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SERVIÇO SOCIAL UTOPIA E REALIDADE: UMA VISÃO D A HISTÓRIA Maria Margarida Barbosa* A orientação profissional dos assistentes sociais tem sido estudadaa partir de vários crité- rios, entre os quais a autonomia profissional, os objetivos profissionais,o compromis- so com o público ou com a instituição, as referências políticas e ideológicas de grupos profissionais. Mais uma vez este tema é abordado. Contudo, sua abordagem aqui é notória e singular. Trata-se de um estudo localizado, do qual Belo Horizonte é o cenário, e que tem por objetivo compreender a crise de identidade que o grupo profissional mineiro viveu na segunda metade da década de 70. Para isso, procurou-se fazer uma incursão na história da formação profissional desen- volvida na Escola de Belo Horizonte e nos locais onde os profissionais executavam o seu tra- balho.' Ao longo das duas últimas décadas, a literaturada produção teórica dos assistentes so- ciais faz apreender a existência de um distanciamento entre a teoria e a prática do serviço social, chegando mesmo a apontar para " o divórcio entre teoria e prática" (Wisshaupt, 1985, p. 45). E era essa mesma afirmação que começava a circular na Escola de Belo Horizonte entre os anos de 1969 e 1972, período em que a autora vivia ali o seu processo de formação. Porém, essa é uma questão que tem sua razão de ser. O movimento de reconceituação iniciado no contexto da sociedade chilena do final dos anos 60 inaugurava uma nova era para o Serviço Social. A busca de alternativas para uma ação que atendesse aos problemas específicos das sociedades latino-americanaslevava os as- sistentes sociais a uma revisão de seus conceitos e de sua própria forma de interpretar a rea- lidade. Essa busca gerava uma tomada de consciência do papel profissional exercido tradicio- nalmente, através de suas "metas de assistênciae promoção, tipicamenteintegradas ao sistema dominante". (Santos, 1982, p. 109) * Escola de Serviço Social da PUC-Minas. A Escola de Serviço Social da Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais - PUC*Minas é a única Escola de Serviço Social existente em Belo Horizonte e na região da Grande BH. Desse modo, o termo utilizado para designar esse esta- belecimento de ensino será sempre o mesmo: aEscola de Belo Horizonte, ou a Escola de Serviço Smhl de Belo Horizonte. Cad. sem. soe., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 25 - 71, out. 1997

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SERVIÇO SOCIAL UTOPIA E REALIDADE: UMA VISÃO DA HISTÓRIA

Maria Margarida Barbosa*

A orientação profissional dos assistentes sociais tem sido estudada a partir de vários crité- rios, entre os quais a autonomia profissional, os objetivos profissionais, o compromis- so com o público ou com a instituição, as referências políticas e ideológicas de grupos

profissionais. Mais uma vez este tema é abordado. Contudo, sua abordagem aqui é notória e singular.

Trata-se de um estudo localizado, do qual Belo Horizonte é o cenário, e que tem por objetivo compreender a crise de identidade que o grupo profissional mineiro viveu na segunda metade da década de 70.

Para isso, procurou-se fazer uma incursão na história da formação profissional desen- volvida na Escola de Belo Horizonte e nos locais onde os profissionais executavam o seu tra- balho.'

Ao longo das duas últimas décadas, a literatura da produção teórica dos assistentes so- ciais faz apreender a existência de um distanciamento entre a teoria e a prática do serviço social, chegando mesmo a apontar para "o divórcio entre teoria e prática" (Wisshaupt, 1985, p. 45). E era essa mesma afirmação que começava a circular na Escola de Belo Horizonte entre os anos de 1969 e 1972, período em que a autora vivia ali o seu processo de formação. Porém, essa é uma questão que tem sua razão de ser.

O movimento de reconceituação iniciado no contexto da sociedade chilena do final dos anos 60 inaugurava uma nova era para o Serviço Social. A busca de alternativas para uma ação que atendesse aos problemas específicos das sociedades latino-americanas levava os as- sistentes sociais a uma revisão de seus conceitos e de sua própria forma de interpretar a rea- lidade. Essa busca gerava uma tomada de consciência do papel profissional exercido tradicio- nalmente, através de suas "metas de assistência e promoção, tipicamente integradas ao sistema dominante". (Santos, 1982, p. 109)

* Escola de Serviço Social da PUC-Minas. A Escola de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC*Minas é a única Escola de Serviço Social existente em Belo Horizonte e na região da Grande BH. Desse modo, o termo utilizado para designar esse esta- belecimento de ensino será sempre o mesmo: aEscola de Belo Horizonte, ou a Escola de Serviço Smhl de Belo Horizonte.

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Tal reconhecimento, que mudava a própria visão que os profissionais tinham da so- ciedade, abria, agora, a perspectiva de novos caminhos para a profissão. Desse modo, o caráter assistencial, assim como o compromisso ideológico com as classes dominantes, questões ine- rentes à clássica prática profissional, passavam a ser condenados.

O questionamento da tradicional prática social e a formação de uma nova visão de mundo e de sociedade levaram a uma redefinição da profissão. O papel de educador político, os objetivos da ação, definidos por conscientização, organização e mobilização das classes po- pulares, conjugados ao novo conjunto teórico que fundamentava a formação e a ação dos novos assistentes sociais eram alguns dos componentes básicos que sustentavam o compromisso ideológico então assumido pela profissão. Naquele momento, partindo do princípio de que as instituições são aparelhos reprodutores do sistema, e como tal cristalizam os interesses das clas- ses dominantes, as comunidades passavam a ser o campo preferencial de exercício da prática. Era como se as comunidades estivessem resguardadas de qualquer influência ideológica. (San- tos, 1982, p. 107-1 13)

Pautada pela nova concepção de profissão, e fundamentada nesse conjunto teórico- prático, a formação de profissionais comprometidos com uma prática político-ideológica que levasse à transformação da sociedade passava a ser a espinha dorsal dos cursos de Serviço So- cial. Mas essa formação, apenas política, não encontrava a correspondente demanda da socie- dade. Pois a prática profissional continuava a ser exercida no interior das instituições.

Nesse contexto, os novos assistentes sociais sentiam-se, no mínimo, traídos. Convic- tos de seus objetivos profissionais, de um compromisso com as classes populares, e imbuídos do princípio de que as instituições são aparelhos reprodutores da ideologia dominante, não con- seguiam, fatalmente, reconhecer a sua própria prática. Daí os questionamentos referentes a uma dicotomia, ou divórcio, entre teoria e prática, persistentemente encontrado no discurso pro- fissional de uma determinada época.

Ora, na Escola de Serviço Social de Belo Horizonte, esse era o ponto central dos ques- tionamentos e debates entre alunos e profissionais de campo na segunda metade dos anos 70. E sua razão de ser estava, naturalmente, no modelo de formação profissional ali iniciado a partir de 1970, com a inserção da Escola no Movimento de Reconceituação latino-americano que en- tão começava.

Para a Escola de Belo Horizonte, tinha início naquele momento uma fase de intensa busca. Os documentos produzidos pelo grupo chileno que encabeçava o movimento eram sis- tematicamente estudados, discutidos e tidos como novas fontes teóricas. Nessa busca constan- te, o corpo de professores decidiu pela avaliação do processo de formação da Escola até então. E, a partir dessa avaliação, elaborou-se uma estrutura curricular que, implantada em 197 1, mu- dou radicalmente todo o processo de ensino. Nessa reorganização estava, também, a semente que iria produzir o Método BH. E o contexto da Escola se modificava na mesma medida em que avançava a implantação da nova estrutura curricular, e o Método BH era implantado em campo experimental.

A estrutura curricular que passava a vigorar então, fundamentada nos princípios e di- retrizes do movimento de reconceituação, conduzia o ensino para a formação de profissionais comprometidos com uma única opção político-ideológica: aquela que levaria os novos assis- tentes sociais a assumirem um compromisso com o processo de educação política das classes populares e a transformação da sociedade.

Mas, se essa era aprincipal diretriz da formação profissional, o contexto da práticaper- manecia o mesmo. O mundo institucional continuava solicitando assistentes sociais que exe-

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cutasse, ali, a sua tradicional prática: o caso, o grupo, acomunidade, num processo de adaptação e ajustamento dos indivíduos à sociedade. Permanecia, portanto, aexistência de um compromis- so com a ideologia das classes dominantes. Esse quadro torna-se ainda mais complexo quando se observa que durante os anos 70 a sociedade brasileira vivia uma de suas fases mais difíceis, sob as diretrizes do regime militar que então dominava o País.

Situação bastante complexa, também, vivia a Escola de Belo Horizonte naquele perío- do. O contexto da formação profissional, de um lado, e, de outro, a realidade da prática profis- sional, inseridos na conjuntura da sociedade brasileira, acabaram por gerar uma crise que, já no final de 1975, põe termo ao modelo de formação que vinha se desenvolvendo. Daí a nova re- estruturação de todo o processo de ensino a partir de 1976.

Diante da complexidade desse contexto, e sabendo da trajetória histórica vivida pelo coletivo da Escola na década de 70, é que se pretende, neste estudo, buscar as questões mani- festas e subjacentes que permitam a compreensão e a explicação dos fatos. Entende-se que só assim serão encontradas as possíveis respostas para os momentos de transformação e crise que viveram essa profissão e os seus profissionais em Belo Horizonte.

Para dar conta dessa tarefa é que se fez a opção pelo estudo de casos como método de pesquisa a ser utilizado. Sendo assim, o eixo central deste estudo é o processo de formação pro- fissional da Escola de Serviço Social de Belo Horizonte, num período que vai de 1970 a 1975.

Sabe-se que nenhum fato ocorre isolado de um determinado contexto. O que se acre- dita é que todo fato é sempre o resultado de umconjunto de forças influentes e geradoras de todo o movimento da sociedade. Exatamente por isso, é necessário buscar as forças predominantes na conjuntura do País e em Minas Gerais de modo particular. Entende-se que só assim haverá 27 como explicar as situações de crise e as transformações que viveu a profissão em Belo Hori- zonte.

Se Belo Horizonte forma o cenário desta pesquisa, sabe-se que esta cidade é o centro administrativo e político do Estado mineiro. Sabe-se, também, que Minas, e Belo Horizonte de modo especial, constitui o centro dos interesses e das necessidades do desenvolvimento e da acumulação da riqueza do País em alguns momentos específicos. Para isso, entretanto, é neces- sário retornar, mesmo que superficialmente, ao início dos anos 30.

Estudos já realizados mostram que a década de 30 marca o primeiro grande surto in- dustrializante do País. O acelerado processo de desenvolvimento que marca a passagem de uma sociedade agrícola para uma sociedade urbano-industrial provoca uma série de mudanças em todos os segmentos da sociedade e a lenta organização da burguesia industrial, enquanto classe dominante, deixa indefinido o pólo hegemônico. Ao mesmo tempo, o acelerado crescimento industrial provoca igual processo de urbanização e, conseqüentemente, o reaparecimento dos movimentos reivindicatórios da classe operária.

Nesse contexto era urgente a recomposição dos "padrões de dominação da sociedade'' (Ianni, 1975, p. 1 1). E, entre as estratégias políticas elaboradas para dar conta dessa tarefa, es- tava o estabelecimento de alianças com as grandes organizações que tivessem condição de con- trolar os movimentos populares. Entre estas, estava a Igreja, que, necessitando reaver a influên- cia anteriormente perdida sobre a sociedade, vinha reorganizando seu trabalho de ação social.

No contexto da sociedade industrial que nascia, crescia substancialmente o número de entidades católicas destinadas a responder às necessidades sociais emergentes. Desse modo, a Igreja passou a reivindicar mais enfaticamente as prerrogativas então perdidas. A conjugação desses fatores proporcionou a reaproximação entre Igrejae Estado, fazendo surgir a correlação de forças necessárias à consolidação da nova sociedade.

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Dessa aliança vão surgindo as primeiras escolas de Serviço Social no País, a partir de 1936. E, entre elas, a de Belo Horizonte. Criadaem 1946 sob os auspícios da Igreja, e fundamen- tada na sua Doutrina Social, a Escola de Belo Horizonte surge, também, num momento espe- cífico da conjuntura do País e, de modo particular, do Estado de Minas Gerais.

O surto industrial desenvolvimentista iniciado em 1930 chegou ao final da década ne- cessitando consolidar o poder da nova classe dominante: a burguesia industrial. Entretanto, era necessário sufocar os movimentos populares que cresciam paralelamente. Esses fatos levaram os grupos dominantes a "armarem o Estado de poderes excepcionais" (Carone, 1977, p. 253). Assim, apoiado pelas Forças Armadas, Governadores de Estado e Igreja, um golpe de Estado em 1937 faz iniciar uma nova fase da história do País: o Estado Novo.

O novo sistema político que então se instala, fiel ao ideário nacional desenvolvimentista, aciona seus mecanismos de repressão. Desse modo, a ditadura civil recém-iniciada se consolida no poder e põe fim aos movimentos populares, levando à clandestinidade os partidos de opo- sição.

Sabe-se, porém, que a Segunda Grande Guerra, entre 1939 e 1945, deixa suamarca em todos os países do mundo. O Brasil, naturalmente, não está isento dessa influência. E sendo as- sim, a partir de 1942, quando a nação norte-americana se declara em guerra contra as Nações do Eixo, começam a surgir no Brasil os primeiros movimentos populares do Estado Novo. A União Nacional dos Estudantes - UNE inicia um movimento de protesto que vai, muito lenta- mente, ganhando as ruas. Sendo o único movimento "tolerado pelo Estado Novo" (Carone, 1977, p. 293), a UNE começa a receber sob as suas asas as forças populares e os grupos de opo- 28 sição na clandestinidade. Desse modo, o movimento cresce, ganhando uma força cada vez maior e se tornando o grande representante dos anseios da nação.

Ao mesmo tempo em que cresce o movimento popular, algumas decisões políticas to- madas pelo ditador acabam por provocar a divisão e a deterioração das forças de sustentação do poder. O quadro, que começava a se modificar internamente, começava, também, a sofrer pressões internacionais. Assim, na mesma medida em que a situação interna do País se mo- dificava, ia também crescendo a pressão norte-americana sobre o governo brasileiro, exigindo a redemocratização do País e a sua definição frente ao conflito mundial, em favor das Nações Aliadas.

É, portanto, enfrentando os conflitos internos e as pressões internacionais que o gover- no brasileiro chega em 1945, tendo adotado algumas medidas de abertura política, e aceitando o reconhecimento diplomático da União Soviética. Além disso, foram marcadas as eleições pre- sidenciais para dezembro desse mesmo ano. Porém, as questões políticas e sociais são somadas à situação econômica do País naquele período.

O processo de industrialização iniciado em 1930 cresce aceleradamente no decorrer da década. Apesar disso, ele não é acompanhado danecessária diversificação setorial e de igual mudança na estrutura de produção. O setor econômico, que conserva as tradicionais formas de produção, chega, assim, ao período da guerra com sérias dificuldades. E, durante a guerra, en- contra dificuldades ainda maiores. Porém, contraditoriamente, é o próprio contexto de guerra que vai exigir algumas modificações no quadro econômico do País.

A necessidade do minério de ferro para a sustentação do conflito bélico e as pressões internacionais levam o governo brasileiro a acelerar o seu plano siderúrgico e a produção do fer- ro e do aço. Entretanto, a implantação da siderurgia necessitava de um capital complementar. Por isso, em 194 1 é assinado um contrato com o governo norte-americano, que dá origem a uma série de acordos então celebrados entre brasileiros, americanos e ingleses. Através desses acor-

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dos, e com a declaração do estado de guerra do Brasil contra as Nações do Eixo em 1942, o go- verno "toma conta das jazidas (de ferro) alemãs, e o controle das melhores zonas (de siderur- gia) retorna ao Brasil". (Carone, 1977, p. 297)

Ora, toda essa riqueza mineral estava situada na região central do Estado de Minas Ge- rais e, desse modo, "importantes projetos na área de mineração e metalurgia foram definidos para Minas no início dos anos 1940" (Diniz, 1981, p. 55). Em decorrência da implantação das primeiras indústrias de extração mineral começaram a surgir, nessa mesma região, novas em- presas de produção do ferro e do aço. Os programas governamentais destinados a Minas Gerais, motivados pelos interesses internacionais de sustentação da guerra, vão não só beneficiar o Es- tado mas, também, dar um novo alento aos mineiros.

Considerando o atraso em que se encontrava a economia do Estado, os mineiros vi- nham, há anos, elaborando um plano de desenvolvimento industrial que pudesse tirar sua eco- nomia da estagnação. A intenção era fazer de Minas um novo pólo industrial no País, tendo Belo Horizonte como centro econômico. Parte desse plano consistia em construir um centro indus- trial equipado, com a infra-estrutura necessária para a criação de indústrias. E as primeiras ini- ciativas para a construção desse centro foram tomadas em 1941, com o lançamento da Cidade Industrial de Contagem.

A criação de empresas de mineração e metalurgiana região central do Estado e o início da construção da Cidade Industrial geram uma certa movimentação da população mineira. E Belo Horizonte é, naturalmente, o grande centro de atração.

Alguns estudos realizados sobre esse período mostram a preocupação dos poderes pú- blicos em desfavelar determinadas áreas urbanas, transferindo favelas inteiras para outros lo- 29 cais. Ao mesmo tempo, novas favelas começam a surgir, em decorrência da migração rural mo- tivada pelas possibilidades de emprego que se abriam.

Era esse o contexto da sociedade brasileira e, de modo particular, o que ocorria em Be- lo Horizonte na fase que precedeu a criação da Escola de Serviço Social em 1946. A partir daí, a Escola segue pautada pela Doutrina Social da Igreja e pela literatura específica produzida na sociedade norte-americana.

Se a Escola de Belo Horizonte se direciona pelos mesmos fundamentos da profissão nas demais escolas do País, a chegada dos anos 60 traz consigo um novo período para a socie- dade brasileira. E a fase que aí se inaugura é fundamental para entender toda a situação vivida pela Escola e pelos profissionais de Belo Horizonte na primeira metade da década posterior.

O contexto de crise política e econôrnica que viveu a sociedade entre 196 1 e 1964 mar- ca o momento de redefinição do modelo de produção e acumulação da riqueza do País. O pe- ríodo nacional desenvolvimentista esgotara-se ao longo da década anterior e inaugurava uma fase pautada pelas diretrizes financeiras e tecnológicas ditadas pelo grande capital estrangeiro. E o Estado, o grande sustentador da burguesia nacional, começava a agir em benefício dos gru- pos transnacionais. Ameaçada pelo distanciamento do Estado, a burguesia nacional começara a se organizar, criando suas próprias formas de proteção e de resistência às mudanças políticas e econômicas.

Para governar um país que exigia mudanças substanciais, o presidente que assume em 196 1 - João Goulart - levava consigo um plano de governo respaldado pelas diretrizes da po- lítica populista que predominava no País desde os anos 30. Uma vez instalado o novo governo, a intenção era conjugar o seu plano de governo com a criação das condições exigidas pela nova fase de expansão. Porém, adificuldade de conjugar planos e interesses antagônicos não só torna inviável a política adotada como, também, faz acelerar o processo inflacionário iniciado no go-

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verno anterior. Nesse contexto, a grande massa trabalhadora formada por camponeses e operá- rios começa a se organizar em defesa de seus interesses e vai ganhando "força política por sua organização, conscientização e atividade". (Ianni, 198 1, p. 194)

O quadro fica ainda mais complicado quando se instala a crise econômica. E, com ela, a crise do Estado burguês. Assim, o poder burguês se deteriora na mesma proporção em que cresce o poder político dos operários e camponeses. Nesse contexto, se organiza então "o novo bloco no poder" (Ianni, 198 1, p. 195), na medida em se que unificam a burguesia nacional e es- trangeira, contando com o apoio e a participação "de setores da classe média, da Igreja, latifun- diários, militares, policiais e o imperialismo". (Ianni, 1981, p. 195)

Desse modo, se organiza o bloco dominante que, sob o comando das forças e das pres- sões do capital internacional, articula cuidadosamente o golpe de Estado de março de 1964. O golpe, que se efetivou pela destituição do Presidente da República "eleito constitucionalmente e governando constitucional mente^' (Ianni, 198 1, p. 146), passa aos militares o poder de dirigir a Nação.

