Significação Conotativa Dos Discursos Das Ciências Sociais

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O trabalho científico, como se sabe, é agenciador de um pro-cesso de produção que desemboca num produto. Se se quiser partirdo conceito da forma geral da prática, como actividade que seexerce sobre uma matéria-prima para a transformar num produtofinal, recorrendo a determinados meios de trabalho, a caracteri-zação diferencial da prática científica exigirá a especificação dosdiversos elementos que a integram.

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  • Joo Ferreira de AlmeidaJos Madureira Pinto

    Significao conotativanos discursos

    as cincias sociaisdAps uma caracterizao global da chamada prtica

    terica e das actividades de interveno epistemolgica emetodolgica, os Autores procuram centrar a especificidadedas cincias sociais ao nvel da linguagem, pensando-as nasua articulao com os sistemas das ideologias. A explicitaode alguns dos conceitos bsicos da linguistica permite a pas-sagem anlise do conceito de conotao, para o qualpropem um enquadramento terico inter disciplinar, porforma a torn-lo apto interveno operatria na deteco--denncia dos sistemas semiolgicos implicados nos discursosdas cincias sociais.

    INTRODUO1. A pratica cientfica

    Em termos genricos, poder dizer-se que o nascimento e odesenvolvimento das diversas cincias so suscitados por pro-curas sociais, resultantes da necessidade de apropriao cogni-tiva e prtica do real.

    O trabalho cientfico, como se sabe, agenciador de um pro-cesso de produo que desemboca num produto. Se se quiser partirdo conceito da forma geral da prtica, como actividade que seexerce sobre uma matria-prima para a transformar num produtofinal, recorrendo a determinados meios de trabalho, a caracteri-zao diferencial da prtica cientfica exigir a especificao dosdiversos elementos que a integram.

    A matria-prima, objecto sobre que o trabalho terico incide,nunca constituda] pelo prprio real, por factos puros. Ela j sempre mais ou menos elaborada e inclui noes ideolgicas,intuies, teorias espontneas, factos construdos cientifica-mente em anteriores momentos, conceitos e relaes entre concei-tos, em suma, todo o tipo de informaes disponveis sobre o real.Os meios de trabalho terico passveis de utilizao sero essen-cialmente o corpo de conceitos, mtodos e tcnicas de que uma

  • cincia pode dispor num momento dado e que formam a teoria,em sentido amplo. O trabalho cientfico, elemento dinmico edeterminante de cada processo concreto de produo terica, di-ramos de cada ciclo terico, transformar ento, ao utilizar essesmeios, a matria-prima naquilo a que ALTHUSSER chama concei-tos especificados 1, ou seja, em conhecimentos cientficos novos2.

    A realidade silenciosa/; torna-se indispensvel question-lapara produzir respostas, o que implica, para alm de outras con-sequncias, pr em causa a velha noo de dado e o modopassivo como ele se reflectiria' cognitivamente.

    Dizia Gaston BACHELARD que o facto cientfico conquistado,construdo, constatado. Retomando tal ponto de vista, BOURDIEU,CHAMBOREDON e PASSERON sublinham que a hierarquia epistemo-lgica dos actos de produo cientfica impe justamente a subor-dinao da constatao construo e da construo ruptura3,demonstrando-se simultaneamente contra o empirismo e o for-malismo, e como tambm afirmava BACHELARD, que o vectorepistemolgico vai do racional ao real.

    Esta perspectiva afigura-se correcta; ela resulta duma clari-ficao da filosofia diurna dos cientistas nos diversos camposdisciplinares, ou seja, da reflexo que fazem sobre as respectivasprticas efectivas de investigao e que ser forosamente racio-nalista e diferencial4.

    possvel, no que respeita biologia, ir buscar uma ilustra-o em JACOB: Para que um objecto se torne acessvel anliseno basta aperceb-lo. necessrio que uma teoria esteja aptapara o acolher. Na permuta entre a teoria e ia experincia sempre a primeira que inicia o dilogo. ela que determina aforma da pergunta, e portanto os limites da resposta. 5

    Tambm no outra, parece-nos, a perspectiva de JeanPIAGETV, resultante dos seus trabalhos sobre psicologia. Ao desen-volver a teoria operatria da inteligncia, ele mostra, com efeito,como a razo comea por ter de se distanciar do objecto real parao poder pensar, ao mesmo tempo que se socorre dos seus prpriosmateriais e das suas prprias leis, irredutveis s do processoreal6.

    Mas a prtica cientfica pode revestir formas diversas7:transformao insensvel, sem solues de continuidade, do objecto

    1 Louis ALTHUSSER, Pour Marx, Paris, Franois Maspero, 1965, p. 187.

    2 O facto de a teoria poder aparecer quer como matria-prima, quer

    como meio de trabalho, quer como produto, implica que se trata de umelemento cujo sentido est ligado sua funo diferencial no processo eaponta para a anlise, por exemplo, dos seus diversos tipos de instrumenta-lidade interna e externa. ,

    3 Pierre BOURDIEU, Jean-Claude CHAMBOREDON e Jean-Claude PASSERON,

    Le Mtier de Sociologue, Paris, Mouton/Bordas, 1968, p. 31.4 Cfr. Gaston BACHELARD, Filosofia do Novo Espirito Cientifico, Edito-

    rial Presena, 1972, pp. 19-21.5 Franois JACOB, La Logique du Vivant, Paris, Gallimard, 1970, p. 24.

    6 Cfr. Nicole GALIFRET-GRANJON, La thorie opratoire de Ia connais-

    sance de J. Piaget, in La Pense, n. 152, Agosto de 1970, em especial p. 51.7 Cfr. Louis ALTHUSSER e tienne BALIBAR, Lire Ie Capital, n, Paris,

    Franois Maspero, 1968, p. 21. 6If5

  • do conhecimento, ou, pelo contrrio, descontnua e espectacular,resultando numa mutao radical da prpria estrutura desse ob-jecto do conhecimento. Esta ltima forma define sobretudo oscasos de inaugurao de cincias novas a benefcio do que temsido chamado corte epistemolgico, com o seu efeito de rupturaem relao aos discursos ideolgicos anteriores, cuja reproduoindenuncivel, e portanto impune, fica correlativamente impossi-bilitada8, embora por hiptese perdure de facto, em termos pro-visrios, por razes extracient ficas.

    Mas, se uma formao cientfica se constituiu j como tal, seoperou a transformao produtora do seu prprio objecto, elapassou a ser capaz de o reproduzir metodicamente9. Haver lugarento a transformaes-desenvolvimentos de produtos j valida-dos, j dotados de carcter cientfico e que se reintroduzem emnovos ciclos tericos, quer a ttulo de matrias-primas, quer attulo de meios de trabalho. Assim se desenvolvem processosacumulativos, acrscimos de informao, no interior do discursoterico disciplinar. Eles prprios podem, no entanto, originarnovas descontinuidades, novas mutaes da respectiva problem-tica terica, a que tem sido reservada a designao de rupturasintracientficas ou reformulaes. A maioria das vezes, o tra-balho terico no interior duma formao cientfica constitudatraduz-se, nos seus tempos fortes, no na negao-superaodas teorias anteriormente construdas, mas em englobar essasteorias, localizando-as, do mesmo passo, como casos particularesdos resultados mais potentes recm-adquiridos10.

    2 O conceito de matriz terica

    Em qualquer caso, o processo do conhecimento sempre umtrabalho de construo de objectos. Se tem naturalmente por hori-zonte, por ponto permanente de referncia, a realidade que visaapreender, essa realidade -lhe externa e irredutvel, preexiste aoprocesso de conhecimento e subsiste independentemente dele. Po-der ento falar-se de objectos reais-concretos, na sequncia de

    8 Cfr. Michel PECHEUX e Michel FICHANT, Sobre a Histria das Cincias,

    Lisboa, Editorial Estampa, 1971, pp. 13 e segs.9 Vd. Thomas HERBERT, Rflexions sur Ia situation thorique des

    sciences sociales et, spcialement, de Ia psychologie sociale, in Cahiers pourVAnalyse, 1 e 2, 3.a ed., pp. 162 e segs.10

    Sobre estas questes, e mais especificamente sobre o problema daalterao, nos processos cientficos, dos paradigmas, entendidos como reali-zaes cientficas universalmente reconhecidas, que durante certo tempoindicam os problemas-modelo e as respectivas solues a uma comunidadede especialistas, prope-se a leitura do estimulante livro de Thomas S. KUHNThe Structure of Scientific Revolutions, E. U. A., The University of ChicagoPress, 1962, 1970 (2.a ed., aumentada). Ver igualmente a descrio queFranois JACOB (op. cit., em especial pp. 24 e 25) faz da sucessiva descobertade novas organizaes-estruturas do ser vivo, ilustrada pela metfora dasbonecas russas, bem como a respectiva interpretao em termos de teoria da

    61}6 histria da biologia.

  • Nicos POULANTZAS lx, para designar os objectos efectivamente exis-tentes, existentes em sentido forte, e, por isso mesmo, singu-lares e originais. O trabalho cientfico, embora vise o conheci-mento desses objectos reais-concretos, ter frequentemente deconstruir objectos abstracto-formais, sem correspondncia directana realidade e, portanto, inexistentes como tal fora do processode conhecimento, que lhe servem de mediaes, de instrumentos,para a apropriao cognitiva dos objectos reais-concretos. Essesobjectos abstracto-formais mais no so do que conceitos e rela-es entre conceitos12.

    Duma disciplina cientfica constituda pode dizer-se que cor-responde, antes de mais, a um conjunto estruturado de questes,que se designa por problemtica terica. essa problemticaterica disciplinar que delimita um espao de visibilidade, quedefine as condies de aparecimento dos problemas, no percursoterico da disciplina considerada. Por outras palavras, as contra-dies que solicitam novos conceitos para delas dar conta, quepropiciam o trabalho de construo de novos objectos de conhe-cimento, s surgem, s podem surgir, dentro desse campo devisibilidade que a problemtica terica institui.

    certo que o surgimento de um problema determinado porum conjunto complexo de relaes: relaes entre os conceitosdisciplinares (intracientficas); relaes entre os conceitos e osobjectos reais que eles visam apropriar (informao-observaosistemtica e controlada-validao); relaes entre o campo dis-ciplinar considerado e outros campos disciplinares (pluridiscipli-naridade e interdisciplinaridade); relaes (de determinao)entre as prticas sociais no seu conjunto e a prtica cientficaem causa. Mas a problemtica terica constitui sempre pressu-posto do surgimento dos problemas enquanto propriamente cien-tficos, mesmo se alguns deles podem ser indcio de futura des-truio dessa problemtica, se nascem contra ela e exigem a suareestruturao. Segundo Thomas KUHN13, so caractersticas detodas as descobertas cientficas das quais emergem novas espciesde fenmenos: o reconhecimento prvio de uma anomalia (quejustamente caracteriza o problema), a emergncia gradual e si-multnea do reconhecimento emprico (bservationl) e concep-tual e a mudana consequente das categorias e procedimentosparadigmticos, frequentemente acompanhada por resistncia.

    Mas quais so as condies que permitem identificar umadada formao cientfica como j constituda, isto , como capaz

    11 Nicos POULANTZAS, Pouvoir Politique et Classes Sociales, Paris, Fran-

    ois Maspero, 1968, pp. 9 e segs.12

    Repare-se que aos objectos reais-concretos tambm correspondem, noplano terico, objectos cientificamente construdos. Estes ltimos, enquantoobjectos de pensamento, no podem confundir-se com a realidade a quedirectamente se referem, sendo antes, eles igualmente, instrumentos concep-tuais de apreenso dessa realidade. Apontamos aqui para a distino con-ceitOS abstractos / conceitos concretos, que no entanto nos no satisfaz doponto de vista terminolgico.

