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Silvana Maria de Souza Nery A VIDA COMO ELA É...: O CONTO DIABÓLICA E SUAS TRANSCODIFICAÇÕES PARA A TELEVISÃO E PARA O CINEMA Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília para obtenção do título de mestre. Área de concentração: Mídia e Cultura. Linha de pesquisa: A ficção na mídia. Sob orientação da Professora Doutora Elêusis Mirian Camocardi MARÍLIA 2005

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Silvana Maria de Souza Nery

A VIDA COMO ELA É...: O CONTO DIABÓLICA

E SUAS TRANSCODIFICAÇÕES PARA A TELEVISÃO E PARA O

CINEMA

Dissertação apresentada ao curso de

Pós-Graduação em Comunicação da

Universidade de Marília para obtenção

do título de mestre.

Área de concentração: Mídia e

Cultura. Linha de pesquisa: A ficção

na mídia.

Sob orientação da Professora Doutora

Elêusis Mirian Camocardi

MARÍLIA

2005

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Dedico este trabalho a

minha mãe Leila, a minha

irmã Mônica por toda a

motivação e incentivo.

Em especial, ao meu

marido, Marcelo por viver

intensamente esse

“triângulo amoroso” que foi

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desenvolver essa

dissertação de mestrado.

E aos meus queridos

sobrinhos Gustavo, Ana

Beatriz e Carolina.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de alguma forma colaboraram para a realização deste trabalho,

mas em especial: a Dra Elêusis Miriam Camocardi, pela orientação, atenção,

dedicação e amizade.

Ao Professor Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva, por nos brindar com aulas

maravilhosas.

Aos meus amigos da Unimar Lucimar, Gil e Vera com os quais tive o privilégio de

conviver, apreender e compartilhar sonhos comuns.

A minha amiga e professora Luci , por ter sempre partilhado dos meus esforços nessa

jornada.

Aos meus sogros Carmo e Mariza por toda a colaboração financeira.

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RESUMO

A pesquisa propõe-se a identificar múltiplas leituras possíveis a partir de um

texto literário. Para tanto, efetuou-se uma leitura interpretativa do conto Diabólica, e

verificou-se o processo de transcodificação para a televisão e para o cinema,

buscando demonstrar também que a obra de Nelson Rodrigues continua atual na

expressão e na temática. A presente pesquisa utilizou a metodologia da abordagem

comparativa do texto verbal com as adaptações televisiva e cinematográfica,

demonstrados a partir do método hipotético dedutivo. Acreditamos que essa pesquisa

possa interessar aos estudiosos da comunicação, no que se refere às adaptações de

obras literárias para os meios de comunicação de massa em questão. Diabólica

compõe o ciclo de A Vida Como Ela É..., coluna diária do jornal carioca Última

Hora, escrita por Nelson Rodrigues no período de 1951 a 1961, com uma linguagem

enxuta, diálogos ágeis e personagens bem delineadas. Estruturadas inicialmente

como crônicas, mas ficcionalmente como contos, as narrativas giram em torno de

uma das eternas obsessões do escritor: a traição. Na transcodificação para a televisão,

a minissérie A Vida Como Ela É..., foi produzida e veiculada pela Rede Globo, em

1996, registrada em película cinematográfica, e o episódio Diabólica recebeu o título

de O Anjo. O episódio televisivo é fidedigno ao conto, é praticamente o conto “ipsis

literis”. Apresentando um formato de exibição inédito, a minissérie foi inserida

dentro do programa dominical Fantástico; essa inserção, num programa elitista e

conservador, pode ser considerada como uma grande ironia, uma vez que nosso autor

tinha reputação de imoral. No cinema, os episódios de A Vida Como Ela É... ganham

maior força expressiva, porque as personagens adquirem características de seres

humanos reais, uma vez que os atores lhes insuflam alma e sentimentos. O filme

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Traição, de 1997, composto pela trilogia O Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro!

retratam as relações amorosas em tramas urbanas do Rio de Janeiro nos anos 50, 70 e

90, demonstrando que a obra de Nelson Rodrigues continua vibrante, provocativa e

moderna, capaz de produzir incessantemente novas leituras.

Palavras-chave – conto, televisão, cinema, adaptação e transcodificação.

ABSTRACT

This research has as main purpose the identification of the possible multiple

readings coming from a literary text. An interpretative reading was done in the short

story written by Nelson Rodrigues, Diabólica and the transcodification process into

the television and movies, aiming, also, the demonstration of Nelson Rodrigues’

updated production, its expression and thematic.This study uses the comparative

methodological approach between the oral text and the cinematographic and

television adaptations, shown through the deductive hypothetical method. It is

believed that this study may call the communication experts’ attention, concerning

on the adaptation of literary productions to the discussed means of mass

communication. Diabólica comprehends the A Vida Como Ela É... cycle, a daily post

of the carioca press Última Hora, written by Nelson Rodrigues from 1951 to 1961,

containing a clear language, dynamic dialogues and very well outlined characters.

Previously structured as chronicles, but fictionally as tales, the narrations go around

the author’s eternal obsession: the betrayal. In the act of transcodification into the

TV, the serial A Vida Como Ela É... was produced and broadcasted by Rede Globo in

1996. Made into film, the episode Diabólica received the title O Anjo. The telly

episode is trustful to the tale. It is presented in a new format of exhibition, the serial

has been shown in the Fantástico; this insertion into a very conservator program can

be considered as a great irony, once the author used to have an immoral reputation.

In the movies, A Vida Como Ela É... episodes gain much more expressivity because

the characters get real human being idiosyncrasy, as the actors play a role putting

into them soul and feelings. The 1997 film, Traição, composed by the trilogy O

Primeiro Pecado, Diabólica and Cachorro! pictures love relations in Rio de Janeiro

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urban plot in the 50’s, 70’s and 90’s, demonstrating that Nelson Rodrigues work is

still thrilling, tempting and modern and also able to produce new readings.

Key-words – story, television, cinema, adaptation, transcodification.

LISTA DE FIGURAS PÁGINA

1 Caricatura de Nelson Rodrigues 26

2 Santa Rosa, Ziembinski e Nelson na de estréia de Vestido de Noiva 27

3 Cena da peça Vestido de Noiva 28

4 Vinheta de Abertura da minissérie global A Vida Como Ela É... 73

5 Cena da minissérie global: Dagmar e Geraldo na noite de noivado 75

6 Cena da minissérie global: primeira aparição da personagem Alicinha 75

7 Cena da minissérie global: Alicinha seduzindo Geraldo 77

8 Cena da minissérie global: Geraldo estrangulando Alicinha 77

9 Cartaz promocional do filme Boca de Ouro, 1962 81

10 Cartaz promocional do filme A Falecida, 1965 81

11 Cartaz promocional do filme A Dama do Lotação, 1978 82

12 Cartaz promocional do filme Bonitinha mas ordinária, 1980 82

13 Cartaz promocional do filme Traição, 1997 82

14 Cena do filme:Geraldo com Alicinha morta em seus braços 89

15 Cena do filme: Alicinha primeira aparição, ainda uma criança 91

16 Cena do filme: A angelical Alicinha rodopiando na sala 92

17 Outro angulo da cena descrita acima 92

18 Outro angulo da cena descrita acima 92

19 Outro angulo da cena descrita acima 92

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20 Cena do filme: tomada externa da chegada de Geraldo na delegacia 92

21 Cena do filme: tomada interna da chegada de Geraldo na delegacia 92

22 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

23 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

24 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

25 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

26 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

27 Cena do filme que enfatiza o realismo fantástico 93

28 Cena do filme: festa de noivado de Geraldo e Dagmar 97

29 Cena do filme: a festa de noivado de Geraldo e Dagmar 97

30 Cena do filme que marca a delimitação de tempo 100

31 Cena do filme: outro indício de tempo desfile de fantasias 100

32 Cena do filme: A angelical Alicinha entrando na sala 100

33 Cena: Geraldo acompanhando a entrada de Alicinha com o olhar 100

34 Cena do filme: Dagmar, a mãe e Alicinha conversando 100

35 Cena do filme: o pai beijando a mão de Alicinha 100

36 Cena do filme: Alicinha falando para Geraldo que amanhã sairá de diaba 100

37 Cena do filme: mulher de costas fantasiada de diaba 100

38 Cena da minissérie global: Alicinha, exibindo seu maiô novo 101

39 Cena do filme: segundo desfecho 101

40 Outro momento da cena do segundo desfecho 101

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

I. A VIDA COMO ELA É...: O LIMIAR ENTRE A CRÔNICA E O CONTO................... 13

1. A CRÔNICA...................................................................................................................... 13

2. O CONTO.......................................................................................................................... 21

2.1 A LINGUAGEM.............................................................................................................. 22

2.2 A TRAMA........................................................................................................................ 24

2.3 TEMPO, MODO E VOZ.................................................................................................. 24

2.4 O COMEÇO E O EPÍLOGO NO CONTO...................................................................... 26

3. A CRÔNICA E O CONTO DE NELSON RODRIGUES................................................. 26

3.1. CRÔNICAS ESPORTIVAS............................................................................................

32

3.2. CRÔNICAS SOCIAIS E COMPORTAMENTAIS........................................................ 33

3.3. CRÔNICAS MEMORIALISTAS................................................................................... 33

4. A VIDA COMO ELA É...: A CRÔNICA QUE VIROU CONTO.................................... 34

5. A VIDA COMO ELA É...: O CONTO DIABÓLICA........................................................ 35

II. DIABÓLICA: DAS TRAGÉDIAS DA ÉPOCA CLÁSSICA ÀS

TRAGÉDIAS DA VIDA CONTEMPORÂNEA .......................................................... 40

1. TRAGÉDIA. TRAGÉDIAS TEBANAS. TRAGÉDIAS RODRIGUEANAS.................. 40

2. ELEMENTOS DO TRÁGICO APLICADOS AO CONTO E SUA

TRANSCODIFICAÇÃO PARA A TV E PARA OCINEMA............................................ 48

3. TRAGÉDIAS CARIOCAS: UMA LINGUAGEM INOVADORA.................................. 57

III. NELSON RODRIGUES E A TELEVISÃO BRASILEIRA ...................................... 60

1. A TELEVISÃO BRASILEIRA.......................................................................................... 60

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1.1. A VISÃO RODRIGUEANA SOBRE A TV BRASILEIRA.......................................... 61

1.2. VESTIDO DE NOIVA UM CLÁSSICO DA TELEVISÃO............................................ 69

2. UM BREVE HISTÓRICO DAS MINISSÉRIES GLOBAIS............................................ 70

3. A MINISSÉRIE A VIDA COMO ELA É...: O ANJO......................................................... 73

IV. DA TELEVISÃO AO CINEMA: DE ANJO À DIABÓLICA ..................................... 78

1. TEATRO RODRIGUEANO: INSPIRAÇÃO NO CINEMA............................................ 78

2. AS ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS RODRIGUEANAS................................. 80

3. TRAIÇÃO EM FOCO: DIABÓLICA................................................................................. 82

3.1 ANÁLISE DO DISCURSO IMAGÉTICO...................................................................... 873.1.1. MONTAGEM.............................................................................................................. 873.1.2. FOTOGRAFIA............................................................................................................. 903.1.3. DIREÇÃO.................................................................................................................... 954. A TRANSCODOFICAÇÃO DO CONTO E DO MINIDRAMA

PARA O CINEMA........................................................................................................... 97

CONDIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 103

REFERÊNCIAS................................................................................................................. 105

ANEXO A - O CONTO DIABÓLICA

ANEXO B - DVD COM OS EPISÓDIOS: O ANJO E DIABÓLICA

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I - A VIDA COMO ELA É...: O LIMIAR ENTRE A CRÔNICA E O CONTO

1. Crônica

A palavra “crônica” origina-se do grego chronikós (relativo ao tempo) e do

Latim crhonica. No início da era cristã o vocábulo designava uma lista ou relação de

acontecimentos ordenados cronologicamente. A crônica registrava os eventos sem

aprofundar-se nas causas, situando-se entre os anais e a História.

Consagrou-se depois do século XII, na França, Inglaterra, Portugal e

Espanha, quando se aproximou da História mostrando acentuados traços de ficção

literária. A partir da Renascença o termo “crônica” cedeu vez a “História”. Livre da

conotação histórica, o vocábulo passou a revestir-se do sentido literário, a partir do

século XIX, para finalmente encontrar seu significado jornalístico, como o

conhecemos hoje.

Sobre a palavra “crônica” Paulo Rónai (1971) escreveu:

Para qualquer brasileiro a palavra crônica tem sentido claro einequívoco, embora ainda não dicionarizado: designa umacomposição breve, relacionada com a atualidade, publicada emjornal ou revista. De tal forma esse significado está generalizadoque só mesmo os especialistas em historiografia se lembram deoutro sentido bem mais antigo, o de narração histórica em ordemcronológica. (p.145)

Para José Marques de Melo, no Brasil, a crônica é o relato poético do real,

situada na fronteira entre a informação da atualidade e a narração literária. Um

gênero plenamente definido.

Conforme esclarece Paulo Rónai, no jornalismo mundial a crônica está mais

vinculada ao relato cronológico da narrativa histórica. Sua natureza é controvertida e

varia de país para país. (Cf. apud José Marques de Melo, 1985, p.111). Segundo José

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Marques de Melo(1985) “Foi com esse sentido de relato histórico que a crônica

chegou ao jornalismo.” (p.111)

Mas é no século XIX, como folhetim, que a crônica surge no jornalismo

brasileiro, publicada junto com pequenos contos, artigos, ensaios breves, poemas em

prosa. Um espaço reservado nos jornais para comentar com os leitores sobre os

acontecimentos da semana. Nomes ilustres foram pouco a pouco transformando o

folhetim, tornando-o um gênero autônomo no jornalismo, transformando-o na

crônica moderna.

Antes de prosseguirmos, convém abrir parêntesis para tecermos algumas

considerações sobre a crônica e a origem e o significado da palavra “folhetim”.

A crônica é um gênero nascido do jornal no começo do século XVIII.

No começo do século XIX, na França, o termo feuilleton designava em

essência o espaço vazio na geografia do jornal, destinado ao entretenimento. Era

sinônimo de rez-de-chaussée (rés-do-chão = rodapé), e de variétés (variedades).

Assim feuilletons eram também os artigos de crítica, crônicas resenhas, etc. No final

de 1830, a palavra ganhou mais um significado, passando a nomear todo e qualquer

romance impresso em feuilletons, ou seja, em partes.

Coube ao contista e dramaturgo Martins Pena a responsabilidade de inaugurar

a crônica folhetinesca seriada no Brasil, oferecendo textos semanais, restritos a

espetáculos líricos, para o rodapé do Jornal do Commercio.

Em 1852, a crônica de folhetim conheceu o sucessor de Martins Pena, o jornalista

Francisco Otaviano de Almeida Rosa, que se dedicou a partir dessa data, até 1854, à

escrita de um conjunto de crônicas de assuntos variados no mesmo rodapé do Jornal

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do Commercio, inaugurando a chronique divers que encontrou numerosos seguidores

na imprensa brasileira.

Com essa estréia, todo periódico que prezava obter audiência teve que buscar

nomes de jornalistas e escritores para assinar uma coluna do citado gênero. Como

conseqüência, o espaço abriu caminho para os postulantes do universo das letras, que

galgaram ou fortaleceram os degraus rumo à ficção ou a outras formas literárias

através do exercício dessa escrita.

Dos autores de destaque nacional que corresponderam a essa assertiva

listamos José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, França Júnior, Olavo Bilac e

Machado de Assis, entre outros.

Afrânio Coutinho afirma que a crônica adquire personalidade com Machado

de Assis, o qual se consagrou no gênero, contribuindo consideravelmente para a sua

evolução.

A crônica, como gênero consagrou-se no Brasil a partir de 1930, com nomes

como o de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drumond e Ruben Braga.

Este, de certo modo, foi escritor exclusivo desse gênero.

A partir dessa época o desenvolvimento da imprensa assume proporções

empresariais, conduzindo a uma diversificação do seu conteúdo e à ampliação das

seções permanentes, para atender a um leitor mais exigente. Nesse âmbito, a crônica

adquire um lugar especial, sendo o cronista o intérprete das mudanças que ocorrem

na sociedade.

A crônica se ajusta à nossa sensibilidade de todo dia. Retratando a vida, a

crônica serve a vida de perto. Despretensiosa, ela se humaniza e aprofunda seu

significado. Ajuda-nos a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das

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pessoas, quase sempre com humor. Sua perspectiva não é nobre, nem pomposa, mas

do simples dia-a-dia.

Na sua fórmula moderna, a crônica pode discorrer sobre um fato pequeno,

uma notícia, um toque de humor, uma pitada de poesia e representa o seu encontro

mais puro com a vida real e com seu cúmplice favorito, o leitor. Mas, apesar de sua

leveza e aparente despreocupação, apesar de ser uma espécie de conversa sem maior

conseqüência, a crônica penetra fundo no significado dos atos e sentimentos do

homem, aprofundando a crítica social.

Aprende-se muito enquanto se diverte e os traços simples, graciosos e breves

da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa,

que, divertindo, atrai e faz refletir, amadurecendo nossa visão da realidade. Por meio

de um zigue-zague de aparente conversa fiada, a crônica pode fazer uma constatação

de fatos sociais, econômicos e políticos, com doses de ironia trágica e descrição de

retratos psicológicos.

Apesar de a rapidez ser uma característica da crônica, ela é uma somatória de

pesquisa, seleção e inspiração. Cândido (1979/80) afirma que:

Embora não tenha preconceitos temáticos, a crônica nãoaceita qualquer matéria: dentro de seu campo de ação - o acidental(ou circunstancial episódico) captado quer num flagrante deesquina, quer nas palavras de uma criança ou incidente doméstico -a crônica deve escolher um fato capaz de reunir em si mesmo odisperso conteúdo humano. (p.12)

Só assim ela pode cumprir as finalidades de informar, ensinar, comover edeleitar.

Existem quatro tentativas de classificar a crônica. Luiz Beltrão utiliza o

critério jornalístico, Afrânio Coutinho toma como base a tipologia literária, Massaud

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Moisés procura uma correspondência com os gêneros literários e Antônio Candido

guia-se pela estrutura narrativa.

Para Luiz Beltrão, as crônicas podem ter duas classificações: quanto à

natureza do tema e quanto ao tratamento.

A natureza do tema leva a três espécies: crônica geral, crônica local e crônica

especializada.

A crônica geral aborda sob uma forma gráfica determinada ou sob uma

epígrafe geral os assuntos mais variados, ocupando espaço fixo no jornal. É

conhecida também como coluna ou seção especial.

A crônica local esta sempre sob a mesma epígrafe em página e coluna fixa,

fala da vida cotidiana da cidade, atuando como um tipo de receptor da opinião da

comunidade onde se insere o jornal. É também chamada urbana ou da cidade.

Exemplo: a coluna A Vida Como Ela É...,escrita por Nelson Rodrigues para o jornal

carioca Última Hora, no período de 1951 a 1961.

A crônica especializada integra a página ou seção determinada, com

apresentação gráfica do texto diferente das demais matérias e focaliza assuntos

referentes a um determinado campo específico, como política, esportes, economia

entre outros. É conhecida também como comentário.

Quanto ao tratamento dado ao tema temos três modalidades: analítica, sentimental e

satírico-humorística.

A analítica é a crônica em que predomina a dialética e a linguagem é sóbria,

elegante e enérgica. Os fatos são expostos com brevidade e analisados com

objetividade. O cronista dirige-se à inteligência ao invés do coração.

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A crônica sentimental sob esse tema predomina o apelo à sensibilidade do

leitor, a linguagem é vivaz, de ritmo ágil e os fatos apresentam-se a partir de aspectos

pitorescos, líricos, épicos, capazes de comover e influenciar a ação. O cronista apela

para a sensibilidade.

A crônica satírico-humorística apresenta linguagem com duplo sentido,

cheia de ambigüidade com o objetivo de criticar, ridicularizando ou ironizando fatos,

ações, personagens, com a finalidade de advertir e entreter o leitor.

Já Afrânio Coutinho, que toma como base a tipologia literária, define cinco

tipos de crônicas: a narrativa, a metafísica, a poema-em-prosa, a comentário e a de

informação.

A crônica narrativa é uma estória ou episódio próximo do conto

contemporâneo, que não necessita obrigatoriamente de começo, meio e fim.

A crônica metafísica envolve reflexões sobre acontecimentos e pessoas de

cunho mais ou menos filosófico.

A crônica-poema-em-prosa tem conteúdo lírico e expressa os sentimentos

do cronista ante o espetáculo da vida, das paisagens ou de episódios significativos.

A crônica-comentário faz uma crítica de acontecimentos díspares, tomando

o aspecto de “bazar asiático”.

A crônica-informação relata os fatos, fazendo ligeiros comentários

impessoais

Baseado no ponto de vista da ambigüidade do gênero, Massaud Moisés estabelece

dois tipos de crônica: crônica-poema e a crônica-conto.

