Ruínas Do Abandono e Sua Significação

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RUÍNAS DO ABANDONO E SUA SIGNIFICAÇÃO: O CASO DO SÍTIO MIRIM - SÃO PAULO RUINAS DEL ABANDONO Y SU SIGNIFICADO: EL CASO DEL SÍTIO MIRIM SÃO PAULO RUINS OF ABANDONMENT AND ITS MEANING: THE CASE OF SÍTIO MIRIM SÃO PAULO Eixo temático 1. Planejamento, urbanismo e apropriação social na preservação do patrimônio Angela Rosch Rodrigues Mestre e doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FAU USP. Orientadora: Dra. Mônica Junqueira de Camargo. Bolsista FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Resumo: O trabalho aborda ruínas arquitetônicas com o objetivo de encaminhar a discussão para uma ampliação da atenção a esse tipo de bem cultural. Ao tratar desse tema, é enfocada a problemática da “incúria”, pois é inevitável pensar que o processo degenerativo poderia ter sido evitado. Para essa análise foi selecionado o caso da Sede do Sítio Mirim em São Paulo (São Miguel Paulista) bem tombado nas três esferas (nacional, estadual, municipal) cuja, informação mais antiga remonta a 1750. Essa casa teve seu valor histórico reconhecido em 1965, enquanto bem degenerado, mas íntegro, embasado na tese de que sua configuração e algumas características arquitetônicas são diferentes das demais do mesmo período. Nos anos que se seguiram a problemática do estado de arruinamento devido ao vandalismo e exposição às intempéries se agravou. Além da restauração de 1967 e dos trabalhos de consolidação em caráter emergencial de 1978, outras propostas surgiram, mas não foram implantadas. O caso do Sítio Mirim encerra, portanto, o ponto crucial da problemática do estudo de ruínas arquitetônicas que envolve duas questões: entender o que são ruínas e como intervir nesses bens? Ensejando uma discussão que engloba alguns aspectos: como incorporar a ruína arquitetônica em novas intervenções? Como aceitar as marcas da passagem do tempo? Que tipo de “uso” pode ter as ruínas? Assim, é possível verificar como tem se dado a percepção pelos órgãos de preservação e dos usuários em relação a essa edificação ao longo do tempo. Palavras chave: ruínas arquitetônicas, patrimônio, preservação

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  • RUNAS DO ABANDONO E SUA SIGNIFICAO: O CASO DO STIO MIRIM - SO PAULO

    RUINAS DEL ABANDONO Y SU SIGNIFICADO: EL CASO DEL STIO MIRIM SO PAULO

    RUINS OF ABANDONMENT AND ITS MEANING: THE CASE OF STIO MIRIM SO PAULO

    Eixo temtico 1. Planejamento, urbanismo e apropriao social na preservao do patrimnio

    Angela Rosch Rodrigues Mestre e doutoranda em Histria e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo FAU USP. Orientadora: Dra. Mnica Junqueira de Camargo.

    Bolsista FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo).

    Resumo: O trabalho aborda runas arquitetnicas com o objetivo de encaminhar a discusso para uma ampliao da ateno a esse tipo de bem cultural. Ao tratar desse tema, enfocada a problemtica da incria, pois inevitvel pensar que o processo degenerativo poderia ter sido evitado. Para essa anlise foi selecionado o caso da Sede do Stio Mirim em So Paulo (So Miguel Paulista) bem tombado nas trs esferas (nacional, estadual, municipal) cuja, informao mais antiga remonta a 1750. Essa casa teve seu valor histrico reconhecido em 1965, enquanto bem degenerado, mas ntegro, embasado na tese de que sua configurao e algumas caractersticas arquitetnicas so diferentes das demais do mesmo perodo. Nos anos que se seguiram a problemtica do estado de arruinamento devido ao vandalismo e exposio s intempries se agravou. Alm da restaurao de 1967 e dos trabalhos de consolidao em carter emergencial de 1978, outras propostas surgiram, mas no foram implantadas. O caso do Stio Mirim encerra, portanto, o ponto crucial da problemtica do estudo de runas arquitetnicas que envolve duas questes: entender o que so runas e como intervir nesses bens? Ensejando uma discusso que engloba alguns aspectos: como incorporar a runa arquitetnica em novas intervenes? Como aceitar as marcas da passagem do tempo? Que tipo de uso pode ter as runas? Assim, possvel verificar como tem se dado a percepo pelos rgos de preservao e dos usurios em relao a essa edificao ao longo do tempo. Palavras chave: runas arquitetnicas, patrimnio, preservao

  • Resumen: El documento analiza las ruinas arquitectnicas con el fin de dirigir la discusin a una ampliacin de la atencin a este tipo de bien cultural. Al abordar este tema, nos centramos en el problema de la "negligencia", porque es inevitable pensar que el proceso degenerativo se podra haber evitado. Para este anlisis se seleccion el caso de la Sede do Stio Mirim en So Paulo (So Miguel Paulista) bien listado en tres niveles (nacional, regional, local) cuya informacin ms antigua remonta a 1750. Esta casa tuvo su valor histrico reconocido en el ao 1965, como un bien degenerado, pero ntegro, con base en la tesis de que su configuracin y algunas caractersticas arquitectnicas son diferentes de otras de la misma poca. En los aos que se siguieron, la problemtica del estado de ruina debido al vandalismo y a la exposicin al intemperie ha se agravado. Adems de la restauracin de 1967 y de los trabajos de emergencia para la consolidacin de 1978, otras propuestas han surgido, pero no fueron ejecutadas. El caso del Stio Mirim cerra, por lo tanto, el punto clave de la problemtica del estudio de las ruinas arquitectnicas que implica dos cuestiones: entender lo que son ruinas y la cmo intervenir en estos bienes. Ocasionando una discusin que incluye algunos aspectos: Cmo incorporar la ruina arquitectnica en nuevas intervenciones? Cmo aceptar las marcas del tiempo? Qu tipo de "uso" puede tener las ruinas? As, es posible verificar cmo ha sido la percepcin dada por las agencias de conservacin y por los usuarios en relacin a esa edificacin al largo del tiempo. Palabras clave: ruinas arquitectnicas, patrimonio, preservacin

    Abstract: The paper discusses architectural ruins in order to direct the discussion to enlarge the attention to this kind of cultural goods. In dealing with this issue, we focus on the problem of "negligence" because it is inevitable to think that the degenerative process could have been avoided. For this analysis we selected the case of Sede do Stio Mirim in So Paulo (So Miguel Paulista) which was listed as a cultural good in three levels (national, state, local) and whose oldest information dating back to 1750. This house had its historical value recognized in 1965as a degenerated but integrate building, based on the thesis that its configuration and some architectural features are different from others of the same period. In the years that followed, the problematic of ruination due to vandalism and exposure to the weather has been worsened. Besides the restoration of 1967 and emergency works to consolidation in 1978, other proposals have emerged, but were not executed. So, the case of Stio Mirim contains the crucial point of the study of architectural ruins that involves two questions: understanding what ruins are and how to intervene in these goods? Occasioning a discussion that includes some aspects: how to incorporate architectural ruins in the new interventions? How to accept the marks of the passage of time? What kind of "use" can have the ruins? So, it is possible to verify how has been the perception of the preservation agencies and users in relation to this building over time. Keywords: architectural ruins, heritage, preservation

  • RUNAS DO ABANDONO E SUA SIGNIFICAO: O CASO DO STIO MIRIM SO PAULO

    INTRODUO

    O termo runas se refere a conjuntos edificados em diferentes graus de abandono e destruio promovidos pela juno de fatores como: a mera passagem e ao incondicional do tempo; a perda da funo original e a falta de um uso constante; como consequncia de: guerras, catstrofes ou carter intencional (para ceder lugar s novas edificaes ou para reaproveitamento de materiais) e devido incria sobre os bens (KHL, 2001). Ao longo dos sculos, esses remanescentes arquitetnicos tm sido objeto de interpretaes e abordagens tornando-se referncias cruciais para diversos campos de estudo, dentre eles a preservao patrimonial, em que a apreciao de runas tem sido fundamental durante o processo de maturao do conceito de monumento histrico que teve incio no Renascimento e que se sedimentou a partir do sculo XIX1.

