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1 SEGURANÇA HÍDRICA E O PRESSUPOSTO DA SOBERANIA ALIMENTAR: ANÁLISE A PARTIR DOS PROJETOS DE REFORMA AGRÁRIA DO MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA – MG Jéssica Cristina Garcia Universidade Federal de Uberlândia [email protected] Resumo O presente trabalho é uma análise dos trabalhos de campos que vêm sendo realizados desde abril de 2012 em projetos de reforma agrária do município de Uberlândia–MG, dando continuidade ao projeto de iniciação científica fomentado pelo CNPQ denominado “Práticas de Gestão da Água por agricultores de Projetos de Reforma Agrária da Mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba” e também ao projeto de extensão “Conflitos e Práticas de Gestão da Água pelos Agricultores em Projetos de Reforma Agrária na Região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba”. A proposta diz respeito ao conhecimento da situação hídrica (disponibilidade, uso, gerenciamento, qualidade) na qual se encontram os assentados, considerando que a busca pela soberania alimentar passa primeiramente pela busca, e por que não dizer pela luta ao acesso à água para produzir, consumir, e reproduzir a existência do produtor rural. Palavras-chave: Uberlândia. Assentamentos. Segurança hídrica. Soberania alimentar. Introdução O município de Uberlândia na mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba está localizado em uma área de inúmeros conflitos territoriais, associados aos movimentos de produtores rurais sem terra, que lutam pelo acesso a terra e ao direito de produzirem nela. Grande parte dos trabalhadores associados a esses movimentos foram excluídos do processo de modernização agrícola do cerrado, pautado na Revolução Verde das décadas de 1960 e 1970, que propunha a aquisição de insumos e equipamentos industrializados de alta tecnologia além dos serviços prestados por técnicos extensionistas do governo federal com a finalidade de transformar o campo, principalmente o cerrado mineiro em uma área de agricultura moderna e agroexportadora. Com isso, Uberlândia se tornou a partir de então pólo do agronegócio no cerrado mineiro, atraindo migrantes específicos para o campo, a saber, sulistas que possuíam experiência com produção mecanizada de commodities. Com os saberes que já possuíam os migrantes que vieram para o Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba juntamente com o apoio governamental reorganizaram o espaço e as potencialidades naturais nele presentes conforme as suas necessidades. Dessa forma, o meio rural considerado atrasado e pouco desenvolvido começou a ser modificado por meio de instalações de infraestrutura, como postes de energia elétrica,

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SEGURANÇA HÍDRICA E O PRESSUPOSTO DA SOBERANIA ALIMENTAR: ANÁLISE A PARTIR DOS PROJETOS DE REFORMA AGRÁRIA DO

MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA – MG

Jéssica Cristina Garcia Universidade Federal de Uberlândia

[email protected]

Resumo O presente trabalho é uma análise dos trabalhos de campos que vêm sendo realizados desde abril de 2012 em projetos de reforma agrária do município de Uberlândia–MG, dando continuidade ao projeto de iniciação científica fomentado pelo CNPQ denominado “Práticas de Gestão da Água por agricultores de Projetos de Reforma Agrária da Mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba” e também ao projeto de extensão “Conflitos e Práticas de Gestão da Água pelos Agricultores em Projetos de Reforma Agrária na Região do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba”. A proposta diz respeito ao conhecimento da situação hídrica (disponibilidade, uso, gerenciamento, qualidade) na qual se encontram os assentados, considerando que a busca pela soberania alimentar passa primeiramente pela busca, e por que não dizer pela luta ao acesso à água para produzir, consumir, e reproduzir a existência do produtor rural. Palavras-chave: Uberlândia. Assentamentos. Segurança hídrica. Soberania alimentar. Introdução O município de Uberlândia na mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba está

localizado em uma área de inúmeros conflitos territoriais, associados aos movimentos

de produtores rurais sem terra, que lutam pelo acesso a terra e ao direito de produzirem

nela. Grande parte dos trabalhadores associados a esses movimentos foram excluídos

do processo de modernização agrícola do cerrado, pautado na Revolução Verde das

décadas de 1960 e 1970, que propunha a aquisição de insumos e equipamentos

industrializados de alta tecnologia além dos serviços prestados por técnicos

extensionistas do governo federal com a finalidade de transformar o campo,

principalmente o cerrado mineiro em uma área de agricultura moderna e

agroexportadora.