A crônica-poema é uma prosa emotiva que chega ao verso.

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A crônica-conto ocorre quando o cronista narra um acontecimento que

provoca sua atenção como se fosse um conto, sendo ele apenas o estoriador.

Exemplo: As crônicas-contos da coluna A Vida Como Ela É... de Nelson Rodrigues.

Já Antônio Cândido propõe uma classificação destacando as diferenças entre

os modernos cronistas brasileiros: crônica-diálogo, crônica narrativa, crônica

exposição poética e crônica biográfica lírica.

Na crônica-diálogo o cronista e seu interlocutor se revezam trocando pontos

de vista e informações. A crônica-narrativa apresenta alguma estrutura de ficção,

semelhante ao conto. Já a crônica exposição poética é uma divagação sobre um fato

ou personalidade, uma série de associações. A crônica biográfica lírica apresenta

uma narrativa poética da vida de alguém.

Segundo Marques de Melo (1985) não só os teóricos da literatura e do

jornalismo se preocuparam em classificar a crônica; os cronistas também:

Numa série de crônicas sobre as “definições da crônica”,Luis Fernando Veríssino oferece um esquema classificatório,tomando por ponto de referência a qualidade. Ele divide a crônicaem: a)crônica, b) croniqueta, c)cronicão, d) cronicaço. Comoidentificar cada subdivisão? Crônica é qualquer crônica, ou umacrônica qualquer. Croniqueta é o nome científico da crônica curta,como pode parecer. (...) Cronicão é a crônica grande, substanciosa,com parágrafos gordos. (...) Grande crônica é o cronicaço. Ocronicaço é consagrador; seu autor sai na rua e deixa um rastro decochichos - É ele, é ele. (p.118)

Ao longo do tempo a crônica tem informado, comentado e divertido,

buscando uma linguagem leve e descompromissada, afastando-se da lógica

argumentativa ou crítica política para penetrar na poesia. Ela é o relato poético do

real, e isso a torna ambígua e põe a descoberto a briga antiga e mal resolvida que

existe entre literatura e jornalismo.

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Marques de Melo (1985) afirma que ser a crônica um gênero jornalístico é

ponto pacífico.

Produto do jornal, porque dele depende para a suaexpressão pública, vinculada à atualidade, porque se nutre dosfatos do cotidiano, a crônica preenche as três condições essenciaisde qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade edifusão coletiva. (p.118)

Da mesma forma, Luiz Beltrão afirma que “a crônica é a forma de expressão

do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados

psicológicos pessoais e coletivos.”(p.66)

A crônica se equilibra entre o efêmero do cotidiano e o imortal do fato literário,

ambigüidade que a transforma em um gênero difícil de ser classificado ou analisado,

quer no mundo jornalístico, quer no universo literário.

Segundo Marques de Melo as classificações que aceitam a crônica como

gênero jornalístico, longe de honrá-la, a colocam na rabeira, praticamente

desqualificando-a, pois, depois dela só as cartas do leitor. No domínio da literatura a

classificação não é muito melhor. Quando, em meados do século XX, a crônica

começa a ser vista pelos escritores, ela assume um caráter de relato poético do real,

colocando-se na fronteira entre informação da atualidade e narração literária, e assim

pode se tornar, eventualmente, um gênero híbrido, jornalístico-literário. Como

gênero jornalístico é um comentário, gênero nobre e, como literatura, é poesia e

prosa.

Para Marques de Melo (1987) a crônica foge a todas as regras do jornalismo:

(...) embora lide com informações jornalísticas, se realize numaedição diária e efêmera, utilize a linguagem coloquial. Ela nãoparticipa do ambiente do jornal, escapa do processo de produçãojornalística convencional, independe da formação profissionaltécnica, não obedece às determinações de tempo e espaço típicas,foge das regras de interesse informativo convencionalmenteestabelecidas para o jornalismo. (p.86)

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Para Beltrão, as fontes utilizadas pelo cronista para realizar seu trabalho são

as idéias que florescem na comunidade; a informação sobre fatos e situações; a

própria notícia; as emoções pessoais.

A crônica deve interpretar o tema utilizando argumentos lógicos, sugestivos e

persuasivos, de modo ordenado e que leve o leitor a aceitar a opinião final.

O aspecto informativo ou noticioso da crônica vem na introdução, onde o

cronista coloca o tema de forma quase sempre sintética (quem, que, quando). O

raciocínio e as idéias vêm na argumentação, desenvolvendo-se numa seqüência

ritmada, o que permite mais liberdade criadora.

O cronista pode utilizar-se de citações, máximas, provérbios, metáforas,

alegorias, sátira (ironia, humor), trocadilhos.

Sobre a fonte, a estrutura e a redação da crônica, Beltrão (1980):

Matiza o texto com o jogo do maravilhoso - que oferece sugestãode quimeras, sonhos, aspirações cristalizadas em riquezas,conquistas, vitórias e feitos extraordinários; com o jogo do comum- extraindo dados do cotidiano, do terra-a-terra, das idéias simplesaceitas por todos; ou com revelações interiores dos própriossentimentos mostrando-se sincero, melancólico, cético,apaixonado, rebelde, indiferente, seguro, de acordo com a tônicareclamada pelo argumento. Deve, ainda, aqui, o cronista prevenir-se contra argumentos contrários ao seu ponto de vista paraantecipá-los e reduzi-los logo. (p.70)

Por fim, na conclusão é emitido o juízo do cronista sobre o tema, que foi tão

bem exposto e debatido, que se torna incontestável, não admitindo desacordo.

Assim a crônica terá alcançado seu propósito quando os efeitos dos seus juízos dão

força às correntes de opinião, conduzindo à ação.

2. O Conto

Seguindo a forma tradicional do gênero conto é um dos gêneros literários da

prosa de ficção. Freqüentemente contam-se a amigos histórias sobre acontecimentos

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da vida diária. Do mesmo modo, podem-se contar anedotas para fazer um público rir

ou para explicar melhor o que se quer dizer. Tais modalidades de narrativa possuem

um íntimo parentesco com o conto, mas este tem vários elementos que lhe dão

características próprias. Um conto contém uma única célula dramática e apresenta

unidade de tempo, espaço e ação; todos os detalhes que aparecem no conto

desempenham um papel preciso e ampliam seu efeito.

A objetividade é um dos seus ingredientes, mas segundo Massaud Moisés o

conto é uma história completa e fechada. Conter uma única célula dramática significa

um só conflito, uma só ação. Poucas são as personagens em decorrência das unidades

de ação, tempo e lugar. Ainda em conseqüência das unidades que governam a

estrutura do conto, as personagens tendem a ser estáticas, porque são surpreendidas

em tempo de clímax de sua existência. O contista as imobiliza no tempo, no espaço e

na personalidade. Apenas uma faceta do caráter das personagens é apresentada no

conto, devido à sua brevidade. Essas são as características estruturais que

diferenciam o conto de outras espécies narrativas.

Muitas vezes o público ledor menos experiente caracteriza o conto por sua

extensão, dizendo ser este uma forma narrativa menor que o romance e a novela;

contudo, não é só isso que o diferencia das outras formas narrativas. Sendo assim,

podemos dizer que o conto é, do prisma de sua história e de sua essência, a matriz da

novela e do romance.2

2.1. A Linguagem

A linguagem no conto deve ser objetiva e utilizar metáforas de imediata

compreensão para o leitor; despe-se de abstrações e da preocupação com o

2 Massaud Moisés, A Criação Literária . 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1968

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rebuscamento. Não apresenta segundas intenções e a ações presentes devem

predominar.

O componente mais importante do conto por concentrar em si a

dramaticidade é o clímax do conflito. Os conflitos, os dramas residem na fala das

pessoas, em discurso direto. Como signos de sentimentos, de idéias e emoções, as

palavras podem construir ou destruir. Sem diálogo torna-se impossível qualquer

forma completa de comunicação. Segundo Massaud Moisés “O meio ideal de

comunicação é a palavra, sobretudo na forma de diálogo.” ( 1968, p.102)

O diálogo é a base expressiva do conto: diálogo direto ou discurso direto,

diálogo indireto ou discurso indireto e diálogo (ou monólogo) interior

No conto, predomina o diálogo direto ou discurso direto que permite uma

comunicação imediata entre o leitor e a narrativa. O diálogo indireto ou discurso

indireto é quando o contista resume a fala das personagens em forma narrativa. Se

usado em excesso, o conto falha na sua finalidade.

Já o diálogo ou monólogo interior é aquele que se passa dentro, no mundo

psíquico da personagem; esta fala consigo mesma antes de se dirigir a outrem. Trata-

se de um requintado expediente formal, de complexo e difícil manuseio.

Outros expedientes lingüísticos são a narração e a descrição, que devem

aparecer em quantidade reduzida, proporcional ao diálogo.

O conto não se preocupa em erguer um retrato completo das personagens,

mas centra-se no conflito entre as personagens. O drama mora nas pessoas, não nas

coisas e nem na roupagem. Por isso a descrição e a narração servem para situar o

conflito no tempo, no espaço e para apresentar as personagens com breves

características. É também através da narração que o narrador/focalizador revela sua

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intrusão. Através do uso da narração apresenta a condensação do tempo, a síntese

dramática. Semanas, meses ou anos são reduzidos a uma ou duas linhas de narração.

Há um corte temporal e espacial para um mais rápido desenvolvimento da trama.

2.2. A Trama

A trama do conto tradicional é linear, objetiva, e a sua cronologia é a do

relógio, de modo que o leitor vê os fatos se sucederem numa continuidade

semelhante à da vida real. O conto, ao começar, já está próximo do epílogo, devido á

sua brevidade, por isso a precipitação domina o conto desde a primeira linha. No

conto, a ação caminha claramente à frente. Todavia, como na vida real, que pretende

espelhar, de um momento para o outro deflagra o estopim e o drama explode

imprevistamente. A grande força do conto consiste no jogo narrativo para prender o

interesse do leitor até o desenlace, que é, regra geral, um enigma.

O final enigmático deve surpreender o leitor, deixar-lhe uma semente de

meditação ou de pasmo perante a nova situação conhecida. A vida continua e o conto

se fecha inseqüente. Casos há em que o enigma vem diluído no decorrer do conto.

Neste caso ele se aproxima da crônica ou corresponde a episódio de romance.

2.3. Tempo, Modo e Voz

A análise do discurso narrativo, segundo Gerard Genette, fundamenta-se,

essencialmente, no estudo das relações entre narrativa e estória, entre narrativa e

narração entre narrativa e diegese. Segundo Suely F.V. Flory “Esta posição leva-o a

propor uma divisão desse campo de estudo, classificando os problemas da narrativa

em três categorias: Tempo, Modo e Voz”. (1993, p.26)

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Na categoria do Tempo, Gerard Genette observa as relações entre tempo da

estória e tempo do discurso, levando-nos a analisar a narrativa como uma seqüência

temporal dúplice: o tempo dos acontecimentos narrados (diegése) e o tempo da

narrativa ou discurso - um pseudo-tempo tomado como verdadeiro – ou seja, o tempo

do significado e o tempo do significante. Essa distinção não se propõe como divisão,

mas como inter-relacionamento, uma vez que a diegése - universo do discurso das

coisas ou dos acontecimentos - não existe senão no discurso de um narrador (voz),

sendo indissociável dos aspectos estilísticos formais e da própria natureza do

discurso.

As categorias de Modo e Voz envolvem os problemas de focalização (quem

vê?) e de narração (quem narra?) em seus diversos aspectos. Modo engloba a

perspectiva ou ponto de vista (quem vê) mas ainda a distância (distinção entre

“showing” e “telling”).

Pertence à Voz o estatuto do narrador (quem fala?), o problema do tempo da

narração (anterior, ulterior, simultânea e intercalada) e os diferentes “níveis

narrativos” (relação entre narração e narrativa).

As variações com relação à seqüência da disposição da história na narrativa

constituem a Ordem, gerando as anacronias narrativas: analepse (relativa a

eventos passados) e prolepse (relativa a eventos posteriores à narração). Gerard

Genette propõe ainda quatro ritmos narrativos fundamentais: pausa, cena, sumário e

elipse.

A pausa é segmento do discurso sem ação. (No cinema, as panorâmicas

descritivas).

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A cena é a paridade entre a duração narrativa e a duração diegética. Exemplo:

plano seqüência ou cena dialogada, montada campo-contracampo;

O sumário é o resumo do tempo diegético em um tempo narrativo menor,

preparando o efeito da elipse. Elipse é uma omissão narrativa sobre eventos

ocorridos na diegese. As elipses subdividem-se em: explícitas (“Vinte anos

depois...”); e implícitas (lacuna cronológica ou falha na continuidade).

2.4. O Começo e o epílogo no conto

O epílogo do conto é o clímax da história. Enigmático por excelência, deve

surpreender o leitor pelo seu caráter imprevisível. O contista deve estar preocupado

com o começo da história, pois das primeiras linhas depende o desenvolvimento do

conto e o modo como deve terminar.

3. A Crônica e o Conto de Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues dramaturgo, romancista e jornalista

foi o mais importante autor do teatro brasileiro no

século XX. Sua vida inteira foi dedicada ao jornalismo

e um dom especial o levava a contar histórias. Foi um

ficcionista perfeito, e, em sua biografia, ele mesmo se auto-analisou: "Sou um

menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci

menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica

de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”

Sua vida pessoal foi marcada pela polêmica e pela tragédia, o que muito

influenciou o seu estilo de escrever. Prova disso foi a morte de seu irmão Roberto

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assassinado dentro da redação do jornal Crítica por engano, por uma mulher que

desejava matar seu pai, Mário Rodrigues. Anos depois, em uma de suas crônicas,

Nelson Rodrigues afirmou: “Confesso: o meu teatro não seria como é, e nem eu

seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado

até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto”.

Em 1943, Nelson Rodrigues revolucionou os palcos brasileiros com Vestido

de Noiva. A peça foi montada pelo consagrado ator e diretor polonês Zbigniew

Ziembinski, que ao ler o texto disse: “Não conheço nada no teatro mundial que se

pareça com isso”. Na noite de estréia, 2205 espectadores assistiram ao espetáculo, e

a partir de então, Nelson Rodrigues foi considerado pela crítica como o fundador do

moderno teatro brasileiro, apesar de suas peças serem taxadas muitas vezes de

obscenas e imorais. No Brasil, a obra Vestido de Noiva foi a pioneira na liberdade de

expressão no país. O dramaturgo Nelson Rodrigues tornou-se o principal nome

ligado ao movimento expressionista, cujas características marcam a primeira fase de

sua produção.

Santa Rosa, Ziembinski e Nelsonna noite de estréia de Vestido de Noiva

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Cena da peça Vestido de Noiva

Nelson Rodrigues influenciou a dramaturgia nacional com um estilo

incomparável. Ele é responsável pelas principais obras teatrais brasileiras em 40 anos

de atuação. Inspirou também vários filmes, como Engraçadinha; Perdoa-me por me

traíres; Toda nudez será castigada.

Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson escreveu a coluna diária A Vida

Como Ela É... para o jornal Última Hora. Os textos o consagraram por seu estilo

despojado de romantismo sentimental, refletindo a realidade nua e crua de uma

sociedade obsessiva pela moral e materialista. O adultério, a traição, o incesto e a

morte, temas que inovaram o processo de criação sob uma ótica moderna são

tratados com naturalidade.

Nelson também colaborou em outros jornais com crônicas nas quais

expressava pensamentos que depois ganhariam o vocabulário popular, como a

conhecida frase:”Toda unanimidade é burra” e os ditados: “óbvio ululante”, “ padre

de passeata”, “ freira de minissaia”.

Em 68 anos de vida, Nelson Rodrigues criou seis folhetins, mais de 2000

contos, incontáveis crônicas e um único romance. Não se tornou imortal e não

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ganhou o Nobel de literatura, mas permanece vivo nas páginas e na memória de

todos os que se enveredam na leitura de suas obras.

Apesar de suas maiores realizações pertencerem ao gênero dramático, é

inegável a importância de Nelson Rodrigues para a crônica brasileira, tanto por seu

estilo peculiar, marcado por uma quase inesgotável capacidade de criar frases de

efeito, quanto pelo modo polêmico e iconoclasta com que retratou os costumes do

Brasil urbano, no período compreendido entre as décadas de 1950 e 1970.

Em 1967 nascem as Confissões, publicadas em O Globo, onde manteve uma

coluna diária até sua morte, em 1980. Em Confissões, Nelson escrevia sobre política,

sociologia, e arte, num período conturbado da história brasileira.Foi nessas crônicas

que Nelson cunhou uma série de expressões que sobrevivem até hoje, como “doce

radical”, “óbvio ululante”, “de babar na gravata” entre outras. Já as suas famosas

frases acabaram ingressando numa espécie de memória cultural brasileira por serem

provocantes e até agressivas:

Num adultério, há homens que preferem ser o marido, não o amante. Os

homens adoram ser traídos.

Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor.

Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.

No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.

Aos dezoito anos, o homem não sabe nem como se diz bom-dia a uma

mulher.

O homem devia nascer com trinta anos feitos.

O amigo trai na primeira esquina. Ao passo que o inimigo não trai

nunca. O inimigo é fiel. O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente.

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Toda mulher gosta de apanhar.

O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é

umorçamento.

Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47

anos.

Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém

cumprimentaria ninguém.

Toda unanimidade é burra.

Outra característica marcante de suas crônicas é a apresentação em forma

tradicional de comentários sobre o cotidiano, isto é, como expressão direta das idéias

do escritor a respeito da vida. Ele introduz nelas personagens ficcionais e seres reais,

que coexistem e dialogam entre si ou com o próprio autor de acordo com o assunto

ou a ocasião. Na verdade, arquétipos da sociedade carioca: dondocas, políticos,

maridos traídos, meninas suicidas, milionários, guardadores de automóvel. Outras

personagens eram seus amigos mais chegados ou até mesmo seus desafetos. Entre

elas: o padre de passeata, Otto Lara Resende, Alceu de Amoroso Lima, A Cabra

Vadia, Palhares, a Úlcera e a Grã-Fina das Narinas de Cadáver.

• O Padre de Passeata: Variação do padre de sarau, que cita Marx e

Freud. Para Nelson, ele é geralmente protegido da anfitriã, e é a alma da festa, com

suas frases de efeito. A própria metáfora sugere o deslocamento do padre, do

ambiente sagrado, para a passeata, ambiente profano.

• Otto Lara Resende: Flor de obsessão, o jornalista mineiro era chamado

de o “gênio de uma obra só”. De vez em quando, aparecia na boca de alguém, que

indagava a Nelson: “Leste a coluna do Otto? Um gênio”. Uma vez, o Otto viajou

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para a Europa e, desde então, o Nelson o chamou de “ex-brasileiro”. Este, por sua

vez, quanto mais reclamava para não ser citado, mais aparecia nas crônicas. “Com o

Nelson, só a tiro!”, desabafou. O cronista ensinava: “Existem dois Ottos, um público

e outro, de terreno baldio: e poucos provam do legítimo escocês Otto secretíssimo”.

• Alceu de Amoroso Lima: Líder católico, teria sido indelicado ao falar

com Nelson Rodrigues ao telefone, perguntando ao jornalista: “você aí, nessa

lama...”. O rancor foi tamanho que o “nosso Tristão” virou o exemplo do opiniático

apologista do “poder jovem”. Nas crônicas de Nelson, que o rebatizou com o

pseudônimo de Tristão de Ataúde, ele é o exemplo do moralista mistificador e

demagogo. Reconciliariam-se, tempos depois, pelo menos na frente das câmeras...

• A Cabra Vadia: Sua musa inspiradora. Sempre que o Nelson fazia uma

das suas entrevistas imaginárias, ele conduzia o entrevistado até um terreno baldio, à

meia-noite, onde, durante a conversa, a única testemunha era a cabra vadia, que

ficava num canto, ruminando a paisagem. Acabou virando personagem real, quando

as entrevistas viraram atração de tevê. Tem até a fotografia clássica do dramaturgo,

passando pela rua com a cabra. Na coleira, é claro.

• Palhares: Vil e enganador, o Palhares nasceu nos folhetins do tempo da

Suzana Flag. Corresponde ao mito do cunhado. Conhecido como aquele que “não

respeita nem poste”, tem fixação na mulher do irmão. Seu sonho é agarrar à galega a

bem-amada, num canto da casa. “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o

amor”, diz Palhares, ao interpelar Nelson sob um sol de derreter catedrais.

• A Úlcera: Ela era um elemento fatal na vida de Nelson Rodrigues.

Ninguém foi tão promovido do que a sua úlcera, que era mais um acidente

psicossomático do que propriamente um personagem. Mas ela ganhou vida sob a

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forma de prosopopéia. A úlcera religiosamente o acordava, às 3 de manhã. “É uma

dor amestrada, que vem sempre na hora certa”, disse ele, numa de suas Confissões.

Para aplacar a dor, ele tinha sempre “um prato de mingau, guardado de véspera”.