    No Brasil, runas arquitetnicas tambm tm sido recorrentes no mbito da preservao patrimonial. interessante constatar, por exemplo, que a primeira atribuio de Lucio Costa no recm fundado SPHAN (Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional) foi a consolidao nas runas da Igreja de So Miguel Arcanjo no conjunto das Misses, RS em 1938. Nesta ocasio, Lucio Costa visitou os remanescentes da regio2 e constatou tambm a necessidade de abrigar o rico acervo sacro encontrado. Para proteger o legado das peas religiosas foi proposto que os vestgios das demais Misses se concentrassem em So Miguel onde foi criado um pequeno museu cujas caractersticas - panos de vidro - promoveram uma integrao visual com as runas remanescentes. Dentre os trabalhos executados esto levantamentos, inventrios, obras de consolidao, conservao e estabilizao das runas arquitetnicas.

    Ao levantar o nmero de referncias em que consta a designao runas ou runa na atual lista dos bens tombados pelo IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional)3, foi possvel localizar 25 indicaes; dentre estas esto desde as primeiras inscries de 1938 (So Miguel das Misses, RS; Fbrica de Ferro Patritica, Ouro Preto, MG; Forte Velho, Cabedelo, PB; Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, Joo Pessoa, PB) at a mais recente inscrio do conjunto de Igatu, Andara, BA (2000). Ao verificar o Estado de So Paulo, na listagem do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico)4, embora haja remanescentes que atravs de pesquisa iconogrfica seja possvel identificar elementos em estado de runa como o conjunto do Forte de So Felipe e Armao de Baleias (Guaruj/Bertioga), dentre outros, o termo runas est somente associado a trs indicaes: Runas do Engenho dos Erasmos (Santos), Runas do Abarebeb (Perube) e Runas do Engenho Lagoinha (Ubatuba). J na cidade de So Paulo, no CONPRESP (Conselho Municipal de

    1 Em 1825, Quatremre de Quincy publica o Verbete Runa, Runas no terceiro tomo da Encyclopdie Mtodique, um

    trabalho pioneiro sobre essa temtica: estabelece definies, faz um breve retrospecto histrico em relao ao valor que foi atribudo s runas at ento e estabelece parmetros no que tange s intervenes (KHL, 2003). 2 A regio engloba sete povos missioneiros: So Francisco de Borja (1682), So Nicolau (1687), So Miguel Arcanjo

    (1687), So Loureno Mrtir (1690), So Joo Batista (1697) e Santo ngelo Custdio (1706 / 1707); sendo que a de So Miguel era a mais populosa e importante desde fins do sculo XVII (COMAS, 2007, p.6). 3 A partir de dados do Arquivo Noronha Santos, acesso em 10 out. 2012, disponvel em:

    . 4 A partir de dados do CONDEPHAAT (Listagem dos bens tombados), acesso em 20 out. 2012, disponvel em:

    .

  • Preservao do Patrimnio Histrico, Cultural e Ambiental da Cidade de So Paulo)5, a referncia terminologia runas fica ainda mais exgua e no aparece na lista dos bens tombados, embora saibamos da condio de exemplares que se enquadram evidentemente nessa categoria como a antiga casa do Stio Mirim.

    Ao tratar de runas arquitetnicas, pretende-se enfocar a questo da incria, pois inevitvel pensar que de alguma forma o processo degenerativo poderia ter sido evitado, ou ao menos minimizado, caso os bens tivessem sido devidamente conservados, aspecto diretamente relacionado a um iderio recorrente nos discursos patrimoniais que se refere urgncia de salvaguarda (LAMY apud RODRIGUES, 2001 p.32) legitimando a proteo e maior ateno a bens em estado precrio de conservao. Ainda no incio do sculo XX, possvel identificar no Brasil menes s runas relacionadas problemtica do estado degenerativo em que se encontravam muitos bens, o que motivou e promoveu a necessria e urgente pauta da implementao de uma poltica nacional de preservao6. Recentemente, trabalhos que abordam edificaes em runas, tm retomado a questo do abandono contextualizando esses remanescentes hoje nos grandes centros urbanos7.

    Para anlise da problemtica do abandono, selecionamos as runas da Sede do Stio Mirim em So Paulo (So Miguel Paulista) - bem tombado nas trs esferas (nacional, estadual, municipal)8. Nesse artigo, nos remeteremos a este caso especifico, com o objetivo de encaminhar a discusso para uma ampliao da ateno aos bens em estado de runa, verificando como tem se dado a percepo pelos rgos de preservao e dos usurios em relao essa edificao; e quais foram as intervenes e medidas adotadas ao longo do tempo.

    SEDE DO STIO MIRIM

    Partido arquitetnico e tombamento

    Embora no se saiba a idade precisa dessa edificao rural identificada tambm com o nome de Corumbata, a informao mais antiga remonta a 1750; nessa casa teria residido o guarda-mor Francisco de Godoy Preto, porm a data no precisa e a construo poderia ainda ser bem anterior. O Stio Mirim localiza-se em So Miguel Paulista, municpio de So Paulo nas proximidades da margem esquerda do Rio Tiet; sua implantao na meia encosta de um terrao aluvial propiciava da face leste da casa uma vista panormica de toda essa vrzea (KATINSKY, 1972); posteriormente, muito prximo edificao foi construda a Estrada de Ferro Central do Brasil.

    Os primeiros estudos sobre a Sede do Stio Mirim so de Luis Saia9, que publica em 1944 planta (Figura 1) no artigo Notas sobre arquitetura rural paulista do segundo sculo na Revista do

    5 A partir de dados do CONPRESP (ndice geral), acesso em 2 fev. 2013, disponvel em:

    . 6 Pode-se mencionar, por exemplo, as asseres de Mrio Lima em 1929 a respeito da situao da cidade de Ouro

    Preto: E pensar que a vetusta e legendria cidade vai, de runa em runa, para o aniquilamento, [...] (LIMA apud PINHEIRO, 2004, p.62). Esse estado de runa tambm foi destacado por Mrio de Andrade durante as incurses no Estado de So Paulo na dcada de 1930: Vagar assim, pelos mil caminhos de So Paulo, em busca de grandezas passadas, trabalho de fome e de muita, muita amargura. [...]. E encontramos runas, tosquides. Vem a amargura. [...] (ANDRADE apud GONALVES, 2007, p. 108). 7 Podem ser mencionados estudos de: Mrio Coelho (1996), Victor H. Mori (2006), Adalton Mendona (2011), Ceclia R.

    dos Santos e Ruth V. Zein (2011) - que aborda especificamente a questo da runa de edificaes mais recentes. 8 Conjunto tombado: IPHAN - indicado em 1965 e tombado em1973 (Livro do tombo histrico), CONDEPHAAT ex

    officio- 1983 e CONPRESP ex officio - 1991. 9Luis Saia foi o Chefe do 4 Distrito (So Paulo) do ento SPHAN de 1938 a 1975, ano de seu falecimento.

