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Esta segunda edição do relatório Haiti: Soberania e Dignidade – Missão Internacional de Investigação e Solidariedade incorpora, além da primeira edição – que aborda a primeira missão, ocorrida de 3 a 9 de abril de 2005 – uma seção complementar, elaborada em novembro de 2006, que atualiza os fatos recentes e a conjuntura daquele país. Este complemento visa também relatar parte dos eventos ocorridos em Porto Príncipe, de 26 de outubro a 2 de novembro de 2006, quando foi possível aos integrantes da delegação da Rede Jubileu Sul Américas atualizarem as informações sobre a conjuntura haitiana.

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Haiti: Soberania e Dignidade Missão Internacional de Investigação

e Solidariedade com o Haiti

1ª ediçãoEditora Expressão Popular

São Paulo – 2007

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Publicação: Rede Jubileu Sul/Brasil e Rede Jubileu Sul/AméricasOrganização: Rosilene WansettoTradução e Revisão: Maria Teresa Llanos, Rosilene Wansetto, Jorge Pereira FilhoRevisão Geral: Sandra QuintelaApoio fi nanceiro: CESE – Coordenadoria Ecumênica de ServiçoFoto interna: Fabrina FurtadoIlustração de Capa: Santiago GrazianoDiagramação: Maria Rosa Juliani

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Expediente

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Sumário

Apresentação ............................................................................................... 7

Parte IPrólogo ....................................................................................................... 13

Apresentação ............................................................................................. 17

Capítulo 1Marco geral ................................................................................................... 21

Capítulo 2Ocupação militar ............................................................................................ 25

Capítulo 3Ocupação econômica e fi nanceira ................................................................... 31

Capítulo 4Ocupação ambiental e dívida ecológica ........................................................... 39

Capítulo 5Segurança e administração da justiça .............................................................. 45

Capítulo 6A situação das crianças e das mulheres ........................................................... 51

Capítulo 7Democracia, eleições e diálogo nacional .......................................................... 55

Capítulo 8Solidariedade e cooperação internacional ........................................................ 59

Capítulo 9Recomendações ............................................................................................ 61

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Capítulo 10Conclusão ..................................................................................................... 67

Anexo 1Integrantes da missão .................................................................................... 69

Anexo 2Organizações e pessoas entrevistadas e atividades realizadas .......................... 71

Anexo 3Considerações iniciais da Missão Internacional de Investigação eSolidariedade com o Haiti ............................................................................... 73

Anexo 4Mapa das bases dos EUA na região ................................................................ 75

Anexo 5As dívidas históricas e ecológicas como povo haitiano ...................................... 77

Parte IIIntrodução .................................................................................................. 85

Capítulo 1Seminário “Dívida, livre comércio, pobreza e perspectivas de desenvolvimento para o Haiti e região” ........................................................ 87

Capítulo 2Foro público sobre a resistência dos povos do continente frenteà dominação imperialista e as instituições fi nanceiras internacionais .................. 91

Capítulo 3Reunião sobre a Campanha de Solidariedade com o povo Haitiano ................... 93

Capítulo 4Audiências com autoridades haitianas ............................................................. 95

Anexo 1Declaração de Porto Príncipe, Haiti ................................................................ 101

Anexo 2Carta ao BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento .............................. 109

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Apresentação

Esta segunda edição do Relatório Final da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti incorpora, além da primeira edição - que aborda a Primeira Missão, ocorrida de 3 a 9 de abril de 2005 – uma seção complementar, elaborada em novembro de 2006, que atualiza os fatos recentes e a conjuntura daquele país. Este complemento visa também relatar parte dos eventos ocorridos em Porto Príncipe, de 26 de outubro a 2 de novembro de 2006, quando foi possível aos integrantes da Delegação da Rede Jubileu Sul Américas atualizarem as informações sobre a con-juntura haitiana.

Em fevereiro de 2006, o Haiti passou por processo eleitoral, do qual foi eleito o presidente René Preval, o que indicaria, a princípio, que aquele país estaria avan-çando em termos de “democracia” e participação popular. Porém, o Quadro de Co-operação Interina composto por técnicos dos EUA, da Usaid, Banco Mundial e do BID, responsável pela elaboração do plano para a reconstrução do Haiti - continua exercendo poder sobre o governo, tendo inclusive infl uenciado na composição dos novos ministérios. Assim como nas eleições presidenciais ocorridas no Brasil, em 2002, todos os principais candidatos à presidência do Haiti já haviam fi rmado com-promisso em prosseguir as políticas das instituições fi nanceiras multilaterais (IFI´s), antes mesmo que o povo pudesse, pelas urnas, fazer sua opção.

Como resultado, e apesar do processo eleitoral pelo qual passou o Haiti, ainda não foram atendidas as principais reivindicações dos movimentos sociais haitianos e de toda a América Latina: a anulação da dívida haitiana e a retirada das tropas estrangeiras daquele país. Apesar da justifi cativa ofi cial de que as tropas seriam ne-cessárias para garantir a segurança do processo eleitoral, nove meses após o pleito

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elas lá continuam, para garantir, na realidade, a implementação da política neoliberal. Tais políticas se caracterizam, principalmente, pelo pagamento da dívida, a adoção de acordos comerciais, o rebaixamento dos salários e o desrespeito aos direitos tra-balhistas.

Esperamos, com essa segunda edição, ressaltar a importância da continuidade e da intensifi cação da Campanha de Solidariedade ao Haiti, uma vez que a luta haitia-na é uma luta de todos os povos da América e também dos demais continentes. Se o povo do país mais pobre das Américas puder vencer a mais direta e escancarada dominação econômica e militar do império, todos nós poderemos.

Rede Jubileu Sul/Brasil, fevereiro de 2007.

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Parte IRelatório Final da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti

3 a 9 de abril de 2005

Dedicado aos mais de 200 anos de luta digna do povo haitiano pela sua independência, em particular à memória do libertador Toussaint L’Ouverture, do jornalista radical Jean Dominique, assassinado no dia 3 de abril de 2000, e por todas as mulheres que no dia 7 de abril de 1983 se mobilizaram, em plena ditadura duvalierista, se constituindo em um ponto de partida do movimento haitiano de mulheres, cuja força e criatividade continuam sendo vitais para a libertação do povo.

Dedicado também à memória do militante social e jornalista Jacque Rouches, seqüestrado, torturado e assassinado no dia 14 de julho de 2005, enquanto o presente relatório estava sendo redigido.

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Passaram-se nove meses desde a presença da Missão Internacional de Inves-tigação e Solidariedade com o Haiti naquele país, um tempo de gestação e parto que, porém, tem dado poucos resultados para o povo haitiano. As denúncias e reco-mendações que fi zemos naquela hora, ampliadas e complementadas neste relatório, continuam sendo tão vigentes quanto antes.

A intervenção dos EUA, França, Canadá e Chile, antecipadamente a qualquer resolução das Nações Unidas e vinculada à derrocada do governo constituído, não tem sido ainda investigada e sancionada.

O responsável pelos Direitos Humanos da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) classifi cou recentemente como ‘catastrófi ca’ a situa-ção reinante neste campo. O secretário geral da ONU para o Haiti tem feito reiteradas intervenções públicas por causa da permanência de uma grande quantidade de pre-sos políticos e pela impunidade generalizada.

As tropas da Minustah têm aumentado em número e em orçamento e seguem com a ocupação do Haiti, enquanto se agravam os informes sobre a sua atuação em tiroteios e mortes diárias, massacres nas favelas e uma repressão sistemática dirigi-da contra supostos simpatizantes do deposto presidente Aristide.

Os presidentes dos países do continente reunidos da IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata, em novembro de 2005, elogiaram “o compromisso ativo dos países da região e o seu papel decisório na restauração da estabilidade e o estabelecimento da governabilidade democrática pacífi ca no Haiti”. Isso só evidencia a cegueira que continua circundando o triste empenho dos governos da região num plano desenha-do por outros.

Prólogo

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O programa de desarmamento da Minustah, apesar de ter investido 26 milhões de dólares durante os primeiros 18 meses de sua presença no Haiti e ser um dos princi-pais objetivos da presença militar estrangeira naquele país, só conseguiu confi scar 265 armas, das quase 200 mil que a ONU estima que estão em mãos de civis haitianos.

E a circunstância ainda não esclarecida da morte a um mês do comandante mi-litar da Missão acrescenta mais uma interrogação sobre o futuro de uma operação que tem demonstrado não só a sua ilegitimidade de origem, mas também a tragédia da sua operação a serviço de interesses alheios às necessidades e aos direitos do povo haitiano.

Os países que intervêm no Haiti como forças militares da Minustah deveriam re-verter a situação de instabilidade, gerando projetos para a vida e o desenvolvimento do povo haitiano. O então comandante e chefe das tropas militares afi rmou, durante a reunião com a nossa Missão Internacional, que o problema do Haiti não se resolve com a repressão, mas com recursos para solucionar os graves problemas do país.

Apesar disso, o Haiti, que é o país mais empobrecido do nosso hemisfério, pagou durante o ano de 2005 mais de 80 milhões de dólares em interesses e serviço refe-rente à suposta dívida externa que o Banco Mundial, o Banco Interamericano de De-senvolvimento, França e outros dos chamados ‘doadores internacionais’ continuam cobrando do povo haitiano. Esse pagamento é um dos muitos requisitos para o Haiti continuar a receber essas pequenas ajudas, ou “cooperação humanitária”, que os “doadores internacionais” têm se comprometido, uma e outra vez, mas com uma implementação limitada.

Além disso, continua a pressão para a negociação de novos acordos de livre comércio e privatização do pouco que ainda resta do setor público, num contexto de persistente marginalização da população – que não tem qualquer voz nas decisões que são tomadas nem participação nos possíveis benefícios da sua execução.

As numerosas mortes e casos graves de violação contra a integridade dos e das haitianas que arriscam tudo para encontrar refúgio na vizinha República Dominicana são um testemunho doloroso da vida feita em um pesadelo.

A primeira parte das eleições projetadas para a posse do novo presidente – em circunstâncias ainda tingidas de incerteza e insegurança. Um ex-membro do Con-selho Eleitoral Provisório tem denunciado as fortes pressões tanto da ONU quanto da OEA e de todos os governos que estão intervindo no Haiti, para que as eleições sejam realizadas, deixando o terreno preparado para uma “derrubada eleitoral pla-nejada” que difi cilmente resolve os desafi os de legitimidade e operacionalidade que enfrentará qualquer governo eleito e, no pior dos casos, “servirá para consagrar ‘a incapacidade dos haitianos’ de se autogovernar”.

Não pode existir democracia forçando o povo haitiano a realizar eleições impostas pelas forças de ocupação militar e econômica. O que é necessário é o fi m dessa tu-tela externa, condições de vida digna para as maiorias, hoje submergidas na miséria, e o apoio aos seus esforços para exercer o seu direito à autodeterminação.

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Hoje, mais do que nunca, está posta à prova essa capacidade de resistência do povo do Haiti: a sua capacidade de continuar gerando vida, beleza e dignidade no meio da dominação e da miséria. Sejam quais forem os resultados do processo elei-toral, também continuará precisando de nós, de todos os povos da América Latina, do Caribe e do mundo, da solidariedade e do apoio.

Durante o recente VI Fórum Social Mundial Policêntrico, realizado em Caracas na Venezuela, os movimentos e organizações reunidos, primeiro no Tribunal In-ternacional de Solidariedade com o Haiti e depois na Assembléia dos Movimentos Sociais, reiteraram o compromisso para promover uma verdadeira Campanha de Solidariedade com o Haiti, pela retirada das tropas estrangeiras e a anulação incon-dicional da dívida externa.

Entre outros passos concretos, acordou-se em realizar audiências com os nossos governos para reclamar o fi m da ocupação militar, econômica e ambiental do Haiti, antes de 15 de fevereiro, quando vence o atual mandato da Minustah. Acordou-se também, em promover ações de solidariedade com o povo haitiano para o dia 29 de março, Dia da Constituição.

Convidamos todos e todas a se unirem nessas ações e a todas as iniciativas que favoreçam a luta do povo do Haiti, pela sua soberania e dignidade. Desejamos que este relatório seja mais uma ferramenta nesse sentido e, junto com as demais organizações e pessoas que integraram a Missão Internacional de Investigação e Solidariedade, esperamos os comentários e informações complementares que cada leitor ou leitora considere apropriado.

Buenos Aires, 7 de fevereiro de 2006.

Adolfo Pérez Esquivel, Nora Cortiñas e Beverly Keene - Pela Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti

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O povo do Haiti enfrenta hoje uma situação de grave crise marcada pela interven-ção internacional no seu território, na sua economia e em todos os seus processos institucionais, bem como, o colapso social, ecológico e político do seu país.

Em fevereiro 2004, interrompeu-se a celebração do bicentenário da sua indepen-dência política com a inauguração de um novo período de ocupação estrangeira. No início, intervieram as tropas dos EUA, França e Canadá, culminando num intenso processo de mobilização social e política contra o cada vez mais desacreditado go-verno de Jean Bertrand Aristide, e levando-o para um novo exílio, longe da possibi-lidade de o povo haitiano assegurar o seu julgamento e sanção e alcançar, pela sua própria força, a transição política tão procurada.

Para muitas pessoas e organizações, sobretudo da América Latina e Caribe, além da crescente preocupação perante a situação haitiana e a rejeição à interven-ção dos poderes centrais, se acrescentou o igualmente inaceitável fato de que os governos de vários dos nossos países assumissem o mandato de “estabilização”, depois de aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU e assim enviassem tro-pas ao Haiti. Em vez de organizarem um ‘exército’ de médicos, professores, agrô-nomos, especialistas em direitos humanos e resolução não violenta de confl itos, para trabalhar junto ao povo haitiano, desde junho 2004, os governos do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Equador, Bolívia, Peru e a Guatemala, entre outros, aceitaram a desonrosa tarefa de ocupar um país irmão, realizando o ‘traba-lho sujo’ em favor de interesses alheios.

Perante essa realidade, sentimo-nos especialmente convocadas e convocados a gerar novas iniciativas de solidariedade e luta comum com o povo haitiano. A reali-

Apresentação

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zação desta Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti foi um passo nesse sentido.

A proposta nasceu numa ofi cina desenvolvida durante o I Fórum Social das Améri-cas e para a sua organização partimos da preocupação comum pelo futuro do Haiti e de toda a região, perante a investida neoliberal militarista que continua avançando ape-sar da resistência. Nesse sentido, partimos de uma concepção comum de que outras políticas e uma verdadeira cooperação internacional são necessárias e possíveis.

Os principais objetivos da Missão Internacional eram:• Verifi car a situação atual do povo haitiano no contexto da sua longa luta pela

autodeterminação, democracia e vida digna;• Levar o apoio e amizade dos povos do continente e do mundo inteiro;• Recolher informações particularmente sobre alguns aspectos relevantes da

ocupação militar, assim como dos processos de “estabilização”, “ajuste” e “ocupação” econômico-fi nanceiros;

• Lançar um expressivo movimento em favor da reconstrução soberana do Haiti.

A Missão Internacional esteve composta por vinte representantes de redes, movi-mentos e instituições sociais signifi cativas, de direitos humanos, religiosas, culturais e políticas da América Latina, Caribe, América do Norte e África. Foi liderada pelo Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, junto a Nora Cortiñas, das Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora.

Entre as organizações integrantes, na sua maioria de caráter regional, se encon-tram Jubileu Sul, que coordenou a Missão junto com as organizações responsáveis no Haiti; a Aliança dos Povos do Sul Credores da Dívida Ecológica; a Aliança Social Conti-nental; a Associação Americana de Juristas; a Associação Caribenha de Investigação e Ação Feminista; o Comitê pela Abolição da Dívida do Terceiro Mundo; a Confederação Parlamentar das Américas; o MST/Via Campesina; o Parlamento Andino; a Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento; o Serviço de Paz e Justiça da América Latina; o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil; e o Movimento de Documentaristas da Argentina .

Durante a nossa estada no Haiti, de 3 a 9 de abril de 2005, a Missão desenvolveu um extenso programa, incluindo entrevistas e visitas com:

• Representantes de mais de 60 movimentos e organizações de base, entre eles sindicatos, partidos políticos, grupos de mulheres e de camponeses;

• Organizações sociais, religiosas, de direitos humanos e de desenvolvimento assim como outras organizações não governamentais.

• Autoridades do governo nacional interino;• Autoridades da universidade estatal, professores e estudantes;• Representantes da OEA, da ONU e dos seus diversos organismos e programas; • O comandante e chefe das forças militares da Missão da ONU para a Estabili-

zação do Haiti (Minustah);

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• Embaixadores e representantes de vários países da região e do mundo;• O presídio central;• Infra-estrutura como, escolas, hospitais e a universidade pública;• Bairros populares da capital Porto Príncipe, comunidades rurais no Vale de

l’Artibonite, a cidade do Cabo Haitiano e a Zona Franca de Ounaminthe.

Integrantes da Missão foram entrevistados por uma grande quantidade de jornalis-tas e comunicadores sociais; realizamos duas conferências de imprensa e participa-ram de mais de vinte programas de televisão e rádio; foram realizadas duas audiên-cias públicas com grupos de estudantes; e participaram nas atividades de recepção da Marcha Mundial das Mulheres e a Carta das Mulheres para a Humanidade .

