Silva, Giselle Sampaio. O Caderno Manchado de Lori Lamby Tradição e Ironia
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O caderno manchado de Lori Lamby: tradição e ironia
por
Giselle Sampaio Silva
Monografia final apresentada ao Curso de Pós-graduação lato sensu em Literatura Brasileira,
sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Cristina deRezende Chiara, como requisito para aintegralização do Curso realizado no ano de2010.
Uerj / Instituto de LetrasAbril de 2011
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O caderno manchado de Lori Lamby: tradição e ironia
por
Giselle Sampaio Silva
Banca examinadora
_______________________________________Prof.ª Dr.ª Ana Cristina de Rezende Chiara
Orientador
________________________________________Prof.ª Dr.ª Fátima Cristina Dias Rocha
Segundo avaliador
Uerj / Instituto de LetrasAbril de 2011
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Sumário
Começando a escrever o caderno: breve introdução 3
Capítulo I - Pornografia: a estética da transgressão 7
Capítulo II - Ironia: paródia e sátira em dupla clave 14
Capítulo III - Narrativa em cena: de quem é o caderno? 29
Considerações finais: conclusão jamais 39
Referências bibliográficas 41
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Começando a escrever o caderno: breve introdução
A alcunha de maldita foi carregada e, em certa medida, construída pela escritora
paulista Hilda Hilst (1930-2004) durante sua carreira. Inicialmente vinculada ao hermetismo
de sua obra poética, sua maldição ganhou vulto nas páginas de jornal e nos escritos da crítica
literária quando da publicação de sua chamada trilogia pornográfica, ou obscena, composta
por O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d‟escárnio. Textos grotescos (1990) e
Cartas de um sedutor (1991), na década de 90 do século passado. O vazio crítico que se pode
perceber desde suas primeiras publicações, no início da década de 50, até o surgimento da
escritora na mídia e no circuito literário nos anos 90 é ainda mais pujante se comparado, porexemplo, à presença marcante de Clarice Lispector (1920 – 1977) como escritora e
personalidade pública, não sem tornar-se alvo dos mais diversos tipos de ataque e
especulações, inclusive de caráter pessoal, desde o lançamento de sua primeira obra, Perto do
coração selvagem, em 1943.
A fortuna crítica acerca da produção literária de Hilda Hilst tem-se avolumado
principalmente a partir dos últimos anos de sua vida, com a reedição de sua obra pela Editora
Globo a partir de 2000, e pelas mãos de Alcir Pécora, crítico profundamente interessado na
literatura hilstiana, após 2004, ano da morte da autora. Este trabalho pretende inserir-se nesta
linhagem de apreciação e análise da obra de Hilda Hilst sob uma ótica livre de preconceitos
estéticos e morais, tomando-a na importância de sua presença no cenário literário brasileiro
dos séculos XX e XXI, e, assim, contribuir para que a obra desta autora seja sempre
atualizada pelas mais diversas perspectivas que uma produção artística permite e a que se
propõe, enquanto criação estética autônoma e fértil.
É importante, em primeiro lugar, situar esta iniciativa de Hilda Hilst em escrever
―bandalheiras‖ (termo que a própria autora utilizou em diversas entrevistas quando do
lançamento destes seus três livros) no contexto literário e histórico da sociedade brasileira da
época. Após a queda da ditadura, em 1984, a circulação de obras artístico-literárias foi
rapidamente incorporada a um mercado editorial com padrões similares ao norte-americano,
em que são privilegiados recordes de vendagem a despeito de uma reconhecida qualidade
artística. É a época dos best sellers e das publicações em escala mundial, a que Hilda assiste
com indignação e reage com audácia.
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Em O caderno rosa de Lori Lamby, a narrativa infantil de Lori Lamby torna-se
encenação de um eu profanador, irônico. Essa narrativa que performatiza uma extrema
exposição, própria do pornográfico, promove uma tensão entre interior e exterior,
simplicidade e multiplicidade, clareza e sugestão, provocando uma desestabilização que não
se restringe à temática d‘O caderno (inicialmente, a da narrativa amoral e inocente das
experiências sexuais de uma menina de 8 anos, prostituída pelos pais, cujo ofício teria como
principal atribuição lamber e ser lambida em troca de dinheiro). No nível formal, a utilização
de um suporte anterior ao que se considera um livro, a estrutura diarística dos escritos da
narradora, a inserção de outros textos, como a transcrição de ―O caderno negro‖, o caderno
intitulado ―O cu do sapo Liu-Liu e outras histórias‖, as cartas trocadas entre Lori e tio Abel,
poesias, se coadunam para a construção de um espaço íntimo, de proximidade e primeiridade propiciados pela simplicidade vocabular e expressiva da linguagem infantil de Lori,
imediatamente arrebatadas pela exterioridade e corporeidade do referencial erótico a que
remete e a um contexto sócio-cultural externo apropriado pelo discurso dessa narradora
incipiente.
A enunciação profanatória d‘O caderno rosa de Lori Lamby está presente em
múltiplos níveis, em um sistema complexo manipulado com perfeição pela autora Hilda Hilst,
cuja personalidade está inscrita nesta obra de maneira inalienável, mas totalmente integrada à
inversão própria da ironia que opera. O caderno rosa está construído sobre uma base dupla,
interpenetrável e cambiante, que conjuga dois principais contrastes: o primeiro, interno, diz
respeito a um conteúdo propriamente estético dentro da literatura pornográfica enquanto
gênero textual, em uma retomada paródica de suas características definidas por um cânone
literário que, ao mesmo tempo, a desvaloriza e procura manter obras de autores consagrados a
despeito de sua temática considerada degenerada; o segundo é externo e está voltado para a
crítica a uma sociedade alienante que monopoliza o cenário literário e o molda aos interesses
mercadológicos, porém sem cair na armadilha panfletária, inócua, substituída por uma
inversão irônica altamente corrosiva. Hilda Hilst conjuga paródia e sátira na construção
irônica d‘O caderno rosa, recursos que convergem na performance de sua narradora-
personagem Lori Lamby, cujo discurso é detonador de um diálogo transgressor tanto com
uma tradição literária pornográfica canônica quanto com um moralismo hipócrita da
sociedade ocidental na conjugação do interdito da sexualidade humana e da sacralização da
inocência infantil. É preciso ressaltar que de modo algum se tratam de dois pólos opostos,
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mas forças que se entrelaçam e interpenetram para confluir na construção da estrutura
complexa d' O caderno rosa.
A análise empreendida neste trabalho parte das considerações de Ana Chiara em seutexto ―Lori lambe a memória da língua‖, quanto ao ―uso perverso da representação da
infância‖ (CHIARA, 2003), de Alcir Pécora, em ―Hilda Hilst: call for papers‖, com a
―indicação de aspectos a ser explorados por hipóteses de trabalhos‖ (PÉCORA, 2005)
dirigidos à obra de Hilda Hilst e os conceitos de ironia apresentados por D.C. Muecke (1995)
e nos textos de Linda Hutcheon, incluídos nestes últimos as definições de paródia e sátira
formuladas pela autora. Estes conceitos devem ser particularmente identificados e
delimitados, principalmente por se tratarem de termos amplamente utilizados pela crítica e
teoria literárias, em diferentes acepções. Em relação à ironia como ―princípio artístico‖
(SOUZA, 2008:43), será tomada como base a obra de D. C. Muecke Ironia e o irônico
(1995), principalmente no que o autor concebe como ironia instrumental e ironia observável, e
à diferenciação dos diversos recursos intertextuais utilizados na ficção pós-moderna que têm
como base a ironia, que pode levar a um questionamento de que ainda seja possível uma
literatura consciente e consistente que não se sustente nesse princípio. Quanto ao conceito de
pornografia aqui utilizado, remete ao conceito estabelecido por Susan Sontag em seu texto ―A
imaginação pornográfica‖ (SONTAG, 1987), em que são contrapostos à acepção tradicional e
redutora do termo os traços estéticos da literatura dita pornográfica.
Para isso, estará dividido em três capítulos. O primeiro deles tratará de uma literatura
pornográfica considerada canônica, de questões que envolvem uma imaginação própria do
gênero, características como obscenidade e erotismo e razões que podem levar O caderno
rosa a ser classificado como tal, com suas especificidades. O segundo pretende discutir o uso
da ironia e sua relação com a paródia, no que se refere à tradição da literatura pornográfica, ecom a sátira, remetendo ao mercado editorial, ambas encenadas no discurso infantil de Lori,
que dá voz ao silêncio mantido pelo abafamento provocado por uma moral repressora. O
terceiro deles tratará das relações de autoria dialogicamente imbricadas no texto de Hilda
Hilst, em que as instâncias do narrador, do autor e do editor se entrelaçam, interferem e
tensionam, contínua e ludicamente, como em uma brincadeira de criança nada inocente.
Como não é possível tratar desses três temas de forma estanque, constantemente eles se
interpenetrarão, sem prejuízo ao recorte realizado, mas, e ainda mais importante, sem se furtar
a discuti-los em profundidade e em quaisquer termos.
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Por mais que, inicialmente, a proposta pareça sem sentido, o que este trabalho
pretende é falar de Hilda Hilst em termos de tradição, honrando sua dedicatória em O caderno
rosa de Lori Lamby, que toma de empréstimo:
À memória da língua
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Capítulo I - Pornografia: a estética da transgressão
Ler um texto com tantas camadas discursivas incentiva o leitor crítico a sobrepor uma
infinidade de interpretações e análises sobre o objeto, e pode fazê-lo perder o incômodo da
primeira passada, do primeiro contato com aquela narrativa, de início, bastante clara e direta.
