Sim 89 Além do Visível

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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 22 DE FEVEREIRO DE 2015 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Além do Visível á imaginou um dia ficar cego? Nem pensar? Eu já. Foi quando no meu terceiro livro visível, Os jardins e a noite, voou pe- la primeira vez em Andara o pássaro Curau - que depois deu seu nome ao Manifesto Curau, que lan- cei em defesa poética & política da Amazônia. O que o Curau tem a ver com o escritor argentino Jorge Luis Borges? Nada, e tudo: me lembra o cego Jacinto, personagem do livro. O que o Curau fez a ele? Furou seus olhos, logo após Jacinto o recolher, doente, na porta da sua casa e tratar dele. E por que a ave fez isso? Para libertar Jacinto do ver já sem ver a repetida vida de todos os dias, e pas- sar, em sua escuridão, a ver a Vida trazida e revelada pelas vozes do vento. Sobrevoando esses Jardins, o Curau veio para libertar todos os homens, não só Jacinto, que então passa a recomendar a todos que orem pela volta da ave, assim: - Vem, Curau, vem levar os homens para os teus jardins. Borges não precisou esperar o Curau. Quando a ceguei- ra veio a ele, foi para imergi-lo em Luz, estranha luminosidade que se fundiu a outra luz: a da sua Lucidez. E foi através dessa luz trêmula que Toda linguagem é um alfabeto de símbolos. Como transmitir aos outros o infinito Aleph? BORGES/ O Aleph se perde é o negro. Perde-se a escu- ridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida nebli- na luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acin- zentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, on- de está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, es- maecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar. Por ser gradual, sua cegueira não o levou ao desespero. - Não. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio. Alguma vez pensou em suicí- dio? - Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora pro- curo a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Borges buscou, no livro com esse título, além do Visível – o invisível Aleph. Este primeiro Diálogo com Borges nos fala do seu amor pelos livros e de sua cegueira. Borges: Cego na Luz Borges tinha fama de ler muito, mas negava isso. Dos Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquês, por exemplo, embora gostando, disse: - Não passei dos cinquenta anos. Quando perdeu a visão, relia na Me- mória os livros que lera. Lembra suas primeiras leitu- ras? - Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Aprendi entre os três e quatro anos. A biblio- teca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que qua- se tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas: francês, latim. Depois eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Quando per- di a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomise- ração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estudei um pouco do escandinavo antigo. Agora pensei em estudar ja- ponês ou chinês. Que livros mais o impressiona- ram? “As Mil e Uma Noites”. Sempre gostei muito dos atlas e das enci- clopédias. Curiosamente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma ex- celente enciclopédia italiana. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Co- mo quando era menino, já que mi- nhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Como você convive com a ce- gueira? - Uma das primeiras cores que

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Borges: Cego na Luz

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O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 22 DE FEVEREIRO DE 2015 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Além do Visível

á imaginou um dia ficar cego? Nem pensar? Eu já. Foi quando no meu terceiro livro visível, Os jardins e a noite, voou pe-la primeira vez em Andara o

pássaro Curau - que depois deu seu nome ao Manifesto Curau, que lan-cei em defesa poética & política da Amazônia. O que o Curau tem a ver com o escritor argentino Jorge Luis Borges? Nada, e tudo: me lembra o cego Jacinto, personagem do livro. O que o Curau fez a ele? Furou seus olhos, logo após Jacinto o recolher, doente, na porta da sua casa e tratar dele. E por que a ave fez isso? Para libertar Jacinto do ver já sem ver a repetida vida de todos os dias, e pas-sar, em sua escuridão, a ver a Vida trazida e revelada pelas vozes do vento. Sobrevoando esses Jardins, o Curau veio para libertar todos os homens, não só Jacinto, que então passa a recomendar a todos que orem pela volta da ave, assim: - Vem, Curau, vem levar os homens para os teus jardins. Borges não precisou esperar o Curau. Quando a ceguei-ra veio a ele, foi para imergi-lo em Luz, estranha luminosidade que se fundiu a outra luz: a da sua Lucidez. E foi através dessa luz trêmula que

Toda linguagemé um alfabeto de símbolos.Como transmitir aos outroso infinito Aleph?BORGES/O Aleph

se perde é o negro. Perde-se a escu-ridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida nebli-na luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acin-zentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, on-de está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, es-maecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.

Por ser gradual, sua cegueira não o levou ao desespero.

- Não. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.

Alguma vez pensou em suicí-dio?

- Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora pro-curo a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar?

Borges buscou, no livro com esse título, além do Visível – o invisível Aleph. Este primeiro Diálogo com Borges nos fala do seu amor pelos livros e de sua cegueira.

Borges: Cego na Luz

Borges tinha fama de ler muito, mas negava isso. Dos Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquês, por exemplo, embora gostando, disse: - Não passei dos cinquenta anos. Quando perdeu a visão, relia na Me-mória os livros que lera.

Lembra suas primeiras leitu-ras?

- Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Aprendi entre os três e quatro anos. A biblio-teca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que qua-se tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas: francês, latim. Depois eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Quando per-di a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomise-ração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estudei um pouco do escandinavo antigo. Agora pensei em estudar ja-ponês ou chinês.

Que livros mais o impressiona-ram?

“As Mil e Uma Noites”. Sempre gostei muito dos atlas e das enci-clopédias. Curiosamente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma ex-celente enciclopédia italiana. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura

para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? Continuo a adquirir livros porque

gosto de estar rodeado por eles. Co-mo quando era menino, já que mi-nhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também.

Como você convive com a ce-gueira?

- Uma das primeiras cores que