    13 Thomas S. KUHN, op. cit, p. 62.

  • de sustentar e reproduzir a sua autonomia relativa? A condiofundamental reside em ter ela construdo o seu prprio objectoterico. Esse objecto cientfico constitudo pelo conjunto con-ceptual construdo com o fim de se dar conta de uma multiplici-dade de objecto reais que, por hiptese, essa cincia tem em vistaanalisar l 15. Para CASTELLS, portanto, o objecto terico aparece,no apenas no sentido espontneo ou intuitivo, correspondendoquilo sobre_ que a disciplina se debrua, sobre que faz incidira sua ateno, mas tambm denotando o conjunto conceptual,ou seja, os prprios meios de trabalho terico de que ela se servepara a produo especializada de conhecimentos16.

    J se v que, neste sentido, a diferena essencial entre objectoterico (corpo terico disciplinar) e objecto abstracto-formal(conceito ou conjunto conceptual mediao) se refere predomi-nantemente s respectivas extenses, indicando uma descoinci-dncia de amplitude; correspondem aos objectos abstracto-formaisos sistemas sectoriais, mais restritos, dentro duma disciplina con-siderada.

    Em parte para superar a fluidez duma tal distino e emparte por nos parecer mais rigorosamente referenciada, afigura--se-nos til fazer neste ponto uma proposta: reservar o termomatriz terica para o que temos vindo a chamar objecto terico.

    Os elementos de uma matriz terica T poderiam notar-se,genericamente, cih' o ndice i representa a linha i da matriz, iden-tificando, em termos de problemtica, uma das dimenses desta,e o ndice j uma coluna da matriz, uma zona de problemas-

    Ser assim possvel identificar o corpo conceptual de que umaformao cientfica, considerada sincrnicamente, dispe atravsde uma matriz com n linhas representativa das n dimensesexploradas da problemtica e m colunas correspondentes s mdimenses dos problemas visveis. Portanto,

    / Clt ... Clm \

    = ( J =(*

  • ponderia pois ao acoplamento de linhas suplementares represen-tativas das dimenses inexploradas da problemtica. Se se en-tendesse que esta tinha n + 1 dimenses, a matriz terica T, queacima considermos, conteria uma zona de manobra correspon-dente a essas Z dimenses e, em termos de problemas, s eventuais5 dimenses da nova zona de visibilidade17.

    Claro que o aparecimento de contradies ou anomalias aque chammos problemas pode suscitar conceitos insusceptveisde integrao sistemtica na matriz existente. Mas ento estare-mos perante o sintoma de uma crise terica, s passvel desoluo em termos de reestruturao da prpria matriz e, conse-quentemente, de alterao da problemtica de referncia. Trata--se nesse caso de mudar de campo, de alterar o paradigma te-rico: as rupturas intracientficas impem a reformulao damatriz terica.

    O movimento traduzido pelo acoplamento de linhas e, foro-samente, de colunas processa-se atravs do recurso aos elementosintegrantes da matriz. O corpo conceptual que ela representa con-tm, portanto, operadores de denncia dos seus prprios vazios.Para utilizar a terminologia proposta por DESANTI 18, designara-mos esse duplo movimento de denncia e recobrimento de vaziospor descompactificao e compactificao do campo terico.

    Resta acrescentar que a matriz terica , em nosso entender,um sistema aberto19. Que se trata de um sistema, no cabemdvidas, uma vez que constituda por um complexo de elementosem interaco organizada20. Mas, alm disso, esse sistema noest isolado do exterior, no permanece em equilbrio esttico, emsituao de inrcia; pelo contrrio, os seus componentes so cons-trudos, destrudos e reconstrudos por fora da incessante dia-lctica entre a teoria e a realidade que ela visa apreender. Defacto, como acentumos, qualquer matriz terica disciplinar estem transformao contnua, por virtude do surgimento de proble-mas, contradies ou anomalias que solicitam a criao de novosconceitos e relaes entre conceitos, aptos a indicar e a resolveresses problemas. Tambm as fronteiras entre as vrias forma-es cientficas no so fechadas, e provavelmente cada vez maisse assistir ao recobrimento parcial de matrizes tericas discipli-nares, como acontece j, por exemplo, na biologia e na fsica.Por ltimo, no se podem esquecer as relaes decisivas que as

    17 Para um tratamento sugestivo do conceito de matriz, do ponto de

    vista matemtico, cfr. C. PISOT e M. ZAMANSKY, Mathmatiques Gnrales,Paris, Dunod, 1963, pp. 140 e segs.

    18 Cit. por Julia KRISTEVA, Les pistmologies de Ia linguistique, in

    Langages, Didier-Larousse, 1971, p. 6.19

    Encontra-se uma viso geral da teoria dos sistemas, bem como a ten-tativa de aplicaes da sua perspectiva no campo sociolgico, em: WalterBUCK^EY, A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, So Paulo, EditoraCultrix, 1971, em especial pp. 62 e segs.

    20 J^ n a n o t a 15, e de acordo com CASTELLS, c h a m v a m o s a ateno para

    uma possvel tipologia das componentes daquilo que ele chama campo ouobjecto terico e ns designmos por matriz. Qlfi

  • prticas cientficas mantm com as outras prticas duma for-mago social.

    Chega esta enumerao, cremos ns, para qualificar comoaberto o sistema que uma matriz terica constitui. O que nocabe aqui dar conta das implicaes de tal qualificao, em ter-mos de teoria geral dos sistemas, perspectiva que procura su-perar simultaneamente o mecanicismo e o organicismo.

    Julgamos entretanto verificveis em relao s matrizes te-ricas, o princpio da equifinalidade: um certo estdio evolutivopode ser atingido por vias diversas e partindo de diferentes con-dies iniciais; tudo depender das relaes internas ao sistemae entre o sistema e o exterior21. Por outro lado, e contrariamenteao que se passa nos sistemas fechados, os sistemas conceptuaisdisciplinares tm capacidade de resistncia ao aumento de entro-pia, e tendem mesmo a evoluir para estdios sucessivos de maiorordem, complexidade e organizao22.

    No mais pretendem estes dois exemplos do que chamar aateno para uma via de anlise cuja explorao poderia serfrtil.

    EPISTEMOLOGIA, METODOLOGIA E CONTEDOIDEOLGICO DOS DISCURSOS

    1. Introduo

    Impe-se antes de mais chamar a ateno para dois pontos,de forma a evitar confuses e ambiguidades sobre o tratamentodado no texto ao conceito de ideologia. Em primeiro lugar importanotar que o facto de se falar por vezes de ideologia no singularno deve fazer esquecer que em todas as formaes sociais hsempre uma pluralidade contraditria de sistemas ideolgicos decodificao do real, presentes-ausentes nos discursos concretoscomo seus nveis objectivos de significao. Por outro lado, muitoembora se procure generalizar as formulaes de forma a com-preender ideologias dominantes e ideologias dominadas, so asideologias dominantes, ligadas portanto ao bloco no poder, quedirectamente retm a nossa ateno: isto porque so elas queconstituem os obstculos fundamentais produo de conheci

    21 Para uma formulao do princpio da equifinalidade ver: Ludwig

    von BERTALANFFY, General System Theory, in System, Change and Conflict,ed. N. J. DEMERATH III e Richard A. PETERSON, The Free Press, Nova Iorque,1967, pp. 121 e segs,

    22 Uma anlise comparativa dos sistemas isolados e dos sistemas

    abertos, deste ponto de vista, aparece em: Anatol RAPOPORT, Mathematicalaspects of general systems analysis, in The social sciences, Mouton/Unesco,1968, pp. 325 e segs. Cfr. igualmente Systems thinking, ed. P. E. EMERY,.

    650 Penguin Books, 1969, em especial pp. 86-103.

  • mentos cientficos, designadamente nas chamadas cincias so-ciais. Quando frente nos detivermos sobre algumas caracte-rsticas especficas dessas cincias, procuraremos desenvolver umpouco este ponto.

    Feitas estas duas prevenes, podemos ento afirmar que asdiversas formaes cientficas so coexistentes e esto articuladaspor forma especfica com o sistema das ideologias, de tal maneiraque as prticas concretas de investigao, bem como os respecti-vos produtos, no so puramente tericos; apenas se encontramformaes ideolgico-tericas, de dominante ideolgica ou de do-minante terica.

    A progresso do conhecimento implica assim, genericamente,uma demarcao relativa ao campo ideolgico de partida, implicaa sua reduo localizada, a negao e superao das problemticasque o caracterizam. Desmontar as pressuposies espontneas quetendem a impor-se como evidncia na representao das relaesimaginrias dos indivduos com as suas condies reais de exis-tncia, destruir as falsas transparncias do senso comum maisou menos elaborado que se autodesignam como- conhecimentos,tais to as tarefas iniciais, sempre recomeadas, que os processoscientficos se propem.

    No se trata, no entanto, de aceitar um enunciado mani-questa e redutor do par ideologia/cincia, tal como em certa me-dida resultava em BACHELARD (a ideologia como tecido de errospositivos, tenazes, solidrios) 23 ou nos primeiros escritos althus-serianos. Os conhecimentos produzem efeitos especficos ao nveldo desenvolvimento das foras produtivas e as ideologias nopodem ser encaradas como o puro reverso deles. Na verdade, eembora no sejam homogneas entre si, elas constituem umainstncia de cada formao social21 cuja funo global a derepresentao-reconhecimento-comunicao-legitimao25. BADIOUnota, com muita clareza, que uma funo prtico-social (a daideologia) que ordena a um sujeito que mantenha o seu lugarno pode ser o negativo da produo de um objecto de conheci-mento, e precisamente por isso que a ideologia uma instnciairredutvel das formaes sociais, que a cincia no iria dissol-ver [...]26.

    Feita esta preciso, que frente ser desenvolvida, podere-mos ento afirmar, em relao epistemologia, ter ela por objectoas condies e os critrios de cientificidade dos discursos cient-ficos. Teoria da histria dos processos especficos de produode conhecimentos, a epistemologia enuncia e denuncia os obst-

    23 Gaston BACHELARD, op. cit,, p. 14.

    24 Tomamos o conceito de instncia no sentido proposto por Daniel VIDAL,

    Formation sociale et mouvements sociaux, in Sociologie et Socits, n, 2,1970, p. 173: lugar lgico de tratamento de cada um dos problemas funda-mentais de qualquer forma social, e portanto o princpio pelo qual toda aformao social se produz como tal.

    25 Cfr. Manuel CASTELLS, Problemas de Investigacin en Sociologia Ur-

    bana, Madrid, Siglo XXI, 1971, p. 207.26

    Alain BADIOU, O (re)comeo do materialismo dialctico, in Estru-turalismoAntologia de Textos Tericos, Portuglia Editora, 1968, p. 335. 651

  • culos que tendem constantemente a reintroduzir o ideolgico nocientfico, E, para o conseguir, localiza-se simultaneamente nointerior e no exterior desses processos. Reflexo-interveno sobreas prticas cientficas, em todas as suas operaes e fases, elafunciona como um sistema vigilante de controles que se exerceportanto tambm sobre a metodologia.

    Esta ltima definida em Le Vocbulaire des Sciences 8o-ciales como a arte de aprender a descobrir e analisar os pressu-postos e processos lgicos implcitos da investigao, de formaa p-lo em evidncia e a sistematiz-los 27.