É bastante improvável que qualquer leitor de primeira mão, desarmado, consiga passar pelas
páginas iniciais d‘O caderno rosa de Lori Lamby sem se perceber ao menos estupefato (ou
indignado) com a a/imoralidade das ações daquela menina, ou até se surpreender sexualmente
excitado com sua narrativa, sentimento recorrentemente acompanhado de autocondenação.
O uso de uma personagem com oito anos de idade contribui sobremaneira para a
necessária manutenção da superficialidade psicológica própria da literatura pornográfica
tradicional. Susan Sontag, em seu ensaio intitulado ―A imaginação pornográfica‖, faz uma
revisão da utilização do termo pornografia aplicado à literatura como concebido pela fortuna
crítica inglesa. Dele pode ser retirado o conceito que aqui se entende por literatura
pornográfica e que Raquel Souza chama ―por nografia estetizada‖ (SOUZA, p.24).
Discernindo três tipos de pornografia, Sontag assim concebe a terceira utilização do termo:
(…) modalidade ou uso menor, mas interessante, no interior das artes. (…) gêneroliterário para o qual, na falta de um nome melhor, estou disposta a aceitar (na
privacidade do debate intelectual autêntico, não nos tribunais) o duvidoso rótulo de pornografia. Por gênero literário pretendo dizer um corpo de obras pertencentes àliteratura considerada como uma arte, e ao qual concernem padrões inerentes deexcelência artística. (SONTAG, 1987, p.41)
Dessa perspectiva, é possível perceber que o uso da pornografia em uma obra literária
não estabelece necessariamente um vínculo entre um texto esteticamente elaborado às
centenas de exemplares diariamente produzidos para o entretenimento fácil de um público
consumidor ávido por estímulos sexuais externos, que só podem ser considerados literatura
por se tratarem de matéria escrita. Em sua defesa de um conceito estético de imaginação
pornográfica, a autora discrimina as características do gênero como foram definidas pela
tradição, em que ―tanto os libertários como os presumidos censores concordam em reduzir a
pornografia a um sintoma patológico e a uma mercadoria social problemática. (…)
identificada com noções sobre as fontes do impulso de produção e consumo desses curiosos
bens‖ (idem, p.43).
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Considerar que ―as obras pornográficas são comprovações de uma falência ou
deformação radical da imaginação‖ (idem, p.43) pode ser sintoma, segundo Sontag, de uma
deficiência instrumental na análise destes textos, relacionada inclusive à definição do conceito
de literatura, ou, de forma mais abrangente, do que pode ser considerado arte, ambas as
concepções ainda muito presas a convenções já abandonadas no Pós-Modernismo:
Para colocar a questão de forma mais geral: a arte (e fazer arte) é uma forma deconsciência; seus materiais são a variedade de formas de consciência. Nenhum princípioestético pode fazer com que essa noção da matéria-prima da arte seja construída excluindo-se mesmo as formas mais extremas de consciência, que transcendem a personalidade socialou a individualidade psicológica. (idem, p.49)
Ou seja, quanto mais variada e plural forem as formas de consciência possíveis,
maiores serão as possibilidades da arte, e mais difícil será, também, definir seus parâmetros e princípios. Mas não há de se considerar fértil uma atitude de simples rejeição às mudanças por
que o mundo passou durante o século XX e início do século XXI, em função de uma busca,
ou de um sacrifício, para encaixar novos quadros em velhas molduras. Colocar pornografia e
literatura em pólos opostos invalida qualquer argumento de defesa ou preservação de casos
individuais, amplamente aceitos e valorizados por sua qualidade artística, num sistema que
adota dois pesos e duas medidas, que variam de acordo com a conveniência da classificação
que se quer empreender no interior da análise literária acadêmica. Sontag identifica quatro
definições que antagonizam, segundo uma crítica tradicional, literatura e pornografia:
A primeira é a de que a maneira completamente unívoca em que os livros de pornografia se dirigem ao leitor, propondo-se a excitá-lo sexualmente, é antitética àcomplexa função da literatura. (…) a pornografia ainda possui somente uma―intenção‖, ao passo que a obra de literatura de real valor contém muitas. Outrarazão, adiantada por Adorno entre outros, é a de que nas obras de pornografia falta aforma de começo-meio-e-fim característica da literatura. O argumento seguinte: otexto pornográfico não é capaz de evidenciar nenhum cuidado com seu meio deexpressão enquanto tal (a preocupação da literatura), uma vez que o propósito da
pornografia é inspirar uma série de fantasias não-verbais em que a linguagem
desempenha um papel secundário, meramente instrumental. A última e maisimportante alegação defende que o tema da literatura é a relação dos seres humanosuns com os outros, seus complexos sentimentos e emoções; a pornografia, emcontraste, desdenha as pessoas plenamente formadas (a psicologia e o retrato social),é desatenta à questão dos motivos e de sua credibilidade, e narra apenas astransações infatigáveis e imotivadas de órgãos despersonalizados. (idem, p. 44-45)
Sontag prossegue sua análise e refuta os argumentos até então utilizados com
exemplos bastante claros de que a mudança do conceito de literatura desde a ―escrita
‗realista‘‖ (idem, p. 44) e a presença de muitas destas características em obras de valor
literário consagrado, principalmente da ficção contemporânea, expõem a fragilidade de uma
eventual exclusão da por nografia dos estudos literários: ―uma definição de literatura que culpa
uma obra por ser enraizada na ‗fantasia‘, e não na apresentação realista de como pessoas
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vivem umas com as outras em situações comuns, não pode sequer dar conta de convenções
veneráveis como a pastoral, que narra relações entre pessoas de forma certamente redutiva,
insípida e não-convincente‖ (idem, p.46). Se for possível, ainda, incluir a pornografia como
um dos ―estados extremos da consciência e dos sentimentos humanos‖ (idem, p.47), já não é
admissível que um livro com tal conteúdo seja simplesmente banido ou ignorado pela crítica
especializada. Esse é motivo suficiente para que a afirmativa de Hilda de que estava fazendo
literatura pornográfica não fosse vista com tamanho temor por aqueles que reconheciam o
valor estético de sua obra. A afirmativa de Hilda somente se tornou irônica quando
reconhecidos os ironizados, ou seja, à medida que descortinou a hipocrisia e a parcialidade da
crítica literária brasileira, e expôs, ainda, um dos paradoxos da crítica literária em geral, de
que a pornografia parece padecer em especial. Não se vê qualquer condenação a uma certaexcentricidade do artista desde o período Romântico, sendo esta, inclusive, uma das principais
características deste que se tornou um tipo social, a quem é oferecida a possibilidade de
explorar os mais profundos e escusos estados mentais e de quem é reconhecida a capacidade,
ou vocação, em traduzi-los esteticamente. Durante o Modernismo, mesmo que implicasse a
exposição do público aos mais disparatados ultrajes, a experiência artística era mais alta
forma de realização estética. Neste contexto, em que mesmo o conceito de realidade precisou
ser revisto sob perspectivas de inúmeros campos do saber humano, a arte foi aceita comorefúgio em que todas as práticas seriam aceitáveis. Excluindo-se a pornografia:
O fato de que o espaço da narrativa é um topos ideal não desqualifica nem a pornografia, nem a ficção científica de sua condição de literatura. Tais negações dotempo social, do espaço e da personalidade reais, concretos e tridimensionais (assimcomo as ampliações ―fantásticas‖ da energia humana) são precisamente osingredientes de um outro gênero de literatura, fundado num modo diverso deconsciência. (idem, p.51)
Talvez por uma sociedade de base cristã como a Ocidental ter eleito a sexualidade
como um de seus interditos basilares, sempre se tenha cobrado daqueles que quisessem tratardo tema um comportamento distanciado, se não cientificamente, ao menos linguisticamente,
com a omissão de determinadas nomenclaturas ou descrições narrativas de estados mentais ou
corporais que envolvessem o ato sexual e, principalmente, caracteres obsessivos ou
pervertidos da prática sexual. Mas o que valida a consideração de uma obra de literatura
pornográfica como parte do cânone literário não é a simples descrição do coito ou de uma
personalidade o bcecada. Como defende Sontag, ―é a originalidade, a integridade, a
autenticidade e o poder dessa própria consciência insana, enquanto corporificada em umaobra‖ (idem, p.52) e mesmo o efeito de excitação sexual do leitor não pode desqualificá-la se
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estiver acompanhado das inúmeras ―ressonâncias‖ (idem, p.52) que estas sensações, às vezes
involuntariamente, provocam e ―carregam consigo algo que se refere ao conjunto das
experiências que o leitor tem de sua humanidade – e de seus limites como personalidade e
como corpo‖ (idem, p.52). Para Susan Sontag,
(…) a singularidade da intenção pornográfica é, na realidade, espúria. Mas aagressividade da intenção não o é. Aquilo que parece um fim é, na mesma medida,um meio, assustadora e opressivamente concreto. O fim, entretanto, é menosconcreto. A pornografia é um dos ramos da literatura (…) voltados para adesorientação e o deslocamento psíquico. (idem, p.52)
Desta perspectiva, como não considerar O caderno rosa de Lori Lamby uma obra
pornográfica? As detalhadas descrições das relações sexuais entre Lori e os ―moços‖, as
diversas obsessões, fantasias e fetiches sexuais citados (por exemplo, voyerismo [HILST,2005, p.15-6], imitação de animais [idem, p. 22-23], cheirar roupas íntimas [idem, p.22],
gosto por dejetos humanos [idem, p.33 e 86]) e, o principal deles, a pedofilia. A pornografia
trabalha sob a insígnia do excesso, do exagero, da excrescência, do esdrúxulo, do que no
homem deve ser contido para possibilitar a vida sociedade, assim como a loucura e a
violência, que, no entanto, jamais foram banidas da literatura. O tema da sexualidade talvez
tenha sido mais particularmente rechaçado por sua ligação com o corpo e o prazer, com um
instinto humano que, ao contrário da violência, por exemplo, não tem um fim que possa ser
direcionado para um bem social (como a guerra). O desejo sexual é um dos instintos humanos
mais difíceis de ser controlados, pois está ligado ao inconsciente e à formação dos sujeitos1. O
que se convencionou chamar pornografia na literatura não é suficiente nem para caracterizar o
gênero nem para justificar a sua anulação enquanto recurso estético, e exposição desta
incongruência ressalta a volubilidade e fragilidade dos critérios utilizados para a composição
do cânone literário, que se outorga a autoridade de eleger as obras devem fazer parte da
produção literária da humanidade, mas bane inúmeras formas de expressão desta mesma
humanidade, muitas vezes bastante mais legítimas, correspondentes ao mais profundo e
complexo arcabouço da psique humana, como é o caso da pornografia, talvez por serem
perigosas demais, fugidias, rebeldes à homogenia.