Segundo o autor, ela era tratada como uma “gata de luxo”.

• Grã-Fina das Narinas de Cadáver: Mais uma figura da mitologia

rodrigueana. Ao subir o elevador para as cadeiras sociais do Maracanã, ele teria

tropeçado nessa curiosa figura. Alta, altiva. De sua cadeira cativa, a observava de

longe. Era o olhar mais sincero. Sempre que os times entravam em campo, ela

cochichava para alguém, curiosa: “quem é a bola?”.

As crônicas rodrigueanas podem ser divididas em três categorias temáticas:

Crônicas esportivas, Crônicas sociais e comportamentais e Crônicas memorialistas

3.1 Crônicas Esportivas

A crônica esportiva era, mais precisamente, uma coluna sobre futebol,

intitulada À Sombra das Chuteiras Imortais. A coluna não tratava apenas de esporte,

e seria também uma transição do Nelson Rodrigues dramaturgo para o Nelson

Rodrigues cronista. Isso não quer dizer que ele deixa de ser ele mesmo ao mudar de

estilo: o gênero sempre seria um pretexto para ele voltar sempre aos mesmos temas.

O que interessava realmente a Nelson no futebol nunca foi o esporte em si. O estádio,

os jogadores e a multidão não passavam de um grande cenário, isto é, um pano de

fundo para o que representava, para ele, uma partida de futebol. Isso pode ser

observado no seguinte trecho da coluna À Sombra das Chuteiras Imortais:

Sempre digo, nas minhas crônicas, que a arbitragem normal ehonesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridadeirremediável. Só o juiz gatuno, o juiz larápio dá ao futebol uma

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dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana. O espetáculodeixa de se resolver em termos especificamente técnicos, táticos eesportivos. Passa a ter uma grandeza específica e terrível. Eis averdade: – o juiz ladrão revolve, no time prejudicando e respectivatorcida, esse fundo de crueldade, de insânia, de ódio existe,adormecido, no mais íntegro dos seres. O mínimo que nos ocorre ébeber-lhe o sangue. (A sombra das Chuteiras Imortais, 1996, p.18)

3.2. Crônicas Sociais e Comportamentais

Durante os anos 60, Nelson Rodrigues assumiu uma posição bastante

controversa em relação ao regime militar. Se nunca o apoiou com vigor, contra as

esquerdas brasileiras dirigiu críticas duríssimas, sempre permeadas, é claro, por um

misto de ironia e coloquialidade que o aproximava do leitor comum e um extremo

saudosismo de um Brasil e de um mundo desaparecido com a modernidade. Essa

postura valeu-lhe o título de “reacionário”. Se como dramaturgo ele era taxado de

“comunista”, agora ele era “O Reacionário”, adjetivo que adotou para sempre. Outra

de suas constantes obsessões era a proliferação dos idiotas e o espaço crescente que

obtinham na mídia:

Durante 40 mil anos, o pateta sabia-se pateta e como tal secomportava. Os melhores pensavam por ele, sentiam por ele,decidiam por ele. Mas em nosso tempo, e só em nosso tempo, osidiotas descobrem que estão em maior número. E, então, investidoda onipotência numérica, quer derrubar tudo. Diz o bom Dr. Alceuque o grande acontecimento do século XX foi a Revolução Russa.Errou. Houve e continua uma outra muito maior, sim, muito maisprofunda: – a Revolução dos Idiotas. (O Reacionário, 1995, p.100)

3.3. Crônicas Memorialistas

Ao longo de toda a crônica notamos uma constante nostalgia e uma saudade

do Rio de Janeiro da época de Machado de Assis, pré-vacina obrigatória. Apesar do

Nelson não ter vivido nesse período, toda sua obra estará marcada pela visão do

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menino, que em suas próprias palavras “enxerga o mundo através do buraco da

fechadura”.

Em suas confissões e, principalmente, nas memórias de caráter extremamente

pessoal, o resgate da infância é um tema recorrente:

Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada aver com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as mesas ecadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectralde retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eunão os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância nãotem palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei umbom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meuprimeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio.” (Amenina sem estrela, 1993, p. 15)

Por fim, não seria equivocado acrescentar ainda a essa tipologia da crônica de

Nelson Rodrigues os relatos de A Vida Como Ela É..., que, estruturados inicialmente

como crônicas, mas ficcionalmente como contos, giram em torno de uma das eternas

obsessões do escritor: a traição.

4. A Vida Como Ela É... - A crônica que virou conto

Durante dez anos, no período de 1951 a 1961, Nelson escreveu diariamente

sua coluna A Vida Como Ela É... no jornal Última Hora. A idéia sugerida pelo dono

do jornal, Samuel Weiner, era de que ele criasse uma história fictícia baseada em

algum fato real veiculado no jornal do dia. Nelson seguiu as ordens somente nos dois

primeiros dias. A partir daí, passou a inventar as histórias da coluna. Quando Samuel

Weiner se deu conta, era tarde demais e a coluna A Vida Como Ela É... já era lida em

todo o Rio de Janeiro. Um verdadeiro sucesso, pois a partir dela o nome de Nelson

Rodrigues pulou para a boca do povo. Utilizando uma linguagem enxuta, diálogos

ágeis e as personagens bem delineadas, o assunto era invariavelmente o mesmo:

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traição. Desse tema tão simples e eterno ele escreveu quase duas mil histórias, das

quais destacamos Diabólica, adaptada para o cinema e para a televisão, quase que

simultaneamente.

5. A Vida Como Ela É...: O conto Diabólica

O conto Diabólica, escrito originalmente para a coluna diária A Vida Como

Ela É..., no jornal Última Hora, na década de 50, preserva as características da

crônica narrativa, porque, à medida que o narrador junta os episódios

cronologicamente, ele cria uma expectativa muito grande em torno do instantâneo

revelador.

Diábolica está dividido em sete partes, separadas por subtítulos. Esta

disposição lembra a estrutura dos folhetins. O narrador, que exerce também o papel

de focalizador, detém o domínio da diegese, além de, no discurso da narração,

revelar sua intrusão.

Na sua posição de narrador heterodiegético e onisciente inicia a primeira

parte com a apresentação das personagens, em uma cena de noivado, utilizando a

focalização interna e a visão de dentro.

“Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até à janela,

que se abrira para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária∗, uma espécie de

presságio, suspirou.” (p.132)

grifos nossos

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Observamos no trecho acima a expressão espécie de presságio, lembrando

que presságio é um elemento próprio da tragédia. Na seqüência, o texto segue com

discurso direto, diálogos curtos, frases nominais, curtas e incisivas.Vejamos:

E foi meio vaga:- Caso sério! Caso sério!E Geraldo, baixo e doce:- Por quê?Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:- Estás vendo minha irmã?Estou. (p.132)

No diálogo ou discurso direto - o narrador cede a palavra e o foco de visão às

personagens, fundamental para o desenvolvimento das ações do conto.

(...) Dagmar pergunta: “Bonita não é?”. Geraldo concorda:“Linda!”. Então, pousando a mão no braço do noivo, a pequenacontinua:- Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vaiser uma mulher e tanto.- Um espetáculo!Sorriu, triste:- Um espetáculo, sim! – Pausa e, súbito, tem uma sinceridadeheróica: - Há de ser mais bonita do que eu.(p.132)

Nesse trecho o termo “vai ser uma mulher e tanto” notamos um indício do

que poderá acontecer com a personagem Alicinha, na sua passagem de menina a

mulher.

Até esse momento da narrativa, o narrador introduziu o assunto que é o

“relacionamento fraternal”, e o tema “traição”, com um suposto triângulo amoroso.

Já na segunda parte do conto temos a preparação para o que poderá vir a ser o

clímax, outro índice proléptico, (através dos vocábulos sublinhados: nova e

dissimulada curiosidade - pertubou - espécie de vertigem) e constatamos a presença

intrusa do narrador através do adjunto adverbial de dúvida: “talvez”.

(...) Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina irremediável. No fundo, talvez

imaginasse que ela seria para sempre assim, criança, criança. A observação da noiva o

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apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para Alicinha com uma nova e dissimulada

curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda contida na menina, começava a desabrochar. Esta

constatação o perturbou, deu-lhe uma espécie de vertigem.

Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva foi levá-lo até o portão. Ao ser beijada na

face, disse:

- E não: Alicinha é sagrada para você! (p.133)

Na terceira, quarta e quinta partes há a preparação para o clímax com a

personagem Dagmar revelando aos pais que advertira o noivo sobre sua irmã ser

sagrada para ele, e também o conflito psicológico vivido pela personagem devido ao

ciúme doentio em relação à irmã.

Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-nos-acuda. A

mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-lhe um verdadeiro

sabão:

- Foi um golpe errado. Erradíssimo!- Eu não acho.O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde nãohavia! Despertou a idéia do seu noivo!”.Replicou, segura de si:- Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou,interpelando-a:- E agora, com que cara teu noivo vai olhar para tua irmã? Vocês,mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: umairmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas! E Dagmar obstinada:- Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima,formidável e outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita comcunhado, não! Nunca! (p.133 e 134)

No trecho acima, através das expressões sublinhadas, verifica-se a utilização

da linguagem coloquial. Na expressão Dagmar obstinada, o adjetivo denota a

presença próxima do narrador onisciente, que consegue analisar até o tom de voz da

personagem. No final da quinta parte, temos a assertativa de Geraldo a respeito de

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Alicinha, com uma constatação irônica “– Não há mulher mais bonita que uma

cunhada bonita!” (p.135), que nos faz prever a formação de um triângulo amoroso e

a possível traição.

O clímax acontece na penúltima parte, com o subtítulo Sonsa, quando

Alicinha revela para Geraldo que não é mais criança, aproximando-se dele com

palavras e gestos sensuais.

No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho:“Deixei de ser criança! Já não sou mais criança!”. Isso poderiasignificar pouco ou muito. De qualquer forma, desconcertado, elechegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo demim?”. O pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olharintenso, não de criança, mas de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parecedivertida. E, subitamente, séria, ergueu-se e aproxima-se. Estavamno gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:- Um beijo. (p135)

Nesse trecho a personagem Alicinha, a sonsa, a dissimulada, passa a ter uma

postura mais provocante e sensual, e, mais uma vez, observa-se a onisciência do

narrador focalizador que enxerga até mesmo o que se passa dentro da cabeça da

personagem. Constatamos também outra característica do conto que é a síntese

dramática, com a marcação de tempo condensado.

No parágrafo seguinte, verifica-se a chantagem de Alicinha para conseguir

seu intento. Esse trecho encerra também o alarme para o desfecho e o tema do conto.

Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E oameaçou, segura de si e da própria maldade: “Vou teavisando: se começares com coisa, eu direi a todo mundo quehouve o diabo entre nós!”.Geraldo arriou na cadeira; uivou:- Demônio! Demônio!(p.136)

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Na sétima e última parte, com o título O Beijo, logo no início, temos a síntese

dramática, sem detalhes e pouca narração porque o narrador vai direto para o

desfecho:

(...) Até que, uma tarde, entra numa delegacia; soluçando,anuncia:“Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal, numlugar assim, assim”.(p.136)

O final, nada convencional, totalmente inesperado, demonstra a reação

também inesperada da personagem Dagmar: neurótica, insegura e louca.

(...) Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e obeijou na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada.Debatia-se nos braços dos investigadores.Gritava:- Oh!, graças! Graças!(p.136)

Como a narrativa é muito breve e as ações se sucedem pontual e rapidamente,

o leitor não tem espaço para preencher os vazios do texto e é apanhado de surpresa

pelo desfecho agressivo e até mesmo grotesco.

Diante dessas observações, podemos classificar Diabólica como um conto

realista, em que estão presentes o trágico e o grotesco.

Por isso, é necessário recorrermos a considerações gerais sobre a tragédia, desde a

época clássica até à contemporaneidade.

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II – DIABÓLICA: DAS TRAGÉDIAS DA ÉPOCA CLÁSSICA ÁS

TRAGÉDIAS DA VIDA CONTEMPORÂNEA

1. Tragédia. Tragédias Tebanas. Tragédias Rodrigueanas

Tragédia é um gênero teatral baseado na apresentação, em geral solene, da

trajetória penosa e do destino inexorável de determinado herói ou protagonista. Sua

origem remonta à antiguidade clássica.

Segundo Aristóteles, primeiro teórico da tragédia:

Tragédia é a representação de uma ação elevada, de algumaextensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos osadornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; eque, despertando piedade e temor, tem por resultado a catarsedessas emoções.(Poética - VI, p.26)

A estética de Aristóteles aponta os dois conceitos que definem o gênero: a

mimese, ou imitação da palavra e do gesto, que para ser eficaz deve despertar no

público os sentimentos de terror e piedade, e a catarse, efeito moral e purificador que

proporciona o alívio desses sentimentos.

Na tragédia se expressa o conflito entre a vontade humana, por um lado, e os

desígnios inelutáveis do destino, por outro. A rigor, o termo só se aplica à tragédia

grega ou clássica, cuja origem se confunde com a do próprio teatro, mas por analogia

é tradicionalmente estendido à literatura dramática de várias épocas, em que conflitos

semelhantes são tratados. A tragédia surgiu na Grécia no final do século VI A.C. e

esgotou-se em seu sentido genuíno em menos de cem anos. Assim, quando no século

IV Aristóteles formulou, na Poética, sua teoria da tragédia; o pensamento filosófico

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estava plenamente estabelecido e a tragédia não tinha mais lugar. Sucedeu

historicamente à epopéia e à poesia lírica e se extinguiu com o advento da filosofia.

O momento histórico da tragédia corresponde a um estado particular de

articulação entre o mito e a razão, em que essas categorias entram em conflito e

preparam a vitória final do pensamento. Marca a transição do homem trágico, sujeito

aos caprichos dos deuses, o homem descrito na mitologia e na poesia de Homero,

para o homem dramático (“drama” deriva de uma palavra grega que significa “ação”)

ou homem de ação, cidadão político, descrito por Aristóteles como senhor de sua

vontade e responsável por seus atos. A decisão trágica se dá entre os desígnios dos

deuses e os projetos ou as paixões dos homens. A tragédia, portanto, exprime o

debate entre o passado mitológico e o presente da pólis, ou cidade.

A palavra grega “tragédia” significa “canto do bode” e se refere

possivelmente ao ritual em honra a Dionísio do qual, segundo Aristóteles, o teatro se

originou. Sua fonte é o ditirambo, canto executado por um coro no qual se destaca

um corifeu. O rito a Dionisio, no qual se sacrificava um bode, ligava-se ao culto da

fertilidade e ao ciclo vegetal, e portanto ao ciclo da vida humana, condicionada pela

sombra da morte e do desastre, embora aberta, no rito dionisíaco, à possibilidade de

ressurreição.

As tragédias eram apresentadas ao público nas grandes festas dionisíacas,

festivais realizados em Atenas a partir do século VI a.C. por iniciativa do tirano

Pisístrato. Téspis é tido como o primeiro tragediógrafo, pois a ele se atribui a

dramatização dos ditirambos, poemas narrativos cantados por um coro. O corifeu,

integrante destacado do coro, teria passado a dramatizar os versos que cantava e a

esboçar um diálogo com os demais integrantes.

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Ésquilo, primeiro poeta trágico clássico do qual se conhecem várias obras

completas, manteve o predomínio do coro, mas introduziu um segundo ator além do

Corifeu, o que reforçou a dramatização. Sófocles, no século V, escreveu diálogos

para um terceiro ator que, como os outros dois, podia desempenhar vários papéis

mediante o tradicional recurso das máscaras. A sobriedade e a grandeza das tragédias

de Ésquilo e Sófocles foram atenuadas na obra de Eurípides, o terceiro dos grandes

trágicos clássicos, em favor da maior humanização dos personagens. A partir do

século IV A.C., a tragédia grega, já despojada de sua função catártica, tornou-se

retórica e sobrecarregada, como sucederia mais tarde também com a tragédia

romana, representada por autores como Lívio Andrônico e Sêneca.

As tragédias tebanas, de onde destacamos a trilogia tebana3 composta por três

peças de Sófocles: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, inovaram por deslocar o

movimento das ações para a vontade humana e não mais para as articulações divinas.

Enquanto seu mestre Ésquilo, a quem Sófocles sucedeu no gosto do público

ateniense, apresentava invariavelmente os seus heróis submetidos às leis da

fatalidade, esboçadas por deuses implacáveis, este procurou traçar um cenário

diferente para a ação dos seus personagens. Se bem que os deuses continuassem os

mesmos, o destino dos heróis de Sófocles deriva bem mais do caráter deles do que do

determinismo fatalista. O embate, o conflito, que alimenta o seu drama, é antes de

tudo um choque de personalidades fortes, claramente definidas e assumidas em

quanto tal. Em suma, há sim um poder do além intervindo sistematicamente, mas

isso não retira o espaço da liberdade de ação do homem. Interessa observar que se

destaca entre essas personagens fortes, fortíssima até, a jovem filha de Édipo,

3 SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução e apresentação Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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Antígona. Ela, mesmo sendo mulher, considerada inferior para a maioria dos gregos

de então, incorpora os valores altivos e honrados herdados de uma dinastia

aristocrática, a dos Labdácidas, e vai à luta para manter os sagrados princípios da sua

casta.

Édipo Rei, particularmente admirada por Aristóteles em sua “Poética”, esta

obra-prima da tragédia grega, ilustra a impotência humana diante do destino. A

estória começa quando Édipo, príncipe de Corinto, é insultado por um bêbado, que o

acusa de ser filho ilegítimo do Rei Políbio. Embora Políbio procure tranqüilizar

Édipo, o príncipe, perturbado, recorre ao Oráculo de Píton, mais tarde conhecido

como Delfos. O oráculo evita responder à sua dúvida, mas dá a terrível informação

de que Édipo está destinado a matar o pai e casar-se com a mãe. Como Édipo não

tem a menor intenção de deixar que isso aconteça, foge de Corinto e vai para Tebas,

iniciando a tragédia.

Em uma encruzilhada, Édipo depara-se com uma carruagem. À frente vem o

arauto, que lhe ordena rudemente que se afaste e tenta empurrá-lo para fora da

estrada. O príncipe começa uma briga e termina matando todo mundo que nela se

envolve. Para sua desgraça, um dos homens que vinha na carruagem era seu pai

verdadeiro, o rei Laio de Tebas. Após resolver o enigma da esfinge e salvar Tebas

desse flagelo, Édipo é proclamado rei e casa-se com a viúva de Laio, Jocasta, sua

mãe verdadeira. Só depois que uma nova maldição cai sobre Tebas - maldição que

seria afastada apenas quando o assassino de Laio fosse descoberto e expulso - é que

os fatos vêm à tona. Édipo não consegue suportar a verdade e arranca os próprios

olhos.

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Antes que Édipo tomasse a decisão de fugir da profecia do oráculo, Laio, sua

vítima já tinha cometido o mesmo engano. Apolo havia advertido Laio de que seu

próprio filho o mataria e, quando Édipo nasceu, o rei mandou perfurar com um cravo

um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Mas o menino foi

encontrado por um pastor e levado ao rei Políbio, que o adotou. Essa foi a origem da

confusão de Édipo e foi daí que veio seu nome: “oidípous” significa “pé

inflamado”.

A segunda peça Édipo em Colono, retrata Édipo, velho, cego e errante,

sempre ajudado por Antígona, chega a Colono. O antigo rei de Tebas pede asilo e

direito de sepultura a Teseu, rei de Atenas. Teseu concorda, e Édipo revela que sua

sepultura protegerá a terra contra os inimigos. Creonte tenta levar Édipo de volta,

pois a luta entre Etéocles e Polinice é iminente; Polinice vem pedir a ajuda do pai

contra o irmão. Édipo, defendido por Teseu, recusa-se. Pouco depois um mensageiro

relata seu miraculoso desaparecimento.

A trilogia se completa com Antígona. Logo após a fracassada tentativa dos

Sete Contra Tebas 4, Creonte, rei de Tebas, decreta que os cadáveres dos inimigos da

cidade ficarão insepultos e sem os ritos fúnebres determinados pelo costume. A

penalidade estipulada para quem desobedecer ao decreto é a morte. Polinice, um dos

filhos de Édipo e sobrinho de Creonte, estava entre os atacantes; o decreto de

Creonte, portanto, aplica-se também a ele. Antígona, revoltada com a ordem do tio,

cobre secretamente o corpo do irmão com um pouco de terra e realiza alguns dos

rituais que a religião grega preconizava para os mortos. Descoberta, Antígona

4 Tragédia esquiliana. Após a descoberta do parricídio e do incesto, em Édipo Rei, e depois da morte do reitebano em Édipo em Colono, é que se situa os acontecimentos narrados nesta obra. Polinice, o filho mais velho deÉdipo (e, portanto, o legítimo sucessor ao trono) fora afastado do trono pelo irmão mais novo, Etéocles. Polinicereúne sete generais para atacar as sete portas de Tebas e reaver o que de direito é seu, enquanto Etéocles prepara adefesa da cidade. Ambos terminam por fenecer na guerra, conforme sabe-se na peça Antígona, na qual a filha deÉdipo é castigada por dar túmulo aos seus irmãos.