    Os diversos mtodos organizam assim, criticamente, as pr-ticas de investigao. O seu campo de incidncia constitudopelas operaes propriamente tcnicas, das quais portantose distinguem. A funo do mtodo, numa formao cientficadada, consiste fundamentalmente em operar a seleco das tcni-cas de pesquisa a aplicar por referncia ao objecto e teoria queo constri, em determinar-lhes os limites e as condies teis deexerccio, em relacionar e integrar os resultados obtidos. Por issose pode dizer que o conjunto de procedimentos constitutivos dumatcnica de investigao tem de ser de algum modo reinventadocientificamente de cada vez que a sua utilizao requerida.

    Tentando formalizar a articulao dos diversos meios de tra-balho num ciclo terico dado, prope-se o quadro da pginaseguinte.

    O ponto de partida de um qualquer ciclo terico , como antesse viu, um conjunto de informaes sobre o real, referencivela uma problemtica terica: informaes no elaboradas (no-es) de natureza ideolgica, portanto, ou s parcialmenteelaboradas, constitutivas de um problema sobre que uma matrizdisciplinar poder trabalhar. esse trabalho de transformaoque, no seu termo, tentar contribuir para a apropriao tericado problema de partida, pela construo dos elementos indispen-sveis. Tentar construir objecto(s) (cv*) apto(s) a dar contada zona de problemas que aparece representada no esquemapor x.

    As fases do ciclo exigem recurso aos meios de trabalho: teoria,mtodos, tcnicas- E j se v que aqui se considera a teoria, enf or-madora de todo o processo, no que ela tem de internamente instru-mental, ou seja, na sua aptido para accionar os outros elementosda prtica cientfica.

    Os resultados parciais (r9f r'*) que o processo vai gerandopodem referir-se quer a conhecimentos directamente construtoresdo objecto, quer a elementos por assim dizer processuais, que aprtica de investigao impe, em funo do prprio objecto quese constri. Podero ser, portanto, elementos conceptuais da teoriaem formao ou elementos conceptuais que essa teoria necessaria-mente envolve no prprio processo da sua constituio. Nesteltimo caso (tcnicas metodologicamente criticadas) admitir-se-que os elementos ou j tinham sido utilizados em trabalhos ante-

    27 Raymond BOUDON e Paul LAZARSFELD, Le Vocbulaire des Sciences So-

    652 exales, Paris, Mouton, 1965, p. 4.

  • MTODO

    TCNICAS

    1

    Objectofl = \ K\\ > K 1 2 > > K\n 1 a C0I1S-

    1 1 J truir

    > 2 = { * 2 1 , * 2 2 ) . . . , * , , , } r S e - _vel auma

    zonade pro-blemas

    '={**'**' ' % j *}

    TEORIA

    Selecode

    tcnicas

    2

    ' l

    '4+1

    Obtenode

    resultadosparciais

    3

    X $ X

    = r'x

    Integraodos

    resultadosparciaisobtidos

    4

    Produto--objecto

    construdo

    5

    Ver notas ao quadro da pgina seguinte

  • riores da matriz terica disciplinar ou foram recuperados/rein-ventados ad hoc.

    Os elementos novos dos dois tipos considerados sero pass-veis de integrao sistmica na matriz se o seu grau de generalidadee de disponibilidade, para alm do conhecimento concreto da si-tuao concreta que a investigao em causa visa directamente,assim o impuser.

    E no se deve estranhar que a matriz terica T possa incluirconceitos processuais (mtodos, tcnicas) s porque fora dito quea considervamos de um ponto de vista sincrnico. que os con-ceitos-conhecimentos so de certo modo indissociveis da prticaque os produziu; ler uma matriz terica significa ler a espessuraoperatria do que nos aparece em primeira anlise como meraarticulao sistmica e lgica de resultados puros. Nem de outramaneira se poderia retirar da matriz a fora instrumental quepermite o seu contnuo movimento de auto-superao.

    No existe uma cincia unitria e universal. Existem, sim,formaes cientficas historicamente situadas, dotadas de autono-mia relativa, de temporalidade prpria, de ritmos desiguais dedesenvolvimento, como desigual a sua insero em estruturas so-ciais determinadas. Cada uma dessas formaes autodefine o seucampo, constri e reconstri os instrumentos adequados ao tra-tamento dos seus objectos, ou seja, articula diferencial e explicita-mente a teoria e a experincia dentro do processo de produo deconhecimentos.

    J se v que no faria sentido a busca duma metodologiaNotas ao quadro da pgina anteriora) t19 t2, ..., tif ..., tn Conjunto das tcnicas disponveis, cada uma delas

    integrada dos respectivos elementos, notados K (v. g.: K12 elementode ordem 2, pertencendo ao conjunto 1).

    6) x Zona de problemas; xe { 1, ..., j , ..., m }. (Cfr. nas pp. 647 e 648definio de matriz terica).

    c) c (colunas 3 e 4)Elementos conceptuais previamente integrados namatriz terica;Ix Conjunto de noes e/ou intuies sobre o objecto real e, portanto,referencivel a x, mas no especificamente referenciado s dimenses daproblemtica; da no se prever ndice representativo das linhas da matriz;a> J3> y Elementos genricos de trs quaisquer subconjuntos do con-junto { 1, ..., , ..., n } . (Cf. ainda definio de matriz terica);a Elemento genrico de um qualquer subconjunto do conjunto { 1, 2,..., w., } dos ndices de ordem dos elementos da tcnica 1;b Elemento genrico de um qualquer subconjunto do conjunto { 1, 2,..., ni + 1 } dos ndices de ordem dos elementos da tcnica -f-1;rx*

    r'P Resultados parciais, eventualmente integrveis na matriz terica.

    d) c (coluna 5)Conceito eventualmente integrvel na matriz. Se y < n(sendo n o nmero de linhas da matriz terica representativas das ndimenses da problemtica) - validao/infirmao (reformulao) deuma zona da matriz; se n < 2 / < w + l - > acoplamento eventual deuma nova linha matriz (cf. p. 648). Embora um coclo terico desemboque,normalmente, num produto mltiplo, considera-se, com o objectivo desimplificao do esquema, ser y representativo de um nico elemento.

    65If e) '> 1 > Of =f{= , =ff= Operaes lgicas genricas.

  • apriorstica, fundamento intemporal, uniforme e desenraizado deuma pesquisa ela prpria idealizada. Tal metodologia apriorsticahaveria inevitavelmente de desembocar num exerccio estril denormativismo lgico, construtor de um espao de rigor ilusrio.E ela dobrar-se-ia de outra prioridade obsessiva: o estudo perfec-cionista dos instrumentos de investigao, destinados a aplicaesautomatizadas, rituais e abstractas, incapazes, por isso mesmo,de se inserirem eficazmente na dialctica teoria-experincia.

    Mas no basta enunciar e aplicar o sistema coerente doscontroles internos e formais sobre os instrumentos analticos,tanto mais que as referncias disponveis para apoiar as opesmetodolgicas so frequentemente mltiplas e contraditrias.A metodologia no pode, por um lado, ceder tentao de iludira relao de interioridade que mantm com prticas cientficasconcretas, nem, por outro lado, furtar-se aos controles que sobreela prpria exerce a epistemologia.

    Tanto a epistemologia como a metodologia abordam, portanto,criticamente as prticas concreta de investigao medida queestas se desenrolam, abordagem situada, como vimos, a nveisdiversos. Desde logo, e como tambm vimos, resulta a impossibili-dade de um discurso geral epistemolgico e de um discurso geralde mtodo, no sentido de um conjunto de receitas a-histricaisdestinadas a promover garantias de cientif icidade.

    Igualmente se no poder devolver epistemologia a impos-svel funo de fundadora exterior do saber cientfico: as teoriase as construes cientficas autodefinem-se e autovalidam-se.O funcionamento da epistemologia parcialmente parasitrio, umavez que a sua interveno se verifica sempre aps se ter ali-mentado dos quadros conceptuais disciplinares.

    2. Dimenses de interveno epistemolgicaSe a sua razo de ser reside na permanente articulao das

    ideologias aos processos de produo de conhecimentos, comopoder a reflexo epistemolgica desempenhar o seu papel de in-terveno eficaz na conjuntura cientfica, por forma a promovera distanciao entre conhecimentos e ideologias? Como podersituar as condies propiciadoras de demarcaes, de cortes, dereformulaes? Apenas tendo em conta a ligao de cada for-mao cientfica ao conjunto do espao ideolgico no qual justa-mente se definem as dialcticas ideologias tericas/cincias, umase outras determinadas pelas ideologias prticas28 29. Mas

    28 As ideologias prticas, na proposta de ALTHUSSER, so formaes

    complexas de montagens de noes-representaes-imagens, por um lado, emontagens de comportamentos-conduta-atitudes-gestos, por outro. Todo o con-junto funciona como normas prticas que governam a atitude e a tomada deposio concreta dos homens em relao aos objectos reais e aos problemasreais da sua existncia social e individual e da sua histria. Seria provavel-mente mais preciso dizer que so noes-representaes-imagens inscritas emcomportamentos... Com efeito, as ideologias manifestam-se como nveis designificao.

    29 Cfr. A. SEDAS NUNES, op. cit., pp. 81 e segs., em especial p. 94. 655

  • preciso ir ainda mais alm. fi indispensvel pensar a insero dascincias nas formaes sociais. 0 que remete para a dupla articu-lao prticas cientficas/prticas ideolgicas com as outras pr-ticas constitutivas das relaes sociais, com as outras estruturasou sistemas que determinem os limites dessas prticas num espaoe num momento histrico dado. indispensvel definir a redecausal das modalidades mltiplas de interaco, j que mult-voca a dialctica teorias/ideologias e ela passa sem dvida pelaglobalidade da estrutura social. Por outras palavras, e em resumo,as condies sociais de produo terica so determinantes emrelao s condies tericas dessa produo.

    E certo que a necessidade de conservar epistemologia ocampo restrito do estudo das condies e critrios formais de cien-tificidade fortemente sublinhada pela maioria dos autores. Masno menos certo que seria mutilador iludir as outras dimensesde anlise, ligadas s condies materiais de produo dos dis-cursos tericos, seja qual for, de resto, a sede disciplinar emque tais anlises de encaixem.

    Mas a perspectiva epistemolgico-metodolgica, em sentidorestrito, circunscreve-se assim essencialmente s dimenses sin-tctica (estudo das relaes dos signos do discurso cientficoentre si, e portanto das normas lgicas de organizao dessediscurso) e semntica (relao dos signos com aquilo que repre-sentam, com os seus referentes). Logo se v que no encontrameios de resposta, a no ser deslocada, a questes como a dasarticulaes teorias/ideologias, ou da objectividade, entendidacomo um certo tipo de relao entre os conhecimentos e o seuobjecto30.

    Para alm da anlise diferencial dos discursos cientficos, necessrio localizar, como diz Eliseo VERN, OS seus meios deproduo, relaes de produo, circuitos de circulao e consumo,mecanismos de manuteno e mudana 31, o que depende da inter-seco da anlise propriamente epistemolgica com o conhecimentoa construir das formaes sociais como totalidades articuladas deestruturas e prticas. Ora justamente esse ponto nodal de ligaoque nos parece poder definir, simultaneamente, o espao da episte-mologia e o da sua articulao exterior indispensvel, os seuslimites e os recursos que noutro lugar buscar para possibilitaro cumprimento da sua prpria funo.