Por outro lado, podemos afirmar que seria bem provável que o caderno de Lori, se
aceito por Lalau e editado como livro, não obtivesse grande êxito como literatura
pornográfica nos moldes daquela de que precisava, aquela a que Susan Sontag se refere e
cujos parâmetros enumera, definidos sob a ótica da tradição crítico-literária. Os quatro1 Para um aprofundamento do tema, ver BATAILLE (2004).
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princípios básicos deste tipo de pornografia são subvertidos: a quantidade de intervenções de
Lori acerca de seu cotidiano (crises conjugais, rotina familiar, guerras ideológicas e literárias,
etc), interpretações e observações despropositadas, risos inoportunos e interrupções
anticlimáticas rompe qualquer unidade de intenção ou excitação sexual; uma história que não
conhece começo (Lori inicia sua narrativa com um aviso de que aquele não é o início da
história – ―Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu
contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história.‖ [HILST, 2005, p.13]) nem
fim (é interrompida bruscamente com a notícia de que os pais de Lori foram internados numa
casa de repouso – ―Não tenho mais meu caderno rosa. Mami e papi foram para uma casa
grande, chamada casa para repouso.‖ [idem, p.91]); apresenta uma preocupação nítida com
seu meio de expressão, em que a língua desempenha papel de destaque, como demonstram oencantamento que Lori demonstra pela palavra, por cada novo termo que descobre e corre a
buscar no dicionário ou pedir explicações (―sinto saudade do mar e dos tapinhas que o senhor
dá na minha coninha […] que belezinha mesmo essa palavra‖ [HILST, 2005, p.72]), o
preciosismo quase ― parnasiano‖ de tio Abel em suas cartas (―E quero falar que as cartas que o
senhor me manda são um barato. Parece língua estrangeira, mas eu leio alto, não muito,
fechada no meu quarto, e parece uma língua diferente, muito mais bonita. Quando eu crescer
eu quero escrever assim como as cartas que o senhor manda.‖ [idem, p.81-83]) , a preocupação em escrever corretamente (Lori frequentemente solicita que algum adulto
escreva para ela palavras que considera muito difíceis – p.ex. ― predestinada‖ [idem, p.35] e
ninfomaníaca [idem, p.70]); e não se pode negar que existem diversas relações humanas, e
seus conflitos, presentes na narrativa (o drama psicológico do pai de Lori frente a um mercado
editorial perverso, tema que percorre todo o caderno e não tem qualquer ligação com um
estímulo sexual dirigido ao leitor; a cumplicidade criada entre Lori e tio Abel; a consciência
de tio Abel quanto à sua perversão sexual ―que ninguém entendia‖ [idem, p.27], nem mesmoseu médico, ―que deu umas bofetadas na cara dele‖ [idem] , e o faz revelar a Lori que se
achava ―mau‖ [idem, p.34] e ―sentia um canalha‖ [idem] antes de conhecê-la). Esgotar a
análise de cada uma destas características é trabalho de extensão inapropriada para este
estudo, que talvez jamais possa ser concluído, sob pena de promover um fechamento redutor
desta obra de Hilda, o que não seria propósito de qualquer crítico interessado em arte literária.
O que se pôde perceber foi uma onda de especulação crítica acerca da trilogia
pornográfica lançada por Hilda Hilst no início dos anos 90 (com a concomitante degeneraçãoda análise intrinsecamente literária de seus textos), que levou alguns dos principais teóricos
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interessados na literatura de Hilda a rechaçar a alcunha de pornográficos a esses textos,
adjetivo este colocado pela própria autora. Na revista eletrônica Germina, no entanto, Alcir
Pécora, apesar de renegar tal termo (―A sugestão de literatura pornográfica aplicada ao
conjunto dos 4 textos, a rigor, também deve ser afastada como imprópria, a menos que os seus
termos sejam redefinidos‖ [PÉCORA, 2005]), possibilidade para uma redefinição, que não
empreende, mas que considera cabível. Pécora opta por analisar a obra de Hilda pelo viés da
obscenidade (―a questão dos vários usos do obsceno em sua obra‖ [idem]), corroborando o
que Raquel Souza intitula ―conflito conceitual‖ (SOUZA, 2008, p.23), que inclui, além dos de
obsceno e pornografia, o de erotismo. O autor defende ―que a noção de obscenidade se aplica
com justeza ao conjunto da obra de Hilda Hilst‖ (PÉCORA, 2005), mas ―que a noção de
obsceno que conta, aqui, pouco tem em comum com a idéia de literatura erótica‖ (idem), eque ―a tetralogia obscena, aliás, é seguramente a parte menos erótica de toda a sua escrita‖
(idem), já que a concebe como derivação de ―uma concepção de erotismo construída por
matrizes místicas tradicionais‖ (idem), que tende ao sublime, presente na produção poética de
Hilda, não em sua prosa ficcional. Pécora classifica a literatura pornográfica como a tradição
crítica literária sempre tendeu a considerá-la:
(…) a crueza desses escritos não tem jamais como efeito ou propósito a excitação do
leitor, a não ser que o leitor se trate (como me esforcei para imaginar certa vez) deum tarado lexical, de um onanista literário — tipo de excentricidade que, nãoduvido, deva existir no mundo. Acontece que os textos de Hilda Hilst ditos
pornográficos simplesmente contrariam a regra de ouro da pornografia banal, isto é,eles revertem todo o tempo para si mesmos e chamam a atenção do leitor para a suacomposição literária ao invés de seu conteúdo sexual, destruindo todo efeito desimulação de realidade. (idem)
O que o autor talvez não tenha observado é a possibilidade de um uso irônico do
gênero por Hilda, como levantado pela análise de Raquel Souza:
De fato, Hilda Hilst não fez pornografia comercial, mas não porque sua imaginação
criativa superior a tenha afastado de seu intento inicial tão bem delimitado. A críticaespecializada não considerou como irônicas as declarações da autora e levaramdemasiado a sério o pressuposto de que seu objetivo maior era ver seus livros nas
prateleiras dos best-sellers comerciais. Ignoraram, por exemplo, o fato de que, sealmejasse verdadeiramente agradar os editores, estes não estariam tão expostos aoridículo como acontece nas três narrativas. (SOUZA, 2008, p. 23)
Pécora chama de obsceno o que, neste trabalho, pretende ser analisado como
componente irônico do texto de Hilda: sua crítica à lógica mercadológica aplicada à arte
literária.
A noção de obsceno pertinente nesse quadro se aplica, pois, primeiro, à perplexidadedolorosa diante da identificação vulgar entre criação e usufruto mercadológico, ou,de outro modo, diante da percepção inconseqüente da invenção. Por isso mesmo, a
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questão do obsceno se aplica também ao contrário disso, isto é, a uma experiênciaradical de destruição e catástrofe que os textos parecem pressupor na criaçãogenuína. (PÉCORA, 2005)
Em sua análise de O caderno rosa de Lori Lamby, no entanto, Pécora admite a
classificação de obsceno no sentido que esta análise pretende conceber, alinhando-o tanto a
―obras de autores modernos explicitamente referidos dentro do próprio Caderno, como D.H.
Lawrence, Henry Miller, Pierre Löuys ou Georges Bataille, quanto a grande tradição das
novelas francesas do século XVIII, na forma de diários ou epístolas, que tiveram imitações
em todo o mundo‖ (idem). Apesar disso, ainda preso a uma corrente tradicionalista, pretende
vincular esta obscenidade a uma temática considerada mais nobre, intimamente ligada a
questões de gênero e criação artístico-literária. Esta leitura, realmente, não pode ser afastada,
mas inibe e pretende deliberadamente esconder o que em Hilda é o trabalho de inversão dos
princípios obscenos e pornográficos (da excitação sexual e do clichê, por exemplo) com efeito
irônico, desencadeado, principalmente, pela elocução ingênua da narradora Lori em
contraponto à postura moralista e radical de seu pai. Ainda assim, traz observações sobre O
caderno rosa que podem servir de como exemplos da perversão realizada pelo método irônico
de Hilda em diálogo com uma literatura pornográfica canonizada, o que será tema do próximo
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Capítulo II - Ironia: paródia e sátira em dupla clave
Para iniciar este capítulo, é necessário esclarecer sobre que conceitos se estabelecerá a
análise. A importância desta introdução tem como causa a diversidade de definições que
giram em torno dos conceitos de paródia, sátira e ironia, em parte em função das mudanças a
que foram submetidos durante o tempo, já que suas origens remetem à Antiguidade clássica.