Antes de concluir o nosso programa no Haiti, tornamos público um primeiro docu-mento de Considerações Iniciais . Este Relatório Final pretende complementar aque-le texto, ampliando o registro das nossas principais conclusões e recomendações baseando-se em informações, análises, documentação e observações recolhidas no transcurso da nossa preparação e estada no Haiti.

O presente Relatório não é uma análise exaustiva da atualidade do Haiti, mas refl e-te o que conseguimos ver e constatar no curto período de tempo do qual dispúnhamos. Cientes da complexidade da realidade haitiana e da forte polarização que a mesma causa, só resta ressaltar humildemente a nossa responsabilidade sobre o que se ex-pressa aqui, e o convite que fazemos a todas as pessoas ou organizações que tenham os elementos de informação ou juízo para compartilhar num diálogo sincero.

Finalmente, cabe expressar a nossa profunda gratidão para com todas as pessoas e organizações do Haiti e de fora, que compartilharam o mesmo compromisso de so-lidariedade e possibilitaram essa Missão Internacional. Particularmente, queremos expressar o nosso reconhecimento para as e os colegas da Plataforma de Luta por um Desenvolvimento Alternativo (Papda), do Instituto Cultural Karl Lévèque (ICKL) e da Plataforma de Organizações Haitianas de Direitos Humanos (Pohdh), que co-ordenaram o nosso programa no Haiti e garantiram, com a sua dedicação e carinho, a possibilidade de um contato amplo e diverso com o seu país e com as lutas e as esperanças do seu povo. A todos eles – e elas também – dedicamos este Relatório junto com o nosso compromisso de dar continuidade.

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A Missão Internacional de Investigação e Solidariedade começou a sua visita ao Haiti pouco depois do primeiro aniversário da derrocada do segundo governo de Aristide e o quinto aniversário do assassinato do pioneiro e muito querido jornalista de rádio Jean Dominique.

Encontramos um país saqueado e praticamente sem Estado, com um povo sub-metido à violência estrutural, social e institucional e que atualmente vive entre a an-gústia e a incerteza, a exclusão e a desintegração social e política. Os contrastes são de tal magnitude, de empobrecimento e esquecidos intencionalmente, que dói no pensamento e na alma. Ver um país devastado sem piedade e com total impunidade por governos corrompidos que traíram as aspirações do povo por interesses econô-micos, políticos e militares alheios ao bem-estar da população, em particular os inte-resses dos Estados Unidos e da França, e dos seus parceiros, sejam eles haitianos ou de outra procedência.

O governo interino é mais formal do que real, com a sua própria legitimidade questionada e a sua margem de ação limitada. A isso se soma a presença de di-versos grupos armados que são úteis para manter em alerta ao povo e um elevado reclamo por ‘maior segurança’ – demanda que se escuta, principalmente, por parte daqueles que aclamam a necessidade de melhorar as condições para o investi-mento privado.

Porém, o que mais impactou as/os integrantes da Missão Internacional não foram os incontáveis obstáculos que o povo haitiano enfrenta, mas a força e a dignidade, com a qual, acima de tudo, continua sonhando e lutando por um país soberano, com Justiça e solidariedade.

Marco geral

Capítulo 1

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O Haiti manifesta hoje, como tem feito historicamente, a capacidade da resistên-cia social e cultural, a força da sua identidade, a dignidade do povo e a sua esperança de poder reverter a atual situação. Esse espírito e a mobilização cresceram ao longo dos últimos anos, levando cada vez mais setores a se rebelarem perante os erros e as violações do governo de Jean Bertrand Aristide, um governo que tinha se deslegi-timado por causa das acusações de fraude eleitoral, uma gestão catastrófi ca e pela traição aos objetivos do seu primeiro mandato.

No fi nal do ano de 2003, a força da oposição interna conseguiu manter em xeque a continuidade do governo, projetando suas próprias propostas de transição. Foi na-quele momento que os EUA reagruparam e fi nanciaram grupos armados, formados por golpistas, ex-soldados do exército que o presidente Aristide tinha dissolvido anos atrás através de um decreto problemático, e outros grupos.

Esses grupos entraram no Haiti pela República Dominicana em fevereiro 2004, semeando a morte e o terror, e controlando áreas-chave do território. Enquanto os governos da Comunidade Caribenha tentavam negociar um acordo entre a oposição e o governo, Aristide solicitou ajuda às forças estrangeiras e, no dia 23 de fevereiro, no ano do bicentenário da independência do Haiti, chegaram novamente tropas da França e EUA, seguidas pelas do Canadá e Chile.

O presidente Aristide foi à ruína no dia 29 fevereiro, quando tropas dos EUA o expulsaram do país, apresentando depois a renúncia formal que o mesmo já havia assinado. Grandes setores da população levantaram-se num processo que ganhava força e amplitude há vários meses, reclamando pela renúncia e tentando pôr em an-damento as próprias alternativas de transição.

Mas os EUA, França, Canadá e Chile não deixaram a ação nas mãos dos haitianos e intervieram militarmente em assuntos internos do país, frustrando mais uma vez o proces-so histórico de um povo que reclamava seus direitos. Naquele mesmo dia, e apoiando as forças de ocupação que já tinham entrado no país, o Conselho de Segurança das Nações Unidas resolveu enviar uma força multinacional por um período de três meses, que seria substituida por uma outra força que daria continuidade aquele mesmo mandato.

Essa terceira ocupação poderia ser prolongada por um extenso período de mais de 20 anos, segundo declararam altos dirigentes da ONU e da Casa Branca, naquele momento. Essa intervenção se produz no marco de uma realidade social de pobreza massiva e crescente, com indicadores alarmantes:

• A renda per capita anual do Haiti representa 15% da média latino-americana;• Menos de uma pessoa entre 50 tem um emprego fi xo;• Menos do 40% da população tem acesso à água potável;• O analfabetismo atinge 45% da população;• A expectativa de vida caiu de 52,6 anos em 2002 para 49,1 anos em 2003;• Só 24% dos partos são atendidos por pessoal qualifi cado;• O país ocupa o posto 153º na classifi cação do Índice de Desenvolvimento Hu-

mano do PNUD (2004);

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• O PIB reduziu-se de forma contínua entre 1985 e 1995, o que explica a classifi -cação de país em “regressão econômica rápida” (Cnuced, 2001);

• Esse quadro origina-se num longo processo de deterioração e crise estrutural, agravada por causa da aplicação dogmática de vários planos de “estabilização” e “ajuste”, impostos pelas instituições fi nanceiras internacionais (IFI´s) com o acordo dos sucessivos governos haitianos. Esses planos destruíram uma grande parte da economia, deteriorando gravemente as condições de vida de 90% da população e acentuando os processos históricos de concentração e estrangeirização da riqueza.

O Haiti conquistou a sua independência em 1804, realizando uma façanha indis-cutível em favor da liberdade e da completa emancipação da humanidade. O seu povo negro e escravo – cuja expectativa de vida ativa na colônia mais rica da França teria sido de apenas 5 a 7 anos – não só se libertou do jugo colonial, mas internacionalizou os direitos humanos, proclamando a dignidade de todas as pessoas, sendo a primeira nação que aboliu a escravidão, que naquele momento já tinha 300 anos de existência na América. Posteriormente, ajudou nos processos de independência de toda região. Mas fi cou sozinho na hora de enfrentar a ira e a discriminação dos seus ex-donos e futuros regentes. Primeiro, a França impôs um embargo, e depois o pagamento de uma indenização cujo peso determinou a consolidação do modelo agroexportador, cujo caráter explorador logo fez com que o povo haitiano rapidamente se rebelar. A “insta-bilidade” do padrão de concentração e desigualdade levou os EUA a ocuparem o país de 1915 a 1934 – deixando como resultado o massacre de milhares de camponeses, a usurpação de milhares de hectares das melhores terras e um sistema político depen-dente e clientelista.

Só em 1990, o povo haitiano pôde eleger seu presidente pela primeira vez e de forma direta, culminando com 30 anos de resistência à opressiva ditadura duvalierista, após ter constituído um amplo movimento cidadão que lutou sem trégua, para conquistar nova-mente o seu direito à autodeterminação e o seu direito de desfrutar livremente da riqueza por eles produzida. Aquele voto de esperança recaiu no carismático padre de bairro, Jean-Bertrand Aristide. Apenas nove meses depois, o seu governo foi interrompido por um golpe de estado, e começou um outro período de perseguição e morte massiva, acompanhado pelo empobrecimento forçado de setores ainda maiores da população.

Após negociações lideradas pelo governo dos EUA, Aristide retornou ao país em 1994, pela mão de uma missão conjunta das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA), que permaneceu no país até 1999, estando, nos primei-ros meses, formada por 20 mil marines.

Só 20% do eleitorado compareceu na votação no ano 2000. Aristide retornou nes-se contexto à Presidência em meio a fortes acusações de fraude, e num governo

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controlado 100% pelo seu partido, o Fanmi Lavalas. A polarização política impediu o Parlamento de funcionar, enquanto o FMI, o BM, o BID e os governos que emprestam recursos impuseram um embargo e ajustes, com uma redução do 50% do quadro dos funcionalismo público. Acentuando-se a deteriorização econômico-social, o aprovei-tamento, corrupção de parte de vários setores, a presença do narcotráfi co e o seu enquistamento no severamente enfraquecido Estado, e a violência direta contra a população, as suas organizações e as instituições públicas.

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A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – Minustah, constituída em 1º de junho de 2004, é um fato transcendente que pode ter múltiplas repercus-sões sobre os movimentos sociais do continente todo.

Estabelecida por decisão do Conselho de Segurança e já renovada duas vezes, a Missão tem um mandado amplo integrado formalmente por diversos componentes: desde a defesa e promoção dos direitos humanos, até a realização de eleições e a coordenação e supervisão da ajuda humanitária.1

Porem, 85% do pessoal e orçamento da Minustah corresponde aos componentes militares e da polícia civil. Essas forças estão integradas por 7.495 efetivos de apro-ximadamente 30 países de todos os continentes e estão comandadas pelo Brasil.2 O mandato está enquadrado no artigo 7º da Carta da ONU, que autoriza o porte de armamento adequado como fator dissuasório, e o uso da força como último recurso para proteger os civis.

Durante a nossa estada no Haiti, ouvimos vozes – muitas delas em representação dos governos do Cone Sul, da América Latina com forte participação na Minustah

1 Ver as resoluções de número S/1542, S/1576 e S/1608, de abril e novembro de 2004 e junho de 2005, respectivamente http://www.un.org/spanish/depts/dpko/minustah.2 Em 30 de abril de 2005, as forças da Minustah estavam integradas por 6.207 soldados e 1.288 policiais civis. Os países que aportam contingentes militares são: Argentina, Benin, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Sri Lanka e Uruguai. Os países que aportam policiais civis são: Argentina, Benin, Bósnia e Herzegovina, Brasil, Burkina Faso, Camarões, Canadá, Chad, Chile, China, Egito, El Salvador, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, Gana, Guine, Jordânia, Mali, Maurício, Nepal, Níger Nigeria, Paquistão, Portugal, România, Senegal, Serra Leoa, Sri Lanka, Togo, Turquia, Uruguai e Zâmbia. Em junho de 2005, o Conselho de Segurança aprovou um aumento transitório no número de efetivos, elevando o limite a 7.500 soldados e 1.897 policiais civis (S/Res/1608).

Capítulo 2

Ocupação militar

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– que insistiam em que a presença das tropas era necessária para garantir as condi-ções de reconstrução do Estado haitiano. As mesmas vozes frequentemente acres-centavam que a Minustah era uma boa capacitação para as forças armadas daqueles países, que pouco tempo atrás tinham sido protagonistas de golpes de Estado e políticas genocidas nos seus próprios países.

Ouvimos também vozes que argumentavam que a presença das forças militares da Minustah era ‘o mal menor’ – que tinha sido pior em ocupações anteriores quan-do tropas estrangeiras ocuparam diretamente os espaços administrativos do Estado – ou que era preferível a presença das tropas do Sul do que as do Norte. Várias teste-munhas denunciaram que o governo Aristide tinha demandado a presença de tropas estrangeiras, sem mencionar que se tratava de um pedido de ajuda para expulsar aos invasores mercenários, que chegaram ao país em janeiro e fevereiro de 2004, e cujas origens e fi nanciamento têm sido amplamente denunciados.

Nenhum povo quer a presença de tropas estrangeiras no seu território e o povo haitiano não é uma exceção. São, teoricamente, forças de paz, mas não houve ne-nhum acordo prévio entre as partes em confl ito que possa sustentar a possibilidade de tal mandato. Porém, as forças armadas da Minustah são forças de ocupação e são rejeitadas como tais por importantes setores da população. Chegaram ao país pela mão dos mesmos poderes centrais – Estados Unidos, França e Canadá – que souberam aproveitar o repúdio geral ao presidente para patrocinar a sua derrocada e assegurar a ascensão de um novo governo, mais efi caz e útil aos seus propósitos. Denunciamos, também, a derrocada do governo Aristide, realizada pelos EUA no dia 29 de fevereiro de 2004, como uma violação ao direito internacional, e unimo-nos às manifestações que até agora não foram ouvidas, solicitando investigação e sanções aos responsáveis por esse crime.

Quando Aristide foi deposto, os marines dos EUA interviram, ilegalmente e só depois da derrocada, foi convocada uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU, instância que ordena a intervenção das forças multinacionais. O reclamo de vários governos da região para que fossem investigados os acontecimentos que terminaram na derrocada de Aristide não foi atendido. Mais uma vez, o Conselho de Segurança da ONU foi utilizado para favorecer os interesses dos seus integrantes e não para o resguardo dos direitos dos povos afetados, nem para promover esses direitos.

Qual é a ‘ameaça à paz e a segurança internacional da região’ levantada pelo Conselho de Segurança da ONU para justifi car o estabelecimento da Minustah? É o temor dos EUA de receber mais uma onda de refugiados haitianos, fugindo da pobre-za e da exclusão em embarcações precárias? É a possibilidade de perder o controle sobre uma zona geopolítica estratégica? A simultaneidade da revolta no Haiti e o aumento das pressões de Washington sobre a Venezuela e a multiplicação das amea-ças dos EUA a Cuba é simplesmente uma coincidência?

O objetivo mais imediato da Minustah parece ser o controle da população, a busca de uma estabilidade que possa garantir um clima propício para o comércio e os inves-

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timentos, um futuro auspicioso para as corporações transnacionais. Frente a outro dos argumentos levantados – aquele que justifi ca a presença da Minustah pela ne-cessidade de estabelecer um clima de segurança para o desenvolvimento do proces-so eleitoral – é necessário pontuar que, segundo as informações coletadas na Missão de Solidariedade e Investigação, nem o comandante militar das tropas da Minustah, o general Heleno Ribeiro Pereira, nem o conselheiro do componente policial da Mi-nustah (o Civpol), o coronel Malik Mbaye, planejam ações para proteger os militantes políticos durante a campanha eleitoral. Infelizmente, a presença militar estrangeira no Haiti, como na região toda, não é uma novidade.3 É uma forma histórica de monitora-mento político que fragmenta qualquer alternativa de soberania, defi nida aqui como a possibilidade de uma nação, e de exercer a gestão da sua própria riqueza. Mantém a dependência econômica e possibilita qualquer dominação armada.

A experiência de opressão militar no Haiti coloca a exigência de tentar clarifi car alguns jogos verbais utilizados pelas forças que se acham hegemônicas no mundo. Assim, perante a realidade haitiana, expressões que a “qualifi cam” ajuda humanitá-ria, intervenção humanitária, perdem imediatamente o sentido. Aparecem com novas semânticas para encobrir palavras como guerra, ocupação militar, dominação, colo-nialismo e outras, historicamente carregadas de horror, opressão, sangue, mutilação e morte. João Luiz Pinaud; Jurista, professor de Direitos Humanos e integrante da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti.

O que leva os governos dos países irmãos da América Latina, do Caribe, da África e da Ásia a aceitar esse papel de interventores? Quais os objetivos estratégicos da política externa de Lula, que vê o Brasil como uma potência regional com vocação para liderar um bloco do Terceiro Mundo, no marco de uma economia globalizada? É a obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Uni-das? Quais são os objetivos do governo argentino, que tem vinculado publicamente o envio das suas tropas ao Haiti com o apoio dos EUA para as negociações argentinas com o Fundo Monetário Internacional? Quando procuram defender a sua presença militarizada no Haiti, os diplomatas dos governos do Cone Sul – Brasil, Argentina,

3 Ver, anexo 4, um mapa das bases militares estadunidenses na região. Os relatos das incursões militares no Caribe, antecedentes próximos da presença armada da Minustah, mostram o jogo estratégico da política de Washington para o hemisfério. É preciso lembrar que em 1965, 40 anos atrás, sob a cobertura da OEA, os fuzileiros dos EUA desembarcaram na vizinha República Dominicana para sufocar o movimento local que garantia, com apoio militar, o governo de esquerda de Juan Bosch, que tinha sido eleito em 1963. O derro-camento do governo renovador de Mauricio Bishop em Granada, acontecido em 1983, é um outro exemplo. Mais atrás no tempo, no ano de 1920, em Cuba o general Crowder dos EUA, chegou a ser arbitro em con-fl itos eleitorais e a determinar reformas fi nanceiras, como um incipiente ajuste estrutural, que precederam e prepararam o caminho para os conhecidos empréstimos geradores das chamadas dívidas externas e os seus serviços criminais (o pagamento de interesses), que países “endividados” nunca poderão pagar.