    Sem dvida que as anlises concretas ho-de resultar emvariaes significativas, no apenas por causa da diversidade doscampos sociais de insero das formaes ideolgico-cientficas,no apenas devidas diferenciao de ritmos e determinaes dasprodues cientficas numa formao social dada, mas ainda deri-vadas dos prprios nveis ou fases dum mesmo processo terico.Sobre este ltimo aspecto, e a ttulo de exemplo, poder afirmar-se,

    30 Cfr. Batrice SOKGLOFF, La conception wbrienne des sciences socia-

    les et les obstacles majeurs une sociologie scientifique, in Sociologie et Soci-ts, m, 1, 1971, p. 129.

    31 Cfr. Eliseo VERN, Ideologia, Estrutura e Comunicao, So Paulo,

    656 Cultrix, trad. do original argentino, 1970, p. 169.

  • em geral, que o grau de condicionamento social, ou, inversamente,o grau de autonomia do processo terico, variar consideravel-mente da produo de conhecimentos sua utilizao. O controleda utilizao determina, com efeito, limites ainda bem mais rgidosdo que aqueles que a procura social impe ao produto.

    Ao constatar a insuficincia dos controles epistemolgicos emetodolgicos, VERN prope uma nova dimenso de anlise, adimenso pragmtica da cincia, metalinguagem da linguagemcientfica. Ela consistiria no estudo das relaes dos signos (dodiscurso cientfico) com os usurios, ou seja, com aqueles que osemitem ou recebem em determinadas situaes S2, na anlise dosistema (aplicado) de decises que conduz a uns certos produtoscientficos, e no a outros, dentro dos limites demarcados por umconjunto definido de regras formais sintctico-semnticas. A an-lise pragmtica integraria as outras duas dimenses, exaustivasdo estudo das condies formais do conhecimento cientfico e dasnormas que regulam o seu exerccio, s ela desembocando numaviso completa do conhecimento cientfico como processo produ-tivo no interior da sociedade 33. Ponto de partida da pragmtica, pois, o estudo das normas de procedimento, das tcnicas e doscorpos conceptuais existentes numa disciplina num momento dado,como campos de alternativa dentro dos quais se movem as decisesdo cientista. H que recensear esses campos de alternativa, paranum segundo momento determinar as razes das suas caracters-ticas (articulaes, dominncias, etc) . o segundo momento quejustamente vem implicar a considerao do contexto social e dosmecanismos mediadores da relao entre as variveis sociolgicasglobais e os produtos do conhecimento cientfico 34.

    A resultados semelhantes, do ponto de vista que procuramoselucidar, chega Michel FOUCAULT ao pretender dar conta das con-dies necessrias emergncia historicamente localizada dumobjecto de discursoS5. A busca dessas condies define um percursoanaltico incidente num conjunto articulvel e complexo de rela^ -es: sistema das relaes primrias ou reais, sistema das rela-es segundas ou reflexivas e sistema das relaes que se podemchamar propriamente discursivas. Estas ltimas determinam ofeixe de relaes que o discurso deve efectuar para poder falardestes ou daqueles objectos, para poder trat-los, nome-los, ana-lis-los, explic-los, etc. [Elas] no caracterizam nem a lngua queo discurso utiliza, nem as circunstncias em que ele se desenvolve,mas o prprio discurso enquanto prtica. Determinar o sistemade normas enfarmador da prtica discursiva criadora de objectosimplica a centragem da especificidade das relaes discursivas,que, por sua vez, passa pela anlise da sua articulao com osoutros dois sistemas de relaes referidos.

    Ter por objecto a instncia do acontecimento discursivo,

    32 Cfr. Eliseo VERN, op. cit., p. 170.

    33 Id., ibid., p. 191.

    34 Id., ibid., p. 192.

    35 Michel FOUCAULT, Uarchologie du savoir, Gallimard, 1969, pp. 61

    e segs. 657

  • objecto rigorosamente demarcado da lngua e do pensamento, exigeportanto o recurso a outros sistemas no discursivos, enumeradospor FOUCAULT de forma exemplificativa: acontecimentos [...]de ordem tcnica, prtica, econmica, social, poltica, etc. 36 E istomuito embora no tenha o prprio autor sistematizado as relaesentre as formaes discursivas e as formaes sociais e econ-micas 37. O mesmo caminho necessrio para a descrio, aindaque sempre parcial, do arquivo, jogo das regras que deter-minam numa cultura o aparecimento e o desaparecimento dosenunciados, sua permanncia e sua supresso, sua existncia para-doxal de acontecimentos e de censos 38. o que claramente resultatambm do seguinte passo: a descrio arqueolgica dos discursosdesenvolve-se na dimenso de uma histria geral; ela procuradescobrir todo esse domnio das instituies, dos processos econ-micos, das relaes sociais, sobre os quais se pode articular umaformao discursiva; ela procura mostrar de que forma a auto-nomia do discurso e a sua especificidade lhe no do no entantoum estatuto de pura idealidade e de total independncia histrica;o que ela quer iluminar esse nvel singular em que a histriapode dar lugar a tipos definidos de discursos, que tm, eles mesmos,o seu tipo prprio de historicidade e que esto em relao comtodo um conjunto de historicidades diversas.39 O espao dosaber, objecto da arqueologia, onde irrompem e se recortam ascincias identificvel ao que designmos por instncia ideol-gica40. nesse espao, estruturado pela articulao de prticasdiscursivas e no discursivas, que se definem as relaes ideolo-gias/cincias. E FOUCAULT pode assim formular rigorosamente aquesto: Abordar o funcionamento ideolgico de uma cincia parao revelar e para o modificar no consiste em mostrar os pressu-postos filosficos que podem habit-la; no consiste em voltaraos fundamentos que a tornaram possvel e a legitimam:consiste em rep-la em questo como formao discursiva; con-siste em abordar, no as contradies formais das suas proposi-es, mas o sistema de formao dos seus objectos, dos seus tiposde enunciados, dos seus conceitos, das suas opes tericas. Con-siste em retom-la como prtica entre outras prticas.41

    Tambm em Le Mtier de Sociologue se toma inequivocamenteposio sobre a importncia instrumental da sociologia do conheci-mento 42 e da sociologia da sociologia43, no sentido de inserir as

    36 Michel FOUCAULT, Resposta ao crculo de epistemologia, in Estru-

    turalismo e Teoria da Linguagem, Petrpolis, Ed. Vozes, 1971, p. 24.37

    Vd. Entrevista com Michel Foucault, por Srgio Paulo ROUANET eJos Guilherme MERQUIOR, in 0 Homem e o Discurso, Rio de Janeiro, Ed.Tempo Brasileiro, 1971, p. 17.

    38 Michel FOUCAULT, Resposta ao crculo de epistemologia, in Estru-

    turalismo e Teoria da Linguagem, j citado, p. 26.39

    ID., Uarchologie du savoir, j citado, p. 215.40

    Cfr. Dominique LECOURT, Pour une critique de Vpistmologie, Paris,Franois Maspero, 1972, pp. 98 e segs.

    41 Michel FOUCAULT, Uarchologie du savoir, j citado, p. 243 (subli-

    nhado nosso).42

    P* CU> PP- 9 e SegS*^ Op. cit, pp. 109 e segs.

  • opes epistemolgicas no seu campo social e restituir por essavia as condies histricas e sociais dos erros epistemolgicos.O sujeito cientfico deixa de ser o fulcro da questo epistemolgica,abandonando-se assim uma certa tradio da sociologia do conheci-mento centrada na subjectividade; em seu lugar aparecem comoprioritrias as condies sociais de produo das obras sociol-gicas, capazes de prolongar a psicanlise do esprito cientfico,proposta por BACHELARD44.

    BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON definem a teoria doconhecimento sociolgico como sistema das regras que regema produo de todos os actos e de todos os discursos sociolgicospossveis, e apenas esses, como uma metacincia que no podeser confundida com a teoria do social45.

    Preocupados em afirmar a possibilidade imediata de consti-tuio dessa teoria do conhecimento sociolgico, ao mesmo tempoque reconhecem a impossibilidade actual de uma teoria geral euniversal das formaes sociais, descobrem uma convergnciaepistemolgica fundamental (provavelmente discutvel, de resto)entre autores que tudo separaria no terreno da teoria do sistemasocial46.

    Tnhamos mostrado j que julgamos inaceitvel a posioque atribui epistemologia o estatuto de fundadora exterior doconhecimento cientfico. Mas o que mais imporante sublinharaqui a incoerncia que parece resultar da afirmao de coexis-tncia duma epistemologia unitria, princpio gerador das dife-rentes teorias parciais do social, com essas mesmas teorias par-ciais e desconexas, cuja nica referncia comum e unificadorareside aparentemente na metacincia que lhes garante cienti-ficidade.

    Com efeito, nega-se com clareza uma realidade trans-histrica estrutura do campo epistemolgico47. Afirma-se que as oposi-es epistemolgicas apenas ganham todo o sentido quando soreferidas ao sistema de posies e oposies que se estabelecementre instituies, grupos ou diques diferentemente situados nocampo intelectual 48. Chama-se a ateno para a influncia deter-minante da ideologia classista na prtica cientfica e, consequente-mente, para a inelutabilidade da anlise da dialctica classe/socie-dade global49. Insiste-se em que os erros epistemolgicos estoinscritos como tentaes, incitaes ou determinaes nas institui-es e nas relaes sociais [...] e nunca se reduzem a simplescegueiras individuais 50. Denuncia-se a iluso duma objectividadefundada apenas sobre o esprito de objectividade 51.

    Que significa todo esse amplssimo esboo de programa deinvestigao, seno o reconhecimento da urgncia de uma teoria

    44 Op. cit, pp. 9, 10 e 384.45 Op. cit, p. 55.46 Op. cit, p. 11.47 Op. cit, p. 104.48 Op. cit, p. 107.

    49 Op. cit, p. 108.

    50 Op. cit, p. 384.

    51 Op. cit, p. 389. 659

  • do sistema social, tal como IPOLA a define, ou seja, de um sistemade conceitos abstractos, cuja pertinncia e alcance tericos lheconferem o direito de constituir o ponto de partida necessriode qualqv&r anlise sociolgica ?52 E, para alm disso, tal pro-grama no implicar igualmente o reconhecimento da urgnciade actualizao progressiva desse sistema de conceitos abstractosem conhecimentos efectivos das formaes sociais, que permitamjustamente formular e reformular as proposies propriamenteepistemologicas? Por outras palavras: se a efectivao do pro-grama implcito, tido por instrumental, condio das formulaesepistemologicas, se essa efectivao tambm tributria, para sercoerente, do tal sistema sociolgico de conceitos abstractos, entocomo possvel dar desde j o salto para a epistemologia imitaria?

    Parece que os autores, cedendo possivelmente tentao detranspor a problemtica da filosofia tradicional das cincias, vmnegar o que por outro lado claramente afirmaram: a dialcticaeincia/metacincia. Da um duplo risco: servir uma filosofiaespontnea do saber e do social em substituio da epistemologiae da teoria, ou cair numa viso psicologizante dos obstculos epis-temolgicos e dos respectivos exoroismos. E isso, repetimos,quando esse risco foi incansvel e justamente denunciado.

    O interesse desta breve excurso pelos autores mencionadosreside em mostrar que, embora partindo de perspectivas e proble-mticas diversas, embora utilizando instrumentos conceptuais dife-rentes, eles concordam no reconhecimento de que uma epistemo-logia desenraizada, ignorante quer dos materiais a recolher nasdisciplinas cientficas sobre que se debruam, quer dos que resul-tam da anlise dos campos interdisciplinares, quer ainda dosprovenientes duma sociologia do conhecimento e das ideologias,se negaria a si prpria. E nesse caso teriam razo os que a con-sideram como uma redundncia vazia, dobrando inutilmente olabor metdico da prtica cientfica.