Num esforço de delinear a trajetória do conceito de ironia, D. C. Muecke, em seu livro Ironia
e o irônico (1995), descreve as transformações na utilização do termo desde Aristóteles até a
Modernidade, para concluir que ―que toda arte, ou toda literatura, é essencialmente irônica‖
(MUECKE, 1995, p.18) e que ―distinguir entre um interesse pela ironia como arte e uminteresse pela grande literatura; um leva diretamente ao outro‖ (idem). Tal assertiva somente é
possível se a ironia for concebida como componente de formação da própria história do
conhecimento humano acerca da realidade:
Dizer que a história é o registro da falibilidade humana e que a história do pensamento é o registro da descoberta recorrente de que aquilo que garantimos ser averdade era, na verdade, apenas uma verdade aparente equivale a dizer que aliteratura sempre teve um campo incomensurável onde observar e praticar a ironia.Isto sugere que a ironia tem basicamente uma função corretiva. É como um
giroscópio que mantém a vida num curso equilibrado ou reto, restaurando oequilíbrio quando a vida está sendo levada muito a sério ou, como mostram algumastragédias, não está sendo levada a sério o bastante, estabilizando o instável mastambém desestabilizando o excessivamente estável. (idem, p.19)
No entanto, o conceito de ironia atualmente conhecido somente irá iniciar seu
desenvolvimento em fins do século XVIII e início do século XIX, com o Romantismo,
quando a palavra assumiu inúmeros significados novos. Muecke defende como decisiva a
concepção de uma ―natureza dupla‖ (idem, p.34) para a ironia, dividida entre o que chama
Ironia Instrumental, de caráter intencional, em que alguém realiza um determinado propósito
usando a linguagem ironicamente; e Ironia Observável, que seria a possibilidade de observar
algum fato do mundo ou da humanidade como irônico.
(…) o conceito de ironia se estendeu, neste período romântico, para além da IroniaInstrumental (alguém sendo irônico) até incluir o que chamarei de Ironia Observável(coisas vistas ou apresentadas como irônicas). Estas Ironias Observáveis – sejamironias de eventos, de personagem (auto-ignorância, autotraição), de situação, sejamde idéias (por exemplo, as contradições internas inobservadas de um sistemafilosófico como o marxismo) – podem ser locais ou universais. Todas elas eramdesenvolvimentos (…) do conceito de Welt-Ironie, Ironia Cósmica ou Ironia Geral, a
ironia do universo que tem como vítima o homem ou o indivíduo. Mas FriedrichSchlegel acrescentaria ao conceito um desenvolvimento posterior a até mais radical.Com ele a ironia tornou-se aberta, dialética, paradoxal, ou ‗romântica‘. ParaSchlegel, a situação básica metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser
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finito que luta para compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível.(idem, p.38-9)
Esse extravasamento do conceito de ironia para além de uma realidade puramente
retórica (―dizer uma coisa e dar a entender o contrário‖ [idem, p. 48]) torna-o ―a forma daescritura destinada a deixar aberta a questão do que pode significar o significado literal‖, uma
estrutura não só de linguagem como de conhecimento de mundo que permite a ativação de
―uma série infindável de interpretações subversivas‖ (idem, p.48). Ao considerar a ironia ―um
contraste entre uma realidade e uma aparência‖ (idem, p.52), Muecke direciona a definição de
seu conceito para a relação entre essas duas instâncias artificiais que são aparência e
realidade, à medida que os entende como criações, ou construções, do ironista, estando ele na
posição de vítima ou de agente. No entanto, esta concepção de ironia pode levar a uma
identificação do termo com uma simples mentira, enganação ou embuste, ocasionada
inclusive pela origem comum das palavras ironia e dissimulação, do latim dissimulatio.
Muecke lembra que, ―em Teofrasto, tanto o Eiron como o Alazon [personagens da situação
irônica] eram dissimuladores, um escondendo-se por trás de máscaras evasivas, esquivas,
autodepreciativas, o outro por trás de uma fachada de elogios‖ (idem, p.54), mas há uma
diferença latente entre os dois procedimentos que se revela na Modernidade: é que ―o ironista
moderno, quer desempenhe um papel eirônico quer um alazônico, dissimula, ou, antes, finge,
não para ser acreditado mas, como se disse, para ser entendido‖ (idem, p.54). Há um caráter
de cumplicidade, de identificação, entre o ironista e seu público que é fundamental para que o
ciclo da ironia se complete, e que a fará mais ou menos poderosa proporcionalmente à
quantidade de ―capital emocional‖ (idem, p.76) que o leitor ou o observador investiu na
vítima ou no tema da ironia. Ou seja, assuntos que estão na base da construção dos sujeitos e
das sociedades e que, por isso, trazem consigo uma pesada carga de afetividade, como
religião, amor, moralidade, política, história, têm um apelo potencialmente desestabilizador e
envolvente, já que a contradição é inerente a seus elementos constitutivos – fé e fato, carne e
espírito, emoção e razão, eu e o outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e
necessidade. Além disso, uma das características fundamentais da ironia é a sobreposição de
aparência e realidade que opera, de forma a permitir que tanto uma quanto outra possam ser
percebidas pelo leitor, o que a distancia diametralmente de qualquer tipo de enganação ou
mentira, processo que visa ao encobrimento total de uma realidade pela aparência que se
deseja estabelecer.
Antes de aprofundar este último tópico, porém, é necessário que seja feita uma mais
desenvolvida caracterização do que Muecke denomina Ironia Instrumental, também chamada
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Ironia Verbal, e Ironia Observável, o que será o passo inicial para que se defina o caráter
duplo da estrutura construída por Hilda Hilst em O caderno rosa de Lori Lamby. Para o
teórico, enquanto a Ironia Instrumental é ―um jogo para dois jogadores‖ (idem, p.58) em que
um ironista, colocando-se em um papel de ingênuo, chamado pelo autor de alazon (conceito
adaptado do termo latino acima mencionado), propõe um texto em um determinado contexto
de maneira que faça com que o leitor rejeite ―seu significado literal expresso, em favor de um
significado ‗transliteral‘ não-expresso de significação contrastante‖ (idem, p.58). A situação
irônica, então, se configurará através da encenação dessa ingenuidade pelo ironista, que se
demonstrará e se afirmará sinceramente inconsciente de que sua linguagem ou seu
comportamento num determinado contexto está incongruentemente em desacordo com a
situação tal como a vê o observador, embora o significado real de seu discurso seja inferível.Para que isso aconteça, os dois precisam compartilhar um universo de significação em
comum, ou seja, além da inversão significativa proposta, deve haver um reconhecimento pelo
leitor tanto do ironista quanto de sua verdadeira intenção por trás da pretensão irônica. Há,
portanto, uma atitude irônica que define este tipo de ironia, que é utilizada de maneira ativa,
proposital (tanto no sentido de atingir um propósito quanto de uma consciência de seu uso), é
instrumento – discursivo – do ironista, que a maneja para alcançar determinado objetivo.
Já o que Muecke denomina Ironia Observável prescinde tanto de ironista quanto de
pretensão irônica, ―(…) geralmente a distinção é clara: na Ironia Instrumental o ironista diz
alguma coisa para vê-la rejeitada como falsa (…); quando exibe uma Ironia Observável o
ironista apresenta algo como irônico (…) que existe ou pensa que existe independentemente
da apresentação‖ (idem, p.77). Como se pode perceber, a Ironia Observável tem um caráter
iminentemente passivo, ao contrário da Ironia Instrumental. Neste caso, a figura do alazon
ganha forma definitiva, representando a ―inconsciência confiante‖ (idem, p.55) de vítima da
ironia, ―totalmente irreflexivo, ou atrevidamente confiante; ou pode ser infinitamente
circunspecto, vendo toda cilada menos aquela em que ele cai‖ (idem, p. 56). Este tipo de
ironia depende de um referencial externo e, em sua maioria, chega até o homem já pronta, está
nas contradições mesmas do mundo, e o papel do observador é o de descobri-las e apresentá-
las a seu público. Muecke considera que, neste caso, a participação do leitor é menos ativa em
relação à Ironia Instrumental, em que é desafiado a perscrutar a verdadeira intenção do
ironista por trás de sua máscara ingênua. O papel principal na Ironia Observável é o do
observador, que vê alguma coisa irônica na vida e a apresenta a alguém como irônica, o quenão é uma atividade simples, ao contrário:
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Esta é uma atividade que exige, além de uma larga experiência de vida e um grau desabedoria mundana, uma habilidade, alinhada a engenho, que implica versemelhanças em coisas diferentes, distinguir entre coisas que parecem as mesmas(…). Segue-se que, estritamente falando, a ironia está apenas potencialmente nofenômeno e é efetivada somente quando o observador irônico representa-a para si
mesmo ou o autor irônico apresenta-a para os outros. (…) Assim, o papel doobservador irônico é mais ativo e criativo do que sugere a palavra ‗observador‘.(idem, p.61-3)
Mas, além deste modo abertamente encenado de ser irônico, o observador pode
representar o papel de ―ingênuo irônico‖ (idem, p.85), aquele que pode fazer perguntas ou
comentários cuja importância ele não compreende totalmente. Este recurso tem sua eficiência
baseada em sua ―economia de meios‖ (idem), já que o ―simples senso comum ou mesmo
simples ignorância ou inocência pode ser suficientes para ver através das complexidades da
hipocrisia ou expor a irracionalidade do preconceito‖ (idem). Esta utilização remete ao―ingénu‖ (idem) da literatura do século XVII, normalmente representado por um personagem
não-europeu, deslocado de sua cultura e inserido inadvertidamente na sociedade Ocidental,
que, por isso mesmo, oferece um parâmetro de diferença, de estranhamento e contradição
diante de convenções, crenças e costumes plenamente estabelecidos e legados ao senso
comum.