O poder militar que se instalou naquele momento chegou com o compromisso de exe- cutar "um programa de reformas destinadas aremover os obstáculos àexpansão do capitalismo no País e a viabilizar a plena configuração do modelo de desenvolvimento esboçado na segunda metade da década passada". (Cruz et al., 1983, p. 28)

Como forma de assegurar o cumprimento da sua missão, o comando militar que aca- bava de assumir o poder faz divulgar o ato institucional de 9 de abril de 1964. Com apublicação desse ato, fica instalada a ditadura militar e tem início um período de prisão, suspensão de di- reitos e exílio de um grande número de intelectuais e políticos, além das lideranças estudantis, operárias, camponesas e sindicais. A partir daí, o País passa a ser governado por decretos, emen- das, leis complementares e novos atos institucionais.

Em 1967, as forças no poder necessitavam de uma reorganização. A movimentação necessária à recomposição do pólo dominante trouxe como conseqüência o aparecimento de grupos de oposição dentro do próprio bloco no poder e criou as condições necessárias para o aparecimento do movimento estudantil logo no início de 1968. Esse fato, conjugado comvários outros já existentes, fez eclodir nas principais cidades do País os primeiros movimentos ope- rários de grande vulto do período militar. Para conter a fase de insatisfação e protesto que amea- çava se expandir pelo País, o governo militar editou em dezembro de 1968 o Ato Institucional n. 5.

O ato institucional então promulgado conferia poderes excepcionais ao Presidente da República, que passava a ter o controle absoluto do Estado. É, na verdade, "uma espécie de se- gundo golpe de Estado, ou um golpe dentro do golpe" (Ianni, 1983, p. 158). Com esse endure- cimento do regime, o Governo põe em recesso o Congresso Nacional e faz abater sobre o País um longo período de repressão. Nesse mesmo período, cresce rapidamente o número de atos institucionais e decretos-lei. Entre estes, o de janeiro de 1969 estava voltado especialmente para os estabelecimentos de ensino: era o 477.

A ditadura militar segue, assim, controlando todo e qualquer surgimento da sociedade, ao mesmo tempo em que difundia a ideologia do desenvolvimento e do progresso do País. Nesse contexto de autoritarismo e arbitrariedade, de repressão e policiamento ideológico, a sociedade brasileira faz a sua passagem para os anos 70 e prossegue rumo à década posterior.

Se essas são as grandes questões que marcam a conjuntura do País nos anos 60, sabe- mos que dois eventos importantes para o Serviço Social foram realizados nesse período: o Se- minário latino-americano de Porto Alegre, em 1965, e o Seminário de Araxá, em 1967.

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O primeiro reuniu assistentes sociais dos países do cone sul interessados em buscar al- ternativas próprias para a profissão no continente e o segundo reuniu assistentes sociais brasi- leiros que elaboravam as principais diretrizes para a profissão no País. Ambos, porém, realiza- dos no Brasil. E, se nesse período as sociedades latino-americanas eram sustentadas pelo ideá- rio desenvolvimentista, a sociedade brasileira vivia um momento muito próprio desse contexto. Essa conjuntura exerce, evidentemente, influência decisiva sobre os eventos e os documentos que ali tiveram sua origem.

Desses eventos, sabe-se que o Seminário de Araxá tem um significado especial para a profissão. O documento ali elaborado, publicado e difundido por toda América Latina, repre- senta, segundo alguns autores, um importante momento para o grupo iniciador do movimento que posteriormente recebeu o nome de Reconceituação. Esse mesmo documento (de Araxá) passa, então, a ser adotado pelas escolas de Serviço Social brasileiras. E, entre elas, naturalmen- te, está a Escola de Belo Horizonte, onde o referido documento passava a ser fundamental para o ensino.

É, portanto, sob as diretrizes do documento de Araxá, fundamentado pelo ideário de- senvolvimentista da ditadura militar que dominava a sociedade brasileira naquele momento, que a Escola de Belo Horizonte assume, já nos anos 70 e 7 1, as definições teórico-práticas que começavam a ser difundidas pelo Movimento de Reconceituação, assim como vinha aconte- cendo na sociedade chilena.

Inicia-se então um período em que a Escola mineira vive uma situação peculiar. Sob o rígido controle de uma ditadura militar, pautada pelas diretrizes desenvolvimentistas ditadas pelo capital internacional, a Escola assume o referencial de uma formação teórico-prática, ela- borado no contexto da democracia cristã que dominava a sociedade chilena naquele momento. A situação, sem dúvida, é bastante complexa por si só. Porém, fica ainda mais complicada, se procuramos saber o que acontecia em Belo Horizonte durante esse mesmo período.

O ciclo de desenvolvimento industrial inaugurado com o golpe de 64 chega aos anos 70 exigindo um redirecionamento. Naquele momento, a ampliação de mercado e a incorpora- ção de novos recursos naturais são fatores imprescindíveis para o capital nacional. No nível in- ternacional, o movimento de capitais e o momento que vivia o processo de acumulação da ri- queza exigiam mudanças substanciais no processo de expansão e apropriação.

A conjugação desses fatores nacionais e internacionais apontava, naquele momento, para uma "certa tendência à alteração da divisão internacional do trabalho em relação à indús- tria, através da diversificação da estrutura industrial brasileira, com a expansão da indústria de bens de capital e química" (Diniz, 198 1, p. 183). Para atender às exigências dessa fase, era ne- cessário promover a descentralização industrial do País. Mas era imprescindível que isso ocor- resse na mesma macrorregião nacional que já possuía a concentração do capital: o centro-sul. Nesse momento, o Estado de Minas Gerais aparece, no cenário nacional, como o local que ofe- recia as melhores condições.

Finalmente, o sonho que os mineiros acalentavam há anos começava agora a concre- tizar-se. A política de incentivos fiscais e a construção de uma completa infra-estrutura indus- trial em Belo Horizonte, na região central do Estado, ofereciam todas as condições necessárias para a implementação da nova fase industrializante do País. Desse modo, na primeira metade dos anos 70, grande número de projetos industriais são definidos para Minas Gerais, sendo a maioria instalada na sua região central. A partir daí, o Estado de Minas e, de modo especial, sua região central começam a se transformar "no verdadeiro paraíso das multinacionais". (Diniz, 1981, p. 208)

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A primeira vista, parece que o desenvolvimento econômico voltado para Minas Gerais naquele momento nada tem a ver com o Serviço Social e a formação dos assistentes sociais. Po- rém, o pressuposto é que a conjuntura do País, determinada pela união das forças necessárias ao redirecionamento do capital nacional e internacional, associada aos interesses políticos e econômicos que fariam de Belo Horizonte o novo centro industrial do País, forma um conjunto de forças opostas ao tipo de formação profissional oferecida pela Escola naquele momento. Isso vai, naturalmente, levar ao contexto de crise vivido em 1975.

Partindo do pressuposto da existência de um antagonismo entre os objetivos da ação apreendidos durante o processo de formação e os objetivos da ação implementada no interior das instituições durante aquele período, este trabalho esteve voltado, inicialmente, para o estu- do dos documentos e programas de ensino encontrados nos arquivos da Escola. A partir daí, fi- zeram-se o levantamento e o estudo da bibliografia de Serviço Social que fundamentava aestru- tura curricular que dava sustentação ao processo de formação. Os dados empíricos e a recons- trução dos fatos históricos só foram possíveis a partir das entrevistas realizadas com profissio- nais de campo, alunos, supervisores e diretores que viveram os vários momentos de construção, crise e reconstrução da Escola naquele período.

Sendo este um estudo histórico, sua estrutura geral foi definida a partir dos momentos de transformação que viveu a Escola, e que iam tomando forma à medida que o trabalho avan- çava e os movimentos, as influências e pressões de cada fase iam ficando claros. Desse modo, sua divisão e subdivisão comportam as diferentes fases, influências e movimentos que viveu,

32 então, o coletivo da Escola. A medida que o estudo avançava, percebia-se a presença constante de uma grande personagem - uma personalidade que, mesmo ausente, estava, também, presen- te: o professor Paulo Freire.

O estudo da literatura específica de Serviço Social, referente ao período do movimento de reconceituação, mostrava que os textos vinham sempre impregnados pelas idéias de Paulo Freire publicadas até então. Se alguns desses textos estavamlimitados acitações e à apropriação de conceitos definidos pelo autor, outros traziam o estudo detalhado do seu método de educação e conscientização, apresentando as formas e as possibilidades de sua aplicação na prática dos assistentes sociais.

A questão observada na literatura específica dessa fase foi reforçada com o estudo dos programas de ensino da primeira metade dos anos 70. Todas as disciplinas de Serviço Social, teóricas e práticas, tinham nos textos de Freire o principal suporte bibliográfico.

Ora, se tudo apontava para uma grande influência desse educador brasileiro sobre o Serviço Social naquele momento, era necessário buscar as possíveis relações que possibilita- ram essa influência. E, para isso, além dos textos publicados nesse período, foi também utili- zada uma entrevista exclusiva, onde o próprio Paulo Freire fala dos laços que o prendiam às as- sistentes sociais brasileiras e chilenas naquele momento, além da mútua influência exercidaen- tre o educador e aqueles profissionais.

É exatamente o que se apresenta no primeiro capítulo: o Movimento de Reconceitua@io do Serviço Social na América Latina e a influência de Paulo Freire. Este estudo nos permitiu entender o modelo de formação profissional implantado a partir de 1970 - eixo do debate de- senvolvido no segundo capítulo - que culminou com o momento em 1975. A crise que exigiu um novo redirecionamento da formação dos assistentes sociais a partir de 1976, tema central do terceiro capítulo que compõe este estudo.

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O MOVIMENTO DE RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

As origens Os anos 60 marcaram para a Escola de Belo Horizonte um período de mudanças na for-

mação que oferecia aos assistentes sociais. A segunda metade dessa mesma década é marcada pelo início do Movimento de Reconceituação do Serviço Social, que vai definir novas diretrizes para toda uma categoria de profissionais na América Latina.

A conjuntura das sociedades latino-americanas e a relação desses países no contexto da política internacional levamos assistentes sociais a iniciarem um processo de revisão de seus objetivos profissionais. Era um processo que iria desencadear novas perspectivas de trabalho e criar formas de pensar para os futuros profissionais.

O Movimento de Reconceituação, que tem suas primeiras idéias gestadas e difundidas pelos assistentes sociais chilenos, brasileiros, argentinos e uruguaios a partir de 1965, vai, nos anos posteriores, expandir-se pelos demais países do continente. Porém, é na conjuntura po- lítica da sociedade chilena, no período que vai de 1968 a 1972, que a Reconceituação aparece de forma mais enfática, apontando novas diretrizes para o trabalho dos Assistentes Sociais na América Latina.

Para melhor situar historicamente o Movimento de Reconceituação, é necessário bus- car no ano de 1965 o Primeiro Seminário Latino-Americano de Serviço Social, realizado na ci- dade brasileira de Porto Alegre.

Com o tema "Serviço Social frente às mudanças sociais na América Latina", o Semi- nário tinha como eixo central o estudo dos aspectos referentes àrealidade política e social vivida 3 3 pelos países do continente. A conjuntura política e o precário desenvolvimento econômico des- sas sociedades se configuravam como as principais causas do seu estado de pobreza, bem como dos problemas vividos por essa população. A força de programas sociais para o desenvol- vimento do terceiro mundo era a solução encontrada para tirar da miséria a grande massa dapo- pulação do continente. E os assistentes sociais eram conclarnados a participarem ativamente do processo de desenvolvimento dessas sociedades. Para isso, entretanto, é necessário que o Ser- viço Social encontre seu próprio caminho, procurando desvencilhar-se da influência estrangei- ra - européia e norte-americana - para encontrar as soluções próprias para a realidade conti- nental. Entre as conclusões do evento, uma das principais propostas para os profissionais era a de "atuar sobre as causas dos problemas sociais". (Ander-Egg, 1975, p. 406)

A partir de Porto Alegre, foram realizados novos seminários num total de seis eventos até 1972, sempre nos países do sul do continente: Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia. A preocupação básica era sempre a mesma: a busca de um Serviço Social próprio para os países da América Latina. Os profissionais então envolvidos começavam um processo de busca dentro da realidade específica de seu próprio país. Era a tentativa de encontrar alternativas que pu- dessem atender à necessidade de uma única proposta de ação para o Serviço Social no con- tinente. E foi como parte do compromisso então assumido que os profissionais brasileiros fize- ram realizar o Seminário de Araxá.

O encontro realizado em março de 1967, na cidade mineira de Araxá, estava centra- lizado no empenho dos profissionais brasileiros em formular uma "síntese dos componentes universais, dos elementos de especificidade (do Serviço Social) ao contexto econômico-social da realidade brasileira". (Documento de Araxá, 1967, p. 9)

O relatório contendo as conclusões do Seminário de Araxá, publicado e divulgado co- mo Documento de Araxá, teve uma significação especial dentro do Movimento de Reconcei-

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tuação, o que ocorre a partir do instante mesmo em que era redigido e publicado. Segundo al- guns autores, é esse documento que marca o momento preciso da subdivisão das idéias iniciais do Movimento de Reconceituação e dá origem a "um salto essencialmente qualitativo no que diz respeito às idéias desenvolvimentistas~' (Ander-Egg, 1975, p. 270) que até então serviam de suporte para a ação dos assistentes sociais.

Entre os seminários realizados no período que vai de 1965 a 1972 nos países do sul do continente, é importante ressaltar o IV Seminário, realizado em 1969, na cidade de Concep- ción, no Chile. Tal seminário, realizado no contexto de uma sociedade que vivia sob as diretri- zes políticas de um governo democrata-cristão, abordava quatro grandes temas com seus res- pectivos sub-temas. Esses grandes temas centrais - alienação e práxis do Serviço Social; novos instrumentos do Serviço Social; novas idéias para o marco conceitual do Serviço Social, e Ser- viço Social em perspectiva- deram origem aos assuntos abordados nas conferências realizadas no evento.

Dessas conferências, têm grande significado aquelas que foram proferidas dentro do terceiro grande tema do Seminário: novas idéias para o marco de referência conceitual do Ser- viço Social. Os assuntos tratados - "o conceito dè cultura da pobreza e o Serviço Social, a teo- logia pós-conciliar e o Serviço Social, marxismo e Serviço Social" (Ander-Egg, 1975, p. 41 1) -eram apresentados por assistentes sociais chilenos. O Seminário, que conta com um número significativo de profissionais e estudantes chilenos na exposição de seu temário, tem no encer- ramento a participação do argentino Ander-Egg, que fala sobre a Revolução Latino-Americana e o Serviço Social.

Era o encontro que inaugurava uma nova fase para o Movimento de Reconceituação. Os questionamentos e as idéias elaboradas pelos assistentes sociais chilenos refletiam o con- texto político que vivia aquela sociedade no final dos anos 60, quando a conjuntura do País ofe- recia aos profissionais condições provocadoras de um novo tipo de prática social. A necessida- de de contribuir, dentro das circunstâncias vividas pela nação, levada os assistentes sociais à elaboração de novos conceitos para o Serviço Social. Começava ali uma nova fase do Movi- mento, pois as diretrizes e propostas apresentadas naquele evento ganharam as terras latino- americanas e difundiram o ideário da "Reconceituação", encarregando-se de formar uma nova mentalidade entre os assistentes sociais do continente.

Ainda na realização do Seminário Chileno, um dos assuntos merece atenção especial. É o da conferência realizada pelo professor chileno Sérgio Villegas, e que tinha por título: "O método de conscientização de Paulo Freire". O assunto, apresentado dentro de um dos temas básicos do Seminário, "Novos instrumentos do Serviço Social" parece ser o início da difusão do pensamento e do método de conscientização de Paulo Freire, que "naquele momento causa- va um impacto profundo em todo o Serviço Social chileno e de outros países7'. (Ander-Egg, 197.5, p. 412)

É a partir dali que os assistentes sociais latino-americanos adotam o ideário de Paulo Freire como um dos pontos fundamentais de trabalho para o Serviço Social no continente. Diante dessas afirmações, entretanto, resta saber se Paulo Freire tem realmente influência sobre o Movimento de Reconceituação. Se essa influência é real, como ocorreu? Que relação existe entre a proposta da Reconceituação e as idéias de Paulo Freire? É o que se pretende ver em se- guida.

Paulo Freire: uma influência Para melhor situar historicamente as relações existentes entre Paulo Freire e o Movi-

mento de Reconceituação, é necessário resgatar, pelo menos em parte, a trajetória desse edu-

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cador brasileiro, situando-o em momentos específicos da conjuntura do país. O estudo desse item está fundamentado na literatura publicada pelo próprio autor e,

também, nos artigos e documentos divulgados pelas revistas de Serviço Social no período ini- cial do Movimento. Conta, ainda, com um trabalho elaborado sobre o assunto e uma entrevista com Paulo Freire.2

Nos últimos anos da década de 40, por volta de 1947, Paulo Freire assumia um trabalho na área de educação junto ao Serviço Social da Indústria- SESI, na cidade brasileira do Recife. Naquela organização, através do conhecimento dos assistentes sociais que ali atuavam, Paulo Freire não só era apresentado, mas começava a participar da ação e do conhecimento profis- sional dos assistentes sociais.

Sempre perfilando o SESI, Paulo Freire estabelece um estreito contato com os assis- tentes sociais, não só do Recife como também do centro-sul do País. Nessa trajetória pelo terri- tório brasileiro durante os anos 50 e início de 60, tendo sempre o SESI como local de trabalho, é que Paulo Freire afirma ter encontrado no seu "processo de formação momentos informais da formação que têm a presença muito grande de assistentes sociais". (Freire & Karsch, 1983)

Ainda no Brasil, antes de aparecer como educador, antes mesmo de cumprir sua tra- jetória fora do País, existia já uma estreita ligação entre Paulo Freire e os assistentes sociais. Tal ligação trazia como conseqüência uma nova concepção de trabalho, o que influenciava as dire- trizes do programa que vinha sendo desenvolvido no SESI. Além disso, essa influência deixava marcas em todo o grupo de profissionais envolvido, na medida em que havia uma concordância entre o pensamento do educador e o das assistentes sociais da instituição naquele momento. Se- guindo seu próprio depoimento, a orientação que conseguiu, então, "finalmente daí ao SESI em Pernambuco contou com o apoio desse grupo todo de assistentes sociais, o que significa que havia uma certa coerência e uma certa concordância entre elas e mim". (Freire & Karsch, 1983)

A conjuntura da sociedade brasileira, nos primeiros anos da década de 60, fez com que o País se tornasse um dos centros de atenção no cenário mundial. O golpe de 64, que levara os militares ao poder, iniciava uma nova era para essa sociedade. E a reorganização política e so- cial do Brasil, a partir de 1964, levava ao exílio vários intelectuais. Entre eles, Paulo Freire. Nes- se período, a nação chilena, que vivia um momento histórico de liberdade democrática, não só acolhia o educador como, também, assumia oficialmente seu método de alfabetização-cons- cientização. (Freire, 1979, p. 13-24)

Chegando ao Chile, o contato de Paulo Freire com as assistentes sociais, já na cidade de Santiago, apresentava uma linha mais progressista para o Serviço Social. Era uma forma de compreensão mais radical da sociedade, a visão que só existe quando se vive a história. A con- juntura política daquele país ao final dos anos 60 não só proporcionava as condições favoráveis ao aparecimento de uma nova mentalidade entre os assistentes sociais como, também, exigia novas perspectivas de a ~ ã o . ~

Para os assistentes sociais, conclamados a superar o assistencialismo e participar do

* A referência é sobre o texto redigido por Karsch (1982) e uma entrevista com Paulo Freire gravada por Karsch em 1983. Material inédito, cedido pela autora. A partir daqui, todas as citações extraídas dessa entrevista terão apenas uma referência: Freire & Karsch, 1983. [...I qciando eu cheguei ao Chile, exilaclo, o que eu comecei aperceberjá nos primeiros encontros com os assistentes sociais ein Santiago, desde fora da universidade, é que havia uma linha mais progressista do Serviço Social. Eu não diria maispro- gressista que as niinhns arnigas do Recife. Para mim, elas (as assistentes sociais do Recife) já tinham uma postura muito crítica do Serviço Social. Não uma postura marxista, que elas nunca foram. Elas eram profundamente cristãs. Mas o mo- inento histórico do Brasil em que elas viviam não era ainda o momento, eu creio, de uma compreensão mais radical, que não se rlrí fora da história, tnas que se dá dentro da história. Essa eu começo a encontrar no Chile, dentro das condições histórico-sociais e politicas que a sociedade chilena vivia. (Freire & Karsch, 1983)

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Falando da importância da participação do povo no processo de mudança da estrutura ideológica e política, a autora atribuía à vanguarda profissional a tarefa de assumir a cons- cientização dos homens quanto ao seu papel de sujeitos da hi~tória.~ Era esse o compromisso a ser assumido pelos assistentes sociais. Conclamados a superar o assistencialismo, os novos profissionais deveriam "entregar às pessoas os elementos que lhes permitam chegar às causas de suas situações deficitárias" frente à situação global. (Young, 1972, p. 37)

A autora fala, ainda, do homem sujeito, da inserção e da participação na prática do po- vo, da necessidade e da importância do desvelamento crítico da realidade. O diálogo é enfa- tizado como um instrumento imprescindível desse processo. A autora afirma que o povo possui formas próprias de "organização, mobilização e gestão". Cabe ao assistente social a tarefa de assessorar o povo na busca e na sistematização de todo o instrumental técnico que possa con- tribuir para que o processo de conscientização e participação seja a base para um "autêntico processo revolucionário" (Young, 1972, p. 39). Todos esses temas - a conscientização, o diá- logo, o desvelamento crítico da realidade, a noção de Ser Humano como sujeito e não objeto - são questões apresentadas e sustentadas na obra de Paulo Freire, nas suas reflexões, no pen- samento por ele difundido.

