SERRES Michel Filosofia Mestica

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  • T odo aprendizado resulta de abertura para o outro. mistura e mestiagem. Apesar disso, ao invs de construirmos um saber tolerante e amigo da diferena, h s-culos insistimos em buscar uma razo as-sptica, que aspira imobilidade de uma perfeio ilusria. Ainda pretendemos ela-borar filosofias da pureza, no fundo movi-das no pelo desejo de conhecer, mas pela compulso a dominar.

    A Michel Serres interessa a busca de um outro saber: uma filosofia mestia. Por mais judiciosa que uma idia se apresente, diz, ela se ~orna atroz se reina sem partilha. Nenhuma soluo nica, nem dura para sempre; nenhuma cincia ou disciplina tem sentido se no se abre para o que lhe exterior. Por isso, desde o incio deste livro, o esprito do sbio no se cobre com o manto de Salomo, o compenetrado rei-sol que a tudo subordina, mas com o casa-co furta-cor de Arlequim, o desengonado imperador da lua que se mistura com seus sditos. Os rudos, os desvios, as imper-feies da experincia integram, legitima-mente, o processo de conhecimento.

    Para Serres, as grandes instituies universitrias no so capazes de propor esse aprendizado que valoriza a mestia-gem. Cultivam condies contrrias ao exerccio do pensamento, consomem re-dundncias, repetem imagens velhas e vi-vem de impressos sucessivamente copia-dos. Ensinam cincias humanas que no falam do mundo e cincias naturais que si-lenciam sobre os homens. No suportam a sutileza insinuante do saber dirigido para a inveno, que por isso se torna um saber solitrio, no entanto imprescindvel para combater a construo de um mundo ho-mogneo, loucamente lgico e racional-mente trgico.

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    Filosofia Mestia

  • Ttulo original: Le Tiers-Instruit

    :E:ditions Franois Bourin, 1991

    Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

    S51f

    93-0158

    Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 Tel. 286-7822 - Fax 286-6755

    Endereo telegrfico! NEOFRONT Telex: 34695 ENFS BR

    Rio de Janeiro, RI

    Reviso de traduo Evelyne Jacobs

    Reviso tipogrfica Tereza da Rocha

    .: CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte . Sindito Nacional dos Editores de Livro~, RJ

    f Serres, Michel

    Filosofia mestia::: Le tiers-instruit / Michel Serres; traduo Maria Ignez Duque Estrada. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

    Traduo de: Le tiers-instruit ISBN 85-209-0405-X

    1. Cincias sociais e filosofia. 2. Filosofia francesa. I. Ttulo.

    CDD - 194 CDU - I (44)

    Para Anne-Marie. Emmanuelle e Stphanie

    PUC-RGS Bl8l-n "\ c-o , I '-.. ,t. ~,./

  • Philomuthos, philosophos ps. Philosophos, philomuthos ps.'"

    Aristteles

    ... Filomito, de certo modo, fIlsofo. Filsofo, de certo modo, filomito.

  • ~

    Como aconteceu de as cincias humanas ou sociais no falarem jamais sobre o mundo. como se os grupos per-manecessem suspensos no vazio? Como as cincias ditas duras deixam os homens de lado? ( ... ) Como nossos principais saberes se perpetuam hemiplgicos? Faz-los aprender a caminhar com os dois ps, a utilizar as duas mos, me parece ser um dos deveres da fIlosofia: voc sabe, .le tier-instruit designa os corpos completados de canhotos ditos contrariados; o elogio dos mestios e das misturas, que causam horror aos fIlsofos da pureza.

    Michel Serres, Eclaircissements, 1992

  • r !

    Sumrio

    Laicidade ............................................................................................ I

    CRIAR ................................................................................................ 7 Homenagem ................................................................................ 9 Corpo ........................................................................................... 9 Sentido ......................................................................................... 12 Nascimento do mestio .............................................................. 13 Aprendizagem ............................................................................. 14 Crebro ........................................................................................ 17 Nascimento e conhecimento ...................................................... 18 Escrever........................................................................................ 20 Sexo .............................................................................................. 21 Quimera ....................................................................................... 25 Dobra e n ....................................... c........................................... 28 Primeiras recordaes ................................................................. 30 Roscea ......................................................................................... 32 Trilha, msica ............................................................................. 35 Dana: minueto do lugar mestio ............................................ 37 Magnificncia .............................................................................. 38 Alegria, dilatao, engendramento ........................................... 40

    INSTRUIR .......................................................................................... 45 Dia ................................................................................................ 47 Noite ............................................................................................. 51 Claro-escuro ................................................................................ 52

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  • o lugar mestio ........................................................................... 54 O terceiro homem ...................................................................... 57

    60 Instruir ou engendrar ................................................................ . A terceira pessoa: procedncia .................................................. 62 A terceira mulher: concepo .................................................... 64

    66 o mestio instrudo: ancestrais ................................................ . O mestio instrudo, de nOVO: origem ..................................... 70

    79 Engendramento na aurora ...................................................... o O problema do mal ................................................................... . 81 Guerra por teses .......................................................................... 86 O estilista e o gramtico ............................................................ 89 Paz sobre as espcies .................................................................. 102 Npcias da Terra com seus sucessivos senhores ........ , ............. 102 Paz e vida pela inveno. Encontrar ........................................ 106 Um outro nome para o mestio instrudo .............................. 117 O casal genrico da histria. Morte e imortalidade ............... lI8

    EDUCAR ............................................................................................ 131 Lei do rei: nada de novo sob o sol ................. .. .. 133 O novo sob o sol, em outro lugar ............................................ 145 O novo sob o sol, aqui ............................................................... 152 Eu. Noite ...................................................................................... 165 Tu. Dia ......................................................................................... 178 A terceira pessoa: fogo ............................................................... 185

    laicidade

    De volta de uma inspeo s terras lunares, Arlequim, imperador, aparece no palco para dar uma entrevista coletiva. Que maravilhas viu, atravessando lugares to extraordinrios? O pblico est na ex-pectativa de grandes extravagncias.

    - No, no - ele responde s perguntas que o pressionam -, em toda parte tudo como aqui, em tudo idntico ao que se pode ver comumente sobre o globo terrqueo. S mudam os graus de grande-za e beleza.

    Decepcionado, o auditrio no acredita: l fora, obviamente, tem que ser diferente! Ser que ele no conseguiu observar nada du-rante a viagem? Primeiro mudos, estupefatos, todos comeam a se agitar, enquarito Arlequim repete doutamente a lio: nada de novo sob o Sol, nada de novo na Lua. A palavra do rei Salomo precede a do potentado satlite. Nada mais a dizer, sem comentrios. Real ou imperial, quem detm o poder s encontra de fato, no espao, obe-dincia sua potncia, portanto sua lei: o poder no se desloca. E, quando o faz, a;::ana sobre um tapete vermelho. Assim, a razo s6 encontra a sua regra debaixo dos seus ps.

    Altivo, Arlequim desafia a platia com um desdm e uma arro-gncia ridculos.

    No meio da sala, que se torna tumultuada, algum belo e maldoso esprito se levanta e estende a mo para indicar o casaco de Arlequim.

    - Hei! - grita ele - voc a, que diz que tudo em toda parte como aqui, quer que a gente acredite tambm que sua capa feita de uma mesma pea, tanto na frente como na traseira?

  • Atnito, o pblico no sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato, a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composio descombinada, feita de pedaos, de trapos de todos os tamanhos, mil formas e cores variadas, de idades diversas, de provenincias dife-rentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma ateno s combinaes, remendados segundo as circunstncias, medida das necessidades, dos acidentes e das contingncias, ser que mostra uma espcie de mapa-mndi, o mapa das viagens do artista, como uma mala constelada de marcas? O l-fora, ento, nunca como aqui. Nenhuma pea se parece com qualquer outra, nenhuma provncia poderia jamais ser comparada com tal outra, e todas as culturas diferem. A pelerine-portulano desmente o que pretende o Rei da Lua.

    Vejam com seus prprios olhos esta paisagem zebrada, tigrada, matizada, mourisca, recamada, entristecida, aoitada, lacunar, ocela-da, multicolorida, rasgada, de cordes atados, de fitas cruzadas, de franjas pudas, inesperada em todo canto, miservel, gloriosa, magn-fica de cortar o flego e de fazer o corao bater.

    Poderosa e banal, a palavra reina, montona, e vitrifica o espaoj soberbo de misria, o traje, improvvel, deslumbra. O imperador derrisrio, que repete como um papagaio, se envolve num mapa do mundo com multiplicidades mal ajeitadas. Verbo puro e simples, roupa compsita e mal combinada, reluzente, bela como uma coisa: que escolher?

    - Tu te vestes como o roteiro de tuas viagens? - diz ainda o belo esprito prfido.

    Todo mundo ri. Eis o rei apanhado e envergonhado.

    Arlequim logo adivinha a nica sada para o ridculo da situao: basta tirar este casaco que o desmente. Levanta-se, hesitante, olha boquiaberto os panos de seu traje; em seguida, com ar de bobo, olha para o pblico e de novo para seu casaco, como que tomado de vergonha. A platia ri, um pouco abobalhada. Ele demora, se faz esperar. O Imperador da Lua enfim se decide.

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    Arlequim se despe. Aps muitas caretas e contorses inbeis, acaba por deixar cair aos seus ps o casaco disparatado.

    Um outro envoltrio cambiante aparece ento: por baixo do pri-meiro vu, ele usa um segundo farrapo. Estupefata, a platia ri de novo. preciso ento recomear, j que o segundo envoltrio, seme-lhante ao casaco, se compe de novas peas e de velhos pedaos. Impossvel descrever a segunda tnica sem repetir, como uma litania: tigrada, matizada, zebrada, constelada ...

    Arlequim continua ento a desvestir-se. Sucessivamente apare-cem uma outra roupa mourisca, uma nova tnica recamada, em se-guida uma espcie de vu estriado e ainda uma malha ocelada, mul-ticolorida ... A sala explode, cada vez mais surpreendida. Arlequim nunca chega ao ltimo traje, enquanto o penltimo reproduz exata-mente o antepenltimo: diversificado, compsito. rasgado ... Sobre si, Arlequim traz uma camada espessa desses casacos de arlequim.

    Infindamente, o nu recua sob as mscaras; e o vivo, sob a boneca ou a esttua inchada de trapos. Decerto, o primeiro casaco deixa per-ceber a justaposio das peas, mas a multiplicidade e o cruzamento dos sucessivos envoltrios a mostram, enquanto tambm a dissimu-lam. Cebola, alcachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de escamar suas capas cambiantes, e o pblico no pra mais de rir.

    De repente, silncio. Seriedade e at gravidade descem sobre a sala, eis o rei nu. Retirado, o ltimo disfarce acaba de cair.

    Estuporl Tatuado, o Imperador da Lua exibe uma pele multicor, muito mais ~?r do que pele. Todo corpo parece uma impresso digi-tal. Como um quadro sobre uma tapearia, a tatuagem - estriada, matizada, recamada, tigrada, adamascada, mourisca _ um obst-culo para o olhar, tanto quanto os trajes ou os casacos que jazem no cho.

    Quando cai o ltimo vu, o segredo se liberta, to complicado como o conjunto de barreiras que o protegiam. At mesmo a pele de Arlequim desmente a unidade pretendida por suas palavras. Tam-bm ela um casaco de arlequim.