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Chile, Uruguai e Paraguai – costumam argumentar que é um exemplo de uma nova política de irmandade e apoio mútuo entre os países da região; uma parte da Doutri-na Monroe atualizada para o século XXI: “A América Latina e o Caribe para os latino-americanos e caribenhos”. Mas não há uma política mais velha no mundo que a de enviar tropas militares com a desculpa de resolver problemas sociais e políticos.

Esses mesmos governos alegam desconhecimento dos objetivos estratégicos dos EUA, França e Canadá, assim como a participação da CIA no derrocada do governo haitiano, por mais deslegitimado que este estivesse. O eterno sonho dos EUA, de promover uma força militar integrada por tropas dos distintos países do con-tinente e capaz de intervir em confl itos que afetam os seus interesses – do império –, parece virar realidade, enquanto as nobres aspirações de integração e solidariedade regional, esgrimidas pelos governos participantes, continuam se desvirtuando. Nos últimos meses, perante situações críticas de crescimento de forças populares ou de choque com os interesses de Washington, em vários países da região, como Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela, não faltaram quem defendesse esse tipo de inter-venção como uma opção.

É absolutamente urgente e necessário mudar as forças militares de ocupação por forças civis de solidariedade e reconstrução, e por programas para o desenvolvimen-to que integrem os projetos, as propostas e a participação da sociedade haitiana. Faz-se necessário pôr um fi m ao envio de exércitos de ocupação para impor políticas que respondam aos grandes interesses econômicos e geoestratégicos.

Tropas de paz, ou tropas de repressão?Atualmente, os “capacetes azuis” da Minustah estão presentes de diversas formas

junto à população. Em Porto Príncipe, a sua presença é muito visível, patrulhando as ruas em grandes veículos ou destacados em lugares públicos, com armamento pe-sado e apontando para alguma direção ou diretamente para a população. Cumprem funções policiais, pois é parte do seu mandato apoiar a quase inexistente, pobremen-te treinada e defi citariamente equipada Polícia Nacional Haitiana. Mas também lim-pam as ruas, removem lixo, cortam o cabelo das crianças, dão atendimento sanitário e apoios de infra-estrutura.

De fato, um dos problemas do cotidiano que apresenta a missão militar é a sua própria presença, fortemente armada. A essa imagem real e simbolicamente violen-ta soma-se que a grande maioria da tropa carece de possibilidades de se comuni-car com a população devido à barreira lingüística, pois a língua do povo haitiano é o Kreol e, mesmo com a alternativa do francês, existem poucos componentes das forças que falam o francês.

As mulheres congregadas na clínica de saúde de um dos bairros marginados que visitamos denunciaram, sem pausa, o assédio sexual do qual são vítimas permanen-temente, assim como, no melhor dos casos, dos gestos violentos, bruscos e gritos que constituem o código de comunicação com o qual as tropas se dirigem à popula-

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ção. Nessas testemunhas fi cou exposto o medo, a sensação de falta de defesas, vi-venciada por amplos setores. Isso traduzido em termos concretos de saúde, a própria clínica reportou um aumento notório em problemas de hipertensão e diabetes.

Durante a entrevista mantida com o comandante das forças militares da Minus-tah, o general brasileiro Heleno Ribeiro Pereira, assegurou que tem uma política de “tolerância zero” e que os soldados acusados de violações ou assédio a mulheres haitianas são sancionados e enviados de volta aos seus países para serem julga-dos. Porém, essa política é fortemente criticada pelas organizações de mulheres e defensores de direitos humanos pela impunidade que implica e o contínuo enfra-quecimento que signifi ca o direito das mulheres a um recurso institucional e jurídico no seu próprio país.

Dias antes da nossa chegada no Haiti, a Minustah tinha sido o alvo de severas críticas por parte da Secretaria de Estado estadunidense e de importantes meios de comunicação daquele país, que acusaram de “fraca” e “demagógica” e solicitaram uma maior repressão.

Por sua vez, outros setores no exterior, mais próximos ao governo Aristide, acu-saram explicitamente o Brasil de apoiar a Polícia Nacional na sua determinação de reprimir os membros do Partido Lavalas, em vez de proteger os civis e zelar pelos direitos humanos.4

O comandante da Minustah negou veementemente essas acusações, explican-do que as forças policiais haitianas não dependem da Minustah e em várias situa-ções, frente à necessidade de agir em “operações de segurança”, tem se encon-trado em posições críticas e opostas que impedem um desenvolvimento articulado durante tais operações.

Por sua vez, o comandante general Heleno Ribeiro Pereira insistiu em que a situa-ção do Haiti não se resolve com a simples presença de forças militares. Acentuou, por exemplo, que Estados Unidos, a União Européia e as agências fi nanceiras mul-tilaterais devem aportar os recursos fi nanceiros comprometidos para a reconstrução do Haiti, sem eles não será possível à pacifi cação. Ainda assinalou as limitações estruturais impostas ao funcionamento da Minustah apontando, entre outras difi cul-dades, que as suas tropas não podem desenvolver tarefas de inteligência no Haiti, que esse âmbito está aos cuidados dos EUA e da França.

A apresentação esmerada que fez o comandante general Heleno Ribeiro foi clara. A limpeza dos milhares de toneladas de lixo nas ruas da favela de Bel Air baseia-se também numa necessidade militar, a de permitir o patrulhamento dos veículos, que seria impossível entre as montanhas de lixo, carros queimados e todo tipo de desperdícios.

Apesar da cooperação da Polícia Nacional Haitiana para a realização conjun-ta de operativos de segurança, existem evidências claras de que grupos armados

4 Keeping the Peace in Haiti?, informe do Centro de Justiça Global (Brasil) e Estudantes peloa Direitos Humanos da Escola de Direitos da Universidade de Harvard, março 2005, http://global.org.br

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continuam controlando partes do território, enquanto a violência – que parece aumen-tar de forma notável em determinados momentos críticos – não pára. As tarefas de desarmamento e de segurança para o processo eleitoral, eixos centrais do mandato dado à Minustah, também parecem não estar resolvidas. (Ver Capitulo V).

Esta é a terceira missão que a ONU realiza no Haiti. Todas as anteriores falharam. Não quero cometer a mesma estupidez. General Heleno Ribeiro, Comandante das for-ças militares da Minustah.

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Como conseguimos ver em cada momento da nossa visita, o processo de ocupa-ção atual no Haiti é integral. É formado, além da fase diretamente militar, por um plano de submissão econômico e fi nanceiro que visa garantir a geração de uma abundante mão-de-obra barata e o controle sobre os bens naturais e grande parte da riqueza pro-duzida. Essa ocupação faz parte do projeto de empobrecimento planejado que, desde os tempos da escravidão, os centros de poder mundial e as suas contrapartidas locais têm tentado manter no Haiti. A instabilidade que tem caracterizado grande parte da história do país emerge evidentemente da persistência e força de luta com que os e as excluídas desse modelo têm resistido ao destino que outrem têm lhe assinado.

O quadro de cooperação interinaMenos de um mês após a derrocada do segundo governo de Aristide, o Banco

Mundial convocou nos EUA uma reunião informal dos governos e agências, chama-das de doadoras, com o fi m de pôr em andamento uma nova estratégia econômica para o Haiti.

Sobre a base das missões de estabilização econômica e ajuste estrutural que junto com o FMI tem-se aplicado no país há vários anos – com os resultados desas-trosos já conhecidos, não só no Haiti, mas na escala mundial – avançou-se decidi-damente com a ocupação e o controle da política econômica do país ao estabelecer uma Comissão de Especialistas, com o propósito de desenhar um plano para a re-construção do Haiti.

Trezentos técnicos, 200 deles estrangeiros, foram convocados para a tarefa, sob a coordenação das instituições fi nanceiras multilaterais. O Quadro de Cooperação

Capítulo 3

Ocupação econômica e fi nanceira

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Interina (QCI) resultante foi elaborado durante seis semanas por estes expertos, a maioria dos quais procedem de instituições como a Agência para o Desenvolvi-mento Internacional dos EUA (Usaid), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Não é surpreendente que o plano idealizado tenha uma orientação econômica neo liberal e que de maneira central se proponha acelerar a privatização da econo-mia, instalar novas zonas francas e desenvolver o turismo e o setor agroexportador.

O plano foi desenvolvido sem envolver importantes setores da sociedade haitiana. Segundo os vários comentários dos seus membros, nem consultado foi o Conselho dos Sábios, organismo estabelecido nesse momento para assessorar o governo in-terino na ausência do Parlamento.

Os representantes das instituições fi nanceiras multilaterais no Haiti não aceita-ram se reunir com a nossa Missão Internacional. Porém, um importante número de organizações sociais e populares do país partilharam conosco as denúncias que oportunamente vinham realizando frente ao processo de intervenção. Vejam as suas conclusões:

• O QCI carece por completo de uma visão nacionalista, apontam. Chama à pri-vatização e ao desenvolvimento só de áreas turísticas. A maioria dos “especialistas” são estrangeiros. “Não se pode planejar o desenvolvimento nacional sem incluir os camponeses”, lamentou Georges, uma liderança camponesa. Entre as organizações excluídas das deliberações fi guram a Associação Nacional de Agrônomos Haitianos, a Plataforma Haitiana para o Desenvolvimento Alternativo, a organização de agricul-tores Papaye e a feminista Tet Kole, enumerou Georges. A resposta de três páginas ao QCI descreve a situação como “colonialismo disfarçado”, desenvolvido sem “ne-nhuma preocupação pela transparência”, e que “se registra num contexto de cres-cente perda de soberania”.

• O QCI está defi nindo os rumos da política econômica do país para os próxi-mos 10 anos, condicionando as decisões de qualquer governo futuro. Por causa da rapidez e da pouca profundeza do processo mediante o qual foi elaborado esse plano, o mesmo deixa vácuos nos eixos mais importantes, como a agricul-tura, sobretudo para um país em que 68% da sua população vive no meio rural. Também não abrange as áreas da saúde ou as estratégias para superar as desi-gualdades sociais. Não inclui uma avaliação, nem recomendações sobre o rol e as necessidades especiais das mulheres e das crianças. A ênfase é colocada na infra-estrutura e na instalação de maquiladoras para a produção neo-escravista em zonas francas do país todo.

• Tal como os outros planos e programas promovidos pelas instituições fi nancei-ras multilaterais, como o Plano para os Países Pobres Altamente Endividados (HIPC/PPAE) e o Programa Estratégico para a Redução da Pobreza (PRSP), o QCI projeta um modelo de país baseado nos eixos fundamentais do já desgastado Consenso de Washington, que é agora assumido como um ponto de largada obrigatório de

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qualquer programa de cooperação. A garantia de que o governo do Haiti pagaria os interesses atrasados e que, daí para frente, pagaria regularmente o serviço da dívida externa cobradas pelas próprias instituições fi nanceiras multilaterais é repetida uma e outra vez no documento.

A promessa de recursos ofi ciais para a cooperação e a ajuda humanitária não se têm materializado ainda na maioria dos casos, e aqueles que estão entrando no país entram destinados prioritariamente para apoiar a ocupação militar, organizar as eleições, preparar as condições para uma maior privatização e desnacionalização da economia e para a transformação do país num conglomerado de zonas francas.

Ouvimos de distintos funcionários, tanto do governo interino do país quanto dos organismos internacionais e dos chamados doadores internacionais, uma diversi-dade de justifi cativas para essa demora, que incluíam desde a corrupção reinante, a falta de respeito aos direitos humanos e a governabilidade democrática, até a fraqueza dos próprios mecanismos do Estado para aplicar fundos, a necessidade de cumprir outras exigências internacionais como o desarmamento, um processo eleitoral, etc.

O responsável ativo da Missão de Estabilização da ONU (na ausência do di-retor e do seu adjunto no momento da nossa visita) e diretor do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento do Haiti nos confi rmou que a aplicação dos recursos necessários para os programas de apoio aos direitos econômicos e sociais da população dependia do cumprimento prioritário dos programas de apoio ao processo eleitoral.

Os recursos que deveriam ser destinados a atenuar a fome e a pobreza do povo haitiano, à educação, saúde e desenvolvimento subsidiam as grandes cor-porações e organismos internacionais. A perversão e exploração têm muitas ma-neiras de se manifestar.

O embargo econômico imposto pela comunidade internacional como conseqüência do golpe de estado de 1991 levou ao colapso da já precarizada economia do país. Ge-neralizou-se a desarticulação social e a devastação ambiental, processos que tiveram como contrapartida a continuada concentração, o saque dos recursos disponíveis e o notório empobrecimento da vasta maioria da população. Os ajustes estruturais e as medidas de liberalização comercial aplicadas pelo presidente Aristide, quando regres-sou ao governo em 1994, aprofundaram ainda mais o processo de declínio, aniquilando a produção da cana-de-açúcar, frutas e arroz, por exemplo, e convertendo o Haiti em importador nato de alimentos. O emprego estatal se reduziu pela metade na década seguinte, afetando diretamente milhares de família e invalidando qualquer perspectiva real de resposta institucional, não somente sobre saúde, educação, reforma agrária ou outros graves problemas de direitos humanos, mas também temas de segurança e administração da Justiça.

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A dívida externa O fato de que a chave para destravar o fl uxo de recursos que são urgentemente

necessários para responder à emergência humanitária e social parece residir não só na aceitação por parte do governo interino do projeto de país desenhado no QCI, mas também do pagamento regular dos serviços da dívida, é emblemático e perverso da parte dos atuais esquemas de cooperação internacional que cobram os serviços da dívida do Haiti.

Esses pagamentos estavam atrasando desde 2001, quando o Banco Mundial e outras instâncias da chamada cooperação internacional suspenderam o empréstimo de novos créditos por causa das acusações de fraude eleitoral. Isso impossibilitou a continuidade do serviço sobre a dívida acumulada.

Segundo fomos informados durante a nossa visita, no início de 2005, o governo interino do Haiti liberou 52,6 milhões de dólares ao Banco Mundial e do Banco Inte-ramericano de Desenvolvimento, como pagamento de interesses retroativos (U$40,6 milhões extraídos diretamente das poucas reservas do país e o resto aportado pelo governo do Canadá).

Quatro dias depois, o mesmo Banco Mundial anunciou que seriam dispensados 73 milhões de dólares ao país. Desta soma, 61 milhões de dólares seriam dedicados a medidas de apoio à chamada governabilidade econômica, orientadas a implemen-tar procedimentos de mercado desenhados para privatizar o que resta do setor públi-co (telecomunicação e energia) e acelerar a transferência de capitais às corporações transnacionais.

A dívida externa cobrada do Haiti é de 1,4 mil milhões de dólares. Os serviços da dívida se calculam em torno de 70 a 80 milhões de dólares anuais. Vários funcioná-rios da cooperação internacional no Haiti nos asseguraram que a dívida externa do Haiti não era um problema.5

Porém, o montante dos pagamentos reclamados ao Haiti tinha se duplicado entre 1996 e 2003; 22% do orçamento governamental para 2004/2005 em gastos públicos se destinaram ao pagamento dos serviços da dívida. Isso signifi ca, de fato, que o serviço da dívida se constitui atualmente na política prioritária do virtualmente falido governo interino.

Um alto funcionário do governo interino do Haiti também nos assegurou que antes de retornar ao seu país tinha sido um fi rme partidário das campanhas mundiais para a anulação de dívidas ilegítimas, odiosas e impagáveis como as que o Haiti ainda hoje continua pagando.

“Mas, se é o preço a ser pago para que chegue a ajuda internacional, então estou de acordo com que devemos pagar”, confessou esse mesmo funcionário antes de reconhecer que também não estava chegando a tão prometida ajuda.

5 A mesma conclusão tem chegado o FMI e o Banco Mundial, que sistematicamente vem excluindo o Haiti das listas de países que eles consideram eventualmente escolhidos para alguma redução da dívida, a não ser que seja no marco de um programa condicionado e controlado por eles mesmos.

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Assim como acontece a quase todos os países pagadores do Sul, a simples exis-tência da dívida – e o interesse dos governantes e outras elites locais por manterem o seu suposto acesso a novos créditos – continua sendo um poderoso mecanismo de extorsão e condicionamento perante qualquer política que tente ser soberana.

A dívida externa que a comunidade internacional continua a cobrar ao povo do Haiti é, sem dúvida, ilegítima. A França impôs um bloqueio econômico ao Haiti depois que a sua população escrava se emancipou; um bloqueio que só levantou dez anos depois, quando os líderes do primeiro Estado negro independente concordaram em pagar aos seus anteriores patrões coloniais e escravistas 150 milhões de franco-ouro em compen-sação; uma soma avaliada atualmente em quase 22 bilhões de dólares.

