poderá elaborar seu próprio ponto de vista, seguindo ou mesmo ignorando as marcas previamente dispostas”. (DE MARINIS, 1997, p. 28).

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dos acontecimentos da batalha, da elaboração de seus planos e da necessidade contínua de

mostrar aos mortais da Ilíada toda sua superioridade. Ao trazer a dimensão divina para o

contexto contemporâneo, parece que Brie quis mostrar a relação desgastada e descrente que se

estabelece, no mundo atual, entre homens e deuses:

Los verdaderos dioses son hombres, sus atributos son la lucidez, el amor y la piedad, y están ocultos en los actos que el ejercicio de la fuerza no logró anular, ni en La Ilíada ni en la historia de los seres humanos desde entonces hasta el presente.113

FIGURA 6 – Zeus e Tétis. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Nessa ruptura de espaço e tempo para tratar, principalmente, do tema político e da estupidez

monstruosa de catástrofes modernas, a obra não abandona pitadas de humor, o lirismo e o tom

poético. A mistura da mitologia andina com a grega — esse interculturalismo quase

inimaginável — foi a maneira formal de se falar de uma obra clássica por meio do lugar de

enunciação do aqui: Bolívia e Argentina. Floresce, assim, aquele sentido de memória do qual

113 “Os verdadeiros deuses são homens, seus atributos são a lucidez, o amor e a piedade, e estão ocultos nos atos que o exercício da força não conseguiu anular, nem em La Ilíada nem na história dos seres humanos desde aquela época até o presente.” (http://www.utopos.org/LosAndes/Andes.htm).

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fala Lehamann114 — conforme a última citação desse autor neste capítulo —; essas sensações

que causam uma estranheza, um distanciamento, mas, ao mesmo tempo, certa familiaridade.

E esses deslocamentos têm, na semiologia teatral, um lugar privilegiado de significação e

comunicação. A escolha por esse olhar semiótico sobre as obras de Eurípides está,

possivelmente, fundada nas características 'modernas' desse dramaturgo grego. Ao contrário

de Ésquilo e Sófocles, Eurípides aborda a temática trágica das personagens simples homéricas

— aquelas que não pertencem à lista de heróis —, suas inquietações e seus conflitos

internos.115 Nota-se, na obra Hécuba, crescente sofrimento da mãe pelo sacrifício da filha

Polixena e pela morte do jovem Polidoro, que resultará num atormentado e sangrento plano

de vingança. O realismo e o drama psicológico da cena trágica caracterizam o teatro de

Eurípides e são transportados às cenas atuais do texto La Ilíada.

Assim como acontece em Hécuba, Brie inicia seu texto da mesma forma como Homero

finaliza seu poema. As últimas palavras, acompanhadas de grande choro, junto ao corpo de

Heitor, são de Hécuba, que se despede do filho, lamentando sua morte prematura e exaltando

ser dela o filho predileto, o mais glorioso dos guerreiros troianos. Espelho da tragédia de

Eurípides, a mãe do herói troiano, no texto de Brie, dedica seu lamento ao mais jovem de seus

filhos, a Polidoro, com expressões que remetem tanto à desgraça própria como a uma espécie

de perda daquilo que o filho poderia ter sido em vida:

Hécuba: Me llamo, me llaman, me llamaban Hécuba / Un tiempo fui feliz en tierra de Troya / Ahora, por tanto sufrir, me he vuelto perra / Sin dueño, en la llanura entre los restos / De la ciudad quemada, buscando un hueso / Que roer, tal vez el de los hijos degollados, / Sacrificados, muertos en batalla / Quien pierde el padre es huérfano / Y viudo quien entierra a su esposa / Pero no hay palabra que nombre al triste / Padre o a la madre del hijo muerto […] Recuerdo a Polidoro / el más pequeño y tierno de mis hijos / El inocente, el cordero, Polidoro … / Que nunca supo cómo era Troya.116

114 “[algo, quando não visto,] se torna quase visível entre imagem e imagem, quando algo não ouvido se torna quase audível entre som e som, quando algo não sentido se torna quase perceptível entre as sensações.” (LEHAMANN, 2007, p. 318). 115 WERNER, 2004, p. XVIII; XXVIII. 116 “Hécuba: Me chamo, me chamam, me chamavam Hécuba / Um tempo fui feliz em terra de Tróia / Agora, de tanto sofrer, sou uma cadela / Sem dono, na planura entre os restos / Da cidade queimada, procurando um osso / Para roer, talvez o dos filhos degolados / Sacrificados, mortos em batalha / Quem perde o pai é órfão / E viúvo quem enterra sua esposa / Mas não há palavra que nomeie o triste / Pai ou mãe do filho morto [...] Recordo Polidoro / o menor e mais terno de meus filhos / O inocente, o cordeiro, Polidoro ... / Que nunca soube como era Tróia.” (BRIE, 2000, p. 2).

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Como se tentou esclarecer, nos cantos homéricos, o lamento feminino — principalmente o do

rol de esposas, como Briseida e Andrômaca — projeta-se também na esfera masculina, mas

Brie parece enfatizar — num jogo intertextual com as obras de Eurípides — a dor da mulher;

mais especificamente, da figura materna. Desse modo, a personagem Hécuba pode ser lida

também como alegoria do luto latino-americano, universalizado nas contínuas e históricas

manifestações das Mães argentinas. Brie, no documentário HACIENDA DEL TEATRO

(2003), já citado aqui, esclarece que o movimento da Praça foi sua primeira motivação para

recriar a obra de Homero: “[...] y estas madres que hace más de 25 años que dan vuelta en esta

plaza y nadie les dice dónde están enterrados sus hijos, cual ha sido el destino de los nietos

que han robado”.117 Ao contrário dos choros exaltados da mãe grega de Homero, as Mães

performativas do caminhar lento, do simples lenço branco, segundo Diana Taylor, não só

encarnaram a dor, o luto, mas também

[…] hicieron visible la lucha por los hijos [y] la estructura represiva del imaginario nacional. [...] En lugar de trivializar o eclipsar sus pérdidas, la naturaleza performativa de sus manifestaciones les ha dado una manera de manejar la pérdida. Este rito permite el distanciamiento estético que les ofrece una forma de canalizar su dolor, no negarlo.118

Nesse mesmo quadro de reflexão, George Yúdice toma o exemplo do movimento das Mães

da Praça de Maio para traçar um paralelo entre o luto americano posterior ao ataque do 11 de

Setembro e o latino-americano pós-ditadura militar. Segundo esse autor, os norte-americanos

— sempre influenciados pela indústria cinematográfica e televisiva — trabalharam o luto de

uma forma panfletária e momentânea, com a criação de santuários para recordar as vítimas, o

que não ativa a memória e não perpetua a perda na consciência americana. A comunicação da

atriz Lívia Gaudêncio — apresentada durante a disciplina “Seminário de Literatura e outras

disciplinas: Literatura, teatro, cinema e performance: diálogos possíveis”, ministrada pela

professora Sara Rojo, no segundo semestre de 2007, na Faculdade de Letras da UFMG —

pode servir de exemplo para o referido antagonismo de manifestações de luto em espaços

enunciadores diferentes.

117 “E estas mães que há mais de 25 anos dão voltas nesta praça e ninguém lhes diz onde estão enterrados seus filhos, qual o destino de seus netos que foram roubados.” (HACIENDA DEL TEATRO, 2003). 118 “[...] fizeram visível a luta pelos filhos [e] a estrutura repressiva do imaginário nacional. [...] Ao invés de trivializar ou eclipsar suas perdas, a natureza performativa de suas manifestações tem lhes dado uma maneira de manejar a perda. Este ritual permite o distanciamento estético que lhes oferece uma forma de canalizar sua dor, não negá-la.” (http://www.hemi.nyu.edu/archive/text/hijos2.html).

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Nesse seminário, Gaudêncio nos conta que, durante sua estada em Nova Iorque, propôs,

primeiramente, um ato performático em uma praça de Ithaca, Nova Iorque. Vestida com um

cartaz com os dizeres “Please just hug me” (Por favor, apenas me abrace), Gaudêncio se

instala num determinado ponto da praça, esperando receber abraços de qualquer pedestre que

passasse pelo local. Num grande intervalo de tempo, ela foi brindada com poucas

manifestações. Em outro momento, repete a mesma performance: instalada, dessa vez, em

frente ao monumento World Trade Center, Gaudêncio, após outro extenso intervalo de tempo,

recebe incontáveis abraços. Vale esclarecer que parentes ou conhecidos da atriz e performer

Gaudêncio não fazem parte do quadro de vítimas do atentado contra aquele centro de poder

norte-americano. Contrariamente a abusos especulativos, o luto latino-americano, seguindo o

argumento de Yúdice, é um trabalho de “elaboração que conserva viva a recordação, que não

exime de responsabilidade nenhuma das partes envolvidas”.119 Pode-se entender, portanto,

que o luto é um processo cultural da América Latina, um “cenário esclarecedor que ajuda a

compreender e discernir” o imperativo social e por essa razão é que, após as intervenções

militares, “o ativismo pelos direitos humanos se proliferou e, com ele, o direito à memória, a

tudo aquilo que havia desaparecido”.120

A alegoria da mãe enlutada latino-americana não chora pelo filho morto, responsável por

tantas glórias, mas pelo filho mais jovem, Polidoro, cujo corpo, na Ilíada clássica — assim

como na obra do diretor argentino —, é abandonado à beira-mar. Polidoro faz parte dos

guerreiros menores, sem grande importância para o conjunto iliádico, ou de uma importância

associada à concepção de glória ao guerreiro matador. A relevância que essa personagem

ganha na releitura de Brie pode ser entendida como uma figuração das centenas de jovens que

desapareceram após as detenções militares na Argentina. Na maioria das vezes, eram jovens

menores de 18 anos, conscientes de seus direitos de estudantes e de cidadãos afetados pelo

regime ditatorial. Clássico exemplo do ocorrido na Argentina pode ser visto no filme do

diretor portenho Héctor Olivera, La noche de los lápices (1986), o qual retrata a prisão,

tortura e morte de sete militantes da UES (Unión Estudantil Secundaria) que reivindicavam o

Boleto Escolar Secundário (BES) abolido pelo governo militar. São jovens argentinos

estabelecendo uma relação com os guerreiros menores da Ilíada, encontrando a morte e

119 YÚDICE, 2004, p. 479. 120 YÚDICE, 2004, p. 479.

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rompendo com a possibilidade “de fazer [em vida] o que quer que seja”.121 Polidoro,

desejando que seu corpo fosse levado para junto da mãe, é entendido, também, como

estabelecendo um diálogo direto com as Mães da praça, que, até hoje, reclamam, em espaço

público, pelo conhecimento do destino de filhos.

FIGURA 7 – Príamo e o corpo de Heitor. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie. Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Outra possível alusão aos jovens aparece na passagem do mito de Belerofonte.122 Retomado

do diálogo clássico entre Diomedes e Glauco, o ato teatral de La Ilíada intitulado “El linaje”

(A linhagem) pode ser pensado a partir do envolvimento dos jovens com os “anos de

chumbo”. A importância da identidade pessoal foi rompida, escandalosamente, durante o

regime militar argentino. É de conhecimento geral que, durante a vigência desse regime,

inúmeras crianças foram raptadas e entregues para adoção e, hoje, recorrem a processos

judiciários para conhecerem suas verdadeiras identidades. Pode-se pensar que a leitura que o

dramaturgo argentino faz do mito iliádico seja marcada pelo viés da importância da

121 ASSUNÇÃO, 1994/1995, p. 54. 122 Em combate com o troiano Glauco, no canto VI (121-236), Diomedes lhe questiona sobre seus antepassados. Após o relato de Glauco, ambos descobrem que os antecedentes do guerreiro de Tróia — os Belerofontes — eram hóspedes muito bem-vindos da família de Diomedes. Após essa descoberta, os dois combatentes resolvem suspender a luta.

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identidade e, portanto, muito propício para uma releitura no contexto da obra. No texto

clássico, há inúmeras passagens (como a de Belerofonte) que demonstram a relevância da

origem do guerreiro. É sua linhagem familiar que determinará a virilidade do lutador e o grau

de temor do adversário no combate.

Seguindo com o relato sobre o mito Belerofonte — agora através da hipótese de Assunção

(2007) sobre seu divagar melancólico associado à morte dos filhos Isandro e Laodâmia —, é

possível adentrar a questão iliádica e ler o texto de Brie como uma escritura alegórica de luto

e melancolia. De acordo com Assunção, a melancolia de Belerofonte se caracteriza pela

“errância solitária e ‘fyganthropía’”, pelo jejum — a comida é garantia de vida, sem ela,

estabelece-se uma reciprocidade com o morto —, pelo desejo de morte, conectando-se

diretamente com o estado de luto pelos filhos mortos. Esses dois conceitos, apresentados, em

outra ocasião, por Idelber Avelar (2003), assinalam a distinção freudiana que pode ser

emprestada à arte “enquanto manifestação do conteúdo traumático”:123

O luto designa o processo de superação da perda no qual a separação entre o eu e o objeto perdido ainda pode ser levada a cabo, enquanto que na melancolia, a identificação com o objeto perdido chega a um extremo no qual o próprio eu é envolvido e convertido em parte da perda.124

Mesmo que essas designações de Freud não apresentem, segundo Assunção, esclarecimento

direto aplicável ao caso do mito Belerofonte, para a temática do luto ditatorial no interior do

texto de Brie elas englobam pertinências diretas. O período silencioso foi, também, um

período de luto não resolvido, o que abre a cripta “intrapsíquica” do sujeito que sofre a perda,

instala nela o objeto perdido e dela emerge a melancolia, na qual o sujeito se identifica com o

objeto e se transforma em parte deste, como uma forma de garantir sua não-transformação em

luto.125 Nelly Richard (2002) ressalta que a memória do luto inacabado é a figura protagonista

do simbolismo histórico da pós-ditadura chilena da década de 1970: “A falta de sepultura é a

imagem — descoberta — do luto histórico que não termina de assimilar o sentido em uma

versão inacabada, transicional”.126

123 AVELAR, 2003, p. 18. 124 AVELAR, 2003, p. 18. 125 AVELAR, 2003, p. 19. 126 RICHARD, 2002, p. 53.

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No contexto da escena de avanzada,127 o sentido dessa memória melancólica não é diferente.