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  • A platia tenta rir ainda, mas no consegue: seria preciso talvez que o homem se esfolasse. Assobios, apupos ... pode-se pedir a al-gum para arrancar a prpria pele?

    A platia viu e fica em suspenso; poderia ouvir-se uma mosca a voar. Arlequim no imperador, nem mesmo derrisrio. Arlequim s Arlequim, mltiplo e diverso, ondulante e plural, quando se veste e se desveste: nomeado, condecorado porque se protege, se de-fende e se esconde, mltipla e indefinidamente. Brutalmente, os es-pectadores, juntos, acabam de esclarecer todo o mistrio.

    Ei-Io agora desvendado, entregue sem defesa intuio. Arle-quim hermafrodita, corpo mesclado, macho e mulher. Escndalo na sala, perturbada at as lgrimas. O andrgino nu mistura os gne-ros sem que se possam distinguir as vizinhanas, lugares ou bordas onde terminam e comeam os sexos: homem perdido na fmea, mu-lher mesclada com o macho. Eis como ele Ou ela se mostra: monstro.

    Monstro? Esfinge, animal e donzela; centauro, macho e cavalo; unicrnio, quimera, corpo compsito e misturado; onde e como dis-tinguir o lugar da solda ou do corte, o sulco onde a ligao se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam os lbios, o da direita e o da esquer-da, o de cima e o de baixo, mas tambm o anjo e a besta, o vencedor vaidoso, modesto ou vingador, e a humilde ou repugnante vtima, o inerte e o vivo, o miservel e o riqussimo, o tolo cabal e o louco vivo, o gnio e o imbecil, o senhor e o escravo, o imperador e o palhao. Monstro, verdade, mas normal. Que semblante afastar, agora, para melhor conhecer o lugar de juno?

    Arlequim-Hermafrodita serve-se das duas mos, no como am-bidestro mas como canhoto completado, destro at do lado esquer-do, viu-se claramente quando ele se despia, suas capas dando viravol-tas nos dois lados. Encantos da infncia e rugas prprias dos idosos, misturados, levam a que se pergunte sua idade: adolescente ou an-cio? Mas, quando apareceram a pele e a carne, todos descobriram sobretudo sua mestiagem: mulato, temperado, hbrido em geral, e em que medida? Um quarto de sangue negro? Um oitavo? E se ele no brincasse mais de rei, mesmo de comdia, daria vontade de cham-lo

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    de bastardo ou mestado, cruzado. Sangue misto, marrom, amar-ranzado, impuro.

    Que nos poderia exibir agora o monstro comum, tatuado, ambi-destro, hermafrodita e mestio sob a prpria pele? Sim, o sangue e a carne. A cincia fala de rgos, de funes, de Clulas e de molculas, para finalmente confessar: faz tempo no se fala mais de vida nos laboratrios; mas ela nunca se refere carne que, precisamente, de-signa, num dado lugar do corpo, aqui e agora, a mistura de msculos e de sangue, de pele e de plos, de ossos, de nervos e de funes diversas, que mescla aquilo que o saber pertinente analisa. A vida joga os dados e embaralha as cartas. Arlequim pe mostra, para terminar, a sua carne. Misturados, a carne e o sangue mestio de Arlequim parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim.

    H algum tempo, numerosos espectadores j tinham deixado a sala, cansados dos golpes teatrais frustrados, irritados com essa vira-volta da comdia em tragdia, tendo chegado para rir, decepcionan-do-se por ter que pensar. Alguns mesmo, especialistas eruditos sem dvida, haviam compreendido, por Sua prpria conta, que cada por-o do Seu saber parece tambm com o caSaco de Arlequim, cada um trabalhando na interseo ou na interferncia de vrias outras cin-cias e, s vezes, de todas, quase. Assim, Sua academia, ou enciclop-dia, se aproximava formalmente da comedia dell'arte.

    Quando todos j estavam virando as costas, quando os candeei-ros davam si:'}ais de fraqueza e sentia-se que naquela noite a impro-visao termInaria em fiasco, algum lanou um sbito apelo, como se algo novo estivesse acontecendo num lugar onde tudo, at ento, se repetira. O pblico inteiro se voltou de um s golpe e todos os olhares convergiram para o palco, dramaticamente iluminado pelos ltimos fogos moribundos dos projetores.

    - Pierrl Pierr! - gritaram - Pierr lunar! No lugar exato do Imperador da Lua erguia-se agora uma massa

    ofuscante, incandescente, mais clara que plida, mais transparente

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  • que difana, lilicea, nevada, cndida, pura e virginal, inteiramente branca.

    - Pierr! Pierrl - gritavam ainda os tolos, quando a cortina se fechou.

    Eles saram perguntando: - Como as mil cores do casaco podem se dissolver numa soma

    branca? - Assim como o corpo - respondiam os doutos - assimila e

    retm as diversas diferenas vividas durante as viagens e volta para casa mestiado de novos gestos e de novos costumes, fundidos nas suas atitudes e funes a ponto de faz-lo acreditar que nada mudou para ele, tambm o milagre laico da tolerncia, da neutralidade in-dulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de inveno e, portanto, de pensamento.

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    I

    i I 1 l .

    Criar Homenagem

    Corpo Sentido

    Nascimento do mestio Aprendizagem

    Crebro Nascimento e conhecimento

    Escrever Sexo

    Quimera Dobra e n

    Primeiras recordaes Roscea

    Trilha, msica Dana

    Magnificncia Alegria, dilatao, engendramento

  • -" I i

    Homenagem

    Obrigado. Meu reconhecimento comovido dirige-se em primeiro lu-gar ao falecido mestre, cujo rosto, voz e mos permanecero presen-tes em minha memria at a morte; h algumas dcadas, ele fez de mim aquilo a que a maioria destra se refere, compassiva, como um canhoto contrariado, mas que descrevo, alegremente, como uma me-tade completada. Nenhum acontecimento esculpiu meu corpo com maiores conseqncias, ningum decidiu por mim mais revolucio-nariamente o sentido.

    Por uma vez, o corpo docente, que se ergue para discursar e convencer, ou se inclina para escrever, apresenta-se a seu pblico em sua ingenuidade nua: como um organismo, dando lugar lngua e ao pensamento com certeza, mas antes de tudo modelado carnalmente por um mestre annimo, ao qual agradeo.

    Corpo

    Ningum pe em dvida a bondade da reforma que permitiu aos canhotos, meus irmos, escrever conforme sua mo. Contrari-los os teria lanado em uma populao confusa de gagos, perversos ou neu-rticos, diz a teoria. Em princpio, fao parte desse grupo to doente, ao qual hoje dou a palavra e represento. Estranha notcia: tudo cami-nha da melhor forma no melhor corpo possvel.

    Como descrever um destro? Como um organismo cortado, so-frendo de grave hemiplegia. A caneta, a faca, o martelo ou a raquete se juntam numa s mo, enquanto a outra nada segura. Quentes e

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  • flexveis, um lado do prprio corpo e sua extenso vivem arrastando atrs de si uma espcie de gmeo cadavrico, hirto e frio, desprezvel e impotente: inconsciente.

    Eis somente a metade da verdade. Como descrever, por sua vez, um canhoto? Como um organismo atravessado por uma rachadura, paraplgico, doente. Lpis, garfo, bola, tesoura convm sua nica mo, enquanto a outra pende, adormecida. Alerta, suave, presente, eis uma face do espao e da vida, enquanto o meio-corpo puxa ou empurra sem equilbrio possvel um duplo duro, ausente, morto, peso sem fora, massa inconsciente sem lngua.

    Feitas as contas, um vale o outro. Cada um, divorciado, se com-pe de dois gmeos, dos quais s um, seja qual for, de um lado ou do outro, tem direito vida, enquanto o segundo nem chegou a nascer. E ento, dar aos canhotos o direito de assim permanecerem equivale a fazer com que se tornem destros: outros destros, do outro lado. A liberao da esquerda me parece agora uma deciso de direita.

    Os corpos hemiplgicos se reconhecem entre si e impem a to-dos a permanncia na tola patologia da diviso.

    No, ns no somos um, somos dois. Canhoto ou destro, no $e compe o corpo de cada um de dois irmos inimigos, gmeos idnticos embora enantiomorfos, isto , ao mesmo tempo simtricos e assimtricos, gmeos concorrentes e contrariados, dos quais um sempre foi morto pelo outro e leva seu cadver a tiracolo, como esses generais da antiga Roma arrastavam, em seu triunfo, os adversrios vencidos e escravizados? O uso de apenas a metade de seu corpo, considerado universal por certos etnlogos, no remontar a ime-morveis prticas de sacrifcio? Destro ou canhoto jamais toleram um outro a seu lado, exceto morto ou natimorto.

    Eu prego contra a pena de morte neste assunto, prego pelo corpo reconciliado, pela amizade entre os irmos; a favor, enfim, desta to-lerncia rara ou, quem sabe, do amor, que se regozija quando o ou-tro, em sua vizinhana mais prxima, vive feliz e, para assim tornar-se, tenha tido ao menos a chance ou o direito de nascer.

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    o crebro se divide em duas metades que, por feixes cruzados, se comunicam com o outro lado do corpo, respectivamente. A hemi-plegia paralisa ao mesmo tempo ou o lado esquerdo do corpo e o lado direito do crebro, ou a esquerda deste e a direita do outro. Parece-me melhor viver, falar ou pensar com todos os rgos do que amputar do seu conjunto uma metade negra. Ningum d valor a esse princpio, a despeito de sua bela, harmoniosa e plena evidncia: COmo explicar a paixo da humanidade - em sua totalidade, parece - por uma doena que obriga nosso meio-corpo a se colar a um cadver, como num casamento repulsivo?

    Portanto, obrigado, em primeiro lugar, quele que me formou na plenitude e na saturao prprias a um corpo completo.

    Nada confere mais sentido do que mudar de sentido. Relatarei por meio de imagens a lembrana da mutao.

    Ningum sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um brao de mar agitado s existe cb~ em uma piscina, territrio para pedestres em massa.

    Parta, mergulhe. Depois de ter deixado a margem, voc conti-.. nuar durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra sua frente, tempo bastante, pelo menos, para que seu corpo se aplique ao clculo e silenciosamente reflita que ainda pode voltar. t um certo limiar, voc conserva esta segurana: o mesmo que dizer que ainda no partiu. Do outro lado da aventura, o p confia na aproximao, desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: voc est to p~.ximo da margem que pode dizer que j chegou. Margem direita o'esquerda, no importa, nos dois casos: terra ou cho. Voc no nada, espera para andar, como quem salta, decola e atinge o cho, mas no permanece em vo.

    Ao contrrio, o nadador sabe que um segundo rio corre neste que todo mundo v, entre os dois limiares, atrs ou frente dos quais quaisquer seguranas desapareceram: ali ele abandona toda a refe-rncia.

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  • Sentido

    A verdadeira passagem ocorre no meio. Qualquer sentido que o nado tome, o solo jaz a dezenas ou centenas de metros sob o ventre ou a quilmetros atrs e na frente. Eis o nadador sozinho. Deve atravessar, para aprender a solido. Esta se reconhece no desvanecimento das referncias.