Nesse mesmo ano - 1972 -um novo texto, vindo da Argentina e escrito por um grupo de assistentes sociais, traz de forma objetiva o pensamento de Paulo Freire para o Serviço So- cial. Fundamentado na obra do educador brasileiro, o grupo chega àelaboração de uma proposta metodológica a ser aplicada pelos assistentes sociais. O artigo, que apresenta uma síntese da obra de Paulo Freire, foi escrito com a "intencionalidade de dar aplicação teórico-prática de seus conceitos básicos ao Serviço Social" (Kisnerman et al., 1972, p. 5).

Tendo por suporte toda a obra de Freire acessível até então - 1959 a 1972 - o artigo tem, também, todas as suas citações retiradas do seu livro Pedagogia do oprimido, publicado em Montevidéu em 1972.

Os autores consideravam que o conteúdo desse artigo devia apoiar a reflexão crítica dos assistentes sociais frente à problemática estrutural da sociedade. Afirmando que o resultado é perfeitamente aplicável ao Serviço Social reconceituado, os autores ressaltam a "importância com que a obra de Paulo Freire se reveste para nós que estamos em permanente busca de um Serviço Social que esteja de acordo com as necessidades históricas de nossa época e de nosso país" (Kisnerman et al., 1972, p. 5). E nesse contexto, afirmavam, não havia espaço para a apli- cação de técnicas e outros instrumentos, pois o ponto fundamental da ação está na atitude de compromisso dos assistentes sociais com o processo de transformaçã~.~

O texto prossegue analisando alguns pontos de forma específica. São enfocados alguns aspectos do contexto social próprio dos países da América Latina, como: a humanização e a desumanização do homem e a dominação político-ideológica à qual estão submetidas as so- ciedades subdesenvolvidas do continente latino-americano. Ainda dentro do conteúdo analíti- co do texto, os autores apresentam uma síntese dos níveis de consciência, os quais são similares àqueles que Paulo Freire apresenta no livro Educação como prática de liberdade.

Após a apresentação dessa síntese analítica, os autores falam do Serviço Social, do diá- logo, dos temas geradores, e finalizam mostrando um processo metodológico a ser assumido

'[...I sua ação deve contribuir para: (a ) a compreensão cada vez mais consciente do processo que estamos vivenclo, para ga- nhar maior participação nele; (b) LI libertação de mitos impostos pela burguesia através do processo de desmistifcação; e (c) a emergência de novos valores gerados na prcítica social do povo. (Young, 1972, p. 37) [...I cunsideramos fundamental a atitude do assistente social e não dos instrumentos e técnicas de aplicação. Estas de nada valem se a atitude profissional não estcí autenticamente comprometida com o pensar e atuarpara essa transformação. (Kis- nerman et al., 1972, p. 5-6)

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viável histórico da sociedade chilena, apresença de Paulo Freire parece ter sido uma influência decisiva para os rumos da profissão naquele momento. As reflexões sobre o papel do trabalha- dor social no processo de mudança: escritas emSantiago no ano de 1968, foram feitas parauma ocasião especial vivida pelo autor naquele país: refletir sobre o tema, num encontro de técnicos que atuam em instituições governamentais.

Nas reflexões que apresenta sobre o trabalho do assistente social, o autor critica a men- talidade e o caráter assistencialista da ação profissional, afirmando que o assistente social, "co- mo educador que é, não pode ser um técnico friamente neutro" (Freire, 1977, p. 39; Freire, 1986, p. 49). Há que clarificar sua opção política, uma vez que essa opção é que vai determinar o papel, os métodos e as técnicas de atuação do assistente social.

Analisando a frase tema do artigo, o autor afirma que o papel do trabalhador social con- siste em atuar juntamente com outros profissionais na estrutura da sociedade. O artigo continua, fazendo um paralelo entre o trabalho reacionário e o trabalho político, a partir da ação do assis- tente social. Nesse paralelo, o autor fala da necessidade de o assistente social mudar sua percep- ção da realidade, a qual é distorcida pela ideologia dominante. Nesse processo de superação de sua visão de sociedade, há a necessidade de uma apropriação, de uma inserção profissional no contexto ~ o c i a l . ~

Nessa mesma ocasião, o autor afirma que, nessa nova sociedade, a ação dos assistentes sociais deverá ser desenvolvida "com, jamais sobre indivíduos, a quem considera sujeitos e não objetos, incidências de sua ação" (Freire, 1978, p. 40; Freire, 1986, p. 5 1). Ao finalizar suas re- flexões, Freire atribui ao trabalhador social o papel de agente desencadeador de uma ação cons- cientizadora, junto aos indivíduos com quem trabalha. Pois é nesse processo que o profissional também se con~cientiza.~

As reflexões de Paulo Freire, que atendiam à solicitação dos profissionais num deter- minado momento da sociedade, iriam marcar profundamente aqueles profissionais. Suas idéias ganhavam corpo entre os assistentes sociais chilenos e redirecionavam o curso do Movimento de Reconceituação. A fertilidade por que passava o País propiciava o amadurecimento das no- vas idéias, fazendo com que os assistentes sociais chilenos encabeçassem o Movimento de Re- conceituação. As novas perspectivas de ação "deveriam contribuir, dentro das circunstâncias concretas que vivia o país" (Karsch, 1982, p. 10). E eraexatarnente naquele período, 1968- 1973, quando a nação chilena vivia sua experiência democrática e cultural sob as diretrizes de um go- verno democrata-cristão, que o Movimento de Reconceituação rompia suas fronteiras e se ex- pandia pelas terras do continente. É nesse expandir-se que a influência do pensamento de Paulo Freire se faz de forma decisiva. Os textos publicados nesse período traziam algumas questões bastante objetivas, as quais permitem uma análise efetiva dessa influência.

O artigo vindo do Chile em 1972 (Young, 1972, p. 35-39) apresenta as reflexões dos assistentes sociais sobre a especificidade do Serviço Social no contexto que vivia o País. Na- quela sociedade os papéis tradicionais do Serviço Social - o papel educativo e o papel coor- denador - vinham tomando o contorno específico do real coletivo e a sua especificidade surgia das necessidades concretas da população nacontribuição com "ações educativas e coordenado- ras de massa". (Young, 1972, p. 37)

Hoy en e1 Servicio Social, n. 16-17, p. 89-104, 1969. Mudança que "implica uma apropriação do contexto; uma inserção nele; um não ficar aderido a ele; um não estar quase sob o tempo, mas no tempo". (Freire, 1969, p. 104; Freire, 1977, p. 40; Freire, 1986, p. 60)

v...] tentar a conscientização dos indivíduos com quem trabalha, enquanto ele se conscientiza, pois este e não outro, nospa- rece ser o papel do trabalhador social que optou pela mudança. (Freire, 1986, p. 60)

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pelos assistentes sociais no desempenho de suas funções. Ao analisar a necessidade de o Servi- ço Social adquirir uma visão crítica para superar as contradições sociais, os autores definem com uma frase de Paulo Freire a necessidade do "reconhecimento da razão de ser desta (visão crítica), a fim de conseguir uma ação transformadora que incida sobre essa realidade, a instau- ração de uma ordem diferente que possibilite a busca de ser mais". (Kisnerman et al., 1972, p. 9)

Falando da práxis, da inserção, da superação da contradição assistente-assistido, da importância do diálogo, o grupo elabora uma proposta baseada na tarefa de implementar dis- cussões que se iniciem nas contradições básicas e existenciais da população trabalhada. Para tanto, o conteúdo programático é organizado através do levantamento de temas geradores, num processo análogo ao processo apresentado por Paulo Freire. O universo temático pode contar com palavras como casa, rancho, patrão, salário, e se desdobrar até situações-limites, tais como: falta de moradia, déficit salarial, déficit alimentar e muitos outros.

A proposta metodológica elaborada por esses autores prevê a participação ativa, siste- mática e coletiva num processo de trabalho que possui duas fases bem distintas. A primeira, de- nominada conscientização, consiste no momento em que toda a população envolvida vai inves- tigar, vai conhecer o real vivido. Vai, portanto, de forma sistematizada, conhecer as dificulda- des da sua própria realidade.

A medida que essa investigação se amplia, vai sendo ampliado também o nível de co- nhecimento e análise desses indivíduos, uma vez que os problemas encontrados deverão ser compreendidos na sua complexidade conjuntural. A partir da correlação e da interligação que o investigador consegue estabelecer entre os fatos apreendidos pela análise é que esses inves- tigadores deverão levantar as alternativas de ação.

Segundo os autores, o "desvelamento crítico" da realidade se transforma num "fazer educativo" à medida que o investigador "se conscientiza" de sua realidade, ao mesmo tempo em que permite a conscientização de quem é investigado.

É o desencadeamento do processo de uma ação multiplicadora, em que pesquisador e pesquisado são sujeitos da mesma ação. Nesse processo, a fase inicial consiste no desvelamento crítico da realidade, na análise das situações-problemas captadas, e no levantamento de alterna- tivas de solução.

Se o conhecimento e a análise são o centro da primeira fase, a segunda fase desse pro- cesso será caracterizada pela ação propriamente dita. Essa ação consiste na organização das massas, agora conscientes da importância e da necessidade de um esforço comum. Tal esforço consistia na busca conjunta dos meios e das alternativas de superação das situações, dos limites então existentes. E essas situações-limites eram vistas, também, como uma "totalidade estrutu- rada". Inseridos nesse processo, todos os sujeitos estariam vivendo de forma permanente e pro- gressiva os meios de comunicação para uma participação ativa real no processo de transforma- ção. "A transformação através da práxis". (Kisnerman et al., 1972, p. 18)

O espaço criado na conjuntura de uma democracia cristã- o momento político chileno -propiciava ao Movimento de Reconceituação as condições necessárias para se efetivar o gran- de salto qualitativo que buscavam os assistentes sociais. "Aí então eu acho que o Serviço Social avançou realmente" (Freire & Karsch, 1983). Estava aí inaugurada a nova fase do Movimento, que vai alcançar a receptividade entre os assistentes sociais de toda a América Latina.

O ideário da participação e da conscientização corria as terras do continente, trazendo ao Serviço Social a visão de um homem novo e a esperança de uma nova sociedade. O momento político vivido no Chile "desafia para uma nova visão do social: o social político, o social que transforma em um novo mundo e realidade de opressão de passagem para uma realidade de li- bertação". (Karsch, 1983, p. 13)

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Ainda em 1972, uma resenha bibliográfica redigida por Canton (1 982) apresenta uma síntese do livro Princípios do Serviço Social, onde o terceiro capítulo é dedicado especifica- mente aos valores do Serviço Social. No comentário que faz, o autor afirma que talvez seja aque- le o "melhor já conseguido com forte inspiração nas idéias de Paulo Freire". (Canton, 1972, p. 8 1)

Em 1974, o livro da professora chilena, Maria Angélica Gallardo Clark, trazia, tam- bém, o assunto em questão. Já na introdução, a autora enfatizava a importância de o Serviço So- cial buscar uma teoria que viesse fundamentar sua ação. Uma teoria que pudesse nascer "da raiz da sua própria prática social em seu enfrentamento metódico e persistente com a realidade" (Clark, 1974, p. 5). Em seguida, afirma que cabe aos assistentes sociais "atuar para transfor- mar". Segundo Clark, os assistentes sociais possuem vários caminhos para a formulação de seus objetivos de "libertação" dos homens (Clark, 1974, p. 5-10). E entre os caminhos citados, a au- tora afirma que "o próprio método de conscientização é já uma instância metodológica que ini- cia a abordagem de um assunto particular da prática social, ou seja, o analfabetismo ou consci- entização pura". (Clark, 1974, p. 7-8)

O capítulo quatro desse mesmo livro (Clark, 1974, p. 75-142), é dedicado a duas pro- postas metodológicas para o Serviço Social. A primeira, denominada Metodologia Básica ou Metodologia Geral, tinha o seu embasamento teórico sustentado pelo Materialismo Histórico e Dialético. A segunda proposta, denominada Metodologia da Conscientização fora recriada, segundo Clark, pelo professor Marcelo FerradaNoli - dauniversidade de Concepción - apartir do método de alfabetização de Paulo Freire com os camponeses brasileiros.

A autora prossegue fazendo uma análise comparativa entre o processo de alfabetiza- ção de Paulo Freire e o processo de conscientização pura. Nessa análise, faz várias citações do educador e levanta todas as etapas do seu processo de educação conscientizadora, assim como é apresentado no livro Educação como prática da liberdade. Após essa análise, afirmando ser conveniente começar do esquema elaborado a partir do método Paulo Freire, Clark apresen- ta para o assistente social um processo de trabalho que segue as mesmas etapas do método de alfabetização do educador brasileiro. Esse modelo era, também, análogo àquele formulado por Kisnerman.

As idéias de Paulo Freire acenam para um novo método de ação para os assistentes so- ciais latino-americanos. E o Movimento de Reconceituação, que tem por berço a nação chilena, leva no seu bojo a marca da atitude metodológica proposta pelo pensador brasileiro. Nessa fase, os textos do Movimento de Reconceituação vêm impregnados do ideário de Paulo Freire. Pa- rece mesmo que essa influência vai um pouco mais além, já que fornece aos assistentes sociais a noção de uma sociedade dual e contraditória. Esses profissionais prosseguem suas reflexões dentro de uma nova visão de mundo e de sociedade. E toda uma geração de assistentes sociais passava a buscar uma percepção dialética da realidade social.

É como se aquele fosse o momento em que toda uma categoria toma consciência da existência da hegemonia das classes dominantes, das contradições da sociedade e do papel que a profissão vinha exercendo até então.9 E na entrevista concedida a Karsch, o próprio Paulo Frei- re afirma que "analisando historicamente, eu acho que eu tenho a ver com o Serviço Social nu-

[...I eu tenho a itnpresscio que na medida em que esses assistentes sociais afirmam que essa icléia de conscientização deve embasar a ação de toclos aqueles que trabalham com o ser humano na sua vida social, eles (os assistentes sociais), enquanto categoria profissional nesse Movimento de Reconceituação, tomam consciência cla função de uma hegemonia da classe do- minante. Portanto, quando dizem que esta deve ser a ação do assistente social, conscientizar o povo, eles próprios se consci- entizarn. E a essa idéia que Paulo Freire responde: é, eu acho que você tem razão. Daia afirnlação que eufiz h6 muito tempo. Que no furzclo ninguétn conscientiza ninguém. Nós nos conscientizamos numa prática política definida. Até o momento em que a gente continua pensando que vai conscientizar o não conscientizado, a gente tem um certo vestígio elitista. (Freire & Karsch, 1983)

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ma perspectiva dialética". E continua logo em seguida: "de um lado eu insisto na marca que al- gumas figuras do Serviço Social me deram, indiscutivelmente. Mas, de outro, eu acho que vi- rei uma presença real na América Latina, no campo da educação popular" (Freire & Karsch 1983). Frente a essas questões, é possível afirmar que o Movimento de Reconceituação carrega a presença de Paulo Freire no momento de busca que o Serviço Social empreende enquanto uma categoria profissional na América Latina.

Se a influência de Paulo Freire é assim tão marcante no Serviço Social latino-america- no a partir do Movimento de Reconceituação, que causas teriam essa influência? Aqui, algumas hipóteses podem ser levantadas:

a experiência político-pedagógica adquirida no nordeste brasileiro, através de um processo que posteriormente denomina de conscienti~ação,~~ e a trajetória de vida que leva Paulo Freire do nordeste brasileiro ao Chile fazem do educador uma figura mítica entre os profissionais que têm no social seu objeto de trabalho e, portanto, es- tão cônscios das limitações de suas ações; a importância que Paulo Freire atribui ao social, os laços que o prendem aos assis- tentes sociais -já a partir do Recife - e a reflexão crítica que faz sobre o trabalho do Serviço Social fazem do educador uma presença esperançosa entre os profissionais, num momento em que a categoria passava por uma fase de grandes questionamentos sobre a validade de sua ação; um educador que sintetiza o pensamento cristão e faz uma conjugação própria para uma proposta de libertação do jugo de dominação e opressão aponta aos assistentes sociais uma possibilidade de prática profissional que nega e supera os antigos valo- res que orientavam o trabalho profissional conservador, então contestado.

O MOVIMENTO DE RECONCEITUAÇÃO EM BELO HORIZONTE

Os caminhos mineiros O Movimento de Reconceituação iniciado no Chile nos últimos anos da década de 60

percorria os países da América Latina e, já nos primeiros anos da década de 70, entrava mar- cadamente na Escola de Belo Horizonte.

O estudo do material encontrado sobre aquele período," bem como os depoimentos obtidos junto a professores e diretores que atuavam nessa Escola entre 1969 e 1975, mostram que o modelo de assistente social, formado através de uma perspectiva modernizante desenvol- vimentista, necessitava de um redirecionamento, já no final dos anos 60. Do ponto de vista pro- fissional, a necessidade de formar assistentes sociais com uma nova mentalidade leva ao grupo de professores a preocupação de buscar novos caminhos. Essa preocupação refletia já os pri- meiros questionamentos às idéias originadas em Porto Alegre, em 1965. Esses questionamen-

"' [...I na ijerdarle, toda a idéia de conscientizaçáo, náo da palavra mesmo, porque a palavra náo foi cunhada por tniin, mas o que ela encarna como prcíxis político-pedagógica, vem se constituindo em mim na medida em que eu pratiquei. Foia minha prhtica, foi o meu compromisso com os trabalhaclores, com os camponeses; foi o meu encontro constante, e não com armas, mas constante com trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais no Nordeste, em Pernambuco, que vieram perfilando o que depois eu chamei de conscientização. Não foi propriamente uma reflexão teóric. Se fez sobre a prcítica feita, sobre a prcítica vivida, sobre a prcítica realizada. E foi exatarnente aquela primeira prática. E interessante salientar exatarnente a prcítica que eu tive no SESI''. (Freire & Karsch, 1983)

'I Método Básico (I 969); A Prática como Fonte da Teoria (1971); Análise Histórica da Orientação Metodológica da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais (1974).

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tos eram, então, reforçados na Escola por um dos professores que retomava de cursos de pós- graduação realizados no continente europeu.