É preciso, ainda, identificar as causas de o desenvolvimento do conceito de ironia tal
qual é conhecido atualmente ter-se iniciado com o Romantismo. Nesse período da história são
fundadas as bases dos conceitos de subjetividade, individualismo, originalidade, e,
contraditoriamente, mas complementarmente, o surgimento da angústia existencial da
pequenez e incapacidade do homem frente à natureza e à sociedade. O paradoxo da existência
humana em criar uma realidade a que ele próprio estará submetido, e subjugado, compõe o
cenário contraditório ideal para a inscrição da ironia, que será identificada tanto com a
observação crítica deste paradoxo (Ironia Observável), quanto da encenação de uma situação
que desmascara a aparente estabilidade da condição humana em sua relação com o mundo
(Ironia Instrumental), é como se o mundo todo fosse um grande ―palco irônico‖ (idem, p.35),
em que toda humanidade encena o drama da existência. Essa será a estrutura esteticamente
trabalhada na forma romance, cujo tema já não poderá dispensar a subjetividade e a
identificação com o contexto social de que faz parte. O romance é um dos, senão o principal,
gênero literário que é composto pela interseção entre arte e vida. Citando Lukács, Muecke
ainda complementa esta constatação de que o romance ocidental, ao voltar-se para o contexto
social em que se insere,
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será necessariamente uma história de dissonância, colapso ou fracasso, onde a vidainterior e exterior se tornou totalmente dispare uma em relação à outra. O herói não
pode realizar seu desejo interior de compreender seu mundo ou estabelecer suaidentidade, e qualquer sucesso que ele possa ter (…) prova ser ilusório ouinadequado. Daí a natureza essencialmente ironigênica do romance. Mas dizer que o
romancista pode ver e apresentar a seus leitores a ironia do inevitável fracasso deseu herói é subentender apenas sua compreensão do problema, não sua abolição;existe ainda o passo seguinte de ver a sua própria obra à mesma luz, como sendo elamesma uma tentativa de compreender o mundo e, assim, igualmente aberta à ironia.(idem, p.117-8)
A radicalização da consciência deste ―problema‖ será o princípio fundamental do
Modernismo e do Pós-Modernismo, com uma crítica cada vez mais profunda e desafiadora
que expõe a impossibilidade de qualquer estabilidade ou rigidez tanto na definição de
conceitos quanto na própria concepção de realidade. Linda Hutcheon (1991a) esclarece que o
movimento inicial da arte logo após o Modernismo foi de fechamento, representado pela
corrente formalista, em que se volta para si mesma, para seus elementos formais intrínsecos,
numa tentativa de anular o contato entre a arte e o mundo exterior. À concepção de que a arte,
principalmente a literária, tem a capacidade de criar sua própria realidade corresponde uma
primeira reação de que ela prescindir de qualquer referente externo, representado pelo
conceito de história até então vigente, o lugar do registro factual do passado e do presente.
A ficção pós-moderna, no entanto, além de resgatar a presença da história na arte, o
faz de maneira crítica, penetra na dureza científica que se queria criar para o discurso
histórico e o transforma decisivamente com o surgimento da metaficção historiográfica,
quando o discurso histórico passa a ser entendido como o que na realidade é: um
entrelaçamento de discursos, ou narrativas, de diversas origens e caracteres, organizados mais
de acordo com interesses pessoais e políticos que com um pretenso compromisso com uma
verdade cientificamente comprovável. A consciência de que esse acesso seria impossível, uma
vez que a única forma de se conhecer algo que não se experienciou é através da narrativa, e
ela é irremediavelmente mediada e parcial, deflagra um questionamento acerca do insuperável
descompasso entre o fato e sua tradução escrita, acompanhada de uma crítica sobre a natureza
da seleção das narrativas da história escolhidas para representar o discurso historiográfico
oficial, bem como do papel do historiador. Agora encarado como também um ficcionista, a
desconstrução de sua autoridade enquanto detentor de uma verdade histórica é comparável à
decomposição do conceito romântico de autoria, intimamente ligado ao de originalidade, que
anulará a possibilidade da influência ou da inspiração na produção literária, uma vez que o
referente da criação estética não está mais localizado na subjetividade autoral, na capacidadede manipular essa rede discursiva que antecipa e permeia todo texto possível, ou seja, a
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intertextualidade. Segundo Hutcheon, a análise de Julia Kristeva sobre a obra de Bakhtin e a
adaptação de seus conceitos de polifonia, dialogismo e heteroglossia possibilitou, em certa
medida, o diálogo pós-moderno entre literatura e história, com o desenvolvimento de uma
―teoria mais rigidamente formalista sobre a irredutível pluralidade de textos dentro e por trás
de qualquer texto específico, desviando assim o foco crítico, da noção do sujeito (o autor)
para a idéia de produtividade textual‖ (HUTCHEON, 1991a, p.165), agradando, assim, tanto
aos anseios dos teóricos preocupados com a manutenção da especificidade da estética
propriamente literária quanto à inevitável similitude entre os discursos ficcional e
historiográfico, tal como entendidos pela pós-modernidade.
Porém, como já não se pode conceber qualquer inocência na relação entre literatura e
história, a reinserção da história na literatura se operará através da paródia, que atuará como
uma lente crítica, refratora, irônica, que permite se estabelecer um diálogo que plante a
diferença no interior da semelhança, e que não é radical ruptura, mas continuação em outras
bases. Nas palavras de Linda Hutcheon, ―a ironia realmente assinala a diferença em relação ao
passado, mas a imitação intertextual atua ao mesmo tempo no sentido de afirmar – textual e
hermeneuticamente – o vínculo com o passado‖ (idem, p.164). É importante perceber que o
que diferencia a paródia tanto da intertextualidade quanto da paródia medieval e renascentista
é exatamente sua componente irônica, é a exposição de um contraste inerente à relação entre
as instâncias que aproxima. Muecke cita que Thomas Mann, por exemplo, chega a confessar
ser, como James Joyce,
(…) incapaz de admitir, em matéria de estilo, outra coisa senão a paródia, que, namedida em que é um refuncionamento de algo que já existe, tem um elemento doautêntico. A invenção, tanto quanto possível, é reduzida à montagem, ao arranjo decoisas não inventadas. (…) a ‗solução‘ de Thomas Mann para aquilo que ele viucomo a versão século XX da impossibilidade de reconhecer subjetividade eobjetividade, sentimento e forma, arte e vida era (…) reconhecer e mesmo
fundamentar de antemão, dentro da própria obra, as necessárias limitações da arte edo artista, recuperar a espontaneidade da criatividade ingênua, transformando oespaço determinado em jocosidade irônica, e realizar ao mesmo tempo a sinceridadee uma aparência de objetividade por meio de „aquela ironia que brilha em ambos oslados, que joga às ocultas e irresponsavelmente – todavia não sem benevolência – entre os opostos (…)‘. (MUECKE, 1995, p.121-2, grifo do autor)
É possível perceber que ironia e paródia estão intimamente ligadas, mas não só
superficialmente. Esta ligação reside tanto na estrutura formal das duas quanto em suas
estratégias práticas, que operam em dois níveis: ―um primeiro, superficial, em primeiro plano;
e um secundário, implícito, ou em segundo plano. Mas esse último, em ambos os casos,
deriva seu significado do contexto em que é encontrado. O significado final da ironia ou da
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paródia repousa no reconhecimento da superposição desses níveis‖2 (HUTCHEON, 1991b,
p.34). Linda Hutcheon chega a afirmar que a paródia ―requer essa distância crítica irônica‖
(idem, p.34), que a afasta de outros recursos referenciais, como a imitação, a citação ou a
simples alusão. Além destes, vários outros tipos de estratégias de ―transtextualização‖ (idem,
p.42) já foram confundidos com a paródia, como o burlesco, o pastiche, o plágio, por
compartilharem entre si uma ―restrição de foco: repetem sempre um outro discurso textual . O
caráter de seu ato de repetição pode variar, mas seu ‗público-alvo‘ é sempre interno neste
sentido‖ (idem, p.43). Mas o caso da sátira é considerado especialmente curioso para a autora,
por detectar uma diferença latente entre as duas. Linda Hutcheon defende que a sátira é
aberta, remete a uma realidade exterior (moral, social, por exemplo), contrapondo-se ao
fechamento da paródia. A sátira tem uma ―intenção melhorativa ao expor ao ridículo os víciose loucuras da humanidade, visando à sua correção‖ (idem, p.43). Para a autora, o intuito de
unir os dois termos sob um mesmo conceito foi a maneira encontrada para não limitar a
paródia ―a um contexto estético‖, para abri-la às dimensões moral e social, mas a questão é
mais complexa, principalmente pelo fato de que os dois gêneros são frequentemente usados
juntos.
A sátira frequentemente usa a forma artística da paródia com finalidade expositiva ou
agressiva, quando deseja a diferenciação textual como veículo. Tanto a sátira quanto a paródia implicam um distanciamento crítico e, portanto, juízo de valor, mas a sátirageralmente usa esta distância para fazer uma declaração negativa acerca do que estásatirizando – ‗para distorcer, para desmerecer, para ofender‘ [Higuet 1962, 69]. (idem, p.44)
As definições realizadas até agora tem como objetivo expor um pouco da
complexidade do texto de Hilda Hilst, pois todos esses recursos (ironia – instrumental e
observável – , paródia e sátira) são utilizados e habilidosamente tramados na composição de O
caderno rosa de Lori Lamby. Existe uma série de duplos encaixados cuidadosamente na
estrutura do texto. O primeiro e mais profundo deles é a ironia. Já foi observado que arealização da ironia depende da percepção das duas camadas de significação que sobrepõe:
aquela que se diz, explícita; e aquela que se quer que o outro entenda que se quis dizer,
implícita. Como não há implícito sem cumplicidade, sem compartilhamento de matéria
significativa entre leitor/espectador/observador (já que a ironia pode estar presente em todas
as artes) e escritor/artista, ou seja, sem uma relação plenamente estabelecida entre texto e
contexto, reside aí outro duplo. A distinção que D. C. Muecke faz entre Ironia Instrumental e
Ironia Observável promove outra duplicação, já que ambas também estão inscritas nO2 A tradução dos trechos citados foi realizada pela autora desta monografia.