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confronta Creonte com coragem e altivez, e é condenada à morte. Posteriormente, as

profecias de Tirésias amedrontam Creonte e ele recua. O rei ordena a imediata

libertação da moça, mas ao procurá-la descobre que ela, seu filho Hémon e sua

esposa Eurídice haviam se suicidado.

Nelson Rodrigues, desde a sua primeira peça, A mulher sem pecado5, até a

última A Serpente6, suscitou as mais diferentes reações críticas à sua produção:

elogios, críticas, vaias, aplausos, apoio e censura. Por abordar e expor os traumas

morais e sexuais da classe média, quase que exclusivamente a carioca, o autor

tornou-se uma figura polêmica: e a censura, do Estado e da sociedade, condenou seus

textos a um julgamento moral e não os apreciou segundo o seu valor estético. Sendo

assim, a proposta deste capítulo consiste em cruzar o conto Diabólica que compõe o

ciclo da coluna A Vida Como Ela É... – as Tragédias Cariocas, com textos clássicos

da Tragédia Grega, especificamente a Trilogia Tebana, mostrando que os temas

abordados na composição rodrigueana (traição, adultério, e morte violenta),

acompanham a humanidade desde os seus primórdios.

Friedrich Engels, em seu livro A origem da Família, da Propriedade Privada

e do Estado, observa que a estrutura familiar passou por várias transformações até

chegar à chamada família monogâmica. Por se tratar da estrutura fundamental que o

texto rodrigueano aborda, torna-se necessário uma rápida incursão pelos estágios

passados por ela.

A tradição judaico-cristã apresenta a família como uma instituição alicerçada

nos laços de sangue e na relação harmônica entre pai, mãe e filhos. Entretanto, as

mudanças ocorridas ao passar dos séculos provam que esse é um padrão que já não

5 Teatro completo. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. v.16 idem, v.4.

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se sustenta mais, uma vez que há distintas formas de se formar um núcleo familiar

(pais separados e sozinhos, pais separados e com outros/as companheiros/as, casais

homossexuais). Os tipos de família apresentados por Engels são quatro:

consangüínea, punaluana, sindiásmica e monogâmica. Na primeira, todos os homens

e todas as mulheres de uma tribo eram maridos e mulheres em comum, sem divisão

de laços sangüíneos; no segundo tipo, eram maridos e mulheres em comum,

excetuando-se os irmãos e irmãs; na família sindiásmica introduziu-se um elemento

novo: junto à verdadeira mãe foi posto o verdadeiro pai, o matrimônio não era

indissolúvel, mas pressupunha a fidelidade; por fim, a família monogâmica surgiu a

partir do casamento sindiásmico e, ao contrário do que se possa imaginar, a

mudança não se efetuou por exigências morais, mas econômicas e fortemente

alicerçada em uma estruturação repressora.

Assim, se a sociedade é repressora, automaticamente a família também o será.

Torna-se óbvio que qualquer relação existente fora dos padrões consentidos será

objeto de condenação. Quando Nelson Rodrigues expõe as mazelas sexuais da classe

média, o faz através de um ângulo grotesco e trabalha os indivíduos cheios de

cotidiano, linguagem coloquial e vida interior agressiva. A escolha dessa opção

estética fez com que a obra, e o próprio autor sofressem a censura imposta pela

sociedade e pelo Estado.

Michel Foucault, em sua obra Microfísica e Poder, opina que, para o

macropoder se perpetuar é necessário que as suas características sejam reproduzidas

em micropoderes na rotina da vida social. Dentre esses, está incluída a família com

seus traços marcadamente reprodutores do contexto cultural e social. Na obra

rodrigueana, a presença constante de temas controlados pela força moral cria um

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efeito estético de impacto e desencadeia a reação da sociedade e do Estado,

principalmente porque o autor faz da família seu alvo de ataque.

As peças rodrigueanas são registros estéticos da face desagradável que os

seres humanos querem esquecer, pois estão aí para lembrar a efemeridade humana e

mostrar uma visão negativa da vida. Ao contrário da visão clássica da dramaturgia,

que exaltava a razão, o exemplo, o heroísmo e a santidade, o autor revela o

contraditório do ser humano: o amor e o ódio, a carne e a alma, a morte e a vida. Em

A Vida Como Ela É... o relacionamento das personagens é sempre pautado em

emoções fortes e extremadas, os membros da família nutrem entre si sentimentos

antagônicos de raiva, desprezo, ódio, amor e paixão. No conto Diabólica os laços

que unem as personagens Geraldo (fraco, covarde, medroso e assassino), Dagmar

(insegura, neurótica e obstinada) e Alicinha, sua irmã aparentemente ingênua, mas

diabólica na sua essência, não são aqueles esperados pela sociedade; eles escondem

segredos ou melhor, anomalias de conduta, anomalias psíquicas que dificilmente

seriam aceitos com naturalidade. Além disso, o conto apresenta uma tensão

dramática inspirada na atmosfera do adultério e, por isso, foge ao controle dos

códigos morais estabelecidos pela sociedade. Notamos, também, através das

personagens a dialética humana “bem x mal”, “anjo x demônio”, espírito x matéria”

e “essência x aparência”. Outro fator a ser destacado é a força contida nos nomes das

personagens, Dagmar e Geraldo são nomes fortes, em contrapartida, Alicinha é

diminutivo que denota carinho, afetividade, ingenuidade. cruzamento

No relacionando dos textos clássicos da Trilogia Tebana e de um texto

moderno – A Vida Como Ela É...: Diabólica, surgem características que

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proporcionam a análise de aspectos narrados em obras do mesmo gênero, em tempos

distantes entre si, mas que conservam em suas estruturas elementos atemporais.

2. Elementos do Trágico aplicados ao conto e sua transcodificação em TV e

Cinema

Os elementos básicos que compunham a tragédia, na sua estrutura, eram: o

coro, o corifeu, os atores, o prólogo, o párodo, os episódios ou partes, o êxodo ou

epílogo, as catástrofes, as cenas patéticas, agón ou cenas de enfrentamento,

anagnórisis, o presságio, a traição e a morte. Os que se mostram presentes na

transcodificação do conto de Nelson Rodrigues para a TV (O Anjo) e para o cinema

(Diabólica) são:

Coro: composto por doze ou quinze elementos, os coreutas. Após entrarem

na orquestra, a área de dança no teatro, cantam e dançam nesse espaço. Estes

dançarinos-cantores eram em geral homens jovens que estavam a ponto de entrar

para o serviço militar após alguns anos de treinamento. Não eram, portanto,

profissionais do teatro, e daí a importância do tragediógrafo também como ensaiador

do coro, muito embora os atenienses desde crianças fossem ensinados a cantar e

dançar.

O coro trágico quase não participa da ação, limitando-se apenas a comentá-la

e expressando compaixão ou outros sentimentos pelas personagens. No conto, o

papel do coro é exercido pelo narrador que está contando a história como observador,

não tendo participação na intriga como personagem. Mas no seu papel de narrador

heterodiegético (aquele que não participa da narrativa dos acontecimentos) e

onisciente (aquele que conhece tudo) muitas vezes revela a sua intrusão,

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principalmente quando exerce também o papel de focalizador e o foco de visão se

funde com o de narração, e narrador se inclui dentro da cena do conflito, muito

próximo das personagens.

Na adaptação do conto para a TV – com a mudança do título de Diabólica

para O Anjo – o papel do coro da tragédia é desenvolvido “in off”, que é fiel ao texto

original, com acréscimo de algumas expressões para melhor entendimento do

telespectador. Já na adaptação para o cinema não existe a figura do narrador

heterodiegético e onisciente. Como a narrativa é estruturada “a fine”, o protagonista

exerce também o papel de narrador homodiegético e autodiegético (protagonista-

narrador conta a sua história).

Atores: representam deuses ou heróis. São em número muito reduzido. Seu

número sobe para dois e em seguida três, mantendo-se nesse patamar, mas podemos

observar que a estruturação dos diálogos nas tragédias tende a se concentrar em dois

atores apenas, sendo raras as cenas que apresentam um verdadeiro diálogo a três. É

no diálogo entre atores que se concentra quase a totalidade da ação dramática. No

conto os atores equivalem a personagens, que são reduzidas em número: três

personagens principais a formarem um triângulo amoroso e duas secundárias a

cumprirem um papel familiar e social. O mesmo acontece na transcodificação para a

televisão. Até mesmo os nomes das personagens permanecem.

Já na adaptação cinematográfica notamos que algumas personagens foram

acrescentadas, inclusive com direito a diálogos (discursos diretos) e considerações

pessoais a respeito do desfecho.

Na estruturação formal a tragédia contém, como partes principais: prólogo,

párodo, episódios ou partes e o êxodo ou epílogo. Já nas transcodificações, temos:

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Prólogo: É a primeira cena antes da entrada do coro ou antes da primeira

intervenção do coro. Trata-se de uma narrativa preliminar que visava introduzir o

tema. Pode estar ou não presente. Os tipos de Prólogo são: com apenas um ator, na

forma de solilóquio ou monólogo ou com mais de um ator em cena aberta com

diálogo e ação.

No conto, o prólogo equivale à primeira parte ou cena, sem nome, introduzida

pelo narrador e seguida pelos diálogos das personagens principais. De modo fiel

ocorre com a adaptação do conto para o minidrama na televisão. No cinema há uma

nova estruturação, como já foi observado.

Episódios ou Partes: são cenas no palco, entre os cantos corais, sejam

estásimos (cantos e danças do coro na orquestra que separam os episódios) ou

diálogos líricos, em que participa no mínimo um ator. Podiam variar de número e

importância. Além dos atores podem participar figurantes também. O figurante

distingue-se do ator por não possuir falas.

As partes ou episódios no conto são cenas explícitas para o receptor-leitor.

Nas adaptações para a televisão e para o cinema também existem as partes, porém

não explicitadas nem fragmentadas como no conto. Os episódios estão implícitos,

tornando-se verificáveis as estruturas para quem leu o conto, porém imperceptíveis

para o simples espectador.

Êxodo ou epílogo: Inicialmente, como indica o seu nome, era simplesmente a

saída do coro cantando e dançando ao final da peça. Posteriormente, com a

diminuição gradual do papel do coro, passou a ser a última cena depois do último

estásimo e que termina o drama. Poderia haver nesta última cena uma fala final de

um deus que seria o epílogo.

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No conto e no minidrama o epílogo é marcado pela cena de Dagmar, fora de

si, invadindo a delegacia e gritando, ao agarrar o rosto do noivo e beija-lo: Oh!

Graças! Graças! Finalmente! Graças!

Na adaptação para o cinema, o epílogo é um segundo desfecho em relação ao

conto original.

Quando, na delegacia, o pai chama Dagmar de “sem vergonha”, a mãe

interrompe-o e revela que a “sem vergonha” é ela, porque ela tem um amante que é o

verdadeiro pai de Alicinha.

Por sua recorrência, algumas cenas se destacam nas tragédias gregas e são tão

típicas do gênero quanto é uma cena de perseguição em um filme de ação. São elas:

as catástrofes, as cenas patéticas, agón ou cenas de enfrentamento e anagnórisis ou

cenas de reconhecimento, todas presentes na adaptação para a televisão e para o

cinema.

As Catástrofes são cenas de violência, em geral oculta dos olhos da platéia e

narrada posteriormente por um ator.

No conto em estudo as cenas de violência são ocultas, o leitor não toma

conhecimento da violência ocorrida na morte de Alicinha, a não ser que ela foi morta

em algum lugar não identificado por uma punhalada nas costas, através do processo

narrativo, após os acontecimentos. Nas adaptações o local é delimitado: no

minidrama o lugar do homicídio, por estrangulamento, é a casa da vítima; no filme o

local é um “quarto de encontros”, o que atualmente seria um Motel, e a forma de

violência também é o estrangulamento.

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Cenas patéticas: cenas de explicitação de sofrimento, dor, em cena. A cena

patética só aparece na adaptação do conto para o cinema, na revelação do segundo

epílogo.

Agón ou cenas de enfrentamento: cenas onde, por ações ou por palavras

entre personagens, se explicita o conflito trágico no palco.

Existe no conto e nas suas adaptações, quando após o primeiro

relacionamento sexual entre Alicinha e Geraldo, ela o ameça: “Vou te avisando: se

começares com coisa, eu direi a todo mundo que houve o diabo entre nós!”

Anagnórisis ou cenas de reconhecimento: é a passagem da ignorância para

o conhecimento. Uma personagem descobre-se parente, amigo ou inimigo de outro.

Pode ser também a descoberta de algo que se fez ou não. As personagens tomam

consciência de algo, que não é trivial, mas significativo para o seu destino.

Observamos sua existência em ambas as adaptações. No cinema, a revelação da mãe

sobre ter um amante, que é o pai de Alicinha. Na televisão, o momento em que

Dagmar declara sua irmã Alicinha como uma suposta rival. “ – Meu pai, gosto muito

de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade de

irmã bonita com cunhado, não! Nunca!”

Também constituem elementos do trágico o presságio (intuição ou sinal), a

traição e a morte.

O presságio é um fato a partir do qual se supõe que ocorrerá um evento não

relacionado a ele, ou seja, o que se costuma chamar de sinal.

No conto Diabólica, temos o “sinal”, o “presságio” logo no início da

narrativa, conforme podemos observar : “Na noite do pedido oficial, Dagmar, de

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braço como o noivo, foi até a janela, que se abrira para o jardim. Então, com uma

tristeza involuntária, uma espécie de presságio, suspirou”.

Esse “presságio” funciona como índice, para o leitor, de que algum

acontecimento funesto, envolvendo as três personagens principais ocorrerá, é o caso

da traição.

O ato de trair nas suas diferentes formas de manifestação traição pelo poder,

pelo dinheiro, por vingança, ou amorosa, é um ato condenado pela sociedade, no

entanto vem sendo, representado esteticamente há muito tempo, a exemplo da

desobediência bíblica de Adão e Eva. O mundo literário está repleto de criações

estéticas que retratam traições famosas: Oréstia, Ésquilo; Otelo, Shakespeare; Teresa

Raquin, Zola e tantas outras. Os textos literários que abordamos também elaboram a

traição de maneiras distintas. Na trilogia tebana as traições se manifestam mais na

disputa pelo poder, sem rodeios, de forma clara e objetiva; em Diábolica sua

manifestação é subjetiva e dissimulada.

O autor grego aborda a disputa pelo poder como algo propenso ao castigo:

Etéocles e Polinice matam-se; Antígona perde a vida; Creonte perde o filho e a

esposa. Para os gregos a justiça sintetiza o valor moral supremo, a ação de maneira

correta, ou seja, moralmente, significa respeitar a medida de cada um (metron) e

seguir a lei da sociedade (polis). Os filhos de Édipo, após abandonarem o pai à

própria sorte, ao atingirem a maioridade, fazem um acordo de alternância no trono.

Mas Etéocles se recusou a deixar o trono e entregá-lo a seu irmão Polinice. Este

uniu-se com o sogro Adrasto e marchou contra Tebas. Dupla traição: Etéocles não

respeitou o acordo feito com o irmão e Polinice marchou contra seu próprio povo.

Em Nelson Rodrigues as traições são mais de cunho érótico e moral.

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Com relação às traições de cunho amoroso, na trilogia tebana há somente dois

momentos que podem ser considerados casos de traição por amor, e não

propriamente amorosa: o primeiro, quando Antígona abandona Tebas, sua pátria,

para acompanhar o pai/irmão; o segundo, ao desobedecer às ordens de Creonte e

fazer os ritos funerais do irmão, Polinice. No texto rodrigueano, entretanto, as

traições possuem cunho mais sensual, respondem aos apelos do corpo e transcorrem

dentro de um grupo fechado, uma família reduzida aos seus membros e uma ou outra

pessoa de fora. Em Díabólica, as personagens cometem traições dentro do gueto

familiar - Alicinha a irmã caçula de treze anos trai a irmã, Dagmar, com o futuro

cunhado Geraldo. Isso ocorre tanto no conto como em suas adaptações para a

televisão e para o cinema.

Observamos que o tema traição foi abordado por Sófocles e por Nelson

Rodrigues que tinham entre si mais de dois milênios de distância, porque sua

elaboração estética existe em função da existência humana.

Nessa sucinta elaboração do relacionamento dos textos de Sófocles e Nelson

Rodrigues fizemos uma rápida incursão pelas forças inerentes ao ser humano: ódio,

amor, morte, humilhação e crueldade. Ao analisarmos a demonstração dessas forças

pudemos concluir que a sociedade na época da elaboração do conto – anos 50 - se

posicionou de maneira implacavelmente moral no que se refere aos textos de Nelson

Rodrigues, porque as manifestações do desejo são naturais, mas trabalhar

dialeticamente com a descrição do prazer e da náusea implica em admitir o corpo

como suporte indesejável para a manifestação da vida.

A morte, fenômeno natural inerente ao ser humano, é uma das poucas

certezas que a humanidade possui. Entretanto, faz parte do seu imaginário e da sua

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esperança prolongar o máximo de tempo possível a existência sobre a Terra. Faz

parte da perspectiva humana morrer de forma natural e com idade avançada, pois

lembrar constantemente a efemeridade e a mortalidade é um processo agressivo por

representar a imagem do desconhecido.

Concebida esteticamente de maneiras distintas nos diferentes contextos de

produção, a morte foi trabalhada por Sófocles e por Nelson Rodrigues como o alívio

contra todos os pesadelos da vida. Sófocles trabalhou a morte na perspectiva de

solução aos erros cometidos pelos mortais, contra seus iguais e contra os deuses,

como forma de pagar pela desobediência e rebeldia. Ela surge como a grande

redentora dos males praticados pelos humanos porque não é representada apenas

pelos mortos, mas por todos os que sofrem. Suas penas são diferentes tipos de morte

e elas aparecem fartamente tanto no texto de Sófocles quanto no de Nelson

Rodrigues. Assim, além das mortes físicas temos várias outras representadas pelos

castigos sofridos pelas personagens. Na trilogia tebana, a cegueira de Édipo, o vagar

de Antígona acompanhando o pai/irmão, o desespero de Creonte após a morte do

filho e da esposa. No conto Diabólica o ciúme obsessivo de Dagmar em relação a

sua irmã caçula Alicinha e seu noivo Geraldo. O sentimento de amor e ódio que

Geraldo nutre por Alicinha sua futura cunhada, levando-o ao ápice da loucura. A

solidão de Dagmar ao saber que o noivo matou a irmã e vai ser preso. No filme, a

desunião familiar com a revelação da mãe: a morte da família.

O castigo e a morte, que é uma forma de castigo, são os meios através dos

quais as personagens expiam suas culpas, não como um recurso para dar o fim

inevitável à vida, mas como instrumento de vingança e penalidade, quase sempre de

forma horrível e grotesca. Carrega, portanto, em si a tragédia e são fartos os

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exemplos de castigos e mortes que acontecem na trilogia tebana e em Diabólica .

Nos textos de Sófocles, Laio é assassinado pelo próprio filho, supostamente em

conseqüência da maldição lançada por Pélops por ter tido seu filho, Crisipo, raptado

por Laio que nutria uma paixão mórbida pelo rapaz; Etéocles e Polinice matam-se na

disputa pelo poder; Antígona é condenada a morrer trancada em uma caverna;

Hêmon e Eurídice suicidam-se. No texto de Nelson Rodrigues, Geraldo, não

suportando mais viver o intenso triângulo amoroso e cansado de se render aos

caprichos de sua cunhada e amante Alicinha, a mata e se entrega à polícia. Geraldo e

Dagmar, de certa forma, também morrem para a vida, ele por ter que viver atrás das

grades, ela por ficar imersa em solidão, abandono e frustração.

Por exercer, simultaneamente, fascínio e medo, repulsa e atração, e trazer em

si uma aura de mistério, a morte é um componente essencial da tragédia. As

composições de Sófocles e de Nelson Rodrigues souberam trabalhar com tal tema e,

por isso, os autores receberam o reconhecimento do público. Com recepções

distintas, obviamente, mas sempre lembrados.

O universo rodrigueano, seja no conto, no romance ou no teatro, é trágico

quando o identificamos pelas vicissitudes do desmoronamento moral; é épico, ao

expressar a procura ou a revelação de um sentimento secreto, às vezes íntimo e

monstruoso, às vezes alheio e heróico; mas acima de tudo é um drama lírico, poético,

que talvez não seja melhor compreendido por tratar o autor de desconstruir a nossa

dor, distribuí-la com outros, codificá-la com os mais sofisticados processos

psicológicos identificados em manias, angústias, traumas, revoltas, taras, obsessões.