Com isso, Uberlândia se tornou a partir de então pólo do agronegócio no cerrado

mineiro, atraindo migrantes específicos para o campo, a saber, sulistas que possuíam

experiência com produção mecanizada de commodities.

Com os saberes que já possuíam os migrantes que vieram para o Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba juntamente com o apoio governamental reorganizaram o espaço

e as potencialidades naturais nele presentes conforme as suas necessidades. Dessa

forma, o meio rural considerado atrasado e pouco desenvolvido começou a ser

modificado por meio de instalações de infraestrutura, como postes de energia elétrica,

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estradas, construção de poços artesianos e captação direta dos cursos d’água

superficiais, tanto para consumo humano como para utilização na agricultura e pecuária,

especialmente para irrigação das lavouras, fato que foi se afirmando com o passar dos

anos e na atualidade configura o Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba como a mesorregião

da agricultura irrigada.

No entanto, apesar do surto desenvolvimentista pelo qual passava o país nesse período,

o que refletia na organização do espaço rural e das técnicas de produção agrícola, a

tecnologia disponível para o aumento da produtividade no campo não ficou acessível a

toda população rural, o que causou a exclusão e expulsão de agricultores tradicionais e

de suas famílias de suas terras, o que é comprovado hoje no grande número de

manifestações e de movimentos sócio-territoriais existentes, além da grande quantidade

de projetos de assentamentos criados desde o final da década de 1980 na mesorregião.

Em Uberlândia, o primeiro projeto de assentamento foi criado em 1998 denominado de

Rio das Pedras com capacidade para 87 famílias, de lá até 2010 foram criados mais 14

PA’s. Dessa forma, Uberlândia é o município com maior número de projetos de

assentamentos da mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba, totalizando 15

projetos de reforma agrária numa área de 20.038 hectares, com uma média de 832

famílias (DATALUTA, 2010), justificando assim, a escolha do município para o

desenvolvimento da presente pesquisa. A figura 1 mostra a localização do município em

questão no contexto da federação e da mesorregião geográfica, o mapa seguinte (mapa

1) apresenta o número de projetos de assentamento existentes na mesorregião no qual

está inserido o município de Uberlândia.

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Figura 1: Localização do município de Uberlândia, 2009.

Fonte: IBGE, 2009. Mapa 1: Número de assentamentos rurais na mesorregião do Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba

Fonte: Banco de dados da luta pela Terra – Dataluta, 2010. Organização: VIEIRA, W.A.

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Considerações teóricas sobre a assistência técnica aos pequenos produtores familiares e sua importância nos projetos de assentamentos de reforma agrária

Iniciados no final da década de 1940 e início da década de 1950, com forte influência

dos Estados Unidos, começaram a ser colocados em prática pelo governo federal

projetos de Extensão Rural sob a ótica capitalista, visando superar o atraso na

agricultura brasileira (LISITA, 2005). Surgiu a necessidade de “educar” a população

rural para que ela pudesse adquirir os insumos e equipamentos necessários à

modernização da atividade agropecuária, tornando-se necessário para isso a atuação de

profissionais ligados a entidades governamentais que fossem dotados de conhecimentos

técnicos a respeito da funcionalidade e utilização destes insumos e equipamentos

agrícolas importados, esses profissionais eram os extensionistas rurais.

Essa nova forma de produção agrícola baseada nos moldes capitalistas, excluía os

pequenos produtores rurais, que não tendo acesso a essas novas ferramentas e insumos e

nem ao apoio técnico dos extensionistas, acabaram sendo expulsos de suas terras diante

de um modelo perverso de produtivismo rural.

Apenas recentemente, nas últimas décadas dos anos 1990 e 2000, principalmente

durante o governo Lula (2003-2010) foi notável a preocupação com as camadas a

margem do chamado agrobusiness, como os pequenos produtores familiares. Políticas

públicas sancionadas no ano de 2010 como o PNATER (Política Nacional de

Assistência Técnica e Extensão Rural) e PRONATER (Programa Nacional de

Assistência Técnica e Extensão Rural) em continuidade com o PRONAF (Programa

Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) criado em 1995 vêm auxiliando os

produtores familiares, para que eles possam produzir para o autoconsumo e também

para o mercado.

O auxílio técnico do extensionismo rural começou a ser pensado para os pequenos

produtores rurais na década de 1990, em que houve na década anterior uma queda nos

serviços prestados pela ATER, pois o país vivia um momento de crise econômica e

transição política.