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caderno. Essa dobra está intimamente vinculada ao uso conjugado da paródia e da sátira,
outro composto estrutural desta obra de Hilda Hilst. É preciso esclarecer que todas essas
estratégias se interpenetram e se completam em sua estrutura profunda, e a divisão que se fará
aqui tem como objetivo facilitar a exposição da análise, e, de modo algum, pretende esgotar
as possibilidades de leitura da obra.
Começando-se pela ironia, podem-se eleger dois pares contrastivos, dentre vários
outros: a pornografia de Hilda Hilst versus a pornografia do pai de Lori; lógica infantil versus
hipocrisia. Em diversas entrevistas após o lançamento das obras que compõem sua chamada
trilogia pornográfica, Hilda declara que teria se rendido à lógica do mercado editorial, que sua
intenção, a partir daquele momento, era a de vender livros e ganhar dinheiro com
bandalheiras. Porém, não é difícil perceber que a fala da autora carrega consigo um outro
texto, de fundo, que, ao contrário de ceder em rendição, brada contra a perversidade da
transformação da arte em mercadoria, em produto comercial, e expõe a contradição de uma
crítica literária brasileira academicista e retrógrada, que condena a experimentação estética
não-convencional, e que, ao mesmo tempo, se deixa absorver pela lógica capitalista do
mercado de produção, condicionada a seu reducionismo e homogeinização. Esse discurso é
trazido para dentro de seu texto na figura do pai de Lori, que pode ser entendido como uma
caricatura do escritor intelectual inconformado, ―que estudou muito e ainda estuda muito‖
(HILST, 2005, p.19). Considerado um gênio da literatura (idem, p.18 e 95) por seus amigos –
apesar de chamado de coitado por Lori, que só conhece o ―gênio da garrafa que também
aparece na televisão no programa do gordo‖ (idem) – , tem que se render a Lalau, editor que
representa o mercado literário, definido por Lori como ―homens que fazem o livro da gente na
máquina‖ (idem, 19), já que ―ninguém com pra o que ele escreve‖ (idem, p.19) e ―ninguém lê
o que [ele] escreve‖ (idem, 26), mas não sem demonstrar sua revolta, seu repúdio, seu
enojamento, sua postura radical, contra o tipo de literatura que se vê impelido a produzir, que
inicia chamando de relato (idem, p. 25), passa a chamar de nojeira (idem, p.69) e descobre-se
ao final do livro que classifica como ―BOSTA‖ (idem, p.92) em uma das prateleiras de seu
escritório, contra Lalau e contra a massificação da cultura através da propaganda e dos meios
de comunicação – o pai chama Lori de ―mongolóide‖ (idem, p.19) quando a menina pede a
ele que peça ao gênio da garrafa ―tudo o que a Xoxa usa e tem‖ (idem) e chega a arrebentar a
TV com um objeto de ferro (idem). Suas crises ideológicas e morais vão-se intensificando ao
longo do caderno, as discussões com Cora, a mãe de Lori, ficam de ―um jeito mais forte emais gritado‖ (idem, p.69), com o uso cada vez mais frequente de xingamentos e palavras
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principalmente direcionadas a Lalau e a obra que está escrevendo, e chegam à histeria, com
cenas de total descontrole (―de repente ele abre a porta e sai aos gritos pela casa‖ [idem, p.75];
―de vez em quando ele abre a janela que dá pra vizinhança lá longe e grita: que cu, Santo
Deus, que cu‖ [idem, p.90]) e ameaças de suicídio (idem, p.77 e 84), de sair do país (idem,
p.85), que levam a mãe de Lori a recorrer a calmantes injetáveis. O pai de Lori defende a
poesia (idem, p.73), que Lalau abomina, o trabalho do escritor (―um livro não se faz como se
fazem crianças, é tudo uma construção, pirâmides, etc., e a custa de suor de dor etc.‖ [idem,
p.70]), a valorização da obra literária (―eu trabalhei a minha língua como um burro de carga,
eu sim tenho uma obra‖ [idem, p.69]), mas continua ―escrevendo a tal bananeira, quero dizer
a bandalheira que o Lalau quer‖ (idem, p.21), uma ―porcaria daquelas‖ (idem, p.91), mesmo
às custas de um pacto com o demônio (idem, p.85). A concepção do pai de Lori acerca daliteratura pornográfica é a do senso comum, da crítica literária tradicional e da comunidade
letrada lato sensu: literatura baixa, suja, sem valor, que corrompe a alma do artista, povoada
de efebos e lolitas. No entanto, suas atitudes extremadas, violentas, exageradas e sua
vociferação contra a lógica de mercado são inócuas, vazias, chegam a ser risíveis, e se rendem
à sedução do capital, e a caracterização do personagem tende à caricatura e ao escárnio. Em
resposta, irônica, Hilda Hilst oferece àqueles que a condenam e a sua obra, após uma análise
superficial e moralista, um texto ricamente elaborado, imbricado, construído sobre vozes ediscursos sobrepostos, duramente criticados através deste contraste irônico radical
proporcionado pelo excesso que faz parte da estrutura de O caderno rosa de Lori Lamby.
Quanto ao segundo par, o contraste se dá pelo contato e a discrepância entre a relação
de Lori com o sexo e sua educação formal por seus pais. Lori estabelece uma lógica, própria
para sua idade, que, com seus questionamentos incessantes, principalmente quanto ao
significado das palavr as (p.ex. ―raro‖ e ―predestinada‖ [idem, p.35]; ―Mercúrio‖ [idem,
p.71]), comparações (―lamber o piupiu dele como a gente lambe um sorvete de chocolate ou
de creme, de casquinha, quando o sorvete ainda está no começinho‖ [idem, p.14]) e deduções
(―Depois eu entendi só um pedacinho, que o sexo é uma coisa simples, então eu acho que o
sexo deve ser bem isso de lamber, porque lamber é simples mesmo‖ [idem, p.28]; ―Olha, tio
Abel, ontem fui encontrar outra vez com o Juca, o José. Nossa, Abelzinho, você sabe que ele
pôs a língua dentro do buraquinho do meu nariz? E do buraquinho da minha orelha? Acho que
é por isso que todas as mães mandam a gente lavar a orelha‖ [idem, p.90]) , desconstrói
qualquer moralismo – a relação de Lori com o dinheiro e com ganhar dinheiro em troca de
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sexo, principalmente em lamber e ser lambida, é emblemática e aparece em todo o livro,
culminando com a cena de masturbação que descreve:
(…) é tão gostoso ter dinheiro, tão tão gostoso que ontem de noite na minhacaminha, eu peguei uma nota de dinheiro que a mamãe me deu e passei a nota naminha xixiquinha, e sabe que eu fiquei molhadinha como na hora que o senhor melambe? sabe porque eu fiz assim? eu pensei assim: se o dinheiro é tão bonzinho quea gente dando ele pra alguém a outra gente dá tanta coisa bonita, então o dinheiro émuito bonzinho. E eu quis dar um presente pro dinheiro. E um bonito presente prodinheiro é fazer ele se encostar na minha xixiquinha, porque se você, e o homem
peludo, e o outro, e o Juca também gosta, ele, dinheiro, também gosta né, tio? (idem, p.89)
Questiona, também, aquilo que se considera literatura infantil: ―Não sei porque as
histórias pra criança não têm o príncipe lambendo a moça e pondo o dedinho dele
maravilhoso no cuzinho da gente. Quero dizer da moça. Papi poderia escrever histórias lindas pra criança contando tudo isso‖ (idem, p.67). No entanto, apesar de descrever relações sexuais
bastante intensas e mesmo enojantes, Lori o faz de maneira infantil e inocente, o que se pode
perceber mais claramente por sua seleção vocabular, mas também pelo excesso de detalhes
em suas explicações; seu desconhecimento acerca das palavras que denominam os órgãos
sexuais e os eufemismos utilizados na referência a eles, da origem das fantasias e taras
sexuais dos moços, do que seja orgasmo (idem, p.17 e 25) ou ejaculação (―água de leite‖
[idem, p.30]); a cumplicidade ingênua que estabelece com tio Abel, a que chega a dizer queama (p.37 e 72) que aparece como seu preceptor em assuntos libidinosos diversas vezes,
como quando a ensina a fazer sexo oral (idem, p.66), mas também é apresentado como a
pessoa com quem pode conversar e com quem tem a liberdade de fazer as perguntas que
quiser (―Hoje, graças a Deus, veio o tio Abel e eu posso conversar um pouco com ele.‖ [idem,
p.71]). Lori continua a ser uma criança que faz sua lição (idem, p.22 e 74), tem uma cama cor-
de-rosa (idem, p.13), brinca de boneca (idem, p.14), toma leite com biscoito (idem, p.17, 79 e
81), passa talquinho e óleo Johnson (idem, p.17), cola figurinhas (idem, p.65), tem pesadelo(idem, p.63), pede desculpa por falar/escrever os palavrões que ouve, etc. Lori somente tem
consciência dos interditos do seu mundo infantil – não comer muito doce [idem, p.25], por
exemplo – e o resto para ela continua na esfera do prazer, da sensação, até que ela possa
traduzir isso em língua, em conhecimento, mesmo que incipiente. Outro ponto de contraste
reside na sua relação com seus pais que, ao mesmo tempo que parecem comercializar seu
corpo, que a expõem a discussões, brigas e todo tipo de ofensas, procuram preservá-la – sua
mãe avisa aos moços que ―só pode por um pouquinho do dedo [lá dentro] senão dói‖ (idem,
p.17), apesar de teoricamente já ter se relacionado sexualmente com diversos homens, afirma
que ―nunca vi direito o piupiu do papi‖ (idem, p.14), seus pais demonstram preocupação em
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se referir a certos assuntos e utilizar certos termos na frente da menina (idem p.67, 71 e 77),
etc. Além disso, se Lori se rende ao fascínio do dinheiro e do ato de comprar, o faz não da
mesma forma que seu pai ou como a sociedade em que vive, sua alienação, inclusive
relacionada aos produtos da propaganda e da cultura de massa, é fruto de sua inocência
infantil, do hedonismo que comanda seu comportamento. A ironia em torno de Lori é tão forte
exatamente pela extrema dissonância de suas características e pela quantidade de críticas
vinculadas a sua presença enquanto personagem d‘O caderno: à lógica do dinheiro e do poder
aquisitivo, à propaganda e aos veículos de comunicação de massa, à homogeinização cultural,
à educação infantil, às contradições entre o comportamento dos pais e a postura cobrada de
seus filhos, à omissão e o descaso dos pais em relação a seus filhos, etc. Estas são todas
críticas voltadas para fora do texto, para o contexto em que está inserido. Outras críticas, decaráter formal, relacionadas à estrutura literária do texto, serão abordadas no próximo
capítulo.