A presença da Escola no encontro realizado em Caracas em 1969 marcava o início das novas idéias para Belo Horizonte. Naquele encontro os representantes da Escola mineira to- mavam conhecimento do Movimento de Reconceituação, assim como vinha se processando no Chile. Ao regressar, os professores chegavam a Belo Horizonte trazendo um documento chile- no denominado Método Básico, elaborado pela Escola de Serviço Social da Universidade Ca- tólica de Santiago do Chile.

E já em 1970, os professores de Belo Horizonte elaboravam uma nova proposta para a formação profissional dos assistentes sociais mineiros. Tal documento, apresentado no En- contro Nacional da Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social - ABESS -, realizado na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, naquele mesmo ano, se tornava "o primeiro tra- balho de Reconceituação apresentado no Brasil". (Entrevista M)

Ainda em 1970, o Método Básico começava a influenciar a formação dos novos assis- tentes sociais mineiros. A proposta de um único processo de trabalho para o atendimento do ca- so, do grupo e da comunidade passava a ser discutida através das disciplinas específicas do Ser- viço Social. Inicia-se ali acirculação das idéias do Movimento de Reconceituação Chileno. Pa- ra estudo e discussão dessas idéias, o documento era adotado como texto básico para o processo de formação num período de adaptação de novos conceitos a uma estrutura curricular ainda em vigor.

A leitura do documento-o Método Básico - mostra que o grupo chileno, partindo de uma análise da realidade social que vivia o país, apresentava uma crítica ao papel do assistente social frente àquela sociedade, e elaborava uma nova proposta de ação para os profissionais. O grupo, que vivia uma experiência democrática e cultural - uma forma de democracia cristã -

41 elaborava então novas definições para o Serviço Social como profissão. Frente à realidade ana- lisada, o grupo faz a opção pela mudança do sistema dominante, recusa o papel assistencial do Serviço Social e faz a opção por um novo papel: o de educador popular. Assim, o assistente so- cial deveria cumprir sua função básica, atuando junto às organizações populares com as quais deveria desenvolver sua ação através de assessoria a projetos específicos, contribuindo para que tomassem consciência de sua situação.

As organizações populares eram, então, o núcleo básico de trabalho do assistente so- cial, junto às quais passavam a desempenhar seu papel de educadores. Tendo o diálogo como ponto fundamental de seu papel, seus objetivos profissionais estarão sempre em função dos gru- pos aos quais prestarão sua assessoria.

No desempenho de sua função, o assistente social deverá elaborar e desenvolver as for- mas possíveis de participação. Nesse processo, o profissional é o responsável pelo desenvolvi- mento de uma "ação ativa e cada vez mais dinâmica e crítica". (Método Básico, 197 1)

Quanto ao diálogo, ao papel educativo, à assessoria, o grupo chileno apresenta uma proposta metodológica que deve ser desenvolvida numa linha participativa, capacitadora e conscientizadora. Ainda nessa abordagem geral e introdutória do documento, o grupo afirma que "essa metodologia só tem sentido na medida em que está determinada pela realidade inves- tigada e analisada em toda a sua complexidade". (Método Básico, 1971, p. 50-5 1)

E, para desencadear essa ação, para ter as condições necessárias para o desempenho da sua função e assessoria, o assistente social deverá estar teoricamente capacitado. Deverá, portanto, possuir "um marco de referência teórica que lhe permita interpretar arealidade". (Mé- todo Básico, 197 1, p. 50)

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A partir dessas definições gerais, o documento apresenta um detalhamento dos passos metodológicos que propõe. O estudo dessa metodologia mostra que o processo é formado por um conjunto de etapas que são, ao mesmo tempo, independentes e interdependentes, Indepen- dentes, no sentido de que cada uma delas possui uma estruturação própria, com dinâmica e ob- jetivos também próprios. Porém, na dinâmica geral, essas etapas são interdependentes e desen- volvidas de forma simultânea. Sua execução "supõe uma comunidade ou grupo social que in- vestiga sua realidade, interpreta, programa, realiza as ações previstas e avalia os resultados em função dos objetivos formulados". (Método Básico, 1969, p. 77)

O trabalho é iniciado pelo envolvimento dos grupos num estudo exploratório, através do qual assistente social e população envolvida buscam, juntos, o conhecimento de sua própria realidade. Trata-se do processo de investigação do seu universo existencial.

Uma vez levantados os problemas de sua realidade específica, tem início um processo de análise desse contexto. Entretanto, o estudo dessa realidade particular só tem sentido se es- tiver fundamentado por um "marco teórico geral" através do qual se possa entender todo o sis- tema social. Esse marco teórico é o ponto fundamental desse momento, porque é ele que vai per- mitir que sejam estabelecidas as relações existentes entre o contexto social particular - inves- tigado pelos elementos do grupo -e o contexto geral da sociedade. A partir, então, desse estudo da realidade social no seu contexto genérico, serão deduzidas as teorias intermediárias que vão explicar os fenômenos específicos que ocorrem no sistema. Essas teorias intermediárias, por sua vez, são também fundamentais no processo, na medida em que "nos permitem deduzir apar- tir delas, os problemas (aqueles encontrados pela população) que estão se originando no sistema 42 social". (Método Básico, 197 1, p. 52)

Após o estudo e a análise da realidade social - nesse processo de reflexão teórico-prá- tica- passa-se ao estudo da relação existente entre os problemas anteriormente estudados. Nes- se momento, procura-se estabelecer as relações de dependência e interdependência existentes entre os problemas encontrados no contexto específico já conhecido. Ainda nesse mesmo pro- cesso de análise, são estabelecidas todas as relações de dependência existentes entre esse con- texto social específico e a macroestrutura da sociedade, buscando os seus aspectos significa- tivos e contraditórios.

Todo esse processo de conhecimento e análise do contexto social vai, naturalmente, -

levar esses grupos a uma tomada de decisão frente à realidade conhecida. Os grupos vão, en- tão, levantar alternativas de solução e elaborar os planos, organizando-se para a execução da ação.

Ora, se o grupo chileno considera que a "consciênciacríticaé despertada, principalmen- te, participando-se do conhecimento da realidade dentro de um contexto do país, admirando- a através da interpretação diagnóstica e imaginando novas formas de vida através da planifica- ção" (Método Básico, 1969, p. 80), aqui está definido o principal papel do assistente social: o de agente responsável por desencadear, através de fases ou etapas, um processo de conhecimen- to, reflexão e análise das verdadeiras condições existenciais de grupos e comunidades, levando- os a tomar atitudes frente a essa realidade; é o papel de conscientizador e organizador da popu- lação. O estudo dessa proposta metodológica mostra que a conscientização é o caminho natural e obrigatório para a organização da pop~lação. '~

'? O Método BH define como conscientização "o processo através do qual as pessoas elevam seu nível de consciência, de for- ma a: compreender a situação concreta na qual se encontram, analisar as condições reais e atuais de sua existência, exprimir seus verdadeiros interesses e criar formas de ação para concretização desses interesses. [...I A organização éentendidacomo o processo de coordenação sistemática dos interesses de determinado grupo, visando alcançar metas específicas" (UCMG, 1974, p. 19-20; ISI n. 4, 1976, p. 1 10; Santos, 1982, p. 41). O estudo recente, de Souza (1982) define para "conscientização

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A partir dessas questões, pode-se deduzir que, sendo o desenvolvimento da consciên- cia crítica o caminho natural e obrigatório para a organização da população, então, a conscien- tização é um processo que se transcende no momento em que se completa. Essa transcendência ocorre na medida em que a ação implementada pelo assistente social pode ser, também, ge- radora de valores novos. Os grupos trabalhados poderão criar novas formas de participação e de organização. Poderão, também, estabelecer relações intergrupais, ampliando, portanto, o sentido da ação.

São os efeitos multiplicadores da ação e, nesse sentido, o papel do educador atribuído ao assistente social faz dele um educador político por excelência. Essa nova função vem carac- terizar, em síntese, a mudança da própria natureza do Serviço Social. De distribuidor e admi- nistrador da assistência, papel a ele atribuído dentro da divisão social do trabalho, o assistente social passa agora a ser educador político e articulador das classes populares.

Diante desse contexto, porém, cabe ressaltar que as definições elaboradas para o tra- balho profissional - a conscientização, a participação, a educação social e política - são ques- tões definidas, defendidas e fundamentadas no ideário de Paulo Freire. Pode-se mesmo afirmar que o documento chileno comporta a síntese de uma proposta que se desprende do pensamento do educador brasileiro.

Se a partir de textos de Paulo Freire são elaboradas novas finalidades da ação e um no- vo papel para o assistente social, o processo metodológico não foge a essa influência. Uma aná- lise comparativa das etapas metodológicas - denominadas de investigação significativa, inter- pretação diagnóstica, programação, execução e avaliação - apresentadas no Método Básico mostra que elas são as mesmas etapas propostas pelo grupo argentino.

A metodologia então elaborada pelo grupo argentino apresenta as etapas de investi- gação exploratória, análise das contradições, levantamento das alternativas de ação, estudo das formas de encaminhamento da ação. Os dois documentos, ou as duas propostas, têm na partici- pação ativa e permanente dos indivíduos durante todas as etapas de trabalho o ponto central da ação profissional. É esse o processo que o grupo define como "permanente capacitação das pes- soas, o que implicará a sua participação ativa no processo de transformação através da práxis" (Kisnerman, et al., 1972, p. 18). Os passos metodológicos apresentados no Método Básico são também os mesmos passos propostos por Clark quando recupera as etapas do método de Alfa- betização e Conscientização de Paulo Freire, que propõe etapas similares para o trabalho dos assistentes sociais.

Esse estudo comparativo das propostas metodológicas leva também à observação de que o documento chileno - o Método Básico - traz um certo amadurecimento das elaborações anteriores - Clark e Kisnerman. Isso ocorre na medida em que, fundamentado no pensamento do educador brasileiro, o grupo chileno mantém as idéias da conscientização, da organização, da capacitação e da transformação, agora organizadas num conjunto de objetivos, princípios, métodos e técnicas.

Era todo esse conjunto teórico-metodológico que a Escola de Belo Horizonte incor- porava i formação profissional a partir de 1970, quando o Método Básico passava a ser o docu- mento primordial da Escola Mineira. Uma vez assumido o Método Básico, os professores pas- saram a uma fase de estudo, análise e crítica. O processo de reflexão e crítica então desen-

o processo em que a população, a partir de sua realidadeexistencial, passaa ampliar a sua percepção, aestabelecercorrelações de juízos críticos, e a tomar atitudes em face dela" e por organização o "processo em que as ações grupais desenvolvidas pela populrição passam a ser assumidas como elemento de força social para se contraporem aos seus problemas existenciais". (Souza, 1982, p. 132-1 33)

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cadeado pelo grupo de Belo Horizonte é considerado como ummodo de incorporação daEscola ao Movimento de Reconceituação e leva os professores à elaboração de uma proposta de mu- dança radical no processo de formação profissional.

Tais reflexões desembocam na estruturação de um novo documento, que tinha por tí- tulo "A Prática como Fonte da Teoria". Nesse documento - elaborado em 197 1 -os professores apresentavam uma abordagem teórica sobre a prática científica e analisavam a prática do está- gio oferecido pela Escola desde a sua criação.

Mediante essa análise, o grupo apresenta uma proposta de reestruturação da prática profissional, com o "objetivo de fazer com que a prática escolar a ser organizada pela Escola de Serviço Social de Belo Horizonte se constitua em prática teórica" (UCMG, 197 1, p. 16). Pa- ra cumprir esse objetivo, o grupo elabora um conjunto de definições básicas para essa prática: os objetivos, o método, a área de atuação e a teoria.

Um corpo teórico deverá ser o suporte da ação e oferecer os fundamentos à nova es- trutura de prática. "Essa teoria, cuja perspectiva é a de uma visão dialética do mundo, seria aquela que nos desse elementos não só para interpretar a realidade, mas para transformá-la" (UCMG, 1971, p. 16). A estrutura de prática elaborada nesse documento é que dá origem ao Método BH.

Um estudo detalhado dos objetivos definidos pelo grupo mineiro, nesse documento- base de 197 1, mostra que são os mesmos elaborados pelo grupo chileno no Método Básico: a organização, a conscientização e a capacitação. O objetivo de capacitação, entretanto, aparece

44 aqui com uma definição mais clara, mais elaborada que nos documentos anteriores. Falando de cada um desses objetivos que assume, o grupo apresenta a capacitação como decorrência do processo de conscientização, no qual os indivíduos aprendem a atuar de forma técnica, social e política.I3

Ainda nesse mesmo conjunto de definições, os professores mineiros afirmam que as comunidades operárias deverão ser a área prioritária de atuação.14 Na opinião do grupo, entre- tanto, essa reestruturação da prática a partir do estágio de seus alunos leva necessariamente a uma reestruturação da formação teórica. A partir dessa conclusão, o documento traz a proposta de elaboração de um novo currículo que esteja centralizado "em três grandes momentos basea- dos no método científico: etapa do conhecimento, etapa da verificação, etapa da avaliação" (UCMG: 197 1, p. 22).

A elaboração desse documento inaugurava então uma nova fase para a Escola de Belo Horizonte. Já em 197 1, o esquema de prática formulado (UCMG, 197 1, p. 19-2 l), começava a ser aplicado nos campos de estágio. Nesse mesmo ano o grupo elabora também a nova estru- turacurricular, então implantada a partir de 1972. As propostas contidas nesse documento é que fizeram iniciar, entre professores e alunos, um período de estudo, reflexão e discussão per- 1

manentes, que levaram à elaboração de um novo texto. O estudo desse novo documento mostra que o grupo mineiro, preocupado em captar

o espírito do Movimento de Reconceituação, apresenta uma sistematização dos questionamen- tos, estudos e reflexões que vêm fazendo e, partindo de uma breve análise histórica da evolução do Serviço Social no Brasil, procura situá-lo no contexto latino-americano. Nesse processo de I

I 3 [...I a capacitação é o processo decorrente do anterior (a conscientização), pelo qual os indivíduos se habilitam a atuar técnica, social e politicamente. (UCMG, 1971, p. 17)

l4 [...I na seleção das áreas de treinamento profissional serão ainda observadas como objeto de prioridade aquelas que apre- sentam uma população com tnaior potencial de transformação social - comunidades operárias (urbanas dou camponesas - rurais). (UCMG, 197 1, p. 1 7- 1 8)

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análise, o grupo fala também do Movimento de Reconceituação e faz uma crítica àmetodologia clássica para, em seguida, abordar o método chileno.

Considerando os reflexos do ~ov imen to de Reconceituação sobre a linha metodoló- gica, em "1971, apesar de permanecer a estrutura metodológica clássica, começa-se o estudo do Método Básico, que propunha uma estrutura única a ser aplicada em qualquer situação, seja o caso, o grupo, a comunidade" (UCMG, 1974, p. 9). E assumindo o Método Básico, a Escola assumia todas as principais questões apresentadas pelo método chileno: o diálogo, o papel de educador, os objetivos formulados, o processo metodológico. Conseqüentemente, assume tam- bém a revisão do papel assistencialista, os questionamentos às estruturas sociais, e a necessi- dade de encontrar alternativas próprias para o Serviço Social na realidade latino-americana. (UCMG, 1974)

Feita a análise, o grupo apresenta o Método BH (UCMG, 1974, p. 13-35; Série ISI n. 4, 1976, p. 79-137; Santos, 1982, p. 1 1-68), afirmando que ele surge da6'tentativa de avanço" dentro do Movimento de Reconceituação e que a sua "concepção busca a superação do idealismo, ori- entando-se em direção a uma visão objetiva da realidade, não apenas para explicá-la mas com o objetivo de participar profissionalmente no processo de sua transformação". (UCMG, 1974, p. 12)

O estudo desse método - BH - mostra que ele tem na Teoria do Conhecimento um de seus pressupostos teóricos fundamentais para a sustentação da prática social. É a partir dessa abordagem teórica que o grupo define sujeito e objeto do Serviço Social como elementos in- terdependentes e que estão em constante processo de interação e reciprocidade.

Após a definição dos fundamentos teóricos e filosóficos que sustentam o novo méto- do, o grupo fala da importância de um marco referencial teórico que dê subsídios para a inter- pretação e análise da realidade social. E esse marco referencial de análise deve ser formado por elementos teóricos "que antecedem a ação e são a base para o conhecimento e a interpretação da realidade global, tendo em vista uma intervenção profissional transformadora" (UCMG, 1974, p. 17). Para tanto, esse referencial teórico deve conter dois níveis distintos. O primeiro é aquele que oferece subsídios para uma análise globalizadora da estrutura social no seu con- texto econômico, sócio-político e ideológico. O segundo é aquele que permite ao profissional analisar o contexto específico de sua prática, proporcionando-lhe as condições necessárias para o estabelecimento das relações de dependência e interdependência, dessa prática específica, com a macroestrutura da sociedade. Finalmente, o grupo conclui que a Teoria da Dependência é um dos subsídios básicos para uma análise real da sociedade brasileira. Ora, se os fundamentos e o referencial teórico adotados pelo Método levam a uma análise conjuntural da realidade so- cial, seus objetivos só poderão ser definidos a partir do momento em que se tem como referência a situação dessa conjuntura e a intencionalidade de transformá-la. Frente a essa constatação, "a transformação da sociedade e do homem se apresentam como a meta final para o Serviço So- cial" (UCMG, 1974, p. 19). Meta que só será alcançada através dos objetivos intermediários de conscientização, de capacitação e de organização, tendo na "participação" o elemento funda- mental de todo esse process~. '~

O estudo comparativo dos dois documentos elaborados pelo grupo mineiro - a Prática como Fonte de Teoria, de 197 1, e o Método BH - mostra que este mantém a mesma estrutura

l5 "[ ...I a delimitação dos objetivos profissionais é o resultado da interpretação da realidade e a constatação da necessidade de sua transformação"; sua definição surge a partir de uma referência: "a situação conjuntura1 e a intencionalidade de trans- formá-la"; sua concretização "exige a delimitação de objetivos meios. Uma abordagem analítica da realidade brasileira en- quanto sociedade dependente fornece subsídios para afirmar que na consecução das metas finais serão objetivos meios do Serviço Social: a conscientização, a capacitação e a organização". (UCMG, 1974, p. 19-23; ISI, n. 4,1976, p. 106- 109; San- tos, 1982, p. 38-40)

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metodológica da prática, então elaborada por aquele. E as definições ali contidas são, todas elas, aquelas já elaboradas pelo grupo chileno no Método Básico de 1969. Agora, porém, o grupo mineiro define, de modo sistemático, novos elementos que vão dar maior consistência ao corpo metodológico inicial. E entre esses, o grupo mineiro define os fundamentos teórico-filosóficos, formula um referencial teórico que permita a formação de uma nova visão da realidade, estru- tura o objeto, os objetivos e uma área prioritária de ação. Os passos metodológicos do Método Básico são aqui reestruturados numa conjugação das etapas de prática do método com mo- mentos específicos de construção teórica. (UCMG, 1974; ISI n. 4, 1976; Santos, 1982)

A proposta de Belo Horizonte significa, conseqüentemente, ummomento de amadure- cimento e avanço dentro do processo do Movimento de Reconceituação. E, além disso, sig- nifica também um momento de busca de novas diretrizes teóricas. Nesse sentido, cabe ressaltar aqui duas das principais influências que marcam esse corpo teórico e definem suas principais diretrizes: a construção de uma prática teórica a partir do conhecimento da realidade social e a definição de novos elementos de atuação e intervenção nessa realidade.

Estudos já elaborados sobre a fundamentação teórica do Método BH (Magalhães, 1982), apresentam algumas conclusões bastante significativas. Entre outras, destacam-se as se- guintes:

a condução da alternativa metodológica apresentada no Método BH atende às carac- terísticas do conhecimento da dialética materialista, na medida em que propõe aela- boração de um conhecimento teórico que parte das atividades práticas do conheci-

46 mento sensível; o método, fundamentado na teoria do conhecimento materialista dialético, faz com que a proposta envolva o homem histórico, o sujeito situado no contexto de uma de- terminada sociedade; o processo de busca de conhecimento, no método, só acontece através da inter-re- lação, da reciprocidade entre sujeito e objeto, sendo essa inter-relação uma forma de conhecimento coerente com a filosofia marxista. (Magalhães, 1982)

Ora, se a Teoria do Conhecimento faz com que o Método BH esteja estruturado nos fundamentos do Materialismo Histórico e Dialético, e, portanto, na filosofia marxista; se o Mé- todo BH é adotado como parte integrante do Movimento de Reconceituação, estaria aqui inau- gurada a presença da dialética marxista no Movimento de Reconceituação?

