seminario 5

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Felipe Eduardo Ferreira Marta A memória das lutas ou o lugar do “DO”: as artes marciais e a construção de um caminho oriental para a cultura corporal na cidade de São Paulo DOUTORADO EM HISTÓRIA SÃO PAULO 2009

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filosofia e educação física no ensino. reflexão acerca da educação

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    Felipe Eduardo Ferreira Marta

    A memria das lutas ou o lugar do DO: as artes marciais e a construo de um caminho oriental para a cultura

    corporal na cidade de So Paulo

    DOUTORADO EM HISTRIA

    SO PAULO

    2009

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    Felipe Eduardo Ferreira Marta

    A memria das lutas ou o lugar do DO: as artes marciais e a construo de um caminho oriental para a cultura

    corporal na cidade de So Paulo

    DOUTORADO EM HISTRIA

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Histria Social, sob a orientao da Prof Dr Estefnia Knotz Canguu Fraga.

    SO PAULO

    2009

  • Banca examinadora.

    _______________________.

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    _______________________.

  • memria de, Benedito, Ariadna, Faustino e Maria. Meus avs e avs. Pessoas de pouco estudo, com quem pouco tive a oportunidade de conversar e ouvir narrar a prpria histria, mas que mesmo assim fui capaz de amar e admirar. No viveram o suficiente para presenciar esse momento, porm a eles que rendo essa pequena homenagem e para honrar o nome deles que tenho vivido os meus dias.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, que iluminou e que ilumina meus passos, pela sabedoria conquistada durante o longo percurso.

    Acredito que toda pesquisa possui uma histria que normalmente no figura em suas linhas. Os bastidores de uma pesquisa so por vezes to ou mais importantes que a pesquisa em si, pois as pessoas que atuaram nesses bastidores so, em conjunto com o autor, uma parte importante do resultado final. Com esse estudo no foi diferente. Ao longo de todo esse tempo contei com a ajuda de muitas pessoas, s quais no poderia deixar de agradecer nesse momento.

    Agradeo minha famlia, especialmente Camila, minha amada esposa, uma pessoa fundamental nesse processo, que me auxiliou nas interminveis transcries de entrevistas e que soube entender meus momentos de ansiedade, a cada perodo de entrega de relatrio, no deixando que meu gnio explosivo abalasse nossa doce relao. Uma pessoa que assumiu o compromisso de caminhar ao meu lado e de cujo amor tenho tido a oportunidade de desfrutar a cada dia. Aos meus irmos, e principalmente aos meus pais, pelo amor com que me criaram, pela educao que me proporcionaram e pelo apoio sem medida que me deram em cada momento de dificuldade.

    Agradeo Prof. Estefnia, por ter aceitado o desafio de orientar este trabalho cujo tema to inusitado, se comparado aos demais temas que encontrados na rea da Histria. Sem o seu auxlio, seguramente no conseguiria concretiz-lo. Sua sensibilidade foi capaz de reconhecer em um professor de Educao Fsica um historiador em potencial. Lembro at hoje de suas palavras, ao aceitar meu projeto de mestrado, em 2004: seja o que Deus quiser. Parece que ele quis, professora. Muito obrigado.

    Agradeo aos meus colegas de turma, por contriburem com minha formao, em especial ao colega Ipojucam Dias Campos, o historiador em quem tentei me espelhar.

    Agradeo especialmente aos meus grandes amigos Chiquinho e Josi, pela calorosa acolhida em seu lar em todos os momentos de que necessitei.

    Agradeo a todos os docentes e funcionrios do Departamento de Ps-Graduao em Histria da Puc-SP, pela slida formao que me proporcionaram.

  • Agradeo aos meus novos amigos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, que foram capazes de contornar minha ausncia nos momento em que a tese me chamou.

    Agradeo tambm ao meu primo Mrcio que, em seu enorme corao, nunca me recusou a ajuda de que eu tanto necessitava.

    Ao meu amigo e confidente Marcelo, pelo incentivo dado a cada passo realizado.

    Agradeo a Capes, por ter financiado essa pesquisa. Por fim, gostaria de agradecer a todos os meus amigos de infncia que, apesar

    de no terem participado efetivamente da execuo dessa pesquisa, foram e sempre sero o meu porto seguro, compartilhando comigo suas alegrias e tristezas, permitindo que eu fizesse parte de seu cotidiano, no s durante esse perodo, mas durante toda a minha vida. Mesmo distante trago vocs sempre comigo e por isso que a vocs, Gustavo, Mohor, Cazuza, Daniel, Wirso, Zio, Dani (Pequeno), Coxinha, Rolha, Pardal, Aline, Renata, Douglas, Alexandre, Mrcio, Elaine, enfim, a todos vocs da Turma da Vista Verde, ofereo agora o meu muito obrigado.

  • A memria das lutas ou o lugar do DO: As Artes Marciais e a construo de um caminho oriental para a cultura corporal na cidade de So Paulo

    Felipe Eduardo Ferreira Marta

    Resumo

    Atualmente as artes marciais orientais so um elemento constitutivo da cultura corporal da cidade de So Paulo. Sua prtica encontra-se disponvel enquanto possibilidade de experincia. Em outras palavras, qualquer pessoa que deseje pode facilmente ter acesso a essas prticas corporais originadas nos pases do extremo oriente. Mas como isso foi possvel? Como um elemento de uma cultura to diferente em relao a que existia em So Paulo pde se estabelecer? Foi justamente para tentar responder a essas questes que escrevi este trabalho. Nesse sentido, a presente pesquisa se baseou em fontes orais, bibliogrficas e documentais, para investigar parte do processo de introduo e disseminao de algumas das mais populares artes marciais orientais atualmente praticadas na cidade de So Paulo. Especificamente sobre as fontes orais, optei por uma estratgia que focou mestres imigrantes de trs pases: Japo, China (Hong Kong) e Coria do Sul. A justificativa para tal estratgia reside no fato de que so esses os pases onde se originaram algumas das artes marciais orientais mais populares, atualmente praticadas na cidade de So Paulo. Para anlise dos depoimentos, foram observados os apontamentos de Alessandro Portelli (1997), para quem os relatos orais so um documento do presente, compartilhados em sua responsabilidade tanto pelo depoente quanto pelo pesquisador. Como resultado, observou-se que a introduo das artes marciais orientais, em muito, deve-se imigrao dos povos de origem oriental, iniciada nos anos iniciais do sculo XX, e que parte do sucesso no trabalho de disseminao dessas prticas deve-se ao processo de modernizao, na perspectiva defendida por Norbert Elias (1994), ao qual elas foram submetidas. Essa modernizao expressou-se na adoo em seus pases de origem e tambm no pas receptor, no caso o Brasil, de alguns padres de trabalho corporal de origem europia, com destaque, nesse sentido, para o esporte e para os mtodos ginsticos e tambm para o controle da violncia potencial inerente a essas prticas. Verificou-se tambm que o perodo Ps II Guerra Mundial, mais especificamente nas dcadas de 1960 e 1970, representou um novo momento no processo de disseminao dessas prticas na cidade, processo que at ento vinha sendo promovido pelo trabalho exclusivo dos mestres imigrantes e que, a partir desse momento, comea a se beneficiar do surgimento de um terreno frtil para essas prticas advindo do aumento de sua visibilidade na cidade, um fenmeno gerado pela difuso em massa de produtos da indstria do entretenimento relacionados s artes marciais orientais. Por fim, verificou-se o papel de um fenmeno que teve incio para algumas dessas prticas ainda nos anos finais do sculo XIX, em seus respectivos pases de origem, mas que atualmente continua em curso, a esportivizao. Nesse sentido, com o auxlio dos estudos realizados por Pierre Bourdieu (1990; 1983) e Norbert Elias (1994; 1992), verificou-se que os desdobramentos desse processo tm sido os responsveis por um embate entre as tradies dessas artes marciais orientais e os anseios daqueles que so partidrios do processo de modernizao, ocidentalizao e esportivizao para essas prticas. Tal situao tem agido no sentido de tornar possvel a associao das artes marciais na cidade de So Paulo a uma diversidade de sentidos, que, de alguma forma, buscam saciar os anseios dos atores sociais envolvidos no cotidiano das artes marciais, seja no trabalho de disseminao das prticas, seja no seu consumo. Palavras-chave: So Paulo, histria oral, cultura corporal, artes marciais orientais, modernizao, ocidentalizao, e esportivizao.

  • The memory of the struggles or the place of "DO": The Martial Arts and the construction of an oriental way for the corporal culture in the city of So Paulo

    Felipe Eduardo Ferreira Marta

    Abstract

    Currently, the eastern martial arts are a part of the corporal culture of the city of So Paulo. His practice is available as an opportunity to experience. In other words, anyone that desire easily can have access to those corporal practices originated at countries of the far east. But how that was possible? How an element of so different culture is able to be established in So Paulo? To try to answer those questions that, I wrote this work. Accordingly, this research was based on oral sources, bibliographic and documentary to investigate the process of introduction and spread of some of the most popular eastern martial arts practiced today in the city of So Paulo. Specifically on oral sources, I chose a strategy that focused masters immigrants from three countries: Japan, China (Hong Kong) and South Korea. The justification for such strategy resides in the fact of that are those the countries where originated some of the most popular eastern martial arts, currently practiced in the city of So Paulo. For analysis of the statements, were observed the annotations of Alessandro Portelli (1997), for whom the oral reports It is a document of present, in its shared responsibility by both the deponent as the researcher. As a result, it was observed that the introduction of oriental martial arts in most due to the migration of peoples of oriental origin, started in the early years of the twentieth century, and that the success in the work of dissemination of such practices should be the process of modernization, the perspective advocated by Norbert Elias (1994), to which they were submitted. This modernization is expressed in the adoption in their home countries and also in the receiving country, in Brazil, the labor standards of some body of European origin, with emphasis, accordingly, for the sport and gymnastics and also the methods by "control the potential violence" inherent in such practices. It was also noted that the period after World War II, more specifically in the 1960s and 1970s, represented a new moment in the dissemination of such practices in the city. Process that until then had been promoted by the exclusive work of the masters immigrants and that from that moment on, begin to benefit from the emergence of a breeding ground for these practices arise from increased visibility in the city, a phenomenon generated by the diffusion mass products of the entertainment industry relating to eastern martial arts. Finally, there was the role of a phenomenon that began for some of these practices even in the final years of the nineteenth century, in their home countries, but currently still in progress, making it a sport. Accordingly, with the help of the studies conducted by Pierre Bourdieu (1990, 1983) and Norbert Elias (1994, 1992), it was found that the unfolding of this process have been the responsible for a clash between the traditions of martial arts and oriental desires of those who are supporters of the process of modernization, Westernization and spotivization of these practices. Such situation has acted in the sense of become possible the association of the martial arts in a variety of ways. Senses that in some way seek satiate the desires of the actors involved in the life of martial arts, are the work of dissemination of the practice and are in its consumption.