A sepultura vazia torna-se a única possibilidade artística e literária de se manter aberto o

discurso da memória.

A produção da arte é, para a teórica chilena, a via mais apropriada para intervir na luta contra

o esquecimento, mediante criações que reelaboram significados dissipadores de toda a

obscuridade dessa turva história enquadrada que insiste em silenciar ruínas por meio de uma

pacificação verdadeiramente forçada. Assim, o repertório freudiano se concretiza na

manifestação artística do Teatro de los Andes: a morte, representada nas personagens Walsh,

Marcelo Quiroga e Polidoro, pode ser vista como manifestação espectral de uma cripta, e o

texto dramático assume o papel alegórico da escrita pós-ditatorial, do sujeito tomado pela

melancolia que não possibilita a instalação do luto no pensamento latino-americano:

A alegoria floresce num mundo abandonado pelos deuses, mundo que, não obstante, conserva a memória desse abandono e não se rendeu, todavia ao esquecimento. A alegoria é a cripta tornada resíduo de reminiscência.128

No caso clássico, segundo Assunção, a melancolia de Belerofonte designa uma

particularidade inédita, no conjunto de lutos da Ilíada:

[...] enquanto o trabalho do luto ostensivo de Príamo por Heitor é de algum modo concluído, quando, após a promessa por Aquiles da devolução ao pai do cadáver do filho (o que permitirá a realização dos seus ritos fúnebres), Príamo aceita comer com os inimigos e dormir sob o mesmo “teto” que estes (assim retornar à comunidade troiana e à sua família), Belerofonte, se de algum modo ainda se alimenta, parece em seu fim de vida não participar mais de banquetes (ou de “partilhas”) e também não mais se reintegrar à comunidade onde conquistara um semi-reinado e à família que constituíra desposando a filha do rei, ou seja: sua errância solitária e “fyganthropía” – signos possíveis de luto – simplesmente não têm fim nesta versão demasiado elíptica da fase final de sua vida, sem que saibamos ao certo quando e como ele morre.129 (Grifos meus)

127 Apresentada por Nelly Richard (2002, p. 15), a escena de avanzada engloba um campo não-oficial de produção de arte, no período ditatorial do Chile da década de 1970 e pós-ditatorial, atravessando várias modalidades — além das de cunho artístico, atua, também, no campo da Crítica Literária, Filosofia, História, entre outros —, para romper e reinventar a organicidade social do sujeito, transgredindo os limites fixados pela história tradicional. 128 AVELAR, 2003, p. 17. 129 ASSUNÇÃO, 2007, p. 11-12.

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Nota-se, nos grifos, que a recuperação do cadáver e o cumprimento dos ritos fúnebres

possibilitam a finalização do estado de luto, como no caso das mortes de Pátroclo e Heitor. Se

Belerofonte é tomado pela melancolia, pode-se entender que, conforme afirma Assunção

(2007), algum fato — mesmo que não sinalizado no interior do texto — deve haver ocorrido,

impossibilitando a realização completa do luto e o não-prolongamento da melancolia. O mito

iliádico torna-se, na contemporaneidade pós-ditatorial, caracterizador do estado melancólico e

depressivo desse contexto que

produz no sujeito bloqueios psíquicos, recaídas libidinais, paralisações da vontade e do desejo, frente à sensação de perda de algo irreconstituível (corpo, vontade, ideologia, representação). [...] imobiliza o sujeito, na tristeza de uma contemplação ensimesmada do perdido, sem energia suficiente para construir saídas transformadoras para este drama do sem sentido.130

No texto contemporâneo de Brie, a melancolia vagueia de mãos dadas com as personagens

mortas, “transgredindo negativamente a função do luto — temporário por definição —, que é,

precisamente, a de reintegrar (o enlutado) à vida que continua, mesmo sem o morto”.131

3.3 Percursos alegóricos

O trabalho de luto da pós-ditadura, segundo Avelar, é a condição, por excelência, da literatura

latino-americana dessa época. Analisando obras de autores como Ricardo Piglia, Diamela

Eltit, Tununa Mercado, Silviano Santiago e João Gilberto Noll, Avelar afirma que a ficção

desse contexto tece uma rede alegórica do luto e se torna uma resolução utópica do trabalho

da perda após o processo repressivo. O que seria importante apontar, aqui, é que a ficção,

segundo Piglia, atuaria dentro da realidade, e não o inverso.132 Quando a escrita de Piglia, em

Respiração artificial (1980), admite o diálogo entre Hitler e Kafka,133 em que o ditador

alemão narra seus planos para o projeto nazista — e esse plano, mais tarde, seria passado à

prática —, desencadeia uma seqüência ficcional na realidade histórica alemã. Essa questão

130 RICHARD, 2002, p. 111. 131 RICHARD, 2002, p. 12. 132 PIGLIA apud AVELAR, 2003, p. 28. 133 AVELAR, 2003, p. 131.

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pode ser identificada também no texto brieniano, pois a ficção de Homero — lida, neste

estudo, como um texto inaugurador da esfera do luto ditatorial latino-americano — assume,

na essência das personagens-vítimas, detidas e torturadas, a violência clássica na

contemporaneidade da catástrofe. O texto ficcional da pós-ditadura admite um caráter

melancólico, quando assume a derrota e quando, conseqüentemente, a narrativa da perda é

uma inarratibilidade dela mesma. Para contar os episódios reais de Marcelo Quiroga e

Rodolfo Walsh, Brie busca, num texto ficcional, a veracidade dos fatos. Inserir a ficção na

realidade é, portanto, um ato melancólico do texto, já que se deixa levar por um devaneio

anárquico134 que oscila entre o enfrentamento e um perturbado fracasso. Ainda na análise de

Avelar, esse desdobramento da ficção irá caracterizar a realidade como uma “exterioridade

inominável”:

Ante a impossibilidade de que o texto incorpore qualquer outro princípio de verossimilhança, conclui-se a leitura com a sensação de fracasso que é outra marca inconfundível da alegoria: a verdadeira história não foi narrada, o outro ao qual alude a alegoria — allos-agoreuein, em grego, “falar outramente” — permanece indizível. Na alegoria o exterior não é, portanto, incorporado, domesticado e conjurado, como no realismo mágico, e sim mantido enquanto um exterior radical, inominável. Paradoxalmente, então, ao circunscrever um mundo desprovido de qualquer alteridade, o texto alegórico preserva um exterior – preserva-o ao preço de ser incapaz de nomeá-lo.135

Mesmo enfatizando a exaltação do luto das personagens clássicas, o outro de La Ilíada — as

mães argentinas, os desaparecidos, os funerais não-cumpridos — que caracteriza esse exterior

radical e inominável é preservado, no texto brieniano, pela denúncia fantasmagórica do

jornalista Rodolfo Walsh. Essa personagem é presença e ausência ao mesmo tempo, atravessa

a morte e é capaz de construir, nessa dimensão, um discurso de caráter testemunhal:

Walsh: Por la radio supe que habías muerto. / […] Se me detuvo el mundo. / […] No pude despedirme, en lo oscuro se mueren / Los perseguidos. Nos queda la memoria / como único cementerio. Ahí te guardo / te acuno, te celebro y quizás te envidio.136

134 Aplico o termo anárquico no sentido de não estar em acordo com a hierarquia, a ordem, o tempo: passado, presente, futuro. 135 AVELAR, 2003, p. 94. Grifos do autor. 136 “Walsh: Pela rádio soube que havias morrido. / O mundo parou para mim. / [...] Não pude me despedir, no escuro morrem / os perseguidos. Fica-nos a memória / como único cemitério. Nele te guardo / te envolvo, te celebro e talvez te invejo.” (BRIE, 2000, p. 10).

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A lembrança de morte é lembrança que traz uma pulsão de vida à obra. Os mortos Polidoro e

Walsh funcionam como possibilidade de potencializar a vida e, dessa forma, o texto de Brie

questiona a morte fora do pensamento ocidental137. A morte, para o grupo do Teatro de Los

Andes, não é, de acordo com Sara Rojo (2006a), “o inferno nem, acrescento, o Hades grego

que infundia temor”.138 Relativamente à obra de Brie, em questão, pode-se pensar que o jogo

intercultural com a mitologia andina é que outorga suporte a uma possível relação entre morte

e vida, estabelecida no imaginário cultural indígena. Sabe-se que, para essas comunidades de

origem pré-colombiana, a interlocução com mortos e ancestrais é parte de seu repertório

ritualístico. De acordo com Octavio Paz, morte e vida, para os antigos mexicanos, não

significava um rompimento de estados:

La oposición entre morte y vida no era tan absoluta como para nosotros. La vida se prolongaba en la muerte y a la inversa. La muerte no era el fin natural de la vida, sino fase de un ciclo infinito. Vida, muerte y resurrección eran estados de un proceso cósmico que se repetía insaciable.139

Em parte, a escrita teatral de Brie — no sentido proposto por Avelar — é alegórica, mas a

verdadeira história não deixa de ser abordada e criticada, mesmo que venha em atmosfera

espectral:

Los muertos nos ayudan a encontrar una nueva relación con los vivos [...] aquellos muertos que sentimos nuestros, y son miles, nos habitan, golpean nuestra puerta, cotidianamente dialogamos con ellos. La muerte duele, no puede ser solemne. El recuerdo es carne, rabia, emoción y risa.140

137 Esta concepção de Ocidente não está ligada à divisão geopolítica, mas determinada por uma divisão cultural. Para a análise das cenas de La Ilíada, parte-se do pensamento de que as comunidades andinas possuem crenças, costumes e valores próprios e estes não fazem parte do papel hegemônico do Ocidente como bloco de poder. 138 ROJO, 2006a, p. 2. 139 “A oposição entre morte e vida não era tão absoluta como para nós. A vida se prolongava na morte e à inversa. A morte não era o fim natural da vida, senão fase de um ciclo infinito. Vida, morte, ressurreição eram estados de um processo cósmico que se repetia insaciável.” (PAZ apud ROJO, 2006a, p. 4). 140 “Os mortos nos ajudam a encontrar uma nova relação com os vivos [...] aqueles mortos, que sentimos nossos, e são milhares, nos habitam, batem à nossa porta, cotidianamente dialogamos com eles. A morte dói, não pode ser solene. A lembrança é carne, raiva, emoção e riso.” (BRIE apud ROJO, 2006a, p. 2).

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O texto não se exime de se constituir num testemunho performático de um passado carente de

revisão historiográfica e de um presente que resgate a importância social, política e

psicológica do significado da perda e do luto latino-americano:

Héctor: Ten cuidado, Aquiles, Un muerto es espejo para los que viven Su cuerpo es la forma de una despedida Las tumbas permiten vivir y olvidar. 141

O fechamento da Ilíada demonstra o grande valor dos rituais fúnebres para a civilização

grega. Já no canto VII, a interrupção do combate por um dia caracteriza o respeito mútuo pela

morte, e a retirada dos cadáveres do campo de batalha, para a incineração, prova que, mesmo

no cenário da guerra, os inimigos não abandonam determinados acordos sociais. No último

canto, o ato mais nobre de Aquiles — o resgate, comemorado em Homero — faz dele um

herói maduro e, reconhecidamente, acima dos demais.142 A magnitude do feito de Aquiles

demonstra uma compaixão que se aplica não somente aos combatentes amigos; trata-se de

uma compaixão estendida ao campo inimigo. A releitura latino-americana mostra, por meio

desse comportamento clássico, o rompimento dos acordos sociais, durante o período

repressivo. Pode-se entender, nesse sentido, que o texto dramático constitui um discurso

utópico, mas determina, também, que a clandestinidade não era característica própria dos

militantes da contra-ditadura. No texto de Brie, as palavras da personagem Agamenón nos

trazem imagens claras de campos de tortura — mais especificamente, segundo entrevista143 do

dramaturgo argentino, o de La Perla, no estado de Córdoba, na Argentina — que nos

remetem à denúncia explícita da atuação violenta comandada dos espaços também destinados

ao encobrimento de corpos:

Agamenón: (lee) Señor General de los Ejércitos: Hugo, Jorge, Rafael, Emilio, Augusto Agamenón. Antes, llegaban a la morgue de nuestra ciudad, de 3 a 6 cadáveres por semana, ahora son centenares los cuerpos que las tropas traen. Nosotros deseamos cumplir con nuestro trabajo, sea la cantidad de muertos que sea, pero debemos describirle

141 “Heitor: Cuidado, Aquiles, / Um morto é espelho para os que vivem / Seu corpo é a forma de uma despedida / As tumbas permitem viver e esquecer”. (BRIE, 2000, p. 18). 142 Comentário da professora Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (FALE/UFMG), extraído de seu parecer sobre meu projeto final de dissertação. 143 Disponível em: http://www.lugarteatral.com.ar/principi.htm. Acesso em: 13 jun. 2007.