A construção do herói homem e seus problemas é individual e ao mesmo tempo

universal, porque o leitor / o espectador se vê sintonizado, ao menos parcialmente,

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com os conflitos das personagens. Nas atitudes e ações de cada personagem nos

sentimos também partícipes da dualidade antitética vício x virtude, bem x mal, anjo x

demônio, santo x canalha, conflitos próprios do ser humano. Deste modo, se

resumem as personagens de Nelson Rodrigues: o homem (o pai, o marido, o noivo, o

amante); a mulher (a mãe, a esposa, a filha, a adúltera, a prostituta); o amor (o

pêndulo da fidelidade, suas tentações) e, por trás de tudo, a imensa solidão humana e

a hipocrisia social.

3. Tragédias Cariocas: Uma Linguagem Inovadora

Segundo a jornalista Cristina Brandão as tragédias cariocas, ora denominadas

tragédias de costumes (Perdoa-me por me Traíres), ora divina comédia (Os Sete

Gatinhos), ora obsessão (Toda Nudez Será Castigada), ora simplesmente peça (A

Serpente) retratam os conflitos cotidianos do Rio de Janeiro. Nelson Rodrigues

passou a escrevê-las em razão da familiaridade cada vez maior com os temas

explorados, com o sucesso na imprensa, com a coluna A Vida Como Ela É... em que

narrava uma história em forma de conto ou crônica do dia-a-dia da sociedade carioca

dos anos 50, na maioria envolvendo o seu tema favorito: traição e adultério. Nessas

histórias experimentava personagens que mais tarde desenvolvia no seu teatro (A

Falecida, Boca de Ouro ou Beijo no Asfalto). Os contos audaciosos de A Vida Como

Ela É... popularizavam Nelson Rodrigues, pois a coluna do jornal Última Hora era

lida até por passageiros nos habituais lotações. Diríamos que a ficção jornalística

fundamentaria, de certa forma, suas tragédias cariocas iniciadas em 1953.

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Nelson Rodrigues estava criando um teatro inovador, com uma linguagem

coloquial e uma estética popular que chegou a surpreender os críticos, como afirma

Sabato Magaldi:

Formado na estética da sobriedade européia, eu não admitia osextravasamentos. Para mim, de mau gosto. Custei a incorporar osexcessos tropicais. Hoje estou convencido de que o melodramáticodos textos rodrigueanos corresponde à permanência de umaestética popular que vai da oratória e da frase feita, à chanchada.Aliás, Nelson jamais repudiou o mau gosto(...) Por meio dalinguagem límpida, sucinta, vibrátil e da capacidade de expor osdesvãos menos confessáveis de suas personagens, Nelson abriucaminho para todos os dramaturgos surgidos nas últimasdécadas.... (1992, p.16)

Assim como Martins Pena, França Junior, Arthur Azevedo, e Oswald de

Andrade, contribuíram para a inovação teatral do século XX, Nelson Rodrigues é

também unanimente considerado um desbravador, pelo conjunto de sua obra, pois

renovou a dramaturgia brasileira. Retomando incessantemente os mesmos temas, ele

traçou um painel da classe média burguesa, e lidou com vários planos de cena,

inaugurando a simultaneidade temporal e de ação no teatro brasileiro, imprimindo

técnicas variadas de corte e ritmo. Sobre esse aspecto Sábato Magaldi comenta:

Quando nossas peças, em geral, se passavam nas sala de visitas,numa reminiscência empobrecedora do teatro de costumes, Vestidode Noiva veio rasgar a superfície da consciência para apreender osprocessos do subconsciente, incorporando por fim a dramartugianacional os modernos padrões de ficção.(Apud Campedelli, 1995,p.24)

Além de interseccionar tempos diferentes, mesclando o presente com o

passado e ainda explorando o passado remoto, valendo-se de séries de “flashbacks”,

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que tornaram as montagens de suas peças bastante ricas, Nelson Rodrigues utilizou a

multiplicidade de ações, em diferentes espaços.

A exploração do inconsciente também foi incorporada à sua dramaturgia. O

seu teatro trabalha o conteúdo mais primitivo e comum aos homens: o conteúdo

impulsivo. Conforme explica Maria Helena Pires Martins:

O universo que daí resulta só pode ser patológico, uma vez que oego não encontra caminhos aceitáveis para a satisfação do id e queseus personagens se fixam em determinadas etapas dodesenvolvimento da personalidade, sem conseguir elaborá-las ouultrapassa-las. Cria, pois, um teatro extremamente desagradável,que trata dos desejos inconscientes, dos conflitos não resolvidos,enfim do nosso eu mais profundo. (Apud Campedelli, 1995, p.24)

Nelson Rodrigues também criou personagens sempre muito radicais e

contundentes. Seus tipos são quase caricaturas, isto é, são quase sempre exploradas a

partir de uma qualidade, ou uma virtude, ou de um defeito. Nesse sentido, tornam-se

personagens exemplares, na medida em que são criadas para enfatizar alguma coisa.

Em suas tragédias cariocas, Nelson Rodrigues revela um estilo vigoroso, com

frases curtas, incisivas, incorpora o diálogo rápido e direto, uma linguagem que não

era corrente na dramaturgia da época. A fala curta, incisiva, colhida da realidade

trazia para o teatro a espontaneidade das ruas, derrotando o gosto filosofante e de

conceitos, próprios da construção verbal do teatro tradicional. Ao escrever sobre o

teatro de Nelson Rodrigues, Pompeu de Souza salienta que a autenticidade do

dramaturgo reside na captacão da fala comum, que lhe permitiu: “Compor obras tão

altas, no mais nobre dos gêneros teatrais - a tragédia - com as formas lingüísticas,

muitas vezes, as mais plebéias e, contudo, de uma beleza não raro incomparável”.(

1992, p. 65).

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Nelson Rodrigues passou a ser admirado por apresentar na sua linguagem

sutilezas de ironia lançadas contra uma sociedade hipócrita e corrupta, sofredora e

pobre, com toda a gama de miséria morais.

A ruptura com a tradição teatral e suas inovações levaram Nelson Rodrigues a

merecer que seus escritos fossem adaptados para a televisão brasileira.

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III - NELSON RODRIGUES E A TELEVISÃO BRASILEIRA

1. A Televisão Brasileira

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE (2001),

dos 5.506 municípios brasileiros, 93% não possuem sala de cinema, 85% não têm

museus e teatros e 25% não possuem nem bibliotecas. Por outro lado, o Brasil conta

com canais de televisão que cobrem cerca de 98% do território nacional e

aproximadamente 145 milhões de telespectadores. Sendo assim, não é difícil

presumir que a televisão reina absoluta no acesso à cultura, lazer e informação de

grande parte da população brasileira.

Em primeiro lugar, porque a televisão atinge 145 milhões de brasileiros,

muitos dos quais têm nela a sua única fonte de informação, lazer e cultura, atuando

no processo de formação desses indivíduos na medida em que os informa, seja

quando os diverte ou não. Em segundo, observamos a televisão como uma vitrine na

qual a sociedade pode se ver, assim como o cinema, a literatura, o teatro ou a arte de

um modo geral. Neste sentido, pode ser importante nos determos um pouco mais

neste ponto, que considera haver uma relação direta entre a literatura, o cinema, a

arte em geral, os programas televisivos e a sociedade.

Assim como a literatura pode levar-nos a pensar sobre a sociedade, a

televisão também tem essa capacidade. Podemos afirmar que ela traz elementos para

pensar as relações sociais, pois através dela vêem-se representados traços que as

caracterizam, como a cordialidade, o jeitinho brasileiro, a valorização do corpo, as

paixões pelo carnaval e pelo futebol, entre outros aspectos, que ressaltam a inserção

de seus produtores numa teia de relações sociais que caracterizam o país, e a

internalização de valores que acabam aparecendo na elaboração dos programas.

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O sociólogo Bourdieu (1996, 1997) defende o estudo das relações entre a

produção cultural e a sociedade, não somente na obra As regras da Arte, como

também em Sobre a televisão. No campo sociológico os programas televisivos

podem ser considerados produto cultural, só que com especificidades próprias, entre

as quais destacamos a possibilidade de um maior alcance de público. Observamos,

com essas considerações de Bourdieu, que existe relação intrínseca entre produção,

veículo de comunicação, produto e público consumidor.

1.1. A visão rodrigueana sobre a TV brasileira

Para Nelson Rodrigues, a unanimidade contra a TV não era burra – era irreal

e hipócrita. Certas coisas, segundo ele, um grã-fino só ousaria revelar num terreno

baldio, à luz dos archotes, na presença solitária de uma cabra vadia. Outras não diria

jamais, mesmo em solo seguro. Por exemplo: o grã-fino que assistia as novelas O

Direito de nascer, Sheik de Agadir, Os Irmãos Coragem, que não perdia um

programa de Dercy Gonçalves, do Chacrinha, do Raul Longras, só admitiria que

gostava de televisão ao médium, depois de morto (Cf. Rodrigues,1996, p.234). A

condição social de “pequeno burguês” – “sem nenhum laivo de grã-finismo” ou

“pose de intelectual” (Nelson gostava de apresentar-se como um intuitivo) – lhe

dava, em contrapartida, “descaro bastante” para confessar de peito aberto não só que

assistia à televisão brasileira, como gostava dela, com todo o seu tão característico e

discutido mau gosto (Rodrigues, 1996, p. 225).

Na década de 70, os leitores de O Globo se espantaram, decerto, ao ver a

firmeza com que Nelson Rodrigues interpelou o líder da cruzada por uma televisão

mais virtuosa – o ministro da Comunicação Hygino Corsetti ventilara a hipótese de

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cassar a concessão das emissoras que insistissem com o “sensacionalismo” e a

“baixaria”. O cronista classificou de “uma selva de equívocos” o pronunciamento de

sua excelência sobre a programação das emissoras brasileiras. Como de hábito,

Nelson abusou do sarcasmo para desacreditar seu adversário: a verdade inapelável e

fatal – insinuou – era que o “Sr. ministro” só pudera iluminar a todos com uma

“minuciosa análise reflexiva sobre as nossas TVS (sic)”, porque, no fundo, fazia

parte dos oito milhões de brasileiros que passavam os dias e as noites diante da

telinha; era, entre quatro paredes, um telespectador atento, fanático, “dos que vêem

novela, e tanto as vê que acha algumas de uma extensão fatigante” (Cf. Rodrigues,

1996, p.232).

Mas, o que queriam, afinal, os aguçados opositores da televisão brasileira?

questionava Nelson Rodrigues. Uma TV anti-público, igualzinha à Rádio MEC,

solitária, despovoada, abandonada à própria sorte? “Se há uma emissora que precisa

de uma média de Aristóteles, Goethe, Marx, é exatamente essa”, ponderou o cronista.

“Mas, para isso, para que cheguemos a um nível tão desejável, temos que esperar uns

três milhões de anos. Daí para mais. Enquanto o mundo esteja nivelado por baixo,

seremos fervorosos telespectadores.” (Rodrigues, 1996, 233).

O nosso autor costumava afirmar que nossa televisão era o espelho de nosso

povo:

A pior televisão do mundo é a inglesa com aquela maniacultural. A TV tem que ser feita para as massas e as massas sãoburras e têm mau gosto e não têm nada que ver com a grande arte,com a grande música, com a grande pintura. Se ela é feita para asmassas tem que ter o nível das massas. Evidentemente, você nãovai investir bilhões numa TV para que o Proust diga: ‘Está ótimo.Tem bom gosto’.7 (Rodrigues, 1996, p.234)

7 (“Eu sou um ex-covarde”, entrevista, Veja, 04/06/1969, 5; consultar, também, Rodrigues, s/d, p.119;Rodrigues, [13/9/1971] 1996, p.233); “De rainhas loucas, bem-amados, irmãos coragem, etc, etc.”,Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p. 20).

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Aos “radicais” que, seguindo o ministro Hygino Corsetti, repetiam a ladainha

“Precisamos mudar a televisão”, Nelson rebatia que mais correto e inteligente seria

“mudar o povo”: “Em vez de fazer severas restrições à TV, sua excelência devia

endereçá-las ao povo. E, então, chegaríamos a essa contingência realmente

constrangedora: substituir um povo por outro povo.” (Cf. Rodrigues, 1996, p.234).

Quando já fazia parte da história da televisão brasileira, Nelson Rodrigues se

manifestou, de forma enfática, em sua defesa. Das declarações anteriores,

depreendemos que ele estava solidamente convicto de que o veículo que conhecia tão

bem era – e deveria ser – um reflexo do gosto popular, das preferências da massa

ignara. Ao contrário do ministro Hygino Corsetti e de tantas outras autoridades

governamentais e intelectuais, ele não via problema algum, inclusive, em utilizar o

Ibope como sismógrafo dos anseios da audiência: “(...) Essas pesquisas são

imprescindíveis. Eu diria mesmo que o pior cego é o que não vê a utilidade de tais

pesquisas. (Foi, naturalmente, um lapso de sua excelência)” (Rodrigues, 1996,

p.233).

Quando o assunto era televisão, Nelson se indispunha, pois, com gente de

todas as divisões ideológicas. Sua perspectiva crítica diferia das posições tradicionais

a respeito do papel e da influência da mídia moderna. Em linhas gerais, enquanto a

direita credita às falhas morais e ao congenial (mau) gosto do vulgo o baixo nível da

cultura de massa (enxergando na mesma, não raro, um perigo às estruturas

tradicionais de autoridade, um ultraje à família, um estímulo à irresponsabilidade no

lar e no trabalho), a esquerda atribui esse baixo nível às duras condições de vida e

trabalho na sociedade capitalista e ao empenho da elite para domesticar uma

população potencialmente insubmissa, explorando seu desejo natural por recreação,

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com o intuito de mantê-la indiferente aos destinos da sociedade, preservando, assim,

o status quo.

Nelson Rodrigues concordava que a televisão brasileira era de um mau gosto

profundo, reflexo, por sua vez, do mau gosto da multidão insensível ou refratária à

Cultura; não via, porém, nenhum mal nisso – seja do ponto de vista moral, político

ou estético. Ele reagiu, com veemência, por exemplo, contra a “ditadura do Juizado

de Menores” que escorraçara as novelas do horário nobre para as onze horas da noite.

Do ponto de vista psicológico – argumentou – era uma asneira imaginar que os

folhetins pudessem produzir “uma geração de perigosíssimos gangsters juvenis”.

Pelo contrário: o efeito catártico lhes conferia o salutar papel de higienizador mental.

Do ponto de vista estético, ironizou que chegava a ser “sublime” a idéia de impor o

bom gosto “a pauladas”. O pior é que os “assassinos da telenovela” estavam apenas

começando a agir; como uma coisa puxa a outra, não tardaria para que as marchas e

os sambas fossem igualmente expulsos do horário nobre (Cf. Rodrigues, 1996, p.47-

48).

Do ponto de vista político, Nelson atribuía à dificuldade de respeitar e

compreender o gosto popular (Chacrinha, escola de samba, Fla-Flu, sexo) uma das

principais razões do fracasso das esquerdas no Brasil, mais solitárias, mais insuladas

do que um Robinson Crusoé sem radinho de pilha (Cf. Rodrigues, 1993, p. 120).

Leitor de Ponson du Terrail, Eugène Sue, Michel Zevaco, Xavier de

Montepin, Alexandre Dumas pai; autor de Meu destino é pecar, Escravas do amor,

entre outros folhetins assinados com o pseudônimo de Suzana Flag ou Myrna,

Nelson Rodrigues não manifestava grande entusiasmo pela modernização da

telenovela empreendida (a contragosto ou não) por Dias Gomes e outros autores com

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ambições revolucionárias no plano político e/ou estético. No seu entender, a televisão

(como, de resto, toda a indústria cultural) era sinônimo de diversão, passatempo,

fortes emoções e é só. A missão da telenovela não era expor as chagas do país,

conscientizar politicamente as massas, mas entreter a santa e abnegada audiência.

Novela progressista era, na sua avaliação, um oxímoro – tratava-se de um gênero de

índole conservadora, que funcionava como válvula de escape para a sensaboria

cotidiana e para as tensões sociais: “A novela é sobretudo uma fuga. Como a

realidade é muito insatisfatória, a novela representa o sonho cotidiano para muita

gente. É um repouso.” (“De rainhas loucas, bem-amados, irmãos coragem, etc, etc”,

Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p.20). Tampouco cabia à TV mediar a alta cultura

para o grande público: a intenção de importar o modelo cultural europeu

(notabilizado pela televisão pública britânica) não era apenas precipitada;

representava uma traição a certo instinto de nacionalidade expresso pelas emissoras

brasileiras – com suas vulgaridades sublimes, com sua lealdade a formas narrativas e

espetaculares de comprovado apelo popular, no correr dos séculos, sobretudo na

América Latina (“Telenovela é uma epidemia nacional”, Veja, 07/05/1969, p.29; “Eu

sou um ex-covarde”, Veja, 04/06/1969, 5; “De rainhas loucas, bem-amados, irmãos

coragem, etc, etc.”, Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, p. 20).

Atuando como advogado de Chacrinha, no caso do “Seu Sete da Lira”, o

nosso autor repisou a denúncia das imposturas intelectuais que norteavam a crítica

televisiva: “Aristóteles havia de achar uma graça infinita no nosso Abelardo

Barbosa. Claro, porque ele não precisa fingir inteligência.” (Rodrigues, 1996,

p.235). Nelson Rodrigues não foi o primeiro nem o único a conduzir Chacrinha ao

trono. Como é de conhecimento geral, “o velho palhaço” foi eleito um dos gurus do

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tropicalismo, movimento artístico e comportamental que eclodiu no eixo Rio/São

Paulo em 1967, capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Antes deles, outro

intelectual da velha guarda, como Nelson, não escondera sua admiração pelo

comunicador. Em 02 de abril de 1966, a Manchete promoveu, dentro da série

Diálogos Impossíveis, o encontro entre Chacrinha e Rubem Braga – “homens de

mundos aparentemente diferentes”, mas “escravos ambos do povo”. A conversação,

a princípio difícil de se estabelecer, acabou esticando-se por horas a fio na cobertura

do “sabiá da crônica”, em Ipanema. Uma conversa longa e franca a respeito de temas

variados, mas em que prevaleceu a rasgação-de-seda e a troca de idéias acerca da

arte de cativar o gosto popular. (Cf. Rodrigues, 1996, p.236).

Será mera coincidência que os elogios à Chacrinha tenham partido de homens

de letras que se notabilizaram por sua atuação em gêneros não auráticos, cuja

expansão está ligada ao aparecimento dos meios de comunicação de massa? Decerto

que não. “Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e

ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e

pela manhã a desmancha, e vai”, meditou Rubem Braga, a respeito de seu ofício

([1951] 1978a, p.153). A consciência da própria efemeridade, a humildade de abrir

as portas do isolamento criativo para atender os anseios explícitos ou tácitos do

leitor, seu freguês, positivamente deixavam o cronista mais sensível, em alguma

medida, à preocupação e à habilidade dos profissionais de TV para afinar-se com as

flutuações do Ibope.

No caso específico de Braga, os pronunciamentos favoráveis à TV não eram

apenas fruto do entendimento e da solidariedade. Segundo o biógrafo José Castello

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(1996, p.152-154), o cronista era um daqueles telespectadores fanáticos a que se

referia Nelson Rodrigues.

Acostumado aos holofotes, Nelson Rodrigues também visitou Chacrinha, na

TV Globo. Aceitou o prêmio de maior cronista esportivo de jornal, com o ar de quem

recebe um Nobel. Ficou pasmo com a multidão no estúdio: duas mil pessoas num

espaço que daria para quinhentas. E como Chacrinha era amado, ferozmente amado!

E isso levava Nelson a lamentar: “Nunca ninguém me deu, na vida real, tamanha

sensação de onipotência. Se mandasse o auditório atear fogo às vestes como uma

namorada suburbana (ou um monge budista), seria um fogaréu unânime.”

(Rodrigues, 1993, p.105). Alheias ao clamor nacional contra o milionário ordenado

do apresentador, as macacas-de-auditório sabiam reconhecer nele o “artista

maravilhoso”, “formidável”, “um gênio” no seu métier.

Vale lembrar que Nelson Rodrigues nem sempre era tão positivo na defesa

das predileções e do julgamento da audiência. Todo o discurso a favor do relativismo

cultural – “há uns trezentos bons gostos” (Rodrigues 1996, p.235) – e da necessidade

de auscultar e acatar o gosto do público caía por terra quando o assunto era o Teatro.

Este, no seu ponto de vista, permanecia indigno de ostentar a condição de grande

arte justamente por não pressupor uma concepção imaculada e uma fruição solitária,

reverente, análoga à do romance e à do soneto, tendo de submeter-se aos caprichos

da platéia (Cf.Rodrigues, 1993, p.156-157)8 Amargurado, o dramaturgo sonhava com

uma representação utópica, para cadeiras vazias: “Só seria autor, atriz ou ator,

aquele que tivesse disposto a trabalhar para ninguém. (...) Comecei a achar que

também as igrejas vazias são as mais belas. O que comprometia e debilitava a fé

eram os fiéis.” (Rodrigues, 1993, p.157).