O contexto era de fortes pressões exercidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST) que crescia e ganhava cada vez mais adeptos lutando pela reforma

agrária. Para evitar que mais produtores rurais, principalmente os pequenos produtores,

se inserissem no movimento, o governo federal criou o Projeto Lumiar, em 1997, com o

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objetivo de orientar as famílias na agricultura, pastagem e criação animal, por meio da

introdução de novas tecnologias produtivas, e também o PRONAF para estimular a

produção familiar por meio do sistema de crédito agrícola.

No entanto, essas políticas públicas eram mais para atender aos interesses das agências

internacionais como o Banco Mundial e a FAO que almejavam a entrada dos

agricultores familiares na economia mundial, por meio de aquisições de insumos e

tecnologias para a produção rural, do que de fato promover um desenvolvimento

econômico no campo começando pela base da produção agrícola do país, ou seja, os

produtores familiares.

Em um momento de crise econômica seriam os agricultores familiares os responsáveis

por resgatar a economia do país, conforme afirmavam as agências internacionais, pois

eles estavam mais aptos a retornarem a um modelo de produção agrícola que estivesse

em acordo com o uso racional dos recursos naturais. Isso influenciou a formulação de

projetos de desenvolvimento rural que contemplassem o desenvolvimento harmônico e

o respeito ao meio ambiente, o que pode ser entendido como uma “ecologização da

agricultura” (DIAS, 2004).

Durante o governo Lula, a preocupação com a agricultura familiar recebeu maior

destaque. Continuando os projetos iniciados no governo Fernando Henrique Cardoso,

como o PRONAF, e criando novos programas com o intuito de atender aos pequenos

produtores da agricultura familiar, sobretudo, os produtores rurais dos assentamentos de

reforma agrária, auxiliando na produção por meio de crédito agrícola, apoio técnico e

fixação dos preços de alguns produtos no mercado interno.

Entretanto, os novos sistemas produtivos difundidos a partir de então por entidades

externas ligadas ao desenvolvimento rural (Incra, organismos públicos de extensão

rural, ONGs) procuram inovações que possuem como característica principal o aumento

da produção vegetal e animal em consonância com um uso mais intenso do recurso

água, seja para um consumo doméstico e animal ou para a irrigação (SIDERSKY,

2008), sendo esta uma técnica produtiva bastante utilizada. No entanto, o auxílio técnico

nas áreas de assentamento faz-se necessário, pois, para conseguir competir no mercado

o pequeno produtor familiar precisa se adequar ao modelo de produção capitalista e isso

implica em um conhecimento tecnicista de alta produtividade. Assim, Nessa outra etapa da modernização, ao se enfatizar a agricultura familiar como público preferencial da ação estatal, não se abriu mão do objetivo de fomentar o incremento dos índices de produção e produtividade. Continuava-se, assim, a afirmar a imagem do “agricultor moderno”, construída durante o processo de modernização da agricultura ao longo dos

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anos 70. Esse agricultor moderno é imaginado como aquele que possui maior potencial para integrar, social e economicamente, as teias dos mercados modernos ou do agronegócio (DIAS, 2010, p.507).

Para se adequar ao modelo de agricultura capitalista, o agricultor precisa utilizar

diversos meios para melhorar o gerenciamento dos meios produtivos, sobretudo o

gerenciamento adequado do recurso água, imprescindível na produção agrícola, mas que

nos últimos anos vem sendo apropriada por setores do agronegócio e empresas privadas,

numa região em que a mesma se encontra em quantidade abundante, excluindo assim os

produtores familiares dos projetos de assentamento, já que a legislação não propõe o

caso específico do gerenciamento dos recursos hídricos nos assentamentos de reforma

agrária.

A água e suas formas de gerenciamento estão intimamente relacionadas com a

organização da produção de alimentos, a qualidade de vida dos assentados e o respeito

ao meio ambiente, sendo, portanto, um tema de suma importância que deve ser estudado

a fim de proporcionar conhecimentos sobre um tema ainda pouco explorado em uma

região com histórico de ocupação de terra por movimentos sociais ligados ao campo, a

questão dos assentados e do uso que eles fazem da água não é considerada.

A implementação de um Projeto de Assentamento (PA) passa por várias etapas

seguindo as diretrizes que levam para a consolidação do processo de Reforma Agrária.

A terra utilizada para implementação dos PA’s é obtida por meio de procedimentos

legais como desapropriação por interesse social, compra, venda, doação, alienação de

terras públicas entre outros, constituindo essa a primeira etapa do processo de reforma

agrária (Manual dos Assentados, 2001).