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lo que nos toca vivir. Cuando abrimos las celdas donde se apilan los cuerpos, nos encontramos con que han permanecido en depósito sin ningún tipo de refrigeración. Un olor nauseabundo, una nube de moscas, larvas y gusanos en el piso formando una capa de diez centímetros de altura, que retiramos en baldes, cargándolas con palas. Nuestra única indumentaria para este trabajo es pantalón y guardapolvo sin guantes ni botas. A pesar de todo no tuvimos reparos en realizar la tarea ordenada. Solicitamos humildemente se nos suministren mascarillas para soportar el olor, así como los guantes y botas mencionados.144 (Grifos meus)

Os desaparecimentos dos corpos provam que os atos de atrocidades não estavam respaldados

pela dimensão jurídica — não se empilham corpos, os enterram — e, portanto, as ações

cometidas durante a repressão foram encobertas por poder excessivo e silêncios comprados

com morte. Essa desmedida atuação resulta justamente do seu descumprimento, dentro dos

parâmetros legais. De acordo com o texto contemporâneo, a guerra às claras de Tróia, cantada

por Homero, é uma possível alegoria da obscuridade da repressão, e Brie, metaforicamente,

nos entrega — na passagem acima — nomes importantes, responsáveis pela barbárie desse

contexto específico chamado América Latina: os generais teatrais podem ser lidos nesta

ordem: Hugo Banzér, Jorge Rafael Videla, Emilio Massera e Augusto Pinochet.145

144 “Agamémnon: (lê) Senhor General dos Exércitos: Hugo, Jorge, Rafael, Emilio, Augusto Agamémnon. Antes chegavam ao necrotério de nossa cidade de 3 a 6 cadáveres por semana, agora são centenas os corpos que as tropas trazem. Nós desejamos cumprir com nosso trabalho, seja a quantidade que for, mas devemos lhe descrever o que nos cabe viver. Quando abrimos as celas onde são empilhados os corpos, nos deparamos com que permaneceram em um depósito sem nenhum tipo de refrigeração. Um odor nauseabundo, uma nuvem de moscas, larvas e lagartas no chão formando uma capa de dez centímetros de altura, que retiramos em baldes, carregando-as com pás. Nossa única indumentária para este trabalho é calça e guarda-pó, sem luvas nem botas. Apesar de tudo não tivemos inconvenientes para realizar a tarefa ordenada. Solicitamos humildemente que nos subministrem máscaras para suportar o odor, assim como luvas e botas mencionadas.” (BRIE, 2000, p. 11). 145 Nessa ordem, correspondem ao ditador boliviano Hugo Bánzer, aos ditadores argentinos Jorge Rafael Videla e ao ditador chileno Augusto Pinochet.

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62

4 A QUESTÃO TRADUÇÃO: ENUNCIAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO

Hospitalidad linguística, pues, donde el placer de habitar la lengua del otro

es compensado por el placer de recibir en la propia casa la palabra del extranjero.146

Paul Ricouer

4.1 Tradução e o lugar de enunciação

FIGURA 8 – Rodolfo Walsh. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Apropriação, interpretação e translação: La Ilíada, de César Brie, manifesta, em seu momento

de elaboração textual, movimentos característicos de um processo tradutório literário. Mas

falar, especificamente, de tradução teatral implica, de acordo com Patrice Pavis (2008), expor

rupturas de espaço e tempo, mediações de culturas heterogêneas e determinação do lugar de

enunciação: “Ulises: Pobre desgraciado ¿por qué me creíste? / Lo que habla un verdugo no

tiene valor / No prometí que no te mataría / Sólo que a la muerte no tengas temor”.147

Marcado por um trabalho que se realiza sob uma estética fundada no diálogo intertextual e no

146 “Hospitalidade lingüística, pois onde o prazer de habitar a língua do outro é compensado pelo prazer de receber na própria casa a palavra do estrangeiro”. (RICOEUR, 2005, p. 28). 147 “Ulisses: Pobre desgraçado. Por que acreditastes em mim? / O que fala um verdugo não tem valor. / Não prometi que não te mataria. / Somente que à morte não tenhas temor”. (BRIE, 2000, p. 11).

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cruzamento de fronteiras entre culturas locais e estrangeiras, o fazer teatral brieniano pode ser

definido como uma constante adaptação148 de signos que estabelecem relações com a história

e a memória do presente enunciativo do autor argentino:

Walsh: […] Tenía veinte y seis años mi hija Victoria. / Argentina se parecía cada vez más a un barrio de Troya. / Como tantos chicos que repentinamente / Se hicieron adultos, mi hija andaba a los saltos/ Huyendo de casa en casa por todo Buenos Aires.149

Como não se trata de uma releitura — ou nova montagem — de uma obra clássica do teatro,

tal trabalho pode ser definido como uma recriação que alcança a estética e a proposta do

teatro. Em termos práticos da teoria da tradução, o processo de reescrita da obra em questão

não admitiu uma tarefa tradutória interlingual, mas a idéia, o espírito da temática iliádica foi o

cerne da tarefa desse tradutor. Mesmo tratando-se de um processo criativo, a função

hermenêutica do leitor Brie foi substancial para elaborar a limiaridade entre duas épocas, dois

contextos tão distantes entre si. Ao ler, hoje, a Ilíada, de Homero, pode ser difícil não se

pensar nessa ponte edificada por Brie. A temática que envolve, principalmente, os últimos

cantos do texto clássico e as tragédias gregas Hécuba e Troianas, de Eurípides, translada-se à

escrita dramática com um espírito político-crítico consolidado por um território enunciador

que irá demarcar as inquietações desse autor de “caráter múltiplo”:

Quem sou eu? Qual é a minha cultura? Não sou boliviano. Sou um latino-americano nascido na Argentina, descendente de imigrantes de vários países europeus. Vivi na Europa e lá me formei no ofício de ator e diretor. Trabalho no teatro de uma forma que não é tradicional, e cujas origens concretas têm apenas trinta anos, mas cujas fontes são tão antigas que foram praticamente esquecidas. Sou o resultado dessa prática, que encarno sob a forma não de um método, mas de uma ética [...] Vivo na Bolívia com bolivianos e estrangeiros, consciente de ser um estrangeiro, e faço com que esta condição não seja uma limitação, mas uma vantagem. Quero criar em meu teatro uma relação potente entre vanguarda e tradição. 150

148 Para Pavis, o trabalho de adaptação é “uma tradução que adapta o texto de partida ao novo contexto de sua recepção com as supressões e acréscimos julgados necessários à sua reavaliação” (2007, p. 10). Como se verá mais adiante, as características de uma adaptação para o teatro englobam as mesmas etapas a serem cumpridas durante o processo da tradução teatral definidas pelo mesmo autor. Portanto, decide-se, a partir daqui, não usar o termo adaptação e, sim, tradução. 149 “Walsh: [...] Tinha vinte e seis anos minha filha Victoria. /A Argentina se parecia cada vez mais com um bairro de Tróia. / Como tantas crianças que repentinamente / Se tornaram adultos, minha filha andava aos saltos / Fugindo de casa em casa por toda Buenos Aires”. (BRIE, 2000, p. 10) 150 BRIE apud ROJO, 1999, p. 57-58.

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Essa multiplicidade determina o ponto de partida da enunciação. Do lugar do qual se fala,

afloram outros sentidos, dos quais emergem problemáticas dialógicas antes não enxergadas no

corpo original da tradução. O processo de interpretação de Brie — pensado como parte

essencial para o resultado da tradução — traz à tona a concretização do lugar enunciativo,

podendo ser lido como território latino-americano, inserido em determinados fatos de sua

história, dos quais se resgatam memórias pertinentes do sujeito/autor. Tem-se, aí, a exposição

de uma experiência, em duplo movimento, que “universaliza o local e particulariza o

universal. A enunciação parte de um sujeito que verbaliza sua natureza multicultural e

estabelece um diálogo semioticamente decodificável em diferentes contextos: Bolívia, Brasil,

etc.”:151

Polidoro: Debo abandonarte Padre, / Te serví de guía. Yo también fui tu hijo. / Ahora soy sombra, sueño sin sepulcro / Mensajero de dioses. Mis lágrimas quedan / Perdidas en las aguas. Mi cuerpo flota en el ancho mar / Recupera a Héctor, honra su cadáver / mientras lo consume el fuego y luego descansa. / Descansa por él, descansa por mí.152

Essa hermenêutica potencializada para o ato teatral — juntamente com a multiplicidade de

caráter do autor — revela ter sido também uma tarefa eficaz para que Brie pudesse vencer a

distância entre o clássico e o contemporâneo, o afastamento entre as culturas, e permite que o

leitor/espectador se familiarize com o estranho e reúna seu sentido no seu tempo presente, seu

aqui e agora. Pensa-se, portanto, esse lugar de enunciação marcado, na obra, por cenas

específicas, como a de número doze, do primeiro ato — a tortura de presos políticos

bolivianos —; a de número um, do segundo ato — a carta de Rodolfo Walsh —; e a de

número três, do mesmo ato — o encobrimento dos corpos,153 como um todo contextualizado,

esclarecedor e familiar para o corpo receptivo da obra. Por meio dessas recriações cênicas, a

tradução do texto clássico torna-se, possivelmente, aceita para o modelo de tradução teatral

defendido por Pavis:

151 ROJO, 1999, p. 58. 152 “Polidoro: Devo te abandonar, Pai, / Fui teu guia. Eu também fui teu filho. / Agora sou sombra, sonho sem sepultura / Mensageiro de deuses. Minhas lágrimas ficam / Perdidas nas águas. Meu corpo flutua no largo mar / Recupera Heitor, honra seu cadáver / enquanto o fogo o consome e depois descansa. / Descansa por ele, descansa por mim.” (BRIE, 2000, p. 19). 153 Fragmentos dessas cenas já foram citados e analisados em capítulos anteriores: cena n° 12, 1° ato, ver capítulo 1, p. 29; cena n° 1, 2° ato, ver capítulo 1, p. 28; e capítulo 2, p. 58; cena n° 3, 2° ato, ver capítulo 2, p. 60. Sobre o escritor e jornalista Rodolfo Walsh, ver nota de rodapé no capítulo 2, p. 42.

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O texto traduzido faz parte igualmente tanto do texto e da cultura-fonte quanto ao texto e da cultura-alvo: eles têm, portanto, necessariamente, uma função de mediação. [...] Desde que o texto da tradução seja encenado para a cultura e o público-alvo, ele também se cerca de uma situação de enunciação, concretamente realizada desta vez, e que pertence à cultura-alvo: as duas situações de enunciação que “cercam” o texto interferem nele, em diversos graus, ao mesmo tempo virtual e realmente. É preciso levar-se em conta esse choque de situações de enunciação, basicamente privilegiando a situação de enunciação exclusivamente “fonte” ou “alvo”, e a “mistura” das duas situações de enunciação.154

Até o momento em que, no texto da tradução, se permite ler a mediação de situações de

enunciação, o processo antes desenvolvido pelo seu autor, de acordo com Pavis, terá passado

pelo que o teórico francês denomina de “concretização dramatúrgica”. Ao se familiarizar com

os textos de partida, o autor/tradutor tem a consciência de que sua legitimidade certamente se

concretiza dentro do contexto de sua esfera enunciativa; quer dizer, “de sua relação com a

cultura ambiente”.155 É notório que a escolha de tais textos já admite uma prévia intenção do

tradutor; seu interesse pela escrita clássica pode significar que seus pensamentos ideológicos

já demarcam um direcionamento interpretativo de sua realidade, a partir das palavras

clássicas. De acordo com Jiři Levý — segundo Pavis —, “não é a realidade objetiva que

penetra a obra de arte, mas a interpretação da realidade do autor”.156 Nessa fase, proposta por

Pavis, dá-se, então, a apropriação da fonte, sendo, portanto, o momento de questionar o texto

a partir da língua e da cultura-alvo: “situado lá onde estou, nesta derradeira situação de

recepção, e transmitido nos termos dessa outra língua que é a língua-alvo, o que você quer

dizer para mim e para nós?”.157 Tenta-se provar, no conjunto deste estudo, que a resposta —

ou as respostas — aos questionamentos do autor vinculam-se à problemática das guerras

atuais, das relações de força e poder, das desaparições políticas e de suas conseqüências no

âmbito familiar das vítimas. A “concretização dramatúrgica” inserida nesse quadro de

questões requereu do autor uma análise macrotextual primeira do texto para, então, intervir na

recriação das particularidades que fazem parte da produção de sentido de sua obra. Mesmo

em seqüência não-linear, a cena “La quema de los muertos”, do primeiro ato do texto

dramático, e a cena de número três, do segundo ato — o encobrimento dos corpos, narrado

em uma carta da personagem Agamémnon a outros líderes de exércitos —, abrangem uma

154 PAVIS, 2008, p. 124-125. 155 PAVIS, 2008, p. 126. 156 PAVIS, 2008, p. 126. 157 PAVIS, 2008, p. 125.

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sucessão questionadora de função revisionista do contexto histórico enunciativo demarcado

pelo tradutor. A intriga levada à cena contemporânea tem origem em alguns fragmentos do

canto VII do poema homérico, nos quais o rei Príamo solicita aos aqueus, em sinal de respeito

aos mortos, uma trégua na luta para queimar os corpos dos combatentes:

Teucros, Dardânios e aliados, agora atenção prestai todos / ao que vos digo e no peito me ordena falar-vos o espírito. / Ora ide cear na cidade sagrada, conforme é do estilo; / todos se ocupem da guarda; um por um se conserve acordado. / Mas amanhã, logo cedo, enviemos Ideu aos navios / para dizer aos dois chefes insignes, os claros Atridas, / o que lhes manda propor Alexandre, fautor desta guerra, / e ainda mais, perguntar-lhe se querem – e é justo – dar tréguas / ao fragoroso combate, até termos queimado os cadáveres, / reiniciando-se a fera peleja no dia seguinte, / até que um dos deuses decida a quem venha a caber a vitória.158

Agamémnon responde, ao enviado, que concorda com a petição respeitosa de Príamo, e a

ação da incineração dos cadáveres acontece em clima de concordância:

No que concerne aos cadáveres, não lhes recuso a fogueira; / impedimento nenhum costumamos fazer aos defuntos; / mas, extinguido o vigor, procuramos placá-los com o fogo. [...] Era tarefa difícil identificar os cadáveres / sem que, primeiro, com água os coalhos de sangue tirassem. / Por entre choro sentido os colocam, depois nas carretas. / O grande Príamo, entanto, proibiu gritaria; em silêncio, / o coração angustiado, às fogueiras os corpos entregam. / Logo depois de queimados, voltam para Ílio sagrada. / Do mesmo modo os Acaios, de grevas bem feitas, procedem: / o coração angustiado, às fogueiras os corpos entregam; / logo depois de queimados, às côncavas naus retornaram.159

Nota-se, nos fragmentos do poema clássico, a consonância de entendimento entre ambas as

partes, mesmo que o sofrimento de se separar dos companheiros de combate seja algo

inevitável. Já na cena “La quema de los muertos” do texto dramático, começam a surgir

outras pulsões que vão delineando as particularidades de um tema histórico do lugar de

enunciação, através de expressões determinantes desse contexto — marcadas nos grifos meus,

a seguir:

158 NUNES, 2001, p. 136-138 (VII, 368-378). 159 NUNES, 2001, p. 138-139 (VII, 408-410; 424-432).

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Briseida: Después de pelear y matarse durante varios días, ambos bandos decidieron honrar a sus muertos. A mí me dijeron que griegos y troyanos se mezclaban en la llanura. Miraban el fruto de esa furia. No era un rico cajón de manzanas, no eran jazmines frescos recién cortados, no era un niño con olor a leche de mama. / Cer 1: Eran cuerpos mutilados. / Cer 2: Era un dedo en busca de la mano que quizá ningún brazo une ya al torso mutilado. […] Briseida: Ciento cincuenta nombres, ciento cincuenta hijos, trescientos ojos.[…] Briseida: Con los muertos a otra parte, callados como están, ni se oiga el silencio de sus huesos... no dicen una sola palabra de sus heridas, sólo aparecen en la boca de los que amaron. Yo perdí un amado. / Cer 2: Yo perdí un hermano… […] Briseida: Yo novia de punta en blanco para la boda, sólo el novio se atrasaba, se atrasó...Y cuándo empezó lo que ahora sucede, y cómo y quién tiene la culpa / Coro: Y cuándo empezó lo que ahora sucede. Y cómo y quién tiene la culpa.160

FIGURA 9 – Briseida, Cer 1 e Cer 2. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie. Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

A conjectura macrotextual do texto clássico começa a adquirir, na tradução, características

particulares de seu autor. A presença do coro nessa estrutura cênica resgata uma tradição da

160 “Briseida: Depois de lutar e matar durante vários dias, ambos os lados decidiram honrar seus mortos. Disseram-me que gregos e troianos se misturavam na planície. Olhavam o fruto dessa fúria. Não era uma linda caixa de maçãs, não eram jasmins naturais recentemente plantados, não era uma criança com cheiro de leite de mãe. / Cer 1: Eram corpos mutilados. / Cer 2: Era um dedo em busca da mão que talvez nenhum braço já se uma ao torso mutilado. [...] Briseida: Cento e cinqüenta nomes, cento e cinqüenta filhos, trezentos olhos. [...] Briseida: Com os mortos, a outra parte, calados como estão, nem se ouve o silêncio de seus ossos... não dizem uma só palavra de suas feridas, só aparecem na boca dos que amaram... Eu perdi um amado. Cer 2: Eu perdi um irmão. [...] Briseida: Eu, noiva de branco para o casamento, só o noivo se atrasava, se atrasou... E quando começou o que agora acontece, e como e quem tem a culpa? / Coro: E quando começou o que agora acontece? E como e quem tem a culpa?” (BRIE, 2000, p. 9-10).

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dramaturgia grega que foi acolhida pelo teatro brechtiano — antes abandonada, durante o

teatro do classicismo francês, e enfraquecida nitidamente no teatro realista e naturalista do

século XIX.161 Enfocando o que interessa para essa análise cênica contemporânea, o coro,

segundo Pavis, é uma forma técnica que desencadeia a função de concretizar, diante do

espectador real, “um outro espectador-juiz da ação”.162 A materialização do “público e seu

olhar”163 na cena faz com que o discurso próprio do autor seja transferido de um plano

particular para o universal. Nessa fala do coro, o inquietante questionamento sobre a culpa

pelas mortes passa às mãos do espectador-juiz e o coro, em vista disso, “só tem probabilidade

de ser aceito pelo público se este se constituir em uma massa solidificada por um culto, uma

crença ou uma ideologia”.164

Nesse processo de reordenação e recriação do fragmento clássico, a personagem Briseida é o

ponto discursivo entre o original e a tradução. Mesmo não fazendo parte da lista dos

protagonistas do texto clássico, ela representa, em determinados momentos, uma personagem

literária com vida independente — desencadeadora da ira de Aquiles. Briseida é recriada para

a cena de hoje, adquirindo o papel de protagonista que relata, resumidamente, o fato

conhecido do original e, em vista disso, se auto-inclui como testemunha do acontecimento,

gerando mecanismos lingüísticos que rompem a barreira temporal entre os textos. Ela incita o

espectador/leitor — por meio da intermediação produzida pelo coro — a refletir sobre os atos

atrozes e a julgar os referentes de uma realidade do lugar de enunciação. A bagagem

ideológica do corpo receptivo se formado, por exemplo, por espectadores bolivianos e

argentinos, pode ser mais influenciadora, diante da culminação da cena “La quema de los

muertos” em um espaço enunciativo bem específico:

Agamenón: (lee) Señor General de los Ejércitos: Hugo, Jorge, Rafael, Emilio, Augusto Agamenón. Antes, llegaban a la morgue de nuestra ciudad, de 3 a 6 cadáveres por semana, ahora son centenares los cuerpos que las tropas traen. Nosotros deseamos cumplir con nuestro trabajo, sea la cantidad de muertos que sea, pero debemos describirle lo que nos toca vivir. Cuando abrimos las celdas donde se apilan los cuerpos, nos encontramos con que han permanecido en depósito sin ningún tipo de refrigeración. Un olor nauseabundo, una nube de moscas, larvas y gusanos en el piso formando una capa de diez centímetros de altura, que retiramos en baldes, cargándolas con

161 PAVIS, 2007, p. 74. 162 PAVIS, 2007, p. 74. 163 PAVIS, 2007, p. 74. 164 PAVIS, 2007, p. 74.

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palas. Nuestra única indumentaria para este trabajo es pantalón y guardapolvo sin guantes ni botas. A pesar de todo no tuvimos reparos en realizar la tarea ordenada. Solicitamos humildemente se nos suministren mascarillas para soportar el olor, así como los guantes y botas mencionados.165

A carta relatada por Agamémnon revela nomes próprios de referentes da realidade. A cena

prossegue, relatando a veracidade da ação e aproximando ainda mais o tom político e

denunciador do espectador-juiz:

Trabajador: también sugerimos respetuosamente que se apilen los cuerpos en las celdas frigoríficas, para poder cumplir del mejor modo posible con nuestra labor. Firman: trabajadores de la morgue judicial de Córdoba, Argentina, junio de 1980.166

Pode-se pensar essas cenas não como estruturação paralela, porque a persuasão do discurso

projeta uma constante interação entre elas. O conjunto das cenas revela uma retórica na qual o

jogo mimético é evocado para dar espaço à defesa de um ponto de vista — pode ser tanto do

autor como das próprias personagens — e, também, ao ato de justiça, que ficará a cargo do

espectador/leitor/juiz. Não se pode pensar o teatro como meio massivo de comunicação.

Segundo Osvaldo Quiroga (2004), uma obra de teatro que produz impacto além do seu tempo

de duração é aquela que possibilita seu receptor “comprender el mundo no como algo dado

que se nos impone sino como algo que puede ser producido”,167 tornando-a um instrumento de

construção de sentido e, portanto, um ato político.

165 “Agamémnon: (lê) Senhor General dos Exércitos: Hugo, Jorge, Rafael, Emilio, Augusto Agamémnon. Antes chegavam ao necrotério de nossa cidade de 3 a 6 cadáveres por semana, agora são centenas os corpos que as tropas trazem. Nós desejamos cumprir com nosso trabalho, seja a quantidade que for, mas devemos lhe descrever o que nos cabe viver. Quando abrimos as celas onde são empilhados os corpos, nos deparamos com que permaneceram em um depósito sem nenhum tipo de refrigeração. Um odor nauseabundo, uma nuvem de moscas, larvas e lagartas no chão formando uma capa de dez centímetros de altura, que retiramos em baldes, carregando-as com pás. Nossa única indumentária para este trabalho é calça e guarda-pó, sem luvas nem botas. Apesar de tudo não tivemos inconvenientes para realizar a tarefa ordenada. Solicitamos humildemente que nos subministrem máscaras para suportar o odor, assim como luvas e botas mencionadas.” (BRIE, 2000, p. 11). 166 “Trabalhador: também sugerimos, respeitosamente, que empilhem os corpos nas celas frigoríficas para poder cumprir, da melhor maneira possível, com nosso trabalho. Assinam: trabalhadores do necrotério judicial de Córdoba, Argentina, junho de 1980”. (BRIE, 2000, p. 11). 167 QUIROGA apud IRAZÁBAL, 2004, p. 15. “Compreender o mundo não como algo que nos é imposto, senão como algo que pode ser produzido”. (QUIROGA apud IRAZÁBAL, 2004, p. 15).

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Ainda na análise desse conjunto cênico, a personagem Briseida — englobando o coro e, daí, o

espectador/leitor — juntamente com o chefe do exército Agamémnon produzem uma

contextualização da confrontação entre o indivíduo e o Estado. Briseida entrega os fatos ao

coro e ao espectador, incitando ao julgamento, e Agamémnon revela os nomes daqueles que,

possivelmente, estariam sentados nas cadeiras dos réus. A personagem do trabalhador relata o

espaço do crime a ser julgado, produzindo, assim, o fechamento de provas para a

concretização do processo judicial. Trata-se, aqui, de uma explícita relação com o estado

argentino ditatorial — o campo de tortura La perla, na província de Córdoba — e pós-

ditatorial — o julgamento dos culpados. Escrito no ano de 2000, o texto dramático de La

Ilíada coincide, cronologicamente, com as sanções, pelo então presidente argentino, Carlos

Menem, de decretos-lei que resultaram em indulto de centenas de militares e dezenas de civis

que não haviam sido beneficiados com as leis Ponto Final e Obediência Devida. Marcos da

história do Direito na Argentina, as duas leis são concretizações do poder soberano, em plena

abertura democrática, para acelerar a impunidade dos militares responsáveis pelos crimes

cometidos contra seres humanos durante a época da ditadura militar naquele país.

Na tentativa de formalizar os traços contextuais que formam a conjectura cênica que vem

sendo analisada, parte-se, agora, para o exame — mediado, principalmente, pelo teórico

italiano Giorgio Agamben (2004) — das relações de poder jurídico totalitário, dentro de uma

esfera democrática, para entender mais profundamente essa escolha por inserir, na obra

dramática, referenciais tão diretos do contexto em questão — ambos os generais argentinos

citados na fala de Agamémnon (lê-se Jorge Rafael Videla e Emilio Massera) foram indiciados

na época da transição democrática —, fazendo com que o espectador/leitor desempenhe uma

condição de juiz ad hoc da ação.

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4.2 A culpa e o Estado democrático

Prevendo o fim do regime ditatorial em 1983, a junta militar argentina promulga a lei da

Autoanistia, que engloba o veto de ações penais contra os responsáveis por delitos cometidos

durante a repressão subversiva. No fim desse mesmo ano, retomado o Estado democrático

argentino, o então presidente Raúl Alfonsín, eleito por voto direto, sanciona o Decreto-lei

158/83, que possibilita a abertura de processos legais contra as juntas militares que atuaram

durante a repressão ao terrorismo que perdurou de 1976 a meados de 1983. O fim da anistia

resultou em processos e prisões de somente militares do alto escalão das juntas. Pressionado,

pela CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas) —, para que

abrangesse a classe de culpados — e pelos próprios militares, que alegavam que a comissão

estava fomentando ressentimentos e impedindo o esquecimento dos fatos ocorridos, o

presidente Alfonsín sanciona, em novembro de 1986, a lei Ponto Final: “En las mismas

condiciones se extinguirá la acción penal contra toda persona que hubiere cometido delitos

vinculados a la instauración de formas violentas de acción política hasta el 10 de diciembre de

1983”.168 No decreto assinado pelo presidente, constavam, ainda, as razões pelas quais o

levaram a sancionar a medida excepcional. A lei viria prevenir o espírito de vingança da

sociedade, ponto de partida para uma nova etapa de violência no país. O prazo de 60 dias,

estipulado para ajuizar, na Justiça, ações com acusações contra militares por violação de

direitos humanos, eliminaria, no menor tempo possível, o estado de suspeita indiscriminada

que estava sendo projetado sobre as Forças Armadas. Dessa forma, o governo acreditava estar

criando, no interior mesmo do espaço da justiça, a possibilidade de reconciliação e, com isso,

continuando com a tarefa de reconstruir uma Nação democrática.