    Keywords: So Paulo, oral history, corporal culture, eastern martial arts, modernization, westernization and sportivization.

  • SUMRIO

    INTRODUO.........................................................................................................................1

    I Possibilidades de Experincias: Artes Marciais e cultura corporal no sculo XX ..................................................................................................................................26

    1 As filhas de Marte adotadas por Salus e Victria: da necessidade ao sentido moderno ............................................................................................................31

    2 Dois bronzes no tatame....................................................................................48

    2.1 Terra estrangeira, sociabilidades e identidade: a memria das lutas e o perodo Pr-II Guerra Mundial.........................................................................51

    2.2 Tcnicos para Brasil. Sim, mas com alguma coisa a mais... A memria das lutas e o perodo Ps-II Guerra Mundial...........................................................67

    II Memrias em disputa: artes marciais orientais, visibilidade, esportivizao e sociabilidades na cidade ......................................................................84

    1 Artes Marciais orientais e sua visibilidade na cidade: o surgimento de um novo tipo de mestre, os cinemas do Centro e o Judoka.......................90

    1.1Visibilidade e presena: as artes marciais orientais na cidade ...................122

    2 Ocidentalizao e esportivizao brasileira: tradies, identidades ou as pedras no caminho ..........................................................................................143

    2.1 A memria das lutas e as condies materiais necessrias prtica ........146

    2.2 A memria das lutas: esporte, sade e defesa pessoal ..............................156

    2.3 A memria das lutas entre a tradio e a esportivizao ..........................163

  • CONSIDERAES FINAIS ...........................................................................................177

    FONTES ..................................................................................................................................186

    BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................189

    ANEXOS..................................................................................................................................197

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    INTRODUO

    Oficialmente o presente estudo teve sua origem em setembro de 2004 quando, aps a entrega de minha dissertao de mestrado intitulada O caminho dos ps e das mos: Taekwondo. Arte marcial, esporte e colnia coreana em So Paulo (1970 2000), iniciei as pesquisas para elaborar o projeto de doutoramento, para ingressar, em maro de 2005, no Programa de Estudos Ps Graduados em Histria, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    No entanto, a origem dessa pesquisa reside em um perodo um pouco mais distante. O mais adequado talvez fosse atribuir sua gnese ao imaginrio de um garoto de classe mdia da Vista Verde1 que, devido ao seu fsico franzino, no raro, era vtima da truculncia de garotos maiores e mais fortes. Foi nessa poca, por volta de 1985, que as artes marciais comearam a despertar seu interesse.

    Como ainda hoje ocorre com muitos outros garotos, o mito do heri exerceu grande influncia em sua formao e escolhas (a escolha do vesturio, dos brinquedos e tambm das atividades extraescolares, onde se enquadraria a prtica de uma arte marcial oriental).

    Assim, o que era mais prximo do que aquele garoto assistia na televiso e que poderia aproxim-lo dos feitos daqueles heris que ele tanto admirava era a prtica de algum tipo de arte marcial oriental. A partir da, o universo das artes marciais orientais passou a fazer parte do seu cotidiano, acompanhando-o durante a adolescncia, juventude e idade adulta.

    1 Bairro situado na zona leste da cidade So Jos dos Campos SP composto, no perodo em questo,

    predominantemente por industririos da cidade e suas famlias.

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    A primeira questo que orientou esta pesquisa foi saber como o Brasil, um pas to distante, geogrfica e talvez mais ainda culturalmente, dos pases do chamado extremo oriente, acolheu as prticas corporais oriundas daquela regio.

    Nesse sentido, a pesquisa teve como referncia contextual o estado de So Paulo, especialmente a capital, que, a partir das dcadas finais do sculo XIX e durante todo o sculo XX, foi o grande plo de atrao de imigrantes. Esse processo migratrio abriga uma srie de transformaes no cotidiano da cidade, durante esse perodo, diversos foram os motivos e incentivos que trouxeram para c famlias inteiras de imigrantes de diferentes partes do mundo. Mas esse no foi o objetivo deste estudo.

    Esse processo justifica minha opo, na medida em que So Paulo, na atualidade, apresenta-se como um lugar onde possvel detectar a presena de mltiplas etnias, merecendo destaque as de origem oriental, no s por sua aura imersa em certo exotismo, mas tambm pela posio econmica e social que muitas dessas pessoas alcanaram na cidade. Esse aspecto pode ser percebido de muitas maneiras, mas, para utilizar um dado concreto, aponto o fato de que esse grupo de pessoas no apenas se integrou sociedade brasileira como tambm, no caso da cidade de So Paulo, foi capaz de demarcar seu prprio territrio. Nesse sentido, andar pelas ruas do Bairro da Liberdade ou fazer compras nas lojas do Bom Retiro , sem dvida alguma, estar em contato com uma parcela da cultura oriental que se incrustou em meio ao ambiente cosmopolita de uma das maiores cidades do mundo. De qualquer maneira, mesmo que no se queira visitar esses bairros, qualquer observador mais atento ir notar, em um breve passeio pela cidade, a presena de alguns traos da cultura oriental, seja nos letreiros de restaurantes especializados em servir comidas tpicas dos pases do Oriente, seja nos letreiros de alguma das muitas academias de artes marciais orientais existentes na cidade, apenas para citar alguns exemplos.

    Essas constataes a respeito da questo que buscou entender como foi possvel, a um pas como o Brasil, acolher as artes marciais orientais remetem segunda questo geradora desse estudo, que, por sua vez, buscou entender como um determinado tipo de cultura corporal originria dos pases do Oriente as artes marciais orientais pde, em um perodo de tempo relativamente curto, atingir o atual estgio de popularizao em uma cidade como So Paulo. Que transformaes essas prticas sofreram na adaptao ao novo ambiente? E ainda, quais as transformaes que a

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    prpria cidade teria sofrido, no sentido de acolher, reconhecer, aceitar e, em certa medida, valorizar essa cultura corporal?

    Um trabalho dessa natureza, obviamente, no to simples de ser realizado, dada a sua notria complexidade, algo que implicou leituras especficas sobre a cultura oriental e especialmente sobre as artes marciais orientais, alm da consulta a fontes de natureza diversa. Assim, esse estudo pretendeu ser uma contribuio ao entendimento desse processo.

    O que se pretendeu estudar foi uma parte significativa do processo de difuso das artes marciais em So Paulo, tendo como foco de anlise as prticas trazidas por imigrantes (mestres2) do Japo, China (Hong Kong) e Coria do Sul, com o objetivo de detectar se, de alguma forma, esse processo pode ser entendido como um facilitador que contribuiu para a construo de um caminho oriental, no que tange s possibilidades de experincias corporais presentes na cidade conforme a expresso condies de possibilidade utilizada por Epple (2006) ao analisar a importncia dos escritos de Michel Foucault para a construo de uma historiografia, sob o ponto de vista do gnero e que aqui estou transferindo para o ponto de vista da cultura corporal. Segundo a autora:

    [...] as condies do poder determinam a ordem do conhecimento em certo momento, pois elas definem o que ser aceito como verdade e aplicado. As condies do poder no so externas ao objeto, e o objeto no seu reflexo ou seu produto; ele incorporado nas condies de produo mtua. Do jeito que eu entendo Foucault, a anlise do discurso mostra que todas as ordens so historicamente variveis, entretanto, a historicidade de todo conhecimento no contrria s categorias histricas alm da historicidade3.

    Assim, a escolha desses trs pases se justifica, dado o entendimento corrente que os coloca como os beros de algumas das artes marciais orientais mais populares4 praticadas atualmente em nosso pas, que, em nosso entendimento,

    2 Com relao utilizao do termo mestre na classificao dos depoentes, importante destacar que,

    ao faz-lo, no estou preocupado com fato de os mesmos serem reconhecidos dessa maneira perante os rituais ou a hierarquia prprios de suas artes marciais; estou, antes, considerando-os dessa forma por entend-los representantes e disseminadores de um saber especfico, o que, portanto, salvo melhor juzo, os habilita a serem chamados de mestres. 3 Cf.: EPPLE, Angelika. Gnero e espcie da Histria. In. MALERBA, Jurandir (org.). A histria

    escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006.) 4 Como exemplo, podemos citar o Jud, o Karat, o Aikido, o Sum e o Kendo como artes marciais

    originadas no Japo, o Kung-Fu e seus vrios estilos, como arte marcial originada na China e amplamente difundida em Hong Kong, o Taekwondo e o Hapkido, como artes marciais originadas na Coria do Sul.

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    colocaram, no Brasil, as condies de possibilidade para a experimentao de outra forma de cultura corporal.

    importante considerar que j havia, na cidade de So Paulo, uma cultura corporal com a adoo dos padres europeus de trabalho corporal, o modelo esportivo ingls e os mtodos ginsticos (em especial o francs). Ou seja, durante o sculo XX, e mais especificamente nas dcadas de 30 e 40, assiste-se consolidao da Educao Fsica como disciplina obrigatria nos currculos escolares, bem como a eleio de seus contedos, os esportes e a ginstica, como alternativa de trabalho corporal nas cidades brasileiras dentro e fora das instituies de ensino formal, e que encontram sua justificativa nos discursos mdico e pedaggico, utilizados conforme os interesses polticos da poca.

    Durante aquele momento apontava-se para a disseminao da Educao Fsica como uma questo relevante a ser enfrentada pela sociedade brasileira o que gerou algumas iniciativas no sentido de firmar sua incorporao no conjunto das prticas sociais. De um lado, caminhou-se rumo institucionalizao da Educao Fsica, integrando-a definitivamente nos currculos escolares e criando-se organismos oficiais para regulament-la. Por outro, no campo da formao profissional, importantes escolas surgiram destinadas a formar tcnicos e professores de Educao Fsica. Ao mesmo tempo, este foi um perodo em que houve uma produo terica expressiva sobre essa matria, caracterizada por um forte contedo poltico [...]5.