    Num primeiro momento, o corpo relativiza o sentido: que im-porta esquerda ou direita, desde que fique junto terra?, diz. Mas, no meio da travessia, mesmo o solo lhe falta, acabam os domnios. Ento o corpo voa e esquece o que slido, no mais na expectativa das descobertas estveis, mas como instalando-se para sempre em sua vida estrangeira: braos e pernas entram numa fraca e fluida portn-da, a pele se adapta ao ambiente turbulento, pra a vertigem da ca-bea porque doravante ela s6 pode contar com seu prprio suporte; sob pena de afogar-se, ganha confiana na braada lenta.

    O observador de fora facilmente acredita que aquele que muda est passando de um domnio para outro: de p em Calais como se estivesse em Douvres, como se bastasse tirar um segundo passaporte. No. Isto seria assim se o meio se reduzisse a um ponto sem dimen-ses, como no caso do salto. O corpo que atravessa aprende certa-mente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala outra lngua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo qual transita.

    Ele no andar mais nem se erguer mais como quando s sabia ficar de p ou andar: bpede antes desse evento, ei-Io agora carne e peixe. No apenas mudou de margem, de linguagem, de costumes, de gnero, de espcie; tambm conheceu o trao de unio: homem-r. O primeiro animal desfruta de um domnio, o segundo bicho tambm, mas o estranho vivente que um dia entrou no rio branco que corre dentro do rio visvel, e que teve que se adaptar, sob pena de morte, s suas guas extravagantes, abandonou qualquer domnio.

    Por meio desse novo nascimento, ei-Io exilado de verdade. Pri-vado de casa. Morto sem sepultura. Intermedirio. Anjo. Mensagei-

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    ro. Trao de unio. Para sempre expulso de todas as comunidades, mas um pouco, e levemente, em todas. Arlequim, j.

    Nascimento do mesti~o'

    Ele chega outra margem: antes canhoto, agora voc o encontra destro; outrora gasco, hoje parece francfono ou anglomanaco. Voc o acredita naturalizado, convertido, virado ao avesso, transtor-nado. De fato, voc tem razo. Em verdade, ele habita, embora dolo-rosamente, a segunda margem. Voc o considera simples? No, com certeza duplo. Tornado destro, ele permanece canhoto. Bilnge no quer dizer apenas que fala duas lnguas: ele passa incessantemente pelas folhas do dicionrio. Bem adaptado, mas fiel quilo que foi. Esqueceu, obrigatoriamente, mas mesmo assim se recorda. Acredita que ele seja duplo?

    Mas voc no leva em conta a passagem, o sofrimento, a coragem do aprendizado, os tormentos do nufrago provvel, a rachadura

    _ aberta no trax pelo estiramento dos braos, das pernas e da lng~, longo trao de esquecimento e de memria que marca o eixo longi-tudinal desses rios infernais, chamados amnsias por nossos ances-trais. Voc o cr duplo, ambidestro, dicionrio, e ei-Io triplo ou mes-tio, habitando as duas margens e vagando pelo meio, ali para onde convergem os dois sentidos, mais o sentido do rio que corre e o sentido do vento, mais as inclinaes inquietas produzidas pelas bra-adas, e as numerosas intenes que provocam decises; nesse rio dentro do rio, rachadura no meio do corpo, forma-se uma bssola, ou rotunefa, de onde divergem vinte sentidos ou cem mil. Voc o acreditara triplo?

    Equivocou-se outra vez, ei-Io mltiplo. Fonte ou intercambiador de sentido, relativizando para sempre a esquerda, a direita e a terra de onde saem todas as direes, ele integrou um compasso em seu corpo

    Tiers: terceiro, tero, outro, estranho, misturado, mestio. Preferimos esta l-tima acepo, por fidelidade ao pensamento do autor. (N. da T.)

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  • lquido. Pensava que ele estivesse convertido, invertido, virado ao avesso, transtornado? Sim. Mais ainda: universal. Sobre o eixo mvel do rio e do corpo, estremece, comovida, a nascente do sentido.

    Aprendizagem

    Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domnio da margem frente, ele acaba de aprender uma coisa mestia. O outro lado, os novos costumes, uma lngua estrangeira, claro. Mas, acima disso, acaba de aprender a aprendizagem nesse meio branco que no tem sentido para encontrar todos os sentidos. No pice do crnio, em turbilho, se atarraxa o redemoinho da cabeleira, lugar-meio onde se integram todas as direes.

    -.U niversal significa: aquilo que, embora sendo nico, ver!~ ~~.?s os sentidos. O infinito entra no corpo de quem, por muito tempo, atravessa um rio' perigoso e largo o bastante para oferecer essas paragens distantes onde, seja qual for a direo que se adote ou se decida, a referncia permanece indiferentemente afastada. Ento, o solitrio, vagando sem pertencer a nada, tudo pode receber e inte-grar: todos os sentidos se equivalem. Ter atravessado a totalidade d~ concreto para entrar em abstra

  • mar, pntano ou parede. Ele no se apressa, de sada, em direo meta, ao alvo, tenso em direo sua finalidade. No, o jogo da pedagogia no jogado a dois, viajante e destino, mas a trs. O lugar mestio* intervm a como soleira da passagem. Ora, quase sempre nem o aluno nem o iniciador conhecem o lugar e o uso des~~ po.:!~.

    Um dia, a qualquer momento, cada um passa pelo meio desse rio branco, estado estranho de mudana de fase, que se pode chamar de sensibilidade, palavra que significa a possibilidade ou capacidade em todos os sentidos. Sensvel, por exemplo, a balana oscila para cima e para baixo ao mesmo tempo, vibrando, bem no meio, nos dois sentidos; sensvel tambm a criana que vai andar, quando se lana num desequilbrio reequilibrado. Observe-a tambm quando mergu-lha na fala, na leitura ou na escrita, desembaraada e embaraada entre o sentido e o no-sentido. Quo hipersensveis, afetados, rejei-tando a afetao, fomos no momento de transpor todos os portais da juventude. Esse estado vibra como uma instabilidade, uma metaesta-bilidade, como um mestio no excluso entre o equilbrio e o dese-quilbrio, entre o ser e o nada. A sensibilidade habita um lugar central e perifrico: em forma de estrela.

    Voc j jogou alguma vez no gol de seu time quando um adver-srio se preparava, bem de perto, para um chute direto? Descontra-do, como que livre, o corpo faz a mmica do particpio futuro, prepa-rado para se distender: para o alto, rente terra ou meia altura, nos dois sentidos, esquerda e direita; na direo do centro do plexo solar, uma plataforma estrelada lana seus ramos virtuais em todos os sen-tidos ao mesmo tempo, como um buqu de axnios. este o estado de sensibilidade vibrante, desperta, alerta, atenta, chamamento para a fera que rasteja, espreita, espia, solicitao em todos os sentidos para toda a admirvel rede de neurnios. Corra para a rede, pronto

    No original, tierce place. O tiers-point, em arquitetura, o ponto de intercesso de dois arcos; em perspectiva, o ponto arbitrrio para onde convergem as diagonais. O sentido de terce place, portanto,~~ ~g~2_.das intercesses, _ das

    I!lis~url~1_c!~ __ mestiagens. (N. da T.)

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    1

    para o voleio: ainda no particpio futuro, a raquete se destina ao mesmo tempo a todos os golpes juntos, como se o corpo, colocado em deseqUilbrio por todos os lados, apertasse uma bola de tempo, uma esfera de sentidos, e liberasse a partir do trax uma estrela-do-mar. No centro da estrela se esconde o lugar mestio, que outrora chamei de alma, pressentida na passagem de um desfiladeiro dificil de atravessar. Ele habita esse plo da sensibilidade, dessa capacidade virtual, ao mesm tempo que se atira e se retm, quer dizer, se lana pela metade, ao longo dos ramos flutuantes do astro que explora o espao, como um sol.

    Crebro

    Se o corpo ou a alma sabem disso, o crebro no o ignora. Durante o sono, como durante a viglia, ele vibra e salta em todos os sentidos ao mesmo tempo, de modo que a curva complexa que deixa sobre o plano do eletroencefalograma exprime ou imita a sua autonomia em bola, em buqu, ou em bilhes de estrelas; sob a abbada craniana cintilam constelaes. Multiplamente sensvel, ele se aproxima da rede para o voleio; ou, guardio exmio, prepara-se para receber bo-las de todos os ngulos do espao e em todos os momentos do tem-po ... balana generalizada, criana audaciosa que se lana numa em-preitada incerta, boca que vai gaguejar entre o barulho e a palavra, entre sim e no, o claro e o escuro, a mentira e a verdade, lngua, lbios e palato abrigam este mestio incluso. O crebro se ativa para esquadrinhar o espao-tempo: como? Ao que tudo indica, estando l e c ao msmo tempo, contnua e descontinuamente. Saltando ou cintilando, ele habita esse lugar mestio, descoberto pelo nado que atravessa o rio.

    Assim como a inteligncia, a promessa de inveno ... permanea por muito tempo como esse jogador, essa criana, esse vigia, que balana ou nada, essa virgem que se prepara para decidir. Corpo, msculos, nervos, sentidos e sensibilidade, alma, crebro e conheci-mento, tudo converge para esse lugar mestio, em forma de estrela:

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  • cuid(;1do esquerda, passe pela direita, ateno para o alto e corra por baixo ...

    ,Ele, o lugar mestio, se .~emeia no tempo e no espao., No meio da janela que atravessa, o corpo sabe que passou para fora, que acaba de entrar em outro mundo. O espao e nossas histrias so densos em tais marcos: eixo do rio, do brao do mar que se ultrapassa ao nadar. Aqui parece acabar a aventura, quando a viagem atinge um estdio; mestio incluso certamente, uma vez que aqui alguma coisa termina e no termina ao mesmo tempo. Eis o local da parede, vari-vel de acordo com o dia e com aquele que a escala, onde este desco-bre, certa manh, que passar, mesmo que a tempestade exploda. Mestio incluso: no chegou, porm conseguiu. Eis o momento de trabalho em que, de sbito, como por graa, tudo se torna fcil e no se sabe por qu. Bem no meio, a obra se encaixa. Eis o instante em que anos de treinamento, de vontade, de persistncia, de repente entram e se instalam no esquema corporal ou na naturalidade cate-gorial; neste meio-dia, comeo e termino ao mesmO tempo, sei que falarei chins mesmo que no o fale ainda, que resolverei as equaes do problema, recuperarei a sade, terminarei a travessia. To real este patamar, que s vezes engana: eis a o cume onde comea a corrida, enquanto o debutante cr que ela finalmente esgotou seus obstculos; falso meio, s vezes mestio imaginrio.

    Nascimento e conhecimento

    No sei o que me leva a dizer que essaS q~atro provas ou exposies maiores da pedagogia - estilhaamento do corpo em partes, expul-so para o exterior, escolha necessria do caminho transversal e para-doxal, e enfim passagem pelo lugar mestio -, ns j as suportamos nas primeiras horas de noSSO nascimento, quando foi necessrio, no sem alguma efuso de sangue, ou esmagamento da cabea, nos arran-car de um corpo ao qual o nosso se integrava, pois vivamos apenas como parte do corpo materno, sofrer um empurro irresistvel para

    18 r

    o frio irrespirvel do lado de fora, ter que tomar um caminho que nenhuma opresso anterior previa, passar enfim por uma garganta apertada e recentemente dilatada, pronta para se fechar de novo, sob o risco de nos abafar, de nos estrangular, de apertar o cordo em volta do pescoo, sufocar, morrer de asfixia no conduto obstrudo, estenosado, apertado, fechado ... de modo que, uma vez que est vivo, cada um, como eu, sabe disso, de tudo isso, dessa agonia de nascer, essa morte para viver em outro lugar" isto , aqui, em outro tempo, quer dizer, agora, e que, uma vez que est a, de p com o corao batend~, arfando, j sabe e, portanto, j possvel adaptar-se, apren-der: morrer-viver como mestio incluso.