Pode-se entender o caso argentino, por meio do quadro teórico do “Estado de exceção”, do

pensador Agamben (2004), como paradigma de governos democráticos contemporâneos. O

acionamento de uma medida excepcional se ancora no limite entre o Direito e a Política, já

que a modificação do funcionamento das estruturas jurídicas de um governo acontece para

beneficiar, nesse caso, uma emergência política e social. Agamben clama por uma teoria de

168 “Nas mesmas condições, se extinguirá a ação penal contra toda pessoa que tivesse cometido delitos vinculados à instauração de formas violentas de ação política até 10 de dezembro de 1983.” (http://www.desaparecidos.org/arg/doc/secretos/ley.html).

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Estado de exceção dentro do Direito Público, afirmando que o Direito nega o problema como

jurídico por se tratar de uma emergência momentânea de um fato político. E complementa

que “as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que

não podem ser compreendidas no plano do Direito, e o estado de exceção apresenta-se como a

forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.169 Conseqüentemente, a lei de Alfonsín

retoma a anistia, rompendo com a possibilidade de culpados serem julgados, legalmente, pelo

Poder Judiciário.

Ainda sob o olhar do pensador italiano e entendendo que o período argentino, tratado neste

estudo, situava-se às vésperas de uma guerra civil170 — pressões por parte dos militares e,

também, pela população, que sofreu (com) perdas e desaparecimentos de parente e que ainda

se deparava com barreiras jurídicas para acusar os responsáveis —, as iniciativas do então

governo é de legalizar a situação de “indecidibilidade”,171 criando medidas excepcionais para

eliminar, do passado do país, determinados fatos.

Ainda no mesmo contexto, a Lei de Obediência Devida172 — sancionada em 04 de junho de

1987 — vem complementar a Lei do Ponto Final173, extinguindo totalmente as provas contra

os militares que se situavam abaixo da patente de coronel. Mais uma vez, o mal-estar dos

militares prevaleceu na decisão do governo, já que, antes do término do prazo estipulado pela

Lei do Ponto Final, foram registradas denúncias contra mais de quinhentos militares. Este

texto da medida promulgada mostra a interpretação do governo sobre o princípio da

obediência devida:

169 AGAMBEN, 2004, p. 12-13. 170 Ao analisar o caso do projeto nazista alemão, Agamben estabelece relações entre guerra civil, resistência e estado de exceção. Segundo o autor, a guerra civil representa um lugar de indecidibilidade, mas a instauração de um estado de exceção para controlar a desordem significa “a instauração de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só de adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”. (AGAMBEN, 2004, p. 13). 171 AGAMBEN, 2004. 172 ARGENTINA. Ley 23.942 “Punto Final”, de 23/12/1986; Boletín Oficial, Buenos Ayres, 29 dez. 1986. Disponível em: <http://www.nuncamas.org/document/nacional/ley23492.htm>. Acesso em: 11 abr. 2009. 173 ARGENTINA. Ley 23.942 “Punto Final”, de 23/12/1986; Boletín Oficial, Buenos Ayres, 29 dez. 1986). Disponível em: <http://www.nuncamas.org/document/nacional/ley23492.htm>. Acesso em: 11 abr. 2009.

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Se presume sin admitir prueba en contrario que quienes a la fecha de comisión del hecho revistaban como oficiales jefes, oficiales subalternos, suboficiales y personal de tropa de las fuerzas armadas, de seguridad, policiales y penitenciarias, no son punibles por los delitos a que se refiere el art. 10, punto 1 de la ley 23.049 por haber obrado en virtud de obediencia debida. La misma presunción será aplicada a los oficiales superiores que no hubieran revistado como comandante en jefe, jefe de zona, jefe de subzona o jefe de fuerza de seguridad, policial o penitenciaria si no se resuelve judicialmente, antes de los treinta días de promulgación de esta ley, que tuvieron capacidad decisoria o participaron en la elaboración de las órdenes. En tales casos se considerara de pleno derecho que las personas mencionadas obraron en estado de coerción bajo subordinación a la autoridad superior y en cumplimiento de órdenes, sin facultad o posibilidad de inspección, oposición o resistencia a ellas en cuanto a su oportunidad y legitimidad.174

Compreende-se, a partir dessa lei, que a obediência da ordem pelo subordinado — por sua

posição na verticalidade de comandos que descarta a existência de capacidade decisória

própria e exclui a revisão da ordem — deixa-o, legalmente, a salvo de sua responsabilidade na

realização do “serviço”. Para os representantes da oposição da época, vários militares

subalternos intervieram na luta contra a subversão, de forma voluntária e sem mediação de

ordens superiores, com a convicção de estarem defendendo a pátria da ação subversiva. É o

caso do tenente Alfredo Astiz, um dos maiores vilões da ditadura Argentina, que já estava

detido e respondendo a processos por mais de vinte delitos. O caso Astiz talvez seja o

principal motivo da indignação da sociedade diante da promulgação da Lei da Obediência

Devida. A partir da data de sua sanção, essa lei vinha sofrendo modificações contínuas,

acrescendo-se, sempre, à lista dos favorecidos pela impunidade, militares de altas patentes, de

altos níveis de chefia das juntas. Entre a lei original e sua ampliação, foram beneficiados mais

de trezentos militares processados.

174 “Presume-se, sem admitir prova ao contrário, que os que, à data da comissão do fato, revistavam, como oficiais chefes, oficiais subalternos, suboficiais e pessoal de tropa das forças armadas, de segurança, policiais e penitenciárias não são puníveis pelos delitos a que se refere o art. 10, ponto 1, da lei 23.049, por haver atuado em virtude de obediência devida. A mesma presunção será aplicada aos oficiais superiores que não houveram revistado, como comandante em chefe, chefe de zona, chefe de subzona ou chefe de força de segurança, policial ou penitenciária, se não se resolve judicialmente, antes dos trinta dias de promulgação desta lei, que tiveram capacidade decisória ou participaram na elaboração das ordens. Em tais casos, considera-se de pleno direito que as pessoas mencionadas atuaram em estado de coerção, sob subordinação a autoridade superior e em cumprimento de ordens, sem faculdade ou possibilidade de inspeção, oposição ou resistência a elas, quanto à sua oportunidade e legitimidade.” (ARGENTINA. Ley 23.521, de 04 de junho de 1987 (Ley de Obediencia Debida). Boletín Oficial, Buenos Aires, 09 jun. 1987).

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Para confirmar a célebre afirmação sobre a tese de Benjamin de que o “estado de exceção

tornou-se a regra”, Agamben recorre às teorias do jurista sueco Herbert Tingstein sobre os

plenos poderes.175 Segundo Tingstein, o aumento do poder executivo — graças à delegação

contida em leis de plenos poderes — no âmbito legislativo marca a evolução dos regimes

parlamentaristas. Somente em situações de emergência, essas leis rompem com a hierarquia,

lei e regulamento, e o poder legislativo — de competência exclusiva do Parlamento — é

delegado ao governo. A conclusão de Tingstein de que “embora um uso provisório e

controlado dos plenos poderes seja teoricamente compatível com as constituições

democráticas, ‘um exercício sistemático e regular do instituto leva, necessariamente, à

liquidação da democracia’”176 aplica-se à situação político-jurídica da Argentina, já que o

governo defende a criação da Lei de Obediência Devida, acreditando estar cooperando com a

restauração da democracia, após o período ditatorial.

Além disso, as medidas excepcionais — sancionadas num intervalo de seis meses, e sofrendo

sempre modificações —, corroborando a idéia de que a exceção virou regra durante os anos

de 1986 e 1987 do mandato do presidente Alfonsín, e, ainda, coincidindo com a ação da junta

militar, ao criar a lei da Autoanistia. Mapeando o quadro dos procedimentos usados para se

declarar o Estado de exceção, Agamben se atém ao grupo dos Estados ocidentais

democráticos, afirmando que, na França, por exemplo, em 1937, com a esquerda no poder, as

medidas excepcionais são solicitadas ao Parlamento para resolver urgências de ordem

econômica, e conclui que a prática “fascista” — assim como o caso dos militares argentinos

na sanção da lei da Autoanistia — torna-se, agora, “aceita por todas as forças políticas [e] os

procedimentos normais da democracia parlamentar foram colocadas em suspenso”.177 Se, para

o governo argentino, as medidas excepcionais compreendem uma democracia protegida, para

Agamben, ao contrário, significam a inexistência de democracia, e essa “fase de transição

leva fatalmente à instauração de um regime totalitário”.178

175 De acordo com Tingstein, os plenos poderes são resultantes da criação de decretos com força de lei, levando o estado de exceção ao estado original pleromático, ou seja, no estado onde não se dá a distinção entre os poderes legislativo, judiciário e executivo. (TINGSTEIN apud AGAMBEN, 2004, p. 18-19). 176 AGAMBEN, 2004, p. 19. 177 AGAMBEN, 2004, p. 26-27. 178 AGAMBEN, 2004, p. 29.

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Durante o debate parlamentarista na Câmara de Deputados da Nação Argentina, o membro

informante do parecer da Lei Obediência Devida reitera a argumentação do presidente

Alfonsín, afirmando que a lei constitui um “estado de necessidade desculpadora”:

La obediencia debida es una necesidad disculpante [que] concierne a la culpabilidad […]. Por eso, los que están condenados siguen condenados, las responsabilidades no se diluyen. Lo que ocurre es que las responsabilidades se concentran, se verticalizan, porque cuando hay obediencia debida la responsabilidad no desaparece, sino que se concentra en aquellas personas de las cuales emanó la orden que originó fundamentalmente los hechos en cuestión.”179

Agamben, sob a visão do jurista Julius Hatschek, apresenta o Estado de exceção e a

necessidade que o funda por uma “via de duas mãos”. Por um lado, a teoria objetiva do estado

de necessidade — realizada dentro desse estado e fora da lei, mas juridicamente aceitável —

e, por outro, a teoria subjetiva do estado de necessidade — em que o poder excepcional se

baseia num direito constitucional ou pré-constitucional em relação à boa fé, que lhe garantiria

a imunidade jurídica. Para Agamben, esse simples binarismo dentro/fora é insuficiente para

abranger o fenômeno estado de exceção, pois vários questionamentos surgem:

Se o que é próprio de estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é apenas uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei; como é possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação crucial? E qual é o sentido dessa lacuna?180

De acordo com esse filósofo italiano, o estado de exceção não se encontra nem dentro nem

fora do ordenamento jurídico e, sim, numa “zona de indiferença, que dentro e fora não se

excluem, mas se indeterminam”.181 Na fundamentação do estado de exceção, não há como

excluir o conceito — do Direito Canônico — do estado de necessidade: “a necessidade não

179 “A obediência devida é uma necessidade desculpadora que concerne à culpabilidade. Por isso, os que estão condenados, continuam condenados, as responsabilidades se concentram, verticalizam-se, porque quando há obediência devida, a responsabilidade não desaparece, senão que se concentra naquelas pessoas das quais emanou a ordem que originou fundamentalmente os fatos em questão.” (http://www.resdal.org/Archivo/sain-cap3-4.htm). 180 AGAMBEN, 2004, p. 39. 181 AGAMBEN, 2004, p. 39.

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reconhece nenhuma lei; a necessidade cria sua própria lei”.182 Na época medieval, o estado de

necessidade nada mais era que um estado de exceção sem ser fonte de lei e sem ser supressor

da lei, mas somente a subtração — da emergência em questão — da aplicação comum da

norma.

O estado de exceção moderno se dá contrário a isso, “é uma tentativa de incluir na ordem

jurídica a própria exceção, criando uma zona de indiferenciação em que fato e direito

coincidem”.183 O estado de necessidade “desculpadora” do caso argentino vem exemplificar o

estado de exceção moderno, já que inclui em seu sistema jurídico a necessidade da

reconciliação nacional e do fortalecimento da democracia através da impunidade legal dos

responsáveis. O estado de necessidade coloca o estado de exceção num lugar ambíguo e

incerto, pois “os procedimentos do fato, em si extra ou antijurídicos, transformam-se em

direito e onde as normas jurídicas se indeterminam em mero fato; um limiar portanto, onde

fato e direito parecem tornar-ser indiscerníveis”.184 Agamben conclui que “o estado de

necessidade é interpretado como a lacuna do direito público, a qual o poder executivo é

obrigado a remediar [...], pois a lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com

a realidade”.185 Essa fratura pertence ao direito e reside no entre estabelecer e aplicar a norma.

O estado de exceção é a única possibilidade de preencher a lacuna, “criando-se uma área onde

essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor”.186 Nesse

parâmetro de vigência, pode-se entender que entre os governos Alfonsín e Menem, a

Argentina permaneceu vinte anos em singular estado de exceção.