    Foi nesse universo que as artes marciais orientais procuraram conquistar

    o seu espao e da construo desse espao que trato nesse estudo. Percebemos a contribuio pessoal de cada um dos mestres de artes

    marciais brasileiros e imigrantes entrevistados na edificao de um caminho alternativo para a cultura corporal na cidade de So Paulo, a partir do relato das experincias cotidianas contidas nas memrias desses sujeitos e na sua relao com as artes marciais que representam. Para tanto, chamo a ateno para o fato de ter eleito como ponto de partida para essa pesquisa os depoimentos colhidos juntos a mestres de artes marciais originadas nesses trs pases do oriente: Japo, China (Hong Kong) e Coria do Sul, alguns deles imigrantes, mas no s, uma vez que tambm foram colhidos depoimentos junto a mestres brasileiros, com ou sem descendncia oriental. Assim, foram

    5 Cf.: BERCITO, Sonia de Deus Rodrigues. Ser forte para fazer a nao forte: a Educao Fsica

    no Brasil (1932-1945). So Paulo, 1991, p.7. (Dissertao de mestrado apresentada ao departamento de histria da faculdade de filosofia, letras e cincias humanas, USP).

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    entrevistados mestres das seguintes artes marciais orientais: Jud6, Karat7, Aikido8, Sum9, Kendo10, Kung Fu11, Taekwondo12 e Hapkido13.

    Com respeito aos mestres imigrantes, vale destacar que, em alguns casos, esse procedimento tornou possvel o registro da memria de alguns dos precursores dessas prticas em nosso pas. Desde j, agradeo aos mestres por colaborarem com esse estudo permitindo o registro de seus depoimentos e, por consequncia, de sua experincia, resultado de anos de trabalho junto a essas prticas corporais orientais.

    Este estudo questionou tambm se todo esse processo de disseminao e aceitao das artes marciais na cidade de So Paulo, como alternativa de prtica corporal, no estaria inserido em um processo mais amplo de mudana de subjetividade, no que se refere s relaes que o brasileiro, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XX, comea a estabelecer com seu corpo.

    Essa mudana seria expressa principalmente na emergncia do dilema que colocaria em cheque o Homem da modernidade que tem o seu corpo e que expressa sua individualidade atravs do intelecto, em funo da emergncia de um novo Homem que tem e o seu corpo, mas, que tendo e sendo usa-o como ltima fronteira de expresso de uma individualidade que o coloca em relao com seus contemporneos14, pois no se deve esquecer tambm da relao que essas prticas corporais do oriente estabelecem com as ditas filosofias orientais, fortemente fundamentadas na indissociabilidade corpo e mente. Ou seria esse aspecto na atualidade apenas mais um apelo estratgico, um mero recurso de marketing? Afinal, o que de oriental essas prticas ainda carregam? Se que em algum momento desse processo, na cidade de So Paulo, elas carregaram algum trao dessa cultura.

    6 Em portugus: caminho suave.

    7 Em portugus: caminho das mos vazias.

    8 Em portugus: caminho da harmonizao das energias.

    9 De acordo com Newton (1994), citado por Gomes (2008), a palavra sum vem de sumai, antiga palavra

    japonesa que designa estrangulamentos ou golpes de chave, uma luta ou wrestling asitico, Sum uma luta desarmada, que, a priori, no teve finalidade militar, tal como remonta sua origem mtica e lendria. Seus passos mais primitivos apontariam lutas oriundas do continente, especialmente China e Coria. (Cf.: GOMES, Fbio Jos Crdias. Quatro histrias e uma epifania: estudos interdisciplinares acerca do bud japons. Dialogia. So Paulo: Universidade Nove de Julho, v.7, n.1, p. 41-52, 2008.) 10

    Em portugus: caminho da espada. 11

    Ou Wushu que em portugus significa: arte da guerra. 12

    Em portugus: caminho dos ps e das mos 13

    Em portugus: caminho da energia coordenada. 14

    Para uma melhor compreenso a respeito dessa mudana de subjetividade em relao ao Corpo sugiro a leitura de: SANTANNA, Denise Bernuzzi de. possvel realizar uma histria do corpo? In. SOARES, Carmen Lcia (Org.). Corpo e histria. Campinas, SP: Autores Associados, 2001 e; GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. O Corpo: filosofia e educao. So Paulo: tica, 2007.

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    Retomando a questo dos grupos que optei estudar e o processo migratrio dos mesmos para o nosso pas, importante frisar que, durante o sculo XX, o Brasil se apresentou como um plo de atrao para diversos grupos de imigrantes, e, em meio a esses grupos, provenientes, sobretudo, de pases da Europa, comearam a surgir tambm grupos de imigrantes de origem oriental, no obstante as crticas de intelectuais, que classificavam as pessoas desse grupo como inassimilveis enquanto raa e inadequadas para o trabalho na lavoura, conforme se observou, por exemplo, no incidente narrado por Lesser a da primeira experincia de imigrao envolvendo pessoas de origem oriental15.

    Assim, a chegada em massa desse grupo de imigrantes provenientes dos pases do Oriente, bem como seu estabelecimento em nosso pas, com destaque, nesse sentido, para os japoneses16 que representam o maior contingente de pessoas fora do Japo e, alm disso, o grande afluxo em data mais recente de pessoas originrias de Hong Kong, China, Taiwan e Coria do Sul, fizeram com que, aos poucos, a existncia de uma cultura completamente distinta daquela trazida pelos imigrantes europeus pudesse ser notada em muitas cidades brasileiras, onde colnias desses pases se desenvolveram. Contudo, em nenhuma dessas cidades houve uma concentrao to grande desses grupos quanto na cidade de So Paulo.

    15 Contudo destacamos que a primeira experincia de imigrao desse grupo foi realizada em 1810,

    quando algumas centenas de chineses aportaram no Brasil para se dedicarem ao plantio de ch no Jardim Botnico do Rio de Janeiro. Essa primeira experincia com o tempo converteu-se em um grande fracasso, primeiro porque o cultivo de ch no atingiu os resultados esperados e, segundo, em virtude do difcil relacionamento entre os imigrantes chineses e os dirigentes do Jardim Botnico. O fracasso dessa primeira experincia fomentou opinies preconceituosas em relao imigrao de pessoas oriundas dos pases do Oriente, que iam buscar fundamentao nas mais diversas teorias de superioridade tnica em voga na poca, o que dificultou por algum tempo a vinda em massa para o Brasil desses imigrantes. (Cf.: LESSER, J. A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. So Paulo: Editora Unesp, 2000) 16

    O ano de 1908 marca o incio da imigrao oficial de japoneses para o Brasil,com o aportar, em 18 de julho, do navio Kasato-Maru em terras brasileiras trazendo a bordo 781 imigrantes formando a maior colnia japonesa fora do Japo. (Cf.: LESSER, J. Em busca de um hfen. In:___. Op. cit. p. 159.)

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    Em outras palavras, esse afluxo considervel de imigrantes de origem oriental para a cidade de So Paulo, j na primeira metade do sculo XX, devido ao declnio da agricultura e crescente desenvolvimento da atividade industrial, verificado a

    partir dos anos quarenta do mesmo sculo, na cidade, permitiu que a cultura oriental17

    fosse gradativamente incorporada cidade e reconhecida por ela. Esse processo gerou intensos debates no que tange questo de esses

    imigrantes serem ou no os mais adequados para o trabalho nas lavouras brasileiras. Tal debate foi, possivelmente, responsvel pelo surgimento de certo preconceito em relao s pessoas de origem oriental, sobretudo no que se refere sua cultura, muito pouco conhecida dos brasileiros do fim do sculo XIX e incio do sculo XX; o que traz tona as seguintes questes: de que maneira essa cultura trazida pelos povos do Oriente, repudiada e desqualificada por uma parcela significativa da sociedade brasileira no final do sculo XIX e no incio do sculo XX, pde alcanar o atual estgio de popularizao, aceitao e notoriedade em uma cidade como So Paulo? Que elementos teriam atuado a favor dessa mudana na percepo da sociedade brasileira?

    Antes de mais nada, necessrio dizer que, ao imigrar, cada grupo traz consigo mais do que apenas bens materiais; traz, antes de tudo, um grande arcabouo cultural reafirmador de sua identidade, que ir influenciar o modo como iro se relacionar com o novo ambiente.

    Com efeito, considerando os grupos de origem oriental, possvel encontrar, nesse arcabouo cultural, entre outros aspectos, um elemento sui-generis, que, na adaptao nova realidade, bem como na afirmao de sua identidade, no deixou de ser praticado no novo pas: as artes marciais orientais, cuja breve caracterizao faz-se necessria18.

    Atualmente possvel observarmos a existncia de vrios tipos de artes

    17 Um indcio de que alguns aspectos da cultura oriental gradualmente se infiltraram na sociedade

    Brasileira pde ser notado ao pesquisarmos peridicos de grande circulao (revistas Veja e O Cruzeiro) no perodo de 1970 a 1980 onde foram encontradas matrias que versavam na esfera internacional sobre a China e sobre a guerra do Vietn; e na esfera domstica em matrias que versavam sobre o bairro da Liberdade em So Paulo, sobre as colnias japonesas do interior do Estado de So Paulo e tambm em algumas matrias sobre artes marciais, em especial sobre o Jiu-Jitsu no Rio de Janeiro, apenas para citar alguns exemplos. 18

    Destaco que ao utilizar o termo artes marciais entendo que o mesmo no se refere apenas aos sistemas de ataque e defesa com os prprios corpos criados nos pases do oriente. Entendo que, alm desses, o termo utilizado tambm para designar toda e qualquer tcnica de preparao do seres humanos para a guerra com ou sem a utilizao de armas e que, portanto, essas artes tiveram seu espao tambm junto cultura corporal do ocidente. Adiante retomarei a questo e explicitarei minha opo pelo termo artes marciais orientais, ao invs de simplesmente artes marciais.

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    marciais orientais, destacando-se: Koon-Tao, Kung Fu e o Tai Chi Chuan, na China; Selambam, na ndia; Karat-do, Kempo-Do, Jud, Aikido, Jujitisu, e Kendo, no Japo; Taekwondo, Subakki-do, Taekkyun-do, Kwonbop-do, e Tangsu-do, na Coria; Basilat na Malsia; e Kick Boxing, na Tailndia19.

    No artigo intitulado Observaes sobre a histria das artes marciais, Proni (1994) define arte marcial como:

    [...] conceito que engloba um amplo conjunto de tcnicas de defesa pessoal. Cada modalidade possui uma histria e uma filosofia particulares. Algumas so muito antigas, tendo surgido dentro de uma perspectiva militar; surgiram da necessidade de preservao da integridade fsica de grupos oprimidos. De um modo geral elas estabelecem uma rgida disciplina corporal e exigem respeito a cdigos ticos e a rituais de passagem20.