    Ns todos j passamos por esse colo, esse lugar estranho e natu-ral da montanha, onde o mais alto dos pontos baixos se iguala exata-mente ao mais baixo dos pontos altos. J aprendemos que o fim de uma agonia podia de repente equivaler ao ltimo captulo da vida. Nascimento, conhecimento: que exposiO mais terrvel ao mais imenso dos riscos?

    No curso dessas experincias, o tempo no brota nem da posio - nela est o equilbrio das esttuas -, nem da oposio, segunda estabilidade, da qual nada pode advir, nem da relao das duas, arca ou arco esttico de imobilidade perene, mas de um desvio do equil-brio que arremessa ou lana a posio para fora dela mesma, para o desequilbrio que a exclui de seu repouso, exatamente de um desa-prumo: a lngua usual o exprime expressamente pela palavra exposi-o. No eixo do rio cuja corrente se inflama, o nadador, como quem enfrenta urri' risco qualquer, se expe.

    O tempo se expe e, no espao, brota de lugares onde no deve-ria estar. No espao se disseminam stios de exposio onde o tempo se estende.

    EJicorregadio, o ,lugar mestio expe o passante. Mas nada se passa sem este escorrego. Ningum jamais se modificou, nem coisa

    ,3.1guma DO mundo, sem se recuperar de u~da. Toda evoluo e todo aprendizado exigem a passagem pelo lugar mesti50. De forma

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  • que o conhecimento, seja pensamento ou inveno, no cessa de pas-sar de um lugar mestio a outro, se expondo sempre port~nto, _e ~quele que conhece, pensa ou inventa logo se torna um passante fl?es: tio. Nem posto nem oposto, incessantemente exposto. Pouco em equilbrio, e tambm raramente em desequilbrio, sempre desviado do lugar, errante, sem moradia fixa . .-Caracteriza-o o no-lugar, sim, o alargamento, portanto a liberdade ou, melhor ainda, o desaJ'rumo, -;'ta condio constrangedora e soberana da condu~';;-~~r!Jde.

    Eis j quase descrito o mestio instrudo, cuja instruo jamais termina: naturalmente, e tambm atravs de suas experincias, ele acaba de entrar no tempo; deixou seu lugar, seu ser e seu ali, sua aldeia natal, excludo do paraso atravessou vrios rios, consciente de perigos e riscos; eis que agora decola da prpria terra: habitar ele o tempo?

    No, ningum habita o tempo, porque ele exclui os mestios e desaloja todo mundo imediatamente. por isso que todos vivemos, a partir de ento, desalojados.

    Escrever

    Durante esta viagem de pedagogia, ento, no aconselharei ningum a deixar que uma criana permanea canhota vontade, sobretudo para escrever. Trabalho extraordinrio, o escrever mobiliza e recruta um conjunto to refinado de msculos e terminaes nervosas que, em comparao, qualquer ofcio manual fino, como a ptica e a re-lojoaria, grosseiro. Ensinar esta alta capacidade a uma populao torna-a, em primeiro lugar, uma coletividade de pessoas destras -observe-se de passagem esta palavra, pela qual os mestres destros fazem a sua publicidade para hemiplgicos. Eles podero vir a ser cirurgies do crebro, mecnicos de preciso, qualquer coisa; desco-brir a alta preciso muscular e nervosa abre para a exatido do pen-samento.

    Estrear neste mundo novo invertendo o corpo exige um abando-no perturbador. Minha vida se reduz talvez memria desse mo-

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    menta lancinante em que o corpo explode em partes e atravessa um rio transverso, onde correm as guas da lembrana e do esquecimen-!o. l!ma parte arrancala, ~utra permanece. Descoberta e abertura cuja cicatrizao diferenciada ser descrita, a seguir, por toda uma vida profissional ligada escrita.

    Essa cicatriz seguir com fidelidade a antiga sutura da alma e do corpo? O canhoto dito contrariado se torna ambidestro? No, mais provavelmente um corpo cruzado, como uma quimera: continua ca-nhoto para a tesoura, martelo, a foice, o florim, a bola, a raquete, para o gesto expressivo, salvo para a sociedade - neste caso, o corpo -; nunca deixar de pertencer minoria desajeitada, sinistra, como se diz em latim - viva a lngua grega que a diz aristocrata! Mas des-tro para a caneta e o garfo, aperta a mo certa ao ser apresentado _ aqui a alma -; bem educado p~ra a vida pblica mas canhoto na ca-

    -'rcia e na vida privada. A esses organismos completos, as mos cheias. /"---Como adquirir enfim tolerncia e no-violncia, seno colocan- - '\', i do-se no ponto de vista do outro, sa~e~ do Outro lado?

    ""'------- No aconselharei ningum a privar uma criana dessa aventura, da travessia do rio, dessa riqueza, desse tesouro que nunca consegui esgotar, pois e!e _co~t~m virtualmente a aprendizagem~ o, universo da t,?lerncia e o cintilamento solar da ateno. Os chamados canhotos contrariados vivem em um mundo que a maioria dos outros s ex-plora pela metade, Conhecem limite e privao, enquanto eu sou completo: hermafrodita lateral.

    Sexo

    Apenas alguns viventes desfrutam de um sexo, enquanto tudo no mundo, inerte ou vivo, munido de um sentido. Este vai mais longe, mais fundo, que aquele. Alm disso, esquerda e direita se dizem mais coisas do que macho e fmea e separam mais universalmente do que a distino por gnero.

    Os astros giram e avanam orientados, como as partculas em torno do ncleo do tomo, Cristais e molculas so lateralizados,

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  • com simetrias e assimetrias altamente refinadas. Sentido e orientao no tm origem nos homens nem em suas preferncias, suas inclina-es, mas no mundo inerte antes do vivo, e no vivo antes da cultura. As coisas se inclinam: campos de fora, auroras boreais, turbulncias, ciclones, manchas sobre o planeta Jpiter ... o universo nasceu, diz-se, de uma ruptura de simetria. O sentido percorre portanto a imensido do cu, entra na mquina do detalhe e cavalga a seta do tempo. De-pois passa para as conchas, levogiros, dextrogiros, aos crustceos que ostentam uma pina grande ao lado da outra, menor, nisto heter6ce-los, em seguida a todos os corpos, aos nossos, aos olhos, s abas das narinas, raiz dos cabelos e ao equilbrio algo rompido do peito fe-minino: o seio esquerdo sobrepuja o seio direito, pelo menos estatis-ticamente. Atravessa nossos corpos e se coloca nos objetos fabrica-dos. O canhoto se infiltra com dificuldade na floresta da tecnologia destra.

    A orientao convm enfim a nossas preferncias, a nossas divi-ses culturais, os vermelhos no poder e os brancos como rus, ou ao contrrio, pelo hemiciclo das revolues. A poltica, pequena, no fim da fila, loucamente recomea. Se o tribunal da sociologia me conde-nasse por no ter dito que o mundo s6 se orienta pela projeo de suas divises ou pela imposiO de suas escolhas, acho que responde-ria: e, contudo, ele gira. O mundo lateralizado em toda parte; ele assim.

    A orientao vai do local ao global e do pequeno ao grande, tomos e astros, da matria inerte ao ser vivo, cristais e conchas, da natureza cultura, do puro ao aplicado, do espao ao tempo, das coisas s lnguas: atravessa tudo, at mesmo, sem dificuldade, as pas-sagens que a filosofia considera as mais delicadas.

    Ora, a diviso por gnero diz respeito somente aos viventes se-xuados, a alguns papis sociais, s vezes linguagem. Pouca coisa, em suma.

    Todo mundo diz, sem saber o que repete, que a bssola, indi-cando o norte, permite que nos orientemos. E se eu, aquitnio, cali-forniano, habitante do sudoeste, decidisse me orientar pelo sul? Ou

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    .L l'

    ento: v sempre em frente, nos dizem, sem reparar que a retido recomenda dobrar a estibordo. Como pode a justia se apresentar sob a imagem publicitria da balana equilibrada, quando o prprio termo 'direito' a faz pender sempre para uma mo? Neste caso, leva-do pela inclinao, o dizer no inclinado pelo gnero.

    Em suma, o sexo pesa menos que o sentido, ou o macho que a direita. Costumamos viver mais mergulhados no turbilho latera-lizado que na emoo sexual. Esta comparao mostra a experincia do canhoto, contrariado ou completo, no interior da primeira parti-lha, como mais intensa e mais ampla que a experincia mtica, do andrgino, no interior da segunda. O canhoto vai at o objeto, dos cristais s estrelas, aberto para o mundo, por conseqncia cognos-cente. O hermafrodita se detm na carne, voltado sobre si, forosa-mente narcisista.

    Nada, ento, na natureza inerte ou animada, nem na cultura da linguagem ou da imagem, se refere a um espao ou a um tempo homogneos ou istropos, reversveis, que se possa repartir vonta-de, de maneira perfeitamente equilibrada ou simtrica. No existe indiferena balanceada. No h centro nem eixo, inencontrveis ou ausentes.

    A orientao pode ento ser considerada originria, invariante, irredutvel, to constantemente fsica que se torna metafsica. Por meio dela, universal, estabelecemos comunicao com o universo que nasceu, repito, desse clinamen antigo, rejuvenescido por nossas cincias cOI]:temporneas sob a denominao de ruptura de simetria.

    Leibnz chega a identific-la com a razo de ser das coisas: elas existem em vez de nada. Pode-se assim descrever o princpio da razo como uma diferencial de sentido e desenh-lo por meio de uma pe-quena seta partindo do centro ausente e inencontrvel para se dirigir no importa para onde. Sua inclinao surge ento como um raio, em lugares e tempos improvveis.

    Donde se conclui que o ambidestro no tem razo de ser: nulo, abaixo do sentido, no zero, indeciso, banal, no codificado, doente

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  • de no ter carncias. O destro ou O" canhoto vivem num semimundo e deitam-se num sentido, de um lado, virados sobre uma metade. Fracionrios, mas justificados pela razo de ser: cegos, alm disso, para seu complemento morto, privados do liame virtual com o outro sentido; o macho procura a fmea que atrai, e o sexo brilha com o desejo do instante somador, enquanto a partilha do sentido despro-vida disso. Nada permite direita esperar um encontro com a es-querda, o pontilhado at ela se apaga. O hermafrodita, raro, se en-contra to freqentemente quanto os coitos mesmo frustrados, ou as fmeas grvidas ... enquanto o corpo completo dorme tranqilo, pois no pode virar do avesso, nem se converter jamais. Universo pleno, um ou soma de metades.

    O ambidestro: neutro; os outros dois: metades; s o canhoto contrariado perfaz o pleno e a unidade. Zero; duas metades; um in-divduo indiviso. Um mundo, ou antes um universo, fragmentos ou nada. Quem no canhoto completo se v constrangido anlise, porque vive entre a diviso e a destruio.

    Quem se sente pleno no v, nem experimenta, o limite. Assim, no compreende o corte, a falta, o desejo desenfreado de transgredir uma fronteira inacessvel que ele se pergunte por onde passa. Levei muito tempo para compreender minha sorte inexprimvel em no conseguir compreender essas extravagncias.