Essa contextualização da especificidade histórica e social integra o conjunto de circunstâncias

que rodeiam a emissão do discurso semântico da seqüência dramática analisada

anteriormente. No momento em que, na obra, há uma decisão de incomodar o

espectador/leitor com nomes dos referentes da realidade, revela-se, juntamente, uma crítica a

essa democracia que, por vinte anos, ao invés de denunciar, julgar e processar a culpa, não fez

outra coisa senão se aliar ao sistema anterior, mostrando-se tão totalitária quanto ele.

182 AGAMBEN, 2004, p. 40. 183 AGAMBEN, 2004, p. 42. 184 AGAMBEN, 2004, p. 45. 185 AGAMBEN, 2004, p. 48 186 AGAMBEN, 2004, p. 49.

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Pode-se concluir, por conseguinte, com Agamben (2004), que esses camuflados Estados

democráticos contemporâneos, “mais do que garantidores e administradores da ordem, são

máquinas de produção e gestão de desordem que permitem intervenções que lhes dão

legitimidade e poder”.187 De acordo com Pavis, essa referência explícita no texto se direciona

ao objetivo de entendimento imediato produzido pelo teatro. Para esse teórico francês, é

preferível esclarecer do que manter relações incompreensíveis, que causariam desconcerto no

espectador/ leitor: “o tradutor, enquanto dramaturgo, deve fornecer, cada vez mais, no seu

texto [...] uma série de informações das quais o público-alvo tenha necessidade para

compreender uma situação ou um personagem”.188

Junto a essa cascata de concretizações defendidas por Pavis — os movimentos da

interpretação macrotextual do texto-fonte para a tradução das particularidades ideológicas do

autor —, as quais abrangem o resultado satisfatório da tradução teatral, a contextualização do

processo ajuda na ampliação da perspectiva do espectador/leitor e faz do texto dramático um

discurso a “ser encontrado e sempre a se constituir”.189 É somente nessa ampliação e

transferência de condutos no processo de criação que se encontra a possibilidade de o

expectador/leitor estabelecer elos entre o texto-fonte e o de chegada e seus sentidos:

O fato de que se possa considerar uma tradução como apropriada depende da possibilidade de considerar que a situação de enunciação do texto-fonte, o tradutor e o discurso-alvo correspondem: esse caráter apropriado é, então, refletido na aparente invisibilidade da apropriação. A significação do texto traduzido provém não tanto daquilo que se pode recuperar do original, mas sim daquilo que se possa fazê-lo suportar. 190

187 AGAMBEN apud SAFATLE, 2005. 188 PAVIS, 2008, p. 128. 189 PAVIS, 2008, p. 129. 190 KRUGER apud PAVIS, 2008, p. 126.

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4.3 Pelo filho que morre

FIGURA 10 – Rodolfo Walsh. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie.

Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Os pilares do texto dramático de Brie estruturam-se na desordem dos relatos discursivos

resultantes de uma compilação entre criação e tradução. É produzida, nesse limiar do processo

de tradução, uma potencialidade poética que determinará o sentido político da obra. Pode-se

sustentar o teatro político de Brie na base do teatro do período pós-ditatorial argentino

marcado, segundo o professor de História e Teoria do Teatro da Universidade de Buenos

Aires, Jorge Dubatti (2006), por uma rearticulação da relação entre cena e política, na qual o

conceito de política é ampliado em si mesmo.191 Em sua análise, esse professor desenvolve a

concepção do político como categoria semântica, que, “[en] un texto dramático se genera a

partir de la triple intentio señalada por U. Eco: del sujeto de la enunciación externa (intentio

actoris), del texto en sí (intentio operis) y de la actividad del receptor (intentio lectoris)”,192

pois

191 DUBATTI, 2006, p. 10. 192 “Num texto dramático se produz a tripla intentio assinalada por Eco: do sujeito da enunciação externa (intentio auctoris), do texto em si (intentio operis) e da atividade do receptor (intentio lectoris).” (DUBATTI, 2006, p. 10).

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política es toda práctica o acción textual (en los diferentes niveles del texto) o extratextual productora de sentido social en un determinado campo de poder (relación de fuerzas), en torno de las estructuras de poder y su situación en dicho tiempo.193

A partir do quadro de análise de Dubatti, é possível defrontar com o sentido político na obra

do dramaturgo argentino, patente desde sua escolha por traduzir os modelos clássicos até a

própria atividade do leitor/espectador. Pode-se pensar que as relações entre autor, texto

artístico e leitor ou espectador encontram-se em qualquer obra de arte e, portanto, afirmar-se

que toda arte tem sentido político. A diferença entre uma obra de arte que manifesta um

sentido político daquela que não se explica, segundo Federico Irazábal (2004), está no vínculo

entre o texto e sua recepção. Para esse teórico argentino, o mundo — contexto de produção —

impacta, determina e libera o autor a produzir uma relação dual com o afora e sua obra e,

nesse ponto, o texto significante do autor só pode ser compreendido a partir do seu contexto

de produção. Na relação que se estabelece entre a obra e o leitor, todavia, não é importante o

contexto de produção, já que ela é lida a partir do mundo do leitor e dele se constrói o texto

significado. Da mesma forma que o leitor constrói seu texto, esse texto também acederá o

leitor, construindo-o. Essa relação mútua que se estabelece entre texto, significado e leitor

produz, na análise de Irazábal, o sentido político da obra de arte:

En este punto vamos a ubicar la dimensión política en tanto modalidad productivo-receptiva, ya que implica un vínculo especial entre estos dos agentes: el lector construye el texto según aquello que puede (en función de su contexto de recepción) pero esa construcción se vuelve significativa en sí misma y como operación.194

Conclui-se, portanto, que não existe concepção de autor e espectador/leitor desconectados de

seus contextos de produção e recepção e que todo ato interpretativo está, necessariamente,

vinculado a essa condição. Não é difícil ligar esse panorama ao processo eficaz de tradução

teatral defendido por Pavis. O espaço enunciativo do autor determinará essa consciência

crítica do receptor, porque “é verdade, também, que as escolhas hermenêuticas que qualquer 193 “Política é toda prática ou ação textual (nos diferentes níveis do texto) ou extra-textual produtora de sentido social em um determinado campo de poder (relação de forças) em torno das estruturas de poder e sua situação em tal campo.” (DUBATTI, 2006, p. 10). 194 “Nesse ponto vamos localizar a dimensão política entanto modalidade produtivo-receptiva, já que implica um vínculo especial entre estes dois agentes: o leitor constrói o texto segundo aquilo que pode (em função de seu contexto de recepção), mas essa construção se volta significativa em si mesma e como operação.” (IRAZÁBAL, 2004, p. 53).

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tradução implica podem contribuir para contar com determinada interpretação cênica que é,

assim, uma preparação para a encenação dessa tradução”.195

Ao traduzir fragmentos, tanto do clássico de Homero quanto das tragédias de Eurípides, Brie

estrutura sua obra em um determinado contexto de tempo e proporciona uma visão, uma

vivência e um sentimento para com o aqui e o agora. Certamente, conforme se lê na análise de

Gadamer (apud IRAZÁBAL, 2004), a produção interpretativa do leitor/espectador pode

ultrapassar o sentido que um autor conferir à sua obra, porque “comprender se refiere más

bien a que uno es capaz de ponerse en el lugar del outro y expresar lo que ha comprendido y

qué es lo que tiene a decir sobre ello”.196 No canto VI do poema clássico, escutam-se os

lamentos de Andrômaca, endereçados ao marido, Heitor:

Tua coragem te perde, cruel! Não te apiadas, ao menos, / de teu filhinho inocente, ou de minha desdita, ficando / cedo viúva de ti, quando os feros Aqueus te matarem? [...] És para mim, caro Heitor, assim pai como mãe veneranda, / és meu irmão, de igual modo, e marido na idade florente. / Tem, pois, piedade de mim; fica um pouco na torre; não queiras / órfão o filho deixar, nem viúva a consorte querida.197

Fala-lhe Heitor:

O coração claramente mo diz e a razão me confirma: / dia virá em que Tróia sagrada será destruída, / bem com Príamo e o povo do velho monarca lanceiro. / Menos, porém, me acabrunha o destino que aos Teucros espera, / ou mesmo o de Hécabe, ou a sorte que a Príamo está reservada, / e a meus irmãos numerosos, que, embora valentes, na poeira / hão de jogados ficar, sob golpes de imigos ferozes, / que imaginar-te arrastada por um desses duros Aquivos / de vestes brônzeas, em prantos, sem nada dos dias felizes. [...] Zeus poderoso, e vós outros, ó deuses eternos do Olimpo, / que venha a ser o meu filho como eu, distinguido entre os Teucros, / de igual vigor, e que em Ílio, depois, venha a ter o comando. / E que, ao voltar, dos combates, alguém diga, ao vê-lo: ‘É mais ainda, que o pai!’198

195 PAVIS, 2007, p. 133. 196 “Compreender se refere melhor ao que um é capaz de se colocar no lugar do outro e expressar o que compreendeu e o que é que tem de dizer sobre isso.” (GADAMER apud IRAZÁBAL, 2004, p. 55). 197 NUNES, 2001, p. 126-127 (VI, 407-409; 429-432). 198 NUNES, 2001, p. 127 (VI, 447-455; 476-480).

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Nos primeiros fragmentos do poema clássico, o lamento de Andrômaca ressalta a

preocupação de sua condição futura. Já as palavras de Heitor denotam essa inquietude

extensiva à sua pátria e aos seus conterrâneos, mas também uma notável visão auto-

vangloriosa. Mesmo que o herói troiano se mostre preocupado com o destino da mulher, seu

discurso se direciona para a necessidade de afirmar sua condição invejável de grande

guerreiro inigualável. A releitura dessa figura homérica para o texto dramático

contemporâneo é a de um pai mais modesto e atormentado pelo futuro não só da esposa, mas,

principalmente, do filho que, certamente, ficará órfão.

FIGURA 11 – Andrômaca e Heitor. La Ilíada, 2000. Direção de César Brie. Fonte: HACIENDA DEL TEATRO, 2003.

Andrómaca: Héctor, amor mío, no quiero vivir / Para verte partir a casas del Hades / En tierra profunda y el hijo aún no habla, / El hijo que hicimos tú y yo, miserables. / Para él no serás vida, Héctor, porque habrás muerto. / Ni él para ti. / Héctor: Y si se salvara será siempre un huérfano. / Delante de todos bajará la vista […] Andrómaca: Otros lo echarán: “tú no tienes padre” / Le dirán. Astianacte, hijo / Que antes te sentabas en brazos de Héctor / Pronto sufrirás al padre perdido. / Héctor: O tal vez un griego te arroje de la torre / Para vengar a un hermano, o al padre o al hijo / Que yo les maté. / Andrómaca: Destruirán a Troya / Porque no estás tú que la protegías / Seremos esclavas: ¿y el hijo / El hijo conmigo. / Héctor: Demasiado joven dejaré la vida / Me iré de esta casa. El niño aún no habla / Y jamás será grande / Andrómaca: No extenderás Héctor, hacia mí tu mano / Cuando mueras, no oiré tus palabras / No las guardaré, para que luego puedan

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seguirme a todos lados, día y noche, en el llanto. / En la ciudad las mujeres llorábamos a los vivos / Temíamos no verlos regresar más de la pelea.199

O herói troiano do modelo clássico se revela na cena dramática contemporânea com

características menos presunçosas. O Heitor de Brie não está preocupado em relatar suas

glórias conquistadas e em fazer delas a salvação do futuro do filho. Esse pai manifesta, ao

contrário, preocupações mais humanizadas, deixando evidenciar o sofrimento pela condição

órfã de Astianacte. À medida que Heitor vai falando, surgem os referentes de uma realidade

histórica do lugar de enunciação. Na conversa do herói com a esposa, não deixa de pesar, no

leitor/espectador, os pais vítimas da ditadura argentina, aqueles cujos filhos órfãos ficaram à

mercê do esquema militar de adoções ilegais e que, no presente, enfrentam problemas de

identidade. Essa interpretação revela-se nas “aberturas” enunciativas da cena, porque,

segundo Umberto Eco,

se em cada leitura poética temos um mundo pessoal que tenta adaptar-se fielmente ao mundo do texto, nas obras poéticas deliberadamente baseadas na sugestão, o texto se propõe estimular justamente o mundo pessoal do intérprete, para que este extraia de sua interioridade uma resposta profunda, elaborada por misteriosas consonâncias.200

Astianacte não será reconhecido pelas glórias paternas; será desprezado e, possivelmente,

vítima de vingança. Quando o discurso de Heitor se direciona para o futuro do filho, cria-se o

contraste entre o herói poderoso e o pai inquietante, tornando-se a referência do contexto do

leitor/espectador do mundo fictício da literatura. Esse mundo fictício de Brie se aproxima da

realidade dos fatos em outra cena, na qual a relação entre pai e filho é relatada,

199 “Andrômaca: Heitor, meu amor, não quero viver / Para te ver partir para casa do Hades / Em terra profunda e o filho ainda não fala / O filho que fizemos tu e eu, miseráveis. / Para ele, tu não serás vida, Heitor, porque estarás morto. / Nem ele para ti. / Heitor: E se se salvar será sempre um órfão. / Diante de todos baixará a vista [...] Andrômaca: Outros o largarão: ‘tu não tens pai’ / Lhe dirão. Astianacte, filho / Que antes te sentavas nos braços de Heitor / Em breve sofrerás o pai perdido. / Heitor: Ou talvez um grego te jogue da torre / Para vingar um irmão ou o pai ou o filho / Que eu lhes matei. / Andrômaca: Destruirão Tróia / Porque não estás tu que a protegias / Seremos escravas: e o filho? / O filho comigo. / Heitor: Muito jovem deixarei a vida / Irei desta casa. O menino ainda não fala / E jamais será grande. / Andrômaca: Não estenderás, Heitor, para mim tua mão / Quando morreres, não ouvirei tuas palavras / Não as guardarei, para que depois possam / me seguir a todos lados, dia e noite, no choro. / Na cidade, nós mulheres chorávamos os vivos / Temíamos por não vê-los regressar mais da luta.” (BRIE, 2000, p. 8). 200 ECO, 1988, p. 46.