Tanto a Ironia Instrumental quanto a Ironia Observável podem ser vistas como prática
irônica, maneiras de realização da ironia no texto. Estas duas formas se integram n‘O caderno
rosa e podem ser identificadas com a autora Lori e a autora Hilda Hilst, respectivamente, para
que servem muito bem. Primeiramente, porque Lori está dentro do texto, e como já pôde ser
percebido, este é um traço fundamental da Ironia Instrumental. A narradora-personagem-
autora manipula o texto para torcê-lo por dentro, utilizando-se dos seus próprios elementos
para evidenciar o contraste característico da ironia. O contexto com que Lori mexe é
intrinsecamente textual, não avança para fora dos muros da escrita3, ela dialoga entre textos,
entre os textos de seu pai, do dicionário, entre as cartas de Lalau, Caderno Negro, caderno do
cu do sapo Liu-liu, todos amalgamados, misturados, fluidificados pela elocução infantil da
autora dO caderno rosa. A postura ingênua de Lori frente às perversidades, escatologias e
obsessões que escreve, a atmosfera de primeiridade (―uma consciência imediata tal qual é‖
[SANTAELLA, 2007, p.43], ―nenhuma outra coisa senão pura qualidade de ser e de sentir‖
[idem], cuja qualidade ―é uma impressão (sentimento) in totum, indivisível, não analisável,
inocente e frágil.‖ [idem]) que se constrói produz um efeito irônico que tem seu ápice na
peripécia final do livro, quando se revela autora e não protagonista, quando a experiência se
transforma em puro discurso. Esse efeito, está claro, não tem nada de aleatório ou acaso, é
construção hilstiana.
3 Referência ao termo intramural , utilizado por Linda Hutcheon (1991b) .
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Alcir Pécora, referindo-se à mescla de gêneros operada por Hilda, e performatizada
por Lori, dá-lhe o adjetivo de anárquica (talvez o seja para Lori, mas, com certeza, não para a
autora), mas, ao contrário, ela seria melhor compreendida se concebida como efeito de sua
seleção de Lori como narradora-personagem:
(…) no caso d'O Caderno, cujo eixo narrativo se apresenta como um diário demenina, são conectados a ele um extenso conjunto de cartas, contos e relatosvariados; discussões a respeito de livros (na qual, por exemplo, os modelos deerotismo contemporâneo, como Lawrence ou Miller, são debatidos e recusados);traduções de poesia antiga, debates de questões estilísticas e lexicológicas, para nãomencionar a admirável proliferação que faz com que, além do "Caderno Rosa", hajaum "Caderno Negro", mais o conjunto de fábulas reunidas num certo "Caderno doCu do Sapo Liu-Liu". (PÉCORA, 2005)
Deve-se ressaltar que, no entanto, a relação entre a autora Hilda Hilst, Lori e os demais
―autores‖ do livro O caderno rosa de Lori Lamby não é nem um pouco simples ou
seguramente demarcada (ou demarcável), mas este é assunto para o próximo capítulo. Por
hora, é tempo de identificar a Ironia Observável na estrutura d ‘O caderno. Retomando a
caracterização desta estratégia, pode-se perceber que seu caráter é eminentemente exterior e
externo, está voltado para fora dos muros4 da textualidade escrita. Esta seria a ironia praticada
pela autora Hilda Hilst, aquela que tem o nome estampado na capa do livro O caderno rosa de
Lori Lamby, e representa sua posição de escritora inserida no contexto sócio-político-cultural
de que faz parte e em que e para que apresenta sua obra. Hilda infringe os padrões da
moralidade e da infância com sua Lori Lamby, ultrapassa os frágeis limites do ―bom gosto‖,
atinge o cânone e derruba a torre da autoridade autoral. Mas se fizesse somente isso, O
caderno rosa talvez fosse considerado mais um livro panfletário.
As estruturas abaladas por Hilda são as que sustentam as convicções de uma crítica
que, aparentemente rígidas e determinadas, são de superfície, e não resistem à pérfida
provocação dos instintos mais primitivos e mais repudiados representados pela obsessão
pornográfica para demonstrar que são humanos, demasiadamente humanos5, aqueles que a
construíram para atuarem como sentenciadores do Juízo Final (no sentido de finalidade) da
literatura, ou simplesmente para a leiloarem na praça pública do mercado editorial.
Escrevendo pornografia, ou bandalheiras, O caderno rosa é forma de mostrar que a estética
não está confinada a padrões pré-estabelecidos ou politicamente corretos, muito menos à
lógica de mercado, como poderia parecer. O que Hilda faz é expor o contraste da situação
4 Referência ao termo extramural , utilizado por Linda Hutcheon (1991b) .
5 Paráfrase do título de uma das obras de Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano.
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irônica que observa, em que os críticos literários foram substituídos por editores, a qualidade
estética pelo valor de troca, o livro foi transformado em mercadoria, o autor em personalidade
midiática e os preceitos éticos e moralistas parecem continuar vigentes, permanecem e são
defendidos hipocritamente a toda prova. A tensão deste contraste é personificada no embate
entre Lalau e o pai de Lori, o primeiro sem escrúpulos em ordenar, em chantagear, em se
aproveitar da falência do segundo, e o segundo violentando a si mesmo e se debatendo em
palavras para agredir e desqualificar o primeiro, porém mantendo-se subjugado numa relação
de que não pode se libertar, contra a qual não tem recursos para combater, em que estão em
jogo seus meios de sobrevivência, inclusive física, a despeito da psicológica.
Como já mencionado brevemente, mesmo o uso da pornografia pode ser entendido
como irônico e voltado para fora, para o contexto exterior ao texto escrito, porque, para Lori,
não há qualquer contraste entre sua prática sexual e o fato de ser uma criança. Para que o ciclo
irônico se conforme, já foi dito que é necessário, além do ironista e do ironizado, um terceiro
participante, que ―decifre‖, decodifique, o texto intencional por trás do aparente, convivendo
com ele, translúcidos os dois. Para Lori, autora de seu caderno, não há qualquer problema em
fazer sexo e ganhar dinheiro, é gostoso, prazeroso. Ela é o objeto da ironia, o alazon, o ingénu
estrangeiro à maldade e aos interditos culturais e sociais, para ela não há ironia, ela crê no que
escreve e escreve com a liberdade que sua condição permite. O ironista, neste caso, é Hilda
Hilst, que aponta, coloca ―o dedo na ferida‖ do moralismo brasileiro (principalmente no que
se refere ao contexto literário, mas não somente), do cânone retrógrado, tradicionalista,
arcaico que funda a crítica artístico-literária, e o objetivo da ironia é o público leitor, atingido
em suas convicções, que estabelece o contraste entre seu arcabouço textual – a partir do qual
julga, conforma, atribui significação – , e uma realidade ficcional que questiona a validade
destes parâmetros. A sutiliza desta inversão provavelmente não foi percebida por muitos dos
críticos que analisaram e execraram a trilogia pornográfica de Hilda, porque se ativeram a
superfície segura de supostos erotismo e agressividade gratuitos. Luciana Borges (2006)
afirma que a chamada trilogia obscena hilstiana:
(…) teve, na época de sua publicação, a finalidade específica de oferecer ao públicotextos supostamente mais deglutíveis e divertidos, que, aproveitando-se da temáticaerótica, fossem garantia de vendagem da obra desta escritora, que sempre lamentounão ser lida nem compreendida pelo público. Não obstante, a publicação de Ocaderno rosa causou um mal-estar extremo ao misturar, em uma mesma obra, oscomponentes pornografia e infância. Acusada de incentivar a pedofilia com a
criação de sua protagonista, a autora amargou a incompreensão tanto da crítica,quanto de seu restrito grupo de leitores fiéis, os quais reprovaram a incursão pela pornografia e qualificaram como lixo estético o texto do Caderno. (BORGES, 2006, p.21)
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Foram enganados por Hilda, talvez, mas o sabor da ironia ficou para aqueles que
tiveram coragem de ir além:
Nos logros existe uma aparência que é mostrada e uma realidade que é sonegada, mas naironia o significado real deve ser inferido ou do que diz o ironista ou do contexto em que odiz; é ‗sonegado‘ apenas no fraco sentido de que ele não está explícito ou não pretende serimediatamente apreensível. Se entre o público de um ironista existem aqueles que não sedispõem a entender, então o que temos em relação a eles é um embuste ou um equívoco,não uma ironia, embora sua não compreensão possa muito bem acentuar o prazer da ironia
para o público verdadeiro. (MUECKE, 1995, p.54)
O último par referido há alguns parágrafos é composto pela paródia e pela sátira. A
definição das duas estratégias realizada por Linda Hutcheon permite vincular a primeira à
Ironia Instrumental e a segunda à Ironia Observável. Uma está voltada para dentro e a outra
para fora, uma lida com texto e a outra com contexto, uma é crítica dos paradigmas e doslimites dos gêneros textuais e da tradição literária e a outra dos costumes, da artificialidade da
lógica humana, das contradições inerentes a ser humano. A primeira é instrumento,
manipulação, técnica; a segunda é capacidade de observação, experiência, perspicácia, risco.