    Como aquela que consiste, por exemplo, em repetir que todas as sociedades se fundamentam na troca. No: a seta simples, assim-trica, mais elementar, d ao parasita, sem discusso, o primeiro lugar, perigoso, trgico, expo~to. Precisa-se do direito, no mnimo, e da moral, no mximo, para construir, pacientemente, a seta dupla das trocas globalmente equilibradas. Em todo canto e sempre, a orienta-o comea; falta ainda construir os diferentes balanceamentos. A troca, portanto, fica em segundo lugar.

    Da escrita pena, nossa poca passa ao teclado. Nele, a quantos compositores a mo esquerda faz falta! Esta acompanha, dizem eles, servial, escrava, sombra da outra. No: as mos fazem amor, ao

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    entrelaarem as notas; que barbrie to habitual deixar uma delas quase passiva! Andrginas s vezes, em miraculosas partituras que nos fazem ouvi-las verdadeiramente bilateralizadas.

    O prprio piano ilustra o corpo completo, bem plano, codifica-do em toda parte, o corpo se assemelha mesmo a esta mesa. Teclados cortados, mesas quebradas, dos quais s se podem ler os fragmentos ou as anlises, pianos baixos, cujo alto se perderia no cinza, apagado pelas nuvens, instrumentos agudos, em que o baixo se perde na som-bra profunda, eis os canhotos ou os destros. Ora, amanh no escre-veremos mais com esta nica mo que segura o lpis ou a caneta sobre uma pgina, orientados ou desorientados, mas com duas mos complementares sobre teclados ou outros consoles. A questo da es-crita est mudada: quem sabe, teremos que formar tambm destros completados por sua esquerda. Estamos saindo da civilizao reta do estilo para entrar na dos teclados, planria, volumosa e descentrada. Isso nos mudar, corpos e almas, e isso transformar o tempo.

    Quimera

    Onde soa o centro do piano? Em torno do terceiro l? Oua o xis ou o ixe da escala ascendente da esquerda para a direita, e encontre, nas proximidades de algum meio, a cascata de notas escorrendo do alto para o baixo; escute a quimera e o ponto de encaixe. Neste ponto da escala, vernal, jaz a encruzilhada, sob a esttua de Hermafrodite; este lugar primaveril se encontra no corpo, eu o conheo como dor e como fonte, cicatriz e origem, tesouro e dobra secreta; uma atadura por ele pasSa, como o curativo de um segundo caminho e deste como ligadura do primeiro. No rasgue a bandagem da quimera.

    Nossos ancestrais procuravam justamente o lugar misterioso on-de o corpo se ata alma, os laos e as dobras desse n.

    O canhoto contrariado se parece com uma quimera que levasse sua alma direita, porque escreve do lado das obras de cultura, e su corpo esquerda, porque ali segura a sua ferramenta de trabalho para ganhar a vida; eis um mundo contnuo, passando por suas entranhas,

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    i , ,

  • que une o vivente cultura pura, mo para trabalhar a terra ou catar o gro, mo para escrever com estilo ou compor msica, entron-camento para o lugar vernal, onde o trabalho corporal encontra no penso, como prolongamento normal, o pensamento altamente abs-trato.

    Esse monstro completo, quero dizer, normal, unicrnio, esfinge, mulher-serpente ou sereia, constri um universo conexo, passando pelos encaixes do centro, que une a vida privada ao coletivo exterior, mo para a carcia, lado para o sinal e a saudao, onde se tocam e se misturam os espaos de jogo e a gravidade refinada, canhoto na bola e destro na caneta, passagem pelo ponto decisivo, onde o sentido de sensao se transforma em sentido de significao, onde a solido se abre, onde a ateno livre torna-se produtiva, onde o riso se mesclar com lgrimas, onde o rigor se refina em beleza.

    O canhoto contrariado-completado escorrega constantemente sobre o penso ou a conexo, pratic,a,cem vezes por dia a escolha pela qual o suor industrioso se dirige s singularidades da arte, pelo qual o trabalho medocre e insistente se expande em obra, pelo qual as fermentaes putrescentes da terra se extinguem no universal sob forma pura.

  • sentido de interseco, pela dupla orientao. A grande cruz da qui-mera desenha e produz essa interseco que, mais ainda, quer dizer produto. Descoberta luminosa: o sentido produz o sexo, os dois sen-tidos so seus fatores. O desejo, no meio, o encontro agudo, incisi-vo, vivo, desses dois sentidos que formam o mundo e nos fazem participar dele.

    O crebro simples, duplo e cruzado, interseco e produto. O sexo simples, duplo e cruzado. A lngua, no centro, simples, dupla e cruzada, sopra sempre dvida, e tripla, feita para traduzir) cantar o quimrico. Fendida, a lngua se bifurca, fala com duas vozes, com dois sentidos. Ela tambm produzida pelo sentido. Baixa, aguda, forte ou fraca, clara, obscura, verdadeira ou falsa, rigorosa, imagin-ria, mentirosa ou leal, estrangeira ou verncula, atraente, repugnan-te, sempre polarizada. Sensata, insensata. Mas, de repente, passando de um sentido ao outro, e depois ao no-sentido, atravs de um lugar mestio.

    Dobra e n

    Sei l, mas sei o que se passa no centro. Conheo o envoltrio, no-meei-o penso ou curativo, cruz ou cruzamento. Qual faixa fica por cima, qual por baixo?

    Essa pergunta elementar se coloca quando seguramos nas mos duas hastes e nos preparamos para fazer um n, antiga prtica de marujos e teceles, ou teoria dos grafos, esta bem nova. Por baixo, por cima. como se brincssemos de main chaude. '" Penlope, tecel, entrelaa as malhas assim. Direito, avesso. Todo n complexo se des-mancha em tantas dobras locais onde a mesma questo- se recoloca. Por cima, por baixo. Outra maneira de ligar o esquerdo e o direito, basta inclinar-se um pouco e logo se percebe isso. As duas mos te-

    Na brincadeira de main chaude, duas crianas testam seus reflexos, uma ten-tando retirar sua mo da posio inferior e acertar um tapa na mo da outra, originalmente colocada sobre a sua. (N. da T.)

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    "

    _.

    cem ou tricotam juntas, complementares, como ainda agora corriam sobre o teclado. Simples e duplas, elas se cruzam: em que sentido? Antes de ensinar as crianas a usar o console e o teclado, ensine-as a tecer ou tricotar.

    Ora ento, caso sigamos atentamente a linguagem, o termo com-plexo, vindo da dobra e do n, designa e at mesmo descreve uma situao um pouco mais entravada que a multiplicao. Dedica-da somente ao nmero, esta no se importa com o lugar, enquanto aquele o leva em conta. O complexo designa um conjunto de dobras quando passa da aritmtica, simples desconto, para a topologia, que no despreza as dobraduras.

    Afinal, o complexo sempre descreveu tal situao, e em fsica, por exemplo, uma rede, eltrica ou de outra espcie, na qual nume-rosos fios passam alguns por cima de outros, e outros por baixo de alguns, portanto estes esquerda ou direita daqueles, como se quei-rai desenho de topologia combinatria, n generalizado, denomina-do complexo pela primeira vez por J .R. Listing, em lngua alem, e utilizado por Maxwell em sua teoria dos campos eltricos. Tal rede de fios ou de foras, interceptada algumas vezes pelas resistncias ou pelas capacidades, chamada comumente pelos fsicos de ponto de Wheatstone.

    Quando esse ponto se equilibra entre dois bornes, nenhum apa-relho de medio o consegue detectar. O complexo, ento, inobser-vvel: nem visto, nem conhecido. Existindo, porm, enorme e emba-raado s vezes, entravado, entrelaado, entretanto mergulhado em; por essa nulidade da diferena de potencial, ele s existe em potncia, como uma memria negra, a meio-caminho entre a presena e a ausncia, o esquecimento e a recordao, a energia local e a incapa-cidade global. Ali descoberto, o inconsciente, rede admirvel de ma-lhas e de ns estranhos, faz parte da famlia lgica dos mestios. Se existe, jaz nas proximidades do meio e, como ele, tende a se perder no negrume da memria, e depois a ocupar todo o espao e todo o tempo.

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  • Primeiras recordaes

    Dia. Durante o dia, Penlope tece, compe, monta a sua tapearia, segundo o carto perdido de que ningum fala, mas que segue o plano e mostra cenas da viagem, ilha de Circe, Nauscaa que joga a bola na areia da praia. Palifemo cego no interior da caverna, as Se-reias de seios nus cercando o estreito do encantamento ... pea aps pea, dia aps dia, tear para a amante, etapa para o amante, ria para o aedo ou o trovador, dcima de versos para Homero, como se todos os quatro produzissem juntos, sob a iluminao diurna: um, a sua corrida vela, a outra, a cena sobre a tela, o escritor sua pgina bem alinhada, o cantor sua partitura de melodia, a cada um sua tarefa cotidiana.

    Seguimos, escutamos, lemos, vemos os diferentes quadros, mer-gulhados no encantamento da msica: a feiticeira fatal, a jovem com suas amigas, o monstro caolho e, enfileiradas sob o vento da melodia, lbios abertos pelo vento silencioso das vozes, as mulheres-peixes de busto alto elevado acima d'gua, iluminadas pelo sol.

    Noite. Ora, quando desce o crepsculo, quando o marinheiro empina suas velas e a lira se cala, quando a noite probe o gnio de escrever e o leitor de ler e ver, diz-se que Penlope desfaz a pea tecida, apaga Circe, depois sua ilha, a bola desaparece antes dos bra-os de Nauscaa, o Cclope perde seu nico olho: os fios se desatam, o tecido desaparece, as notas musicais caem da pauta que se desfia. A sombra carrega os fantasmas, a melodia involui para o silncio ... no se vem mais as Sereias nem a boca fona e musical nem os seios sedutores representados acima da espuma.

    Esse desatamento significa que no precisamos nem de tela nem de mapa nem de partitura gravada nem de poema escrito nem, por certo, de memria. A vida nos basta e nossas negras entranhas. O que foi tecido ontem, as cadncias e as estrofes penetraram bem ntidas na nossa carne e no esquecimento obscuro, enterradas vivas na som-bra do corpo ou na penumbra da alma, na noite do tempo, sem

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    tomar lugar, no mais embaraosas que um brao ou um rgo qual-quer. Pode-se desfaz-las sem dano. Elas continuam a sem estar a. A noite se recorda do dia sem o conter; um nada lembra alguma coisa; a memria, musical, no ocupa espao. As vozes silenciam e ento trabalham, no escuro, para a clara inteligncia.

    Nossa flexibilidade contm a tapearia demolida, os cartes au-sentes e a melodia tcita, sem outro estorvo alm dos msculos, dos nervos, do corao. Derretida, a recordao se faz carne: ela semi-ressuscita, j vibrante, do mar negro.

    Manh. Creio jamais t-las ouvido cantar, nenhuma velha av me contou sobre elas, vi somente uma vez esse perfil fugaz, li apenas um resumo malfeito; entretanto, meu corpo, esta manh, sem difi-culdade, reconstitui, surgidas do mar e de suas grutas profundas, as ovelhas que saem, enormes, do antro escuro do monstro caolho, a inquietante Circe que faz emergir marujos de porcos imundos, a bola que, danante, descreve um arco, para fora do amontoado em que se acotovelam as companheiras de Nauscaa, as Sereias mudas, de peito alto sobre as ondas cantantes.