8 Ver, também, Rodrigues [16/05/1968] 1993, p.247; Rodrigues, [18/03/1971] 1995, p.190).

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Não há dúvida de que a hostilidade de Nelson Rodrigues contra as “duzentas

senhoras gordas comedoras de pipocas” da platéia teatral era, em larga medida, uma

resposta à recepção escandalizada ou pouca atenciosa às suas peças. Por ironia do

destino, no exato instante em que ele redigia suas crônicas, memórias e confissões, a

televisão brasileira incrementava as mudanças que visavam a atender nem tanto o

“bom-gosto-sem-tostão-dos-intelectuais” (Rodrigues, 1996, p.235), as plataformas

políticas mais ambiciosas dos artistas de esquerda, mas o bom-gosto do público de

classe média freqüentador displicente e desconceituado de teatro e consumidor (não

só) de pipocas (constituindo-se, por conseqüência, num agente importantíssimo para

a efetivação do projeto desenvolvimentista do governo militar e das emissoras de

TV). Em outras palavras: após muito alvoroço, muita palpitação, prevaleceu, em

detrimento dos discursos mais extremados que apregoavam a TV progressista ou a

TV cultural sob a interferência direta do Estado, a saída honrosa e conciliatória

daqueles que propugnavam por uma TV comercial, voltada para a informação e para

o entretenimento mais prudente e pudico – sem baixarias, cafajestadas, histerias e

outras concessões à gente sem classe.

1.2. Vestido de Noiva um clássico da televisão

No início dos anos 70, a TV Cultura flertava com o teleteatro e iniciou em

1974, o seu Teatro 2, com a estimulante presença de diretores como Fernando Faro,

Antônio Abujamra, Cassiano Gabus Mendes e Antunes Filho. A idéia inicial era a de

realizarem adaptações de textos literários para a TV e estava fundamentada em

orientação de cunho cultural, que de resto, já era a orientação geral da TV Educativa

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. Pensava-se em levar ao conhecimento do público obras culturalmente importantes

graças ao seu valor artístico, e sobretudo pelo fato de arrancar do esquecimento

textos fundamentais do teatro brasileiro e levá-los a público numeroso.

Dentre esses tesouros gravados em videoteipe, que em 1977 somavam

aproximadamente oitenta telepeças, poucas coisas restaram, nos arquivos da TV

Cultura e tornaram-se inviáveis para a retransmissão devido às limitações técnicas. O

único teleteatro possível foi, felizmente, o Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues,

adaptado e dirigido por Antunes Filho, e que foi ao ar no dia 28 de dezembro de

1974, para comemorar o aniversário da encenação revolucionária da peça que alterou

radicalmente todos os conceitos e formas do teatro brasileiro. Assim, Antunes Filho

conseguiu realizar o momento mais sério e criativo que a televisão já teve, tornando

Vestido de Noiva uma espécie de clássico.

As possibilidades dos textos dramáticos adaptados para a televisão são

múltiplas. desde o texto de partida ao veículo de chegada , ou seja, a tradução

intersemiótica de uma obra pode gerar um re-criador, um teledramaturgo que

ofereça, à grande audiência de TV, uma oportunidade única de ver uma grande obra

dramática . O teatro, até então, restrito a uma platéia reduzida, seria ampliado para

um público numeroso através do teleteatro. O teatro representa, na televisão, um

papel que não deve ser negligenciado, pois todo um público só verá o teatro sob a

forma de uma retransmissão, de uma gravação ou de um teleteatro.

Ao reportarmo-nos à televisão feita nos anos 70, acreditamos estar diante de

uma experiência histórica de teleteatro. Antunes Filho fez para a televisão brasileira

uma nova leitura da obra rodrigueana e, com ela, atingiu momentos antológicos na

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carreira dos nossos teleteatros, conseguindo realizar um dos momentos mais sérios e

criativos que a ficção já teve no Brasil.

Experiências similares chegam, com freqüência, à nossa pequena tela. É o

caso, por exemplo, da série Contos da Meia Noite, exibida desde março de 2004 pela

TV Cultura. Trata-se da leitura de obras de autores da literatura nacional a partir de

padrões cenográficos e interpretações inusitadas. Esses programas, com duração

curta, são experiências que provam a função respeitável esperada da televisão

brasileira. São modestas contribuições no sentido de se introduzir o público leigo no

campo da produção literária, a qual, se observarmos bem, vem resistindo ao longo

dessas seis décadas da implantação de emissoras de televisão no Brasil, desde os

remotos teleteatros dos anos 50 até às minisséries reproduzidas a partir de obras de

autores nacionais.

A qualidade em televisão passa, sem dúvida, pela difusão ampla de obras

universais que vêm sendo transmitidas desde os tempos das suntuosas e caras

“adaptações” de clássicos da literatura ou do teatro.

2. Um breve histórico das minisséries globais

Para um maior entendimento sobre a possibilidade de haver um sistema de

relações entre uma cultura erudita e outra de massa no conjunto das produções

realizadas pela emissora de televisão, tornou-se importante o conhecimento a

respeito da produção de todas as minisséries produzidas pela TV Globo que foram

inspiradas em textos literários feitos até então.

De acordo com os dados coletados através de pesquisas, foi em meados da

década de 80 que a Rede Globo inaugurou esse novo formato de programa – as

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minisséries. Semelhante às novelas, só que mais curtas, geralmente suas produções

demandam custos muito altos. Elas são exibidas depois das 22 horas, e é nesse

horário que a emissora investe em novas tecnologias, como por exemplo, o uso da

filmagem em película (recurso de filmagem cinematográfica). Ao todo, já foram

produzidas oitenta e sete minisséries.

Vale ressaltar que das minisséries produzidas de 1984 até janeiro de 2005,

trinta e três foram feitas tendo por base textos literários, a maioria de autores do

século XX. Importa observar que entre os autores mais adaptados encontram-se

alguns considerados como clássicos da nossa literatura contemporânea.

Jorge Amado, com o qual a Rede Globo mais trabalhou, teve quatro obras

adaptadas: Tenda dos Milagres, produzida em 1985; Tereza Batista, feito pela

emissora em 1990; Dona Flor e seus dois maridos, exibida em 1998 e Pastores da

Noite em 2002. O segundo escritor mais adaptado foi Nelson Rodrigues, com três

trabalhos: Meu destino é pecar, que foi a segunda minissérie adaptada pelo canal de

televisão, em 1984; Engraçadinha, feita em 1995 e A Vida Como Ela É..., em 1996,

com quarenta episódios exibidos no programa dominical Fantástico. Os outros dois

autores nacionais mais de uma vez adaptados são: Érico Veríssimo com O Tempo e o

Vento em 1985 e Incidente em Antares no ano de 1994 e Dias Gomes, com O

Pagador de Promessas em 1988, que anteriormente havia sido adaptado para o

cinema, e Decadência, exibida em 1995.

Com exceção do argentino Mempo Giardinelli, que teve a obra Luna Caliente

resgatada e transformada em minissérie em dezembro de 1999, e de Eça de Queirós,

autor português duas vezes adaptado – primeiro, com O Primo Basílio em 1988, e

em 2001 com Os Maias - as outras vinte e oito produções foram baseadas em autores

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brasileiros. De certa forma é possível perceber que há uma preferência por títulos

nacionais e autores conhecidos do grande público. Além deste fato, dos vinte e um

autores adaptados, dez são imortais da Academia Brasileira de Letras.

Depois de levantar esses dados a respeito das minisséries, percebemos que a

presença do gênero melodramático nessa indústria de contar histórias, na qual se

especializou a Rede Globo de Televisão, sempre foi significativamente enfatizado.

No entanto, parece evidente que, diferente das telenovelas que abordam

preferencialmente contextos muito próximos do cotidiano, as minisséries são a

especialização de uma nova forma de recontar a história do nosso país. Ao se

apropriar de autores que, de certa forma, retratam a realidade nacional através de

seus livros, a emissora vem ao longo desses vinte e um anos proporcionando ao

grande público relembrar alguns momentos históricos da nossa sociedade. Houve,

desde o início, uma tendência em reproduzir nas narrativas um clima capaz de

mobilizar os telespectadores, criando uma atmosfera de realismo convincente, que de

alguma forma se utiliza de dramas individuais para retratar os contextos nacionais.

Outro aspecto a ser considerado é que, mesmo em casos de fracasso de

audiência, como ocorreu com a minissérie Os Maias, problemas de produção não

impediram a grande vendagem de alguns livros adaptados. Reconhecemos que a

dramaturgia televisiva inspirada na literatura tem o mérito de movimentar as

livrarias. No mês em que a minissérie Agosto foi exibida, no ano de 1993, o livro de

Rubem Fonseca teve mais de trinta mil exemplares vendidos. No caso do romance

Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, lançado em 1992, foram vendidos

cinco mil exemplares até maio de 94, quando a minissérie estreou. Durante o

programa, a vendagem dobrou. O sucesso da minissérie A Muralha impulsionou a

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venda dos livros, mais de 18 mil exemplares do romance de Dinah Silveira, que há

muito estava fora de catálogo, foram comprados no mês de janeiro em 2000. Outro

exemplo desta influência marcante é que as produções da Rede Globo exercem sobre

o mercado editorial está relacionado ao sucesso repentino em torno do livro A Casa

das Sete Mulheres, da autora Letícia Wierzchowski. Lançado em abril de 2002,

tinham sido vendidos, até a estréia da minissérie, treze mil exemplares. Após chegar

à TV, ultrapassaram os trinta mil em três semanas.

3. A minissérie a Vida Como Ela É...: O Anjo

Nelson Rodrigues sempre provocou controvérsias e

polêmicas com suas histórias obsessivas e fortes, de estilo

contundente. Os episódios de Vida Como Ela É... foram

baseados nos contos que Nelson publicou por anos na

imprensa carioca. São adaptações assinadas pelo roteirista

Euclydes Marinho e pelo diretor Daniel Filho. Vinheta de abertura da minissérie

A atmosfera dos anos 50, típica das histórias de Nelson, está presente na minissérie,

que foi registrada em película cinematográfica, apresentada no período de maio a

dezembro de 1996 pela TV Globo. Como em um grupo de teatro de repertório,

alguns atores e atrizes participam da maioria das histórias. Foram adaptados 40

contos (O Monstro, A Divina Comédia, Quem Morre Descansa, O Grande Viúvo, O

Gagá, O Homem Fiel, A Grande Pequena, O Decote, O Casal de Três, O Anjo -cujo

título original é Diabólica e também foi adaptada posteriormente para o cinema,

Gastrite, O Bonitão, Uma Senhora Honesta, Covardia, O Único Beijo, Fruto do

Amor, Marido Fiel, Viúva Alegre, Enciumada, Cheque de Amor, O Pediatra,

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Delicado, Vontade de Amar, A Esbofeteada, A Futura Sogra, O Homem Que Não

Conhecia o Amor, Fome de Beijos, Sem Caráter, O Sacrilégio, Pai Por Dinheiro,

Terezinha, A Curiosa, Amor Mercenário, A Desprezada, Boa Menina, Em Casa e na

Rua, A Dama do Lotação - adaptada também para o cinema em 1978, O Padrinho,

Pacto de Amor e A Grande Mulher), transformados em quarenta episódios, de doze

minutos cada, exibidos no programa de variedades Fantástico que vai ao ar

semanalmente. Vale ressaltar que esta forma de exibição de uma minissérie também

foi inovadora.

Analisando a adaptação de A Vida Como Ela É..., notamos que os contos

contêm os elementos centrais que a ficção televisional almeja, como narrativas

intrincadas de acontecimentos, o melodrama. Já em relação à adaptação de obras

literárias para o meio televisivo, Hélio Guimarães (2003) propõe que este é um

espaço de grande debate e complexidade. A adaptação envolve diversos elementos

como co-autoria, fidedignidade, identificação entre público e produto televisivo,

atualização de obras etc.

Após abordarmos uma breve descrição da minissérie A Vida Como Ela É...

baseadas em textos literários adaptados para a televisão, passaremos a analisar um

caso concreto, o conto Diabólica que na TV recebeu o título de O Anjo.

Em nome de uma adaptação fidedigna, este episódio da minissérie foi

praticamente o conto ipsis literis, mas não conseguiu transferir a “atmosfera do texto

rodrigueano” para a narrativa televisiva. As personagens são dotadas de uma “certa

leveza”, incomum, uma vez que, Nelson Rodrigues gostava de abusar de suas

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características tanto psicológicas como físicas. Observamos também que os recursos

que poderiam enriquecer a narrativa foram pouco explorados, tais como, vários

planos de cena, a exploração do inconsciente das personagens, flashback entre

outros.

Cenas da minissérie: Geraldo e Dagmar na noite de noivado, ao lado a irmã Alicinha.

Entretanto, ressaltamos que os episódios da minissérie A Vida Como Ela É...,

inseridos no programa Fantástico, representam “o momento de descanso” para o

telespectador, isto é, funcionam na TV como a crônica funciona no jornal. Na

televisão, a narrativa de Nelson Rodrigues passa a ser crônica, enquanto no cinema

vai ser conto. O contexto do filme é ele mesmo, por isso o trágico fica mais evidente.

Talvez seja essa a razão porque na televisão ocorra maior superficialidade.

Segundo Hélio Guimarães(2003), a busca quase obsessiva pela adaptação

fidedigna da obra – que deveria ser apenas “transportada” para a televisão – esquece

uma dimensão constitutiva da própria experiência literária, que é a existência de

múltiplas leituras possíveis, para além das figuras platônicas de uma “essência” ou de

um sentido verdadeiro do texto. Logo, as adaptações de obras da literatura para a

televisão que se prendem por demasia à suposta fidelidade ao texto escrito – como

uma espécie de reverência ao sagrado cultural – correm sempre o risco de

incompreensões e inadequações em virtude da transposição mecânica de um veículo

a outro, realizada sem a devida atenção aos seus padrões internos.

A adaptação do conto Diabólica9, realizada por Euclydes Marinho, é uma

interpretação possível dentre tantas outras, além do que a obra literária quando passa

9 Diabólica é o título original do conto escrito por Nelson Rodrigues, porém na adaptação para a TVrecebeu o título de O Anjo.

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para o meio televisivo torna-se um novo produto cultural. Como todo produto

cultural, essa nova obra – veiculada em um meio de comunicação de massa –

também apresenta uma pluralidade de interpretações, haja vista a heterogeneidade da

recepção, podendo ser, portanto, tão crítica, bela e criativa quanto a obra que a

originou.

O argumento de Guimarães com relação às especificidades do meio

televisivo é procedente e relevante. Nesse sentido, faz-se necessário explicitar quais

são estas especificidades e o que seria o “padrão televisivo”.de funcionamento do

campo televisivo e seus efeitos. A lógica de produção televisiva, promove, de acordo

com o autor, uma grande pressão pelo que é extraordinário, uma homogeneização da

produção e uma falta de autonomia para seus produtores. Outro efeito ocasionado

pelo índice de audiência é a pressão pela urgência, pela rapidez, pela velocidade.

Esta pressão pelo comercial impõe-se também em outros campos por influência da

televisão, principalmente no campo artístico pela lista de best-sellers.

Ainda sobre o padrão televisivo e sua lógica de funcionamento, Sodré e

Paiva (2002) explicam que a televisão massiva caracteriza-se, desde o início, por um

ethos de praça pública onde o grotesco é a categoria estética dominante, responsável

pelo formato popularesco. O grotesco associa-se ao disforme, ao desvio da norma em

relação a costumes ou convenções culturais. Esta categoria possui relação estreita

com o que Bourdieu chama de extra-ordinário e provoca como reações típicas o riso

cruel, o horror, o espanto e a repulsa. Nesse sentido, podemos afirmar que O Anjo,

assim como todos os outros contos que compõem a minissérie, são perfeitos,

adequados para a televisão.

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Segundo Hans Robert Jauss (1993), toda modalidade cultural desenvolve

um horizonte de expectativas para seus receptores, formada a partir de todo um

conjunto de padrões que servem como referência para a recusa ou a absorção de uma

nova obra. A absorção se dá a partir da adequação da nova obra com o horizonte de

expectativas do receptor. Sendo assim, é possível que o público realmente tenha se

identificado com a produção estética, a narrativa, a linguagem de O Anjo e que

Nelson Rodrigues tenha se tornado uma unanimidade nas noites de domingo de1996.

Cena da minissérie: Alicinha seduzindo Geraldo Cena da minissérie: Geraldo estrangulando.Alicinha.

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IV – DA TELEVISÃO AO CINEMA: DE ANJO A DIABÓLICA

1- O teatro rodrigueano: inspiração no cinema

Mais de uma vez Nelson afirmou que distinguiam em sua obra as “as ações

simultâneas em tempos diferentes”, técnica lançada em Vestido de Noiva quando

utiliza os planos da realidade, da memória e da alucinação. Essa flexibilidade de

linguagem é atribuída à influência do cinema :

O realismo cinematográfico, sobretudo depois que se passou a falarna tela, absorveu o diálogo espontâneo, natural, cotidiano semprejuízo dos avanços dos cortes, das elipses dos flashbacks. Ocinema tornou-se admirável escola de uma novas linguagemficcional. Por que não incorpora-la ao palco? Acredito que agrande liberdade da técnica dramatúrgica de Nelson tenha nascidona observação de espectador cinematográfico . Se a Sétima Artenão teve pudor de assenhorar-se de procedimentos teatrais, arecíproca não mereceria condenação. (MAGALDI, 1992. p.43)

Podemos admitir que Nelson Rodrigues, estimulado pela linguagem do

cinema, modificou a composição tradicional da peça que observava a apresentação, o

desenvolvimento e o desfecho do tema, em escala cronológica. Retomando o

exemplo de Vestido de Noiva, uma mulher morta assiste ao próprio velório e diz do

próprio cadáver: “Gente morta como fica”. Apesar de morta em 1905, contracena

com uma noiva de 1943, Alaíde, cuja desagregação da mente permite tal disparate.

A dramaturgia rodrigueana tornou o palco mais flexível, menos

sobrecarregado. Nelson Rodrigues, na sua inclinação natural para a vanguarda, deu o

ponto de partida com o Vestido de Noiva: um plano da realidade preenchido por

poucas e rápidas cenas que vão do atropelamento à morte de Alaíde, passando pelos

ruídos próprios do ambiente como a sirene da ambulância, a notícia transmitida na

redação de um jornal, a sala em que os médicos operam a vítima.Simultaneamente, o

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espectador começa a assistir às cenas que introduzem os planos da memória e

alucinação. Os diálogos tornam-se projeções da mente da protagonista em coma. O

autor trabalha com cenas curtas ligadas como por assim dizer, as fades in ou fades

out (clareamento/ escurecimento da imagem que indica o início ou o término de uma

cena ou seqüência) desligando as luzes que iluminam o palco entre uma cena e outra.

Trata-se, portanto, de um dramaturgo de índole cinematográfica, criando situações

que já contêm em si, seqüências de sugestões de roteiros.

Outro elemento da linguagem cinematográfica que vemos no teatro de Nelson

Rodrigues é a sua pontuação, ou seja, a passagem instantânea de um plano a outro

que constitui o corte que quebra a narrativa ou a passagem de um enquadramento a

outro que , no seu teatro, assemelha-se à técnica cinematográfica . (Exemplo pode ser

visto no texto da peça Vestido de Noiva, In: Teatro Completo de Nelson Rodrigues -

peças psicológicas. Nova Fronteira, 1981 p. 157,158). O fechamento (fade out) que é

o escurecimento da tomada até o desaparecimento total da imagem e a abertura (fade

in) procedimento contrário fundam-se, isto é, há combinação dos dois elementos.

Enquanto um desaparece, o outro toma simultaneamente seu lugar. O fechamento

corresponde a uma espécie de ponto final, a abertura equivale a um novo parágrafo e

a fusão corresponde às reticências.

Por fim, diríamos também que a pontuação teatral de Nelson Rodrigues dada

a diversidade de cenas curtas , mudanças de planos, ritmos e seqüências, assemelha-

se à linguagem cinematográfica.

Os recursos técnicos tomados do cinema estão presentes em quase toda a sua

obra. Nelson joga com os planos, fusões e ritmo das seqüências com a segurança de

um verdadeiro cineasta, como diria Pompeu de Souza .

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O biógrafo de Nelson Rodrigues, Ruy Castro acredita que o autor deveria ter

assistido a um filme do final do Expressionismo Alemão11. Trata-se de Varieté, que

passou no Rio em 1926, e atraiu um público numeroso, no Centro e na Tijuca. O

filme tinha todos os recursos do gênero alemão como o claro-escuro, a câmera olho ,

a cenografia muito abstrata, a atmosfera de alucinação e a morbidez. Nelson citaria

Varieté em entrevista a José Lino Grunewald, como um dos seus filmes favoritos que

assistira aos catorze anos.