    Tratou-se pois igualmente de constatar uma convergncia,mas de contedo menos ambicioso do que o da que no Mtier sejulgou descobrir. Por nosso lado procurmos apenas marcar umcerto balizamento, que nos parece obrigatrio, do percurso episte-molgico, deixando quase totalmente em aberto a questo dos seusresultados especficos: eles s podem ser formulados em conju-gao com os corpos tericos de referncia, na sua progressohistoricamente situada.

    No se podem analisar, portanto, as cincias e as ideologiassem estudar a respectiva e diversa funo social e nveis de efeitos,sem ter em conta os smbolos, as mensagens e os seus media arti-culados aos modelos de comportamentos sociais contraditrios,sem pensar a situao e insero social dos produtores e consu-midores, designadamente as respectivas situaes e posies declasse, sem ser remetido para os aparelhos em que as cincias e

    52 Emlio de IPOLA, Vers une science du texte social, in Sociologie et

    Socits, li, 1, p. 134. Conferir todo o artigo, para uma crtica paralela que660 aqui se indica.

  • as ideologias se instituem, para o seu funcionamento de suportesmateriais e de veculos definidores de modos especficos de comu-nicao, bem como para os esboos conflituais de contra-insti-tuies, sem abordar as formas diferenciais de transmisso,apropriao e aplicao do saber, ou seja, numa palavra, sempercorrer o conjunto das prticas e estruturas das formaessociais.

    3. O caso das cincias sociais

    Afirmvamos atrs que as ideologias prticas determinavamas articulaes especficas ideologias tericas/formaes cient-ficas. O que se torna agora importante indicar a diferena carac-terstica da ideologias tericas que coexistem e resistem s for-maes cientficas do tipo cincias da natureza, em relao sideologias tericas que resistem e eventualmente dominam as for-maes cientficas do tipo cincias sociais.

    Na verdade, se todas as formaes cientficas concretas soformaes terico-ideolgicas, as cincias sociais caracterizam-sepela dominao do ideolgico. Essa dominao, que traduz simul-taneamente uma dimenso quantitativa, carece naturalmente, porsua vez, de ser explicada. Sem entrar em explicaes que se pre-tendam exaustivas, diremos com Thomas HERBERT 53 que os tra-balhos tericos desenvolvidos em cada um destes grupos de cinciasmantm relaes diversas com a estrutura social, defrontandoconsequentemente resistncias igualmente diversas ao procuraremproduzir ou reproduzir metodicamente as respectivas matrizes te-ricas. Com efeito, e para circunscrever as indicaes a um pontoimportante, as cincias ditas da natureza defrontam um tipo deideologias que no desempenha hoje papel fundamental na coesoda formao social no seu conjunto. Historicamente, contudo, essetipo de ideologias pde funcionar de maneiras diversas: a alquimia,por exemplo, apenas exerceu resistncia localizada progressocientfica; mas basta relembrar os nomes de COPRNICO OU GALILEUe a importncia global das mitologias cosmognicas para se avaliara particular tenacidade de que tais ideologias se revestiram, scompreensvel pela sua funo essencial de cimento.

    Pelo contrrio, as ideologias tericas que se autodesignamcincias sociais ainda desempenham uma funo prtico-socialde coeso global das estruturas e das prticas. Elas transcodificamas ideologias prticas, dotando-se dos protocolos de cientificidade,formalizando-se e sistematizando-se de acordo com esses proto-colos, ganhando coerncia e autor; passam ento a exercer umaresistncia plurif orme e rgida, ligada necessidade de reproduoda formao social na pluralidade dos seus nveis. E exercem, por

    53 Thomas HERBERT, Rflexions sur Ia situation thorique des sciences

    sociales et, spcialement, de Ia psychologie sociale, in Cahien vour VAnalyse,1 e 2, 1966, pp. 141 e segs., e Pour une thorie gnrale des idologies, inCahiers pour VAnalyse, 9, 1968, pp. 74 e segs. 661

  • sua vez, uma aco em retorno obre as ideologias prticas, squais fornecem alguns dos elementos que produziram no seu tra-balho de elaborao, bem como lhes conferem nova consistnciae legitimidade. So justamente as representaes que produzem,institucionalizadas como cincias, que tendem a adaptar e readap-tar as estruturas s relaes sociais e estas s primeiras, numafuno geral de organizao e racionalizao de situaes sociaisque se pretendem essencialmente estticas54. Tais ideologias te-ricas designam os diversos papis na sociedade, ao mesmo tempoque pautam os procedimentos-padro dos seus agentes-portadores.

    Se assim , e repetimos que se trata apenas da indicao deum nvel de anlise entre as mltiplas dimenses a considerar noestudo diferencial das cincias sociais, ento j se v como parti-cularmente aguda, neste domnio, a questo epistemolgica55-

    ALTHUSSER chamou filosofia espontnea dos cientistas snoes que tm os investigadores a respeito da sua prpria activi-dade profissional e da natureza dos produtos em que essa actividadedesemboca. Procurar-se-ia em vo descortinar nessa filosofia umacoerncia estrita, mas, em compensao, possvel observar nela apreeminncia de um elemento idealista susceptvel de assumirformas diversas. No caso das cincias sociais h uma certa concor-dncia em considerar o empirismo e o formalismo (variantesdaquilo que BACHELARD chamava o obstculo substancialista) 56os subprodutos principais dessa epistemologia espontnea. A de-nncia epistemolgica da ideologia substancialista tem uma impor-tncia fcil de antever, se se pensar nos desvios que introduz notrabalho terico, levando designadamente construo acrtica einconsciente dos artefactos de que fala Le Mtier de Sodlogue.

    Mais importante, porm, parece ser a penetrao ideolgicano trabalho em sociologia pela via da sociologia espontnea dossocilogos. que a que se veiculam sobretudo as ideologiasprticas dominantes. Os socilogos67 so naturalmente tambmportadores dessas ideologias e tendem portanto a reproduzi-lasna sua prtica profissional sob forma mais ou menos elaborada,sistematizada e formalizada. Igualmente em relao sociologiaespontnea dos socilogos, seria possvel designar diversas varian-tes, mas actualmente parece ser a ideologia humanista a que de-

    54 Cfr. Manuel CASTELLS, Problemas de Investigacin en Sociologia Ur-

    bana, Madrid, Siglo XXI, 1971, p. 6.55

    No se pense contudo que a interveno epistemolgica, ou, melhor,a prtica terica epistemolgicamente criticada, suficiente, por si s, pararomper com a dominao do sistema das ideologias sobre o campo das cinciassociais. Recordamos que a autonomia do terico relativa; as condies deruptura dessa dominao s podem resultar da condensao de factores ati-nentes ao conjunto das prticas numa formao social dada, e em especial daprtica poltica. Na verdade, as condies sociais de produo terica so de-terminantes das condies tericas dessa produo, e portanto dos produtos.

    56 Gaston BACHELARD, La Formation de VEsprit Scientifique, Paris, Vrin,

    1970, pp. 97 e segs.57

    No apenas os socilogos, evidentemente, mas tambm os especialistasde todas as outras cincias sociais. Apenas por comodidade de aproveitamentoda expreso proposta por ALTHUSSER nos referimos aqui exclusivamente aos

    662 socilogos.

  • sempenha o papel principal de resistncia ao estudo cientficodas relaes sociais.

    A conjugao da epistemologia espontnea dos socilogos coma sua sociologia espontnea traduz-se na formulao de noesoperacionais ou sistmicas que vo constituir outros tantos ins-trumentos da respectiva actividade. Assim se assegura a repro-duo do campo das cincias sociais, com a sua dominanteideolgica58.

    4. O nvel da linguagem

    A anlise que tentaremos circunscrever-se-, naturalmente, aodomnio das cincias sociais. No se trata, como evidente, mesmodentro do que designmos por condies tericas de produocientfica, de explorar a pluralidade de vias e dimenses atrsesboadas, que o estudo dos discursos das cincias sociais exigiria.Interessa-nos aqui to-s o nvel da linguagem, embora ele nosdevolva necessariamente restituio parcial de tais vias edimenses.

    na linguagem comum que se veicula privilegiadamente oconhecimento espontneo, o todo mais ou menos coerente a quevnhamos chamando sistema das ideologias prticas. Todo o tra-balho terico exige, assim, como condio primeira, a demarcaocom respeito a essa linguagem; tende portanto a criar um subc-digo, a formular com o rigor possvel os conceitos sistemticos eoperatrios indispensveis, constitutivos de uma linguagem cien-tfica adequada produo de conhecimentos. Um dos procedi-mentos possveis consistiria em partir da disponibilidade semnticada linguagem vulgar, para, num segundo momento, operar o seuaproveitamento localizado, atravs da fixao controlada da signi-ficao capaz de lhe reduzir a ambiguidade.

    Se as cincias ditas exactas produzem j, em larga medida, aslinguagens instrumentais de que vo carecendo, o mesmo noacontece no que se refere s cincias sociais. E fcil perceberas consequncia negativas do recurso incontrolado ao lxico geral,a que estas so obrigadas. verdade que se tenta reduzir a im-preciso e a polissemia. Proliferam as expresses compostas, asaspas, as metforas, as imagens, as analogias, os conceitos impor-tados de campos disciplinares diversos. Reivindicasse o direito aum certo hermetismo, a um calo prprio, capaz de garantir adistncia linguagem vulgar. Mas as mais das vezes continuama reproduzir-se as prenoes ideolgicas, cuja denncia se tornaainda mais rdua, dada a colorao formalizada e sbia dosdiscursos.

    Seja como for, insistentemente se afirma a premncia dessadenncia, sob a forma de reconstituio daquilo que se designa

    58 Cfr. sobre este ponto, e a respeito de Max WEBER, O artigo de Batrice

    SOKOLOFF La conception wbrienne des sciences sociales et les obstaclesmajeurs une sociologie scientifique, in Sociologie et Socits, in, 1, 1971,pp. 117 e segs. 663

  • por nvel conotativo da linguagem, revelador de contedos ideo-lgicos. Parece, assim, que o conceito de conotao se incluir for-osamente entre os elementos bsicos de uma crtica metdica dalinguagem vulgar, tornada urgente se se pretender a sua reapro-priao cientfica.

    O cumprimento do objectivo deste artigo, que no seu ttulo seinscreve, passar pois pela delimitao do conceito de conotao.Tal tarefa exige, no entanto, que previamente se explicitem algunsoutros conceitos, integrados j na matriz terica da lingustica.Assim nos parecem justificados o teor e a organizao da parte li,que aparentemente se acharia inoportuna e deslocada na economiado trabalho.

    nCONTRIBUTO DA LINGUISTICA

    E DA SEMIOLOGIA PARA A ANLISE DA CONOTAO

    1. Alguns conceitos da lingustica

    O trabalho de elaborao do objecto da lingustica gerai con-duziu SAUSSURE produo do conceito dicotmico lngua/fala.O primeiro termo desta dicotomia constituir, entretanto, objectoprivilegiado da anlise que pretenda reconstituir cognitivamentea natureza multiforme e heterclita da linguagem, consideradano seu todo.

    Ora a lngua, na concepo de SAUSSURE, simultaneamenteum produto social da faculdade da linguagem e um conjuntode convenes necessrias, adoptadas pelo corpo social para per-mitir o exerccio desta faculdade nos indivduos 59. A lngua ,pois, instituio social e sistema de regras que determinam aspossibilidades combinatrias das unidades em que se decompemos enunciados lingusticos produzidos. Se encararmos a lngua doponto de vista destas unidades, podemos consider-la como sistemade signos.