Observa-se, porém, que se o pensamento de Marx está presente no documento elabo- rado em Belo Horizonte, o pensamento de Paulo Freire está também presente nesse mesmo do- cumento.

O método elabora uma proposta de construção teórica a partir da prática do assistente social. Se esse é o processo de construção do conhecimento da dialética materialista, o processo de conhecimento do Método BH está fundamentado na filosofia marxista. Por outro lado, po- rém, esse mesmo documento define as questões básicas da prática do assistente social. E essas definições, por sua vez, trazem para a prática desse profissional os objetivos de transformação e conscientização, o papel de educador social e político, os questionamentos de uma ação assis- tencialista. Todos esses conceitos são definidos, defendidos e fundamentados no ideário de Paulo Freire.

Resta, entretanto, nesse mesmo conjunto de definições do documento analisado - o Método BH -, o enfoque atribuído ao homem no seio da sociedade. Este é o Ser Humano, si- tuado no seu contexto social. É o Homem histórico, sujeito de sua própria ação. O Homemcapaz de construir sua história e transformar a sociedade.

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É a partir desse enfoque que o documento delimita o sujeito e o objeto do Serviço So- cial, definindo, também, a relação existente entre estes dois elementos da ação. Nesse contexto, a relação sujeitolobjeto só pode ocorrer através de uma interação contínua entre ambos. E uma relação de reciprocidade, na qual ambos são sujeitos da mesma ação.

Ora, se esses conceitos definidos no Método BH são princípios teóricos fundamenta- dos e coerentes "com o conjunto do sistema da filosofia marxista" (Magalhães, 1982, p. 128), esses mesmos conceitos são também princípios teóricos defendidos e definidos por Paulo Freire.

Sendo esse o conjunto teórico-filosófico que passava a orientar o processo de ensino na Escola de Belo Horizonte, os novos assistentes sociais terão nesses documentos o eixo cen- tral de sua formação teórico-prática ao longo daquela primeirametade dos anos 70. Cabe, agora, saber como aqueles alunos passavam a se relacionar com a estrutura de ensino então em vigor.

O projeto de formação profissional Os primeiros anos da década de 70 podem ser caracterizados como uma fase de gran-

des transformações para a Escola de Belo Horizonte. É um período marcado por grandes ela- borações técnicas, e por definições que vão levar a formação teórica para caminhos completa- mente opostos àqueles traçados até então.

O que se pretende, aqui, é caracterizar a formação profissional naquele período, pro- curando entender como se deu a relação ensinolaprendizagem num período em que tudo seguia em busca de um sonho: o de transformar a sociedade.16

A proposta de reformulação acadêmica, elaborada pelo grupo de professores entre 1970 e 1971 - a Prática como Fonte da Teoria - começava a circular sob a forma de um novo documento adotado pelas disciplinas específicas de Serviço Social. Era esse documento que na- quele mesmo ano iria dar origem i estruturação do novo currículo profissional que iria vigorar

47 nos anos vindouros.

A estrutura curricular então criada pela Escola mineira, implantada a partir de 1972,17 tinha seu início na apresentação de uma análise crítica do currículo em vigor, a partir do que elaborava a proposta de uma formação profissional delineada em parâmetros diferentes da- queles até então existentes. O referencial teórico que lhe dava suporte vinha sustentado por três pontos distintos, considerados básicos para a formação dos novos assistentes sociais.

O primeiro, denominado "concepção de ciência e comportamento científico", é fun- damentado numa concepção de ciência que "nasce como resposta e explicação de determinada necessidade ou fenômeno gerado pela realidade e que, na medida em que explica e responde a esses fenômenos, ela capacita a sociedade a dominar e modificar essa realidade" (D.B.R.C., 197 1, p. 7). Com essa definição, o grupo assume como ciência o resultado do conhecimento que, partindo da realidade, conhece, estuda, generaliza e, através desse processo, cria condições de novamente voltar à realidade com a intenção de gerar as modificações necessárias.

O segundo ponto desse referencial teórico consistia na correlação entre Serviço So- cial, Ciências Sociais e realidade. Apresentando essa questão da fundamentação teórica, o gru- po ressalta a necessidade de estabelecer "o que fazer" e "como fazer" na prática profissional. O pensamento é, em síntese, a necessidade de fazer com que, entendendo o significado da ação

'Vodas as questões apresentadas neste item estão fundamentadas no estudo dos documentos existentes nos arquivos do De- partamento de Serviço Social e nas entrevistas realizadas com professores e alunos da Escola naquele período.

l 7 O Documento Básico para a Reforma de Currículo, elaborado em 1971 pelo grupo de professores de Serviço Social da Escola de Belo Horizonte, faz parte dos arquivos do Departamento de Serviço Social da PUC-Minas. O documento, que apresenta a estrutura curricular implantada a partir de 1972, passa agora a ser objeto desta análise. A partir daqui todas as referências a esse documento serão acompanhadas da indicação D.B.R.C., 1971.

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profissional concreta e prática, o assistente social possa implementar o sentido adequado e ne- cessário a essa ação, tendo em vista seu objetivo básico de transformar essa realidade.

A partir da formulação dessas questões, o grupo define como contribuição das Ciên- cias Sociais para o curso de Serviço Social: fornecer os elementos do conhecimento que per- mitam uma análise histórica e científica da estrutura social, que expliquem o processo dinâmico dessa sociedade e contribuam para a investigação de dados significativos dessa realidade, pas- siva de intervenção do Serviço Social. Assumindo a responsabilidade de ministrar esse con- junto de conhecimentos, as disciplinas de Ciências Sociais estariam fornecendo os "subsídios do conhecimento do objeto de intervenção do Serviço Social - o indivíduo e suas relações com a estrutura social - fornecendo, ao lado de outras disciplinas, o instrumento para intervenção junto a esse objeto" (D.B.R.C., 1971, p. 10). Essa é, em síntese, uma proposta de ruptura com o passado e a definição do Serviço Social como uma "disciplina de intervenção a nível das es- truturas sociais". (Alayon, 197 1, p. 77)

Como terceiro e último ponto fundamental dessa estrutura teórica, o grupo apresenta a sua concepção de ensino e aprendizagem. O ensino, aqui, passa a ser fundamentado por uma concepção de "educação dialógica". A partir desse fundamento, o curso deverá ser desenvol- vido, essencialmente, através de debates, discussões e troca de idéias, estabelecendo-se, assim, uma relação em que o trabalho será feito "com" o aluno e não "sobre" o aluno. E em decorrência dessa concepção aparece, naturalmente, a proposta de maior participação do aluno na estrutura acadêmica (D.R.B.C., 197 1). Era a proposta de um encaminhamento conjunto -professores e alunos - ao longo de todo o processo de formação profissional.

48 Após a formulação do novo contexto da formação profissional, e definida toda a con- cepção teórica que a fundamentará, é que o grupo define o perfil do novo assistente social. A partir dos anos 70, o profissional que se quer formar é aquele que:

tenha uma visão integral da realidade e postura consciente frente à mesma; seja capacitado com instrumental analítico e operacional que permita uma atuação profis- sional cientljcica eficiente; esteja consciente de sua condição de profissional atuante em uma realidade que exige uma atitude constante de pesquisa, busca, elaboração e reelaboração; seja responsável frente à sociedade em seu compromisso de transformação, e à profissão no compromisso de construção teórica. (D.B.R.C., 1971, p. 13)

O estudo do referencial teórico apontado como fundamental para a formação desse no- vo assistente social leva, necessariamente, a uma análise dos programas de ensino desse perío- do. Nesses programas observa-se que as disciplinas de Filosofia e Ciências Sociais tinham seus conteúdos centralizados em questões que permitiam aos alunos o conhecimento da realidade brasileira como uma sociedade formada por classes antagônicas, inseridas num contexto de de- pendência e subdesenvolvimento frente à conjuntura internacional.

Enquanto um dos objetivos dessareestruturqão curricular consiste em formar uma vi- são dialética da sociedade, os dois primeiros pontos desse referencial teórico oferecem os subsí- dios necessários para essa formação e trazem para a Escola um novo tipo de textos e autores.18 O terceiro e último ponto desse mesmo referencial teórico - o que fundamenta a concepção de ensino e aprendizagem - definia uma concepção de ensino em que o diálogo constitui o ponto central e permanente na relação entre professor e aluno. Partindo dessa definição, toda estrutura

Entre outros: Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Raimundo Faoro, Francisco Weffort, Nel- son Werneck, Cktávio Ianni, Henri Lefebvre, Marta Harnecker, Adolfo Sanchez Vasquez e Louis Althusser, além dos ca- dernos do CEBRAP.

~ h d . serv. soc., Belo Horimnte, v. 2, n . 2, p. 25-71, out. 1997

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de ensino deverá estar pautada numa postura de diálogo, através do qual haverá uma real in- teração entre professor e aluno.

Nesse contexto, inexistirá a predominância do professor sobre o aluno. Ora, uma con- cepção em que ambos -professor e aluno - se colocam como sujeitos da mesma ação traz im- plícita a proposta de pôrfim a uma estrutura de ensino bancário. O documento defende ainda a maior participação do aluno no processo educativo. Sabe-se, porém, que o diálogo, a interação sujeito-objeto, os questionamentos à educação bancária e a participação são questões apresen- tadas, defendidas, definidas e fundamentadas no pensamento de Paulo Freire.

Após aelaboração do referencial teórico de sustentação, e delineado o perfil do profis- sional que se quer formar, aparece a estrutura curricular que dá corpo à formação teórica. Essa estrutura compõe-se de três etapas distintas e bem delineadas: do conhecimento, da experimen- tação e verificação, da avaliação e generalização.

Na primeira etapa, o aluno estará em contato com o conjunto teórico que lhe dará os subsídios necessários ao conhecimento e à análise da realidade, bem como as formas de inter- venção junto a essa realidade. É uma etapa teórica.

A segunda etapa da formação-experimentação e verificação corresponde ao contato direto com a realidade, através da prática de estágio. Esse contato com a realidade oferecerá um tratamento profissional orientado e permitirá o levantamento de dados que levarão a uma ge- neralização e a uma nova teorização.

É, porém, na terceira etapa dessa formação - avaliação e generalização - que o aluno terá a oportunidade de retomar o seu processo de formação e, através da organização e sistema- tização dos dados, chegar à conclusão global sobre sua formação escolar. Estará contribuindo, 49 assim, para a construção de uma teoria profissional. (D.R.B.C., 1971)

Essa estrutura de currículo apresentada no documento mostra uma coerência com a concepção de conhecimento científico expressa pelo grupo. A estrutura da formação profissio- nal é organizada de modo a fazer com que o aluno possa viver todo o processo de conhecimento científico. No final do processo de formação, o aluno teria então condição para não só contribuir na construção dos conhecimentos específicos da profissão como também intervir junto à reali- dade social. É essa estrutura curricular que, implantada em 1972, iria operar mudanças radicais na Escola mineira.

A proposta então elaborada exigia uma ampliação dos campos de estágio coordenados pela própria Escola, os quais passam a ser os campos preferenciais e experimentais da prática acadêmica. O Método BH, que já vinha sendo aplicado emdeterminados campos, era agora uma proposta de trabalho para todos os setores de estágio.

Para a sustentação e a garantia de que a prática de estágio se desenvolveria dentro dos moldes propostos, foram organizadas as chamadas equipes de prática, que contavam com apar- ticipação de professores de Serviço Social e também de professores das várias áreas das Ciên- cias Sociais. A finalidade dessas equipes era a de orientar o estágio realizado pelos alunos. Outra modificação ocorrida foi a participação de alunos em comissões paritárias em toda a estrutura administrativa da Escola. É o momento em que o grupo assume, na prática, a proposta de "um projeto de formação profissional encaminhado diretamente por professores e alunos". (Entre- vista 0 )

Se a implantação desse novo currículo traz sérias modificações na estrutura acadêmi- ca, essas mudanças ocorrem também quanto ao conteúdo ministrado pelas diferentes discipli- nas. Um exame mais detalhado dos programas de ensino desse período mostra que as dis- ciplinas de Ciências Sociais e Filosofia proporcionam aos alunos um estudo teórico que traz,

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para a Escola, autores que possibilitam a criação de uma nova estrutura de pensamento. Isso permite a formação de uma nova visão de mundo e uma nova concepção de sociedade. Se essas disciplinas formavam uma nova concepção de sociedade, as disciplinas de Serviço Social tra- tavam das questões específicas da profissão.

No conjunto desses programas de Serviço Social, observa-se a exigência de discipli- nas que proporcionam o estudo das questões mais gerais da profissão, procurando sempre situá- la no contexto histórico da sociedade. A referência bibliográfica estava centralizada em autores como: Ezequiel Ander-Egg, Boris Alex Lima, Norberto Alayon, Adolfo Sanches Vasquez e Karel Kosik. Além dessas disciplinas, existem também aquelas que têm por finalidade estudar as questões mais específicas, voltadas para formas de intervenção na realidade. É através delas que os alunos iam estudar de modo mais detalhado os elementos e as etapas que fazem parte da metodologia de ação. E a referência bibliográfica era sustentada por autores latino-america- nos que tinham seus textos publicados pelos editoriais argentinos ECRO e Humanitas. Além disso, os textos de Paulo Freire estavam sempre presentes.

O estudo desses programas de Serviço Social no seu conjunto mostra que apesar de os autores latino-americanos marcarem sua presença como os autores mais lidos pelos alunos, essa presença aparece de forma alternada. O mesmo, entretanto, não ocorre com o Método BH, que estava presente em todos os programas de Serviço Social como um dos textos básicos. É, portanto, através da produção teóricade Paulo Freire e dos autores latino-americanos que fazem parte do Movimento de Reconceituação que os alunos apreendem as grandes questões pro-

50 postas pelo Método BH: o compromisso com as classes populares, a assessoria técnica e política aos trabalhadores, o desenvolvimento dos processos de conscientização, organização e capa- citação.

Ora, se a proposta que gerou toda essa reformulação na estrutura da formação pro- fissional tem como um dos objetivos formar uma nova visão de mundo e uma nova concepção de sociedade, criando assim as condições necessárias para o exercício de um novo tipo de prá- tica, o currículo então em vigor tinha no Método BH o seu ponto de sustentação. O BH era, sem dúvida alguma, o eixo central de todo o projeto de formação dos novos assistentes sociais.

Esse projeto de formação vai, portanto, a partir de 1972, criar um novo contexto na Es- cola de Belo Horizonte. O Método BH, que começava também a ser implantado em todos os campos do estágio, completava o círculo necessário a esse processo de formação. Novos são os tempos para a formação dos assistentes sociais mineiros, devido às perspectivas do Mo- vimento de Reconceituação. Parece mesmo que todos os caminhos traçados nessa nova con- juntura levam a um único fim: a implantação de um projeto de formação profissional que pri- vilegia aparticipação e a construção de uma prática teórica como o ponto central de todo o curso.

Nesse contexto, os alunos passavam a conviver com todas essas questões teórico- práticas que compunham a única proposta de formação e ação para o Serviço Social. Essa linha radical de conhecimento e ação, sem outras alternativas teóricas, levava fatalmente àconclusão de que só a ruptura radical da estrutura social faria reverter o quadro existente. Uma conjuntura que conduzia a um único e determinado fim: "a transformação da sociedade e do homem". (UCMG, 1974, p. 19; ISI n. 4, 1976, p. 109; Santos, 1982, p. 40)

Como documento básico da formação profissional naquele período, o Método BH não só definia os objetivos da ação profissional como também apresentava um processo metodo- lógico através do qual procurava desenvolver esses objetivos. Era ele o método que sustentava toda a prática de estágio nas instituições durante esse período.

A Escola de Belo Horizonte seguia assim os anos 70. As disciplinas de Serviço Social,

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sustentadas pela produção teórica do grupo latino-americano que encabeçava o Movimento de Reconceituação, traçavam as diretrizes da ação dos assistentes sociais. A necessidade de um Serviço Social próprio para a realidade da América Latina levara aqueles autores à elaboração dos objetivos profissionais. Entre eles, os mais estudados naquele período são:

QUADRO DEMONSTRATIVO Objetivos da Ação Profissional

A partir do quadro acima, observa-se que o resultado final desejado da ação dos assis- tentes sociais vem a ser a libertação dos homens, através da transformação radical das estruturas da sociedade. É para a consecução dessa meta final que aparecem a conscientização e a par- ticipação como objetivos-meios, e também específicos, do Serviço Social. Ora, tanto a cons- cientização, a participação, a libertação e a transformação são conceitos contidos no ideário de Paulo Freire. Dos objetivos então elaborados apreende-se "o desafio da escolha moral", a refe- rência ao "dever ser" que tem sua causa no "caráter público" da ação profissional. Público no "sentido de dizer respeito a outros. Não é uma escolha para si, mas para a comunidade dos ho- mens e, conseqüentemente uma escolha moral". (Karsch, 1987, p. 112)

Porém, se esses objetivos são exeqüíveis ou não, através do trabalho profissional, a história do Serviço Social nas últimas décadas já contou. Cabe, agora, verificar em que esses objetivos diferem dos objetivos tradicionais do Serviço Social. Se aqueles - os tradicionais - propunham "melhores condições de vida", através da adaptação e do ajustamento dos indi- víduos à sociedade, estes, por sua vez, propõem homens capazes de efetivá-las através da trans- formação. No nível ético são ambos -tradicional e reconceituado - objetivações de valores na direção da humanização do homem e da sociedade.

Se desde suas origens a essência da ação do Serviço Social propõe a humanização do homem e da sociedade, observa-se aqui a permanência dessa essência. O que muda, porém, são os modos agora estabelecidos para se chegar à "verdadeira" humanização do homem e da socie-

Autor

Norberto Alayon

Boris Alexis Lima

Ezequiel Ander Egg

Método BH

Cad. sem. soc., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 25-71, out. 1997

Objetivo

"Estabelecer programas de ação que tenham uma função cons- cientizadora e dinamizadora, para promover mudanças estrutu- rais em nossa sociedade". (Alayon et al., 197 1, p. 96)

"A conscientização, politização, organização, mobilização e participação do indivíduo em busca da libertação". (Lima, 1978, P- 80)

"Desenvolver uma ação social com uma função conscientizado- ra-libertadora, que contribua para transformações estruturais, mediante a tarefa organizacional e a realização de projetos espe- cíficos". (Ander-Egg, 1973, p. 62)

"A transformação da sociedade e a realização do homem sendo objetivos-meios: a conscientização, a capacitação e a organiza- ção". (UCMG, 1974: 19; ISI n. 4,1976: 109; Santos, 1982, p. 40)

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dade. E apropostapolítico-revolucionária, implícita nos objetivos traçados, aponta para a trans- formação das estruturas da sociedade como sendo a única forma de se construir uma sociedade mais justa e mais humana.

Esse modelo de formação, iniciado em 1972, chegava a 1975. E naquele ano, a Escola seria marcada pelo movimento de paralisação dos alunos, momento singular da história do Ser- viço Social. É o que se pretende ver em seguida.

1975: o movimento dos alunos O ano de 1975 possui um significado especial para a Escola de Belo Horizonte e, con-

seqüentemente, uma influência ainda maior para a formação dos assistentes sociais mineiros. Os dados que permitem essa afirmação são fundamentados nos depoimentos de professores, alunos e supervisores que viveram aquele período. Esses depoimentos mostram que os fatos decorrentes do modelo de formação adotado a partir de 1972, iam se desenvolvendo lentamente, fazendo com que em 1975 a Escola apresentasse um quadro muito próprio no contexto da Universidade.