    No obstante o fato de as artes marciais orientais, conforme aponta Proni (1994), se configurarem como um conjunto de tcnicas de defesa pessoal, cabe destacar que, na atualidade, outros interesses, tais como necessidade de praticar uma atividade fsica, o convvio social, o interesse pela prtica de uma atividade esportiva e o interesse pela cultura e filosofia orientais, nas quais as artes marciais, em maior ou menor grau,

    encontram-se imersas, fazem com que muitas pessoas se aproximem desse tipo de atividade. Dito de outra maneira, possvel observar um sentido moderno, no que se refere busca por essas prticas corporais e nisso h um aspecto importante a ser considerado, na medida em que interessa no apenas conhecer e entender como se d a prtica das artes marciais em nossa sociedade, mas, como tambm, tentar entender como foi possvel que essas prticas de origem oriental fossem aos poucos sendo apropriadas por essa sociedade e desenvolvidas das mais diferentes formas e, em alguns casos, contrariando at mesmo as suas razes, ou seja, tentar entender como as mltiplas possibilidades de experincias foram se agregando s artes marciais orientais, expressando, dessa maneira um processo de constituio de um sentido moderno para essas prticas corporais.

    19 YANG, D. J. A new perspective of martial arts education for the 21st century. ICHPER journal, The

    official magazine of the international council for health, physical education, recreation, sport and dance, Virginia, USA, v.36, p. 23-28, 2000. 20

    PRONI, M. W. ___. Observaes sobre a histria das artes marciais. ENCONTRO DE HISTRIA DA EDUCAO FSICA E DO ESPORTE, 2, 1994, DEF/UEPG. Coletnea. Campinas: Unicamp, 1994. p.401.

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    O que se observa atualmente no Brasil que as artes marciais passaram por processo de massificao que, primeira vista, parece ter contado com o apoio de trs fatores: a) a chegada e o posterior estabelecimento, a partir do incio do sculo XX, de grupos imigrantes de origem oriental algo que j destaquei anteriormente ; b) a influncia dos meios de comunicao de massa, sobretudo o cinema e a televiso; e c) o processo de esportivizao vivenciado no apenas pelas artes marciais, mas tambm por outras prticas corporais. Os detalhes desse processo ainda carecem de mais estudo; contudo, alguns indicativos so passveis de uma maior explicao nesse momento.

    Assim, no que tange aos meios de comunicao de massa e sua influncia na massificao das artes marciais, bem como dos outros tipos de atividade fsica, como os vrios tipos de ginstica, os vrios tipos de esporte, e as outras prticas corporais do Oriente, possvel notar um movimento, a princpio sutil, porm contnuo e progressivo

    que, na atualidade assumiu grandes propores, sendo observado nas matrias jornalsticas que versam sobre os benefcios da atividade fsica, nas novelas difusoras de padres de beleza esttica, no jornalismo esportivo e nos filmes de ao patrocinados pela indstria de cinema norte-americana, em que os protagonistas, via de regra, se no so exmios lutadores de artes marciais, fazem uso de suas tcnicas de forma coreografada, nas mais diversas sequncias cinematogrficas, apenas para citar alguns exemplos.

    Alm disso, ao observar com ateno esse movimento, aparentemente desinteressado, possvel notar um sentido bem definido e que, no Brasil, evidenciou-se com mais clareza a partir da dcada de 1970, rumo a uma forma autorizada de ocupao do tempo livre21.

    Nesse sentido, destaco a importncia de um duplo argumento, o da esttica e o da sade, no desencadear e na manuteno desse movimento, pois na medida em que esses dois saberes foram se consolidando, tornaram possvel tambm o nascimento e estabelecimento do que hoje conhecemos como mundo fitness, e por que no dizer, indstria fitness, em que o lema perder calorias, e que, para alm da criao de corpos bonitos e saudveis, com egos to ou mais hipertrofiados que os msculos, contriburam e ainda contribuem, mesmo que secretamente, para o

    21 Para se ter um panorama detalhado desse processo, ver: SANTANNA, D. B. de. O prazer justificado,

    histria e lazer (So Paulo, 1969-1979). So Paulo: Marco Zero, 1992.

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    provimento de uma mo-de-obra bonita, e, principal e fundamentalmente saudvel, para o desenvolvimento dos diversos setores da economia22.

    Outro fator a ser levado em considerao no processo de massificao das artes marciais o da esportivizao23, que fez com que as mesmas, aos poucos, fossem regidas pelo sistema da organizao esportiva, muito semelhante ao da capitalista; mais do que isso, um sistema que tem no capitalismo sua base, o que torna mais complexa sua compreenso. Segundo Proni (1993):

    Durante as ltimas dcadas, algumas das chamadas artes marciais foram transformadas em modalidades esportivas. Este fato, aparentemente banal, pode ter contribudo para tornar mais complexa a compreenso do significado contemporneo dessas disciplinas corporais. Na verdade, as artes marciais no deixaram de ser o que sempre foram tcnicas de defesa pessoal , mas para que elas pudessem ganhar espao num mundo cada vez mais dominado pela concorrncia e pelo imediatismo, foi preciso que as academias se adaptassem s novas exigncias do mercado. E, em alguns casos, a expanso dessas prticas acabou suscitando a apario e o fortalecimento de federaes de mbito internacional, as quais padronizaram as tcnicas e estabeleceram normas para competies e torneios24

    Na tentativa de melhor compreender as implicaes do processo descrito acima, faz-se necessrio, ainda que de forma abreviada, o entendimento da categoria esporte. Nesse sentido, recorro a Bracht (2002), que, do ponto de vista da gnese histrica desse fenmeno, identifica a possibilidade de duas vertentes: a primeira, a da continuidade, encara o esporte como natureza essencial; e a segunda, a da descontinuidade, encara o esporte como natureza histrico-social.

    Numa viso o esporte, na sua essncia, j sempre existiu, em todas as culturas, ele apenas se atualiza em diferentes contextos e momentos histricos, e em outra, o fenmeno datado. Essas teses levam a e so fruto de vises distintas das determinaes das manifestaes culturais. So de um lado, as vises que conferem um alto grau de autonomia a essas manifestaes, vinculando-as a caractersticas especificamente humanas e aistricas, e, por outro, as vises que condicionam a cultura em maior ou menor grau (existem diferenas que fazem a diferena) s formas como o homem produz e reproduz a vida, especialmente como este vem

    22 As razes desse processo podem ser observadas em: SOARES, Carmem Lcia. Educao Fsica:

    razes europias e Brasil. Campinas, SP, 1994. 23

    O termo corresponde ao processo de transio de parte dos antigos jogos comunitrios europeus para os esportes de performance, que, no caso especfico desse estudo, ao utilizar o termo estou me referindo ao processo de introduo do esporte nas artes marciais (Cf.: PRONI, M. W. Referncias para o estudo das artes marciais. ENCONTRO DE HISTRIA DA EDUCAO FSICA E DO ESPORTE,1, 1993, FEF/Unicamp. Coletnea. Campinas: Unicamp, 1994). 24

    PRONI, M. W. Op. Cit., 1993. p.22-23.

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    organizando-se para produzir e distribuir bens (numa linguagem mais ortodoxa: condicionada pelo modo de produo e seus desenvolvimentos)25.

    Com efeito, recorro tambm a Bourdieu (1990), que, com relao ao esporte, defende a existncia de um campo especfico, portanto:

    Para que uma sociologia do esporte possa se constituir, preciso primeiro perceber que no se pode analisar um esporte particular, independente do conjunto de prticas esportivas; preciso pensar o espao das prticas esportivas como um sistema no qual cada elemento recebe seu valor distintivo. Em outros termos, para compreender um esporte, qualquer que seja ele, preciso reconhecer a posio que ele ocupa no espao dos esportes. Este s pode ser construdo a partir de conjuntos indicadores, como, de um lado, a distribuio dos praticantes segundo sua posio no espao social, a distribuio das diferentes federaes, segundo o nmero de adeptos, sua riqueza, as caractersticas sociais dos dirigentes, etc., ou, de outro lado, o tipo de relao com o corpo que ele favorece ou exige, conforme implique um contato direto, um corpo-a-corpo, como a luta ou o rgbi, ou, ao contrrio, exclua qualquer contato, como o golfe, ou s autorize por bola interposta, como o tnis, ou por intermdio de instrumentos, como a esgrima. Em seguida, preciso relacionar esse espao dos esportes como um espao social que se manifesta nele. Isso a fim de evitar os erros ligados ao estabelecimento de uma relao direta entre um esporte e um grupo o que a intuio comum sugere26.

    Alm da constituio de um campo especfico para as artes marciais orientais, h que se atentar para outro aspecto determinante do processo de esportivizao dessas prticas, diretamente relacionado ao processo civilizador,27 na medida em que, para que sua aceitao fosse possvel, ao longo do sculo XX, delas foram gradualmente retirados ou sublimados os gestos considerados violentos em demasia, o que batizei como controle da violncia potencial28. Esse movimento, evidentemente, no ocorreu de maneira idntica, nas diferentes artes, uma vez que algumas delas encontram justamente na crtica ao processo de controle da violncia potencial uma ferramenta de marketing para sua difuso. Dois exemplos clssicos disso podem ser observados no Karat Kyokushin e em alguns estilos de Jiu-Jitsu, em especial os que enfatizam as competies batizadas de vale-tudo29. Ao mesmo tempo,

    25BRACHT, Valter. Esporte, histria e cultura. In. PRONI, Marcelo Weishaupt; LUCENA, Ricardo de Figueredo (orgs.). Esporte: histria e sociedade. Campinas, SP: Autores Associados, 2002. 26BOURDIEU, P., Programa para uma sociologia do esporte. In:___. Coisas ditas. So Paulo: Brasiliense, 1990, p.208. 27

    ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, v1. 28A questo do controle da violncia potencial seu papel no desenvolvimento das artes marciais orientais sero abordados com mais detalhes no captulo 2 da segunda parte do presente estudo. 29

    As competies de vale-tudo possuem esse nome por apresentarem poucas restries de ao entre os competidores, tais como, categorizao por peso, idade, estilo de luta, etc. Alguns autores consideram a

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    possvel ver exemplos de artes marciais orientais que abraaram livremente essa possibilidade o controle da violncia potencial pela via da esportivizao , algo que, no por acaso, resultou em um grande ganho de popularidade e de nmero de praticantes culminado com a incluso das mesmas entre as modalidades olmpicas30.

    O entendimento do processo esportivizao que muitas das artes marciais orientais, em maior ou menor grau, sofreram constitui um ponto fundamental no que se refere massificao dessas prticas na cidade de So Paulo, porm no o nico. Assim sendo, entendo que essas prticas ainda possuem algumas caractersticas prprias s quais o entendimento desse processo de esportivizao por si s no responde.

    Estou me referindo a um elemento que supostamente permeia tanto as artes marciais orientais quanto as demais prticas corporais originadas no Oriente e que as difere do esporte ou dos vrios tipos de ginstica, quais sejam os princpios filosficos norteadores dessas prticas.