    Todos ressuscitam do tmulo vazio, dos fios desmanchados, dos versos apagados, do silncio, de meus flancos, da ausncia, da carne calma e palpitante, de meu trax sonoro saindo do mar negro.

    Tu que escutas ou vs essas figuras surgirem da sombra sob a luz refinada da msica, da narrativa escandida ou do ritmo do tecido, esquece-as sem hesitar, desfaz em ti esta noite sem pena os fios que as aprisionam ou as notas e as palavras que as evocam, vais cantarolar um dia p~ as tuas netas, compreendendo enfim, nessa noite, o que aprendeste outrora cegamente: a fada mgica e uma mocinha ing-nua jogando bola, um caolho perigoso ou uma vtima cega e, tcitas, as Sereias canoras de seios alvos acima d'gua. De cor.

    Esquecidas em nossos corpos, as Sereias se recordam; cantam o poema. Sem espao, a msica prende a ns a ilha sem memria. Diludo na carne, sem deixar qualquer trao, o lugar mestio, em torno do qual bate o ritmo e vibra a msica.

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    I' !

  • Roscea

    Treme e vibra no tempo o que se passa no centro. O voleador e o goleiro sabem esperar e preparar ao mesmo tem-

    po e no instante preciso a queda baixa, o pulo fulgurante para um ponto longnquo, o lance rpido e curto, o salto em altura, o desvio brusco se o ataque vem de frente ... esquerda, direita, acima, abaixo, como seus membros conseguem se desatar? Como, eu no sei dizer, mas sei que o corpo sabe faz-lo, porque dorme e vigia tranqilo.

    Ele se coloca em desequilbrio, em desvio, por todos os lados. Sabe, portanto, prestar ateno. Livre de sentidos. Suas hastes desata-das, flutuando, com todos os nS abertos e no cortados, braos e pernas em branco, cabea vazia; circular como uma rotunda, alto como uma plataforma de causalidade nula, ele se torna, ouso dizer, possvel. Imvel, com a potncia de mover-se. A tapearia de ainda agora se desfaz. Dir-se-ia a mancha clara, irradiada em todos os sen-tidos, da roscea de uma catedral.

    Atento, na espera, o corpo se coloca. Os filsofos chamam de tese o ato de colocar: um objeto, um fato, uma afirmao verdadeira. O corpo no se coloca como uma pedra ou uma esttua que se imo-biliza segundo as leis da esttica, repousando sobre seu pedestal e em torno de um centro de gravidade, estvel, equilibrada, abandonada s regras do repouso. H quem defina o movimento como uma srie de equilbrios, como uma seqncia de repousos.

    O corpo parece esttua quando dorme e torna-se uma aps a morte. Nos dois casos, ele repousa, algumas vezes colocado sobre um dos lados. Canhoto do lado esquerdo, destro do outro. A orientao desempenha ento o papel de uma segunda gravidade. De p, sinto minhas pernas pesadas e minha cabea bastante leve. Ps de pele s vezes calosa, idias voando, palavras emitidas por um sopro. Como se a sustentao produzisse por si s partilhas longamente disputadas na arena dos filsofos. O espiritual participa do sopro, leve, o real do pesado, volumoso. No por um vago sentimento do prprio corpo que oS teimosos se batem?

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    I

    l-I .

    Ora, se O corpo parece esttua, por seu peso dirigido para baixo, com essa esttua ele esculpe uma segunda, por sua lateralizao para a direita ou a esquerda. Ele repousa sobre seus ps, mas puxado para um lado. Seria preciso desenhar uma componente oblqua que daria a vertical verdadeira do vivente permanentemente atrado por essa diagonal, que formaria com a normal o ngulo da sua prpria queda. Tudo pende e se expe do lado em que ele cair.

    Quando voc considerado realista, dizem que tem os ps na terra. Os ps, no as mos nem a cabea. O importante jaz embaixo. Esquecem-se de indagar que p primeiro: esquerdo ou direito? Qual dos dois, nico e bem determinado, voc j tem em sua cova? A est com propriedade a esttua do corpo prprio, inclinada como um colosso moda antiga, uma perna projetada para a frente, para dar a iluso de andar. A est sua tese habitual: o repouso. Ele, aquele p na frente, dorme estirado de um lado. A esto as foras da morte.

    Ao contrrio, ele se levanta, desperta: atento, espera. Sado do repouso, no mais se abandona: aberto a qualquer eventualidade. O que vir pode chegar de qualquer direo no horizonte. Cuida ento de apagar todas as foras que faziam de si uma esttua colocada, uma tese esttica. Contudo, no se move, mas anula o ngulo de queda fatal, apaga o melhor que pode sua gravidade; inundando de subjeti-vidade sua elasticidade muscular, esquece rpido que se inclina num sentido e se coloca diferente, o jogador de tnis subindo rede para o volejo, o goleiro em estado de alerta, vigilante. Preenche seu espao equivalentemente: alto, tanto quanto baixo, direita como esquerda, deixa suas preferncias e determinaes, abandona suas pertinncias e tanto metllor o faz se muitas vezes atravessou o velho rio branco. Ei-lo corpo completado.

    Donde se v que o teimoso, que grita pela esquerda ou pela direi-ta, ou pelo baixo real ou pelo alto espiritual, carece verdadeiramente de ateno. Ele no fica, como um filho um dia pediu ao rei seu pai, esquerda e direita. O vigilante que espia, ou o pesquisador aplica-do, em suspenso, torna-se logo um canhoto contrariado.

    Este, ao invs, presta sempre ateno, pleno de virtualidade,

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  • transbordante de possibilidade e de capacidade; todo em potncia, ao p da letra, ele se expe em todos os sentidos, como um pequeno sol. Durante a sua paixo, apagou todas as suas determinaes, ou me-lhor, as completou. De nenhum modo anjo, nem fera, pois a dupla negao produz um neutro estpido e nulo, mas anjo e fera juntos, vagando sem pertinncia, corpo misturado, ascendendo ao possvel. O existente possvel, em primeiro lugar. O corpO entra em posse de sua capacidade. Exatamente, ele se eleva em potncia, sobe a mon-tante de toda passagem ao ato. No falamos aqui do corpo indeciso, embora este se ponha a montante de toda deciso, embora preceda o corte. A indeciso exprime uma doena de jusante e a pr-deciso a potncia da nascente. Pr-eis, * diz-se na melhor linguagem: virgem. O corpo atento embranquece como a neve virginal. A ateno e a espera se voltam para a brancura. O corpo inteiro busca a vizinhana do centro para se enovelar o mais possvel. Impossvel? Ele habita esses pequenos modelos reduzidos: crebro, sexo, lngua, pequenos corpos cruzados. Procura a dobra do cruzamento, lugar onde os sen-tidos se trocam uns com os outros, como se fundidos, acorrentados. Mude de direo, voc ser forado ateno. E isto se parece com o sol de rosceas: exposio em todos os sentidos.

    Arle:quim se torna Pierr.

    O crebro, o sexo, a lngua expem os possveis espera, sendo eles prprios rgos ou funes do possvel. No ponto de cruzamen-to, a questo do n, esquerda, direita, embaixo, em cima, no se coloca mais, antes a sua forma que se expe. A encruzilhada, aberta, descerrada, translcida em seus caminhos, pertence a todas as suas vias, de maneira estvel e instvel. Praa branca, rond-point estrelado, flutuante. Tudo freme em torno do eixo ou do centro transparente e em suas vizinhanas. O crebro espera, imenso complexo de vigiln-

    >I- O prefixo latino eis significa aqum. Pr-eis, portanto, um neologismo que poderia ser traduzido como "antes de aqum". Prcis, sem hfen, significa pre-ciso, fixo. (N. da T.)

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    cia, oscilando multiplamente, tremendo, vibrando no tempo como seu prprio eletroencefalograma. O sexo hesita, branco de espera e de capacidade; brilhando exatamente de potncia, ele se agitai a lngua duvida e se embaraa, reticente, branca de possvel, como uma plata-forma de causalidade nula, oscilante como a msica e os sons que a transportam, faiscante.

    Conjunto de tremores, marcas essenciais, e talvez segredo da vida, cujo nascimento reconhecido pelas palpitaes, regulares no caso do corao, caoticamente errticas e complexas para a cabea ou o sistema nervoso.

    Trilha, msica

    Voltemos pequena seta diferencial, minsculo desvio fundamental de nossa razo de ser. Deitar do lado esquerdo ou direito, passi-vos, afasta-nos muito desta seta. A inquietude, nfima, tremula perto do centro ausente: desvio originrio do repouso. Destros e canhotos dormem no fundo do leito com um sentido morto, como se diz a propsito do leito do vento ou do brao morto de um crrego. preciso que o canhoto se exponha em direo direita, e o destro em direo esquerda, para despertar de sua quietude animal ou de seu sono mortal, para aquecer sua paralisia. Fazendo isso, eles passam pelo centro.

    Aquele que parte de uma margem e a deixa, mas a conserva para tentar atingir a da frente e habit-la, adot-la, transita pelo eixo, de modo que

  • com suas fulguraes e ocultaes, pisca sobre tudo como um pe-queno sol.

    No encontramos o centro e nos inclinamos a deix-lo. Volta-mo-nos para a direita, para a esquerda, para nos afastar dele. Temos medo? No sabemos nem podemos habitar sobre esta falha, este eixo ou dentro deste turbilho: quem construiria sua casa no meio da correnteza? Nenhuma instituio, nenhum sistema, nenhuma cin-cia, nenhuma lngua, gesto ou pensamento se fundar neste lugar mvel. Que o fundamento ltimo mas nada fundamenta.

    Podemos apenas nos dirigir para ele, mas no momento de atingi-lo ns o deixamos, impulsionados pelas setas que partem dele. Passa-mos ali no mais que um instante infinitesimal. Tempo e lugar de extrema ateno.

    Voltamos para trs. Pelo mesmo esforo e com o mesmo el, o mesmo movimento, estamos nos dirigindo, mas em sentido contr-rio, para ele. E, novamente, carregados, o ultrapassamos no momen-to de ating-Io. No permanecemos nele mais do que um breve lapso de tempo. Ento viramos para o outro lado. Retomamos, ao inverso, o mesmo caminho. atrados por essa ausncia e indefinidamente re-chaados por ela. Voltamos mais uma vez. Atravessamos sem trgua o rio, na oblqua na diagonal ou na transversal, em todos os sentidos possveis do espao e do tempo, volta, ida da direita para a esquerda, de frente para trs, de alto a baixo, por cima, por baixo.

    Assim nascem o ritmo, os balanos, as cadncias, os acalantos, os refres, as cirandas, a msica, os estribilhos, melopias, a dois tem-pos e a dois ps, a quatro ps e a trs tempos, breves, longas, breves novamente, rimas femininas, rimas masculinas, juntas ou alternadas, a dana, a valsa, o par ou mpar, os rodopios de vertigem, a cama no mar quando o navio joga entre vagalhes turbulentos, as oraes e os ritos, o sino que toca com regularidade, todas as vibraes anteriores lngua; todos os movimentos passam e repassam sobre este centro ausente, onde coisa alguma jamais se detm, entre o nada e o ser, plo ou fundao ltima que s desviado de si suporta alguma coisa; eis porque a experincia, a existncia e o xtase se exprimem pela

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    mesma palavra de exposio que fala do desvio da equivalncia ... embriagus, deslumbramento, coroando o abalo geminado do amor. Sol. Tudo acompanha, no duplo sentido, o lugar mestio.