Era o processo que punha fim ao projeto de formação profissional iniciado em 1972. Para entender o momento vivido na Escola em 1975, foi necessário resgatar alguns fatos que ocorreram ao longo dessa primeira metade dos anos 70.

O modelo de ensino adotado possuía algumas características bem específicas: a par- ticipação de alunos em todos os níveis da estrutura pedagógica e administrativa, a formação das equipes de prática,I9 o ensino teórico e prático centralizado na aplicação e implantação do Méto- do BH nos campos do estágio. Esse quadro da formação profissional, por um lado, juntamente com a estrutura universitária e a conjuntura política do País, por outro, vai formar o primeiro conjunto de dificuldades que levam ao movimento de 1975.

O Método BH, que passa a ser ensinado e aplicado de forma experimental junto a gru- pos operários (ISI n. 4,1976; Santos, 1982), apartir de 1972, vai, pouco apouco, sendo introdu- zido em outras comunidades. A medida, porém, que essa experiência vai sendo ampliada e o trabalho de comunidade passa a ter prioridade sobre os demais campos de estágio, as comuni- dades passam a ser as áreas mais procuradas pelos alunos. E aqui aparece a primeira grande di- ficuldade no contexto da Escola.

Se a comunidade passa a ser o campo preferencial de prática, a Escola, por sua vez, não possui as condições necessárias para oferecer aos alunos o local adequado para o exercício dessa prática. O quadro de estágios oferecido continua sendo aquele de sempre: os hospitais, as empresas, as escolas, as instituições de bem-estar e assistência.

Com relação a esse conjunto de estágios em oferta, havia, naquele período, uma ter- minologia própria que definia e diferenciava os campos: "eram os estágios de conzunidade e os estágios institucionais" (Entrevista N). Eram, portanto, chamadaspráticas de comunidades todas as práticas cujo campo era selecionado, através dos critérios apontados pelo Método BH, como área prioritária de ação. (UCMG, 1974; ISI n. 4, 1976; Santos, 1982)

Estavam entre eles as associações de moradores de bairro, os conjuntos habitacionais, os centros sociais e postos de saúde, além dos campos mantidos pela própria Universidade. Po- rém, mesmo sendo considerados "trabalhos comunitários, aquelas instituições de atendimento à periferia passavam por uma seleção bastante cuidadosa" (Entrevista S). Para que o Método BH fosse implantado ali, era preciso que fosse uma área "habitada por trabalhadores do setor

Iy "Equipe de Prática": grupos formados por professores de diferentes áreas, a saber: filosofia, economia, política, Serviço So- cial, e alunos de 8"período. Tinham porobjetivo supervisionar e orientar0 estAgio procurando estabelecer acorrelaçãoentre teoria e prática através do Método BH. (Entrevistas N e O)

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industrial. Os trabalhadores da construção civil, inclusive, não eram considerados; nem as fave- las, porque estas eram formadas por biscateiros. Havia como que uma divisão bem acentuada entre a favela e o bairro operário". (Entrevista S)

A ênfase na implantação do Método BH e apriorização do trabalho de comunidade pa- ra a execução de seus objetivos proporcionavam certa euforia do trabalho comunitário, que pas- sava, conseqüentemente, a ser o campo mais procurado pelos alunos. Sua oferta, entretanto, era sempre menor que a procura. Apesar disso, a seleção continuava, tanto com relação às comuni- dades para implantação do Método BH, como aos alunos que seriam a elas encaminhados. Se- gundo o depoimento de um dos supervisores, nos contatos que tinha com os orientadores na- quele período ficava claro que o objetivo era mostrar que com o trabalho "direto junto aos operá- rios era possível fazer a transformação". (Entrevista S)

Sendo os campos preferenciais as comunidades, todos os estágios que não se enqua- dravam nos critérios de área prioritária do Método BH recebiam a denominação de estágios ins- titucionais. Nesse tipo de estágio estavam enquadradas todas as práticas exercidas nos hos- pitais, nas escolas, nas empresas e nas várias instituições de assistência e bem-estar.

Um estudo detalhado dessa terminologialeva a uma questão básica, que torna bastante superficial essa separação formal. Isso porque existe aí uma característica que une, e ao mesmo tempo diversifica, esses dois campos de ação. O raciocínio é o seguinte: se consideramos como instituição todo sistema social objetivamente existente, tendo em vista finalidades prefixadas, podemos então afirmar que todos os campos de estágio oferecidos pela Escola, naquele perío- do, são instituições que formam o grande mercado de trabalho do assistente social. Ora, se tudo é instituição, não existe diversidade entre comunidade e instituição. E é esse, portanto, o fator que une os diferentes campos de estágio.

Por outro lado, porém, o trabalho de comunidade permite que o profissional usufrua,

53 "em tese, de maior autonomia de ação, dada a distância do controle direto sobre suas atribui- ções e seus objetivos" (Karsch, 1987, p. 57), enquanto que, nas escolas, empresas e hospitais, por exemplo, os assistentes sociais possuem pequena, ou nenhuma autonomia de ação. E isso porque eles estão aqui, muito mais próximos do sistema de poder e controle da instituição. Esse fator exerce influência direta sobre suas atribuições e seus objetivos profissionais. São, portan- to, essas questões que fazem caracterizar a diferença existente entre os estágios de comunidade e os estágios institucionais.

Apesar de priorizar o trabalho em comunidade, e sem poder oferecer a todos os alunos as condições propícias e necessárias para desenvolver tal estágio, a Escola continuava fazendo o encaminhamento para as várias instituições. Desse modo, os alunos iam para o campo, comu- nidade ou instituição, com uma única proposta de ação: a do Método BH. A finalidade da ação era sempre a mesma para todos os níveis de abordagem: o caso, o grupo e a comunidade. E o processo, também, era sempre o mesmo: a cada problema encontrado, o profissional deveria "ampliar a discussão para um âmbito mais geral e conscientizador" (Entrevistas N e O), bus- cando com o cliente as possíveis alternativas de solução.

Porém, no contexto da prática, essa proposta nem sempre era viável, e as dificuldades estavam centralizadas num ponto comum a muitas instituições: "Como fazer a conscientização através do atendimento de casos, num plantão que o aluno fazia na instituição, ou mesmo na- queles onde ele ia fazer a distribuição do leite, por exemplo?" (Entrevistas N e O). Essa era, na verdade, a grande questão, um dos maiores problemas para os alunos. Aqueles que trabalha- vam no atendimento de casos ou nos plantões, tentavam encontrar as formas de fazer a "consci- entização em nível individual. E nessas instituições os supervisores estavam sempre fazendo

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reuniões e questionando o trabalho dos estagiários" (Entrevista N). Se os alunos sentiam difi- culdades de implementar na prática aqueles objetivos, os supervisores também não sabiam co- mo fazer. No atendimento de casos ou no plantão, era uma prática impossível, pois o que a insti- tuição pedia era que os assistentes sociais fizessem uma triagempara selecionar os "mais neces- sitados entre os necessitados" (Entrevista U). Os profissionais tinham que "dar uma resposta imediata clientela". (Entrevista U)20

Porém, se essa era uma dificuldade concreta para quem atendia ao plantão, o trabalho junto a determinados grupos não parecia mais fácil. Nos grupos de mães existentes nas escolas de excepcionais dificilmente se conseguiria chegar à discussão dos problemas de infra-estru- tura. O "nível cultural daquelas mães era tão baixo que as discussões tinham que ser desen- volvidas a partir de questões muito concretas. As maiores abstrações que se conseguia fazer caíam sempre na esfera do relacionamento familiar. Nunca além disso". (Entrevista T)

No entanto, isso era tudo que a Escola tinha para oferecer em forma de estágio. Sele- cionados os alunos para atuar junto às comunidades, os outros alunos eram encaminhados para as instituições.

A conjunção de alguns fatores apontados até aqui - a divisão entre estágio de comuni- dade e estágio institucional, a ênfase no trabalho comunitário como campo prioritário para o Método BH, a cuidadosa seleção desses campos e dos alunos que nele atuariam, e, ainda, as di- ficuldades dos alunos em implementar nas instituições os objetivos do Método BH - faz sur- girem algumas dificuldades na relação entre Escola e meio profissional.

54 Em princípio, a própria ênfase dada à implantação do Método BH e o compromisso

com o êxito do trabalho nas comunidades levam a um afastamento, um distanciamento, entre os professores orientadores e os assistentes sociais que atuavam nas instituições. Esse "distan- ciamento era captado indiretamente pelos supervisores, que comentavam sempre" (Entrevista S). Por outro lado, os alunos, quando chegavam nessas instituições, não escondiam o fato de que "haviam sido encaminhados para aquela instituição que era conservadora e não tinha um compromisso com as classes populares no sentido de transformação da sociedade". Eles afir- mavam sempre que "sabiam a priori que num contexto de prática conservadora a Escola não ia cobrar deles a operacionalização do Método". (Entrevista S)

Essa questão aumentava gradativamente o distanciamento entre a Escolae o meio pro- fissional, ao mesmo tempo em que fazia surgir um novo tipo de divisão. Os assistentes sociais das instituições "passam a ser vistos como conservadores, e aqueles que atuavam nas comuni- dades a nível de implementação do Método BH eram os reconceituados" (Entrevista S). Tal vi- são, captada direta e indiretamente por alunos e supervisores, passava a ser um rótulo carregado por esses últimos. E as conseqüências disso vão, cada vez mais, aumentando a distância jáexis- tente entre a Escola e o meio profissional.

Conscientes dessas questões, o meio profissional procurava encontrar novas alterna- tivas de trabalho. As entrevistas realizadas com os supervisores mostram que, com a orientação da Escola, aqueles profissionais tentavam desenvolver um trabalho comunitário, a partir de sua prática institucional então limitada: o atendimento de casos. Uma vez estudados os casos, os profissionais organizam grupos para discutir as questões macroestruturais. Das experiências re-

zo [...I em nível do atendimento de plantão era impossível desenvolver esses objetivos. Afinalidade espec@ca do plantão era fazer uma triagem para conceder os recursos que a instituição oferecia. Para isso, todos nós tínhamos de selecionar os mais necessitados entre os necessitados. E tudo, dentro de um tempo muito curto para cada entrevista, e o número de profissionais era sempre muito pequeno para atender a uma fila muito grande. A exigência da instituição era sempre de maior número de atendimento. Era a obrigação da estatística do trabalho realizado. Era dar resposta imediata d clientela. Como fazer aí qualquer tipo de análise?. (Entrevista U )

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latadas pelos supervisores, duas são muito ricas e apontam para novas dificuldades. Se a pri- meira não consegue grandes avanços,2' a segunda cria novas formas de atendimento ao menor, num processo que, a partir dos casos não atendidos no plantão, consegue implementar um tra- balho em nível de comunidade e, através deste, uma nova alternativa de atendimento ao me- n ~ r . ~ *

Se essas eram algumas das experiências desenvolvidas pelo meio profissional, a Es- cola, por sua vez, continua buscando novas formas de implementar o Método nas instituições. Segundo alguns depoentes, uma nova proposta de encaminhamento era fazer com que os alunos pudessem implementar o método através daquelas instituições que atendiam aos trabalhadores de modo específico. O Método seria testado ali, "no sentido de discutir com o operário o benefí- cio que estava recebendo e encaminhá-lo para as organizações existentes em sua comunidade" (Entrevista S).

Para a viabilidade dessa proposta, era preciso que os supervisores tivessem condições de ajudar o aluno na sua tarefa. E para tanto, aqueles supervisores "que tivessem maior abertura política deveriam procurar um contato mais próximo com a Escola" (Entrevista S). Porém, ao planejar essa nova linha de trabalho, os professores iniciavam, mesmo sem saber, uma nova subdivisão no meio profissional: a ideológica. E isso ocorria a partir do momento mesmo em que os professores acentuavam o critério ideológico, deixando em segundo plano aqueles su- pervisores que não se identificavam com aquela proposta ou não conseguiam abrir canais ins- titucionais que dessem viabilidade à sua execução. E desse modo, o distanciamento entre Es- cola e meio profissional crescia, na mesma proporção em que avançavam a implantação e o for- talecimento do novo modelo de formação profissional. 55

A partir de um levantamento dos prontuários dos excepcionais atendidos pela instituição, o assistente social forma um novo grupo de pais, agora organizado pela maior concentração de casos provenientes de uma determinada região. E as reuniões passam a ser realizadas em uma escola situada num bairro de fácil acesso para todos os participantes. A finalidade "era pro- curar discutir com esse grupo os principais problemas da realidade estrutural, a partir da relaçiío com os movimentos co- munitários" (Entrevista T). Mas, iniciado o trabalho, aparecem novas dificuldades: o fato de ser um assistente social que só atendia os casos que chegavam à instituição dificultava o conhecimento dos problemas do bairro; além disso, um grupo for- mado por elementos de bairros diferentes impedia que o profissional pudesse "visualizar com eles saídas comunitárias" (En- trevistaT). Por outro lado, oenfoque psicológico exigido pela própria natureza do trabalho dainstituição-aexcepcionalidade do menor - e o distanciamento existente entre a Escola e o meio profissional fazem com que a experiência tenhaum período muito curto de vida.

22 A partir de um levantamento dos casos não atendidos no plantão, os profissionais elaboramum plano de trabalho para atender a essa população no seu próprio contexto de moradia. Por isso, a comunidade selecionada é aquela de onde provém maior demanda. Tendo o plano aprovado pela instituição, os profissionais se introduzem no bairro - uma favela - através das ins- tituições e lideranças ali existentes. A Escolaconcede uma estagiária e começaadar orientação. Com esses elementos aequi- pe organiza uma pesquisa participante, tendo como ponto central o levantamento dos problemas relativos aos menores ali residentes. Feita acodificação, começaum trabalho degrupoqueenvolve todososelementos contactados na pesquisa. Inicia- se, entiío, um processo exaustivo de discussão dos problemas encontrados: prostituição, uso de drogas, violência, roubo. Co- mo conclusão, o grupo aponta a faltade emprego para o menor como o agente gerador de todas essas questões. A partir disso, os profissionais elaboram um plano que possibilita criar uma fonte de emprego para esses menores e a instituição aprova o plano em conjunto com alguns órgãos públicos. Um trabalho onde o menor irá tomar conta de carros particulares em deter- minadas ruas dá cidade. ~niciado esse trabalho, aparecem novos problemas, que vêm engrossar a lista daqueles já detectados na comunidade da aual urovêm esses menores: o abandono da escola uelo trabalho. o suborno e a violência do usuário sobre . . o menor, a corrupção dos menores pelos monitores (universitários que coordenam essas áreas), entre outros. Os assistentes sociais passam a "refletir com os menores sobre esses problemas, fazendo as devidas correlações com seus problemas fa- miliares. Eles começam então a perceber as ligações existentes e passam a fazer reivindicações à instituição. Isso, natural- mente, começa a incomodá-la e o nosso trabalho passa a ser controlado" (Entrevista U). Para o Natal daquele ano foi or- ganizado com um grupo de 15 menores uma peça de teatro que "tinha por finalidade sensibilizar a cúpula da instituição para a problemática familiar desses menores e mostrar sua influência no trabalho. O roubo, a droga que vendiam serviam sempre para suprir a dificuldade financeira. No final da peça, todos eles assentados, discutiam o sentido do Natal, relacionando-o com sua realidade, efaziam um pedido, uma reivindicação àinstituição. Nessaépocaogrupo de técnicos, que já havia sofrido algumas alterações impostas pela presidência, passou a ser substituído pouco a pouco. Apesar disso, eu hoje encontro aqueles menores, hoje maiores, e vejo feliz que todos eles estão engajados em algum tipo de movimento ou de luta política". (En- trevista U)

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Mas, não era só isso. O novo procedimento fazia surgir novas dificuldades. É que aque- les alunos "selecionados para as instituições", ou mesmo aqueles que "procuravam as institui- ções eram exatamente aqueles que estavam em sintonia com aquele tipo de prática. Eram exa- tamente aqueles que queriám aprender o fazer das instituições". (Entrevista S)

Essa questão, captada pelos alunos, formava entre estes um novo tipo de rotulação: eram considerados alienados "aqueles que iam para as instituições, enquanto aqueles que ti- nham uma revolta contra o sistema e queriam criar um espaço alternativo de trabalho eram re- conceituados". (Entrevista S)

Mas, se por um lado, essas questões que circulavam no meio profissional criavam um clima de insatisfação entre supervisores e alunos, por outro, o grupo de professores continuava com a certeza da viabilidade do Método BH.

Apesar das dificuldades, a grande maioria dos alunos continuava exigindo da Escola estágios de comunidade onde pudessem implementar os objetivos propostos pelo Método BH. Entretanto, a inexistência de campos suficientes para cobrir a demanda desses alunos fazia com que um maior número deles fosse encaminhado para os estágios institucionais. E estes, por sua vez, ali chegavam com a idéia de implementar os

objetivos do Método BH de conscientização, de organização e de capacitação, que perma- neciam na cabeça da gente como um tripé, tendo sempre a transformação da realidade social como objetivofinal. E isso nós queríamos concretizar a qualquer custo no caso, no grupo e na comunidade. O conceito de conscientização, inclusive, era muito numa linha de Paulo Freire. (Entrevista N )

Conscientes de que a sociedade brasileira reclamava transformações estruturais, e im- buídos dos ideais da conscientização, da mobilização e da organização, aqueles alunos tinham uma missão a cumprir. Cientes de sua tarefa, passavam então a querer "ver isso acontecer. O que nós queríamos mesmo era arelação da teoria com aprática" (Entrevista O). Iniciava-se, en- tão, uma fase de cobrança da união entre a teoria estudada e a prática realizada; a cobrança de ver concretizada a finalidade almejada e nunca alcançada: a transformação das estruturas da so- ciedade.

Para esses alunos, entretanto, as dificuldades eram muitas. Se aqueles que eram enca- minhados para as instituições pela própria inexistência de vagas nas comunidades, encontra- vam ali dificuldades de implementação de seus objetivos profissionais, aqueles que eram se- lecionados para as comunidades encontravam, também, algumas barreiras. E, entre elas, estava a própria fundamentação teórica oferecida pelo Método BH.

A estrutura curricular do Método BH oferecia uma sólida fundamentação para a ela- boração de uma análise de conjuntura e para uma visão da macroestrutura da sociedade. Mas era, ao mesmo tempo, um conjunto teórico muito frágil para explicar a prática do Serviço Social no contexto da sociedade. Faltava o apoio teórico necessário à explicação das atividades coti- dianas do Serviço Social. Havia, então, sempre uma dificuldade do tipo: "Como explicar a bri- ga de uma comunidade por um poço artesiano lá dentro? Nós não tínhamos uma teoria que fi- zesse essa ligação, que possibilitasse uma aproximação concreta da realidade, uma prática con- seqüente. Nossos professores também não sabiam como fazer". (Entrevista O)

Mas, se esse contexto de prática caminhava, passo a passo, nessa primeira metade dos anos 70, como eram encaminhadas as questões teóricas que subsidiavam essa prática?

O estudo dos depoimentos mostra que as disciplinas de Serviço Social eram susten- tadas pela ênfase no fato de que a "Reconceituação não aceitava a estrutura do caso, do grupo

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e da comunidade" (Entrevista N) como unidades distintas de trabalho. Tais questões eram sem- pre estudadas através das críticas já elaboradas pelo Movimento de Reconceituação.

O aluno, por sua vez, não tinha acesso nem oportunidade de buscar os textos originais e apreender por si mesmo toda a dinâmica da história da profissão, formando assim seu próprio conceito. Um deles, inclusive, afirma: "Eu nunca tive acesso a Mary Richmond. Eu fui infor- mada por uma apostila, onde se fazia uma crítica sobre o Serviço Social de casos" (Entrevista O). Era essa a forma de apresentar a negação do Serviço Social de casos e, conseqüentemente, do grupo e da comunidade. Era a negação da prática dos assistentes sociais na sua versão tra- dicional. A própria negação do Serviço Social desde as suas origens.