Uma vez saldada a dívida pela “independência”, ferindo de morte a sua economia e determinando assim a sua integração à economia mundial como um provedor marginal e periférico de recursos e mão-de-obra barata ao centro, a nova dívida foi acumulada majoritariamente durante o reinado do terror dos Duvalier, pai e fi lho. Eles, escudados pelas bênçãos da guerra fria, nunca foram questionados quando incorriam em dívidas claramente odiosas, utilizadas sistematicamente para oprimir e reprimir o povo do Haiti.

Sob as atuais circunstâncias de morte e destruição, atribuíveis em grande medida à herança histórica da dívida pela independência e à sua mais recente contrapartida de estabilização e ajustes estruturais, não há justifi cativa possível para que a comunidade internacional continue cobrando sua “libra de carne”.

As zonas francasA estratégia de ocupação econômica, concentração e a estrangeirização dos be-

nefícios produzidos não poderia ser mais clara em relação ao projeto pontuado no QCI e iniciado vários anos: transformar o país numa gigantesca área de maquilado-ras aglutinadas em zonas francas, que exploram os seus trabalhadores numa nova forma de escravidão, usurpando, além disso, os bens naturais e a infra-estrutura econômica instalada (rodovias, eletricidade, comunicações, etc) e deixando para o país e ao povo imensas dívidas fi nanceira, social e ecológica.

O acordo assinado em Monterrey, em 2002, pelo então presidente Aristide per-mitiu o estabelecimento de zonas francas no Haiti. Ou seja, espaços designados do território nacional considerados como fora do controle do governo nacional e, sobre-tudo, isentos de qualquer pagamento de impostos.

A única lei vigente é a lei trabalhista, mas, segundo nos informaram os próprios trabalhadores dessa maquila, a única parte que se aplica é a norma do salário mí-nimo – menos de 2 dólares diários. Com a taxa de valor agregado que esse tipo de operação gera, e a um dia de barco do porto de Miami, o objetivo desse tipo de investimentos se torna mais evidente.

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No Norte do Haiti, a fronteira com a República Dominicana é um rio que vai para o Norte e desemboca no mar. É aí, no ponto fronteiriço de Ouanaminthe, uma das zonas mais férteis do país, onde capitais dominicanos instalaram a primeira zona franca. Deslocaram o rio na margem haitiana e a construíram nessa nova terra, fi -cando protegido pelo rio de um lado e por uma grande vala de cimento construída no território haitiano, que impede o acesso por esse outro lado, mais que pode ter acesso pelo território dominicano.

A zona franca é administrada pela Companhia de Desenvolvimento Industrial – Codevi –, uma fi lial da empresa dominicana Grupo M. Esse mesmo grupo recebeu do Banco Mundial 23 milhões de dólares para a sua construção. A instituição considera os investimentos nessa área como fundamentais para o desenvolvimento do Haiti e promete outros 42 milhões de dólares, para “ajudar” o Grupo M no seu processo de ocupação da região de fronteira com a República Dominicana.

O território está controlado por homens haitianos armados, sob o comando de um chefe dominicano. O exército dominicano tem sido utilizado para reprimir trabalhado-res dessa zona franca, quando os mesmos se levantam para reivindicar condições digna de trabalho e os seus direitos trabalhistas em geral.

A presença mais próxima da Polícia Nacional Haitiana que conseguimos cons-tatar foi um carro estacionado no meio da rua, com a inscrição “polícia” na porta, a aproximadamente 300 metros da ponte que deve ser atravessada para ingressar na zona franca.

Pensamos que o controle dessa zona estivesse sendo realizado por funcio-nários privados. Apesar de ter coordenado e confi rmado a nossa visita com an-tecipação e por via escrita, o chefe da segurança dominicana não permitiu que entrássemos.

O Quadro de Cooperação Interina prevê a construção de 14 zonas francas na fronteira Haiti - República Dominicana, e outras três na capital Porto Príncipe. A ima-gem da zona franca instalada nos fez lembrar de uma fortaleza. Fizemos um esforço para imaginar uma linha de 14 “fortalezas” sob estrito controle privado ao longo des-sa fronteira, que nos pareceu assustador.

Claramente a fronteira fi caria bloqueada, se solucionando dessa forma o pro-blema do fl uxo migratório na procura de fontes de trabalho na República Domi-nicana. Facilidade em conseguir mão-de-obra barata, vantagem comparativa em termos de mercado, e depois de coberta a disponibilidade de fontes trabalhistas, manipula-se o salário, as condições trabalhistas e, em conseqüência as condi-ções de vida das pessoas.

Nas entrevistas mantidas com as trabalhadoras das maquiladoras que funcio-nam dentro da zona franca, elas manifestaram que é muito difícil conseguir que lhes paguem salário mínimo. Muitas não conseguem. Além disso, a violência e a ameaça constante parece ser uma estratégia útil para os donos das maquiladoras. As trabalhadoras, atemorizadas, não se atrevem nem a pensar em como se orga-

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nizar para resistir às múltiplas formas de violência as que são submetidas, ou para reivindicar os seus direitos.

Recolhemos também testemunhos de um grupo de trabalhadoras que, depois de organizar um sindicato e lutar pelos seus direitos, foram demitidas e postas numa “lis-ta negra”, fi cando dessa forma condenadas ao desemprego permanente, ainda tendo a responsabilidade iniludível de alimentar os seus fi lhos e manter as suas famílias. Essas testemunhas nos fi zeram lembrar imediatamente do caso de Cidade Juarez, na fronteira entre México e EUA.

Os mais altos funcionários do governo interino nos manifestaram que o futuro do Haiti está na criação de empregos através do desenvolvimento de zonas francas. Eles também foram enfáticos em assegurar que, nas maquiladoras do Haiti, se res-peita os direitos fundamentais, porém, perante a nossa interpelação, não consegui-ram negar as condições altamente defi citárias às quais trabalhadoras e trabalhado-res estão submetidos hoje.

A ocupação estadunidense do Haiti, no início do século XX, tirou os milhares de camponeses haitianos de suas terras, mas sem trabalho industrial nas cidades para “ocupá-los”, tiveram que fugir para outros países para sobreviver, dando lugar à pre-matura migração forçada de uma grande quantidade de famílias camponesas para a vizinha Cuba ou para o outro lado da fronteira com a República Dominicana, onde fo-ram capturados como escravos. Na década de 1990, existia ainda a escravidão encar-nada nos bateyes da indústria açucareira dominicana. Atualmente, essa indústria está morrendo e as centenas de milhares de haitianos radicados na República Dominicana (calculam-se 500.000) trabalham na construção, no turismo, no artesanato, mas ainda sem gozar do direito a uma nacionalidade, à cidadania. São todos haitianos na sua origem ou descendentes deles, muitos são dominicanos também, pois nasceram neste país, mas sem direito ao voto em ambos os países.

Acordos de livre comércioSegundo as informações proporcionadas por diversas organizações sociais e popula-

res do país, o Quadro de Colonialismo Intensifi cado que vive hoje o Haiti – o verdadeiro QCI – será também aprofundado na medida em que não se consiga frear o avanço das negociações para estabelecer uma área de livre comércio do Caribe com EUA, como atual-mente se pretende no marco do projeto estadunidense da Alca, as negociações entre a União Européia e o Caricom, ou as negociações da Organização Mundial do Comércio.

A liberalização comercial imposta até agora ao Haiti já teve um impacto devas-tador sobre o setor agrícola, sobretudo fazendo com que o país passasse de uma situação de autoabastecimento alimentar a uma situação de dependência quase total no transcurso dos últimos anos.

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Reforma agráriaA reivindicação mais importante e reiterada das organizações camponesas que

visitamos é a realização urgente de uma reforma agrária integral. Uma reforma que dê prioridade à economia camponesa e facilite o acesso aos recursos para recuperar a sustentabilidade e a soberania alimentar local e nacional. Isso implica em uma mu-dança radical na ocupação do território.

A soberania alimentar se sustenta em duas partes: a primeira é a capacidade de controle e decisão soberana de toda a rede alimentar, desde as sementes e a produ-ção, até o consumo. A segunda é a necessidade de zelar pelo auto-abastecimento local, regional e nacional.

É importante apontar que o relativo isolamento do Haiti no mercado mundial per-mitiu ao campesinato desenvolver estratégias de produção com técnicas biológicas e respeitosas à natureza. É importante manter essas formas de produção para oferecer produtos biológicos que não sejam simplesmente estratégias produtivas, mas que estejam ligadas às necessidades básicas do povo.

Até os anos 1970, o Haiti era um país auto-sufi ciente na produção de cereais, nos relataram os grupos de camponeses com quem estivemos, e é possível recuperar essa situação fazendo uma melhor distribuição dos salários e um melhor planejamen-to agrícola. Há mais de 80 mil hectares de solo nas planícies e vales que não estão sendo utilizados de maneira efi ciente. Atualmente, há um desequilíbrio na ocupação do território, pouca população nas planícies e excesso de população nos morros.

Melhorar a produtividade agrícola na base de técnicas de agricultura biológica é a chave para produzir para o mercado interno e também para provocar ligações com os processos de industrialização para o mercado interno. Há experimentos muito in-teressantes com leite, queijo, iogurte, que mostram a possibilidade de obter um valor agregado maior com o encadeamento desde a produção agrícola até a produção industrial para o mercado interno.

Os camponeses de Ouanaminthe, alguns deles operários industriais na zona fran-ca, aspiram que o Estado os apóie para revitalizar a produção de arroz e milho nas terras livres e que lhes proporcione irrigação, pois existem sete rios na zona. Aspiram voltar para a agricultura, não só para abastecer a região, mas também país.

Essa é uma urgência na zona e o seu atraso implica na construção de mais zonas francas, que incentivam a concentração da população em Ouanaminthe, onde o nú-mero de habitantes triplicou em um ano, sem contar com as condições precárias, e criando graves confl itos na população.

Os camponeses de Artibonite propõem um país onde o povo tenha justiça social, soberania e onde sejam produzidos alimentos de acordo com a sua cultura. Se dese-jamos, segundo os camponeses, verdadeiramente lutar para eliminar a miséria, lutar para ter um meio ambiente saudável, então temos que trabalhar para que melhorem a situação de mais de 65% do povo que mora no meio rural e vive da agricultura.

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No Haiti, a grave situação de exploração e destruição ambiental tem chegado a níveis realmente alarmantes que devem ser entendidos. Ocorre um verdadeiro “econocídio”,6 cujas conseqüências têm impacto direto na vida, e na cultura do povo haitiano, sendo na sua maioria camponesa, devendo-se qualifi car, também de “etnocídio” e “genocídio”.

Essa realidade faz parte de uma dívida ecológica que os poderes centrais conti-nuam acumulando com esse país e com o seu povo, cujo reconhecimento, restaura-ção e reparação constituem passos necessários para um futuro de justiça e susten-tabilidade. Quando se fala da problemática ambiental, geralmente se faz referência à destruição do ecossistema, ao desmatamento, à contaminação da água ou à erosão, mas sem analisar as causas estruturais e políticas de tal deterioração.

O principal problema ambiental no Haiti, como em outros países da região, é a aplicação de um modelo econômico no qual se evidência a exploração dos recursos naturais, além do emprego de mão-de-obra barata, por parte das empresas transna-cionais dos EUA e da Europa, unidos aos seus aliados nacionais, sem se importar com os impactos que essas atividades geram. Segundo manifestações do Ministro do Meio Ambiente, o problema ambiental é causado também pela corrupção permeada na administração pública.

Sendo essas as principais causas da deterioração ambiental, acusa-se, porém, geral-mente os camponeses, os chamados “pobres”, e identifi ca-se o aumento da população como as principais causas, usando por sua vez esses argumentos para promover projetos de “desenvolvimento” como maquiladores, para “resolver” o problema do desemprego.

6 Destruição ambiental, e do ecossistema.

Capítulo 4

Ocupação ambiental e dívida ecológica

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Uma e outra vez durante a estada da nossa missão no Haiti, fomos alertados da importância de conhecer os processos históricos de saque, destruição, conta-minação e controle dos recursos naturais feitos pelos colonizadores, os interesses estrangeiros e os grupos de poder nacionais, para poder entender a deterioração social e ambiental atual.

Na seqüência, fazemos uma leitura de alguns dos múltiplos problemas que de-terminam a gravidade e complexidade da realidade ambiental haitiana, segundo as diferentes visões recolhidas.

O desmatamentoDa informação recolhida pudemos saber que o Haiti, hoje, só dispõe de menos

do 2% de cobertura fl orestal. Devido ao desmatamento perdeu-se a maior parte da biodiversidade silvestre. Reduziu-se o nível de água – dos 11 mananciais existentes só 2 têm água. Os solos foram fortemente atingidos pela erosão, diminuindo ainda mais o nível de fertilidade do terreno com as chuvas.

O desmatamento também acentua a vulnerabilidade da ilha frente às catástrofes naturais como os furacões e os alagamentos, que são comuns na região do Caribe e que aumentam como conseqüência dos impactos da mudança climática.

Durante a nossa visita, conseguimos confi rmar o fato de que a população campo-nesa está sendo deslocada para os morros, lugar onde devem se adaptar para viver e produzir, fi cando os vales férteis em mãos de transnacionais e grandes fazendeiros que se benefi ciam com a sua exploração.

O progressivo agravamento da economia camponesa, assim como a falta de apoio das políticas estatais para essa população que representa aproximadamente 65% do total, obriga esse setor a procurar formas de sobrevivência no corte de árvores e o posterior uso da madeira para a venda de carvão. Cortam-se 26 milhões de árvores por ano atualmente, como resposta à terrível crise energética.

No ano 2000, o Haiti produziu aproximadamente 6,5 milhões de m³ de madei-ra. O processo de múltiplos fatores, como a acelerada destruição da economia camponesa, o empobrecimento forçado da população em geral, a matança de porcos no início dos anos de 1980, a abertura comercial que socavou a produção arrozeira e de frutas, as políticas de estabilização e ajuste para pagar a dívida, o embargo decretado no início dos anos de 1990 depois do golpe de Estado contra Aristide, e o aumento dos preços dos combustíveis, entre outros fatores contribuí-ram para a decadência do Estado haitiano. Sem dúvidas, essa crítica situação implica na necessidade de exaustivos planos de recuperação que consumirão décadas.

A energiaA crise energética é de tal magnitude que obriga à racionalização desse serviço

através de cortes de energia diariamente.

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O consumo de 70% da energia do país tem como fonte o carvão vegetal. A impor-tação de petróleo e derivados cobre apenas 20% do consumo, sendo que os outros 43% são proveniente das exportações.

Durante a entrevista mantida com o ministro do Meio Ambiente, fomos informados dessa situação, o ministério propõe diminuir a pressão sobre os recursos naturais da lenha através do desenvolvimento de energias limpas, entre outras energias, como a produção de biogás a partir do processamento do lixo.

Mas por outro lado, propõe obter acordos com EUA e França para importar carvão vegetal, resíduo da manutenção de parques fl orestais e da industria do papel.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) durante 30 anos investiu 300 milhões de dólares para a eletrifi cação de Haiti na base de petróleo e os seus deriva-dos, com os conseqüentes impactos sociais, econômicos – incluindo o aumento da dívida externa – e ambientais que os projetos geram.

Esse investimento serve principalmente para prover eletricidade ao parque industrial e as maquiladoras. Privilegia-se assim o setor privado, estratégia que projeta continuar aprofundando segundo as linhas básicas do Quadro de Coope-ração Interina.

Não se investiu no desenvolvimento de tecnologias limpas, descentralizadas e adequadas, segundo propostas de organizações sociais haitianas que procuram uti-lizar o grande potencial energético com o qual o país conta, a partir da utilização de fontes como a energia solar, eólica e outras.

Haiti – ou Saint Dominique como se denominava – era a colônia mais rica em termos produtivos de todas as colônias francesas no momento da sua independência em 1804. Naquele momento, os colonos franceses já tinham desmatado 50% dos bosques e dos vales para utilizar os terrenos em plantações de cana-de-açúcar des-tinada à exportação. Durante essa época exportaram também madeiras fi nas como a caoba. Utilizou-se a madeira para construir os trilhos dos trens que transportavam a cana-de-açúcar das colônias.

Durante o século XIX, o Haiti exportou madeira para pagar a dívida da independên-cia, apesar de ter sido o primeiro país em estabelecer uma reserva fl orestal formal.

Com a ocupação feita pelos EUA de 1915 a 1934, ingressaram companhias daquele país, obtendo grandes extensões de territórios em planícies e vales que foram destina-dos as plantações. Uma delas desmatou 32.000 hectares de bosques no Nordeste para estabelecer plantações de sisal com o fi m de produzir fi bras para a exportação. Quando o sisal foi substituído mundialmente pelo nylon, aquelas plantações foram abandonadas deixando a região praticamente deserta. Duvalier acelerou o processo de desmatamen-to, arrasando os bosques sob o argumento de que os guerrilheiros se escondiam neles. Também, durante a sua ditadura, benefi ciou claramente as transnacionais, outorgando-lhes grandes vantagens para explorar madeira.