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explicitamente, por via do testemunho espectral de uma das trinta mil vítimas da ditadura

argentina:

Walsh: Rodolfo Walsh, escritor periodista. Asesinado en Buenos Aires en 1977. Seis meses antes había muerto Victoria mi hija. (Abre un libro) La Ilíada: “Junto a su padre luchaba Arpalión / Una flecha aguda se hundió en su nalga / partió la vejiga, se incrustó en el hueso / Mojaba la sangre los brazos del padre / mientras lo llevaba a Troya y lloraba. / Por un hijo que muere no hay recompensa. […] Tenía veinte y seis años mi hija Victoria. /Argentina se parecía cada vez más a un barrio de Troya. Como tantos chicos que repentinamente / Se hicieron adultos, mi hija andaba a los saltos / Huyendo de casa en casa por todo Buenos Aires. / No se quejaba, sólo su sonrisa se volvía desvaída. / Nos veíamos cada quince días / Caminando en una calle o alguna plaza / Hacíamos planes para vivir juntos / Pero ambos presentíamos que no iba a ser posible / Que uno de esos encuentros podía ser el último / Y nos despedíamos simulando valor / Consolándonos de la anticipada pérdida.201

No movimento entre a cena traduzida do modelo clássico de Heitor e Andrômaca, até o relato

de Walsh, ordena-se um conjunto de relações que unem todas as personagens a uma mesma

insistência discursiva, mesmo que, entre uma cena e outra, haja algumas seqüências que não

impossibilitam analisá-las na forma de sentido interpretativo linear. Falar da condição futura

do filho órfão como da morte de Victoria é estabelecer uma relação com o rompimento dos

laços familiares provocados tanto por guerras de um passado longínquo como do momento

ditatorial latino-americano. Essa translação temporal pode ser sentida, na cena de Heitor e

Andrômaca, pela desmistificação do pai-herói, instigando, no leitor/espectador, uma procura

pela determinação de enunciação que possibilite a transição interpretativa do relato clássico

para a tradução. O resultado dessa transição se concretiza no surgimento da personagem

Walsh, que assumirá o lugar de Heitor e entregará ao corpo receptivo não só o seu fim

inevitável, mas também a morte da filha Victoria. A escolha pela personagem Walsh — essa

vítima real da ditadura argentina — é um ato autoral político, a partir do ponto de vista da 201 “Walsh: Rodolfo Walsh, escritor jornalista. Assassinado em Buenos Aires em 1977. Seis meses antes tinha morrido Victoria minha filha. (abre um livro) Ilíada: ‘Junto a seu pai lutava Harpalião / Uma flecha aguda afundou em sua nádega / partiu a bexiga, se incrustou no osso / Molhava o sangue os braços do pai / enquanto o levava a Tróia e chorava / Por um filho que morre não há recompensa. ’ Tinha vinte e seis anos minha filha Victoria. /A Argentina se parecia cada vez mais com um bairro de Tróia. / Como tantas crianças que repentinamente / Se tornaram adultos, minha filha andava aos saltos / Fugindo de casa em casa por toda Buenos Aires. / Não se queixava, só seu sorriso se tornava desbotado. / Nos víamos a cada quinze dias / Caminhando por uma rua ou uma praça / Fazíamos planos para viver juntos / Mas ambos pressentíamos que não ia ser possível / Que um desses encontros podia ser o último / E nos despedíamos simulando valor / Nos consolando da antecipada perda.” (BRIE, 2000, p. 10).

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relação autor e contexto de produção e, também, um dos determinantes que produzirá o

sentido político para o leitor/espectador.

Pode-se sustentar a escolha da função da personagem Walsh — essa vítima que, mesmo após

a morte, continua denunciando fatos — pelo próprio estilo do escritor Rodolfo Walsh.

Marcado, segundo Alan Pauls,202 por uma necessidade compulsiva de denunciar; Walsh

consagrou-se, literalmente, por uma combinatória de insistência categórica e militância ativa.

Cânone da literatura argentina, Walsh é o autor do célebre Operación masacre, uma mescla

de romance policial e biográfico cuja função jornalística não apaga as características de um

relato romanesco. Nele está a denúncia dos fuzilamentos, nos arredores de Buenos Aires, no

ano de 1956, a mando da junta militar que se rebelou contra o golpe que destituiu Perón; a

chamada Revolução Libertadora. Foi, também, militante insistente que, em plena luta contra

os anos mais repressivos da ditadura argentina, não hesitou em escrever e enviar uma carta

denunciatória à junta militar do período. O ato de coragem dessa denúncia confirma a

compulsão de um escritor que acreditava na força das palavras:

El 24 de marzo de 1976 derrocaron ustedes a un gobierno del que formaban parte, a cuyo desprestigio contribuyeron como ejecutores de su política represiva, y cuyo término estaba señalado por elecciones convocadas para nueve meses más tarde. En esa perspectiva lo que ustedes liquidaron no fue el mandato transitorio de Isabel Martínez sino la posibilidad de un proceso democrático donde el pueblo remediara males que ustedes continuaron y agravaron.203

No mesmo dia que enviou por correio seu relato, Walsh foi vítima de uma emboscada, em

ruas do centro de Buenos Aires. Para não cair em mãos torturadas, o escritor trocou tiros com

os repressores e terminou assassinado, na tarde de 25 de março de 1977. Na grande causa

jurídica da ESMA — o centro de tortura do período —, o caso do seqüestro de Rodolfo

Walsh foi aberto às investigações em fevereiro de 2007, com vários depoimentos de

testemunhas: “Lo bajamos a Walsh. El hijo de puta se parapetó detrás de un árbol y se

202 http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-3697-2007-03-25.html. 203 “Em 24 de março de 1976, os senhores derrubaram um governo do qual faziam parte, em cujo desprestígio contribuíram como executores de sua política repressiva, e cujo término estava assinalado por eleições convocadas para nove meses mais tarde. Nessa perspectiva, o que os senhores liquidaram não foi o mandato provisório de Isabel Martínez, senão a possibilidade de um processo democrático onde o povo remediasse males que os senhores continuaram e agravaram”. (WALSH, 2006, p. 226).

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defendía con una 22. Lo cagamos a tiros y no se caía el hijo de puta”.204 Até a época do

julgamento do seqüestro, o corpo de Rodolfo Walsh estava desaparecido. Acreditava sua

filha, Patricia Walsh, que o haviam enterrado no próprio centro da ESMA.

Essa personagem espectral da obra de Brie continua denunciando e é justamente esse

testemunho fantasmagórico que faz com que suas palavras assumam um sentido político para

o espectador. Walsh surge para afirmar as inquietações de Heitor e, no espaço intrínseco das

personagens, transita questionamentos que inquietam o espectador/leitor, que sente a

integração de sua realidade, nesse momento. Entende-se, portanto, que mesmo a inserção de

uma personagem real, como Walsh, na trama não a caracteriza como essencialmente política,

mas com sentido político, porque, além de estabelecer uma relação entre contexto de

produção e recepção, a leitura passa, também, pela história da Ilíada clássica.

O texto de La Ilíada não é uma mera interpretação que surge da tradução de fragmentos de

textos clássicos, ele abrange em todo seu processo uma transposição de sistemas de expressão

para uma cultura-alvo. Essa ultrapassagem acontece, primeiramente, pelas propostas

intencionais de seu autor, pelo seu contexto de produção, mas ela realmente se concretiza no

corpo receptivo. É nesse espaço de chegada que a tradução alcançará a possibilidade de a

distância entre o texto-fonte e o texto-alvo ser avaliada. Como não se tratou de uma tradução

interlingual, mas de uma tradução da idéia e do espírito iliádico, as cenas recriadas por Brie

“não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada,

mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete”.205

Nessa tradução para o espaço cênico, o grande desafio da recriação de Brie foi trabalhar com

o cânone sob outras perspectivas, propiciando aos seus intérpretes a possibilidade de criar

suas próprias “ilíadas”, (re)elaborando suas histórias heróicas e lutas próprias. A escolha por

trazer à tona da realidade um texto clássico — e não criar, simplesmente, um texto dramático

integralmente novo — recai na necessidade benjaminiana206 de indagar os momentos

históricos já superados e tentar salvá-los no presente, e Brie encontrou, na literatura, sua única

204 “Pegamos Walsh. O filho da puta parou atrás de uma árvore e se defendia com uma 22. Metemos tiros nele e o filho da puta não caía.” (http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-80299-2007-02-12.html). 205 ECO, 1988, p. 39. 206 BENJAMIN, 1994.

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possibilidade de interrogar tais passados e decifrar, a partir dessa memória, as emergências

políticas e sociais de uma nova época.

Pode-se perguntar qual o sentido, para César Brie, de fazer tudo isso. Mesmo que o teatro seja

espaço para uma relação indissociável entre palco e espectador, é difícil desvincular o autor e

sujeito Brie de sua obra e não encontrar suas ideologias na escrita que transporta para o

mundo cênico. Ouvir, diretamente, sem intermediação, Brie falar sobre as marcas da

colonização que ainda impregnam o cotidiano de bolivianos, com situações de preconceito e

descaso social, com a mesma intensidade com que fala da dor que lhe causou a morte de seu

pai, quando ainda era um adolescente, mostra que sua dimensão individual não se projeta,

hierarquicamente, sobre a esfera de seu compromisso social.207

Após o exílio na Itália, Brie decide voltar à América Latina e escolhe a Bolívia — “um dos

países mais pobres e carentes do Cone Sul”208 — como lugar para dar continuidade ao seu

fazer teatral. Não retornou à sua terra natal, Argentina, mas não deixou de ver a Bolívia como

um espaço onde as raízes de um povo fazem, também, parte dele. A sede de seu Teatro de los

Andes fica em Yotala, um pequeno vilarejo no centro-sul da Bolívia, e se trata do lugar em

que Brie assume, hoje, uma postura de pertencente a terra, de cidadão local. Mesmo na

condição de estrangeiro, seu trabalho, para com a comunidade, pode ultrapassar o papel do

cidadão comum; seu compromisso com essa gente passa pela esfera social, porque seu teatro,

além de ser uma contribuição artística para o local, é, também, um lugar de inclusão social —

várias pessoas envolvidas no trabalho de produção e manutenção do teatro fazem parte dessa

comunidade e foram acolhidas e empregadas por Brie.

Na esfera cultural, além de levar suas obras a espaços não propriamente cênicos, como

escolas e praças, Brie, durante o ano de 2007, por exemplo, tinha um horário fixo na rádio

local, na qual, todos os dias, ele contava uma história, de sua autoria, na qual as personagens

207 Reflexões de César Brie feitas durante a oficina “Pensar a cena”, promovida pelo Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte (FIT) de Belo Horizonte, realizada entre os dias 28 de julho e 01 de agosto de 2006. 208 BRIE, 2005, p. 11.

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eram protótipos da gente comum do lugar, com seus problemas e sucessos.209 Sentir essa

necessidade de contribuir para a melhoria de um pequeno povoado revela, em Brie,

características de preservação e cultivo cultural e social, demonstrando que a “intensidade de

seus desejos é a sua força”,210 e qualquer renúncia é superada por essa fundamentação em

valores.

209 Reflexões de César Brie feitas durante a oficina “Pensar a cena”, promovida pelo Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte (FIT) de Belo Horizonte, realizada entre os dias 28 de julho e 01 de agosto de 2006. 210 http://www.regione.piemonte.it/piemontedalvivo/interviste/int_cesarbrie.htm.

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5 CONCLUSÃO

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos,

leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.211

Walter Benjamin

Um dos grandes desafios encarados nesta pesquisa foi abordar a dimensão teatral mediante

análise do texto dramático e das poucas informações sobre sua montagem cênica; ou seja, de

seu texto espetacular. Mesmo tendo tido a possibilidade de assistir às peças Otra vez Marcelo

e En un sol amarillo: memorias de un temblor, do Teatro de los Andes, e de contar, também,

com um documentário em vídeo que relata as experiências do grupo — esse material e essas

montagens deram suporte plástico esclarecedor à pesquisa —, esta dissertação se encerra,

praticamente, nas particularidades textuais, por falta de acesso ao texto espetacular. Registre-

se, a propósito, que, segundo José R.Varela, “desde finales del Barroco hasta nuestros días la

manera más frecuente de conocer las obras dramáticas ha sido a través de la lectura”.212

Uma das questões demonstradas no primeiro capítulo desta dissertação, por exemplo, foi que

o movimento intertextual proporcionou rompimentos de fronteiras de espaço e de tempo,

caracterizando o resgate de um passado que traz à tona, hoje, um novo discurso. No segundo

capítulo, esse mesmo movimento conduz à temática do luto do poema clássico homérico, em

concomitância com o processo melancólico da perda inerente a momentos pós-catastróficos.

No terceiro capítulo, por sua vez, a tradução literária intercultural oferece ao leitor a

possibilidade de estabelecer vínculos entre a dimensão textual clássica e a atual, pois esta lhe

chega por um contexto que ele conhece bem e o faz refletir a partir de suas próprias

experiências.