Frente a esse contexto de questionamento, de crítica e de negação da prática tradicio- nal, o que a nova teoria do Serviço Social apresentava em contraposição era a afirmação de que "o assistente social precisava ter em mente os objetivos profissionais" (Entrevista N). Era só a partir da clareza desses objetivos e dos elementos constitutivos da ação que os passos meto- dológicos ajudariam na concretização dos objetivos profis~ionais.~~

O mesmo raciocínio era aplicado, também, ao instrumental de trabalho. O mais impor- tante era ter uma boa fundamentação teórica. A partir daí, "o instrumental você cria na sua prá- tica" (Entrevista O), dentro das necessidades e do contexto de cada situação encontrada. É, ain- da, no âmbito dessa formação teórica que aparecia um terceiro elemento, também básico, da ação profissional: "a denúncia do caráter ideológico da profissão como mediadora do capitalis- mo" (Entrevista O). Completava-se, assim, o conjunto de questões básicas da ação profissional até antão assimiladas e que, agora, passavam a ser negadas como "o fazer" do Serviço Social.

Retirados a metodologia tradicional e o instrumental de trabalho, sob a acusação de 57 que mantinham-um compromisso de sustentação do capital, "a única alternativa que se tinha para pôr no lugar era o Método BH. Todas as questões metodológicas eram centralizadas nele. Tudo corria em torno dele" (Entrevistas O e P). E nas orientações de estágio o tema central era sempre o mesmo: as dificuldades de implantação do Método BH. A conjugação do ensino teó- rico-prático tinha, portanto, no Método BH o ponto central, a espinha dorsal de todo o processo de formação.

Dessa forma, a conjugação entre o ensino teórico e o ensino prático fazia com que o período fosse de "idéias bem quentes, gerando na Escola um clima de grande efervescência e politização. E a questão da transformação da sociedade, nesse período, era o que circulava por todos os movimentos de esquerda, organizados ou não" (Entrevista P). Ora, se a transformação da sociedade era um tema amplamente discutido pelos movimentos de esquerda, era, também, um tema amplamente discutido na Escola.

Para esse contexto teórico e prático, a concepção de sociedade passada pelas discipli- nas de Ciências Sociais deixava clara a visão de uma sociedade de classes antagônicas, onde o fundamento básico era a exploração do trabalho pelo capital. Dentro dessa concepção, a so- ciedade brasileira vivia de forma específica a miséria, o subdesenvolvimento, a dependência e a subordinação ao imperialismo norte-americano.

Pois bem, diante da visão de sociedade adquirida através das disciplinas de Ciências Sociais; das críticas h metodologia tradicional e pela proposta do Movimento de Reconceituação,

23 O que a Escola passava pra gente era que a Reconceituaçáo não aceitava a estrutura de caso, de grupo e de comunidade. O mais importante era a especificaçáo do Serviço Social. Daí, o assistente social precisava ter em mente os objetivosprojis- sionais, aquilo que ele tem de passar. Ele tinha que ter claro os elementos que constituem a açáo profissional, que eram: o objeto, os objetivos, a área de atuação. Se ele tivesse essa clareza, tinha os passos metodológicos que o ajudariam a con- cretizar seus objetivos. Com essas coisas dentro da nossa cabeça é que a gente procurava concretizar, a qualquer custo, esses objetivos nos três níveis de atuaçLio: no caso, no grupo e na comuniclade. (Entrevista N )

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assimiladas através das disciplinas de Serviço Social; da proposta de uma prática alternativa apresentada pelo Método BH, o que restava aos alunos senão lutar pela transformação?

Nesse contexto de formação, "lutar pela transformação da sociedade era exatamente assumir o Método BH com a proposta que ele trazia. Em nível estudantil, era estar participando de um processo de transformação da sociedade" (Entrevista P). Esse fato criava na Escola um clima de estudo, questionamento e participação permanentes. Era um período em que "havia inúmeros grupos de estudo, formados por professores e alunos. Era todo mundo acreditando na- quilo que estava fazendo: no projeto da Escola, nas experiências de prática, no Método BH". (Entrevista O)

Sendo essa a evolução natural da formação profissional naquele período, observa-se o processo de uma educação política desenvolvido no próprio âmbito da Escola. Todas as dis- cussões e debates eram realizados pelo coletivo de alunos no conjunto de toda a Escola. E na- quele contexto, muito embora "alguns líderes participassem de organizações políticas, além da Escola, a grande maioria dos alunos, a base mesmo,tinha a cabeça feita no nível das discussões sobre o Método BH e as teorias que o fundamentavam" (Entrevista P). Ali, os alunos passavam pelo seu próprio processo de conscientização, e tomavam para si a missão de prestar assessoria técnica e política, a partir de um trabalho de conscientização e de organização, onde quer que ocorresse sua prática. Era, portanto, naquele contexto de busca e conflito, de acertos e desacer- tos, de estudo e de questionamento, que a Escola caminhava para o ano de 1975.

Em 1974, o Encontro Regional da Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social - ABESS, realizado no mês de outubro em Goiânia, tinha a finalidade de "avaliar as disciplinas 5 8 de Metodologia e o Método BH" (Entrevista N). As reflexões e questionamentos levantados naquele encontro mostravam apreocupação do grupo mineiro em avaliar e fazer avançar aquela proposta de prática para os assistentes sociais. O processo de amadurecimento necessário ao Método BH e, conseqüentemente, do Movimento de Reconceituação latino-americano era re- fletido na preocupação de

procurar uma estruturação mais simples para a prática dentro do Movimento de Reconcei- tuação. O Método BH levava a um detalhamento bastante grande de suas etapas. Isso não da- va segurança. Nessa nova fase o Método deveria ser revisto no sentido de buscar uma sim- plificação para chegar a uma conjugação de ação-reflexão. Essa seria a nova fase. (Entrevis- ta N )

Porém, a avaliação feita e aproposta então elaborada parecem ter ficado restritas àque- le momento. De volta a Belo Horizonte, o semestre letivo continuava seguindo seu curso, muito embora incorporasse agora a nova linha de debate sobre o Método BH e o Movimento de Re- conceituação. Os alunos tinham, nas equipes de prática, o seu espaço permanente para debates sobre o estágio e a aplicabilidade do Método. E nesse mesmo espaço, começavam a exigir dos professores os modos e as formas de desenvolver na prática seus objetivos profissionais. Se "nos estágios de comunidade os alunos tinham condição de implementar os objetivos do Méto- do BH" (Entrevista N), nas instituições eles encontravam uma grande dificuldade.

Diante desse contexto, os alunos começavam a cobrar mais enfaticamente, de seus professores, as formas de fazer acontecer aqueles objetivos através da sua prática nas institui- ções. E nesse exato momento, aquelas reivindicações começavam a ultrapassar os limites das equipes de prática, estendendo-se por toda a Escola. Aquelas reivindicações vinham agora se transformando numa luta coletiva, então, assumida pelo Diretório Acadêmico - D.A. E o mo- vimento dos alunos em ascensão fazia sufocar e morrer lentamente os debates sobre a reestru-

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turação do Método BH. Segundo os depoentes, "a sensação que se tinha é que deveria surgir algo de novo. Mas, o movimento político do DA, que já vinha surgindo, vinha abafando todo o processo de amadurecimento daquela proposta da ABESS em 1974". (Entrevista N)

E o ano de 1974 terminava assim, com as exigências e reivindicações dos alunos que queriam ver efetivado, na prática, aquilo que aprendiam no nível teórico. Assim, o ano letivo de 1975 começava com uma grossa lista de questionamentos vindos do ano anterior; a ina- plicabilidade do Método BH nas instituições, sua fragilidade teórica na explicação do coti- diano, a impossibilidade de conjugar teoriae prática se destacariam entre as principais questões. Além dessas, apareciam agora novas questões, todas referentes ao contexto estrutural da pró- pria Universidade. .

Do ponto de vista dos alunos, a participação e o encaminhamento coletivo das questões administrativas e pedagógicas no âmbito da Escola vinham acontecendo de forma unilateral. A administração vinha deixando de lado a representação de alunos que atuavam junto a ela. O número restrito de estágios de comunidade - campo prioritário de aplicação do BH - e a pre- cariedade de recursos da Universidade disponíveis para a criação de seus próprios estágios for- mavam agora um novo conjunto de argumentos dos alunos.

Completando esse conjunto, os alunos do 8" período que desenvolveram suas primei- ras práticas de experimentação e implantação do Método BH chegavam à conclusão de que "na- da mais fizeram além do tradicional desenvolvimento de comunidade" (Entrevista O). Essa questão aparecia de forma enfática, a partir do momento em que os alunos começavam a siste- matizar sua prática de estágio.

Outro ponto levantado pelos alunos era a pouca disponibilidade dos professores que formavam as equipes de prática. Devido ao restrito contato desses professores com a Univer- sidade, o tempo disponível para a orientação e a discussão da prática com os alunos era sempre muito pequeno. Na visão destes, a pouca disponibilidade dos professores para orientá-los era um dos pontos básicos da dificuldade que encontravam para "estabelecer a ligação entre teoria e prática. A gente se apegava à figura do orientador para fazer essa relação. Mas, como fazer isso, se ele estava distante dessa prática?". (Entrevista O)

O Diretório Acadêmico - D.A., por outro lado, assumia como objetivo de sua ação po- lítica para 1975 exercer uma ação mais enfática e incisiva junto aos alunos. Sendo assim, todos os problemas e questionamentos passavam a ser discutidos em sala de aula através da coorde- nação do D.A. Nesse contexto, o D.A. torna-se o grande centro de debates e discussões das ques- tões vividas na Escola e suas assembléias contam com um número cada vez maior de alunos. O movimento estudantil cresce, na mesma proporção que avança o ano letivo. No decorrer do ano, aumentavam cada vez mais a frequência de realização de assembléias, o número de par- ticipantes, os questionamentos, as reivindicações. A Escola se torna um grande centro de dis- cussões e debates.

O primeiro semestre de 1975 chega ao fim com uma proposta firmada entre professo- res e alunos. Os alunos deveriam iniciar o segundo semestre letivo fazendo uma avaliação dos campos de estágio, enquanto a Coordenação de Ensino Prático faria as devidas negociações com a Reitoria no sentido de aumentar os recursos disponíveis para a Escola. O que se pretendia com isso era aumentar a disponibilidade dos professores orientadores, pois achavam os alunos que só assim poderiam ser efetivamente acompanhados no campo de estágio. Iniciado, porém, o segundo semestre, apropostanão foi levada aefeito. Os alunos aumentavam de forma enfática aprocura aos campos de estágio onde pudessem desenvolver o Método BH, mas a oferta desses campos permanecia a mesma.

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O contexto agravava-se, já a partir do início desse segundo semestre. As assembléias do D.A. assumiam um só objetivo: discutir as questões referentes ao estágio. O climaera sempre bastante tenso e a "questão era tão forte que os alunos de 3" e 4" períodos começaram também a participar das assembléias para ver a situação de estágio para eles a partir do 5" período". (En- trevista 0 )

O processo de discussão iniciado pelo D.A. no começo do ano desenvolvia-se de forma bastante acelerada no segundo semestre. Já emoutubro, toda aEscola estava envolvida na busca de soluções para os problemas. A comoção emocional era geral e o controle das assembléias pela diretoria do D.A. tornava-se cada vez mais difícil. O impasse era inevitável.

É nesse contexto que, nos últimos dias de outubro, os alunos em assembléia votavam a proposta de greve, "unanimamente aceita" (Entrevista O). A pauta de reivindicações elabo- rada nessa assembléia tinha como "reivindicação básica do movimento, da mobilização dentro da Escola, a disponibilidade do orientador para estar presente no campo do estágio" (Entrevista O). Essa pauta para negociação foi entregue à Diretoria da Escola, a quem foi dado "um prazo de 48 horas para conseguir da Reitoria uma resposta positiva às nossas reivindicações". (Entre- vista 0 )

Tendo em mãos as reivindicações dos alunos, a Diretoria da Escola fez uma reunião com a Reitoria e, logo em seguida, uma reunião de professores. Nessa reunião, os professores elaboraram um pedido de demissão coletiva. Embora havendo a presença de alguns alunos nes- sa reunião, os professores consideravam que a demissão era o caminho natural do processo, uma

60 vez instalado, pelos alunos, o estado de greve. Isso porque, com a proclamação da

greve, passava a haver uma quebra na proposta de administração coletiva iniciada em 1972. Com isso, os professores não viam mais viabilidade para a Escola. A conclusão era óbvia. Havendo o rompimento por parte dos alunos, não tinha sentido permanecer o grupo de pro- fessores. (Entrevistas O e P)

Estes dois fatos: a instalação da greve dos alunos e o pedido de demissão coletiva dos professores levam a Reitoria a fechar a Escola de Serviço Social. Qual é, porém, a visão dos di- ferentes grupos que se relacionam nesse contexto?

Do ponto de vista dos alunos, a causa básica de todos os problemas referentes ao es- tágio estava na pequena disponibilidade dos professores para a orientação dos estágios. Esse raciocínio fazia com que o primeiro e mais importante ponto da pauta de reivindicações fosse o aumento de horas para os professores orientadores. Com um contrato de trabalho que per- mitisse aos professores mais tempo para orientação, todos os problemas estariam solucionados.

Ao mesmo tempo, achavam os alunos que com essa reivindicação estavam

ingressando numa luta conjunta com os professores frente à Reitoria. O raciocínio, para nós, era muito claro. Se a gente se radicalizasse dentro de uma greve, os professores teriam todo o respaldo nas negociações com a Reitoria. Ela não teria como abrir a margem de barganha com a Escola e os professores teriam mais tempo para nossa orientação. Nosso objetivo era muito simples: melhorar as condições de trabalho dos professores e, conseqüentemente, as condições de ensino para o aluno. Com isso, fortalecíamos também o D.A. Paralelamente, é cla- ro, havia a idéia de fortalecer a Escola mais para a esquerda. (Entrevista O)

Nada disso, porém, foi entendido por muitas pessoas. Principalmente pelos professo- res. Se alguns eram a favor da greve dos alunos, a grande maioria era contra. Todos eles, en- tretanto, se demitiram conjuntamente. Para alguns desses mesmos professores a greve dos alu-

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nos era um movimento de direita, e o raciocínio aqui é bastante simples. Numa sociedade que vive um regime político militar e atravessa um período de grande controle e repressão política, um projeto acadêmico que traz uma proposta de transformação dessa sociedade fica caracteri- zado como um projeto de esquerda. Ora, "se o projeto é de esquerda e os professores são de es- querda, os alunos não concordavam com esse projeto transformados e rompiam com ele. Daí que os alunos, fazendo uma greve contra esses professores, só podem ser de direita". (Entrevista O)

Se os alunos não conseguem com a greve realizar o seu objetivo de apoiar a reivin- dicação dos professores, não conseguem também o apoio dos professores ao seu movimento grevista. A demissão coletiva causa grande impacto e gera indignação entre os alunos: "O re- fluxo da greve foi exatamente o oposto do esperado" (Entrevista O). Sem o apoio dos professo- res, e com a Escola fechada, os alunos do Serviço Social sustentavam sozinhos suaparalisação. Não contavam sequer com o apoio do movimento estudantil no âmbito universitário. "O movi- mento estudantil de Belo Horizonte era quase todo ele contra essa greve do Serviço Social". (Entrevista O)

Nemmesmo os Diretórios Acadêmicos das outras escolas dauniversidade, ou mesmo o Diretório Central dos Estudantes - DCE da própria UCMG deram qualquer apoio ao mo- vimento grevista do Serviço Social. Para todos esses grupos,

nossa greve também era de direita. Tudo porque nos anos de repressão os assuntos discu- tidos pelos universitários eram sempre as grandes questões do sistema: as prisões, as tortu- ras, a própria repressk em si. E nós estávamos preocupados com as questões do dia-a-dia do estudante, da Universidade. Para nós era muito claro que só conseguiríamos organizar os alunos a partir dos problemas vividos no âmbito da Universidade, da Escola. (Entrevista O) 61 A mobilização a que chegaram os alunos era resultado dos questionamentos feitos so-

bre a própria realidade na qual estavam inseridos: as condições existenciais vividas no âmbito de sua formação profissional. E a proposta de formar assistentes sociais comprometidos com o desenvolvimento de uma ação política transformadora, formulada pelo projeto acadêmico de 197 1, tinha já aqui uma resposta concreta.

Mas esse raciocínio estaria correto? O processo vivido em 1975 na Escola de Belo Ho- rizonte poderia ser fruto do projeto de formação e da assimilação dos novos objetivos traçados para a ação dos assistentes sociais? Os elementos entrevistados são unânimes em afirmar que sim.

Esta era, em síntese, a situação da Escola nos meses de novembro e dezembro de 1975: a paralisação total dos alunos e a demissão maciça dos professores. A Escola de Serviço Social estava oficialmente fechada.

Esse contexto, entretanto, surpreendia a todos os alunos. O impacto da demissão cole- tiva dos professores era tão grande que gerava um sentido oposto à procura inicial do movimen- to, causando "indignação e revolta por parte dos alunos" (Entrevista O). Porém, era "exatamen- te esse impacto que sustentava a greve" (Entrevista O). Surpresos e desnorteados diante do con- texto, os alunos passaram a pedir a reabertura da Escola, exigindo a volta dos professores.

Começava, então, uma fase de negociação direta entre os alunos e a Reitoria. Mas, se nas negociações com a Reitoria os alunos conseguem a reabertura da Escola, os contatos e as discussões com o grupo demissionário não trazem a mesma resposta: o grupo não estava dispos- to a voltar. Ao final de 15 dias de greve, sozinhos, os alunos sentiam que suas forças se esgota- vam. O "fôlego tinha acabado. Tínhamos conseguido que o Reitor reabrisse a Escola e que fos- se organizada uma comissão provisória para não invalidar o semestre. Aí então nós acabamos

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a greve". (Entrevista O) Paraessa retomada solicitada pelos alunos, a Reitoria organizou uma comissão que de-

veria implementar as atividades necessárias para que o semestre letivo fosse devidamente en- cerrado. A coordenação dessa tarefa foi entregue a uma ex-professora de Serviço Social que en- tão trabalhava em outro setor da Universidade.

Tendo por objetivo cumprir a função que lhe fora delegada,essa professora organizou um pequeno grupo, formado por assistentes sociais de campo e professores das demais escolas da própria Universidade. É esse o grupo que retoma provisoriamente a Escola e realiza com os alunos "vários seminários sobre teoria e prática, para que pudessem, assim, fazer as provas fi- nais e terminar o semestre letivo". (Entrevista M)

As atividades acadêmicas naquele ano eram encerradas com a presença de um grupo de intervenção. A Escola de Belo Horizonte vivia uma situação muito peculiar naquele mês de dezembro de 1975: alunos que retomavam de um processo de mobilização, ausência de um cor- po efetivo de professores e presença de uma equipe de intervenção provisória.

1976: A REABERTURA

As questões latentes e manifestas que ao longo daquele ano de 1975 dominavam a Es- cola de Belo Horizonte, e a sua posição na conjuntura universitária da sociedade brasileira dos anos 70, são as principais questões que põem fim ao modelo de formação profissional em vigor deste 197 1, levando a um redirecionamento daquele processo de transformação.

Se o ano de 1975 é considerado como um momento de ruptura, 1976 pode ser conside- rado como uma fase de retomada e de redefinição.

Os últimos acontecimentos do ano letivo de 1975 - a paralisação dos alunos, a demis- são coletiva dos professores, o fechamento daEscola, a intervenção, as negociações com a Rei- toria- levaram alguns alunos a procurarem pessoas que consideravam capazes de assumir o cur- so e a reabertura da Escola.