  • SPHAN. Em estudo detalhado efetuado por Eideval Bolanho do incio da dcada de 1970, evidencia-se que a casa se constitua de um retngulo compartimentado (Figura 2, 3 e 4), havia ainda outras caractersticas arquitetnicas, tais como: a estrutura de paredes de taipa de pilo de 50 cm de espessura; o telhado era em dois panos o que d uma descontinuidade incomum em relao outras casas bandeiristas; a armadura do telhado era composta por madeiramento mergulhado na taipa; piso de terra batida; portas e janelas exclusivamente de madeira; portas apresentavam detalhe decorativo (chanfro de 45 graus) que varia de ambiente para ambiente (KATINSKY, 1972).

    Figura 1: Croquis da planta da Sede do Stio Mirim, Luis Saia, capa do Caderno de Obras de 1967.

    Fonte: Acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Figura 2: Planta da Sede do Stio Mirim, desenho elaborado pela autora, baseado no levantamento de Eideval Bolanho de

    1964. Fonte: KATINSKY, 1972, p.29.

  • Figura 3: Corte A-A da Sede do Stio Mirim, desenho elaborado pela autora baseado no levantamento de Eideval Bolanho de

    1964. Fonte: KATINSKY, 1972, p.29.

    Figura 4: Corte B-B da Sede do Stio Mirim, desenho elaborado pela autora baseado no levantamento de Eideval Bolanho de

    1964. Fonte: KATINSKY, 1972, p.29.

    Em levantamento fotogrfico efetuado em 1945 e 1965 (Figura 5 e 6), constata-se, segundo estudos posteriores de Helena Saia (SO PAULO cidade, 1976)10, que a casa apresentava alteraes como o fechamento do alpendre central com parede de pau-a-pique, aberturas novas, falta de pilares originais no alpendre lateral.

    Figura 5: Sede do Stio Mirim, 1945. Fonte: Acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP. Foto: Luis Saia.

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    Trabalho consultado junto PMSP/SMC/DPH Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao, Pasta: D.O.M. Julho/98.

  • Figura 6: Sede do Stio Mirim, 1965. Fonte: Acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP. Foto: Hernan H. Graeser.

    Segundo a pesquisadora Lia Mayumi (2005), Luis Saia, amplo estudioso das casas rurais paulistas, elaborou uma caracterizao dessas tipologias atravs da identificao de algumas constantes:

    [...] planta retangular; paredes de taipa de pilo; telhado de quatro guas e coberturas com telhas de canal; implantao sobre plataforma natural ou artificial, a meia encosta nas proximidades de um riacho; planta organizada em trs faixas (social, familiar, de servio, a partir da fachada principal); depsito ou sobrado, aproveitando a acentuada inclinao do telhado; presena de alpendre encravado na fachada principal, entre dois cmodos onde funcionariam uma capela e um dormitrio para hspedes. (MAYUMI, 2005, p.32)

    Desse modo, Saia classificou essas casas em dois grupos segundo as tcnicas e materiais construtivos utilizados: 1. puros: onde todas as constantes estavam presentes e h o emprego de maior qualidade de mo-de-obra e materiais; 2. tardios: nos quais se constata a ausncia de algumas constantes e a diminuio da qualidade construtiva (MAYUMI, 2005, p.32).

    Em 1965 Saia desenvolveu um relatrio11 mais detalhado com fotos e grficos da Sede do Stio Mirim embasado na tese de que a configurao e algumas caractersticas do partido arquitetnico dessa edificao so diferentes das demais do mesmo perodo como o alpendre em L justificando, portanto, o tombamento pela excepcionalidade e unicidade do bem12:

    De todos os exemplares de arquitetura residencial paulista correspondente ao perodo bandeirista, a sede do atual Stio Mirim a nica cuja planta foge ao esquema paladiano que comparece como soluo genrica e caracterstica. No caso presente da sede do Stio Mirim, enquanto os detalhes construtivos (portas com vergas retas, espessuras das paredes de taipa, soluo de detalhes da armadura do telhado, etc.) aproxima este edifcio daqueles que so comprovadamente do sculo anterior, isto da parte mais viva do bandeirismo. As modificaes introduzidas na planta so suficientemente convincentes e seguras para que se

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    Ofcios, relatrios e demais documentos referentes ao tombamento do Stio Mirim pelo IPHAN foram consultados junto ao arquivo da Superintendncia do IPHAN/SP: Processo 755-T (Pastas: PT 00423 P1 / PT 00424 P2 / PT 00425 P3 / PT 00426 P4). 12

    Esses estudos de Luis Saia seriam expostos no artigo Sede do Stio Mirim publicado em 1969 na Revista Acrpole.

  • deixe interpret-las como interferncias individualistas. Afinal de contas, esta alterao no chegou a destruir totalmente aquele esquema bsico que dividia a residncia bandeirista em duas partes distintas, uma voltada para a vida familiar, e outra, composta de capela, alpendre e quarto de hspede, voltada para a vida comunitria. O fato do alpendre ganhar uma soluo no paladiana, e se estender, corrido, por duas fachadas, obrigando uma soluo diferente para a pea do cunhal (de taipa, em forma de L) parece extremamente significativo como documento da arquitetura paulista deste perodo. [...], a descoberta e proteo de uma pea de exceo num conjunto sistemtico como o da arquitetura residencial do perodo bandeirista, se afigura mais valiosa como informao e como valor didtico, [...] o empenho maior deve incidir sobre este exemplar (Mirim) nico, diferente, ilustrativo, e portanto valioso. Sua perda seria irreparvel. (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 26/65)

    Processo de arruinamento: breve histrico

    Na justificativa de tombamento de 1965, Luis Saia j demonstrava preocupao com a urgncia da necessidade de trabalhos no Stio Mirim devido ao estado ruinoso da edificao que tinha se agravado pelas chuvas danosas que levaram ao desabamento de parte de um compartimento indicado como cozinha na planta (Figuras 7, 8 e 9). Em 1967 Saia evidenciou a necessidade de intervenes: [...] dado o estado bastante precrio em que se encontrava a aludida casa do Stio Mirim este Distrito iniciou imediatamente as obras de sua restaurao [...] estas obras s foram iniciadas para evitar o perecimento total da pela arquitetnica [...] (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 34/67). Com os elementos encontrados, Luis Saia props um trabalho de restaurao para

    conferir estabilidade edificao.

    Figura 7: Sede do Stio Mirim, arruinamentos.

    Fonte: Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Figura 9: Sede do Stio Mirim, escoramentos de partes

    comprometidas. Fonte: Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Fonte: IPHAN, Foto: Caderno de Obras, Luis Saia .

    Figura 8: Sede do Stio Mirim, escoramentos.

    Fonte: Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

  • A rea envoltria da edificao bem como sua proximidade com a linha frrea sempre foram objeto de atenes e discusses. Desde a proposta de tombamento de 1965, foi ressaltado por Luis Saia negociaes com o ento proprietrio (Sr. Mrio Albuquerque Pacini) que iria lotear os terrenos lindeiros para o destaque de uma rea livre de um hectare em torno da edificao. Em 1967 Saia demonstrou anseios de transformar a casa num museu histrico, para tanto previa a necessidade da construo de uma pequena casa dentro da rea a ser desapropriada para manter um guarda permanentemente no local. Em 1971, foi assinado um decreto municipal que tornava de utilidade pblica essa rea necessria para a preservao, porm essa desapropriao somente ocorreu de fato em 1975 quando passou para a guarda do Departamento do Patrimnio Histrico da Secretaria Municipal da Cultura de So Paulo (DPH/SMC)13. No terreno onde se situa o Stio Mirim foi constituda uma praa pblica, popularmente conhecida como Praa do ndio.