    Dan~a: minueto do lugar mesti~o

    Homens e mulheres danam juntos frente frente, mas suas linhas respectivas so ligeiramente decaladas, de modo que cada mulher fica diante do espao vazio entre dois homens e s v isso, ao passo que cada homem responde mesma lacuna entre duas mulheres. Toda mulher finge gostar desse intervalo furado, enquanto os homens cal-culam seu amor pela ausncia de mulheres cercada de mulheres. As-sim, cada qual se encontra s em sua suficincia morna e sua infeli-cidade.

    Ento, cansado de sofrer, cada um abre os braos, como faziam outrora os suplicantes, e cada mo encontra uma mo sua esquerda e outra sua direita: uma espcie de cadeia cruzada se forma, alter-nada. Cada um entretrm uma relao amorosa com os dois cor-respondentes que contornam o intervalo que ele compreende como parte de seu destino, mas como as duas outras, elas tambm se rela-cionam s duas sombras que tm em frente, que enquadram os seus espaos, nenhum deles v ningum, nem fala a algum, e ningum lhes responde: esta cadeia de splicas produz a multiplicao da ne-cessidade de suplicar. Duplo impedimento. Seguem-se da as figuras da dana, por estaes e passagens, e suas substituies infinitas.

    Malha elementar ou trama de relaes humanas reais, nunca reta mas em mttiplos arabescos, alas, laadas ou hlices nos quartos ou nas salas, nas praas, essa cadeia se parece um pouco com uma pauta musical em que as notas tomariam aos poucos o mesmo lugar para que se possa ouvir uma forma familiar num ritmo regular, galope, tango, be-bop, minueto;- emana da linha, contnua desde que nosso mundo mundo, o rumor montono que canta o indefinido mal de amor.

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  • Figura central da dana. A filosofia mestia ama os corpos mistu-rados. Post coitum omne animal triste; isso define muito bem, de fato, o animal: aquele que se entristece aps o coito.

    Portanto, homem aquele que, aps o coito, ri.

    Magnificncia

    Reconheo em mim um ser-a tranqilo e estvel, ncleo denso que no se mexe, como se parecesse o meu centro de gravidade ou a ele se unisse. Sujeito, certo, pois nada se estende por baixo dele, colocado, depositado no mais baixo. O prprio corpo se deita ou se encolhe em torno dessa posio abaixada, mas ainda gira em relao a esse ponto quando se ergue, se projeta, salta, anda, corre ou nada, passa a bola ou avana, segura uma ferramenta ou observa, viaja ou presta aten-o, conhece, inventa.

    Quem sou eu, primeiro? Esta pedra negra. Peso resultante e re-baixado dos vetores da preguia e de minhas passividades caseiras, ele se dirige para o centro da Terra. Embora localizados diversamente, os homens como um todo no desfrutam seno de um s ser-a, que faz seu gnero ou sua espcie, raiz nica de vida e de signo que d ao homem o nome de hmus. Esta seta de gravidade se dirige para a morte, comum, sem dvida alojada no mesmo centro.

    Alerta! Ateno! Tal acontecimento, tal estado de esprito, um projeto ou o pensamento passam, exigem, solicitam: ento sobrevm um deslocamento. Exatamente o desvio da marcha: a criana vai em busca de fortuna no mundo, avana um p em relao ao outro co-locado, enraizado, raiz dirigida para o centro da Terra, embora cubra uma localidade.

    Por um desequilbrio sem preocupao nem certeza, com uma inquietude incoativa, risonha e arriscada, o ser acaba de colocar o ali. Ele se expe. Deixa o abaixamento e se ergue. Acredita e estende sua rama. Salta. Deixa o estvel e se afasta. Anda, corre. Deixa a margem e se atira. Nada. Abandona o hbito para experimentar. Evolui. D.

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    Oferece. Ama. Passa a bola. Esquece sua prpria terra, sobe, viaja, vagueia, conhece, observa, inventa, pensa. No repete mais. Eu penso ou eu amo, portanto eu no sou; eu penso ou eu amo, portanto eu no sou eu; eu penso ou eu amo, portanto eu no estou mais a. Zarpei do ser-a.

    Meamos quantos palmos h entre o p esquerdo e o direito, a altura do salto, o desnvel da corrida, largura de vistas, volume dos conhecimentos, o espao que a errncia desenha, o mapa do deserto atravessado. Essa distncia separa animal e rvore, rvore e areia es-tvel. O ser-a se enraza deste lugar para o centro comum do mundo e se apia no mais baixo desse eixo, dir-se-ia um vegetal. Abrir O espao para esse equilbrio imvel projeta um segundo ponto ou lugar que merece ser chamado de exposto: deslocamento que inventa um espao entre a posio e a exposio. Desvio ou deslocamento no se referem mais ao centro da Terra nem comunidade da inva-rincia e do peso.

    Quem sou eu? Primeiro esta indesenraizvel posio estvel. r-vore ou vegetal, algum legume. Quem sou eu depois? No estou mais a, no sou mais eu, exponho-me: sou essa exposio-a. Estou no outro passo, no mais no enraizamento, mas nas extremidades, m-veis com o vento, galhos, no cume da montanha, no Outro lado do mundo onde parto, movimento animal, ondulao rptil, vo, corri-da ... sou tambm aquilo que conheo, interrogo ou penso, esttua, crculo ou tu, a quem amo.

    Finalmente, quem sou eu, no total? O conjunto do volume entre o ser-a e o ponto exposto, entre a posio deposta neste lugar, tese mais comtlmente baixa, e a exposio. Essa distncia cobre no mni-mo toda a rvore e, s vezes, um enorme espao. Chamo a esta grande dimenso: alma.

    Magni-ficat anima mea: essa grandeza, literalmente, produz, constri1 faz minha alma. Sempre proporcional exposio. As almas grandes se expem muito, e muito pouco as pusilnimes. A alegria as preenche, cumula-as, como podem aprofund-las a misria e a dor.

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  • Chamemos magnificncia o trabalho operado dentro do trax por esse desvio, cuja medida e volume so medocres Ou amplos, entre os dois plos da posiO, de um lado ponto baixo e estvel do lugar ou do ali, colocado, descolocado, e ponto alto, no-lugar ou alargamento da alma, risco e liberao, exploso. No h ser animal, ou animado, sem esses dois pontos, nem ser humano, mesmo mes-quinho, sem viagem nesse deslocamento. A morte vem de retornar ao ser-a, embaixo.

    Ao descrever na medida exata a construo da alma, no momen-to mesmo em que ela se forma, por dilatao ou trabalho no tero de um novo espao sob a fora de um vivente equivalente ao verbo, o salmo nomeia esses dois pontos: a humildade da criada, para a parte baixa, evocando assim o hmus, portanto o homem ao mesmo tem-po que a terra; e para o Muito-Alto, a santidade de Deus. No deixa de ter sentido, com efeito, chamar Deus ao conjunto infinito de to-dos os pontos de exposio. Em troca, ele faz em mim grandes coisas: fecit mihi magna ... palavras que repetem o magni-ficat identicamente, mas invertendo sua ordem. Deus magnifica minha alma; minha alma magnifica Deus; desvio entre nada e tudo, a grandeza faz Deus e minha alma.

    Alegria, dilataso, engendramento

    Sobre essa escala ereta, a criada mede duas vezes o volume em forma-o: para baixo, por sua alegria, exultao, exaltao, nomes verticais da exposio; para o alto, pelo olhar que o prprio Deus lana para trs sobre sua humildade; altura, portanto, medida duas vezes, dire-tamente e em sentido inverso. Resultado quase mtrico: o espao da alma ocupa o desvio, exaltado ao p da letra, da Terra a Deus.

    A mais modesta experincia de alegria confirma que a alma en-che com seu canto a glria dos cus ou, com seu nada, o mundo. E da mesma forma para o tempo: a beatitude corre de gerao em gerao, de modo que a alma beata habita a omnitude despojada do espao e da histria.

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    Acompanhada da alegria, a experincia abre seu espao, que vai dali para fora e pode ir da Terra a Deus, para construir ou dilatar a alma, atravs do desbastamento ou da perfurao de uma passagem, de um patamar, de uma porta, de um porto, pelos quais se acede a um desses lugares expostos. A experincia os atravessa e se expe. Entre o nada e o tudo, ela estende um espao e um tempo, como um brao livre e flutuante. O xtase exprime um fim dessa viagem, um estabelecimento, temporariamente estvel, ou, melhor, um desvio ao equilbrio em torno desse ponto exposto, em sua vizinhana, um diferencial de tempo.

    Programado, o instinto bestial se fecha sobre si, colocado. O animal um ser-a. Expondo-se pela experincia, o homem entra no tempo e o abre. No h humano sem experincia.

    Chamemos alma variedade de espao e de tempo dilatvel de sua posio natal para todas as exposies. Assim o trax, o tero, a boca, o estmago, o sexo e o corao se dilatam e se preenchem: de vento, de vida, de vinho, de canes, de bens, de prazeres, do Outro ou do reconhecimento: da fome, da sede, da misria e do ressenti-mento tambm. O estiramento aumenta com a alegria e as desgraas. Somos costurados com tecidos elsticos. O aprendizado abre no cor-po um lugar de mestiagens, para ser preenchido por outras pessoas. Ele se torna gordo.

    Alegria. De volta ao vale, habito ainda o cume da montanha que na ltima semana escalei, dilato-me daqui at o alto, sim, daqui de baixo em direo ao Muito-Alto; minha alma, baixa, vagueia, em sua variedade de tempo e de espao, o cume do Gouter, o Mont Blanc e a geleira dOs Grands-Mulets. No, no me recordo, mas sua magni-ficncia, penetrada em mim, aqui permanece: meu corpo teve que crescer, como se alargou outrora s dimenses do macio do Everest. Et exaltavit humiles ...

    Assim armei minha tenda, desde a mais frgil juventude entre as idealidades matemticas, l no alto, e as longitudes longnquas, alm da gua. Erro pelo mundo e pelo atrs-dos-mundos, a abstrao ou-sada, as paisagens, as culturas e as lnguas, as castas sociais ... minha

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  • alma se expe em conhecimentos, como se arriscou e se arrisca ainda deslizando nas geleiras. Abrir a porta, perfurar a parede, em ltima instncia se expor morte. Uma vida de experincias abre a trilha, curta ou comprida, estril ou produtiva, do nada morte, transitan-do pela alegria, indefinidamente dilatada.

    No h humano sem experincia, sem essa exposiO que progri-de at a exploso; no h humano sem essas dilataes.

    De repente elas, em pleno meio do corpo, se preenchem com um mestio, que sou eu sem ser eu. Pelo aprendizado, o eu se engendra.

    As grandezas sociais, falsas, aniquilam esse desvio: soberbos, ri-cos e potentados se colocam eles mesmos sobre seus lugares prprios, suas sedes, seus bens, seu poderio, sua glria e, afastando-os res-pectivamente desses lugares, dispersos, de suas riquezas, vazios, e de ,seu poder, derrubado, Deus de fato os aumenta, os magnifica ... deposuit potentes de sede ... et divites dimisit inanes ... Somente ento o desvio se reproduz e eles se tornam grandes, grandes pela disperso ou pela inanidade, grandes porque depostos, trs medidas verdadei-ras de grandeza e de volume.