O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) é o órgão responsável

pela descoberta e apropriação das terras improdutivas com finalidade de Reforma

Agrária. No INCRA são feitos os cadastros das famílias, o registro em cartório do

assentamento, o estudo da capacidade e a distribuição dos lotes. Após esses

procedimentos, inicia-se a etapa consolidação do PA por meio de projetos e programas

de desenvolvimento para o Assentamento.

O Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA) é o primeiro estudo detalhado e

minucioso das potencialidades físico-naturais, sociais e ecológicas do assentamento

com a finalidade de proporcionar o desenvolvimento socioeconômico do PA, pois, deve

levar em consideração as características físicas, sociais e econômicas do PA analisado.

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O objetivo desse levantamento específico das potencialidades físicas, naturais e sociais

do assentamento, é propor projetos de desenvolvimento compatíveis com a realidade e a

expectativa dos assentados. As atividades agropecuárias e produção agrícola se

direcionarão a partir das características físicas e sociais presentes no assentamento e nos

assentados.

É importante considerar que, apesar de ser um documento de suma importância para

nortear o desenvolvimento dos PA’s, inúmeros assentamentos estão em discrepância

com o que é relatado no papel. Por motivos políticos e de interesse imediato, esses

estudos não condizem com a realidade presenciada nos assentamentos. A falta de

diálogo entre o técnico que faz o levantamento e a população assentada faz com que

modos de vida e de produzir a terra sejam desconsiderados, deixando o assentado

descontente com o que é proposto.

Além disso, há inúmeros casos de lotes fixados em áreas em que a terra não possui

aptidão agrícola para o tipo de produção proposta, e ainda lotes firmados em áreas de

reserva ambiental, ou de proteção permanente, sem que haja troca de informações com

o produtor assentado, que não entende o motivo de não poder explorar totalmente a área

do seu lote.

Os casos mais comuns presenciados nos trabalhos de campo realizados até o mês de

julho de 2012 se referem à escassez hídrica, e não pela falta de água no assentamento,

mas pelo mau gerenciamento e distribuição da água entre os lotes.

Quando a luta pela terra transforma-se na luta pela água

Após a conquista da terra, inicia-se uma nova etapa na consolidação do processo de

reforma agrária, a terra precisa produzir, garantir a reprodução da existência dos

assentados, no entanto, o recurso básico essencial a toda produção agrícola, a água,

muitas vezes não se encontra em quantidade, qualidade e acesso disponíveis.

Nos quatro projetos de assentamentos localizados no município de Uberlândia, visitados

até o mês de julho de 2012, a saber: PA Zumbi dos Palmares, PA Florestan Fernandes,

PA Tangará e PA Dom José Mauro, foram encontrados problemas quanto à captação,

distribuição, uso e qualidade da água.

Entende-se que a questão da água é essencial nas comunidades e a partir dos usos e

apropriações desiguais e que por meio do mau uso estabelecem-se os conflitos.

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O município de Uberlândia insere-se em uma região de intensa produção agrícola,

principalmente de “commodities”, e que possui inúmeras barragens, fazendo com que a

utilização do recurso água torne-se um privilégio daqueles que têm condições

financeiras de pagar para usufruir dela. A disputa pelo controle e uso da água possui

diversos representantes, provenientes de camadas sociais distintas que lutam para

usufruir um bem natural e abundante na região.

Além disso, nos assentamentos, o recurso água, embora de suma importância, é bem

diferente do recurso “terra”. Este último tem um estatuto bastante claro para os

assentados, sendo apropriado de forma individual (o lote) ou coletiva (a exemplo da

reserva ambiental,) (SIDERSKY, 2008). As regras de uso da terra “coletiva” vão

surgindo, e não parecem colocar grandes problemas a princípio. (OSTROM, 1990;

CUNHA, 2004). Já com o recurso água a situação é algo diferente. Por um lado, é

evidente para todos que o acesso a este recurso é vital para produzir para a subsistência

e para o mercado. Mas por outro lado, também é comum que este acesso seja bastante

desigual e que as regras de sua gestão sejam, às vezes, confusas.

Num assentamento, a montagem de um sistema global de uso do recurso hídrico não é

uma coisa simples. Em particular é necessário dimensionar e equacionar a distribuição

entre as diferentes necessidades. Sendo um recurso estocado (por meio de açudes,

cisternas, tanques), é necessário também pensar na possibilidade do seu esgotamento.