    Ao longo das dcadas a regio envoltria do Stio Mirim foi cenrio de um crescimento urbano desordenado; verificando imagens areas da dcada de 1950 e 2000 (Figuras 10 e 11) se constata o adensamento de uma comunidade desprovida de qualquer infraestrutura denominada Jardim Pantanal do Leste. A partir do incio da dcada de 1970, a ento recm restaurada Casa do Stio Mirim passou a ser depredada e seus materiais foram retirados (tijolos, telhas, madeiramento do telhado, etc.); exposta s intempries a edificao iniciou o processo de degenerao (Figura 12).

    Figura 10: Foto area 1954, sede do Stio Mirim, canto inferior esquerdo.

    Fonte: PMSP/SMC/DPH/Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao (STPRC).

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    A partir de 1975 comeou a funcionar o Servio Municipal do Patrimnio em So Paulo cuja poltica inicial era colaborar com as outras esferas (estadual e federal), completando aes iniciadas pelo IPHAN de desapropriao de transferncia para o domnio municipal alguns bens tombados. Assim em 1979, a casa do Stio Mirim fazia parte das seis casas bandeiristas (Butant, Caxingui, Tatuap, Stio Morrinhos e Stio da Ressaca) que formavam o ncleo inicial dos bens de propriedade municipal (MAYUMI, 2005, p. 17).

  • Figura 11: Foto area 2000, sede do Stio Mirim, canto inferior esquerdo. Verifica-se a retificao do Rio Tiet e o

    adensamento urbano. Fonte: PMSP/SMC/DPH/Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao (STPRC).

    Figura 12: Sede do Stio Mirim, incio do processo de depredao em 1972.

    Fonte: IPHAN, Processo 755-T, Of. 215/72. Foto: Luis Saia.

  • Em 1972, devido ao alargamento da pista da Estrada de Ferro Central do Brasil, houve contundentes manifestaes por parte de Luis Saia solicitando o embargo dessas obras no trecho que atingia a rea envoltria do imvel por comprometerem a estabilidade da casa:

    As obras [...] j atingiram cerca de 5 metros dos terrenos fronteiros ao monumento tombado, denominado Stio Mirim, situado na imediao da referida linha. Restam apenas 5 metros de desaterro para que a obra alcance a fachada principal do monumento. Em resumo, o projeto dessa firma implica na perda total do monumento em pauta e representa um atentado contra o patrimnio nacional, [...]. (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 215/72)

    De fato a polmica dessas obras e do estado periclitante que a Sede do Stio Mirim estava exposta ganhou matria na Folha de So Paulo em 197314, que salientou o fato de que mquinas de terraplanagem chegaram a poucos metros da edificao. Nessa matria Luis Saia tambm faz crticas municipalidade devido negligncia com o bem tombado:

    Houve desdia da Prefeitura. No apenas o prefeito Prestes Maia deixou de atender aos meus sucessivos apelos: todas as administraes que o sucederam, inclusive a atual, tambm no deram a mnima importncia aos pedidos e sugestes do Patrimnio Histrico. por isso que o Stio Mirim transformou-se no que hoje, runas e s runas. (LIMA, 1973, p.14)

    Nos anos que se seguiram a problemtica do estado de arruinamento devido ao abandono e incria foi se agravando, somente no final da dcada de 1970 foram retomados trabalhos e propostas para o Stio Mirim. Em 1976, Helena Saia desenvolveu um estudo preliminar e projeto para a restaurao; de 1977 tambm, um projeto de paisagismo a ser implantado na rea envoltria (Praa do ndio) (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 147/77). Enquanto decidia-se quanto ao partido do projeto de restauro para a edificao, foram solicitadas medidas para a conteno das paredes de taipa de pilo remanescentes, consolidando as runas da casa (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 221/78).

    No incio da dcada de 1980 com o andamento de projeto executivo pelos tcnicos da Seo Tcnica de Projetos Restauro e Conservao do DPH liderados pela arquiteta Vera Santos Mauro de Menezes iniciam-se prospeces arqueolgicas no stio coordenadas pela arqueloga Margarida Andreatta do Museu Paulista; esses trabalhos foram importantes no s para informar sobre vrios testemunhos arqueolgicos da regio, mas tambm, no que diz respeito casa, informar sobre alicerces e evidncias de soleiras de madeira nas portas de modo a contribuir para a interpretao da dimenso fsica arquitetnica do edifcio na sua cota zero. Porm, surgiram dvidas e indefinies15 (SO PAULO - cidade, 1983) quanto configurao original da casa, os trabalhos ficaram paralisados, aguardando posio definitiva quanto s posturas a serem tomadas e, por fim, a ideia de restauro prevista foi descartada.

    Em 12.05.1983 o Stio Mirim foi tombado ex officio pelo CONDEPHAAT, mas sem os devidos cuidados, continuou passando por processos de degradao. Em funo de seu estado de abandono, em 1986 a Administrao da Regional de So Miguel solicitou providncias ao rgo estadual:

    Ilmo. Senhor Vimos atravs do presente informar a V. Sa. que o Sitio Mirim, Patrimnio Histrico, tombado por essa digna entidade, sito a Av. Assis Ribeiro, ao lado do n. 2067 - So Miguel Paulista, esta sendo depredado e danificado por vndalos e marginais, tendo sido sua cerca de tela roubada e que os guardas que prestavam servios no local esto ausentes j h algum tempo. Face ao acima exposto e por encontrar-se no local, a antiga Casa dos Bandeirantes, marco

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    So Paulo est perdendo um de seus derradeiros exemplares da arquitetura residencial paulista correspondente ao chamado perodo bandeirista: o Stio Mirim, LIMA (1973). 15

    Relatrio consultado junto ao arquivo da Superintendncia do IPHAN/SP: Processo 755-T.

  • importante da histria de nossa regio, solicitamos as dignas providncias de V. Sa. no sentido

    de cercar e colocar vigilantes no local. [...] (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 946/AR-MP.GAB/86)

    Na Resoluo 05/1991 o Stio Mirim foi tombado ex officio pelo CONPRESP, porm a situao continuou a mesma, vandalismo, falta de controle da ocupao do entorno e abandono foram paulatinamente colaborando para acentuar o estado de runas do Stio Mirim. At que em 1998, instaurou-se um inqurito civil na Promotoria de Justia do Meio Ambiente da Capital versando sobre o abandono do bem. Em funo disso, a partir de 1999 atravs vrias reunies conjuntas envolvendo tcnicos do DPH, CONDEPHAAT e IPHAN e representantes do Ministrio Pblico foi decidido que uma nova proposta seria feita para uma soluo das runas e a implantao de um centro cultural no local. O corpo tcnico do DPH elaborou um anteprojeto em que previa as intervenes partindo de um levantamento planialtimtrico cadastral de toda a rea. Segundo os documentos levantados, esse anteprojeto gerou animosidades entre os tcnicos dos outros rgos envolvidos - IPHAN e CONDEPHAAT, que culminou com o veredicto de que o dito projeto no seria aprovado. Com a falta de um consenso quanto ao partido a ser adotado nada foi executado no Stio Mirim.