No campo estético, o teatro rodrigueano tem toda a influência do

Expressionismo onde seu gigantismo conduz, freqüentemente, à disformidade, à falta

de medida, aos procedimentos paroxistas. A deformação da realidade superficial,

visível a olho nu, em proveito do descortinamento de uma realidade mais profunda,

interior, é vista através de uma lente que a transforma, amplia e a deforma. No

campo da concepção criadora a arte de Nelson Rodrigues é quase integralmente

instintiva e adota recursos e propostas não só cinematográficos mas incorpora todas

as artes que auxiliam na composição da “ilusão teatral”.

2. As adaptações Cinematográficas Rodrigueanas

O filme Traição(1997) marcou a volta de Nelson Rodrigues aos cinemas

depois de quinze anos de ausência - o último longa-metragem baseado em sua obra

foi Perdoa-me por me traíres, de Braz Chediak em 1983. Pode-se dizer que um dos

aspectos revolucionários da dramaturgia de Nelson Rodrigues foi ter rompido com os

paradigmas da linguagem teatral de seu tempo, empregando, em peças como Vestido

11O Expressionismo Alemão é uma das mais importantes vertentes das vanguardas européias, no iníciodo século XX, sendo marcado pela valorização da subjetividade na produção artística. Em detrimento de outrosmovimentos mais regidos pelo racionalismo, o expressionismo buscava retratar estados primitivos. Fonte: SHULAMITH, Berh. Expressionismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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de Noiva e Anjo Negro, elementos de linguagem que tinham um íntimo parentesco

com o cinema, como os flashbacks e outros recursos visuais e sonoros, que

produziram uma atmosfera fantástica e onírica até então inédita nos palcos, como

vimos anteriormente. Não é de se estranhar, portanto, que sua obra tenha cativado

diversos cineastas brasileiros ao longo dos anos. Os filmes de longa-metragem

baseados na obra de Nelson Rodrigues em ordem cronológica são: 1952 - O meu

destino é pecar - direção de Manuel Peluffo, 1962 - Boca de Ouro - direção Nelson

Pereira dos Santos, 1963 - Bonitinha mas Ordinária – direção Bill Davis,

pseudônimo de J.P. de Carvalho, 1964 - Asfalto Selvagem direção J.B. Tanko, 1965 -

O beijo – direção Flávio Tambellini e a A falecida – direção Leon Hirszman, 1966 -

Engraçadinha depois dos 30 direção J.B. Tanko, 1973 - Toda nudez será castigada

direção Arnaldo Jabor, 1975 - O casamento- direção Arnaldo Jabor, 1978 -A dama

do lotação direção Neville de Almeida, 1980 - Os sete gatinhos direção Neville de

Almeida, O beijo no asfalto direção Bruno Barreto e Bonitinha mas ordinária ou

Otto Lara Resende, de Braz Chediak, 1981 - Álbum de família - Uma história

devassa direção Braz Chediak e Engraçadinha com direção de Haroldo Marinho,

1983 - Perdoa-me por me traíres - direção Braz Chediak.

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Cartaz: Boca de Ouro, 1962 Cartaz: A Falecida, 1965

Cartaz: A Dama do Lotação, 1978 Cartaz: Bonitinha mas Ordinária, 1980

3. Traição em foco: Diabólica

O filme Traição mostra que a obra de Nelson Rodrigues continua vibrante,

provocativa e moderna. Por isso mesmo, como todos os clássicos, ela é capaz de

produzir incessantemente novas leituras. É o que mostram as visões ousadas e

originais das três histórias que compõem o filme Traição: O Primeiro Pecado,

Diabólica e Cachorro! A trilogia retrata as relações amorosas em tramas urbanas do

Rio de Janeiro nos anos 50, 70 e 90.

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Cartaz do filme Traição, 1997

O filme concilia a liberdade na adaptação do universo de Nelson com a

fidelidade às marcas registradas do autor que revolucionou nossa dramaturgia,

abalando os alicerces morais da família brasileira: a caracterização inimitável de

tipos sociais, a obsessão exasperada pelo adultério, o senso de humor incomum e a

utilização das personagens como cobaias de experiências de transgressão. Co-

produzido pela Conspiração Filmes, Globosat e Ravina Produções, Traição tem a

produção assinada por Flávio R. Tambellini, Leonardo Monteiro de Barros e Pedro

Buarque de Hollanda. Os três episódios O Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro!

mostram que, também nas crônicas/contos que publicou diariamente no jornal

Última Hora nos anos 50, Nelson Rodrigues fazia da hipocrisia moral e das

convenções sociais o seu alvo preferido, criando personagens rigorosamente

modernas para o seu tempo e permanentemente atuais, como a versão carioca de

Lolita12, interpretada pela atriz Ludmila Dayer em Diabólica com direção de Cláudio

Torres.

Sobre a escolha do conto Diabólica, o diretor Claudio Torres afirma:

A minha intenção foi mostrar o lado fantástico de NelsonRodrigues, o clima surreal que está presente, por exemplo, na peçaVestido de Noiva. E também no texto de Diabólica, que envolveum triângulo amoroso e uma morte. Um aspecto que me interessounesta crônica é que a Alicinha é uma personagem recorrente naobra do Nelson, que tinha uma verdadeira obsessão por ninfetas de13 anos, como mostram Engraçadinha e Bonitinha mas ordinária.É uma visão nada hipócrita do sexo, pois mostra que umaadolescente pode se comportar como uma mulher. Minha

12 Lolita é um romance em língua inglesa de autoria do escritor russo Vladimir Nabokov(1899-1977) publicadopela primeira vez em 1955. O romance é narrado em primeira pessoa pela protagonista, o professor de poesiafrancesa Humbert Humbert, que se apaixona por uma menina de 12 anos, chamada Dolores. O professor apelidaDolores de Lolita. Foram realizadas duas versões cinematográficas do romance: a primeira, de 1962, feita porStanley Kubrick e a outra em 1997 dirigida por Adrian Lyne.O livro deu origem a duas gírias de natureza sexual:lolita e ninfeta, significando meninas menores de idade ou adolescente sexualmente atraentes e/ou precoces.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/lolita

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preocupação foi que a história fosse filmada de uma forma não-vulgar.13

Com uma linguagem própria o cinema se firmou como a arte do século XX –

a arte do homem moderno. Nenhum meio artístico, atualmente, reflete tão claramente

esse homem e sua compreensão estética de ver o mundo, como já considerava Walter

Benjamin:

Mas nada revela mais claramente as violentas tensões do nossotempo que o fato de que essa dominante tátil prevalece no própriouniverso da ótica. É justamente o que acontece no cinema, atravésdo choque de suas seqüências de imagens. O cinema se revelaassim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente maisimportante daquela ciência da percepção que os gregos chamavamde estética (1996, p. 194).

Da estrutura teatral à representação literária, o cinema buscou bases para a

criação de uma linguagem visual nunca antes confrontada com o espectador

contemporâneo: a linguagem do movimento. David Griffith14 e Sergei Eisenstein15

contribuíram para a formação da linguagem cinematográfica, já demonstrando o que

caracterizaria o futuro da teoria da sétima arte: um conflito de idéias quanto à

representação e interpretação de sua imagem cinematográfica artística e o comercial.

13 Depoimento extraído do site www.uol.com.br/fernandamontenegro/traição.htm14 O americano David Griffith (1875-1948), é considerado o criador da linguagem cinematográfica. Foi oprimeiro a utilizar dramaticamente o close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Em1915, com Nascimento de uma Nação, realiza o primeiro longa-metragem americano, tido como a base da criaçãoda indústria cinematográfica de Hollywood. Com Intolerância, de 1916, faz uma ousada experiência, commontagens e histórias paralelas. A montagem paralela, isto é, a alternância de duas ou mais linhas de ação, e o“last minute rescue” (salvamento de último minuto) que são duas formas de construir o suspense. O travelling éoutra das inovações introduzidas por ele. Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/david_griffith.

15 Sergei Mikhailovich Eisenstein é um dos nomes fundamentais na consolidação da linguagem das imagens emmovimento. Com 26 anos fez A Greve, mostrando que arte e política podiam andar juntas. Aos 27, OEncouraçado Potemkin. Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/sergei_mihailovich_eisentein

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Mas essa linguagem, apesar de estabelecida, nunca se revelou como totalitária

em suas formas de apresentação. Da Nouvelle Vague16 aos Blockbusters americanos,

a linguagem passava por alterações estéticas que logo eram assimiladas.

Na década de noventa, vários estilos cinematográficos alteraram a maneira de

apresentação das películas desde os movimentos como os independentes e o Dogma

9517 até a estranha e reducionista concepção “cinema de países”.

Porém, todos esses movimentos são claramente exemplos da evolução de

meios estéticos já apresentados pela linguagem cinematográfica, não apresentando,

portanto, recursos estilísticos tão diferenciados ou influenciados por outras áreas,

com exceção talvez do Dogma 95.

A modernidade da imagem cinematográfica é reflexo de um processo

histórico em que a arte tenta se renovar em releituras de seus próprios conceitos e

criação de outros. A diversidade estilística característica do cinema comercial dos

anos noventa retrata uma geração multimídia de novos profissionais e espectadores

que acabaram por alterar os rumos da cinematografia contemporânea.

No Brasil, isso se evidenciou com a atuação de profissionais tanto no meio

televisivo quanto no cinema. Nos anos oitenta despontaram os principais atuantes do

cinema da década de noventa, com a grande maioria dos profissionais com

experiência televisiva em produções independentes, que se constituíam claramente

16 Nouvelle Vague foi um movimento artístico do cinema francês que se insere no movimento contestatáriopróprio dos anos sessenta. As características mais marcantes desse estilo são a intransigência com os moldesnarrativos do cinema estabelecido, através do amoralismo, próprio desta geração, presente nos diálogos e numamontagem inesperada, original, sem concessões à linearidade narrativa. Fonte:http://pt. wikipedia.org/wiki/nouvelle_vague

17 O Dogma 95 é um movimento cinematográfico internacional lançado a partir de um manifesto publicado em13 de março de 1995 em Copenhague, na Dinamarca. Os autores foram dois cineastas dinamarqueses, ThomasVinterberg e Lars von Trier. O manifesto visa a criação de um cinema mais realista e menos comercial. Trata-sede um ato de resgate do cinema como feito antes da exploração industrial.Fonte: http://pt. wikipedia.org/wiki/dogma_95

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como manifestações do desejo de se fazer cinema, e, neste caso, dentro da própria

televisão.

Com a chamada “retomada” do cinema brasileiro, grande parte desses

diretores, que haviam migrado para a televisão, voltam a atuar no cinema junto com

novos diretores, trazendo consigo a experiência videográfica. Ao mesmo tempo

produtoras de publicidade, como O2 Filmes e Conspiração Filmes (co-produtora do

filme Traição) começam a entrar no mercado cinematográfico, atuando com

produções influenciadas pelo passado multimídia de seus profissionais: é a chamada

estética publicitária.

O filme Traição, e na trilogia especificamente o conto Diabólica, reúne a

maioria dos elementos para se fazer uma análise da modernidade visual do cinema

comercial da atualidade. Além de seus recursos narrativos (roteiro), “flashbacks”,

ironia e violência (temas caros ao cinema independente, precursor desta estética) e

profissionais da área publicitária, Diabólica possui um discurso imagético que

poderia ser analisado dentro de um tripé: montagem, fotografia e direção.

Lévi-Strauss em sua obra O Pensamento Selvagem reafirmava a importância

de se reduzir a um ponto de reflexão (a obra – neste caso, a imagem de Diabólica)

para não se equivocar e desviar o olhar crítico para o autor ou para a realidade. Daí

sairia a consciência estética: “Colocar a obra no centro da reflexão... corresponde

intimamente às tendências mais fortes do desenvolvimento teórico atual”

(MERQUIOR, 1975, p.26)

Mas por que essa necessidade excessiva de se excluir a estória contada e a

realidade que a permeia? Porque o centro de estudo da estética repousa

acentuadamente na imagem. Além disso, no cinema esta ainda se apresenta na forma

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de linguagem, com suas características próprias, excluindo o conteúdo que nela é

abordado. Sobre o discurso imagético que foge à diegese e ao fílmico, Christian Metz

assevera: “Mas no meio desta totalidade, há um núcleo mais específico ainda, e que,

contrariamente aos outros elementos constitutivos do universo fílmico, não existe

isoladamente em outras artes: o discurso imagético” (1977, p.76)

A diegese, a voz e a focalização (mediação) e a recepção fílmicas são

possibilidades que só podem ser compreendidas se analisadas dentro de um contexto.

O filme dentro do filme. “Pois o fílmico é diferente do filme: o fílmico está para o

filme como o romanesco está para o romance – posso escrever romanescamente,

sem nunca escrever um romance”. (BARTHES, 1990, p.58)

3.1 Análise do discurso imagético

3.1.1. Montagem

Uma proposta tradicional de montagem no cinema é, entre tantas outras,

ordenar as cenas para facilitar a compreensão do que é narrado e utilizar de recursos

visuais para transpor as dificuldades narrativas do roteiro.

A escola cinematográfica russa, com Eisenstein, Koulechov entre outros, foi

pioneira em teorizar a montagem enquanto uma técnica narrativa essencialmente

cinematográfica. Juntos a David Griffith, que havia posto em prática a essência da

montagem e da linguagem (focos e enquadramentos), esses cineastas formam a

frente do cinema clássico.

O cinema do pós-guerra irá seguir a concepção de montagem tradicional,

apresentando, porém, diversificações em sua evolução. O neo-realismo, por exemplo,

irá buscar a fidelidade entre roteiro e realidade, o que será visto através de uma

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montagem simples e seqüencial, em que os conflitos e a estória transcorrem

naturalmente, sem nem mesmo abusar ou utilizar recursos estilísticos de montagem.

Já o Nouvelle Vague18, constituindo-se um movimento de vanguarda, apresentará

uma montagem fragmentada, que busca desconstruir a narrativa através de inversões

de tempo e truncagem do ciclo narrativo.

A “pós-modernidade” cinematográfica, em que se inclui Diabólica, será uma

composição de tudo o que já foi apresentado dentro de uma estética visual que tem

como regra fundamental a noção de ritmo narrativo. Não apenas o ritmo da

seqüência das imagens, mas de cada cena propriamente dita. O cuidado em se montar

as cenas dentro de uma estética visual que acaba por refletir o espectador moderno.

O cinema tradicional encontrava na montagem o meio de tornar o roteiro

inteligível para o espectador. O cinema comercial ultrapassou esse patamar. Agora

ele se utilizada montagem como uma forma de reestruturar o material captado para

trabalhar cada momento do roteiro à sua maneira. Então, aquele momento que na

escrita não parecia tão importante, na sala de montagem pode se transformar na cena

clássica de um filme. Para se tornar clássica, é necessário que a cena não somente

fique gravada na mente do espectador mas adquira perenidade e universalidade.

Em Diabólica uma seqüência que pode trazer à tona essa discussão é

exatamente a imagem-marca do filme em que o narrador é mostrado no momento

auge do roteiro: Geraldo entrando na delegacia em uma noite chuvosa e nevoenta

com Alicinha (sua futura cunhada) morta em seus braços. Desde o primeiro

momento, o espectador já possui em mente o que virá pela frente.

18 idem p.84

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Cena do filme: Geraldo com Alicinha morta nos braços

Outro recurso utilizado que demonstra a preocupação em fazer com que

transpareça o pensamento criador por trás das imagens são os momentos em que

Geraldo narrador – homodiegético - começa a rememorar os acontecimentos numa

atmosfera surreal, totalmente rodrigueana. Em discurso analéptico ele conta ao

delegado a trágica sucessão de acontecimentos que o levou a estar ali naquele

momento. Alice (Lolita), de treze anos, iniciara, durante a festa de noivado da irmã,

um diabólico jogo de sedução com o futuro cunhado, levando a ciumenta Dagmar à

loucura e expondo o lado podre de uma família aparentemente exemplar.

Num primeiro momento da festa de noivado a personagem Alicinha ainda é

vista como uma criança; angelical e ingênua a câmera cinematográfica movimenta-se

próxima á personagem, envolvendo-a inteiramente. Christian Metz já analisava a

possibilidade de: “(...) injetar na ‘irrealidade’ da imagem a realidade do

movimento e, assim, atualizar o imaginário a um grau nunca dantes alcançado”

(1977, p.28)

Dentro das categorias narrativas genettianas Modo (perto-longe) e

Ordem(presente-passado) e da montagem, o filme apresenta uma estrutura que

explica a narração.

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Jean Mitry apresentou a síntese mais precisa, dentre os teóricos, para as

primeiras aparições desses processos de linguagem fílmica no cinema primitivo.

Porém, Christian Metz, em 1973, resumiria no seu ensaio sobre a semiótica na sétima

arte, que, apesar de toda história e aplicabilidade desses recursos, nada poderia ainda

firmar o cinema como língua, senão como linguagem.

A montagem é a referência para a concepção da modernidade visual do

mundo cinematográfico atual. As possibilidades de programas cada vez melhores

para a finalização da montagem, assim como a digitalização, tornam o cinema ainda

mais flexível possibilitando o surgimento de recursos nunca antes previstos.

Atualmente, a destreza de se montar um filme decorre não apenas da intenção

criadora do diretor, mas também da percepção da obra pelo espectador. Notamos que

os recursos tecnológicos estão transformando a maneira de compor visualmente um

filme. Talvez por isso, os filmes se tornam cada vez mais fragmentados em suas

narrativas. Na tentativa de mostrar “a vida como ela é” e de revelar o homem a si

mesmo, a montagem aparece fragmentada, pois é fruto da imaginação criativa e

cheia de originalidade do diretor. Dentro desse círculo de influências, a montagem da

pós-modernidade subverteu seus valores e acabou por se transformar em uma técnica

de desconstrução. Sobre esse aspecto Roland Barthes afirma:“(...) o problema atual

não é destruir a narrativa, mas sim confundi-la: a tarefa de hoje consistiria em

dissociar a subversão da destruição” (1990, p.58)

3.1.2 Fotografia

A história da fotografia cinematográfica se confunde com a evolução da

linguagem e dos modelos de cinema. No seu nascimento, o cinema preocupava-se

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em estabelecer-se como uma linguagem através da formação de uma decupagem

clássica, e o papel da fotografia era apenas o de obtê-la, isto é, através do

posicionamento de câmera e o corte. Não havia grandes princípios para se trabalhar a

imagem.

Talvez possamos encarar o Expressionismo alemão19 como o marco de uma

nova percepção fotográfica do cinema. O jogo de luzes casadas com enquadramentos

estranhos, cenografia estilizada e a busca por uma criação de imagens diferentes e

exóticas refletiam a necessidade de se interferir na realidade da imagem transposta

para a película. Já o Technicolor foi a maneira de o cinema americano tentar

conquistar o espectador através de imagens artificiais, com uma paleta de cores

exageradas. Porém esses exercícios visuais possibilitaram uma inquietação por parte

da técnica cinematográfica, que passaria a buscar um aperfeiçoamento na maneira de

se trabalhar a imagem em película, assim como na hora de sua captação.

A cena em que Alicinha é apresentada ao espectador e a cena em que rodopia

vestida de anjo demonstra a ordem do cinema moderno de criar imagens apuradas

que ficam marcadas no imaginário do espectador.

Cena do filme: Alicinha é apresentada ao espectador como uma criança

19 idem p 80.

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Cenas do filme: A angelical Alicinha rodopiando na sala

.

Até mesmo cenas que apresentam certo hiper-realismo através de uma grande

definição de imagem como a iluminação das cenas à noite (Geraldo entrando na

delegacia com Alicinha morta nos braços – vide imagens abaixo) e o super closeup

nas cenas em que Alicinha fala ao ouvido de Geraldo que já não é mais criança, a

cena da fumaça saindo pelas narinas de Geraldo durante o seu depoimento na

delegacia.

Cenas do filme: Geraldo chegando na delegacia com Alicinha morta em seus braços

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As cenas em que Alicinha grunhe, baba e grita, não ficam muito distantes do

filme O Exorcista20 - transformando-se, num piscar de olhos, de garota angelical em

verdadeiro demônio. Nessas cenas reconhecemos há demonstração de um certo

exagero em termos de fantasia, de realismo fantástico. (Vide cenas abaixo)

Essas cenas rompem com a linearidade narrativa, diferenciando-se das outras

exatamente por que ultrapassa os limites do real, e, através de ações dissimuladas,

atinge agressivamente o imaginário do espectador.