    Nesse sentido, Yang (2000), versando exclusivamente sobre as artes marciais orientais, aponta a existncia de uma forte relao entre os nomes das artes marciais e as filosofias orientais, como por exemplo, o Taosmo, que se identifica no sufixo Do. O sufixo "Do" significa caminho, um cdigo de conduta que o praticante de artes marciais deve seguir durante sua vida31. A esse respeito, Hyams (1979) afirma que:

    [...] as artes marciais, em sua modalidade mais delicada, so muito mais do que uma disputa fsica entre dois oponentes, um meio de impor a prpria vontade ou de infligir dano ao outro. Mais que isso, para os verdadeiros mestres, o Karat, o kung-fu, o aikid, o wing-chun e todas as demais artes marciais so basicamente caminhos amplos atravs dos quais eles podem alcanar a serenidade espiritual, a tranquilidade mental e a mais profunda autoconfiana32.

    Com efeito, Yang (2000) defende que todas as artes marciais do Oriente foram criadas e desenvolvidas sob uma forte influncia das tradies e valores

    ascenso das artes marciais em que se observam as competies de vale tudo como fenmeno de des-esportivizao partindo da teoria a Elisiana para quem o processo de esportivizao teria um papel como parte do processo civilizador ocidental em especial no que se refere ao controle das emoes e por consequncia da violncia. (Cf.: BOTTENBURG, Maarten van; HEILBRON, Johan. De-sportization of fighting contests: the origins and dynamics of no holds barred events and the theory of sportization. INTERNATIONAL REVIEW FOR THE SOCIOLOGY OF SPORT. v.34, Londres, n.41, p. 259282, 2006.) 30

    Nesse aspecto Jud e Taekwondo so os maiores exemplos. 31

    YANG, D.J. Op. cit. 32

    HYAMS, J. O zen nas artes marciais. So Paulo: Pensamento, 1979, p.11. (Grifo nosso).

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    socioculturais do Confucionismo33, Taosmo34, Budismo35, Zen Budismo36 e Monismo37. Acredita nas artes marciais como uma forma superior de educao associada ao movimento humano. No entanto, no que tange sua dimenso espiritual, entende que as mesmas no possuem carter religioso e, nesse sentido, aquilo que os autores classificam como espiritual estaria relacionado com a conduta de cada praticante de artes marciais na sociedade.

    As artes marciais so como um microcosmo do macrocosmo em que vivemos, no qual os valores filosficos, religiosos e culturais do Oriente encontram um ponto de congruncia e integrao. Pelo estudo das artes marciais, uma pessoa pode confrontar a essncia da grande sabedoria do oriental, com seu prprio ego de modo a se tornar um ser humano harmonioso, com seu corpo e mente conectados. As artes marciais podem ainda ser um meio para que as pessoas possam melhorar sua autoestima, emocional, social e mental, alm de suas capacidades fsicas. No obstante, a prtica das artes marciais no garante um crescimento espiritual, uma vez que, as artes marciais no so uma religio. Ser um verdadeiro mestre nas artes marciais no significa, entretanto, dominar ou derrotar outras pessoas em uma competio, dado que seu propsito principal to somente proporcionar ao praticante o domnio de seu prprio ego pelo constante aperfeioamento pessoal proveniente de sua devoo para com a disciplina escolhida. Nesse sentido, as artes marciais configuram-se como uma forma superior de educao conectada ao

    33 Filosofia baseada nos ensinamentos de Kung Fu Tzu (cerca de 550 a.C.), conhecido no ocidente como

    Confcio. Enfatiza a harmonia social promovida pelo respeito aos superiores e benevolncia para com os subordinados. Tornou-se a filosofia oficial da China imperial de aproximadamente 200 d.C. at a queda da Dinastia Ching e fundao da Repblica Chinesa, em 1911. Os ensinamentos confucionistas formaram a base do sistema de exames imperiais usado para selecionar funcionrios pblicos e proporcionaram grande parte da lgica da administrao do Imprio Chins. (Cf.: STEVENSON, J. O mais completo guia sobre filosofia oriental. So Paulo: Arx, 2002. p.217) 34Ensinamento filosfico-religioso desenvolvido, sobretudo por Lao-tse (sc. VI a.C.) e Tchuang-tseu (sc. IV a.C.), filsofos chineses, cuja noo fundamental o Tao - Caminho - que nomeia o grande princpio da ordem universal, sintetizador e harmonizador do Yin e do Yang, e ao qual se tem acesso por meio da meditao e da prtica de exerccios fsicos e respiratrios. (Cf.: FERREIRA, A. B. H. Novo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.1647). 35Sistema tico, religioso e filosfico fundado por Siddharta Gautama, o Buda (sia Central, 563 - 483 a.C.), difundido por todo o L. asitico, e que consiste fundamentalmente no ensinamento de como pela conquista do mais alto conhecimento se escapa da roda dos nascimentos e chega ao nirvana. Por volta do sc. III separam-se dois ramos do budismo: O budismo hinaiana e o budismo maaiana. Budismo hinaiana: Ramo ortodoxo do budismo, tambm chamado de pequeno veculo, e que se espalhou pelo S. da sia. Budismo maaiana: Ramo do Budismo, tambm chamado de grande veculo, difundido principalmente por todo o N. da sia, e que se ope ao budismo primitivo por considerar que, muito embora aspirao final deva ser o nirvana, deva este, por compaixo, ser adiado, a fim de que o sbio possa dedicar-se a ensinar aos outros o caminho da salvao. (Ibid., p.291). 36Forma de budismo que se definiu, sobretudo no Japo, a partir sc. VI, e se vem difundindo no Ocidente, caracterizada por valorizar a contemplao intuitiva (em oposio meditao racional abstrata) suscitada pelo amor natureza e vida, a qual se exercita pela prtica de toda espcie de trabalhos manuais e leva ao desenvolvimento da personalidade mediante o conhecimento prprio. (Ibid., p.1804). 37Doutrina filosfica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido unidade, quer do ponto de vista de sua substncia (e o monismo poder ser um materialismo ou espiritualismo), quer do ponto de vista das leis (lgicas ou fsicas) pelas qual o universo se ordena (e o monismo ser lgico ou fsico). (Ibid., p.1153).

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    movimento humano38.

    Nota-se um ponto de confluncia entre as diversas artes marciais orientais existentes, no que se refere a sua dimenso filosfica, destacando-se, sobretudo o "Do"39.

    Alm das filosofias orientais, outro aspecto interessante que faz com que as artes marciais orientais no possam ser entendidas apenas pelo vis da esportivizao o fato de, na atualidade, ser encontrado nas grandes academias de ginstica, esse tipo de atividade em certa medida desvinculada dos aspectos do mundo esportivo, e mais do que isso, desvinculadas de tudo o que a caracterizaria como arte marcial.

    Assim, possvel observar, nas grandes academias de ginstica, uma forma de apropriao que liga as artes marciais a um tipo de ideologia amplamente difundida e influenciada pela mdia e por uma lgica de mercado; uma ideologia que mescla sade e esttica. Estou me referindo ao mito da qualidade de vida ou, como as academias preferem, wellness.

    Nesse ambiente, as artes marciais, na maioria dos casos, no deixam de ser, como nos lembra Proni (1993), ... o que sempre foram tcnicas de defesa pessoal... 40, no entanto, todo o seu contexto parece ter sido modificado, e o discurso em torno das mesmas tambm, mas no como j foi dito anteriormente para aquele do mundo esportivo.

    Nas academias de ginstica as artes marciais converteram-se em apenas mais um produto a ser oferecido na busca pela qualidade de vida, chegando ao extremo de estar totalmente desvinculada de tudo aquilo que a caracteriza como arte marcial, com exceo dos movimentos, um exemplo o body combat41. Nesse tipo

    38No original: Martial arts is reflected as a microcosm of the macrocosm as the Whole in which Eastern religio-philosophical values and indigenous cultural uniqueness are congruently integrated. Through the course of study in martial arts, one confronts the core essence of the great wisdom of the East while discovering one's self in the mode of becoming a harmonious human being of mind and body as one. Martial arts can be the resource for all people that enhances emotional, social, mental, and phisical well-being, but not spiritual well being, because the martial arts are not a religion. To become a true practitioner or champion in the martial arts is not to master others or to defeat them in competition. Its purpose, rather, is solely for self-mastery and self-actualization through the practice of virtue, one's devotion to the chosen discipline, and a sustained victory in competition with one self. The martial arts are indeed a superior form of education connected with human movement. (Grifo nosso) Para mais informaes confira: YANG, D. J. Op. cit.

    39 Sobre a filosofia das artes marciais, Hyams, defende que: A filosofia das artes

    marciais no projetada para ser pensada ou intelectualizada, feita para ser experimentada. Assim, as palavras, inevitavelmente, transmitem apenas parte do significado. (Cf.: HYAMS, J. Op. cit., p.15.) 40

    PRONI, M. W. Op. Cit. 1993. 41Tipo de ginstica onde pelo emprego de movimentos coreografados, apropriados das artes marciais

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    de ginstica, possvel observar a apropriao dos movimentos das artes marciais orientais, porm sem nenhuma meno aos princpios filosficos, aos golpes, aos rituais

    de passagem, ou ao combate, enfim, a tudo aquilo que caracterizaria uma arte marcial oriental.

    Apesar de tudo isso, esse fato parece ter contribudo de maneira importante no processo de massificao das mesmas, pois, na medida em que trouxeram para um ambiente assptico uma prtica que anteriormente se dava apenas em dojs42 especializados, as academias de ginstica possibilitaram o encontro, ao menos, de parte do que compe as artes marciais orientais com um novo pblico, que antes se mantinha afastado, por conta de todo um imaginrio difundido por alguns filmes hollywoodianos, que associavam as mesmas, bem como os locais tradicionais de sua prtica, a uma atmosfera extica e, em certa medida, violenta.

    Dessa maneira, ao estudarmos a difuso da cultura oriental na cidade de So Paulo, sob o prisma das artes marciais orientais e de sua disseminao, uma questo intrigante com que nos deparamos justamente tentar entender como foi possvel para um elemento caracterstico de uma cultura, diferente, dado o seu exotismo em relao aos valores correntes no Brasil em finais do sculo XIX e incio do sculo XX, pudesse ter alcanado os nveis atuais de popularidade? E, inversamente, de que maneira a popularizao desse tipo de atividade teria influenciado o reconhecimento e a aceitao dos povos e da cultura de origem oriental?