    Em 2003 foi instaurado um projeto da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) para a reurbanizao da ocupao vizinha e implementao de servios e equipamentos pblicos para cerca de 7000 famlias (Vila Jacu). Nesse momento, segundo relato da arquiteta Lia Mayumi16, em funo da necessidade de interligar acessos a esse novo conjunto foi apresentada proposta de traado virio que incidia no terreno do Stio Mirim comprometendo a rea envoltria do mesmo. Nesse perodo, segundo informaes do arquiteto Anderson Freitas17, a Secretaria Municipal da Cultural havia includo o Stio Mirim num conjunto de propostas de intervenes (reurbanizaes urbanas) coordenadas pelo arquiteto Marcos Cartum, para que fosse desenvolvido projeto para o Stio Mirim. O projeto deveria contemplar a conservao das runas e a implantao de um Centro de Cultura e Convivncia no terreno, o que ia de encontro s reivindicaes da populao local que se organizou para solicitar providncias quanto Sede do Stio Mirim. Para tal projeto, o escritrio Apiacs Arquitetos foi contratado junto Secretaria Municipal da Cultura e desenvolveu estudos e propostas para uma reviso das alternativas virias na rea. Por fim, foi construdo um viaduto com um desenho distinto das alternativas propostas que, ao menos, no incide sobre o terreno do Stio Mirim.

    Segundo o arquiteto Anderson Freitas, o projeto do Centro Cultural de Convivncia foi aceito em todas as esferas envolvidas (IPHAN, CONDEPHAAT e DPH) com algumas ressalvas quanto a detalhes arquitetnicos; tambm foi aceito pela comunidade local para a qual o mesmo foi apresentado. No entanto, mesmo com o projeto todo desenvolvido, no IPHAN, a aceitao do partido adotado no foi unnime, devido a essas divergncias conceituais o Ministrio Pblico foi contatado, e, mais uma vez nada foi executado para o Stio Mirim.

    Segundo a arquiteta Lia Mayumi, tendo em vista a necessidade de tomar alguma providncia para a mnima conservao das runas arquitetnicas e com recursos financeiros exguos, tcnicos do DPH aventaram a possibilidade de cobrir as paredes de taipa, alguns estudos foram feitos e uma proposta de prticos em ao com painis de vidro foi apresentada. Porm, chegou-se concluso de que somente essa cobertura no seria suficiente para garantir a preservao do Stio Mirim; no entendimento dos tcnicos seria necessria uma ao mais contundente que envolvesse toda a rea introduzindo equipamentos com usos mais efetivos no cotidiano dos moradores locais para que o bem cultural pudesse ser de fato incorporado e preservado.

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    Entrevista concedida pela arquiteta Lia Mayumi (PMSP/SMC/DPH) autora em 22.02.2013. 17

    Entrevista concedida pelo arquiteto Anderson Freitas do escritrio Apiacs Arquitetos autora em 26.02.2012.

  • Em 2010, a CPTM (Companhia de Trens Metropolitanos) apresentou o projeto da Estao Nova Vila Jacu (aprovado pelos rgos competentes) que ser instalada a poucos metros do terreno do Stio Mirim. Atualmente h uma passagem subterrnea de pedestres sob a linha frrea, cujo acesso se d atravs do terreno do Stio Mirim (Figuras 13 e 14). Com a instalao dessa nova estao, que prev tambm passarelas sobre a linha frrea e a reurbanizao do traado no entorno, possivelmente a relao com o entorno ser transformada e uma nova condio de uso poder ser instaurada. No entanto, enquanto isso no ocorre, a situao das runas do Stio Mirim segue inalterada (Figuras 15 e 16).

    Figura 13: Praa do ndio, caminho para passagem sob linha frrea; lado direito runas da Sede do Stio Mirim, 2010. Fonte:

    PMSP/SMC/DPH/Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao (STPRC). Foto: Lia Mayumi.

    Figura 14: Muro de divisa entre a linha frrea da CPTM e terreno do Stio Mirim, com vista das runas ao lado direito, 2010.

    Fonte: PMSP/SMC/DPH/Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao (STPRC). Foto: Lia Mayumi.

  • Figura 15: Runas do Stio Mirim remanescentes em taipa; aos fundos, muro de divisa com a CPTM, e CDHU, 2010.

    Fonte: PMSP/SMC/DPH/Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao (STPRC). Foto: Lia Mayumi.

    Figura 16: Runas do Stio Mirim remanescentes em taipa, aos fundos muro de divisa com a CPTM, 2005.

    Fonte: Acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP. Foto: Joo Bacellar.

  • RUNAS ARQUITETNICAS DO STIO MIRIM: COMPREENSO E PROPOSTAS

    Algumas referncias tericas

    Antes de analisar mais detidamente algumas das propostas que incidiram sobre a Sede do Stio Mirim, nos reportaremos, num breve retrospecto, a algumas asseres tericas no campo da preservao patrimonial que remetem ao tema das runas.

    John Ruskin enfatizava a ptina enquanto atributo mais importante de um bem lhe conferindo valores pictricos e pitorescos, fundamentando assim suas recomendaes conservao necessria e apresentando o conceito de mnima interveno que prescreve o respeito integridade do bem em sua condio atual, estabilizando-a ainda que em detrimento do aspecto formal (RUSKIN, 2008). J para Viollet-le-Duc existia a compreenso de que o passado est morto, a passagem do tempo e suas marcas no devem ser aceitas e a restaurao era necessria para salvar da runa (VIOLLET-LE-DUC, 2000). Desse modo, ele apresentou um intervencionismo militante18: Restaurar um edifcio no mant-lo, repar-lo ou refaz-lo, restabelec-lo em um estado completo que pode no ter existido nunca em um dado momento. (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p.30).

    Camillo Boito, quando estabeleceu o restauro cientfico ou filolgico caracterizado pela abordagem estritamente documental do monumento, apresentou trs classificaes restaurao arquitetnica de acordo com as caractersticas das edificaes: arqueolgica para monumentos da antiguidade; pictrica para os edifcios medievais e arquitetnica para edifcios a partir do Renascimento. Dentre os critrios para a preservao, Boito enfatiza o valor documental; a restrio de obras de consolidao somente ao necessrio e o completamento de partes faltantes ou deterioradas em material diverso ou datado, ou ainda, de material simplificado (no caso das restauraes arqueolgicas) (BOITO, 2002 e KHL, 2001).

    Gustavo Giovannoni desenvolveu e ampliou a ideologia de Boito preconizando a distino entre: monumentos mortos mais antigos como os da antiguidade clssica, aos quais normalmente se exclui uma transformao do estado de runas e uma utilizao atual; e monumentos vivos, mais recentes como palcios e igrejas aos quais oportuno report-los a uma nova funo. A partir dessa classificao ele distingue os tipos de restauro: consolidao, em que novas tcnicas contribuem para dar resistncia s antigas construes; recomposio (anastilose), quando os elementos retornam prpria posio com acrscimos secundrios; liberao, quando so retiradas massas amorfas para se retomar o artstico; completamento e renovao quando acrscimos tendem a reintegrar a obra com elementos novos (GIOVANONNI, 1936).

    Essa matriz italiana foi determinante na formulao da Carta de Atenas (1931)19 cujas designaes sobre runas arqueolgicas recomendam anastilose e complementao com materiais reconhecveis:

    VI Tcnica de Conservao: Quando se trata de runas uma conservao escrupulosa se impe, com a recolocao em seus lugares de elementos originais encontrados (anastilose), cada vez que o caso o permita; os materiais novos necessrios a esse trabalho devero ser sempre reconhecveis. (SOCIEDADE DAS NAES, 1931 In: CURY, 2004, p.15).

    18

    Essas ideias orientaram uma srie de intervenes de Viollet-le-Duc, dentre elas o caso do Castelo de Pierrefond, conjunto que chega em 1845 em runas e passa por vrias reconstrues. 19

    E tambm originou a Carta del Restauro Italiana (1932) que reitera conceitos do restauro cientfico. No que tange s runas destacam-se: manuteno, anastilose e utilizao de neutros para a integrao, carter documental de todas as fases de um edifcio, cuidados com a ambientao e distinguibilidade dos materiais (GIOVANONNI, 1936).