    Na terminologia de SAUSSURE, signo lingustico definidocomo a associao indissolvel de dois componentes: o significcmtee o significado, ou seja, imagem acstica60 e conceito 61, entretendorelaes de pressuposio recproca. Ao processo que une signifi-cante e significado e cujo produto o signo poderemos chamarsignificao, embora esta palavra seja tambm utilizada para defi-nir o prprio significado. (Por significado, diz, por exemplo,GREIMAS, designar-se- a significao ou significaes que so

    59 Ferdinand de SAUSSURE, Cours de Linguistique Gnrale, Paris, Payot,

    1968, p. 25.60

    Ou grfica, acrescentamos pela nossa parte.61

    Apesar de SAUSSURE utilizar expressamente o termo conceito, pre-feriramos, por razes de coerncia terminolgica, substitu-lo por represen-

    661} taco mental, eventualmente noo.

  • recobertas pelo significante e manifestadas graas sua exis-tncia.) 62 A (vulgar) identificao do signo com o significanteprovm pois de uma inadequao no modo de encarar a realidadebipolar do signo lingustico para a qual SAUSSURE explcita erepetidamente chamou a ateno.

    Para HJELMSLEV possvel, tanto no plano da expresso (planodos significantes) como no plano do contedo (plano dos signifi-cados) . opor a forma substncia respectiva. O modo como o planoda expresso se segmenta e estruturado pelas relaes nele defi-nidas (regras paradigmticas e sintagmticas63) constitui a formada expresso. As mesmas unidades formais podem, entretanto,realizar-se em substncias da eocpresso diferentes (fnica, gr-fica). Para se compreender a distino entre forma e substnciado contedo, podemos recorrer a um exemplo: no possvel, emgeral, estabelecer uma correspondncia biunvoca entre os termosque designam, nas diferentes lnguas, os elementos do espectro dascores (brown brun, marron) 64. Pode ento reservar-se a desig-nao de forma de contedo para o modo de estruturao semn-tica prprio de cada lngua que, em relao ao espectro das cores,como em relao a qualquer outro eixo semntico, estabelece assuas fronteiras, no totalmente coincidentes com as estabelecidaspor outras lnguas. O eixo semntico, o fundo sobre o qual sedestaca a articulao da significao 65, corresponde ao que sepode designar por substncia do contedo.

    Repare-se que a necessidade de isolar o conceito de lnguano afasta SAUSSURE do plano da utilizao concreta, individuali-zada, da faculdade da linguagem. No o afasta, em suma, dosegundo membro da dicotomia acima referida: a fala (Ia parole).A fala compreende no s as combinaes susceptveis de expri-mirem o pensamento do falante, como ainda o actos de naturezapsicofsica necessrios execuo e exteriorizao dessas combi-naes. A distino entre lngua e fala corresponde, pois, emSAUSSURE, ciso que, no domnio da linguagem, se pode operarentre o que social, latente, e o que actualizao individual66.

    Sem dvida, diz SAUSSURE, estes dois objectos (lngua efala) esto estreitamente ligados e supem-se um ao outro, mas,dada a impossibilidade de captar o todo global da linguagem,ele afirma no s a necessidade de diviso do mbito da sua an-lise, como tambm a premncia de constituir a lngua em objecto

    62 A. J. GREIMAS, Smantique Structurale, Paris, Larousse, 1969, p. 10.

    63 Vide nota 72.

    64 Exceptuam-se os casos de isomorfismo semntico.

    65 A. J. GREIMAS, op, cit, p. 21.

    66 Mattoso CMARA JR. defende a traduo de parole por discurso

    actividade lingustica nas mltiplas e infindveis ocorrncias da vida doindivduo; cfr., a este propsito, Princpios da Lingustica Geral, Rio deJaneiro, Livraria Acadmica, 1967, p. 24 e respectiva nota 1. John LYONSinclina-se para a utilizao de enunciado quando se refere quilo que oslocutores dizem efectivamente quando 'falam a sua lngua*, insistindo emconsiderar os enunciados como exemplos de fala; cfr. Linguistique Gn-rale Introduction Ia linguistique thorique, trad. do ingls, Paris, La-rousse, 1970, p. 42. 665

  • da lingustica propriamente dita. O que importa sublinhar nestemomento que SAUSSURE explicita as formas de interaco lngua//fala em moldes que no nos deixam dvidas quanto sua concep-o da dicotomia: lngua e fala so dois termos que s se definemrigorosamente se considerarmos o processo dialctico que os une6T.

    Roman JAKOBSON adopta, ao contemplar a mesma dicotomia,um padro terminolgico que se lhe antev menos ambguo: emvez de lngua/fala prope-nos cdigo/mensagem68 69. Vale a penareferir que JAKOBSON coloca com extrema clareza o problema dasrelaes entre cdigo, mensagem e os protagonistas da comunica-o lingustica: [...] todo o acto de fala pe em jogo uma men-sagem e quatro elementos que lhe esto ligados: o emissor, o recep-tor, o tema ('topic') da mensagem e o cdigo utilizado. 70

    Na captulo Linguistique et Potique, includo no volumeque temos vindo a citar, a questo formulada de modo ligeira-mente diferente: so factores constitutivos de todo o acto de comu-nicao verbal no s o emissor (destinateur na traduo fran-cesa), receptor (destinataire), mensagem, cdigo, mas tambmo contexto a que a mensagem se refere (factor paralelo quilo quese designava no modelo anterior por tema- topic) e o contactoque permite aos actores do processo lingustico estabelecereme manterem a comunicao.

    Afirma, entretanto, JAKOBSON que cada um destes factoresfaz nascer uma funo da linguagem: a funo dita expressivacentra-se sobre o emissor e visa restituir directamente a atitudedo sujeito em relao quilo de que fala; a funo conativa orientada para o destinatrio (da ser tambm designada por ape-lativa ou imperativa); a funo potica centra-se sobre a prpriamensagem; a funo metalingustica envolve a centragem do dis-curso sobre o cdigo (o que, na linguagem de todos os dias, acon-tece quando emissor e receptor consideram necessrio verificar seutilizam o mesmo cdigo); a funo referencial, denotativa oucognitiva, que atribui mensagem uma orientao para o contexto;finalmente, a funo ftica ou de simples contacto.

    Importante se torna sublinhar o facto de nenhuma mensagemser analisvel em termos de apenas uma funo da linguagem.

    67 Cfr. SAUSSURE, op. cit., pp. 37-38; Roland BARTHES, lments de

    Smiologie, Paris, Gonthier, 1969, pp. 87-88.68

    Roman JAKOBSON, Essais de Linguistique Gnrale, Paris, ditions deMinuit, col. Points, 1970, pp. 26 e segs. Sobre as mltiplas utilizaes dotermo cdigo em lingustica ver Georges MOUNIN, Introduction Ia Smio-logie, Paris, ditions de Minuit, col. Le Sens Commum, 1971, pp. 77-87.

    69 Sobre a possibilidade de identificar lngua e cdigo, problema que pa-

    rece ser resolvido por Pierre GUIRAUD, pelo menos parcialmente, de uma formanegativa, ver deste autor Langage et thorie de Ia Communication, in LeLangage, Encyclopdie de Ia Pliade, 1968. De um modo sucinto, podere-mos dizer que GUIRAUD considera provisoriamente a lngua como um cdigode tipo repertrio, para depois referir que a conveno lingustica necessaria-mente vaga e susceptvel de reajustamentos constantes (o que no acontecernum cdigo stricto sensu). Afirma GUIRAUD ainda que o sistema de convenesdefinidor de um cdigo necessita de ser explicitado, o que no acontecer numalngua natural, mas to-s em certas formas de lngua cientfica.

    666 70 R. JAKOBSON, op. Cit., pp . 28-29.

  • Se verdade que a estrutura verbal da mensagem lingustica de-pende de qual seja a sua funo dominante, no lhe indiferentecontudo o modo como nela se combinam as outras funes; daque o estabelecimento de uma tipologia das mensagens lingusticasenvolva o conhecimento das diversas formas como se articulame hierarquizam as funes da linguagem nos discursos produzidos.

    Voltemos, entretanto, ao modelo da comunicao verbal pro-posto por JAKOBSON. Qualquer utilizador da linguagem executa, aoemitir uma mensagem, duas operaes: seleco e combinao.A partir de um cdigo comum ao destinatrio, o emissor seleccionacertas entidades lingusticas (o que envolve a prvia possibilidadede substituir um termo por outro) para as combinar em unidadeslingusticas com um maior grau de complexidade (combinar econtextualizar so dois aspectos da mesma operao) 71 72. O pro-blema da articulao entre cdigo e mensagem (lngua e fala) no, como se v, abandonado por JAKOBSON; ele afirma mesmo que o conhecimento do cdigo comum ao emissor e receptor e subja-cente ao intercmbio de mensagens que constitui a base de umaanlise do discurso. O retorno ao cdigo, mesmo quando a investi-gao parece operar um deslocamento em direco mensagemou ao plano dos participantes no acto da comunicao lingustica,acaba sempre por se lhe impor.

    Tem importncia assinalar, a este propsito, que o cdigono por ele considerado como sensivelmente o mesmo paratodos os membros de uma comunidade lingustica, como pre-tendia SAUSSURE. Em vez de comunidade refere-se a comuni-dades lingusticas com diferentes mbitos; o cdigo geral , pois,considerado multiforme e analisvel numa hierarquia de subc-digos escolhidos pelo falante, em funo da mensagem, do destina-trio e da relao entre os interlocutores 73.

    Esta chamada de ateno para o facto de a escolha do sub-cdigo ser determinada pela relao entre os interlocutores (foro-samente em funo do destinatrio) torna contestvel a perti-nncia da noo de idilecto (a linguagem enquanto falada por um

    71 0 destinatrio percebe que o enunciado dado (mensagem) uma com-

    binao de partes constituintes (frases, palavras, fonemas, etc.) seleccionadasno repertrio de todas as possveis partes constituintes (cdigo), JAKOBSON,op. cit., p. 48.

    72 Assim sendo, possvel considerar dois tipos de relaes entre os com-

    ponentes de uma mensagem: de contiguidade (entre constituintes de um con-texto lingustico); de similaridade (entre signos de um grupo de substituio).J SAUSSURE se preocupara em conceptualizar estes dois tipos de relaes.Distinguiu dois eixos segundo os quais elas se podem destacar: o eixo sintag-mtico (sintagma), correspondente combinao de signos constitutiva dacadeia falada e no qual os termos se relacionam in presentia numa srieefectiva relaes sintagmticas; o eixo paradigmtico (paradigma), decom-ponvel num conjunto de campos associativos, onde esto contidos os termosque constituam por virtude de um qualquer critrio de afinidade alter-nativas para o termo efectivamente existente na cadeia sintagmtica; aqui sepodem situar as relaes paradigmticas.

    73 R. JAKOBSON, La Linguistique, in Tendance8 Actuelles de Ia Recher-

    che en Sciences Sociales et Humaines, Paris-Haia, Mouton/Unesco, 1970,vol. I, p. 550. 667

  • s indivduo) 74, a no ser que lhe limitemos o domnio de apli-cao ao caso da linguagem dos afasicos e eventualmente ao es-tilo de um escritor, como, alis, sugere Roland BARTHES 75. Podeainda admitir-se o alargamento da noo, de modo que o idiolectoseja considerado como a linguagem de uma comunidade lin-gustica.

    A problemtica da lingustica (post-saussuriana) pois oespao relativamente aberto onde se insere uma matriz tericacom zona de manobra inscrita no domnio de compatibilidade defi-nido pela estrutura dessa problemtica. Ora a necessidade de apro-priao cognitiva das manifestaes da linguagem tem vindo aexigir que se realize um percurso de transformao controladada matriz terica da lingustica.