    Igualmente intrigante, nesse particular, o fato de que esse processo de popularizao das artes marciais orientais, em um determinado momento, deixou de ser implementado, exclusivamente pelas pessoas de origem oriental, que, em tese, seriam os legtimos guardies desse saber, na medida em que passou a ser apropriado pelos brasileiros, algo que teria agido no sentido de acelerar a converso desse tipo de atividade em um produto com um mercado prprio nos dias atuais.

    E, nesse sentido, parece-nos possvel inferir que a transformao das artes marciais orientais em um produto no Brasil e no mundo correu em paralelo criao de uma srie de outros produtos associados como, por exemplo, os filmes de longa metragem, as histrias em quadrinhos, as revistas especializadas, os livros didticos, os desenhos animados, os seriados de televiso, os cartuchos de vdeo game,

    orientais tem-se como objetivo a perda de calorias. 42

    Local onde se pratica as artes marciais orientais.

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    alm, claro, de uma srie de outros produtos com aplicao especfica em cada uma dessas prticas. O nascimento de um mercado como esse traz consigo a necessidade de um corpo de profissionais que, de maneira direta ou indireta, mantm um elo com essas prticas corporais do Oriente.

    Assim, o presente estudo encontra-se fundamentado em depoimentos43 de mestres de artes marciais orientais, imigrantes ou no, no sentido de se compreender melhor como se deu esse processo, as adaptaes que se fizeram necessrias e as dificuldades enfrentadas no encontro desse elemento constitutivo da cultura oriental com a cultura e a realidade da cidade de So Paulo, seguindo os apontamentos de Alessandro Portelli44, para quem o depoimento , antes de tudo, um documento do presente compartilhado em sua responsabilidade tanto pelo depoente quanto pelo entrevistador no momento de sua produo.

    Cabe ressaltar que, ao optar por esse procedimento, tenho conscincia de que estou lidando com a memria a respeito do processo de desenvolvimento das artes marciais orientais como experincia corporal, na cidade de So Paulo.

    Ao trabalhar com a memria, estou reconhecendo suas limitaes como verses do passado socialmente situadas em relao aos depoentes. Assim, ao trabalhar com essa memria especificamente, optei por uma estratgia de ao que, pela relativizao das posies socialmente ocupadas pelos depoentes em seu passado e no momento em que foram produzidos os depoimentos, teve o objetivo de conceder maior historicidade a esses fragmentos do passado, atento ao estudo de Pierre Nora (1993), onde esse autor reconhece que:

    Memria e histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia de que tudo ope uma outra. A memria vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente de suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, suceptvel a longas latncias e repentinas revitalizaes. A histria a reconstruo sempre problemtica e incompleta do que no existe mais. A memria um fenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a histria, uma representao do passado. Porque afetiva e mgica, a memria no

    43 Exclusivamente para esse estudo foi coletado um total de 14 depoimentos, sendo: 8 de mestres

    imigrantes; 6 de mestres brasileiros e; 1 depoimento concedido por um empresrio proprietrio de uma confeco de kimonos. Alm disso, destacamos uso da gravao de evento comemorativo aos 40 anos da imigrao coreana no Brasil ocorrido na Universidade de So Paulo, em 2004, e de outros depoimentos (em um total de 16) coletados componentes de nosso arquivo pessoal sobre a arte marcial Taekwondo, sendo: 2 de um mesmo depoente mestre imigrante; 1 de um imigrante membro da colnia coreana de So Paulo e; 13 de mestres brasileiros. 44

    PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexes sobre a tica na histria oral. In: Projeto Histria, N 15. So Paulo: Educ., 1997.

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    se acomoda a detalhes que confortam: ela se alimenta de lembranas vagas, telescpicas, globais ou flutuantes, particulares ou simblicas, sensvel a todas as transferncias, cenas, censura ou projees. A histria, porque operao intelectual laicizante demanda anlise e discurso crtico. [...] A memria se enraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem, no objeto. A histria s se liga s continuidades temporais, s evolues e s relaes das coisas. A memria um absoluto e a histria s conhece o relativo45.

    Mesmo que essa pesquisa se limitasse aos depoimentos desses mestres, acredito que j teria grandes resultados para analisar, baseado em minha experincia ao estudar o processo de desenvolvimento do Taekwondo, principalmente no que se refere ao encontro dessas culturas com a realidade de uma cidade como So Paulo46. Entretanto, para que as artes marciais orientais pudessem atingir o atual estgio de popularidade, de se supor que essas prticas, ao serem trazidas para o Brasil, encontraram aqui um terreno frtil para se desenvolverem.

    Nesse sentido, busquei encontrar os fatores que agiram de modo a favorecer, na cidade de So Paulo, a ascenso das artes marciais orientais como prtica corporal. Ao empreender esse trabalho com o objetivo de analisar as artes marciais orientais, acredito tambm ter contribudo com as pesquisas sobre as prticas corporais na cidade de So Paulo, em um espectro mais amplo.

    Em minha dissertao de mestrado47 estudei o Taekwondo, uma arte marcial de origem coreana, cuja introduo no Brasil data de 1970. Para realizao daquela pesquisa utilizei, como fonte principal, os depoimentos de mestres de Taekwondo coreanos e brasileiros, e tambm de pessoas ligadas colnia coreana de So Paulo. Nessa ocasio, a escolha da dcada de 1970 como o perodo a ser estudado se deu em funo de ser este o perodo correspondente aos dez primeiros anos em que a prtica do Taekwondo se desenvolveu em nosso pas. Entretanto, ao analisar os depoimentos produzidos, encontrei indcios que apontaram para a importncia desse perodo no desenvolvimento no apenas do Taekwondo, com tambm, para outras artes marciais.

    Os depoentes apontaram, por exemplo, a exibio da filmografia de Bruce Lee, nos cinemas localizados no centro da cidade de So Paulo, como um dos

    45NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. In: Projeto Histria, N 10. So Paulo: Educ., 1993. 46MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos ps e das mos: taekwondo. Arte marcial, esporte e colnia coreana em So Paulo (1970 2000). So Paulo, 2004 (Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Ps-graduados em Histria da Puc/SP). 47

    Ibid.

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    principais fatores desse processo. Alm disso, a constatao de que a grande maioria dos mestres brasileiros entrevistados iniciou a prtica do Taekwondo no perodo em questo reforou ainda mais essa hiptese.

    Assim, para esta pesquisa, fiz uma amostragem dos anncios publicitrios dos filmes exibidos nos cinemas da capital paulista publicados no jornal Notcias Populares.

    Nessa primeira etapa, foram analisados junto ao acervo do Arquivo do Estado de So Paulo os anncios de filmes publicados no jornal Notcias Populares entre os meses de maio e junho, no perodo entre 1970 e 1978. Para minha surpresa, foram encontrados, nesse perodo, anncios de mais de 90 ttulos de filmes, cujo tema principal eram as artes marciais orientais, todos eles exibidos nos cinemas localizados na regio central da cidade de So Paulo. Muito mais, portanto, do que apenas os filmes de Bruce Lee, algo que denota que existiu no perodo um grande interesse por esse gnero de filme48.

    Em uma segunda etapa da pesquisa, retornei ao Arquivo do Estado de So Paulo e novamente analisei o acervo do jornal Notcias Populares; dessa vez, entretanto, percorri todas as segundas-feiras49 dos meses de maio, junho e julho de toda a dcada de 1970 e digitalizei alguns dos anncios, para que pudesse proceder anlise de seus contedos, textos e imagens. Alm disso, foi possvel tambm digitalizar uma entrevista que tratava de um dos filmes de Bruce Lee exibidos no perodo.

    Em outra frente, realizei tambm uma pesquisa no Jornal Folha de So Paulo, seguindo os mesmos procedimentos de pesquisa adotados em relao ao Jornal Notcias Populares. Dessa forma, foi possvel verificar a maneira como os mesmos

    anncios eram veiculados em jornais diferentes50. Com o intuito de encontrar outros tipos de fonte que, de alguma maneira,

    fizessem referncia s artes marciais orientais, decidi fazer uma pesquisa na Gibiteca Henfil, localizada no Centro Cultural So Paulo. A princpio, estava procura de revistas de histrias em quadrinhos originrias dos pases do Oriente com traduo para o portugus, mais especificamente as japonesas, popularmente conhecidas como

    48 No captulo 1 da segunda parte do presente estudo abordarei com mais detalhes os resultados obtidos na

    pesquisa sobre os filmes de artes marciais orientais exibidos na cidade So Paulo durante a dcada de 1970. 49

    Essa estratgia foi adotada por ser a segunda-feira o dia em que antigamente ocorriam as estrias de filmes nos cinemas da cidade de So Paulo. 50

    Essas diferenas sero explicitadas no captulo 2 da segunda parte do presente estudo.

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    mang. Nessa pesquisa, descobri que a primeira histria em quadrinhos do gnero mang, traduzida e publicada no Brasil foi O Lobo Solitrio, em dois momentos: em 1989, pela editora Cedibra, e em 1990, pela editora Nova Sampa,51 muito distante do perodo que estava estudando. Considerando o perodo em que a revista foi publicada, levantei outra questo: seria possvel que apenas no final da dcada de 1980 os quadrinhos sobre artes marciais orientais tivessem comeado a ser publicados no Brasil? De fato, no. O Lobo Solitrio a primeira revista do gnero mang e no a primeira revista a utilizar as artes marciais orientais como argumento para suas

    histrias.

    Ainda pesquisando na Gibiteca Henfil, encontrei outra publicao, O Judoka, cujo acervo conta apenas com cerca de 50 exemplares. O Judoka foi uma revista em quadrinhos, mensal, publicada pela Editora Brasil-Amrica LTDA (EBAL)52, cujo primeiro nmero chegou s bancas de jornal em abril de 1969. Os seis primeiros nmeros so tradues dos originais publicados nos Estados Unidos da Amrica pela Charlton Comics e contam as aventuras de um sargento do exrcito norte-americano que, disfarado, utiliza seus conhecimentos em vrios tipos de artes marciais, para derrotar seus inimigos representados por soldados do exrcito japons.