  • importante ainda destacar que a Carta de Veneza (1964), assim como as cartas de Atenas e do Restauro Italiana, recomenda a anastilose para os conjuntos em runas:

    Artigo 15:[...] Todo trabalho de reconstruo, [...], deve ser excludo a priori, admitindo-se apenas a anastilose, ou seja, a recomposio de partes existentes, mas desmembradas. Os elementos de integrao devero ser sempre reconhecveis e reduzir-se ao mnimo necessrio para assegurar as condies de conservao do monumento e restabelecer a continuidade de suas formas. (ICOMOS, 1964, In: CURY, 2004, p.95).

    O austraco Alois Riegl se refere especificamente problemtica da interpretao das runas: do ponto de vista do valor histrico, a fundamentao cientfica; e do ponto de vista do valor de antiguidade a manifestao se d atravs da sensibilidade (tica) e atinge de forma imediata ao sentimento, devendo ser este o valor prioritrio para qualquer interveno (RIEGL, 1990). Riegl tambm estabelece outro valor crucial na temtica aqui abordada que o valor de uso, segundo destaca Franoise Choay um critrio decisivo para distinguir um monumento histrico de uma runa arqueolgica (CHOAY, 2001)

    J Cesare Brandi, na Teoria da Restaurao no faz distino entre runas de obras mais antigas em detrimento de obras mais recentes: [...] Runa ser, pois, tudo aquilo que testemunho da histria humana, mas com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecvel em relao quele de que se revestia antes. [...] (BRANDI, 2004, p.65). Desse modo, ele considera que a restaurao para esse tipo de bem s pode ser a consolidao e conservao do stato quo de runa, a no ser que: a runa no era uma runa, mas uma obra que ainda cotinha uma vitalidade implcita para promover uma reintegrao da unidade potencial originria. (BRANDI, 2004, p.66).

    A verificao sobre a forma de compreenso das runas enquanto referncias materiais significativas e as consequentes solues para tratamento e interveno nesses bens, envolve, portanto, a discusso de uma srie de aspectos como: a aceitao das marcas da passagem do tempo atravs do valor de antiguidade e as questes da autenticidade e do uso. Ao nos reportarmos ao caso em foco, podemos verificar alguns desses aspectos e problemas cruciais que se estabelecem ao abordar as runas.

    Propostas e impasses conceituais

    Ao longo das dcadas, como foi apresentado, a Sede do Stio Mirim vem sendo objeto de estudos, propostas e intervenes. A primeira interveno pela qual o bem passou foi a restaurao de 1967 coordenada por Luis Saia (Figuras 17 e18). De acordo com Lia Mayumi (2005) a partir das experincias das obras pioneiras efetuadas pelo SPHAN20 na dcada de 1930 e 1940, estabeleceu-se um paradigma para o tratamento de edificaes de taipa de pilo que seria utilizado no Stio Mirim. Atravs de levantamento iconogrfico possvel constatar que foram utilizadas placas de concreto junto s paredes de taipa, sem fundao, para proteo contra eroso provocada pelas guas pluviais (Figura 19). Alm disso, foi executada uma malha de concreto com vigas (geralmente sees de 20x20cm) e algumas colunas (sees de 30x30cm) para a amarrao das paredes de taipa (Figura 20). J para o completamento das partes erodidas, foram utilizados tijolos de barro. A casa passou por trabalhos de reconstituio de telhado com telhas de barro, madeiramento, colocao de esquadrias de madeira, recompondo totalmente a edificao. De acordo com Luis Saia, embora bastante abandonada, os elementos pr-existentes encontrados foram utilizados como referncias fidedignas para a elaborao desse

    20

    Igreja de Nossa Senhora do Rosrio do Emb (1939), Igreja de So Miguel Paulista (1939) e Stio Santo Antnio (1940) (MAYUMI, 2005, p. 66).

  • projeto de restauro (SO PAULO - cidade, 1976). H de se levar em conta, que aqui, a casa foi considerada tendo em conta a sua espacializao arquitetnica que ainda era reconhecvel.

    Figura 17: Sede do Stio Mirim trabalhos de restaurao, 1967. Fonte: Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo

    fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Figura19: Sede do Stio Mirim, placas de concreto junto taipa. Fonte: Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo

    fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Figura18: Sede do Stio, colunas e vigas de concreto. Fonte:

    Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    Figura 20: Sede do Stio Mirim, vigas para amarrao. Fonte:

    Caderno de Obras, 1967, Luis Saia - acervo fotogrfico da Superintendncia do IPHAN/SP.

    A partir de 1971, com sucessivas depredaes e exposto s intempries, o processo de arruinamento agravou-se e em 1976 um novo estudo foi desenvolvido pelos tcnicos do DPH. A arquiteta Helena Saia, desenvolveu uma proposta21 em que se cogitou a restituio espacial da casa, para tanto ela exps uma justificativa que expressa a preocupao com a segurana da autenticidade das informaes a serem utilizadas como embasamento, referindo-se Carta de Veneza:

    Art. 9: A restaurao uma operao que deve ter carter excepcional. Tem por objetivo conservar e revelar os valores estticos e histricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autnticos. Termina onde comea a hiptese; no plano das reconstituies conjeturais, todo trabalho complementar reconhecido como indispensvel por razes estticas ou tcnicas destacar-se- da composio arquitetnica e dever ostentar a marca do nosso tempo. A restaurao ser sempre precedida e acompanhada de um estudo arqueolgico e histrico do monumento. (ICOMOS, 1964, In: CURY, 2004, p.93)

    21

    Trabalho consultado junto PMSP/SMC/DPH Seo Tcnica de Projeto, Restauro e Conservao, Pasta: D.O.M. Julho/98.

  • Nessa justificativa, Helena Saia menciona tambm Augusto Molina Montes e sua publicao La restauracin arquitectonica de edifcios arqueolgicos, referindo-se ideia de que o exemplo mais puro de reintegrao a anastilose, em que se inclui a reposio de partes no originais quando existe a absoluta certeza de todas suas caractersticas arquitetnicas. Helena Saia refutou tanto a possibilidade de preservar as runas enquanto runas, pois haveria desvantagens j que se trata de paredes em taipa que se decompe com facilidade, alm disso, se perderia a leitura espacial do monumento; refutou tambm a possibilidade de cobrir as runas para proteo pois todo o espao seria sacrificado, justificando portanto a opo pela restituio espacial22.

    O desenvolvimento desse projeto prosseguiu no DPH, no entanto, de acordo com o relatrio da arquiteta Vera Santos Mauro de Menezes de 1983, com as prospeces arqueolgicas foram evidenciadas as muitas dvidas geradas devido ao acelerado estado de arruinamento do stio, tais como: 1. no localizao das colunas do alpendre norte; 2. no localizao dos limites das paredes dos dois alpendres, pelo fato da fundao de taipa encontrada ser contnua; 3. no definio da existncia de escada de acesso ao jirau e sua localizao; 4. no definio da existncia de paredes divisrias do alpendre; 5. indefinio do desenho e dimenso exata do armrio no salo central; 6. algumas portas e janelas sem indcios precisos (SO PAULO - cidade, 1983). Desse modo, devido a falta de evidncias documentais precisas que justificassem a adoo do partido da reintegrao espacial a proposta desse restauro no seguiu adiante.