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Os agrotóxicosOutra atividade que gera graves impactos social, econômico, cultural e ambiental

são as plantações destinadas à agroexportação que utilizam o pacote tecnológico da “Revolução Verde”. Isso implica entre outros aspetos a aplicação de uma grande quantidade de agrotóxicos que contaminam as fontes de água, o ar e o solo, ge-rando erosão e afetando a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras camponeses. A maioria daquelas plantações pertence a grandes empresas transnacionais e aos seus sócios nacionais, responsáveis ainda pela marginalização crescente do peque-no campesinato no acesso a terra.

A acumulação do lixoO lixo é um problema sério que afeta diretamente o meio ambiente e por conse-

qüência a saúde da população fundamentalmente urbana. Essa situação é espe-cialmente crítica em Cap-Haitien, assim como em muitas favelas da capital, Porto Príncipe, especialmente a Bel-Air ou Cite Soleil, onde a população vive rodeada de toneladas de lixo. O ministro de Meio Ambiente atribuiu o problema à confusão insti-tucional imperante. A coleta de lixo é responsabilidade dos municípios, segundo ele apontou. Porém, por causa da crise institucional na qual tem sido submergido o país, essas responsabilidades não se cumprem.

Novos projetos ambientaisA política ambiental não é, e nem tem sido uma prioridade governamental. O Mi-

nistério de Meio Ambiente foi criado em 1995, quando o presidente Aristide retornou do exílio, sob iniciativas respaldadas por Al Gore, que era o vice-presidente dos EUA. O Ministério tem sido utilizado, sobretudo, como um instrumento para obter fundos do exterior, principalmente em casos de desastres naturais.

Em 2004, o governo interino assinou um acordo com uma empresa estaduni-dense, através do qual o Haiti concede a possibilidade de investigação dos recur-sos naturais existentes nas águas marítimas do país. Também verifi camos com muita preocupação que, através da assessoria de organizações ambientalistas transnacionais como The Nature Conservancy e com o fi nanciamento de créditos do BID,7 pretende-se criar uma legislação ambiental funcional aos interesses das empresas transnacionais e aos novos negócios que partem da aplicação do Pro-tocolo de Kyoto.

O Protocolo de Kyoto propõe como forma de solucionar os impactos da mudança climática, os mecanismos de desenvolvimento limpos (MDL) e o mercado de “ser-viços ambientais”. O MDL é basicamente a promoção de plantações fl orestais in-

7 O Ministério de Meio Ambiente receberá um crédito de 5 milhões de dólares através do Banco Intera-mericano de Desenvolvimento – incrementando dessa forma a dívida do país – orientado a fortalecer a administração do meio ambiente, adequar a legislação e melhorar a capacidade de gestão ambiental por parte dos municípios e micro-empresas.

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dustriais, principalmente de eucalipto ou ‘teca’, para captação de carbono e para a indústria do papel, atividade que deteriora ainda mais a natureza e a qualidade de vida dos haitianos.8

De outro lado, o mercado de “serviços ambientais” inclui a mercantilização da biodiversidade e da água através da privatização de áreas protegidas. Esses meca-nismos supõem uma outra estratégia de despojamento das terras e apropriação do patrimônio natural dos povos.

Cabe apontar que a biodiversidade é a matéria-prima das novas empresas trans-nacionais biotecnológicas para uso farmacêutico; nisso se baseia o interesse em in-vestir em pesquisas sobre biodiversidade marinha e silvestre, e assessorar política e administrativamente as mesmas. A natureza continua sendo vista como um negócio lucrativo, e não como a vida do planeta e o sustento dos povos.

Dívida ecológica, social e histórica

O povo haitiano é credor de uma imensa dívida histórica, social e ecológica cujo reconhecimento e restauração são a chave de qualquer possível processo de desen-volvimento soberano e da vigência plena dos direitos humanos na sua integralidade.

Europa, EUA, e Canadá nunca reconheceram essa dívida. O saque das riquezas, a exploração do trabalho escravo, indígena e negro, o genocídio de povos inteiros, a destruição das culturas e da natureza nas colônias da Ásia, África, América Latina e do Caribe têm sido a indigna base da riqueza que hoje aqueles países ostentam. Essa dívida tem permanecido na impunidade e, por causa disso, o seu impacto con-tinua sendo desastroso sobre o desenvolvimento de povos como o haitiano, vitima dos crimes cometidos.

As potências nascidas da exploração das colônias se acostumaram a viver delas. O processo de saque, exploração e destruição de países do Sul, como o Haiti, não acabou, ao contrário, tem se acelerado com as novas tecnologias, mercados e negó-cios da chamada “economia global’.

Os impactos dessa economia constituem a dívida social e ecológica acumulada, que os países do Norte têm com os países do Sul. É preciso reconhecer que em todo o processo de saque os exploradores contaram sempre com o apoio e aliança das elites nacionais, as mesmas que também são devedores históricos, sociais e ecoló-gicos dos seus povos.

8 Um caso paradigmático desse mecanismo é o projeto Face-Profafor, que opera no Equador desde 1993. As empresas elétricas holandesas iniciaram um projeto de absorção de carbono através de plantações fl o-restais de pinho e eucalipto em zonas onde os camponeses dedicam-se à agricultura e pecuária. Assinam contratos através dos quais hipotecam as terras por 90 anos e os camponeses se comprometem a plantar as árvores e cuidá-las. Se eles não cumprem os contratos, incluso por razões imprevistas como incêndios, a hipoteca se concreta. O projeto lhes proíbe dar outros usos ao solo, diferentes das plantações fl orestais, nem aproveitá-los para provisão de lenha ou com fi ns medicinais. Têm-se semeado 22.000 hectares dos 75.000 que projetam. As plantações têm causado graves danos aos ecossistemas, às áreas desertas, e às fontes de água. Os camponeses em vez de serem favorecidos, têm perdido o uso da terra que é a base da sua economia, a fertilidade dos solos e o cuidado com água.

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Através de uma análise de parte dessas dívidas acumuladas com o Haiti, pode-mos perceber que a pobreza econômica e a destruição ambiental que predomina no país se devem principalmente a processos de saque através dos séculos de história e que continuam na atualidade.9

Esse total parcial das dívidas da Espanha, França e EUA, não é mais que uma das partes da imensurável dívida histórica, social e ecológica acumulada. Não refl ete, por exemplo, os impactos causados ao povo haitiano por bloquear os seus processos de independência, autodeterminação e recuperação da soberania, nem as feridas causadas e expressas na justa rejeição à ocupação e ingerência estrangeira.

9 Ver no anexo 5 um desenvolvimento indicativo da dívida ecológica e histórica com o povo do Haiti.

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A segurança e a administração da Justiça são duas questões que identifi ca-mos como elementos chave para elaborar uma análise sobre a situação política, econômica e social do Haiti atualmente. Esses dois aspectos não escapam da crise geral, e podemos ver com eles alguns elementos que merecem um olhar com mais profundidade.

No ano de 1994, o então presidente Aristide decidiu desarticular e dissolver o exército haitiano, por meio de um decreto presidencial que já era fortemente questio-nado pela sua forma e conteúdo. Alguns dos homens que pertenciam a esse corpo foram absorvidos pela Polícia Nacional enquanto outros fi caram “desempregados” e não foram realocados dentro do aparato do Estado.

O descontentamento e rechaço a essa medida se projeta na atualidade, podendo se verifi car na presença de grupos armados compostos por ex-funcionários militares que se enfrentam em distúrbios de índole variada a outros grupos compostos por “ex-tonton-macutes” – grupos paramilitares duvalieristas, narcotrafi cantes e/ou delin-qüentes comuns, e outros integradas por partidários do Fanmi Lavalas.

O descontentamento social produzido pelo aprofundamento da crise histórica de caráter estrutural é tomado como “terreno fértil” por parte daqueles que têm interesse em causar confl itos internos que enfrentam os diversos setores utilizando a violência armada – nesses casos particulares – para aumentar os processos de fragmentação e desarticulação de uma grande parte da sociedade.

Dessa perspectiva, a “insegurança” é provocada intencionalmente por aqueles que têm como interesse manter o povo numa situação de incapacidade para se arti-cular, se organizar e construir perspectivas de diálogo e acordo que instrumentalizem

Capítulo 5

Segurança e administração da justiça

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as diversas propostas e colocando-as em andamento dentro de um processo de reconstrução institucional, social e econômica do Haiti.

O problema é complexo, e soma-se a isso o corpo da Polícia Nacional, órgão en-carregado de defender e promover a segurança da população, que é composta por umas quatro mil pessoas pouco formadas, com equipamento altamente defi citário e proveniente, uma grande parte deles, do exército dissolvido.

Atuação dos grupos armadosSegundo estimativa da ONU, no país todos esses grupos possuem 26 mil armas.

• Chiméres: Grupo armado de simpatizantes do partido Lavalas e do presidente Jean Bertrand Aristide. Realizam ações armadas com o objetivo de desestabilizar as eleições. A maioria dos quase 4.000 membros do grupo são paramilitares.

Área de atuação: Porto Príncipe, onde controlam áreas como Bel Air, Village de Dieu e Cité Solei.

• Ex-militares: Membros das Forças Armadas do Haiti dissolvidas por Aristide em 1994. Alguns setores se uniram a forças de grupos opositores a Aristide. Ação marca-da pela ocupação de prédios públicos. São aproximadamente 2.000 homens. Um dos seus principais líderes, Ravix Remissanite, foi morto numa operação no dia 9 de abril de 2004.

Área de atuação: Porto Príncipe, Petit Goave, Terre Rouge, Cap Haitien, Hinche e outras.

• Frente de Resistência: Movimento que atuou na derrocada do governo La-valas e se constituiu como partido político depois da saída de Aristide. Sua fração armada promove o clima de terror, realizando ataques contra a população civil e membros de organismos nacionais e internacionais. Aliou-se aos ex-militares, ao Frap (Frente Revolucionária Armada pelo Progresso do Haiti) e aos grupos de tra-fi cantes. Seu principal líder político Guy Phillipe, é apontado como candidato para as futuras eleições.

Área de atuação: Gonaives.• Frente Revolucionária Armada pelo Progresso do Haiti (Frap): Grupo parami-

litar remanescente do período da ditadura (1991-1994). Realiza ações conjuntas com ex-militares e a Frente de Resistência contra simpatizantes do Lavalas.

Área de atuação: Cap-Haitien, Gonaives.• Grupos Armados: Ativos em bairros populares da capital, matam, violentam e se-

qüestram apopulação civil. Saqueiam propriedades privadas e públicas. Há interesses vinculados ao narcotráfi co e outros setores do crime organizados.

Área de atuação: bairros populares de Porto Príncipe.

Fonte: Coalizão Nacional pelos Direitos Haitianos (Nchr), Minustah e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

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O chefe nacional da polícia, Leon Charles, é um ex-militar formado na Colômbia que foi integrado à Marinha haitiana. Hoje tem no seu comando uma força diversa cujo objetivo é controlar e reprimir a população em contextos de violência ou distúrbios.

Um alto funcionário do governo interino haitiano nos contou de um diagnóstico de especialistas internacionais em matéria de segurança que estabelece a neces-sidade de uma força policial integrada por aproximadamente 40 mil pessoas para aperfeiçoar a segurança da população, além da formação profi ssional desse corpo em temáticas relativas aos direitos humanos, relacionamento com a sociedade civil e prevenção de delito.

Cerca de 200 efetivos que pertencem à força tática ou de ação imediata são os que atuam nos procedimentos de controle e repressão dos protestos sociais, inter-vindo em cada manifestação acompanhados pelas forças da Minustah, segundo têm expressado o comandante militar da Minustah, o general Heleno Pereira, e o chefe nacional de polícia.

Heleno Pereira comentou, na entrevista que tivemos com o mesmo, que faz parte dos objetivos da Minustah a formação das forças de segurança local, mas que, no início, a missão não participava dos operativos locais. Depois foi convocada para acompanhar a polícia nesses procedimentos por causa da desordem e a incapacida-de de desempenho da própria polícia.

Por outro lado, explicitou que a polícia e a Justiça eram partes da obstrução dos setores críticos. Também defi niu que a violência crônica através da história – o “ma-coutismo” e o “marronage” – e o fracasso das missões de paz anteriores fazem parte do cenário atual do país. Apontou, ainda, que o programa de desarmamento, des-mobilização e reinserção (DDR) é a tarefa mais difícil da Minustah; atua na órbita de uma comissão específi ca com uma tarefa que depende fortemente da situação econômica e que precisa de um planejamento minucioso e que garanta a capacidade de desarticulação e reinserção dos grupos armados, e seja efi caz quando se limita ao uso exclusivo da força.

O desenvolvimento das tarefas e das ações conjuntas com os componentes poli-ciais da Minustah (a Civpol) e a Polícia Nacional Haitiana consiste na detenção dos líderes de gangues, no desarmamento e o trabalho direto com a população.

O debate sobre o problema dos ex-militares e o status dessas forças – ilegais ou legais – estão muito presentes. As mesmas foram dissolvidas por decreto presidencial e se argumenta que esse mecanismo não faz parte do seu mandado constitucional.

A solução para esse confl ito ainda não aparece. Os ex-militares não foram rein-seridos na sociedade; existem diversos grupos distribuídos pelo território do país, constituindo-se em alguns lugares como “forças de segurança”.

Na apresentação feita pelo comandante militar da Minustah,10 o mesmo afi rmou que os abusos da Polícia Nacional Haitiana contribuem para aprofundar a problemá-

10 Ver diapositivos de Número 7, 13 e 17 da apresentação elaborada pelo comandante militar da Minustah para a Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti.

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tica de segurança. Por outro lado, o general Heleno Pereira disse que os ex-militares se “sentem responsáveis”, pois contribuíram para a queda de Aristide e, por isso eles demandam ao Estado serem recompensados, pois têm fortes vinculações com os setores do governo interino.

A posição da Minustah não é aceitar a ajuda daqueles grupos em tarefas de se-gurança pública nem que usem instalações da PNH, nem mesmo armas. Porém, aceitam o uso da força “se for necessário” e promovem a desmobilização voluntária. Há mais de um ano da presença da Minustah no Haiti, é evidente que esse objetivo não tem conseguido se concretizar em grande parte.

“Pressionar para que as tropas façam o trabalho que necessita o povo haitiano é a melhor maneira de tirar as tropas do país”

Porta-voz do Conselho dos Sábios

A política do desarmamentoA reunião do Conselho de Segurança da ONU, realizada em abril de 2004 e que

deu origem formal à Missão de Estabilização no Haiti, solicitou das autoridades pro-visórias um programa integral de desarmamento dos diversos setores armados do país; o mesmo se constituiu como um dos objetivos centrais da Minustah. Foi deman-dada, também, a reintegração social e trabalhista dos ex-militares como um elemento indispensável na construção da estabilidade e da paz no Haiti.

É claro que a reintegração dos ex-militares do exército dissolvido por Aristide con-tinua sendo um problema. Desempregados, desvinculados muitos deles das esferas políticas, se colocam em espaços rudimentares, onde lideram práticas concretas de ocupações militares e revoltas, reivindicando a sua indenização pelos “serviços pres-tados”, entre outras coisas.

Essa situação de “insegurança” materializada pelos grupos paramilitares, muitas delas compostas por inimigos do Fanmi Lavalas e claramente de Aristide, foi a descul-pa perfeita para a introdução de tropas militares estrangeiras no país, estratégia que não é nova, mas, ao contrário, reiterada e sistemática devido à realidade haitiana.

Um jovem estudante da Escola Secundarista Toussaint L’Ouverture ironicamente expressava que, se a presença militar trouxesse a solução para o Haiti, o país teria solucionado os seus confl itos já em 1915, o ano em que se produziu a primeira ocu-pação dos EUA.

Perante a complexidade dos fatos e a multiplicidade de grupos, na sua maioria armados pelos EUA, os planos de troca de armas por comida ou dinheiro parecem uma piada cruel. Como desarticular as bandas de Chiméres, ex-tonton, macoutes, narcotrafi cantes, delinqüentes comuns etc. Quando na verdade essa é uma outra

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cortina de fumaça para justifi car a presença militar armada no Haiti sob a palavra de ordem da pacifi cação e da resolução da forte crise de segurança, desvirtuando assim toda perspectiva crítica e construtiva que comece a articular a sociedade civil?

Administração da justiçaO desempenho da Polícia Nacional e da Administração da Justiça é evidente-

mente defi citário. Uma mostra é a grave situação do sistema penitenciário. Através de dados recolhidos nas entrevistas na secretaria do Pnud no Haiti e particularmente com o responsável para o programa prisional e as autoridades penitenciarias entre-vistadas durante a visita à penitenciaria central, constatamos a existência de 3.000 prisioneiros, dos quais 90% ainda não foram julgados (sem sentença). Até a derro-cada de Aristide, existia no presídio um comitê de presos. Desde o 1º de março de 2004, o comitê não está mais ativo, conseqüentemente, os prisioneiros não têm um mecanismo legítimo.

A essa situação se somam a gravíssima carência de infra-estrutura dos centros de reclusão e as condições de vida infra-humanas nas quais vivem presos. Dietas bai-xas em nutrientes, hipocalóricas que levam a uma desnutrição progressiva seguida de morte, sério défi cit no atendimento de saúde, HIV, amontoamento etc. Na visita ao Hospital da Universidade de Porto Príncipe, conseguimos ver enfermos acorrentados à cama pela polícia haitiana; a justifi cativa são ex-militares presos.