Já nessa fase aex-diretora, que desde 1972 trabalhava na Coordenação do Ciclo Básico na própria Universidade, começou a ser procurada por alguns alunos e, logo em seguida, pela própria Reitoria. Pediam aela que "reassumisse aEscola. A partir daí, apressão começou a cres- cer, nesse período de passagem de ano, e, no início de 1976, não havia mais opção. A minha proposta era a de que trouxessem de volta o grupo demissionário. Mas só me restou assumir". (Entrevista M)

Uma vez assumida a função, e já no início de 1976 era necessário formar uma nova equipe de professores. Nessa fase, foram convidados os "supervisores que participaram do pro- cesso de intervenção no final de 75 e que aí se destacaram pelo seu nível de questionamento e argumentação" (Entrevista M). Nesse mesmo período, "vários elementos do grupo anterior - demissionário - foram consultados e convidados a voltar. Mas disseram não, na sua grande maioria". (Entrevista M)

A partir desse momento, o pequeno grupo composto procurou os órgãos de classe e as chefias das grandes instituições. A finalidade básica desse contato era pedir "apoio e indica- ção de profissionais que pudessem compor o novo quadro de professores. A nossa intenção era a de que esses órgãos e o meio profissional assumissem junto conosco a reabertura da Escola". (Entrevista M)

Nos contatos estabelecidos o grupo recebeu todo o apoio solicitado. Aquelas institui-

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ções contactadas se dispuseram a buscar no seu quadro de funcionários os profissionais que pu- dessem compor o novo corpo de professores. No contexto institucional, o "critério utilizado pa- ra essa indicação foi o de eficiência e desempenho do profissional no âmbito daquela institui- ção" (Entrevista R). Esses profissionais estariam à disposição da Escola durante aquele perío- do, tendo seu lugar garantido na instituição. Poderiam, portanto, "retornar ao trabalho institu- cional no momento em que não quisessem mais permanecer na Escola" (Entrevista R).

Em contrapartida a esse apoio, as instituições contactadas pediam para "fazer retornar ao meio profissional as principais questões da formação. Criar formas de maior integração entre a Escola e as instituições. Era, mesmo, procurar estabelecer maior relação com a prática iasti- tucional. E, assim, nós assumimos a Escola em 1976". (Entrevista M)

Uma vez composta a equipe de professores, o início do semestre letivo foi adiado, para que o grupo se preparasse para assumir a nova tarefa. Foi uma fase de estudo intensivo, em que os professores não só se capacitavam como também procuravam elaborar as novas diretrizes da formação profissional. Nesse período, o grupo contou com a assessoria de professores de ou- tros departamentos da própria Universidade, professores da Universidade Federal de Minas Ge- rais - UFMG, além de alguns assistentes sociais de campo.

Segundo as conclusões do grupo, a diretriz básica do processo de formação profissio- nal deveria ser a de "proporcionar uma formação crítica" (Entrevista M). E, para o grupo, uma formação crítica consistia em "apresentar aos alunos as várias linhas de ação e dizer onde vai chegar cada uma. Era dar um forte fundamento da metodologia científica e, ao mesmo tem- po,não negar a prática profissional assistencial e institucional". (Entrevista M)

Tratava-se, portanto, de fazer uma conjugação entre o ensino do Método BH, da Re- conceituação, de todo o processo da metodologia tradicional e do trabalho institucional. Dessa forma, os alunos teriam condição de conhecer os diferentes meios de atuação agora propostos para o assistente social, conhecendo, também, todas as limitações, os fundamentos e o engaja- mento exigido em cada tipo de opção. Inaugurava-se, então, um período em que os professores deveriam oferecer aos alunos novas perspectivas de ação e, ao mesmo tempo, atender à soli- citação do meio profissional de fazer com que a Escola se voltasse novamente para o "fazer ins- titucional".

Entretanto, para seguir a nova diretriz era necessária uma reformulação da estrutura curricular existente desde 1971. E, nesse processo, dois aspectos eram fundamentais: o redi- mensionamento da estrutura teórica e areformulação da orientação da prática acadêmica. E isso significava o reordenamento da estrutura curricular. Para tanto, as disciplinas de Filosofia e Ci- ências Sociais continuariam oferecendo os mesmos conteúdos ministrados na fase anterior. As disciplinas específicas de Serviço Social, entretanto, deveriam ser organizadas em um novo conjunto. E nesse conjunto o Serviço Social deveria passar a ensinar todo o Movimento de Re- conceituação e o Método BH, ao mesmo tempo em que ofereceria, também, o estudo da meto- dologia tradicional, com o seu processo de atendimento de caso, de grupo e de comunidade.

Ora, se dessa forma o aluno teria condição de estudar o momento histórico da profissão com a proposta que carregava em seu bojo, teria, também, condição de estudar todo o processo de atendimento de caso, de grupo e de comunidade, da forma como era desenvolvido no interior das instituições desde o surgimento da profissão. Era, de certa forma, uma volta às instituições e, também, um resgate das origens da profissão.

Reorganizada a estrutura da formação teórica, restava a reestruturação da prática aca- dêmica. No setor de estágio, os alunos permaneceriam nos mesmos campos. A orientação, en- tretanto, deveria ser conduzida por um grupo de professores, todos assistentes sociais, que tives-

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sem experiência de trabalho institucional. A finalidade da orientação era ajudar o aluno a fazer as devidas correlações entre as questões teóricas e a prática institucional. Ao mesmo tempo, es- se grupo de orientadores seria também um dos responsáveis pelo restabelecimento das relações com o meio profissional. Seria, portanto, um elo de ligação entre aEscola e o meio profissional.

Uma vez delimitados o novo objetivo, a formação teórica e a prática acadêmica, res- tava agora saber a demanda dos alunos nessa fase de retomada. A partir dessa conclusão, foi definido que o início das aulas deveria ser marcado por um "seminário, através do qual os pro- fessores pudessem ouvir os alunos que retornavam". (Entrevista R)

O ano letivo de 1976 começa, portanto, já com certo atraso e marcado por um grande seminário. O seminário deveriaenvolver todos os alunos e teriacomo "objetivo ouvir esses alu- nos, tendo em vista a crise do ano anterior. Era necessário saber qual era a demanda deles com relação à retomada e à continuidade da Escola. Nós queríamos fazer um levantamento diag- nóstico, mesmo que superficial, da visão e do interesse dos alunos. Assim nós poderíamos ver como conjugar suas reivindicações e começar efetivamente o semestre". (Entrevista R)

A realização desse seminário, porém, foi pautada por uma certa dificuldade: a de en- volver os alunos da forma como havia sido planejado. Reaberta a Escola, reiniciadas as aulas, esses alunos foram "chegando aos poucos e em blocos, por períodos distintos" (Entrevista R). Para atender a essa característica específica, os professores se reorganizaram em grupos dife- rentes e atendiam, "em sala de aula, aos grupos de alunos, assim, do jeito que eles chegavam". (Entrevista R)

64 A realização do seminário mostrou aos professores que a demanda daqueles alunos era

"que fossem levadas para eles as principais questões referentes à prática do assistente social nas instituições. O objetivo era saber qual era o papel do profissional e como programar as ativida- des que as instituições solicitavam. Era saber fazer uma entrevista, um acompanhamento de ca- so, uma intervenção grupal, como utilizar técnicas". (Entrevista R)

Era o reconhecimento do seu próprio despreparo técnico-profissional para enfrentar as atividades cotidianas exigidas pelas instituições. Daí, a necessidade que aqueles alunos sentiam em saber responder à demanda do mercado formal de trabalho. Era a própria neces- sidade de preencher o "vazio" deixado na fase anterior. Além disso, aqueles alunos afirmavam "que não queriam nada que remetesse a uma análise político-ideológica da conjuntura do país. E justificavam isso afirmando que o estudo de conjuntura feito anteriormente, a Reconceitua- ção e o Método BH, não tinham levado a nada". (Entrevista R)

Era como se houvesse um sentimento de causação e frustração. Cansados de estudar a macroestrutura, de buscar as formas possíveis de romper com a injustiça, com o poder, com a dominação, frustrados nos resultados de suas expectativas, na longa espera de ver seus objeti- vos efetivados na prática, aqueles alunos se voltam agora para a prática nas suas origens.

Era como se, tomando consciência de uma sociedade que necessitava de transforma- ções radicais nas suas estruturas, tivessem se conscientizado das limitações impostas pela pró- pria conjuntura dessa mesma sociedade. Era, portanto, como se tomassem consciência da ine- xistência de condições propícias para levarem a efeito seus objetivos naquele momento especí- fico da sociedade brasileira, no contexto político em que se encontrava mergulhado o País ao longo daquela década: a dos anos 70.

As conclusões do seminário de reabertura da Escola naquele mês de maio de 1976 tra- ziam ao grupo de professores os subsídios que faltavam para a composição da nova estrutura curricular. A partir dali, os professores planejaram um novo conjunto de disciplinas teóricas de Serviço Social. Sob a denominação de "Prática Profissional", as novas disciplinas tinham como

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"finalidade básica resgatar a prática do aluno nas instituições e procurar ajudá-lo no encami- nhamento das principais questões relativas a essa prática" (Entrevista R). Com o acréscimo des- sas disciplinas, ficava completa a nova estrutura curricular e a prática profissional passava a ser o seu eixo central.

A Escola entrava, assim, pelo ano de 1976 e avançava rumo aos anos 80, vivendo um contexto de busca, de confronto e de muito estudo.

O modelo de formação profissional desenvolvido até 1975 levara ao exercício de uma prática que fugia ao contexto das organizações sociais e buro~ráticas,2~ o verdadeiro grande mercado de trabalho dos assistentes sociais. Um espaço que permanecia o mesmo, que conti- nuava solicitando profissionais para desenvolver atividades referentes ao caso, ao grupo e à co- munidade: aquela prática, agora, chamada "tradicional". O quadro então existente - o da forma- ção profissional, de um lado, e a demandado mercado de trabalho, de outro -conjugado ao con- texto da sociedade brasileira dos anos 70, levaram ao reordenamento da formação profissional, fazendo com que aprática voltasse a ser exercida preferencialmente no âmbito das instituições. Era a própria necessidade de fazer com que a profissão reassurnisse o lugar que lhe era atribuído na divisão social do trabalho.

O redimensionamento do ensino, a partir de 1976, permitia a formação de profissio- nais informados sobre a realidade econômica, política e social do País, ao mesmo tempo em que criava as condições necessárias para que os novos assistentes sociais pudessem desenvolver as atividades demandadas pelas instituições. Nesse sentido, o resgate da prática institucional pa- rece ter sido um complemento necessário ao processo de formação implementado na fase an- terior.

Parece mesmo que toda a história - da qual foram protagonistas profissionais, alunos 65

e professores de Serviço Social ao longo dos anos 70 - que se desenrolava sob as diretrizes do Movimento de Reconceituação e tinha por cenário a Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais -é a grande responsável por um novo tipo de prática que -neste final de século - é encontrada no interior das instituições. Porém, essa afirmação suscita novas inda- gações, fazendo remeter a questões que já ultrapassam os limites e as finalidades deste trabalho.

O processo de formação profissional vivido de modo particular na Escola de Serviço Social de Belo Horizonte durante os anos 70 é parte integrante do movimento histórico do Ser- viço Social latino-americano: o Movimento de Reconceituação.

Fruto das idéias geradas pelos profissionais de alguns países do continente que bus- cavam alternativas de prática capazes de responder aos problemas sociais emergentes, o pro- cesso vivido pelaEscola mineira é, sem dúvida, um processo específico, mas inserido no movi- mento geral de busca que naquele momento se desenvolvia. Esse contexto de questionamento, de contradições e antagonismos, de avanços e retrocessos marcou de formaespecial a vida dessa Escola durante o período aqui analisado.

A fase do ensino inaugurada a partir de 1970 segue, crivada por objetivos que possibi- litem a formação de profissionais comprometidos com uma ação social e política, através da

O termo "organizações sociais e burocráticas" é empregado aqui no seu sentido geral: aquele que envolve todas as formas de organização social existentes na sociedade, sejam de produção ou de serviços da capital ou do Estado.

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qual os assistentes sociais poderiam organizar a população trabalhadora na luta pela transfor- mação das estruturas da sociedade.

O modelo que propõe romper a vinculação orgânica que o Serviço Social possui com a burguesia e o poder capitalista leva ao pólo oposto o novo processo de formação. E essa pas- sagem radical afasta a prática profissional do próprio contexto da sociedade. Desse modo, tor- na-se, também, um modelo alienador. Esse fato, porém, deve ser considerado como um ponto fundamental para aevolução da formação e da ação profissional. É o momento do real histórico, do real vivido, que permite completar a travessia necessária para a formação de profissionais que possam assumir uma postura crítica frente à verdadeira função que lhe é reservada no mun- do capitalista.

Historicamente, o Serviço Social surge da necessidade de consolidação do mundo bur- guês que, com o objetivo de fortalecer o modo de produção capitalista na sua fase emergencial, se articula, estabelecendo grandes e necessárias alianças que dão origem a uma nova conjuga- ção de forças. É, naquele momento, o modo de a sociedade burguesa incorporar a prática social como um importante instrumento de controle das desigualdades dessa sociedade. Ao nascer, a profissão estava já incorporada à estrutura da sociedade burguesa, constituída e aprisionada às exigências do processo de desenvolvimento capitalista.

Uma vez formuladas as questões gerais, é preciso buscar uma nova aproximação na- tentativa de encontrar algumas conclusões particulares. E nesse momento aparecem alguns as- pectos significativos como resultado:

66 O I Seminário Latino-Americano realizado em 1965 na cidade de Porto Alegre deu início à deflagração das primeiras idéias do Movimento de Reconceituação. O even- to, que apontava as estruturas da sociedade como a principal causa dos problemas sociais do continente, despertava nos assistentes sociais a consciência do estado de pobreza e subdesenvolvimento que viviam esses países. A realidade exigia, naquele momento, um novo tipo de ação: aparticipação efetiva dos profissionais no processo de desenvolvimento social. Daí a necessidade de os assistentes sociais estarem inse- ridos na cúpula governamental, onde deveriam contribuir para a elaboração do pla- nejamento e das políticas sociais. O êxito dessa ação dependia do aprimoramento e da melhor qualificação dos profissionais. Desse modo, o conjunto de sugestões apre- sentadas estava centralizado na organização constante da pesquisa científica, na criação de cursos de especialização, no treinamento constante dos profissionais, pois era necessário elaborar um conjunto teórico próprio da profissão na América Lati- na.25 Iniciava-se, ali, ao que parece, uma fase de busca, de ruptura com o agir ime- diato, com a ação espontânea, e mesmo com a alienação, aspectos que caracteriza- vam a profissão até aquele momento. A conjuntura chilena do final dos anos 60 proporciona aos assistentes sociais o mo- mento de superação do estado de alienação profissional. O momento político, sus- tentado pelas diretrizes da Democracia Cristã que então vivia aquela sociedade, ofe- rece as condições necessárias para a sistematização, o debate e adivulgação de novas idéias. O momento fértil que vivia aquele país e a presença de Paulo Freire entre os assistentes sociais são fatores que contribuem para o aparecimento de uma nova mentalidade entre aqueles profissionais. Os questionamentos que proporcionam o

25 Conclusões e sugestões do Seminário Regional sobre o Serviço Social face às mudanças sociais na América Latina. Porto Alegre, [s.ed.], 1965. (Mimeo.)

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aparecimento de uma nova visão de mundo e de sociedade são, a partir daí, difun- didos pelos demais países da América Latina. Era o momento em que se iniciava a construção de uma base crítica necessária ao rompimento com a alienação em que estavam imersos os assistentes sociais do continente. E nesse momento de ruptura com a alienação e conseqüente construção de uma nova forma de interpretar e ana- lisar a sociedade, o Serviço Social leva, indiscutivelmente, a marca do pensamento de Paulo Freire. Na sociedade chilena do final dos anos 60, os princípios político-ideológicos de uma democracia cristã apontavam para a construção de uma sociedade mais justa e mais humana. No contexto dessa sociedade, os assistentes sociais viviam um momento de busca. Busca de novas formas de interpretar a realidade, busca de alternativas de ação que viessem contribuir para a construção de uma nova sociedade. Nesse mo- mento, a presença de Paulo Freire entre os chilenos parece muito importante. Suas ligações com a Igreja e a ênfase que atribui ao fato de ser cristão (Freire & Karsch, 1983),26 e a sua bagagem de conhecimentos adquiridos através da elaboração e da execução do seu método de alfabetização e conscientização, fundamentado no princípio da não violência (Freire & Karsch, 1 983),27 acabam por fazer de Paulo Frei- re o ideólogo maior, o que melhor sintetiza as necessidades dos assistentes sociais naquele momento. A inserção daEscola de Belo Horizonte no Movimento de Reconceituação - iniciada com a adaptação curricular, a partir de 1970, e a implantação de um novo modelo de formação, a partir de 1972 - marca o momento de ruptura da Escola com o seu pas- sado. A adoção do novo modelo de formação e ação profissional, pautado pelo ideá- rio da conscientização e da transformação, proporciona o aparecimento de uma nova

67 visão de mundo e a necessária opção por uma prática social coerente com os novos ideais profissionais: a implementação de uma ação educativa essencialmente po- lítica. Contudo, o peso de uma formação predominantemente política, confundindo opção profissional e opção política, seguindo uma mesma direção, acaba por se con- trapor ao trabalho cotidiano, exigido nas organizações. Desse modo, a formação pro- fissional se distancia do campo do exercício profissional. Além disso, aprimeira me- tade da década de 70 marca na sociedade brasileira um momento de forte pressão po- lítico-ideológica traçada pela ditadura militar a partir de 1968. Esse quadro adquire ainda um colorido mais forte quando se sabe que as necessidades do capitalismo na-

?"" ...] a palavra conscientização tem uma origem um pouco difícil de ser definida historicamente. Há quem pense, como eu pensava, que essa palavra tivesse sido cunhada pelo ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Mas h5 quem pense, também, que essa palavra tenha sido cunhada pela equipe do Padre Vaz naquela época de 63, por ai'. Um pouco mais adian- te, falando de sua própria influência no contexto das sociedades latino-americanas, Freire admite que se tornou "uma pre- sença real na América Latina" junto a vários setores populares. E termina seu raciocínio afirmando que "eu tenho que ver com umaTeologia da Libertação, também; por mais que eu pense que não, eu tenho que ver". Ainda nessa mesma entrevista, Freire recorda o trabalho que realizou no início dos anos 60 com as assistentes sociais do Recife. Cita nominalmente uma a uma, e entre as qualidades que aponta a cada uma delas está o fato de serem "assistentes sociais muito cristãs, muito ca- tólicas". Uma delas "inclusive, trabalha hoje com Dom Hélder Câmara". Logo em seguida, ao falar sobre a postura crítica desses profissionais frente ao Serviço Social, Freire faz questão de destacar que "não erauma postura marxista, que elas nun- ca foram, evidentemente. Elas (suas amigas do Recife) eram profundamente cristãs".

" Ainda na entrevista concedida a Karsch, ao falar da conscientização e de seu trabalho no nordeste brasileiro, Freire enfatiza o fato de que "a questão da conscientização, não tanto da palavra em si, mas o que ela encarna como práxis político-pe- dagógica vem se constituindo em mim, na medida em que eu pratiquei. Foi a minha prática, foi o meu compromisso com trabalhadores, com camponeses. Foi o meu encontro constante, e niio com armas, mas constante, com trabalhadores ur- banos, trabalhadores rurais e camponeses, no nordeste, em Pernambuco".

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cional e internacional, conjugadas aos interesses políticos mineiros, acabavam por transformar - nesse exato período - o Estado de Minas Gerais no mais novo centro industrial do País. O peso de uma formação apenas política e a força da demanda da sociedade sobre o tipo de profissional de que necessitava provocam o embate entre as forças antagônicas, levando ao movimento de resistência e protesto desencadeado em 1975. A reabertura da Escola em 1976, pautada pela exigência de um ensino voltado para a prática institucional, reflete a força e o poder que as organizações exercem sobre o exercício da profissão e, conseqüentemente, sobre a formação dos profissionais de que necessita. A fase inaugurada pela Escola em 1976 segue no sentido de formar profissionais que possam perceber a dualidade e as contradições da sociedade, ao mesmo tempo em que tomam conhecimento das instituições, da prática institucional e do cotidiano dos assistentes sociais no âmbito das instituições. E no depoimento dos profissionais formados a partir de 1976 aparece uma nova preocupação: a elabo- ração de objetivos profissionais voltados para uma prática educativa. Essa prática educativa, por sua vez, é identificada comum trabalho de reflexão e participação que esses profissionais procuram conjugar às atividades e programas solicitados pela própria instituição.

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