    Nesse meio tempo, enquanto decidia-se quanto ao partido do projeto de restauro, foram solicitadas medidas para a conteno das paredes de taipa de pilo remanescentes, consolidando as runas da casa (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 221/78). Segundo o Relatrio das obras de emergncia realizadas nas runas do Stio Mirim23, essas obras ocorreram em 1978, devido iminncia de um total arrasamento. Esse estado precrio devia-se ao de depredadores que ocorria mesmo com o cercamento da rea; ao incondicional de sua exposio s intempries do tempo - a infiltrao da gua pluvial tirava a coeso do material e criava canais no interior das paredes de taipa; ao excessivo crescimento de vegetao que dificultava a evaporao da gua; e tambm aos efeitos da vibrao provocada pela passagem dos trens. Em funo disso, foram tomadas algumas medidas: revestimento no topo das paredes com argamassa resistente, e, quando necessrio, de fcil remoo; aplicao de silicone nas laterais das paredes; execuo de canaleta com largura mdia de 35 cm por volta das runas para que fossem protegidas de enxurradas; escoramento de paredes com perigo de desabamento, nesse momento constatou-se que algumas paredes s no haviam desabado totalmente devido s obras executadas em 1967; execuo de capina e limpeza da vegetao tomando-se o cuidado de que o trabalho com enxadas no danificasse as paredes; nivelamento do terreno. Nesse relatrio, Joo Eduardo Correa Dias de Moraes (Chefe do Laboratrio de Restauro), evidencia o carter emergencial dessas intervenes, mediante a espera de novas definies sobre um projeto mais incisivo: [...] no so seno providncias provisrias e de durao limitada, fazendo-se necessria, por isto mesmo, a periodicidade de visitas para inspeo. (SO PAULO - cidade, 1978, p.4).

    Uma nova proposta somente seria apresentada em 1999 pelos tcnicos do DPH. Segundo o relatrio de apresentao do anteprojeto24, a proposta foi embasada na orientao terica que aponta para a consolidao dos remanescentes em runas e no propriamente da reconstituio da edificao, pois no haveria elementos suficientes que possibilitariam esse partido, afirmando tambm que as runas deveriam ser tratadas de um ponto de vista arqueolgico. Para tanto foi abordado o respeito substncia antiga, reportando-se tambm ao artigo 9o da Carta de Veneza,

    22

    Foram localizados, ofcios que indicam a consulta ao IPT (Instituto de Pesquisa Tecnolgica) para averiguar a capacidade de carga das paredes de taipa de pilo, bem como solicitao ao IPHAN para pronunciar parecer em relao ao partido adotado nesta proposta (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 145/77, 09/78 e74/78). 23

    Relatrio consultado junto ao arquivo da Superintendncia do IPHAN/SP: Processo 755-T. 24

    Relatrio consultado junto ao arquivo da Superintendncia do IPHAN/SP: Processo 755-T.

  • bem como a problemtica da autenticidade mencionando tambm a Carta de Nara (1994) e concluindo, portanto, que a histria deve ser resgatada e valorizada sem a inveno de simulacros (SO PAULO cidade, 1999).

    As solues apresentadas nesse momento englobam no s os remanescentes em taipa, mas a praa como um todo na construo de um centro cultural: 1. para as runas: construo de cobertura porticada de estrutura metlica com caixilharia envidraada; execuo de limpeza cuidadosa, consolidao e proteo qumica atravs da aplicao de produto impermeabilizante nos remanescentes de taipa de pilo; execuo de pisos , com utilizao de pedras tipo granito de colorao diferenciada, disposta de forma a permitir uma releitura da antiga planta da casa (ambientes granito amndoa e projeo das paredes granito verde Ubatuba); execuo de sistema de drenagem de guas pluviais; colocao de sistema de iluminao para a valorizao das caractersticas do monumento; piso externo ao permetro da casa revestido em mosaico portugus. 2. Para a praa: construo de marquise em concreto armado; execuo de acesso em rampa para deficientes fsicos; remanejamento e construo de quadra poliesportiva; remanejamento da vegetao de porte arbreo compatvel com a proteo do monumento; construo de anfiteatro; nova pavimentao; novo sistema de iluminao; mobilirio urbano; sistema de identificao do monumento. 3. Para a Casa de Cultura: construo de edifcio em estrutura mista de concreto armado e metlica com trs pavimentos com auditrio, sala de exposies, sanitrios e vestirios, salas de oficina, administrao e diretoria (SO PAULO - cidade, 1999).

    No parecer tcnico do arquiteto Jos Saia Neto do IPHAN, uma srie de rebatimentos a essa proposta foram apresentados; dentre outras observaes Saia evidencia o incomodo mediante s premissas adotadas alegando que o projeto [...] reserva aos remanescentes uma funo quase que decorativa, abrigado sob um galpo metlico, com seus pisos revestidos por questionveis placas de granito. (IPHAN, Proc. 755-T, Of. 05/00). Alm disso, menciona que a alternativa aventada seria que os macios de taipa seriam protegidos por cobertura e prximo seria construdo uma rplica da edificao que contaria com um subsolo que abrigaria o programa cultural pretendido. Saia Neto ressalta ainda que havia elementos suficientes para uma eventual reconstituio. Com esses argumentos, a proposta no teve aprovao do IPHAN e no foi executada.

    O mais recente projeto para o terreno e runas da Sede do Stio Mirim, desenvolvido em 2007 pelo escritrio Apiacs Arquitetos, parte da premissa da preservao das runas arquitetnicas e da implantao de um Centro de Cultura e Convivncia que conferisse um uso e apropriao de todo o terreno que envolve as runas (Figuras 21, 22 e 23). De acordo com Anderson Freitas25, o desenvolvimento do projeto contou com a participao de uma equipe multidisciplinar que envolveu arquelogos para a identificao da melhor maneira de intervir nas runas e garantir condies tcnicas adequadas para a conservao desses macios de taipa, da a soluo da cobertura, pois protegeria as runas e, ao mesmo tempo, seriam mantidos certos ndices de umidade. O projeto foi desenhado de modo a integrar-se ao desnvel do terreno procurando recuperar para o visitante a ideia da implantao original da casa, trata-se de uma marquise que cobre as runas e cujo acesso se d pelo passeio pblico atravs de uma praa cujo nvel a cobertura do programa de convivncia que conta com auditrio, salas multiuso e foyer de exposio. O arquiteto salientou o objetivo de interferir minimamente na ambincia das runas, propondo uma soluo que praticamente se mimetiza com a topografia do terreno; alm disso, se pretende valorizar o aspecto documental e simblico das runas de modo a utiliz-las com um papel didtico que contasse a histria do lugar, das casas bandeiristas e sua relao com a geografia local (o desnvel do terreno, a vista da vrzea do Tiet, dentre outros aspectos) atravs de um projeto expogrfico que comporia o percurso dos visitantes. Como j foi mencionado, o

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    Entrevista concedida autora em 26.02.2013.

  • projeto foi aprovado nos rgos competentes, com algumas ressalvas, dentre elas a cota da marquise, que deveria ser aumentada para caso se optasse pela recomposio da casa. Porm, a aprovao no foi unnime e, mais uma vez, a questo conceitual de como incorporar as runas arquitetnicas na interveno, desencadeou discusses e acabou acarretando em trmites judiciais que impediram a efetiva execuo do projeto.

    Figura 21: Proposta desenvolvida pelo escritrio Apiacs Arquitetos em 2007. Fonte: ,

    acesso em 25 Fev. 2013.

    Figura 22: Proposta desenvolvida pelo escritrio Apiacs Arquitetos em 2007. Fonte: ,

    acesso em 25 Fev. 2013.

    Figura 23: Proposta desenvolvida pelo escritrio Apiacs Arquitetos, 2007 - relao com o entorno 2007.

    Fonte: , acesso em 25 Fev. 2013.