Em fevereiro de 2003, houve uma fuga massiva de 400 presos, fato que refl ete a inoperância, a corrupção e a impunidade de um sistema que não funciona há muito tempo.

Recentemente, através do Pnud, incorporou-se um programa informático para começar a regularizar o processamento dos dados das pessoas presas, assim como a construção dos seus registros pessoais e expedientes. Entrevistamos, durante a visita ao presídio central, um dos advogados da secretaria que tinha sob a sua res-ponsabilidade o acompanhamento de mais de quatrocentos processos, como os de-mais advogados. É absolutamente óbvio qual é a capacidade de atenção que cada responsável pode dispensar a semelhante número de expedientes assinados.

A impunidade, tão presente na vida do Estado haitiano, é inimiga do estado de direito e se utiliza da lei como uma forma de violência estatal dirigida contra determi-nadas “categorias” de cidadãos e cidadãs, garantindo a sua submissão a uma ordem social injusta. A lei deixa de ser uma ferramenta de igualdade.

Pode-se comprovar de forma relativamente fácil que continua existindo pouca vontade política contra a impunidade no Haiti. A corrupção dos governos que se su-cederam no poder, que controlaram e reprimiram cada um do seu jeito, sem conse-qüências posteriores, permanecem.

Segundo nos informaram várias pessoas que conhecem o terreno, cada grupo da elite haitiana teve sua época de controle, corrupção e repressão. Também não é casual que, durante o último período de ocupação militar por parte dos EUA, quanto

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Aristide foi escoltado no seu retorno ao país em 1994, fosse subtraída uma impor-tante parte dos arquivos nacionais do Haiti, rejeitando até hoje retorná-los, pois eles contêm informação pertinente à atuação dos agentes e aliados daquele país nos episódios mais nefastos da história recente haitiana.

O atual governo interino, além de afi rmar que nunca antes na vida do país tinham-se respeitado tanto os direitos humanos, por outro lado, não tem dado nenhum sinal de uma política contra a impunidade reinante.

De fato, após a derrocada de Aristide, as instituições foram dissolvidas. A mesma sorte teve a Suprema Corte de Justiça, e por causa disso, entre outras razões, não se avançou no julgamento do recurso interposto pelo ex-primeiro ministro Yvon Nep-tune, preso sem julgamento como tantos outros prisioneiros11.

Apesar de as autoridades máximas do país se negarem a reconhecer a existência de presos políticos, como tem feito o secretario-geral da ONU, Kofi Annan, e as orga-nizações de defesa dos direitos humanos do mundo todo, podemos citar o caso de Neptune, como o de outros presos entrevistados pela Missão durante a nossa visita à Prisão de Porto Príncipe, como testemunhas que contradizem as declarações das autoridades haitianas.

A reforma e o fortalecimento das instituições do Estado, como o Poder Judiciário, a formação integral desde a perspectiva ética dos direitos humanos junto à formação técnica e o equipamento de uma força policial haitiana que atue dentro do marco das leis vigentes são tarefas iminentes e coadjuvantes, junto aos processos de recons-tituição institucional, política, social e econômica, à construção de um verdadeiro paradigma de segurança humana, baseados no respeito pleno e vigência de todos e cada um dos direitos humanos.

11 Neptune que estava em greve de fome quando nós visitávamos o país, foi depois libertado.

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Os direitos humanos no Haiti são violados em todos os níveis, não só o direito à vida, mas também o direito a uma vida digna integral, os direitos econômicos, sociais e culturais, o direito a autodeterminação e ao desenvolvimento do povo. A ausência dos direitos públicos, como a saúde e a educação, está lastimavelmente visível nos deteriorados prédios das escolas e hospitais que vimos na nossa estada, como é também visível, pela importância que assume a gestão privada do acesso – seja gestão familiar, comunitária ou de alguma organização sem fi ns lucrativos. Aproxima-damente 75% das despesas nacionais em educação são providenciadas diretamen-te pelas famílias dos educando. Essta falta de cumprimento dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, sem dúvida encontra nas crianças e mulheres as principais vítimas.

A infânciaA maioria das crianças do Haiti está condenada à sobrevivência ou à morte pre-

matura. Mais da metade da população tem menos de 18 anos, e 52% das crianças – 3 milhões de pessoas – vivem abaixo da linha da pobreza. A taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos está entre as 40 mais altas do mundo (70 para cada 1.000 nascidos), enquanto 21% dos recém-nascidos estão abaixo do peso. Só foram vacinadas 50% e 25% das crianças sofrem de problemas de desnutrição crônica, sem acesso a medicamentos nem aos serviços sociais básicos. São eles os mais expostos à violência que afeta o país.

Durante o encontro que tivemos com um amplo conjunto de organizações de di-reitos humanos, o juiz integrante da Coalizão Haitiana pela Defesa dos Direitos das

Capítulo 6

A situação das crianças e das mulheres

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Crianças aprofundou sobre o que ele chamou “uma causa abandonada”: a infância. Segundo relato, há muitas crianças que participam em atos de violência, em Porto Príncipe e mais particularmente nos bairros populares.

“há muitos que participam nos confl itos, portam armas, roubam, matam e fazem muitas coisas ruins”.

Não há política social para essas crianças. Também não há instituições sociais que trabalhem para o bem estar da infância apesar de haver instituições de bem-es-tar que têm, entre as suas responsabilidades, a proteção da infância. Na prática isto não se cumpre, afi rmava o juiz: “As crianças são o único sustento da família e quando esta não funciona, o Estado não intervêm de nenhuma maneira”.

O tráfi co e venda de crianças são dramas do cotidiano, junto com a exploração no trabalho e a prostituição nas “zonas francas”. O tráfi co de crianças tem diversas formas: adoção internacional sem nenhum seguimento; crianças que são levadas até a fronteira com a República Dominicana para serem usadas para a prostituição, mendicância e trabalhos domésticos.

Além disso, existe o problema do trânsito interno: crianças que fazem tarefas domésticas são levadas para a capital para trabalhar em casas de pessoas com recursos com a esperança de que tenham acesso ao ensino, à saúde e que poderão dormir bem, mas desafortunadamente são vítimas da violação dos seus direitos. Não há futuro para elas.

A venda de órgãos de crianças através das redes de orfanatos é outra situação que requer respostas urgentes e integrais. Recentemente denunciou-se a ação de um antigo padre acusado nos EUA de violência sexual e que foi encontrado no Haiti como responsável por um orfanato.

Sobre as crianças haitianas nascidas em território dominicano, há um problema de direito interno e também de direito internacional, nos informou o juiz. As crianças que nascem de pai e mãe haitianos, em qualquer país, são haitianos e têm direito a essa nacionalidade. Na República Dominicana, toda pessoa que nasce ali é dominicana, pelo que rege o direito internacional, e essas crianças deveriam ser também dominicanas.

Porém, os governos da República Dominicana evocam o falso argumento de que os haitianos assentados naquele país são trabalhadores transitórios, para lhes negar a cidadania. De fato, é um trato discriminatório dos dominicanos para os haitianos. Não há esse problema para os haitianos nascidos nos EUA; todos os haitianos nas-cidos nos EUA são reconhecidos como cidadãos.

O juiz concluiu a sua exposição denunciando que o governo interino não tem iniciado políticas, nem novos programas frente a falta de cumprimento dos direitos das crianças. O QCI – a política econômica desenhada pelas instituições fi nanceiras

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multilaterais – não trata em nenhum momento do problema vivenciado pelas crian-ças, o que quer dizer que as crianças não são uma prioridade para esses governos e agências. Fala-se em direitos humanos, apontava o juiz, em direitos do homem, mas não se fala nos direitos das crianças.

Não há investimentos para as crianças. As crianças crescem na rua; mais de 50% delas não vão à escola. Não há um plano de futuro para elas. O que será o futuro deles em 15 anos, se não se respeita os direitos?

Juiz e integrante da Coalizão Haitiana de Defesa dos Direitos das Crianças.

As mulheresOlhando as ruas, a situação das mulheres no Haiti pode-se perceber imediata-

mente que elas são as que carregam enormes vasilhas de água na sua cabeça, tendo em suas mãos crianças que lhes acompanham na difícil tarefa. São as mulhe-res que estão na rua cozinhando, vendendo medicamentos, carne, frutas, legumes, roupas usadas, louça e todo tipo de coisas que se possa comercializar. É muito fácil perceber que, no empobrecido Haiti, essa pobreza tem rosto de mulher.

Durante os dias da missão no Haiti, mantivemos várias reuniões com organizações de mulheres – visita a uma clínica popular coordenada pela Sofa (Solidariedade para as Mulheres Haitianas) – assim como representantes do Movimento de Mulheres.

A missão também esteve presente na passagem da Carta das Mulheres para a Humanidade, que no seu percurso pelos cinco continentes saiu do Brasil o dia 8 de março e chegou ao Haiti pelas mãos de uma camponesa colombiana.

Em geral, conseguimos perceber durante as entrevistas que a situação desse seguimento da sociedade está em crescente deterioração tanto social, como econô-mico e político.

Foi feita uma mudança de lei positiva para as mulheres, conseguida de um decre-to do governo provisório, que consiste na penalidade da violação. Mas, na prática, as mulheres continuam sendo vítimas, inclusive dos soldados da Minustah. Os soldados acusados desse crime são retirados da jurisdição local para serem julgados nos seus países de origem; essa estratégia é sentida como impunidade, e é mais um golpe às mulheres haitianas, assim como também para os propósitos anunciados de fortalecer o sistema local de administração da Justiça.

Quando Denneth Modeste, encarregado da Missão da OEA, recebeu integrantes da nossa missão e foi questionado sobre este assunto, ele respondeu manifestando que não entendia a nossa preocupação, pois existem denúncias diárias de violações de cidadãos haitianos. Denunciamos essa falta de compreensão como parte dos sérios obstáculos que têm que se superar para conquistar o respeito dos direitos e a integridade das mulheres.

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O Haiti não é somente um país ocupado militar, econômica e ambientalmente. É um país saqueado, praticamente sem Estado e sem capacidade política. Como atin-gir a transparência institucional, uma nova legitimidade das instituições nesse con-texto? O chamado às eleições não garante a democracia enquanto o país continua ocupado, com altos índices de corrupção e impunidade, a ausência de um registro ci-vil, a situação jurídica de Aristide sem se resolver e um forte distanciamento entre as necessidades e direitos sociais da população sem perspectiva e confl itos políticos.

Ao fazer uma breve retrospectiva da vida política e social do Haiti, pode-se ob-servar que uma das causas dos confl itos acontecidos em tais dimensões origina-se na ingovernabilidade condicionada pelo não reconhecimento nacional e internacional das autoridades eleitas nos mais recentes processos eleitorais.

Nesse sentido, a realização de eleições livres, diretas, secretas e universais por parte de pessoas civilmente aptas para exercer tão importante direito pode ser um passo vital impulsionador de muitos outros que deverão atender estruturalmente o problema do empobrecimento, exclusão social e da sua transformação em níveis dignos de desenvolvimento humano.

As eleições previstas, até agora com total incerteza, para o mês de outubro de 2005 as municipais em novembro de 2005, e as presidenciais estão longe de se projetar como solução para a crise política haitiana. Apesar de se ter convertido atual-mente no objetivo aparentemente central da presença e cooperação internacional no Haiti, na área da segurança, por exemplo, a convocatória das eleições se constitui numa ação deixada à sorte, segundo as informações recolhidas durante a nossa estada no país.

Capítulo 7

Democracia, eleições e diálogo nacional

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São tarefas prioritárias da Polícia Nacional Haitiana e da Minustah garantir um clima de segurança satisfatório para desenvolver uma campanha e um processo eleitoral cuja amplitude e qualidade sejam indispensáveis para dar legitimidade aos resultados das eleições previstas. Porém, nem o comandante militar das tropas da Minustah, o general Heleno Ribeiro, nem o conselheiro da CivpoL, o coronel Malik Mbaye, planejam ações para proteger a segurança dos militantes políticos durante a campanha eleitoral. O coronel Mhaye informou aos integrantes da missão que se deve aceitar que não se poderá fazer campanha eleitoral em todos os lugares, um tipo de autocensura.

Numa entrevista com a Comissão Eleitoral Provisional (CEP), um dos seus mem-bros enfatizou que ainda nenhum setor tinha manifestado explicitamente a sua von-tade de boicotar as eleições, mas que era óbvio que as condições de segurança não estavam ainda garantidas. De outro lado, afi rmou que essa tarefa não era compe-tência daquela comissão, motivo pelo qual não podiam garantir que as eleições se realizariam e nem as condições de segurança, sem distúrbios de nenhum tipo.

Quando consultamos a CEP sobre a existência de espaços de diálogo com as forças responsáveis pela segurança PNH e Minustah, a CEP nos respondeu que existiam reuniões freqüentes nas quais compareciam representantes das três par-tes (CEP, Minustah e PNH), porém deviam converter-se em reuniões sistemáticas e permanentes. Não conseguimos obter maiores informação sobre o conteúdo desse processo de diálogo, pois os membros representantes da CEP não estavam presen-tes nessa reunião. Do mesmo jeito a CEP apontou que se a situação de insegurança não mudasse nada poderia garantir o bom resultado do processo.

O comissário da Polícia Nacional Haitiana nomeado para as eleições, Jean St-Fleur, ofereceu como solução a mediação entre partidos em nível local, procurando acordos pontuais.

Entre outros aspectos do processo eleitoral que continua sem defi nição, está a emissão de títulos de eleitor para a população haitiana, a inscrição dos partidos e candidatos, os termos e tempos do período de campanha eleitoral e as garantias para o ato das eleições.

Diálogo nacionalEnquanto a Missão Internacional estava no país, as autoridades interinas anun-

ciaram o inicio desse diálogo, no qual iriam participar tanto partidos políticos quanto outras organizações e instituições da vida política, social e religiosa do país. Porém, é claro que essa iniciativa permanece ainda numa etapa inicial e dentro de uma difícil discussão metodológica e política, particularmente no que diz respeito à representa-tividade dos atores e setores, assim como ao caráter soberano do exercício eleitoral. É ainda uma incógnita se atingirá a necessária vontade política e força institucional para converter essa proposta numa ferramenta útil para os fi ns da preparação de um cenário eleitoral legítimo. Por enquanto, o enfraquecimento institucional do governo

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interino tem-se aprofundado com a demissão de um integrante importante do Conse-lho de Sábios, órgão que não conseguiu se transformar em Conselho de Estado.

Estou convencido de que existe uma possibilidade real de reconciliação, de unidade e de organização comum para avançar no processo eleitoral e produzir dessa forma um governo legítimo e um sistema normal de governo no país... Somente assim se poderá chegar às eleições de novembro com a estabilidade necessária para gerar um governo legítimo que terá o total apoio da Comunidade Internacional.

Representante especial do secretario geral da ONU no Haiti, o chileno Juan Gabriel Valdés, para EFE (abril 2005).

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A escandalosa realidade que percebemos durante a nossa visita não é só a magnitude e A extensão da miséria para a qual foi conduzido o país – que uma vez foi a colônia mais rica da América, mas também a impotente arrogância com que tantos milhões de dólares são “investidos” para manter funcionando a indústria da “cooperação”, que nas palavras reconhece a urgência da crise humanitária, social e ambiental que enfrenta o povo haitiano, mas que, nos fatos, prioriza planos para enfrentar as conseqüências e não as causas dessa situação.

A chave do assunto é que o apoio humanitário não chega. Os argumentos usados para justifi car o atraso é que os haitianos não sabem como geri-lo, porque o Estado é corrupto. Os responsáveis no país pela cooperação da União Européia nos disseram que tinham co-meçado a desembolsar alguns recursos, 36 milhões de dólares, mas que não acham estru-turas estatais e/ou organizações não governamentais capazes ou interessadas em aplicá-los. Aliás, continua vigente uma enorme quantidade de condicionantes como, por exemplo, a argumentação que os Estados Unidos fazem de não permitir a ajuda humanitária dos países doadores, que reduziria em grande medida a violência social e poderia ajudar a sair da violência estrutural, exigindo que primeiro se desarmem os grupos armados.

Após o acordo de reconstrução tutelada, feito pelas instituições fi nanceiras multi-laterais e delineado no Quadro de Cooperação Interina (QCI), os chamados doado-res realizaram já duas reuniões em julho 2004 e janeiro 2005, e prometeram mais de 1 milhão de dólares para fi nanciar projetos de desenvolvimento.

A segunda reunião organizou-se logo depois que o governo interino do Haiti cum-priu uma outra exigência externa: o pagamento dos valores atrasados da dívida ex-terna reclamada ao Haiti.

Capítulo 8

Solidariedade e cooperação internacional

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Porém, até agora, quase nada desse montante chegou ao país. Segundo nos expressaram os responsáveis por parte da União Européia, os aportes começarão a chegar somente depois da posse do presidente eleito. Isso seria em fevereiro 2006, segundo o calendário atual, pelo que a ajuda poderia começar a chegar em meados do ano de 2006.