    Grande parte desse percurso ser determinado, segundo JeanMOLINO 76, pela urgncia de resposta a esta interrogao: [...]como se 'encarna' a lngua nos locutores individuais? De outromodo, que tambm ele nos sugere: nada haver entre a lngua comosistema e a multiplicidade das falas individuais?

    Quer-nos parecer que os conceitos de idiolecto e subcdigo,atrs referenciados, e o de sistema semitico, que seguidamenteenunciaremos, so alguns dos argumentos de uma possvel res-posta terica s questes assinaladas. Para que esta se torne, sev tornando, decisiva ter de ser integrada de outros marcos deanlise. Foroso , ento, que nos interroguemos sobre se a proble-mtica da lingustica permitiu que o processo de compactificaoda sua matriz terica cumprisse j o objectivo de conhecimentoacima proposto; ou se, pelo contrrio, o problema aqui encaradoenvolve, na busca da sua soluo, um deslocamento de sede terica(a questo deixa de ser pertinentemente lingustica para se tornarpsicolgica, sociolgica, etc.); se poderemos ainda admitir a inves-tigao interdisciplinar como alternativa de perspectivao do queexiste entre a lngua e a multiplicidade das falas individuais.

    Uma das interrogaes-charneira deste trabalho formular-se-ento deste modo: a conotao existe j como conceito no corposistemtico da lingustica post-saussuriana? Designar a cono-tao um problema da sociologia, da psicologia? Surgir antesa conotao como um problema prismado por disciplinas (consti-tudas?) vrias e, consequentemente, como o sintoma de todo umtrabalho interdisciplinar a fazer?

    2. Hjelmslev o conceito lingustico da conotaoSegundo HJELMSLEV, O objectivo da teoria lingustica consiste

    em fornecer um mtodo segundo o qual um dado texto pode ser

    74 Andr MARTINET, cit. por R. BARTHES, op. cit, pp. 92-93.

    75 Roland BARTHES, op. cit., p. 93.

    668 76 Jean MOLINO, La Connotation, in Linguistique, n. 1, 1971.

  • compreendido atravs de uma descrio autoconsistente e exaus-tiva 77.

    A constatao da heterogeneidade dos textos permite que ateoria lingustica tente um ajustamento da sua matriz terica aoobjectivo de conhecimento dos mltiplos e diversos factos da lin-guagem. E ao nvel sistemtico lngua (que, num primeiro mo-mento de anlise, permitiria supor o texto como uma entidade lin-guisticamente homognea) acrescentar-se-o novos nveis, cons-tituindo outros tantos sistemas semiticos, de forma a orientar aanlise no sentido da compreenso exaustiva de um texto. HJEL-MSLEV indica-nos, a ttulo exemplificatwo, alguns desses sistemas,eventualmente coexistentes num mesmo texto: formas estilsticas(verso, prosa); estilos (criativo, imitativo); hierarquia de estilo(elevado, baixo); suportes materiais; tons; idiomas.

    Qualquer elemento de um texto, numa fase de anlise ondeo pressuposto de homogeneidade tiver sido abandonado, forosa-mente prismado, no por um, mas por vrios sistemas. Qualquerparte (no sentido de componente de um processo semitico) deum texto pertence simultaneamente a um estilo, a uma forma esti-lstica, a um idioma, a um tom, etc. A sobreposio destes sistemas(designemo-los por conotativos) num enunciado lingustico acres-centa algo significao proposta por uma lngua que fosseestritamente denotativa. A esse novo domnio de significaochamaremos precisamente conotao.

    A anlise de um texto impe ento que se destaquem osconotadores, ou seja, os membros particulares de cada uma dessasclasses (sistemas) e as unidades resultantes da sua combinao.Os conotadores surgem pois como partes (no sentido que lhesconfere HJELMSLEV) presentes em unidades lingusticas tais comopalavras, frases, de molde que se possam substituir por unidadespertencentes a outros sistemas (se possam, em suma, traduzir);esta possibilidade supe a prvia deduo dos conotadores e a suainstaurao em sistemas outros que no o denotativo e secundriosem relao a este78.

    A introduo do conceito de conotao , pois, sintoma decomplexidade dos sistemas semiticos envolvidos num texto.O modelo capaz de analisar os sistemas semiticos conotativosdever recobrir o sistema denotativo, considerado como linguagem--objecto, j que os conotadores correspondem ao contedo de umsistema semitico cuja expesso realizada precisamente por ele-mentos daquele sistema denotativo. Como consequncia disto, umsistema conotativo manifesta-se simultaneamente nos planos daforma e da substncia, tanto da expresso como do contedo dosistema denotativo 79.

    77 HJELMSLEV, Prolegomena to a theory of language, trad. do dinamar-

    qus, Madison, Wisc, 1961, p. 17.78

    Cfr. A. J. GREIMAS, DU Sens Essais Smiotiques, Paris, ditions duSeuil, 1970, p. 95.

    79 Corresponde isto a dizer que um sistema conotativo se caracteriza

    pelo facto de o seu plano da expresso ser, ele prprio, um sistema semitico. 669

  • A partir de HJELMSLEV, portanto, a teoria da linguagem d-seconta de um plano de significao secundrio, cte uma dimensosemitica suplementar. O que, obviamente, aponta para um pro-cesso de descompactificao no sentido atrs referido damatriz terica da lingustica.

    3. Barthes semiologia e conotao

    Ao estudar a dicotomia denotao/conotao nos lments deSmiologie, R. BARTHES recorre explicitamente ao modo comoHJELMSLEV a formula. Para compreendermos at que ponto a suabreve construo terica sobre aquela dicotomia constitui extra-polao legtima do conceito de HJELMSLEV,, importa conhecero programa terico de BARTHES.

    Ao concluir os lments, afirma ele que o objectivo dainvestigao semiolgica consiste em reconstituir o funciona-mento dos sistemas de significao que no a lngua, segundoo prprio projecto de toda a actividade estruturalista, que o deconstruir um simulacro dos objectos observados. AssinalaBARTHES,, entretanto, que esse trabalho pressupe a aceitao deum princpio redutor (princpio de pertinncia), segundo o quala anlise se deve efectuar de um nico ponto de vista. Sendoassim, e por definio de investigao semiolgica, a pertinnciaadoptada aqui deve ser a da significao dos objectos analisados.

    Portanto, a interrogao a que a semiologia submete osobjectos demarca uma distncia (provisria?) em relao s inter-rogaes possveis da sociologia, da psicologia, cada uma delasrelevando de uma outra pertinncia. No que se devam ignoraras determinaes sociolgicas, psicolgicas, dos objectos, mas por-que importa, neste caso, enquadr-las em termos semiolgicos (oque idntico a situar o seu lugar e funo no sistema dosentido ) 80.

    A Introduo do mesmo trabalho assinala, entretanto, queos significados dos objectos, imagens e comportamentos no exis-tem de uma maneira autnoma, fora da linguagem. Nesta concep-o, portanto, no deve a lingustica ser apenas uma parte, se bemque privilegiada, da cincia geral dos signos (o que corresponderiaao projecto de SAUSSURE) ; pelo contrrio, a semiologia ser aparte da lingustica capaz de estudar as grandes unidades signifi-cantes do discurso, o que remete para objectos ou episdios que

    80 A este propsito diz A. J. GREIMAS, no citado Du Sens Es sais Smio-

    tiques, p. 17: Pode dizer-se que os progressos da semitica, nos ltimos tem-pos, consistem essencialmente no alargamento do seu campo de manobra, naexplorao mais conseguida das possibilidades estratgicas da apreenso dasignificao. No se sabendo mais sobre a natureza do sentido, aprendeu-se aconhecer melhor onde ele se manifesta e como se transforma [...] A possibili-dade de uma semitica formal que apenas procurasse dar conta das articula-es e manipulaes de quaisquer contedos precisa-se cada vez mais [...]S uma tal semitica das formas poder aparecer, num futuro previsvel, comoa linguagem que permite falar do sentido. Pois, justamente, a forma semitica

    670 no mais do que o sentido do sentido.

  • significam sob a linguagem, mas no sem ela. Assim se achajustificado que, num trabalho onde se tenta uma explorao daspossibilidades da semiologia, se opte por uma abordagem esclare-cedora dos conceitos analticos da lingustica, aprioristicamentetido como suficientemente gerais para permitirem preparar ainvestigao semiolgica 81 82.

    Recorrendo conceptualizao de HJELMSLEV, BARTHES defineum sistema conotado como um sistema cujo plano da expresso, ele prprio, constitudo por um sistema de significao. Os sig-nificantes da conotao so, pois, signos do sistema denotado,sendo que, obviamente, um s conotador constitudo por um ssignificado de conotao pode ser formulado por vrios signosdenotados. Quer isto dizer que o segundo plano de significa-o constitudo pelo sistema semitico conotativo hetero-morfo em relao ao primeiro, pois, se ele se manifestasse porintermdio das mesmas articulaes estruturais, nenhuma signifi-cao adicional se poderia destacar dele83. ainda BARTHES quemafirma serem os significantes de conotao descontnuos e err-ticos e o significado geral, global e difuso. Atravs deste, omundo penetra o sistema, a ideologia institui-se em forma docontedo da conotao e a retrica em sua forma da expresso.

    H, pois, em BARTHES utilizao da terminologia de HJELMS-LEV, aproveitamento do seu modelo conceptual. O que, em princpio,se acha adequado ao projecto de anlise semiolgica que ele propena Introduo e Concluso dos lments de Smiologie. Sque a necessidade de conceptualizar a dicotomia denotao/cono-tao pode colocar problemas especficos, no superveis com asimples transposio do conceito paralelo da teoria lingustica(HJELMSLEV) para a semiologia barthiana.

    este, alis, o ponto de partida de Jean MOLINO 84 ao pretenderfundamentar a ilegitimidade da extrapolao assumida. Nota eleque, se, de acordo com BARTHES, OS significantes de conotao sodescontnuos e errticos, enquanto o significado global e difuso,no parece possvel proceder segmentao e posterior identifi-cao de unidades significantes, j que tal procedimento exigea liminar possibilidade de estabelecer uma correspondncia entreos planos da expresso e do contedo.

    Em lingustica, a segmentao do sintagma feita atravs daoperao de comutao: se, alterando localizadamente o plano dos

    81 Os conceitos analticos estudados so: lngua e fala, significado e

    significante, sintagma e sistema e, finalmente, denotao e conotao.82

    L. PRIETO sublinha haver duas tendncias que marcam a evoluo dosestudos de semiologia. BARTHES, com os seus lments de Smiologie, repre-sentaria a tendncia segundo a qual o objecto da semiologia seria constitudopela significao, enquanto para a outra corrente s-lo-ia a comunicao. Sobreesta ltima forma de entender a semiologia cfr. Georges MOUNIN, op, cit

    L. PRIETO assinala o interesse em desenvolver uma semiologia da comuni-cao capaz de constituir um modelo de anlise mais apropriado do que olingustico aos estudos da semiologia polarizados na significao. A este pro-psito, vide L. PRIETO, La Smiologie, in Le Langage, citado na nota 69.

    83 Ver A. J. GREIMAS, DU Sens Essais Smiotiques, j citado, p. 99.

    84 Jean MOLINO, art. cit. 671

  • significantes, obtivermos uma modificao correlativa no planodos significados, o fragmento sobre o qual opermos uma unidadesintagmtica (dotada de sentido); em virtude da dupla articulaoda linguagem humana, esta operao permite, no s destacar asunidades significativas mnimas monemas, mas tambm,quando efectuada sobre estas, identificar os fonemas ou unidadesmnimas da segunda articulao: a comutao de um fonema impeque o significado do monema se altere85.