  • Tendo em vista a cronologia apresentada interessante destacar duas principais situaes distintas. Primeiro, quando o Stio Mirim chega ao SPHAN e estudado e tombado, o estado degenerado, mas no configura runas; as obras de 1967 so de recomposio, com a utilizao de materiais como tijolos de barro, cintas de concreto, telhas coloniais de demolio de acordo com a postura que orientou diversos outros trabalhos dessa diviso nesse perodo. Porm, com o estado de runa efetivamente instalado, o que fazer? Como considerar esses remanescentes?

    O projeto apresentado pelo DPH no final da dcada de 1970 e incio de 1980, prev a recomposio, ou seja, percebe-se que o valor histrico enunciado Riegl evidenciado e as runas so consideradas como documento para a fundamentao cientfica dessa reconstituio espacial. Essa proposta, ainda que fundamentada no argumento de que a recomposio um tipo de anastilose e que as runas serviriam como documentos fidedignos, esbarra na questo da autenticidade e integridade da materialidade do bem. Segundo Ascensin H. Martnez, tericos da preservao como Giovanni Carbonara e Renato de Fusco apresentam o conceito de autenticidade histrica como a soma das etapas de uma obra englobando o momento original, a estratificao histrica e a historicidade atual; sob essa tica, a ideia de cpia ou reconstruo so inaceitveis pois anulariam episdios dramticos empobrecendo e falseando a verdade histrica do bem (MARTNEZ, 2007). Alm disso, a anastilose, prescrita por Camillo Boito e outros documentos da preservao (Cartas de Atenas, do Restauro Italiana e de Veneza), como mencionado anteriormente, relaciona-se distinguibilidade dos materiais conferindo uma integrao sempre reconhecvel da marca de nosso tempo.

    J, nos projetos de 1999 e 2007, a forma de abordar as runas parece estar definida de modo que seu stato quo seja considerado; esses remanescentes so compreendidos de acordo com a definio do valor de antiguidade de Riegl em que pesa o carter evocativo e simblico do bem. Esse conceito est mais alinhado s asseres de Cesare Brandi para quem a conservao de remanescentes em estado de runa enuncia - se como um problema a ser pensado simultaneamente sob o ngulo da histria e da conservao: A legitimidade da conservao da runa est, pois, no juzo histrico que dela se faz, como testemunho mutilado, porm ainda reconhecvel, de uma obra e de um evento humano. (BRANDI, 2004, p. 67-68).

    Na abordagem em que se baseia a teoria brandiana e o restauro crtico a restaurao definida como um campo disciplinar que fundamenta qualquer ao sobre os bens de reconhecido interesse cultural: manuteno, conservao e, inclusive a restaurao preventiva (BRANDI, 2004, p. 101) que ainda mais imperativa, pois objetiva impedir as intervenes de extrema urgncia. Alm disso, Giovanni Carbonara compara a manuteno com a medicina preventiva (KHL, 2004) e Roberto Pane, na conferncia de introduo ao encontro que originaria a Carta de Veneza (1964), considera a manuteno como o meio constante para evitar intervenes mais contundentes26: Ao analisar o Stio Mirim, bem tombado nas trs esferas (federal, estadual e municipal) evidencia-se a falta de uma manuteno conservativa, j que alm da restaurao de 1967 e das obras de 1978 quase nada foi feito para a mnima conservao do bem que vem passando por um contnuo processo de degenerao ao longo das dcadas.

    H ainda outro aspecto crucial que o uso, pois delineia a relao que os usurios estabelecem com esses remanescentes arquitetnicos. H praticamente um consenso dentre os tericos da preservao de que um bem deva ser utilizado para ser preservado. Nas asseres de KHL

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    Manuteno ou reparos: aes cotidianas e peridicas que visam a sanar e reparar problemas que aparecem na edificao assim que surgem, como reparo de um condutor vertical, de fiao inadequada, substituio de telhas e de vidros quebrados, de balastres danificados etc., em que se opera, em geral por analogia, com formas e materiais iguais ou semelhantes aos originais; casos, pois, em que os problemas no se consolidam como uma ciso, no tempo, na obra como imagem figurada (caso houvesse uma ciso, esses mesmos problemas deveriam ser tratados como casos de restaurao); (KHL, 2009, p.74).

  • (2010) ao comentar a Carta de Veneza (1964) destaca que no prembulo desse documento h uma caracterizao em relao aos monumentos como portadores de mensagem espiritual do passado fazendo aluso questo simblica e memorial; h ainda outra designao importante que se refere aos monumentos como testemunho vivos. Verifica-se que aqui h, portanto, uma diferenciao conceitual decisiva em relao distino entre monumentos mortos ou vivos sugerida por Gustavo Giovannoni embasada na questo utilitria. Durante as discusses do Congresso que estabeleceu a Carta de Veneza, Roberto Pane se manifesta contra essas denominaes alegando que: [...] s se pode falar de monumentos vivos enquanto utilizveis, mas sabemos bem que muitas runas so mais vivas e utilizadas que muitos monumentos ntegros. (PANE apud MORI, 2006, p.121). E [...] um monumento, mesmo que no tenha uso para funes cotidianas (caso de algumas runas arqueolgicas), faz parte da vida das comunidades e da composio de um ambiente urbano, como local de visitao, por exemplo. (KHL, 2010, p.305).

    Desse modo, pode-se discutir em que medida a populao local interpreta e se apropria efetivamente das runas da Sede do Stio Mirim? No mbito da semantizao dos espaos, os processos de depredao e vandalismo podem ser entendidos pela falta de identificao simblica e cognitiva que alguns usurios desenvolveram com o bem; por outro lado, aes, discusses e peties comunitrias almejando alguma atividade naquela rea e da efetiva reinsero da Sede do Stio Mirim no cotidiano local um indicativo de que essas runas possuem algum tipo de valor intrnseco para aqueles que convivem com elas.

    CONSIDERAES FINAIS:

    O caso do Stio Mirim encerra a problemtica que recai no estudo de bens em runas, pois parte de um ponto nodal, entender: o que so runas arquitetnicas? E como intervir nesses conjuntos? A compreenso da definio das runas envolve alguns limiares fundamentais como: qual a diferena entre bens arquitetnicos danificados e bens arquitetnicos em runas? No que tange s intervenes: como aceitar as marcas da passagem do tempo? Como incorporar as runas: devem ser consideradas como um suporte documental que embase restauraes, ou seu stato quo pode ser incorporado? Que tipo de uso pode ter as runas arquitetnicas? A apropriao de seu valor de antiguidade e seu valor simblico no seria suficiente para estabelecer uma identidade?

    De um modo geral, a importncia de runas est embasada em dois aspectos: o documental e o simblico. Em relao ao aspecto documental, inegvel o valor do Stio Mirim, que num primeiro momento subsidiou importantes estudos sobre as casas rurais paulistas, e, posteriormente, quando no efetivo estado de arruinamento, tambm foi de grande valor para pesquisas arquitetnicas e prospeces arqueolgicas.

    Em relao ao aspecto simblico, runas tm um grande alcance evocativo, mas resta saber as runas da Sede do Stio Mirim evocam o qu? Um passado distante consumido pelas marcas do tempo ou um recente histrico de abandono? O que nos parece ficar mais patente e irremediavelmente evocado ao nos depararmos com esses macios de taipa a questo da negligncia, da incria, pois aps dcadas de propostas e discusses apresentadas, a situao continua em suspenso: quais sero as efetivas providncias em relao s runas da Sede do Stio Mirim?

    Assim, a partir da anlise desse caso, pretendeu-se apresentar algumas consideraes com o objetivo de contribuir para ampliar discusses que envolvam esse tipo de bem - runas arquitetnicas - procurando estabelecer e compreender o que so, e em funo desse entendimento estabelecer as melhores formas de intervir, de modo que todo seu potencial valor documental, histrico e simblico possa ser contemplado.

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