    Quando a revista comea a ser escrita e desenhada no Brasil53, a partir do stimo nmero, h uma mudana radical no argumento das histrias, a roupa do heri passa a conter as cores e a forma da bandeira nacional, o heri deixa de ser representado por um soldado para se tornar um jovem estudante e se, nos nmeros traduzidos, os inimigos eram do exrcito japons, nos nmeros escritos e desenhados no Brasil eles

    51 Sua publicao original no Japo ocorreu em 1970. A revista trata das aventuras de um ronin

    (samurai sem mestre) no Japo da Era Tokugawa (1600-1867), cujo principal objetivo era vingar a morte de sua esposa. 52

    A Ebal foi a maior e mais importante editora de quadrinhos do Brasil, tendo sido criada em 1945 por Adolfo Aizen. A criao da editora foi quase uma decorrncia do grande sucesso do "Suplemento Juvenil". A Ebal publicou no Brasil inmeros autores estrangeiros como: Walt Disney (Selees Coloridas), Alex Raymond (Flash Gordon), Hal Foster (Prncipe Valente), Lee Falk e Phil Davis (Mandrake), Lee Falk (O Fantasma), Chester Gould (Dick Tracy) e Charles M. Schulz (Peanuts), alm das revistas da DC Comics e mais tarde Marvel Comics. [...] Alm do material importado a Ebal, valorizando os artistas brasileiros, publicou dezenas de talentos em revistas como lbum Gigante, Srie Sagrada que publicava biografias de santos catlicos, a Edio Maravilhosa (mais tarde reeditada como Clssicos Ilustrados), que publicava verses quadrinizadas de obras de escritores nacionais, como Jos de Alencar, Euclides da Cunha e Dinah Silveira de Queiroz, ou a publicao de adaptaes de fatos histricos como as sries Grandes Figuras do Brasil, Episdios e Histria do Brasil, esta ltima com textos do acadmico Gustavo Barroso e extensa pesquisa iconogrfica (que consumiu oito anos de trabalho) de Ivan Wash Rodrigues. (Disponvel em: , acesso em 04/10/04) 53

    No Brasil as histrias foram escritas por Pedro Ansio e desenhadas por Mrio Jos de Lima e Eduardo Baron.

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    passam a ser representados por membros de gangues urbanas e ladres comuns54. Um aspecto muito interessante acerca dessa publicao se refere ao fato

    de que, desde o seu segundo nmero, essa revista em quadrinhos apresenta, em suas pginas finais, dois pontos: o primeiro deles se refere a desenhos didticos sobre algumas tcnicas de artes marciais, mais especificamente de Jud. Menos do que a inteno de ensinar realmente algumas tcnicas de artes marciais esse suplemento da revista parece ter exercido uma funo de propaganda para esse tipo de atividade. E nesse sentido questiona-se: quem se queria ver beneficiado por esse tipo de propaganda?

    O segundo refere-se publicao de um boletim informativo sobre artes marciais, o Jud Notcias, com informaes sobre academias e campeonatos de Jud e outras artes marciais, de vrias partes do pas, com destaque para o Rio de Janeiro e So Paulo e que, tal como nos desenhos didticos de tcnicas, parece ter exercido uma funo de propaganda.

    Analisar as dcadas de 1960 e 1970, a partir do trabalho com as fontes e consulta bibliografia especfica, me permitiu constatar um aumento considervel na oferta de bens culturais relacionados no apenas s artes marciais orientais, mas tambm cultura oriental de uma maneira geral, na cidade de So Paulo, que, nesse momento, j se apresentava como o grande foco de estabelecimento de imigrantes oriundos dos pases do Oriente, em especial daqueles pases que elegi como objeto de estudo de minha pesquisa, promoveu o nascimento de um mercado especfico.

    Para que o mercado em torno das artes marciais orientais pudesse ganhar fora, a partir da dcada de 1970, chegando at os dias atuais, suas bases tiveram que ser construdas em um perodo anterior, o que ficou evidente nas falas dos depoentes nos seguintes aspectos: a) os motivos de sua vinda para o Brasil; b) o papel que a arte marcial oriental, da qual so representantes, exerceu no seu processo de fixao em So Paulo; e c) o perodo em que emigraram. Alm disso, vale destacar que, no que se referiu a esse mercado especfico e tambm ao processo de esportivizio das artes marciais orientais na cidade, as falas focaram muito mais o momento presente do que propriamente os fatos ocorridos no passado dos depoentes. Isso provavelmente ocorreu pelo fato de esses temas ainda hoje estarem em pleno movimento.

    Os depoentes foram divididos, no apenas de acordo com a arte marcial

    54 Os resultados da pesquisa com essa revista em quadrinhos sero apresentados com mais detalhes no

    captulo 1 da segunda parte do presente estudo.

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    oriental que praticam ou em relao ao seu pas de origem, mas em funo de suas experincias de vida.

    Os depoimentos revelaram aspectos fundamentais para o entendimento do processo que tornou possvel o oferecimento dessas prticas corporais na cidade de So Paulo. Como consequncia, foi possvel agrupar os depoentes nas seguintes categorias: aprendizagem, profissionalizao e perodo de emigrao.

    A categoria aprendizagem se subdividiu em: a) Imigrantes que aprenderam a arte marcial no seu pas de origem; e b) Imigrantes que aprenderam a arte marcial no Brasil.

    A categoria profissionalizao se subdividiu em: a) Imigrantes que tm na arte marcial oriental seu nico meio de subsistncia; b) Imigrantes que tm na arte marcial oriental uma atividade complementar atividade de subsistncia; e c) Imigrantes que tm a arte marcial oriental como uma atividade voluntria.

    Por fim, a categoria perodo de emigrao se subdividiu em: a) Imigrantes Pr II Guerra Mundial; b) Imigrantes Ps-II Guerra Mundial at o fim da dcada de 1960; e c) Imigrantes da dcada de 1970.

    Mais do que estabelecer categorias interpretativas, essa diviso teve a inteno de orientar a anlise dos depoimentos, em funo das outras fontes pesquisadas, tornando possvel a apreenso de detalhes que possivelmente passariam despercebidos, caso nossa opo tivesse sido pelo agrupamento automtico, de acordo a arte marcial oriental praticada por cada depoente. Alm disso, saliento que essa diviso est longe de ser um procedimento estanque, uma vez que um mesmo depoente pode ocupar diferentes categorias ao mesmo tempo.

    Nesse sentido, destaco, em especial, a categoria profissionalizao, que foi de fundamental importncia tambm na interpretao dos depoimentos concedidos pelos mestres brasileiros. E j que estou falando dos mestres brasileiros, aponto tambm que, alm da categoria supracitada, delimitei a categoria descendncia, que se subdividiu em: a) mestres com ascendncia de oriental; e b) mestres sem ascendncia oriental.

    Destaco que o objetivo da presente pesquisa foi estudar o processo de origem e disseminao de algumas das artes marciais orientais mais populares praticadas na cidade de So Paulo, no sentido de avaliar o papel que cada uma delas teve na abertura de um caminho oriental, em meio s muitas possibilidades de prticas

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    corporais disponveis na cidade. Em relao s fontes que fundamentam esse estudo, aponto os depoimentos de mestres diretamente ligados a essas prticas, bem como a utilizao de jornais e revistas em quadrinhos publicados durante as dcadas de 1960 e 1970, perodo em que constatei um considervel incremento no processo de disseminao das artes marciais orientais em So Paulo.

    No que se refere s balizas cronolgicas, enfoco o perodo entre os anos de 1932 e 1979, poca que abrange o momento em que chegaram os depoentes mais idosos, e as dcadas de 1960 e 1970, quando se acelerou o processo de difuso das artes marciais orientais na cidade de So Paulo. Em funo do reconhecimento dos relatos orais como documentos do presente na anlise de temas como a formao de um mercado especfico e das transformaes advindas do processo de esportivizao das artes marciais orientais na cidade, optei pela utilizao de trechos dos depoimentos que retratam muito mais o momento presente do que propriamente uma realidade vivida nas dcadas de 1960 e 1970. Essa estratgia, longe de esgotar o debate em torno dessas questes, serviu como um meio para detectar as artes marciais orientais como um campo de tenses em que diferentes atores buscam seu espao, o que lana ricas perspectivas para pesquisas futuras.

    Assim, o presente estudo encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, que est dividida em dois captulos, discute-se o desenvolvimento das artes marciais orientais na cidade de So Paulo, como prtica corporal. No primeiro captulo dessa parte, discute-se o processo de desenvolvimento de algumas dessas prticas (de grande popularidade no Brasil) no momento pr-emigrao. No segundo captulo, discute-se, a partir das lembranas dos depoentes, o desenvolvimento das artes marciais orientais em So Paulo. Basicamente o referido captulo pretendeu responder o que tornou possvel a prtica de uma determinada arte marcial oriental na cidade de So Paulo e como uma cultura oriental, muitas vezes discriminada por setores da sociedade brasileira, em finais do sculo XIX e primeira metade do sculo XX sobretudo nos anos da II Guerra Mundial conseguiu conquistar o seu espao em meio s prticas corporais de origem europia (falamos fundamentalmente os mtodos ginsticos e as prticas esportivas), na cidade de So Paulo.

    Na segunda parte, trabalhei as falas dos depoentes, considerando, sobretudo, a referncia a alguns fatos ocorridos durante as dcadas de 1960 e 1970, um perodo fundamental para entendimento do atual nvel de popularizao que as artes

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    marciais orientais conquistaram na cidade de So Paulo e tambm no que se refere formao de mercado prprio e s transformaes advindas do processo de esportivizao, a fatos referentes ao momento presente. As falas, quando relacionadas umas s outras e tambm s demais fontes pesquisadas, evidenciaram, em alguns momentos, uma disputa entre memrias fundamentalmente em relao ao que so e ao que se tornaram ou ao que devem ser as artes marciais orientais. Esse seguimento encontra-se dividido em dois captulos. O primeiro destinado discusso em torno da chegada de um novo tipo de mestre e tambm do papel exercido pela indstria do entretenimento na ampliao da visibilidade das artes marciais orientais na cidade e do consequente aumento de praticantes.

    Em linhas gerais, o objetivo continuou sendo responder s questes levantadas no primeiro captulo, porm, nesse momento, o trabalho funda-se na anlise de outros tipos de fonte jornais e revistas em quadrinhos e sua relao com a memria dos depoentes sobre o perodo. Esse entrecruzamento de fontes teve a inteno de enriquecer e, em certa medida, elucidar pontos do processo de disseminao das artes marciais e que, na documentao oral, continuavam pouco tangveis. Alis, serviu-me como importante orientao, a propsito da natureza dos relatos orais, como documentos do presente, de acordo com a observao realizada por Portelli:

    A essencialidade do indivduo salientada pelo fato de a Histria Oral dizer respeito a verses do passado, ou seja, memria. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em ltima anlise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memria pode existir em elaboraes socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos so capazes de guardar lembranas. Se considerarmos a memria um processo, e no um depsito de dados poder constatar que, semelhana da linguagem, a memria social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memria um processo individual, que ocorre em um meio social dinmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordaes podem ser semelhantes, contraditrias ou sobrepostas. Porm, em hiptese alguma, as lembranas de duas pessoas so assim como as impresses digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes exatamente iguais55.