    Importa referir, entretanto, que o prprio BARTHES se dconta das dificuldades a que o modelo lingustico o conduz. E, decerto modo, antecipa mesmo, no n. III, 2.3, dos lments, a res-posta observao de MOLINO : a operao de comutao possvelem lingustica porque o analista tem uma certa conscincia do'sentido1 da lngua analisada; em semiologia, o desconhecimento,pelo menos parcial, do sentido de alguns dos sistemas torna aoperao de comutao dependente de informaes indirectas sobreo plano dos significados.

    Mas a crtica de MOLINO no se limita a assinalar que os l-ments contm uma contradio resultante de o sistema semiticoconotativo, tal como BARTHES O apresenta, ser inaproprivel apartir da utilizao de um modelo lingustico: a crtica ao trabalhoprossegue, assinalando MOLINO que a inteno de BARTHES de-nncia das ideologias no deve ser assumida por uma prtica deinvestigao que se apoie no modelo lingustico a psicologia oociai ou a sociologia teriam j construdo um objecto terico suscep-tvel de operar (vir a operar) essa denncia. A conotao, dizele, o nome lingustico de uma realidade que no da ordem dalinguagem e exprime o intuito, sem realizao possvel, de escapar,pela lingustica, aos problemas da anlise sociolgica.86

    III

    CONOTAO: ENQUADRAMENTO TERICOE OPERACIONALIZAO DO CONCEITO

    1. Introduo

    Uma teoria da histria da prtica terica permite-nos com-preender o mecanismo de produo de conhecimentos, definir otrajecto, no forosamente contnuo, de desenvolvimento dessesconhecimentos.

    Tornar-se-, entretanto, necessrio proceder anlise dascondies precisas segundo as quais o produto de uma prtica

    85 Sobre a dupla articulao da linguagem e comutao vide A. MARTINET,

    Elementos de Lingustica Geral, trad. do francs, Lisboa, S da Costa, 1970,e Georges MOUNIN, Introduo Lingustica, trad. do francs, Lisboa, Inicia-tivas Editoriais, 1970.

    86 Para uma crtica semiologia de BARTHES, centrada predominante-

    mente em Mythologies, ver Georges MOUNIN, Introduction Ia Smiologie, j672 citado, pp. 189-197.

  • terica se torna apto apropriao cognitiva do real, permitindo--se cumprir o objectivo que a sua especificidade de produto-conhe-cimento impe: perspectivar tal questo exige um deslocamentode focagem para o discurso cientfico, considerado como local emque o efeito de conhecimento modo especfico de apropriao doreal se produz. Deslocamento em que assumido o carcterlingustico do discurso, mas que no deve diluir-se numa anliseestritamente lingustica87.

    Segundo ALTHUSSER, O mecanismo de produo do efeito deconhecimento diz respeito ao mecanismo que sustenta o jogo dasformas de ordem no discurso cientfico da demonstrao 88. Seo efeito de conhecimento se produz ao nvel das formas de ordemque o discurso manifesta, um facto tambm ser o corpo concep-tual organizado, constitutivo do sistema terico-referncia, quepermite atribuir a cada conceito o seu lugar e funo, no s natotalidade sistmica em que se insere a respectiva matriz te-rica, mas tambm na sequncia ordenada constitutiva do dis-curso. Portanto, o tipo de relaes de contiguidade que possvelestabelecer entre conceitos no discurso organizado da demonstra-o cientfica determinado pelo carcter sistmico do paradigmaterico de referncia (a matriz terica), ele prprio estipuladordas restries que coarctam a operao de seleco.

    Uma proposta deste tipo implica o abandono de qualquer pers-pectiva que reduza o discurso a um mero conjunto de signos. Re-mete-nos, ao contrrio, para as operaes de seleco e combinao,que, embora formuladas em sede lingustica, em certo sentido res-tituem a concepo adoptada de prtica terica.

    A tentativa de caracterizao da natureza especfica do dis-curso cientfico no pode, entretanto, fazer-se independentementede uma referncia substncia da expresso que ele privilegia.Como diz ALTHUSSER, prprio do discurso cientfico ser es-crito 89. Embora, do ponto de vista da lingustica contempor-nea"0, o som seja a substncia primeira do plano da expressoda lngua, enquanto a escrita considerada como uma tcnica detransposio da substncia fnica primria numa substncia(grfica) secundria, possvel afirmar-se91 que o discurso cien-tfico preferencialmente grfico. A substncia fnica , emrelao1 a ele, secundria, porque a extenso espacial onde seinscreve a marca (grfica) visvel permite a regulao do processo

    87 Uma anlise da lngua utiliza igualmente um conjunto de enunciados.

    Mas tender a estabelecer o sistema ou sistemas finitos de regras que per-mitem um nmero infinito de enunciados. 0 discurso, na perspectiva acimaproposta, encarado na sua singularidade, como conjunto limitado pelas se-quncias lingusticas efectivamente manifestadas. Cfr. Michel FOUCAULT,Resposta ao crculo de epistemologia, in Estruturalismo e Teoria da Lin-guagem, j citado, p. 22.

    88 Louis ALTHUSSER, Lire Ie Capital, i, p. 83.

    89 ID., ibid., i, p. 85.

    90 Cfr. John LYONS, op. cit., pp. 32, 48 e segs.

    91 Vide Gilles-Gaston GRANGER, Pense formelle et sciences de Vhomme,

    Paris, Aubier-Montaigne, 1967, pp. 50 e segs. 673

  • de desenvolvimento de conceitos no discurso ordenado da demons-trao.

    Pensar em discursos estritamente denotativos, particularmentenas cincias sociais, fazer fico cientfica. E Eliseo VBRNprope-nos um modelo capaz de integrar uma tal situao, justa-mente para demonstrar que s assim seria dispensvel a inter-veno epistemolgica com o mbito que lhe atribumos92. A an-lise proposta por VERN, que impe, como bvio e j sugerimos,condies fictcias ao modelo de comunicao lingustica atrsexplicitado, serve ainda para designar a meta tendencial do pro-cesso de contruo de cientificidade dos produtos da cincia, enca-rados como discursos.

    Com efeito, qualquer formao cientfica procura, a esse nvel,reduzir, dominando-os, os vrios sistemas conotativos que a ten-dem a articular-se com o estritamente denotativo. Demos j notciade alguns sintomas dessa preocupao, tendendo a cumprir, atravsde um reconhecimento explicitado da conotao, o objectivo de dis-solver o efeito ideolgico do discurso. Uma srie de procedi-mentos que se propem, portanto, um controle do nvel de signifi-cao conotativo, sobredeterminante do plano do contedo dosdiscursos e, por isso mesmo, veiculador do que designmos porideologias.

    Inevitavelmente, tanto a interveno epistemolgica como ametodolgica incidiro, em termos de discursos se quisermos,das operaes que os constituem , de forma a localizarem-recons*titurem os sistemas semiticos conotativos. No impe tal pers-pectiva pensar a dupla denotao/conotao de modo a decomp-laem elementos irredutveis, j que, se, por um lado, estes se arti-culam necessariamente, por outro, a conotao pode constituir ele-mento positivo no processo de trabalho terico93. De facto, a suaconstante presena, sob formas vrias, no campo semntico im-plicado em qualquer discurso assegura genericamente a criativi-dade da lngua natural, conferindo ainda actividade cientficaa possibilidade de designar-reconhecer objectos novos94, apontarproblemas previamente invisveis, explorar eventualmente certosvazios ainda no recobertos na matriz terica de uma disciplina.

    A conotao desempenhar, por conseguinte, e a nvel de dis-curso, funo assimilvel das ideologias, que Daniel VIDALsugere sejam entendidas como a leitura crtica de um texto (o

    92 Eliseo VBRN, op. cit., pp. 174 e segs.

    93 Para uma crtica radical do binmio denotao/conotao cfr. Jean

    BAUDRILLARD, Pour une critique de Vconomie politique du signe, Gallimard,1972, pp. 191 e segs. Para BAUDRILLARD, a denotao apoia-se no mito daobjectividade [...] e da adequao directa dum significante a uma realidadeprecisa. 0 processo de denotao no diferiria do da conotao: a ideologiaem ambos estaria presente. A denotao no passa nunca da mais bela emais subtil das conotaes. Se distino houvesse, ela consistiria em mostrarque a denotao, ao naturalizar o prprio processo ideolgico, seria o maisideolgico dos termos, ideolgico em 2. grau.

    94 A este propsito consulte-se o depoimento do linguista Roman J^ KOB-

    SON, La Linguistique, in Tendances Actuelles de Ia Recherche en Sciences674 Sociales et Humaines, j citado, p. 508.

  • texto social) destinada a extravas-lo, a assumir um papel deinveno, criao, aco95. Estatuto ambguo, pois. Como quesomos tentados a transpor, tirando partido de um smile que senos antev justo, a proposta axiomtica de BACHELARD referida sintuies tal como estas, tambm as conotaes so muitoteis: servem para ser destrudas 96.

    2. Conotao tentativa de enquadramento terico

    Na parte n deste artigo formulvamos j algumas perguntas,apontando a necessidade de um trabalho de perspectivao doquadro terico de tratamento da conotao: Existir este conceitona matriz terica da lingustica? Pelo contrrio, limitar-se- aconotao a designar um problema que s a sociologia ou a psi-cologia tero capacidade de referenciar, atravs de conceitos queelas prprias tenham construdo? Constituir antes a conotaoum problema que, embora sendo da ordem da linguagem, exige quese construa um conceito referenciado a zonas de vrias problem-ticas, numa perspectiva interdisciplinar?

    No h dvida de que, como referimos, a lingustica, comHJELMSLEV, elaborou um conceito de conotao. A indicao exem-plificativa de alguns sistemas conotativos estilos, tons, idiomas,etc. porventura coexistentes num mesmo texto sintoma dapotncia do conceito em termos da problemtica lingustica.A partir do abandono do pressuposto da homogeneidade do texto,a matriz terica da lingustica descompactifica-se e HJELMSLEV,nos Prlegomena, desenvolve um evidente esforo de recobri-mento de vazios conceptuais designados pela abertura de novaszonas da problemtica.

    Vimos tambm como BARTHES procura extrapolar o conceitohjelmsleviano de conotao e como MOLINO pe em causa essatentativa, com base no facto de os problemas que BARTHES pre-tende resolver implicarem conceitos necessariamente referenciadosa problemticas diversas da da lingustica, nomeadamente sociolo-gia ou psicologia social. S que, tambm o dissemos, o objectivode BARTHES a integrao do conceito na matriz terica da semio-logia, entendida como cincia da significao, capaz de demarcar,em relao sua prpria pertinncia, a zona de manobra dasociologia, da psicologia. A ser assim, estaramos perante umexemplo de como a compactif icao de uma matriz terica nestecaso a semiologia solicita o acoplamento de novas linhas amatrizes diversas.

    Em relao sociologia, supomos ter j mostrado como elapode incluir, na sua zona de visibilidade, o problema da significaoconotativa das mensagens lingusticas. No que, como adverte

    95 Daniel VIDAL, Essai sur Vidologie, Paris, Anthropos, 1971, pp. 314

    e segs.96

    Gaston BACHELARD, Filosofia do Novo Espirito Cientifico, j citado,p. 196. 675

  • VERN 97 e ns prprios insistentemente temos sugerido, a ideologiaseja um tipo particular de mensagens, mas porque ela aponta umnvel de signif