211 BENJAMIN, 1994, p. 223. 212 “Desde o final do Barroco até os nossos dias, a maneira mais freqüente de conhecer as obras dramáticas tem sido através da leitura.” (VARELA apud ROSTER; ROJAS, 1992, p. 52).

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Neste estudo, mesmo não abordando questões como as relações entre texto dramático e texto

espetacular — porque partiu-se do pressuposto da existência do caráter autônomo da escrita

teatral como literatura —, não se nega a existência e a importância dessas relações, como se

assinala a continuação. Sabe-se que vários grupos teatrais, dramaturgos, autores e diretores

latino-americanos têm buscado na literatura os recursos básicos para a produção de seus

textos dramáticos. Um dos casos mais próximos, por exemplo, é oferecido pela peça Romeu e

Julieta (1992), do grupo mineiro Galpão, que foi transportada para o contexto brasileiro; mais

especificamente, para o sertão mineiro, a história mais conhecida de Shakespeare. Graças a

um processo intertextual, a tradução pôde levar ao espectador elementos da cultura popular

brasileira, como as modinhas e serestas presentes no interior do Brasil. Ainda no contexto

mineiro, o grupo Officina Multimédia faz uma releitura do clássico de García Lorca, A casa

de Bernarda Alba (2001); essa tragédia andaluza entra no espaço das tradições mais

enraizadas de Minas Gerais. Numa esfera religiosa, as personagens são representações

alegóricas de uma sociedade envolvida pela culpa e pelo temor da alegria e do prazer,

provenientes de preconceitos e de costumes conservadores.

No campo dialógico com a Literatura Clássica, Antígona Furiosa (1986), da dramaturga

argentina Griselda Gambaro, associa o mito grego da tragédia de Sófocles aos episódios da

situação ditatorial que vivia a Argentina no momento da escrita de Gambaro. Seu objetivo era

enfatizar o julgamento das autoridades das repressões que insistiam em manter o poder. A

última montagem do Teatro de los Andes traz, novamente, a adaptação de um texto clássico.

Trata-se de La Odisea (2008), em que a luta da longa viagem de Odisseu para chegar à sua

casa é tomada, no contexto atual, como uma característica comum a todos os imigrantes que,

segundo Brie, tentam entrar em países do primeiro mundo, “en busca de derechos elementales

que les han sido negados en sus países, y hoy también en la gris, triste y decepcionante tierra

prometida”.213 Pôde-se constatar, com esses exemplos, que o diálogo e a negociação com

outras culturas, por meio de processos intertextuais, marcando uma tendência na cena latino-

americana, é resultado dessa associação entre teatro e literatura. Segundo Sara Rojo, porém,

deve haver a determinação de um “discurso próprio”, nesse particular:

213 “Em busca de direitos elementares que lhes têm sido negados em seus países e, hoje também, na cinza, triste e decepcionante terra prometida.” (Disponível em: <http://www.lostiempos.com/lecturas/>. Acesso em: 13 mar. 2009).

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O esforço de construção de uma estrutura sustentável e a abertura a outras culturas são processos relativamente convergentes. Faz-se necessário que nesses processos esteja presente a busca da especificidade da produção latino-americana, o que necessariamente passa pelo reconhecimento do lugar do qual se fala.214

O contexto de produção demarca esse lugar de enunciação e caracteriza a eficácia da tradução

intercultural, conforme refletimos, com apoio em Patrice Pavis (2008), no terceiro capítulo

deste trabalho. A possibilidade de traduzir, para o contexto brasileiro, a obra de César Brie

vem sendo pensada, após o encerramento dessas investigações, como um dos caminhos a

seguir futuramente. Se a cena contemporânea de nosso contexto vem aceitando que somos

formados por esses diálogos e encontros culturais, a tradução de obras estudadas e analisadas

sob as premissas da Semiologia e da História — como o caso de La Ilíada — contribui para

fomentar o campo teatral.

O trajeto tradutório, para tal, pretende se apoiar, principalmente, no arcabouço teórico-

conceitual de Pavis. A adequação dos contextos históricos e culturais do original de Brie para

o texto na língua portuguesa implicará numa pesquisa complementar que abranja o âmbito

jornalístico-documental, com a finalidade de se chegar, por exemplo, a uma possível

substituição das personagens de Brie que mantêm uma relação direta com a realidade, como

Rodolfo Walsh e Marcelo Quiroga, por referenciais semelhantes, fazendo com que os futuros

leitores/espectadores brasileiros percebam e reflitam sobre o contexto de produção da obra. O

texto traduzido deve estimular a capacidade de identificação do receptor-alvo, dar-lhe a

“impressão de estar se confrontando com ações semelhantes às de sua própria experiência”.215

Manter a atualidade de La Ilíada — uma obra que fala aos dias atuais sobre a problemática

das famílias de desaparecidos durante a ditadura na América Latina — significaria estabelecer

o diálogo intercultural proposto por Pavis, mesmo que essa problemática se associe mais a

países como a Argentina e o Chile.

Uma futura tradução da obra de Brie ainda contribuiria para preencher vazios no espaço da

memória histórica brasileira. No segundo capítulo desta dissertação, foi abordado, com apoio 214 ROJO, 1999, p. 59. 215 PAVIS, 2008, p. 143.

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nas reflexões de George Yúdice (2004), o avanço da elaboração da memória na América

Latina, em relação aos Estados Unidos. Mesmo concordando com Yúdice, o que se pode ver,

no Brasil, é que a montagem da História tradicional — nos termos benjaminianos —

conseguiu driblar os acontecimentos passados, cristalizando, no indivíduo, somente uma

memória monumental por conveniência, influenciada, principalmente, pelos meios de

comunicação. Nem mesmo a democracia e a eliminação da censura foram capazes de inserir,

no imaginário brasileiro — sob parâmetros consideráveis, em relação a outros países do Cone

Sul, como a Argentina e o Chile —, a importância da busca de identidades nacionais216; por

meio do testemunho, a busca por escritas latino-americanas, tentando marcar, nesse território,

um lugar de enunciação próprio, diversificado pela grande heterogeneidade e pelo processo de

globalização.

Apesar de a repressão militar ter ocorrido de maneira semelhante, nesses países, durante as

décadas de 1960, 1970 e 1980, o mesmo não aconteceu com o registro da memória. Enquanto,

na Argentina, em março de 2004, havia uma grande manifestação pelos vinte e oito anos do

domínio militar, incluindo a conversão oficial do centro de tortura, a ESMA, em Museu da

Memória, pelo então presidente Néstor Kirchener; no Brasil — no mesmo ano e mês, o golpe

militar completaria, aí, seus quarenta anos —, grande parte da mídia se concentrava na

homenagem aos dez anos da morte do piloto Ayrton Senna. Pode-se dizer, neste sentido, que

a relação que o Brasil estabelece com a ditadura militar é de esquecimento. Pensa-se,

portanto, que as traduções podem aproximar o leitor, em seu contexto, de reflexões

importantes e necessárias para a integridade de uma sociedade. Afinal, segundo Nietzsche, o

homem não pode viver sem o esquecimento, mas também:

A alegria, a boa consciência, o ato feliz, a confiança naquilo que vem – tudo isso depende, em cada indivíduo assim como no povo, da existência de uma linha que separe o visível, o claro, do que não pode ser clareado e escuro, de que se saiba tanto esquecer na hora certa, como também que se recorde na hora certa, de que as pessoas sintam com um instinto forte quando é necessário sentir-se de modo histórico ou não-histórico. Essa é a proposição a que o leitor é justamente convidado a observar: o ahistórico assim como o histórico são igualmente necessários para a saúde de cada indivíduo, de um povo e de uma cultura.217 (Grifos do autor)

216 No sentido de construção de discursos próprios, nos quais se projetam o reconhecimento do lugar enunciativo e a abertura a outras culturas. 217 NIETZSCHE apud SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 60-61.

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Assim como César Brie define seu trabalho como um ato de recordação, esta pesquisa tentou

se expandir sob as premissas da memória em relação aos contextos latino-americanos da

ditadura militar, da pós-ditadura e, também, das marcas da colonização, englobadas na

temática de La Ilíada. O caráter performático da obra atua em determinados campos da escrita

que remetem a uma nova maneira de enxergar a história, por meio da figura universalizada do

testemunho ou do recurso a instâncias ritualísticas. As personagens Rodolfo Walsh, Polidoro,

Marcelo Quiroga e seus companheiros abarcam uma esfera espectral capaz de ensejar

reflexões sobre passados cruéis e desumanos. As cenas da recomposição da tomada de Tróia

pelos gregos ganham uma caracterização plástica que remetem seus personagens aos campos

da resistência indígena, no período colonial. Dessas dimensões, emergem tanto a pertinência

da obra concernente à problemática latino-americana dos desaparecidos políticos, como as das

marcas da conquista no cotidiano atual. La Ilíada pode ser lida, nesse momento, como uma

hibridação performática, porque um tema contamina o outro, eles se mesclam,

proporcionando ao leitor/espectador um julgamento das ações históricas e sociais do passado

no presente do contexto de produção. Produtos do vazio da tradição oficial histórica, o híbrido

performático de La Ilíada tem o propósito de dizer não ao esquecimento, pois

resgatar essa memória como campo de forças plurais e divergentes serve para abri-la a uma multiplicidade de pontos de vista cujas contradições não devem permanecer silenciadas pela vontade atual de dissolver toda opacidade, de eliminar todo corpo estranho que ameace tornar turva a visão de uma história social e cultural falsamente reconciliada consigo mesma.218

Assim, as investigações seguiram no campo da memória, movendo-se pela questão atual do

processo da perda. Tentou-se mostrar que os estados iliádicos de sofrimento, provocados pelo

vazio da morte, foram transportados, para o texto de Brie, visando fornecer, ao público,

códigos de ordem política. Essa leitura atual do texto clássico de Homero não admitiu uma

simples preocupação estética de trazer, para o presente, uma obra velha com a aparência de

nova, que viaja de um espaço temporal a outro, mas determinou, principalmente, a

possibilidade de um novo encontro com algo que se pensava encerrado. A personagem

Hécuba foi trazida para o contexto atual como uma alegoria do luto latino-americano pós-

ditatorial — universalizado pelas Mães argentinas da Praça de Maio — e Polidoro se torna a

figuração dos jovens desaparecidos no mesmo contexto.

218 RICHARD, 2002, p. 57.

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Mostrou-se, ainda, que a importância da linhagem familiar contida no mito Belerofonte, de

Homero, pode ser lida, na contemporaneidade, como fraturas causadas por adoções ilícitas

feitas durante o período militar. São personagens que desencadeiam, na cena atual, reflexões

sobre o luto não-resolvido provocado pelas sepulturas vazias, como a questão do estado

melancólico que se apodera das famílias das vítimas, causando distúrbios psicológicos de

grandes dimensões. Uma das grandes questões da irresolução do processo da perda perpassa a

esfera jurídica. Na contextualização da reabertura democrática argentina, no terceiro capítulo,

pôde-se entender que o reconhecimento legal dos culpados pelas ações repressivas foi

estendido por vinte anos, devido a uma democracia que não fez outra coisa senão mantê-los

em liberdade, por meio de medidas excepcionais respaldadas pelo poder jurídico. A

democracia dos Estados contemporâneos, de acordo com as reflexões de Giorgio Agamben

(2004), não se exime de atos totalitários e, portanto, não pode ser entendida como tal.

Não é um desafio simples pesquisar um autor que está fora da esfera canônica, principalmente

porque há várias limitações na busca por informações. Por outro lado, essa ausência de

escritas relacionadas ao objeto propicia um compromisso de produzir reflexões interessantes,

que possam levar outras pessoas a se interessarem a dar continuidade ao trabalho iniciado.

Não foi por acaso a escolha por pesquisar a obra de César Brie. A leitura de seus textos

dramáticos, a possibilidade de ver algumas atuações de seu grupo e o contato presencial com

ele, durante sua oficina oferecida pela organização do Festival Internacional de Teatro de

Belo Horizonte (FIT), no ano de 2006, permitiram comprovar riquezas poética textual e

cênica, conhecer um pouco a ideologia que perpassa por todo o seu trabalho e encontrar várias

questões que podem ser refletidas sob incontáveis marcos teóricos. Tentou-se defender, nesta

dissertação, que o conteúdo de sua obra, direcionado para as particularidades da problemática

social e política, elimina o caráter de puro entretenimento momentâneo e lhe outorga uma

capacidade crítica perfeitamente capaz de ser inserida na dimensão analítica acadêmica.

Com certeza, todo o trajeto construído ao redor do estudo de La Ilíada não encerra as

investigações sobre o diretor argentino César Brie e o fazer teatral de seu grupo; trata-se

apenas de uma abertura para caminhos futuros. Espera-se, porém, que os resultados

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alcançados possam contribuir para pesquisas posteriores, tanto da área dos Estudos Literários,

concentrados na problemática das identidades latino-americanas, como na do campo teatral,

que admite o diálogo de culturas em suas expressões como constituintes de novas abordagens.

O autor investigado oferece tanto uma nova assimilação histórica, instigando-nos a reler o

passado sem reduzir a complexidade da contemporaneidade, como convida a uma

universalização de signos que podem ser lidos e compreendidos em tempos posteriores.

Espera-se, também, que, assim como os bons resultados da Iniciação Científica conduziram a

um programa de mestrado, a satisfação em realizar este trabalho continue instigando ao

enfrentamento de novas pesquisas.

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REFERÊNCIAS

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