    Experimentando, com fome no peito, estmago, tero e corao (re-cordatus miseri-cordiae, eis ainda uma dimenso medida), o es-pao imenso de minha alma exposta, recebo, humilde, no ponto bai-xo do lugar terrestre, os bens espargidos do ponto alto, no-lugar de Deus, que enchem at a borda ... esurientes implevit bonis ... esse mag-nfico desvio a que chamamos eu.

    O salmo da Virgem inventa a alma como a medida, em grande-za e volume, dessa dilatao. Ontologicamente, a alma grande; a grandeza, metricamente, a produz. Psicologicamente, a alma ale-gria. Eticamente, ao contrrio, a contrao e o apequenamento a destroem: pecado mortal de pequenez, de pusilanimidade.

    Sem conhecer sentido nem direo, nossa errncia vai do ser-a para a exposio, da humildade, verdadeira essncia do humano, pa-ra o no-lugar ausente e alto, nossa realizao; e esse movimento cria o desvio da exaltao, nossa grandeza e nosso ser, distncia vazia ou plena, miservel e jubilosa. A misria e a alegria juntas preenchem a

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    I L

    experincia fundamental que podemos ter do ser, da vida, do mundo, dos outros e do pensamento.

    Ela se refere pouco a um lugar sujeito, mas sobretudo a esse espao cujo sujeito, humilde, constitui apenas o lbio ou o bordo inferior, e cujo segundo lugar, exposto, marca a outra extremidade: exatamente a borda do outro. Assim minha alma, no lugar mestio, equivale a essa grandeza que limita, embaixo, o eu local da terra e, em cima, uma multido de outros de toda ordem.

    Nesses lugares altos, expostos, sem os quais no somos nada-um eu sem alegria -, mora o prprio Deus, apelao omnivalente, universal, integral, soma cujas verses indefinidas se nomeiam suces-sivamente cimo do Gouter, tal idealidade, este aeroporto do outro lado do mundo, tu a quem amo e que me amaste, o mundo cuja beleza me maravilha e ao qual me dou, o objeto que observo e que me enche de informao, o pensamento que desenvolvo e a linguagem que jorra sobre mim, a multido doce desses em torno dos quais gravito, tu, vocs, estrangeiros ou familiares ... no h portanto ho-mem sem Deus, sem essa funo- Deus, sem a criao e a experincia desse abismo exposto, do qual sou apenas a margem baixa, um lbio local e terroso, sem esse espao alto e grande, dilatvel, que experi-mento aqui e agora em meu trax, meu corao, meu estmago, meu tero, minha alma ... sem essa abertura para a soma da alteridade.

    O espao dilatado pela aprendizagem preenchido pelo outro com um ser, um terceiro, eu e no-eu, ao qual um dia no darei luz.

    No sujeito, primeira pessoa, os outros engendram uma terceira pessoa, finalmente bem educada.

    Manh. Trevas. Silncio. Despertar. Pequenos gestos j vivos. Ei-la pronta, a fora nOva. Armada a bomba. Oferecida a alegria. Que fazer? Sim, empreender e, decerto, com grandeza. Partir alm dos mares, construir, descobrir ... O entusiasmo traz, na madrugada, a volta ao mundo, ele e eu de volta manh da criao. Onipotncia: tudo se torna possvel. Magnificncia: esta potncia tende grandeza.

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  • Qual? Onde, como e por qu? Ento, no momento de decidir, na lembrana da histria, que s promove as grandes coisas por meio dos mortos, dos ps aos olhos e de um ombro ao outro, meu corpo, feito por ela, chora a grandeza. Presente, nele, evidente, invasora ... sem uso.

    Nada de social ou de histrico, salvo atravs de crimes e de men-tiras, nem a vitria que pisoteia mil vencidos, nem a excelncia que depe a coorte dos medocres, nada a forma, a mostra ou a d.

    Ora, com a experincia garantida desde minha infncia, violenta, pesada, exigente, jaz e se dilata em mim a grandeza. Todos os dias, ento, ela desperta uma energia pronta, isso j h vrias dcadas, para se precipitar ao primeiro chamado, vigilante atento, servidor fiel, devotado at a morte, mas s a ela obediente.

    Tal onipotncia matinal livre, tal exigncia imensa, pode se es-gotar em uma obra; mas esta raramente atinge a grandeza, e sem dvida anonimamente, pois no se trata de mim, mas dela, que pro-duz e engravidar de mim. Ento, a potncia sem uso continua in-tacta, juvenil e fresca at na velhice. Exatamente virginal. Ela canta o Magnificat.

    Ora, nada pode fazer dessa experincia uma exceo. Cada um, sem dvida, pelo menos um dia, passa por essa dilatao formidvel do ser, em volume, fora e virtualidade explosivas, essa brisa livre, essa grandeza desempregada, virgem a despeito do que se faa, a in-finita punio de ficar margem: a possibilidade infinita de aprender.

    Por que teimar em no chamar de alma a essa intensidade vagan-te, mundo e pensamento possveis em pleno meio do corpo, como uma roscea ou um pequeno sol?

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    _.

    Instruir Dia

    Noite Claro-escuro

    O lugar mestio O terceiro homem

    Instruir ou engendrar A terceira pessoa: procedncia A terceira mulher: concepo

    O mestio instrudo: ancestrais O mestio instrudo, de novo: origem

    Engendramento na aurora O problema do mal

    Guerra por teses O estilista e o gramtico

    paz sobre as espcies Npcias da Terra

    Paz e vida pela inveno. Encontrar Um outro nome para o mestio instrudo

    O casal genrico da histria

  • -"

    Dia

    Nem o sol nem a Terra situam-se no centro do mundo. A filosofia glorificou outrora a revoluo copernicana por ter expulsado nosso planeta desse posto, mas Kepler descobriu que o movimento geral dos astros segue rbitas elpticas, que se referem, certo, quando em conjunto, ao doador solar de fora e luz. Mas cada uma, alm disso, tem um segundo foco, do qual no se fala nunca, to eficaz e neces-srio quanto o primeiro, uma espcie de segundo sol negro. Ao sol branco, brilhante e nico, correspondem vrios focos obscuros que podem ser reunidos numa espcie de zona de forma anelar, exposta, quer dizer, colocada margem do sol.

    Alm disso, nenhum desses dois plos se encontra no meio. O centro real de cada rbita jaz exatamente em um lugar mesti-

    o, justamente entre seus dois focos, o globo fulgurante e o ponto obscuro. No, nem o sol nem a Terra se encontram no meio, e sim uma zona perdida, mestia, da qual se fala ainda menos do que de seus parceiros solares.

    Da mesma forma, um afastamento mensurvel separa, do sol do conhecimerito, um segundo foco negro, pelo menos to ativo, embo-ra escuro. Termo de uso corrente, a pesquisa, cuja raiz latina vem do crculo, assim como enciclopdia, palavra erudita que o douto Rabe-lais recopiou, em grego, da precedente, falam juntas da gnoseologia circular, centrada unicamente num dispensador de luz. Ao falar em centro de pesquisa, a lngua, redundante, tresvaria e se atrasa, porque existem, em nossos saberes, segundos focos afastados do primeiro, que encurvam os ciclos perfeitos de maneira excntrica. Sim, o co-

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  • nhecimento funciona elipticamente, como Kepler disse outrora a res-peito do sistema planetrio.

    Os fracos e os simples, pobres ou analfabetos, toda a suave mul-tido to menosprezada pelos doutos, que no a vem seno como objeto de seus estudos, os excludos do saber cannico se orientam com freqncia por esses pontos negros, sem dvida porque eles no OS cegam nem os sufocam, ou porque os sustentam assim como o sol deslumbra os filsofos. Alm do mais, reconheceriam os prprios sbios os momentos solares, os momentos de conhecimento potente, se no os misturassem s longas horas de sol negro? A verdadeira intuio se acompanha de uma indispensvel fraqueza? E o que deve a ela?

    Pela claridade, o conhecimento se descentra, como o mundo, mas, como ele, em seu el, na energia de seu movimento. Ignoramos o que nos incita a deixar a ignorncia, motivaes e finalidades, e mais ainda para onde se dirige o saber. A motricidade se encontra dividida entre a fonte ofuscante de luz e um segundo ponto obscu-ro. O no-saber contorna o saber e a ele se mistura. Una, concer-nente ao mesmo mundo e aos mesmos homens, a pesquisa gira, se-gundo seus objetos, em torno de um centro igualmente distante dos dois focos.

    Medir o desvio constante desses dois plos, considerar o que a estrela flamejante deve ao ponto cego, e este primeira, buscar as razes de uma tal distncia, avaliar a produtividade da zona obscura e mesmo a fecundidade desse par, e no mais simples comando ou regulao atrativa - o que perderia uma sem a outra? -, eis o pro-grama da Instruo Mestia, segundo a lei de Kepler.

    O que dizer dos novos centros? No passado, chamava-se cento a um poema cujos versos, ou fragmentos de versos, eram tomados de diversos autores. Por extenso, deveramos chamar assim toda esp-cie de obra, literria, histrica, musical ou terica, fabricada com peas e pedaos copiados. Transcreva um modelo e voc ser acusado de plgio. Copie cem, e ser doutor. Exemplo: esse estudo das razes

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    .I.

    greco-latinas da palavra centro se reduz a um cento. Palavra pouco usual, na verdade, enquanto o pot-pourri que ela descreve se apresen-ta com freqncia.

    A lngua latina, ento, j conhecia a palavra e a coisa, j se com-punham essas salsadas tambm chamadas de stiras, donde se v que a preguia no tem idade. Mas antes de designar uma tal antologia, para declamar, cantar ou citar, ela chamava cento ao pano feito de pedaos remendados, um trapo de tecido compsito. Eis de volta o casaco de Arlequim, comediante situado no centro do palco e deste livro.

    O termo francs, cujo desaparecimento no meio da abundncia de objetos que deveria designar eu deploro, remete, como seu equi-valente em latim, ao grego kentrn, que traduz exatamente cento e o cento, poema feito de pedaos tirados de diversas fontes e casaco remendado, um desempenhando o papel de imagem do outro. Mas, antes e em primeiro lugar, kentrn designa o aguilho com o qual o lavrador estimulava, antigamente, a parelha de bois da charrua, a arma no ventre da abelha ou na traseira do escorpio, mas tambm um chicote de pregos, instrumento de tortura.

    Ora, a mesma palavra designa o instrumento de punio e aquele que a sofre ou a merece, a vtima. O centro, portanto, acaba por indicar o miservel, condenado s esporas ou ao aguilho mortal, e descreve o seu lgar. Kentrn ento traduz o centro do crculo, o ponto agudo, a singularidade situados em seu meio. O lugar do pal-co, onde Arlequim se despiu. No me lembro mais em que cidade de minha infncia a praa central era chamada com esse nome: praa dos CenteS.

    Sozinha, sem trabalho, a lngua fala com vrias vozes e conta sem primeira pessoa o desfolhar do preldio. Eis o casaco, cento remen-dado, mais o relato simplesmente aditivo e compsito da queda das folhas sucessivas do traje ou das pginas que narram o desvestimen-to; eis, tambm, o Imperador da Lua no centro, alvo da caoada do pblico e logo seu saco de pancadas, sob as vaias e os apupos; eis, enfim, o que Arlequim traz no centro de seu centro, no interior de

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  • todas as dobras de suas vestes, ou por baixo de todas as suas roupas de baixo: o que ele , um e vrios.

    Ele o p