Em geral, o uso final tende a ser familiar, mas aquilo que é necessário para dar acesso

ao recurso frequentemente tem um caráter “coletivo” a exemplo dos sistemas de

distribuição de água nas agrovilas dos assentamentos (SIDERSKY, 2008).

A partir disso, considera-se que um sistema de gestão da água nos assentamentos, deve

levar em consideração a realidade física, ecológica e principalmente humana da

comunidade em questão (SIDERSKY, 2008). Assim, deve-se atentar para os Planos de

Desenvolvimento dos Assentamentos (PDAs), pois, eles são norteadores de como se

deve estruturar o assentamento, e dessa forma o uso da água também.

O mau gerenciamento do recurso água nos projetos de reforma agrária do município de

Uberlândia deve-se, entre outros motivos, ao órgão responsável por construir e manter a

infraestrutura nos PA’s, ou seja, ao INCRA. O INCRA é o órgão responsável por

perfurações de poços artesianos, instalações de encanamentos e rede de distribuição de

água, no entanto, em alguns casos, o serviço realizado é mal feito e os assentados nem

conseguem utilizar a infraestrutura instalada. Esse é o caso do PA Zumbi dos Palmares,

em que, existem dois poços artesianos perfurados pelo INCRA, mas um deles está

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inutilizado há quatro anos e o outro teve os seus encanamentos destruídos após a

explosão da bomba do poço que era inapropriada para o mesmo, as duas caixas d’água

existentes no PA com capacidade para 17 mil litros de água cada uma, estão

abandonadas (foto 1).

Com 22 famílias e dois córregos poluídos por uma granja que corta o PA, a maioria dos

assentados construíram sua própria cisterna ou furaram mini poços com seus próprios

recursos, sem ajuda governamental. No entanto, a água captada só é utilizada para o

abastecimento humano e dessedentação animal, já que para irrigação de lavouras é

preciso uma quantidade bem superior de água que a cisterna comporta.

Existem projetos de mandallas em praticamente todos os PA’s do município,

totalizando 46 projetos (Trabalho de campo, 2012), com auxílio e assistência técnica da

prefeitura municipal, o que é uma alternativa aos produtores assentados, mas em lotes

em que a falta d’água é crítica, como em topos de chapadas, no caso do PA Florestan

Fernandes, a mandalla não é construída.

O caso mais crítico se refere ao PA Tangará, onde existem seis poços artesianos

perfurados pelo INCRA, mas apenas dois são utilizados, pois os demais não estão

equipados Verifica-se, contudo, que no PA com 250 famílias, em que 187 famílias não

possuem acesso a água dos poços, onde apenas um poço atende 16 famílias e o outro

47, perfurados há dois anos, em um assentamento criado há cerca de oito anos. A

maioria dos lotes possui cisterna para armazenar a água da chuva, e os que estão

próximos aos cursos d’água canalizaram em alguns trechos.

Outro assentamento visitado - PA Dom José Mauro -, com 205 famílias, não possui

poços artesianos, mas 12 represas que abastecem os assentados e também o rio

Douradinho que tem uma de suas nascentes localizada dentro do PA (foto 2). Grande

parte dos assentados possuem cisternas, mas como ficou perceptível no trabalho de

campo, por ser um PA criado em 2009, ainda há pouca infraestrutura instalada, não

encontramos casas construídas, pois os assentados ainda não receberam o financiamento

do Banco do Brasil para a construção das mesmas. Apesar de ser abastecido por 12

grandes represas, o PA está localizado próximo ao antigo aterro sanitário do município

e há risco de que parcela da água que passa pelo assentamento esteja contaminada.

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Foto 1: Caixa d’água abandonada no PA Zumbi dos Palmares

Autora: GARCIA, J.C. Fonte: Trabalho de Campo, 2012. Foto 2: Nascente do rio Douradinho no PA Dom José Mauro

Autora: GARCIA, J.C. Fonte: Trabalho de Campo, 2012.

Os Planos de Desenvolvimentos deveriam atentar para essas particularidades existentes

em cada projeto de reforma agrária, entretanto, o desinteresse e a necessidade política

de criação de PA’s fazem com que muitos deles sobrevivam no descaso. Não foram

poucos os casos de abandono e venda de lotes, comentados durantes os trabalhos de

campo pelos próprios assentados, mas em uma situação em que às vezes nem água para

beber se possui no lote, torna-se compreensível tais atitudes.