As necessidades e os tempos não são os mesmos para a União Européia, EUA, Canadá e os bancos multilaterais, e para o povo haitiano que está vivendo situações-limite e necessita com urgência ativar a sua economia e gerar infra-estrutura básica, hoje totalmente em colapso. No que parece um claro sinal contrário, há recursos para manter a ocupação militar, mas não há recursos para a vida e os direitos humanos da população haitiana.

É possível inverter a ordem das prioridades, dando lugar paralelamente à partici-pação ativa ao povo haitiano e às suas organizações no desenho e implementação de novos programas de uma verdadeira cooperação internacional? Acreditamos que é possível, e prova disso é a existência de alguns programas como o desenvolvido por vários anos por Cuba, com a presença de médicos, educadores e técnicos nas regiões mais desfavorecidas do país, e colocou em andamento um engenho açuca-reiro, uma das poucas produções com as que hoje conta o país.

Sem dúvida, as próprias organizações haitianas têm sido e poderão ser impulsiona-doras de propostas e iniciativas concretas nos mais variados setores, cobrindo diversos aspectos da sua própria necessidade e direitos, contribuindo no fortalecimento do teci-do social, a reconstrução da vida, a produção, o espaço comunitário e a esperança.

Incorporamos nas recomendações sugeridas pela nossa Missão Internacional al-gumas das mais importantes propostas que foram compartilhadas conosco durante a nossa estada no Haiti. Entendemos que o primeiro passo para uma reconstrução genuína do Haiti, como de qualquer país, começa por convocar o povo e suas orga-nizações, a pôr em comum e harmonizar as suas próprias iniciativas e propostas.

“Qualquer governo que assuma o Haiti vai fi car submetido às condições que os Estados Unidos impuserem. O Haiti é uma terra à qual cada vez mais olhos do globo parecem lhe dar as costas e onde os direitos humanos devem lutar diariamente contra a miséria e a violência. Nestas condições, é quase utópico pensar que as eleições convocadas para novembro, que defi nirão o primeiro presidente eleito após a queda de Jean Bertrand Aristide, signifi quem a reconstrução institucional”.

Premio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel

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Apesar das difíceis situações nas quais se encontram vivendo e lutando as organi-zações haitianas, as que tivemos oportunidade de visitar manifestaram uma enorme capacidade de compromisso, criatividade, iniciativas e propostas tendentes sempre a fortalecer a sua resistência ao saque, AO colapso do país, e no avanço Da constru-ção de alternativas de vida e esperança, para e com a maioria da população.

Através das nossas recomendações e demandas, procuramos ressaltar a impor-tância dessas alternativas e acompanhá-las no seu esforço de concretização, reco-nhecendo e respeitando que essa possibilidade depende não só da capacidade de construir um poder distinto ao Estado oligárquico que responde aos interesses alheios, mas também da possibilidade de mudar o olhar sobre o que é o desenvolvimento, para entendê-lo como a potencialidade dos recursos, da cultura e da riqueza de qualquer povo em termos de laços e bem-estar social e um equilíbrio sócio-ambiental básico.

Perante a ocupação militar:• Manifestamo-nos pela retirada das tropas estrangeiras e que os recursos que

até agora foram destinados para o seu envio, manutenção das tropas e equipamen-tos das forças de segurança haitianas, sejam redirecionados para os programas de capacitação integral, para o bem-estar e desenvolvimento do povo;

• Solicitamos à Assembléia Geral da ONU que realize uma avaliação exaustiva do mandato e funcionamento da Minustah, tirando-o do âmbito mais restrito do Conselho de Segurança e submetendo-o a revisão, levando em consideração as obrigações da organização e dos seus Estados-membros em matéria de defesa e promoção integral de todos os direitos humanos e ambientais, como também a paz e a segurança;

Capítulo 9

Recomendações

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• Demandamos também que os países envolvidos e as instâncias internacionais competentes (ONU, OEA) investiguem e sancionem a intervenção dos Estados Uni-dos na derrocada do governo de Jean Bertrand Aristide.

Perante a ocupação econômica e fi nanceira:• Exigimos a anulação incondicional e não pagamento da dívida externa ainda

reclamada ao Haiti, evitando a geração de maiores obstáculos como seriam, por exemplo, a inclusão do Haiti no Programa de Países Pobres Altamente Endividados (Ppae/Hipc) ou no Programa Estratégico para a Redução da Pobreza (PRSP). Os recursos que hoje se destinam ao serviço de uma dívida ilegítima deveriam ser in-vestidos para a vida e o desenvolvimento do povo, segundo as determinações das organizações e instituições haitianas;

• Recomendamos às autoridades (interinas) haitianas, assim como às organiza-ções sociais do país, às instituições fi nanceiras multilaterais e outros chamados “doa-dores” internacionais, a realizarem uma auditoria integral e participativa das dívidas fi nanceiras, sociais, históricas e ecológicas do Haiti, para estabelecer publicamente quem deve o que e a quem;

• Com base nos resultados da auditoria, recomendamos que se iniciem as ações e programas apropriados para garantir o pagamento e reestruturação das dívidas legítimas pendentes e a sanção e reparação dos delitos cometidos;

• Propomos que o Quadro de Cooperação Interina (QCI) seja substituído por um plano estratégico de desenvolvimento e formulado com base em um processo de consultas, elaboração e harmonização de propostas no nível do conjunto das organi-zações da sociedade haitiana, que tenham como horizonte a defesa e promoção dos direitos econômicos, sociais, ambientais e culturais do povo, e também o seu direito à autodeterminação, soberania e desenvolvimento próprio;

• Manifestamo-nos, sobre tudo aos governos de países atualmente presentes no Haiti em apoio à Minustah, que convertam os recursos que destinam à manutenção das suas tropas militares, em recursos para a vida e o bem-estar do povo daquele país;

• Propomos que os fundos dirigidos a projetos de ajuda e desenvolvimento do povo haitiano sejam de caráter não reembolsável e destinados às propostas das organizações sociais e comunidades locais;

• Manifestamo-nos no sentido de que o país não seja transformado numa área de maquiladoras aglutinadas em zonas francas, e que todos e cada um dos empreendi-mentos produtivos que se estabeleçam reconheçam e cumpram as regulamentações e os convênios trabalhistas apropriados nacional e internacionalmente, incluindo, so-bretudo o direito das e dos trabalhadores a se organizarem e a receberem um salário digno;

• Frear os processos de privatização e liberalização econômica para permitir a sua avaliação conforme as obrigações do Estado haitiano e a comunidade internacio-

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nal em matéria de direitos humanos e a elaboração de propostas capazes de retifi car as situações de assimetria e falta de proteção.

Perante a ocupação ambiental e a dívida ecológica:• Reconhecer e ressarcir a dívida histórica, social e ecológica que principalmente

França e EUA têm com Haiti e o seu povo;• Executar a reforma agrária proposta pelos movimentos camponeses, priorizan-

do a economia camponesa e lhes facilitando os meios para recuperar a sustentabili-dade e a soberania alimentar local e nacional;

• Revitalizar a produção de arroz e milho nas terras abandonadas de Ouanamin-the e lhes prover irrigação, pois existem sete rios na região. Os camponeses de lá, alguns deles operários industriais na zona franca, desejam voltar para a agricultura não só para abastecer a região, mas também o país. Os camponeses de Artibonite propõem um país onde o povo tenha justiça social, soberania e produza alimentos conforme a sua cultura;

• Apoiar a recuperação de bosques, fl orestas energéticas, medicinais e de frutas através da criação de cooperativas de camponeses e jovens para assim produzir madeira para o consumo energético, enquanto é feita a transição para energias alter-nativas. As cooperativas poderiam também recuperar os bosques e plantar espécies medicinais e frutíferas;

• Desenvolver alternativas de uso de energias limpas, de baixo impacto, descen-tralizadas e acessíveis à população, aproveitando as importantes fontes de energia como a solar, eólica, marinha, que o Haiti tem pela sua localização tropical;

• Fazemos um apelo urgente ao governo haitiano para tomar medidas no caso da crise sanitária que signifi ca o acúmulo de lixo urbano. Pois é necessária uma decisão política para ser resolvida. Um adequado gerenciamento do lixo, além do seu impacto sanitário, poderia resultar em um grande potencial energético e uma fonte de alimenta-ção para animais ou produção de ‘composto fértil’ para recuperar a fertilidade do solo.

• A pesca pode ser um setor de criação de emprego, de formação e de geração de toda uma relação com o meio ambiente marinho. O Haiti produz 5.000 toneladas métricas de peixe por ano e consome 15.000. É incrível pensar que uma ilha com 5.000 km² de território de mar não se auto-abasteça com seus produtos, mas que os importe. Essa atividade não tem se desenvolvido completamente, sobretudo porque EUA o impede para evitar a migração dos haitianos; essas e outras restrições ao pleno desenvolvimento desse recurso devem ser removidas e a potencialidade em mãos haitianas deve ser aprofundada;

• Acompanhamos também a demanda que emerge desde as organizações so-ciais, do respeito à cultura, à religiosidade e às tradições haitianas, o respeito e apoio às propostas nascidas de sua cosmovisão, as suas necessidades e aspirações, des-de o olhar diferente daqueles que têm raízes profundas na terra. Durante os anos de independência, o povo haitiano conseguiu criar a língua, novas formas de organizar

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a sociedade através da produção, práticas agrícolas que abasteceram de alimentos a população crescente, uma religiosidade popular, desenvolvem ritos e tradições, comida, música e arte. Essa vitalidade deve ser respeitada e fortalecida;

• Apoiar a produção artística com alfabetização, formação técnica, ferramentas melhoradas e espaços adequados. O Haiti é a terra da arte e da cultura; o país conta com 350.000 pessoas que vivem do artesanato e, segundo os cálculos, 65% da produção de artesanato que se vende no Caribe provem do Haiti ou de haitianos expatriados. Se essas pessoas recebessem apoio, a sua produção poderia melhorar consideravelmente. Atualmente o Haiti exporta 8 milhões de dólares em artesanato, e isso poderia ser multiplicado por 10 com um investimento de 5 anos.

Perante a insegurança e a impunidade• Recomendamos a garantia da constituição do estado de direito que possibilite a

plena vigência e realização dos direitos humanos na sua integralidade;• Propomos que se desenvolvam programas de intercâmbio e capacitação entre

as universidades e organismos de direitos humanos da região com as suas contra-partes no Haiti, fortalecendo a capacidade de intervenção e defesa da sociedade haitiana e as relações de compromisso e solidariedade de escala continental.

Perante a situação das crianças, da juventude e das mulheres:• Recomendamos que sejam promovidos programas integrais de apoio à infância,

possibilitando o seu acesso à saúde, à escola, à formação profi ssional e ao emprego;• Recomendamos, especialmente ao governo da vizinha República Dominicana,

a revisão das suas políticas migratórias e o fi m da discriminação e maus tratos que os haitianos suportam permanentemente naquele país;

• Uma das principais riquezas com que o Haiti conta é precisamente o povo hai-tiano, seus valores e cultura. O potencial humano, principalmente dos/as jovens pode ser um meio importante para a reconstrução social e ambiental do Haiti. A cada ano formam-se na escola secundarista 20.000 jovens e somente 2.000 podem ingressar na universidade, que é a sua máxima capacidade; recebendo uma formação com-plementar de curto prazo, os restantes 18.000 jovens podem promover processos amplos de reconstrução social e ambiental: alfabetização, saúde, educação, projetos de refl orestamento e projetos produtivos sustentáveis;

• As organizações de mulheres devem ser amplamente apoiadas nos seus esforços para capacitar e organizar as mulheres na defesa dos seus direitos, gerando uma base indispensável de cuidado e promoção do bem-estar da sociedade na sua totalidade.

Perante o desafi o das eleições e a construção democrática• É necessário que as próximas eleições sejam realizadas com transparência,

sem proscrições de partidos políticos, com observadores internacionais, para regula-rizar a situação atual do país;

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• Recomendamos sejam reorientados os recursos fi nanceiros aportados pelos diversos países doadores e que atualmente são utilizados na manutenção das forças militares de ocupação, com o objetivo de que sejam investidos efi cientemente na realização das eleições gerais através da criação de um registro civil que permita o acesso da população ao exercício do seu direito à identidade, e conseqüentemente, ao direito ao voto, além da criação de uma plataforma física e tecnológica comple-mentar com a assessoria de pessoal especializado;

• Recomendamos às autoridades provisórias encarregadas que seja convidada a União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore) para que, conjuntamente com o Instituto Interamericano de Direitos Humanos e a Comissão de Assessoria de Promo-ção Eleitoral (Capel), apóiem a constituição de um plano de administração eleitoral;

• Exortamos também os governos dos Estados latino-americanos para que des-tinem recursos fi nanceiros aos seus Conselhos Eleitorais Nacionais para que estes possam apoiar a urgente realização de um processo eleitoral geral no Haiti;

Perante a urgência da solidariedade, apoio e cooperação internacional• Recomendamos à comunidade internacional que concretize o envio dos recur-

sos de ajuda humanitária para gerar a infra-estrutura, fontes de trabalho genuíno, educação, saúde e capacitação técnica de que o país precisa;

• Conclamamos os movimentos e organizações sociais, os governos dos nossos países, a comunidade internacional a avançarem em iniciativas concretas de apoio e acompanhamento ao povo haitiano, sobretudo nas áreas de direitos humanos e promoção humana e comunitária, realizando programas de intercâmbio entre ins-tituições educativas e de promoção social, de capacitação e assistência entre as diversas organizações sociais do continente com as suas contrapartes haitianas.

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A nossa Missão Internacional chegou ao país com o convencimento de que no Haiti, hoje, está se jogando o futuro de todos os povos de América Latina e do Caribe, de todos os povos do Sul. Está em jogo o nosso direito a determinar o nosso próprio destino. A América Latina e o Caribe devem se ver refl etidos no espelho do Haiti, antes que seja tarde demais.

Todas e todos voltamos aos nossos países, às responsabilidades cotidianas mar-cados pela realidade que enfrenta o povo haitiano e pela enorme beleza e integrida-de com que continuam resistindo em mais de 200 anos de assédio e ataques à sua existência, dignidade e autodeterminação. Voltamos enriquecidos pela experiência compartilhada, o canto, a arte, o riso e a esperança de que, apesar de tudo, não pa-ram de lutar, e fortalecidos no nosso compromisso de contribuir de todas as maneiras possíveis com a luta do povo haitiano.

Comprometemo-nos a acompanhar-los, difundindo nas nossas comunidades e no mundo inteiro as informações e perspectivas que temos recolhido e promovendo diversas ações de solidariedade e apoio, como por exemplo, a chegada de uma dele-gação de camponeses e técnicos agrícolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), para colaborar com os seus colegas haitianos.

Comprometemo-nos a apresentar este relatório aos presidentes do Brasil, Argen-tina, Uruguai e Chile, entre outros, para relançar um trabalho de pressão e recomen-dação sobre o dossiê Haiti, procurando converter as tropas de ocupação em progra-mas de cooperação social.

Comprometemo-nos a apresentar o Relatório também aos responsáveis das Na-ções Unidas, das Instituições Financeiras Internacionais, dos governos chamados

Capítulo 10

Conclusão

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credores e/ou doadores, como também de outras agências de cooperação e dos movimentos e campanhas que lutam pela vida e contra a globalização neoliberal, para promover a sua atenção e colaboração com os reclamos e recomendações aqui rascunhados.

O Haiti hoje é miséria, isolamento, abandono e falta de comunicação. Mas é tam-bém, e sobretudo, luta e resistência. A sua reatividade agressiva se percebe rapida-mente. São momentos de rebelião justa contra as constantes invasões de tropas es-trangeiras opressoras e a exploração capitalista que historicamente vitimou o país.

Mas o Haiti é também beleza pura e brilhante da pele do seu povo, a agitação tumultuosa e frenética nas suas ruas confusas e estreitas, as cores explosivas da sua vestimenta, o ritmo cortante, rápido e sincopado da língua, das danças, das músicas e, o mais importante, a sua esperança.

Devemos trabalhar para que não roubem do povo haitiano a esperança de poder construir um país livre e soberano, a esperança de um povo forte, que suporta o in-suportável, e sobrevive, e luta, canta, dança e ri. Haiti, presente! Pela sua soberania e dignidade.