Ismail Xavier, em sua obra O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a

Transparência, reflete também sobre o momento da captação das imagens como

definidor da ilusão que será criada:

20 O Exorcista é um filme realizado por William Friedkin, inspirado em um livro de terror homônimo, escritopelo William Peter Blatty. O filme foi estreado dia 22 de setembro de 1973. Talvez o mais reputado dos filmes dedrama/terror, cuja temática, relacionada com a possessão demoníaca de uma rapariga de 12 anos, causou choqueentre as platéias mundiais. Contudo, tal não impediu o seu sucesso junto do público e da crítica, tendo recebido10 nomeações para o Oscar e vencido em 2 categorias: Melhor Argumento Adaptado e Som.Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/the_exorcist

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Para a eficiência de tal ilusionismo, é preciso que os truquesaplicados aos fatos que se passam diante da câmera colaborem coma objetividade essencial do registro cinematográfico, compondoum mundo imaginário inserido num espaço à imagem do real(1984, p.71)

Estes truques podem, na verdade, possuir várias funções. Desde facilitar a

visualização de uma imagem com um jogo de luz, como criar outra com o mesmo

jogo. Da mesma forma, na pós-produção, os recursos serão utilizados dentro da

perspectiva do criador. Em Diabólica possibilitou que a fotografia fosse trabalhada

para criar o discurso imagético do filme. Mas sobre a invenção técnica, Étienne

Souriau já advertia que esta não poderia solucionar um problema de arte, senão

colocá-lo. Por isso, muitas vezes assistimos a filmes que tentam se engendrar na

imagem pós-moderna mas acabam caindo no ridículo cinematográfico: a pretensão

de ser artístico. Até mesmo porque a Pós Modernidade não é um selo de qualidade

para as obras no cinema, mas uma evolução histórica da representação

cinematográfica da arte.

A fotografia utiliza-se desses elementos ilusionistas exatamente para criar

uma identidade para o discurso fílmico. O filme não ocorre em função da fotografia,

mas sim o contrário. A união da fotografia com a montagem pensada previamente

criam o universo imagético de Diabólica perante o espectador (o universo real). Ora

buscando um ilusionismo, o surrealismo ora o hiper-realismo, essa estética trabalha

continuamente com o espectador. Isso une a imagem ao movimento, criando uma

semiótica própria para a película. Segundo José Merquior ( 1975):

As intervenções humanas, com as quais despontam algunselementos de uma semiótica própria, só intervêm ao nível daconotação – sic – (iluminação, incidência angular, efeitos defotógrafos)... No cinema, em contrapartida, toda uma semiologiada denotação é possível e necessária, pois um filme é feito comvárias fotografias. (p.26)

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3.1.3. Direção

A maioria dos comerciais de televisão são filmados em 35 mm, como no

cinema, devido à qualidade de imagem, mas são realizados e montados através de

uma concepção videoeletrônica da televisão. Enquanto a linguagem cinematográfica

é compostas por 24 fotogramas por segundo, a linguagem videográfica é derivada da

leitura das linhas de varredura e da junção dos pixels que compõem a imagem

eletrônica. Da mesma forma, o fotograma apresenta uma relação de tamanho 3x5,

enquanto a imagem videográfica mede 3x4.

Os diretores de publicidade (Lembremo-nos de que o diretor de Diabólica,

Cláudio Torres, é famoso por dirigir filmes publicitários e video-clips.) precisam

conviver sempre com essa necessidade de utilizar um meio artístico (35mm) para

desenvolver um trabalho massificado. Muitos até mesmo enveredam para a vídeo-

arte como forma de mostrar a criatividade do veículo televisivo enquanto linguagem.

Já outros se voltam para o cinema, levando a técnica videográfica, alterando as

concepções tradicionais de filmagem cinematográfica. Segundo Candido Almeida:

“video-arte (...) representa a capacidade de manipulação da tecnologia pelo agente

criador, a necessidade e angústia pelo domínio do novo” (1988, p.87)

Nesse panorama, o cinema é influenciado por todos os lados, seja por causa

dos profissionais que volta e meia passam pela experiência videográfica, ou devido

às novas tecnologias que provocam fusão cada vez maior das duas linguagens.

Essa aproximação com o vídeo não será vista apenas na rapidez da

montagem, mas também na constante alteração lógica da direção na hora de captar as

imagens que a configuram dentro de uma modernidade visual.

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A utilização de imagens desfocadas e granuladas em certas passagens (veja-se

a cena da Alicinha se auto-flagelando) demonstra uma constante parceria de efeitos

que traduzem o aspecto retratado, da mesma forma que desperta o espectador do

contexto normalizado. Arlindo Machado já constatara isso quando afirma que: “(...)

os sistemas de baixa definição aguçam a imaginação e exigem maior grau de

participação do público.” ( 1995, p.61)

A direção do filme é voltada para uma tentativa “pós-moderna” de criar

fragmentos originais de cenas. Talvez por isso a relação publicitária de ver e rever as

imagens de um comercial na produção, mas com a oposição gritante dos trinta

segundos comuns ao cinema publicitário para os cento e vinte minutos do filme.

Vários momentos retratam claramente essa criação da câmera buscando a

diferenciação da leitura clássica. Uma delas é a tentativa de sempre posicionar a

câmera de modo a diversificar a imagem, gravando-a em um universo original.

Diabólica mescla a narratividade clássica através de planos comuns, com a

câmera na mão e a quebra temporal característico do cinema de vanguarda, fundindo

o que a análise estética do cinema busca, certas vezes, dividir. Segundo José

Merquior (1975):

Usam freqüentemente o plano-seqüência lá onde (sic) ospartidários da montagem teriam desmembrado e reconstruído;recorrem ao que se chama, por falta de melhor expressão, a câmerana mão lá onde (sic) as sintaxes tradicionais distinguem otravelling para frente, para trás, a panorâmica horizontal, a vertical,etc.(p.26)

No filme, o momento em que Geraldo relembra o dia de seu noivado traz uma

reformulação do uso da câmera na mão. A cena dá a sensação de que o espectador

está filmando, participando da cena, com uma música envolvente. É a câmera na mão

revisada pela pós-modernidade: a câmera na mão em função do ritmo narrativo.

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Cenas do noivado de Dagmar e Geraldo

A direção de Diabólica é um tópico da possibilidade de um cinema moderno

cada vez mais videográfico em que a imagem é manipulada e revisada antes de sua

exibição. Antecedendo à captação, a direção já elabora um storyboard da imagem

“pós-moderna” que o filme pode ter, comunicando-se, assim, com o espectador atual,

que busca um cinema que o retrate a si mesmo e ao universo que o forma. Para

Raymond Bellour:

(...) é no cinema moderno e na era do vídeo que o vínculo seestreita, explode e se acelera, com pontos de cruzamento de umaextrema violência – o vídeo que estende o cinema com risco dedissolvê-lo em uma generalidade que não possui número nemnome na classificação das artes” (apud PARENTE, 1993, p.222)

4 - A transcodificação do conto e do minidrama para o cinema

Como observamos no capítulo anterior, a adaptação para a televisão foi muito

fiel ao conto. Salientamos, mais uma vez, que em nome de uma adaptação fidedigna,

o episódio foi praticamente o conto ipsis literis, e a única grande mudança foi no

título de Diabólica para O Anjo. Outro fator importante a ser destacado é que, na

televisão, o intuito maior era o de divulgar a obra de Nelson Rodrigues, e não o seu

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valor estético. Já no cinema temos a “personificação” estética da obra, com uma

adaptação vibrante bem aos moldes do universo rodrigueano.

Como já dissemos, a estrutura cronológica do conto foi mantida na TV,

algumas alterações foram feitas para melhor contextualização. No cinema, porém, o

filme inicia-se “a fine” com a personagem protagonista Geraldo (narrador

homodiegético e autodiegético) relatando os acontecimentos, através de flashbacks, o

que possibilita a exploração do passado remoto vivido pela personagem, dando

ritmo, movimento à narrativa. Notamos também que, à medida em que são inseridos

os flashbacks, o clima de suspense da trama vai-se intensificando. Porém esse

recurso não foi utilizado em nenhum momento na adaptação do conto para a

televisão.

O fundo musical, para criar um clima, ora de festa, ora de suspense, e os

efeitos sonoros, tais como os ruídos de um relógio marcador de tempo e o som de um

piano de brinquedo, provocam uma atmosfera de agressividade e suspense no

telespectador, ao mesmo tempo em que se intersecciona com uma atmosfera

sombria; esses elementos comparecem na transcodificação da narrativa impressa para

a cinematográfica. Ainda com relação à música, destacamos a cena com o fundo

musical infantil “Borboleta pequenina...”, pois nesse momento o espectador tem a

impressão de que a “introdução da música” está dialogando com certa ironia, com a

personagem Geraldo - Olá, senhor sapo!- como num conto de fadas, em que o

príncipe está transformado em sapo e necessita de alguém para desencantá-lo.

Também aparece na adaptação cinematográfica um objeto que tem a função

de confirmar a traição: é um cordão com um crucifixo presenteado por Dagmar a

Geraldo para sua proteção, e que deveria ser-lhe devolvido na hora do casamento.

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Mas o cordão com o crucifixo serviu para auxiliar o enforcamento de Alicinha e foi

devolvido para Dagmar na Delegacia, após o crime. Esse objeto e as situações que o

rodeiam não constam da estrutura do conto

.No conto e no minidrama não há delimitação de tempo e espaço mas na

adaptação para o cinema ele é bem delimitado em várias situações, como por

exemplo, a cena em que o delegado pergunta a Geraldo se ele sabe que dia é hoje.

Outro momento é quando através de um flashback, Geraldo revive um certo dia, em

que estava na casa de Dagmar, assistindo televisão cenas de um desfile de fantasias

carnavalescas com o futuro sogro e, Alicinha surge na sala fantasiada de anjo.

Conversa rapidamente com a mãe e Dagmar, que estão entretidas com os

preparativos para o casamento, aproxima-se do pai, que lhe beija a mão e oferece

dinheiro para ir ao baile de carnaval. Em seguida aproxima-se de Geraldo e fala ao

seu ouvido “Amanhã vou sair de diaba”. A cena recebe um corte e o espectador é

surpreendido com a imagem de uma mulher loira de costas fantasiada de diaba. Tudo

leva a crer que é Alicinha, mas à medida em que a câmera se aproxima, notamos que

não é ela.

Em vez de diaba, vemos a Alicinha vestida de anjo. Essa cena não aparece

dessa forma no conto e no minidrama: em descrição igual em ambos, ela aparece na

sala exibindo o seu corpo adolescente num novo maiô, provocando Geraldo.

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Cena: close no marcador (data). Cena: close na tv com o desfile de fantasias.

Cena: Alicinha entrando na sala Geraldo acompanhando Alicinha com os olhos

Cena: Alicinha, a mãe e a irmã Dagmar Cena: Alicinha com o pai

Cena: Alicinha falando que amanhã irá sair de diaba Cena: mulher no bar, fantasiada de diaba

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Cena da minissérie: A personagem Alicinha exibindo seu maiô infernal

Em relação ao conto, a narrativa cinematográfica se inicia, como já dissemos,

“a fine”. Porém apresenta, como acréscimo, um outro final, um segundo desfecho,

com revelações novas que não constam da estrutura do conto.

Cenas do filme: “segundo desfecho” a mãe revela ter um amante e queAlicinha é fruto desse relacionamento

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Segundo Thais Flores Nogueira Diniz (2003) hoje a relação entre literatura e

cinema tem se mostrado como um estudo híbrido, bidirecional, “transtextual”, onde a

abordagem depende de cada obra. Para tanto, esse estudo se faz sem preconceitos

pela imbricação de habilidades de um no outro, sem a preocupação, o “valor” ou

“status” do “original”, podendo ter características narratológica, autoral ou genérica,

e sem a preocupação com os conceitos de fidelidade, originalidade, entre outros.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Vida Como Ela É..., coluna diária escrita por Nelson Rodrigues, para o

jornal carioca Última Hora, na década de 50, popularizou o autor, mas não o livrou

do estigma de imoral. As narrativas foram estruturadas inicialmente como crônicas,

mas ficcionalmente devem ser consideradas contos porque, ao desenvolver o tema

traição (favorito em Nelson Rodrigues) apresentam ação dramática, personagens bem

elaboradas, tempo e espaço delimitados.

Na análise do conto Diabólica, foi possível verificar que o conto preserva

algumas características da crônica narrativa, à medida que o narrador junta os

episódios cronologicamente, criando expectativa em torno do instantâneo revelador.

Constatamos assim, que o escritor é um ficcionista no território da crônica

As peças gregas da trilogia tebana de Sófocles - Édipo Rei, Édipo em Colono

e Antígona foram selecionadas por apresentarem inovação quando deslocam o

movimento das ações para a vontade humana e não mais para as articulações divinas,

e para demonstrar a eternidade dos temas traição, adultério e morte.

Os episódios A Vida Como Ela É..., foram adaptações assinadas pelo

roteirista Euclydes Marinho e pelo diretor Daniel Filho. A atmosfera dos anos 50,

típica das histórias de Nelson Rodrigues, está presente na minissérie, que foi

registrada em película cinematográfica. O conto Diabólica recebeu na TV o título

irônico de O Anjo, em nome de uma adaptação fidedigna. Analisando a minissérie A

Vida Como Ela É..., percebemos a inovação por trazer para o horário nobre da

família brasileira, a questão do psicologismo na TV. Os contos são narrativas

psicológicas que desnudam a alma humana, apresentando as dicotomias bem x mal,

amor x ódio, apresentando ao telespectador as cenas grotescas cobertas “com o

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manto diáfano de fantasia”, mas utilizando, porém, o jogo de esconde-esconde do

homem consigo mesmo.

Já a adaptação cinematográfica: Traição (1997) composta pela trilogia: O

Primeiro Pecado, Diabólica e Cachorro! demonstra que a obra de Nelson Rodrigues

continua vibrante, provocativa e moderna. Cláudio Torres, o diretor de Diabólica,

proporcionou ao público uma releitura surpreendente do conto surpreendente.

Inspirada nas convenções do cinema suspense, Diabólica não pode ser considerada

uma adaptação fidedigna da obra de Nelson Rodrigues, mas é fiel às marcas

registradas do autor: traição, adultério e morte. Em uma atmosfera totalmente

rodrigueana, o filme apresenta personagens bem delineadas, utilizadas como

espelhos de experiências de transgressão moral.

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DIABÓLICA

Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até a janela,

que se abrira para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária, uma espécie de

presságio, suspirou. E foi meio vaga:

- Caso sério! Caso sério!

E Geraldo, baixo e doce:

- Por quê?

Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:

- Estás vendo minha irmã?

- Estou.

Durante alguns momentos, olharam, em silêncio, a pequena Alicinha, de treze

anos, que, na ocasião, apanhava uma flor no jarro, para dar não sei a quem. Dagmar

pergunta: “Bonita não é?”. Geraldo concorda: “Linda!”. Então, pousando a mão no

braço do noivo, a pequena continua:

- Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vai ser uma

mulher e tanto.

- Um espetáculo!

Sorriu, triste:

- Um espetáculo, sim! – Pausa e, súbito, tem uma sinceridade heróica: - Há de

ser mais bonita do que eu.

Geraldo interrompeu: “Protesto!”

Foi quase grosseira:

- Não me põe máscara, não! Eu tenho espelho, ouviu? Agora, que sou tua

noiva, quero te dizer o seguinte.

- Fala.

E ela:

- Você é homem e eu sei que esse negócio de homem fiel é bobagem. Mas

toma nota: se você tiver que me trair, que não seja nem com vizinha, nem com

amiga, nem com parente. Você percebeu?

Surpreso e divertido, exclama:

- Você é de morte, hein?

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As Irmãs

Havia entre as duas irmãs uma diferença de quatro anos; Dagmar tinha

dezessete. Alicinha treze. Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina

irremediável. No fundo, talvez imaginasse que ela seria para sempre assim, criança,

criança. A observação da noiva o apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para

Alicinha com uma nova e dissimulada curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda

contida na menina, começava a desabrochar. Esta constatação o perturbou, deu-lhe

uma espécie de vertigem.

Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva veio levá-lo até o portão. Ao

ser beijada na face, disse:

- E não esqueça: Alicinha é sagrada para você!

Era demais. Doeu-se e protestou:

- Mas que palpite é esse? Que idéia você faz de mim? Sabes que assim você

até me ofende?

Cruzou os braços, irredutível:

- Ofendo por quê? Os homens não são uns falsos?

- Eu, não!

Ela replicou, veemente:

- Você é como os outros. A mesma coisa, compreendeu?

Família

Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-

nos-acuda. A mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-

lhe um verdadeiro sabão:

- Foi um golpe errado. Erradíssimo!

- Eu não acho.

O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde não havia!

Despertou a idéia do seu noivo!”.

Replicou, segura de si:

- Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.

O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou, interpelando-a:

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- E agora, com que cara teu noivo vaio olhar para tua irmã?

Vocês, mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está

acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas!

E Dagmar obstinada:

- Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e

outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita com cunhado, não! Nunca!

Ciúmes Doentios

Num instante, criou-se o caso no seio da família. Não houve duas opiniões.

Segundo todo mundo, aquilo não era normal, não podia ser normal. Um dos grandes

argumentos foi a idade de Alicinha: “Como pode ? Como pode?”. O pai, mascando o

charuto, argumentava; “Que você desconfie de todo mundo, até do poste, vá lá! Acho

que uma mulher deve defender com unhas e dentes o seu homem. Mas irmã é outra

coisa! Irmã é diferente!”.

Na sua tristeza, ela replicava; “O que eu não sou é burra!”. E o pai: “Nem sua

irmã, nem seu noivo merecem isso!”. Por fim, já se falava, abertamente, em caso.

Um primo da pequena, que era pediatra, sugeriu:

- Por que é que não levas fulana a um psiquiatra?

Ela acabou indo, vencida pelo cansaço da própria vontade. Lá, o psiquiatra,

depois de um interrogatório medonho, chegou à seguinte conclusão: “O negócio é

extrair os dentes!”. O pai da pequena caiu das nuvens. Chorou, amargamente, o

dinheiro da consulta:

- Mas que animal! Que palhaço! - E, jocoso, criava o problema: - Isso é

psiquiatra ou dentista?

Mas o fato é que, pouco a pouco, sem sentir e sem querer, Dagmar foi se

deixando dominar pela pressão da família. O próprio noivo colaborou nesse sentido.

Era hábil:

- Você não precisa ter medo de mulher nenhuma. Pra mim, não existe no

mundo mulher mais bonita do que você. Palavra de honra!

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O Maiô

Só quem não se dava por achada e parecia ignorar o disse-que-me-disse era a

própria Alicinha. Tratava a irmã e o cunhado com a mesma naturalidade. E era tão

sem maldade, tão inocente, que, certa vez, comprou um maiô fabulosíssimo e

apareceu com ele na sala, diante de Dagmar e do Geraldo. Foi uma situação pânica.

Por um momento, o embasbacado cunhado não soube o que dizer, o que pensar.

Empalidecera e ...Girando como um modelo profissional, Alicinha perguntava:

- Que tal ?

Por uma fração de segundo, Dagmar pensou em explodir. Mas convencera-se

de que precisava reeducar-se; dominou o próprio impulso. Com o máximo de

naturalidade, admitiu: “Bonito!”. O atônito, o ofuscado, o desgovernado Geraldo

gemeu: “Infernal!”. Mas quando deixou a casa da noiva, nesse dia, ia numa

impressão profunda. Mais tarde, no bilhar, com uns amigos, fez o seguinte jogo de

palavras:

- Não há mulher mais bonita que uma cunhada bonita!

Sonsa

No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho: “Deixei de ser criança!

Já não sou mais criança!”. Isso poderia significar pouco ou muito. De qualquer

forma, desconcertado, ele chegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai

procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo de mim?”. O

pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olhar intenso, não de criança, mas

de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parece divertida. E, subitamente, séria, ergueu-se e

aproxima-se. Estavam no gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:

- Um beijo.

Lívido, obedeceu. Roçou, de leve, a face da pequena. Ela insistiu: “Isso não é

beijo. Quero um beijo de verdade”. Geraldo levanta-se. Recua apavorado, como se

aquela garota representasse uma ameaça hedionda. Numa espécie de soluço, diz: “Eu

amo minha noiva! Amo tua irmã!”. E ela, diante dele: “Só um!”. Petrificado, deixou-

se beijar uma vez, muitas vezes. E não podia compreender a determinação

implacável de uma menina de treze anos.

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Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E o ameaçou, segura de si e

da própria maldade: “Vou te avisando: se começares com coisa, eu direi a todo

mundo que houve o diabo entre nós!”.Geraldo arriou na cadeira; uivou:

- Demônio! Demônio!

O Beijo

Foi, desde então, um escravo da menina. E, coisa interessante: ao mesmo

tempo que se sentia atraído, tinha-lhe ódio. Sentia nela uma precocidade hedionda. E,

por outro lado, era um fraco, um indefeso, um derrotado. Até que, uma tarde, entra

numa delegacia; soluçando, anuncia: “Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal,

num lugar assim, assim”.

Ainda prestava declarações quando Dagmar invade a delegacia. Passara pelo

lugar em que Alicinha fora assassinada; vira a irmã, de bruços, com o cabo do punhal

emergindo das costas. Então, fora de si, correu para delegacia. E houve uma cena que

ninguém pôde prever. Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e o beijou

na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada. Debatia-se nos braços dos

investigadores.

Gritava:

- Oh, graças! Graças!