Conforme Bezerra (2011), a luta pela terra não pode ser dissociada da luta pela água,

pois, deve-se ressaltar que em qualquer modelo de produção agrícola, seja ele

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agroindustrial ou camponês, não se efetiva sem a segurança hídrica, ou seja, sem

disponibilidade de água abundante. A reprodução da existência de um agricultor, seja

ele produtor de alimentos em pequena quantidade ou grande proprietário, produzindo

para exportação, passa diretamente pelo acesso a terra, entretanto, uma terra que não

possui acesso à água, não pode reproduzir a existência do camponês nem do

latifundiário. Este conjunto de fatores nos leva a definir a gestão da água como

instrumento de consolidação e melhoria dos sistemas produtivos (SIDERSKY, 2008),

ou seja, há uma busca pela segurança hídrica que é pressuposto básico para a segurança

e/ou soberania alimentar.

A segurança alimentar só é conseguida por meio da segurança hídrica, pois uma terra

sem acesso a água não pode produzir e sendo esse o recurso básico imprescindível para

a produção agrícola a sua falta ou dificuldade de acesso compromete não apenas a

produção, mas até mesmo a existência do produtor.

Considerações Finais

O presente trabalho visa proporcionar um entendimento a respeito de como se dá a

questão do acesso, uso e qualidade da água nos projetos de reforma agrária do

município de Uberlândia – MG. Apesar de não estar encerrada, a proposta dos trabalhos

de campo pôde contribuir com uma visão real do que acontece nos assentamentos rurais,

pois, é nos assentamentos de reforma agrária que a questão da água é crítica. Os

assentados dependem das ações do INCRA para construírem, plantarem, instalarem

infraestruturas dentro de seus lotes, o que torna o processo moroso, desgastante e

duvidoso para os assentados. Não há uma legislação específica para o uso da água nos

assentamentos de reforma agrária, o que torna tudo mais problemático.

Com os trabalhos de campo foi possível visualizar essa situação em alguns

assentamentos do município de Uberlândia, em que o acesso à água é reivindicação

generalizada. Sem água não há produção, não há subsistência, não há comercialização,

não há meios para o assentado reproduzir a sua existência, não há motivos para

continuar na terra, trazendo à tona a questão da soberania hídrica, sem a qual não é

possível efetivar a soberania alimentar e a melhoria das condições de vida da população

assentada.

Dessa forma, a questão hídrica aparece como um entrave à produção agrícola, pois, sem

acesso à água os produtores rurais não produzem o suficiente para atingirem o

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desenvolvimento econômico esperado, comprometendo a qualidade de vida dos

assentados.

Referências

ALBUQUERQUE, F.J.B.; COELHO, J. A. P. de.; VASCONCELOS, T.C. As políticas públicas e os projetos de assentamento. Estudos de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba, 9 (1), p. 81-84, 2004.

BEZERRA, J. P. P. A água como elemento estruturante na construção de territórios da soberania alimentar. Disponível em: http://www4.fct.unesp.br/nera/artigodomes/4artigodomes_2011.pdf acesso em 21 de junho de 2011. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 12.188, de 11 de janeiro de 2010. BRASÍLIA. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA – Manual dos Assentados de Reforma Agrária. Brasília, 2001, 53 p. CUNHA, L. H.. Da tragédia dos comuns à ecologia política: perspectivas analiticas para o manejo comunitário dos recursos naturais. Raízes, Campina Grande, v. 23, n. 1-2, p. 10 - 26, 2004. DIAS, M. M. Extensão Rural para agricultores assentados: uma análise das boas intenções proposta pelo serviço “Ates”. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 21, n. 3, p. 499-543, set./dez. 2004. LISITA, F. O. Considerações sobre a Extensão Rural no Brasil. Disponível em http://www.agronline.com.br/artigos/artigo.php?id=219 acesso em: 04 de julho de 2011. OSTROM, E. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. PORTO-GONÇALVES, C.W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2006. 420 p. SIDERSKY, P. R. Gestão de recursos hídricos e sistemas produtivos: um estudo sobre inovações técnicas e sociais em assentamentos do Alto Sertão da Paraíba. Sociedade e Desenvolvimento Rural. Vol 2, n. 1, p.1-24. 2008.

VILELA, S. L. O. Qual política para o campo brasileiro?: do Banco Mundial ao PRONAF:a trajetória de um novo modelo?. In: Congresso da Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural, 35., 1997, Natal. Anais... Brasília, DF: SOBER,1997.