    E nesse sentido:

    A demanda de um indivduo ao contar sua estria, pode, muitas vezes, trazer tanto conformidade quanto mudana, tanto congruncia quanto amadurecimento. Os narradores estabelecem assim, serem tanto a mesma pessoa que sempre foram

    55 PORTELLI, Alessandro. Op. Cit.

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    quanto uma outra pessoa. Assim as estrias mudam tanto com quantidade de tempo (a experincia acumulada pelo narrador) quanto com a qualidade do tempo (os aspectos que ele quer enfatizar durante a narrativa). Nenhuma estria ser repetida duas vezes de forma idntica. Cada estria que ouvimos nica56.

    O segundo captulo dessa parte destina-se anlise da memria (passada e presente) em torno do processo ocidentalizao e esportivizao das artes marciais orientais, de fundamental importncia para que essas prticas pudessem configurar-se em um caminho alternativo para a cultura corporal na cidade So Paulo. No foram raras as situaes em que se evidenciaram conflitos identitrios no embate entre mestres brasileiros e imigrantes.

    Questionou-se o quanto o desenvolvimento dessas prticas em So Paulo agiu no sentido de aproxim-las de uma lgica mais ocidentalizada de trabalho corporal, observvel na associao entre as artes marciais orientais e alguns elementos presentes nos mtodos ginsticos e nos esportes modernos, alm das condies materiais necessrias prtica, que, como consequncia, favoreceu a criao e a manuteno de um mercado prprio e da sua unio junto a mltiplos discursos como, por exemplo, o do esporte, o da sade e o da defesa pessoal face ao aumento da violncia urbana verificado nos grandes centros, sem mencionar a adoo de um sistema de graduao de acordo com os nveis de aprendizagem, que, segundo os depoentes, expressa uma lgica completamente diversa daquela que seria a aceitvel, quando do momento em que os mesmos aprenderam a arte marcial oriental que representam, mas que se mostrou como uma estratgia necessria durante o processo de reconhecimento e aceitao dessas prticas em meio s demais possibilidades de prticas corporais disponveis na cidade.

    Entendo que essas adaptaes no foram vivenciadas apenas no Brasil, todavia trabalho com a hiptese de que, aqui, essas adaptaes assumiram algumas caractersticas peculiares. Dessa forma, ao conferir uma roupagem moderna no mesmo sentido observado em relao ao esporte nas sociedades ocidentais57 aos

    56 PORTELLI, Alessandro. The death of Luigi Trastuli, o momento da minha vida: funes do tempo na

    Histria oral. Mimeo traduzido. Publicado pela primeira vez em Internacional Oral History Journal, II, 3 (Outono, 1981) 162-180. 57

    Nesse ponto, apoio-me fundamentalmente nos estudos realizados por Norbert Elias em relao ao papel dos esportes modernos no processo civilizador europeu, que, salvo melhor juzo, foi de grande importncia tambm no processo de desenvolvimento das demais sociedades ocidentais bem como nos estudos de Pierre Bourdieu em relao ao esporte moderno em que diferentes agentes sociais atuam no sentido de promover a construo de estruturas estruturantes para a organizao das prticas material e simbolicamente que seguindo uma cronologia especfica, ou seja, uma cronologia que mesmo relacionada s demais dimenses da sociedade possui seu prprio tempo e suas prprias regras, gerando o surgimento de mercado relacionado tanto do ponto de vista do consumo quanto do ponto de vista do surgimento de

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    antigos mtodos de ataque e defesa, originados nos pases do oriente em uma perspectiva belicista, as adaptaes colocadas em curso no Brasil promoveram um andamento particular ao processo de modernizao dessas prticas.

    Por fim, so apresentadas as consideraes finais do presente estudo, em que so retomadas as concluses apresentadas em cada uma das duas partes.

    um corpo profissionais. (Cf.: BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 1990, p.208; BOURDIEU, Pierre. Como possvel ser esportivo. In: Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. So Paulo: Brasiliense, 1983; ELIAS, Norbert. Op. Cit. 1994, v1. e ELIAS, N. & DUNNING, E. A Busca da Excitao. Lisboa: DIFEL, 1992.)

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    I Possibilidades de Experincias1: Artes Marciais e cultura corporal no sculo XX

    Medidas, clculos, comparaes, o fim do sculo XIX e incio do sculo XX marcam um perodo de profundas transformaes, no que se refere s prticas corporais nas cidades europias.

    A revoluo industrial traz consigo a necessidade de mo-de-obra. Em resposta, as cidades experimentam um intenso crescimento populacional, rpido e desordenado. Novas sensibilidades so construdas como parte do esforo civilizador europeu, conforme aponta Elias2, o tempo deixa de ser regido pela natureza para ser mecanicamente determinado pelo relgio das fbricas. Tal fato iria permitir no s a determinao de tempos de trabalho e no-trabalho, mas tambm a emergncia de um tempo de lazer claramente definido.

    Na mesma esteira, a Europa insere novos elementos cultura corporal do ocidente, elementos que rapidamente seriam utilizados na ocupao desse tempo de lazer. A cincia ajuda a construir movimentos novos e corpos novos3, a ginstica e principalmente o esporte comeam a fazer parte da vida das pessoas.

    E no demorou muito, essas novas possibilidades atravessaram o Atlntico e puderam ser experimentadas no Brasil. Um exemplo disso foi a Educao

    1 A expresso possibilidades de experincia aqui utilizada deriva de uma livre interpretao da

    expresso condies de possibilidade utilizada por Angelika Epple (2006) ao analisar a importncia dos escritos de Michel Foucault para a construo de uma historiografia sob o ponto de vista do gnero. (Cf.: EPPLE, Angelika. Op. Cit.) 2 ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitao. Lisboa: Difel, 1992.

    3 VIGARELLO, Georges; HOLT, Richard. O corpo trabalhado: ginastas e esportistas do sculo XIX. In.

    CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jaques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Histria do Corpo 2: da Revoluo Grande Guerra. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008.

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    Fsica comeando a figurar entre as disciplinas do currculo escolar4, conforme apontou a historiadora Sonia Bercito em sua dissertao de mestrado:

    Em nosso pas, acompanhando o movimento europeu, pode ser detectada, em meados do sculo XIX, uma preocupao de introduzir as atividades fsicas orientadas, ainda que pontualmente, tanto no meio educacional quanto no militar. O Brasil Republicano, bastante influenciado pelas idias educacionais liberais, via Frana, estendeu a introduo, embora ainda incipiente das atividades ginsticas nas escolas. Nesse momento, eram muitas as preocupaes dirigidas educao relacionadas prpria afirmao da ordem republicana. Defendendo-se o ensino laico, pblico e popular, empreendia-se, no mbito dos estados, os primeiros esforos de se organizar um sistema educacional no pas. Em So Paulo, por exemplo, onde o desenvolvimento da educao pblica nos fins do sculo XIX e incios deste foi de especial relevncia, e marcado pelo modelo francs, a Educao Fsica figurava nos currculos escolares desde o Grupo Escolar at o Normal. Vale lembrar, tambm, a existncia de iniciativas pontuais de difundir a prtica da Educao Fsica em escolas particulares com orientao diferenciada da oficial, como o Instituto Mackenzie, na cidade de So Paulo, que, de origem anglo-americana, inclua esportes e ginstica em suas atividades pedaggicas5.

    E o surgimento de clubes esportivos6, muitos deles fundados por operrios, ao longo das primeiras dcadas do sculo XX. A esse respeito, conforme conta Sevcenko, em So Paulo, no ano de 1919 criada a Associao Paulista de Sports Atlticos (APSA) que por sua vez nesse mesmo ano:

    [...] criou sua Comisso de Educao Fsica, envolvendo no seu projeto o prprio governo do estado, que assumia a tarefa de implementar uma poltica estadual de educao fsica, abrangendo todos os nveis de instituies escolares estaduais. A proliferao de clubes esportivos se dissemina pelas vrzeas operrias, levando a APSA criao do Campeonato Municipal de Football, visando tanto estimular quanto envolver esses novos contingentes e tornar a vrzea numa fonte fornecedora de novos talentos esportivos. As Unies Operrias, por sua vez, organizam suas prprias unidades atlticas dedicadas, sobretudo ao futebol, mas envolvendo tambm os chamados esportes terrestres. Vrias empresas privadas estimulam o surto esportivo, organizando equipes, realizando campeonatos ou subsidiando trofus, medalhas e prmios7.

    Tal como aconteceu na Europa, o esporte no Brasil vai se diversificando em suas possibilidades de prtica e se consolidando como instituio, ao longo do sculo XX.

    Entretanto, Ricardo Lucena fundamentado nos estudos de Norbert Elias, atenta para a forma peculiar com que esse processo teria se dado no Brasil. Nesse

    4 BERCITO, Sonia de Deus Rodrigues. Op. Cit.

    5 Ibid. p. 17-18.

    6 Alguns exemplos: Botafogo, 1904; Corinthians, 1910; Fluminense, 1902; Palmeiras, 1914; Ponte Preta,

    1900; Santos, 1912, Coritiba, 1909, entre outros. 7 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu esttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes

    anos 20. So Paulo: Compahia da Letras, 1992. p. 53.

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    sentido, o esporte no teria surgido por aqui como o resultado de um processo de transio dos jogos populares e ritualsticos, a exemplo do que teria ocorrido na Inglaterra, mas sim como o resultado de um processo de implante realizado por setores especficos da sociedade brasileira. Nas palavras do autor:

    No caso do Brasil, no h, tomando por base o ocorrido em alguns pases europeus, e na Inglaterra em particular, uma passagem sincrnica do jogo popular e ritualstico ao esporte ou jogo esportivizado. Em nossa opinio, h, na verdade, o implante de uma prtica especfica ao lado dos jogos de carter popular. Referimo-nos aqui ao termo implante, por que o esporte chega at ns, no por um amadurecimento contnuo, que permitiu a passagem de uma ao mais simples para outra de carter mais complexo, apoiado numa tcnica especfica, que parece caracteriz-lo; mas por uma ao deliberada e dirigida para determinados setores da elite brasileira8.

    Ainda de acordo com o autor, devem ser considerados, nesse processo, o contexto social, que em meados do sculo XIX ansiava por mudanas (imigrao, abolio, identidade nacional, por exemplo); a diversificao e ampliao das inter-relaes sociais e a natureza do jogo ritual, que, por ser uma prtica ancestral no foi capaz de suprir as expectativas de uma sociedade em mutao. Em contrapartida, o esporte, como tcnica ritualizada, seria a expresso dessas mudanas sociais. A esse respeito destaca o autor:

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