A paródia é dominável, apesar de angustiante, é possibilidade de dialogar com o passado sem
deixar de ser presente, é confrontar a estrutura com a consciência de estar preso a ela. A sátira
é perigosa, é atingir o que, no outro, poder ser objeto de escárnio, mas que também faz parte
do eu criador, da própria condição humana, que só é eficaz se reconhecida, se possível,mesmo que inaceitável. O discurso paródico está preso ao discurso, o que não é pouco
(principalmente se for possível considerar que o real só é dado a conhecer ao homem através
da linguagem, da narrativa [HUTCHEON, 1991a, p.168]), mas continua sendo artificial. É
realidade ficcional, é o mundo criado pela língua e na língua, da experiência mediada pela
artificialidade do verbo, pela racionalidade do dito – é interna, está na literatura – e se há
efeitos externos (crises existenciais, prazer, mudança de atitude comportamental), este não é
seu objetivo direto, como não é o de toda forma estética, nem mesmo o da sátira. Mas essa
estratégia discursiva, ao voltar-se para fora, para o comportamento humano, para o seu estar
no mundo, em sociedade, agindo como ser cultural, limitado porém confiante de seu poder
sobre as coisas, do domínio da lógica racional e da significação, expõe o que estava
inconscientemente esquecido ou conscientemente escondido, expõe a existência do interdito,
do sagrado, e a possibilidade da transgressão, da profanação6, inclusive para o escritor, para o
narrador, porque se refere também a ele, a suas definições, a suas bordas, tornando toda ironia
6 Conceitos encontrados nas obras de Bataille (2004) – interdito e transgressão – e Agamben (2007) – sagrado e profanação.
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que desejar utilizar uma faca de dois gumes, de que só pode se desviar se não for ele mesmo,
se a primeira pessoa do discurso for um eu encenado, borrado com as tintas da pessoalidade,
mas, definitivamente, personagem. Este será o tema do próximo capítulo.
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Capítulo III - Narrativa em cena: de quem é o caderno?
(…) ao manusear uma ironia incerta, realiza uma salutar preocupação na escritura: recusadeter o código dos códigos (ou o faz tão imperfeitamente), resultando que (e este é, semdúvida, o verdadeiro teste da escritura enquanto escritura) nunca se sabe se ele éresponsável por aquilo que escreve (se há um tema individual por trás de sua linguagem):
pois a essência da escritura (o significado da obra que constitui a escritura) é prevenirqualquer resposta à pergunta: quem está falando? (BARTHES apud MUECKE, 1995, p.48)
O trecho acima citado refere-se à escrita de Flaubert, conforme analisado por Roland
Barthes. Como se pode perceber, a interrogação do título deste Capítulo não pretende ser
respondida, porque não acredita em uma resposta que possa corresponder à pergunta, ou
melhor, única resposta cabível é a inexistência de uma resposta conclusiva. Não é uma
questão de propriedade, é uma tentativa de analisar a forma pela qual as vozes discursivas d‘O
caderno rosa de Lori Lamby se relacionam. Afinal, se existe apenas um narrador plenamente
estabelecido pelas regras formais – Lori Lamby, que conta, em primeira pessoa, passagens de
sua vida – , há, no mínimo, mais uma narrativa dentro de seu caderno – as bandalheiras do pai
de Lori que a menina reescreve ―mais diferente, mais como eu achava que podia ser se era
comigo‖ (HILST, 2005, p.93). Porém, se analisado a partir do conceito de intertextualidade
(HUTCHEON, 1991a), há muitos outros textos que se entrelaçam na tessitura deste caderno:
o da autora Hilda Hilst; o do mercado editorial, personificado por Lalau; o de tio Abel,
personagem que encena a obsessão sexual própria da pornografia; o da mãe de Lori, que
representa as pressões da sociedade e a rendição da fortuna crítico-literária à lógica do
capitalismo; o da mídia homogeneizante, da cultura de massa, a que Lori se rende em seu
fascínio pelas celebridades e pelos produtos fetichizados pela propaganda; e muitos outros.
O que se pretende, neste capítulo, é se permitir analisar alguns dos efeitos produzidos
por Hilda Hilst ao eleger Lori Lamby como a narradora ―oficial‖ d‘O caderno rosa de Lori
Lamby, colocando também o nome da narradora-personagem na capa do livro, pouco acima
do seu, no título, entregando a ela a autoria do caderno e assumindo a autoria da obra.
O principal eixo do texto de Hilda é a escolha de uma narradora-personagem como
Lori: uma criança de oito anos de idade, que conta em detalhes suas (a princípio) experiências
sexuais de maneira natural, da forma que entende ser sua função no contexto familiar em queestá inserida e sua atuação social e profissional na relação com os ―moços‖.
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A impressão de estar lendo um exemplar de literatura pornográfica ao iniciar a narrativa d‘ O
caderno rosa somente pode ser substituída pela sensação de um ―tarado lexical‖ ou ―onanista
literário‖ (PÉCORA, 2005), no mínimo, ao se chegar ao terço final da obra. No entanto, é
também inegável que a peripécia final do texto não provoque uma revisão geral e leve a uma
ressignificação de toda a matéria da narrativa, em retrospectiva, completando a armadilha
ficcional tramada e identificando uma série de pistas espalhadas pelo texto, já que Lori jamais
afirma que está contando a história de sua vida em seu caderno rosa. A chave desta primeira
fruição talvez esteja no que Alcir Pécora propõe como a utilização da técnica do fluxo de
consciência por Hilda:
O fluxo (de consciência) em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo
teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobrelinguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursosencaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou emformação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminadosalternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam edisputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração. Daí aimpressão viva de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando. Eatuando em cena aberta: atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e
predominantemente estúpida. Mais do que a subjetividade ou a psicologia, o que asua prosa encena como flagrante de interioridade é o drama da posição do narradorface ao que escreve: aquilo que se passa com alguém quando se vê determinado afalar, mais, digamos, por efeito de possessão ou por determinação irresistível de
certa forma vicária de ser e de viver do que por vontade própria. (PÉCORA, 2005)
Quando Hilda cria um narrador displicente quanto a qualquer drama literário que o
afete além da sua adequação à lógica do mercado editorial (―objetivo‖ [HILST, 2005, p.26],
com ―mais conversa, mais diálogo‖ [idem, p.26], ―porque as pessoas gostam de conversas‖
[idem, p.29], um caderno ―nem muito grosso nem muito fino, mas mais pro fino‖ [idem,
p.36]), representado por Lalau e sua ―máquina de fazer livro‖ (idem, p.91), e determinado a
apenas criar literatura rentável, radicaliza o efeito da técnica e multiplica a potência deste ato,
numa reversão irônica altamente corrosiva, em contraste com a postura e as atitudes radicaisde seu pai em relação tanto a Lalau (com quem frequentemente discute e a quem
constantemente se refere com xingamentos e palavras chulas) quanto ao que considera ser um
escritor, ao que concebe por literatura e à homogeinização promovida pela cultura de massa.
A ironia, no entanto, apesar de concentrada em Lori, não parte dela, não é intenção de seu
discurso inocente e fluido, cheio de metáforas e comparações simples (Lori compara o ato de
lamber os órgãos genitais às lambidas de um gato [HILST, 2005, p.14 e 22] ou de uma vaca
em seu filhote [idem, p.33] e o tamanho do pênis ao de uma espiga de milho [idem, p.14]) e,em sua maioria, composto por períodos curtos e orações coordenadas. Se a ironia depende de
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um pacto entre seu autor e seu receptor para se estabelecer, este pacto se conforma entre Hilda
e o leitor d‘O caderno rosa de Lori Lamby, e sua personagem principal é apenas instrumento
da encenação irônica. Lori escreve com suas palavras (―Eu vou contar tudo do jeito que eu sei
porque mamãe e papai me falaram pra eu contar do jeito que eu sei.‖ [HILST, 2005, p.13]),
por vontade e atitude próprias, ao se deparar com o drama de seu pai, também escritor,
atormentado pela necessidade de produzir um livro de bandalheiras para sustento da família.
Acompanhada de uma fusão de gêneros que desestabiliza a concepção da obra como
um todo homogêneo, como realmente seria inimaginável num diário infantil, a narrativa funde
três diferentes narradores: Lori, o pai de Lori/tio Abel e a autora Hilda Hilst. Pécora defende
que as personagens de Hilda Hilst são caracterizadas pela incompletude, senão inconsistência,
―que vão se proliferando indefinidamente‖ (PÉCORA, 2005) e que ―são evidentemente
flexões de Hilda (…) que, no entanto, não adquirem, nelas mesmas, qualquer tipo de
profundidade psicológica‖ (idem). Analisando Contos d‟Es