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Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e presidente da Fundação Serviço Paz e Justiça (Argentina);

Nora Cortiñas, Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora (Argentina); Beverly Keene, Co-coordenadora do Jubileu Sul / Diálogo 2000 (Argentina); Alejandro Barrientos, Movimento de Documentaristas (Argentina); Bispo Adriel de Souza Maia, presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs

(Brasil); Deputado Valmir Assunção, MST/Via Campesina (Brasil); Lucélia Santos, atriz e militante socioambiental / membro do Conselho Presiden-

cial de Desenvolvimento Econômico e Social (Brasil); João Luis Pinaud, membro da Paróquia Bom Samaritano da Comunidade Evan-

gélica Luterana de Rio de Janeiro; advogado e membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil; coordenador do grupo Práxis – Direitos Humanos em Ação; membro do Grupo Tortura Nunca Mais – RJ; Professor da Facultade de Direito Evandro Lins e Silva (Rio de Janeiro); coordenador do Centro de Estudos Superiores da Universidade Cândido Mendes – Campus Niterói (Brasil);

Carolina Vilanova, jornalista, Folha de São Paulo (Brasil);Sandra Quintela, Pacs; Jubileu Sul / Brasil contra a Dívida, a ALCA e a Militari-

zação (Brasil);William Sloan, Associação Americana de Juristas (Canadá);Jean Peut-etre M’Pele, Comitê pela Abolição da Dívida do Terceiro Mundo/Soli-

daires/Aspah (Congo-Brazzaville);Aurora Donoso, Aliança dos Povos do Sul Credores da Dívida Ecológica e Ação

Ecológica (Equador);

Anexo 1

Integrantes da missão

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Flavia Cherry, Aliança Social Continental e Associação Caribenha de Investiga-ção e Ação Feministas (Santa Lucia);

Ana Juanche, coordenadora Adjunta do Serviço Paz e Justiça em América Latina (Uruguai);

Efraín Olivera, Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (Uruguai);

Deputada Jhannett Madriz Sotillo, Confederação Parlamentaria das Américas /Parlamento Andino (Venezuela);Deputado Luis Antonio Bigot, Parlamento Andino / Conselho Superior da Univ.

Andina “Simón Bolívar” (Venezuela);Deputado Vidal Cisneros G., Parlamento Andino (Venezuela);Deputado Luis Días Laghee, Parlamento Andino (Venezuela).

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Programa de entrevistas e reuniões realizadasFoi entrevistado o presidente (interino) de Estado e ex-juiz da Corte Suprema,

Dr. Alexandre Bonifácio; o primeiro ministro (interino) Gerard La Tortue, o ministro de Meio Ambiente, o ministro da Justiça, outros funcionários do governo provisóriol; o comandante das forças armadas da Minustah; o delegado da Policia Nacional Hai-tiana para a segurança das eleições; o coronel Malik M’baye da CIV-POL/Minustah,, representantes do conselho da EU, o reitor e os vice-reitores da Universidade Nacio-nal do Haiti. Visitamos o presídio central, o hospital universitário e centros de direi-tos humanos, sindicatos de educadores e organizações camponesas e de mulheres. A Plataforma Haitiana de Promoção de um Desenvolvimento Alternativo (Papda), conjuntamente com o Instituto Cultural Karl Lévèque e a Plataforma de Organiza-ções Haitianas de Direitos Humanos foram os responsáveis pela organização da permanência e dos contatos da Missão Internacional no Haiti. Grupos da Missão se deslocaram para o interior do país para entrar em contato e conhecer a situação dos camponeses e para a “zona franca” na fronteira entre a República Dominicana e o Haiti. Embaixadas de Chile, UE, Cuba. OEA. Conselho de Sábios. Rádios e televisão. Organizações populares, de direitos humanos, sindicatos. Jesi Chancey-Manigat, fi -lha do ex-presidente Leslie Manigat e sobrinha da atual ministra da Mulher.

Anexo 2

Organizações e pessoas entrevistadas e atividades realizadas

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A Missão de Investigação e Solidariedade com o Haiti, conduzida por Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, e Nora Cortiñas, Mãe da Praça de Maio Linha Funda-dora, composta por 20 representantes de movimentos, redes e instituições sociais, cul-turais e políticas da América Latina, Caribe, América do Norte e África, em primeiro lugar deseja agradecer às pessoas e organizações haitianas que possibilitaram essa visita e compartilharam as suas experiências, testemunhos, dores e esperanças conosco.

Chegamos com o convencimento de que o Haiti, hoje, refl ete o futuro dos povos latino-americano, caribenhos, e de todos os povos do Sul. Está em jogo o nosso di-reito a determinar o nosso próprio destino.

Durante esses poucos dias, conseguimos nos reunir com funcionários do governo interino, organizações sociais de direitos humanos, camponesas, mulheres, sindica-tos, estudantes, partidos políticos, autoridades universitárias, embaixadas, organis-mos internacionais e a Minustah. Cada um deles forneceu informações e elementos de análise que enriqueceram enormemente a nossa compreensão da atual situação do povo, no contexto da sua longa luta pela conquista da democracia, pelo desenvol-vimento e a autodeterminação.

Nesta oportunidade e antes inclusive de concluir o nosso programa de visitas e encontros desejamos compartilhar algumas apreciações iniciais:

1. Reconhecemos e saudamos a profunda luta do povo haitiano que durante mais de dois séculos tem resistido ao embate – externo e interno – que tem se oposto e obstaculizado cada crescimento de forças populares construtivas. Nesse marco, é importante ressaltar que a derrocada do presidente Aristide, em fevereiro 2004, deve ser interpretada levando em conta a crescente mobilização social reclamando a sua renuncia e propondo alternativas próprias de transição.

Considerações iniciais da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti

Anexo 3

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2. Rejeitamos a presença de forças internacionais de ocupação no Haiti, que afe-tam a sua soberania. O problema do Haiti não é de caráter militar, portanto, não pode ser resolvido com medidas dessa magnitude. Exigimos aos nossos governos a reti-rada das tropas militares, com modalidades e calendários estabelecidos por atores sociais e políticos da sociedade haitiana.

3. Propomos que se garanta a constituição do estado de direito que possibilite a plena vigência e realização dos direitos humanos na sua integridade.

4. Como parte de um processo eleitoral democrático, transparente e seguro, reco-mendamos às autoridades provisórias encarregadas, para que seja convidada a União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore) para que, conjuntamente com o Ins-tituto Interamericano de Direitos Humanos e a Comissão de Assessoria da Promoção Eleitoral (Capel), apóiem a constituição de um plano de administração eleitoral.

5. Propomos que os fundos dirigidos a projetos de desenvolvimento do povo hai-tiano sejam de caráter não reembolsável e que sejam destinados às propostas das organizações sociais e comunidades locais e não às formuladas pelos organismos internacionais, como é o caso do Quadro de Cooperação Interina (QCI). É prioritário executar a reforma agrária proposta pelos movimentos camponeses, que é básica para recuperar e defender a soberania alimentar.

6. Opomo-nos que o país seja transformado numa área de maquiladoras agluti-nadas em zonas francas, que exploram os seus trabalhadores numa nova forma de escravidão.

7. Exigimos a anulação da dívida externa, imoral e ilegal, que continua sendo uma forma de saque do povo haitiano.

8. Reconhecemos e exigimos a compensação da dívida histórica, social e ecoló-gica que principalmente França e EUA têm com o Haiti e o seu povo.

9. Acreditamos que novas formas de cooperação internacional são possíveis, ba-seadas no respeito e na autodeterminação de cada povo, através de intercâmbios de experiências culturais, sociais, científi cas e tecnológicas das organizações sociais e governamentais, e chamamos os movimentos e organizações sociais, os governos dos nossos países, e toda a comunidade internacional a avançar em iniciativas con-cretas de apoio e acompanhamento do povo haitiano, sobretudo, nas áreas de direitos humanos e promoção humana e comunitária. Nesse espírito, nos comprometemos a avançar num processo intenso de acompanhamento do povo haitiano, difundindo nas nossas comunidades e no mundo inteiro as informações e perspectivas que temos recebido e promovendo diversas ações como, por exemplo, a chegada em junho de uma delegação de camponeses e técnicos agrícolas do Movimento dos Trabalhado-res Rurais Sem Terra do Brasil para colaborar com os seus colegas haitianos.

Concluindo amanhã o seu trabalho no país, a Missão elaborará um relatório fi nal so-bre a sua visão da situação atual do Haiti, recomendações e compromissos assumidos.

Porto Príncipe, 8 de abril de 2005.

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Mapa das bases dos EUA na região

Anexo 4

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Há muitas dívidas históricas, sociais e ecológicas que tanto os invasores euro-peus quanto os seus aliados nacionais têm com o Haiti. Em seguida, são enumera-das algumas delas, sobre a base de cuja quantifi cação pode-se começar a ter uma idéia da dívida que é devida ao povo haitiano.

A dívida da EspanhaA Espanha ocupou durante dois séculos o Haiti (1492 – 1697). Exploraram os povos

originários, os Taínos, nas minas de ouro e prata, nas plantações e encomendas. Além disso, o contágio de doenças trazidas pelos espanhóis aniquilou a população toda. Os indígenas foram substituídos por escravos negros. Foi o início do desmatamento. Outras dívidas difíceis de quantifi car incluem a perda de uma cultura, língua, conhecimentos.

A dívida da FrançaA França explorou o Haiti durante um século (1697 – 1804). Enriqueceu-se com

trabalho escravo de 450.000 negros que trouxe da África para trabalhar nas planta-ções de cana-de-açúcar e café, que a Europa consumia. Para isso, os colonos fran-ceses desmataram 50% dos bosques e vales. O Haiti exportava 75% da produção mundial de açúcar naquela época. Também exportaram madeiras fi nas como caoba, cedro e outras. Utilizaram madeira para construir trilhos dos trens para a indústria açucareira da região. Paris se construiu na base da produção de bens da ilha haitia-na, que por isso ganhou o nome de “a pérola das Antilhas”.

A França tem também que restituir para o Haiti, a Dívida da Independência. Pois para aceitar a independência em 1825 impôs uma dívida de 150 milhões de franco-

Anexo 5

As dívidas históricas e ecológicas com o povo haitiano

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ouro para indenizar aos franceses que tinham perdido os seus escravos e as suas plantações no Haiti. O Haiti começou a pagar em 1825 e 3 anos mais tarde, em 1828, já não conseguia mais pagar os juros; para isso tiveram que pedir um empréstimo num banco de Londres. Pagaram durante um século e, contudo, não conseguiram pagar essa dívida. O saldo foi comprado por Export-Import Bank, um banco dos EUA e se transformou numa dívida com os EUA. Durante todo o século XIX para pagar a dívida tinha um fl uxo importante de exportação de madeira, inclusive de madeira preciosa, contribuindo em grande medida ao desmatamento do Haiti. Em 1870-1875 em alguns momentos, 60% da receita do Estado eram destinados ao pagamento da dívida da independência.

Faz poucos anos, o Parlamento Europeu reconheceu que a escravidão é um cri-me contra a humanidade. Este reconhecimento deve se plasmar numa compensação e indenização ao povo haitiano para recuperar as suas fontes de sustento, restaurar os ecossistema destruídos e recuperar a sua independência.

Dívida das empresas transnacionais francesas e de outros países europeus

Na atualidade existem ainda interesses de empresas francesas e outros países europeus no Haiti. Como exemplo, pegaremos uma delas, a plantação de Marnier-Lapostolle que tem dívidas sociais e ecológicas com o Haiti. Essa plantação se as-senta em terras que durante 30 anos foram ocupadas pelos camponeses que foram expulsos com violência. Utiliza grande quantidade de agrotóxicos que contaminam as fontes de água, o ar e o solo gerando erosão e afetando gravemente a saúde das trabalhadoras e trabalhadores agrícolas. Esta dívida inclui a exploração do trabalho das e dos operários agrícolas.

Não basta exigir a compensação dos prejuízos causados, mas neste caso dever ser exigido, sobretudo, a devolução das terras aos camponeses.

A dívida dos EUAOs EUA têm incidido na vida do Haiti desde 1806 quando o Congresso dos EUA

por pressão da França, proibiu o comércio com o Haiti. Antes da ocupação militar em 1915, houve uma tropa dos EUA que chegou a Porto Príncipe, entrou durante a noite no Banco Central e levou todas as reservas de ouro que o Haiti tinha.

Depois de 1922, os EUA assinaram um convênio com o Haiti no qual estabelecia que em base das reservas do ouro haitianas, aceitavam que a moeda Haitiana tives-se paridade fi xa de 5 gourdes por dólar. Foi uma ação criminosa que também provo-cou uma dependência permanente da moeda do Haiti com a moeda dos EUA.

Os EUA ocuparam militarmente e administraram o Haiti de 1915 até 1934, porém a sua intervenção na ilha tem sido permanente e defi nitiva até a atualidade, quase um século.

A ocupação militar dos EUA, que contava com tropas principalmente originárias do Sul dos EUA, as mais racistas que existiam e que entraram inclusive para manter

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a escravidão, se empenhou em destruir tudo o que tinha se construído durante um século de independência. Os EUA bloquearam processos importantes e bem suce-didos que com muito esforço os haitianos tinham conseguido construir durante um século, como a cultura camponesa, formas de organização da produção, uma econo-mia autocentrada e descentralizada.

Cada grande cidade, como Cabo Haitiano, São Marcos, Gonaives e Cayes, tinha um centro de poder. Os EUA destruíram tudo isso para concentrar o poder em Porto Príncipe para, dessa forma, controlar melhor o país.

Durante a primeira ocupação militar, decidiram transformar o Haiti, em mão-de-obra barata para os seus enclaves de exportação agrícola no Caribe. Com esse fi m, iniciaram processos violentos de destruição do campesinato para favorecer essa migração massiva para Cuba e República Dominicana, onde contavam com uma melhor infra-estrutura açucareira.

Desarticularam toda a economia camponesa, desarmaram os camponeses com violência, assassinando mais de 30.000, criaram campos de concentração estilo na-zista, em Porto Príncipe e outras cidades, proibiram manifestações culturais e inclu-sive a elaboração de produtos como o kleve, que é uma aguardente popular, para substituí-la por cerveja dos EUA. Na zona Sul, Magshater, em dezembro de 1929 realizou-se uma manifestação de milhares de camponeses que protestavam porque os EUA estavam destruindo a economia associada ao açúcar de cana, os bagaços eram utilizados como combustível, a aguardente que produziam estava proibida pe-los EUA, porque essas atividades abriam muitos empregos e constituíam uma parte importante da economia camponesa.

Os EUA também estabeleceram plantações para a agroexportação como as de si-sal. Os EUA chegaram até exportar terra do Haiti para levá-la para as Ilhas Virgens.

A intervenção dos EUA tem signifi cado o bloqueio do desenvolvimento autônomo do povo haitiano a partir da sua independência conquistada com o sangue dos seus próceres.

Os EUA têm conseguido frear processos de soberania alimentar para criar pro-cessos de dependência alimentar. Bloquear a produção de cultivos biológicos pela importação de alimentos produzidos com agrotóxicos e transgênicos.

Passar de trabalhadores livres e autônomos a empregados explorados em maqui-ladoras e plantações. Bloquear processos de independência política, social e cultural por dependência ao império dos EUA e Europa. Deve-se demandar o reconhecimen-to e pagamento dessas dívidas do governo dos EUA.

Matanças de porcos crioulos Outra dívida mais recente dos EUA foi a matança de porcos crioulos entre 1978

a 1982. Naquele ano Haiti tinha quase 2 milhões de porcos e era o primeiro produtor de porcos do Caribe. Por pressão dos produtores de carne dos EUA, e com o pre-texto de uma onda de febre suína, mataram TODOS os porcos nativos do Haiti. Era

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uma raça suína que durante séculos tinha se adaptado totalmente ao meio ambiente e, por isso, não precisavam de nenhum insumo químico. Os EUA e o BID gastaram 25 milhões de dólares para matar e repovoar com uma outra raça que requeriam insumos especiais fora do alcance da economia camponesa. Os porcos eram uma das poucas fontes de liquidez do campesinato para cobrir necessidades urgentes, além de que faziam parte da sua cultura. A matança dos porcos acelerou o processo de desmatamento. Tudo isso foi feito com muita violência perante a resistência dos camponeses.

Esse é um outro dos crimes que os EUA têm que pagar, e nós não podemos aceitar a impunidade desse tipo de crimes. Devem-se sancionar os responsáveis por essas políticas e o seu fi nanciamento: Governo dos EUA, FAO, Usaid, BID.

Criação de maquilas e zonas francas

Outra dívida dos EUA com o Haiti é a instalação de maquiladoras e zonas fran-cas. Essas têm acrescentado as dívidas fi nanceiras, sociais e ecológicas. Muitas dessas zonas se assentam em terras produtivas. Os processos industriais requerem a provisão de água e energia o que signifi ca a instalação de sistemas de energia que utilizam combustíveis fósseis com os impactos sociais e ecológicos que os mesmos geram. É mundialmente conhecida a exploração da mão-de-obra nas maquiladoras, de homens, mulheres e crianças.

As maquiladoras favorecem as empresas transnacionais dos EUA, como Disney, Levy-Strauss, Sara Lee, entre outras. As maquiladoras são as novas formas de ex-ploração e escravidão que os EUA promovem para reduzirem o custo das suas mer-cadorias e ser “competitivos” no mercado internacional que pretendem controlar.

Dívidas por abertura comercialOutra dívida dos EUA é a que eles têm gerado com a imposição de políticas de

abertura de mercados e livre comércio, que têm destruído a produção nacional prin-cipalmente de arroz, principal alimento da população.

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Parte IISegunda visita ao Haiti – Depois de dois anos pouco mudou...

De 26 de outubro a 2 de novembro de 2006

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De 26 de outubro a 2 de novembro, a Campanha Jubileu Sul / Américas e os movi-mentos sociais do Haiti promoveram seminários populares, manifestações, audiências com autoridades haitianas e a reunião de coordenação do Jubileu Sul / Américas. Es-ses eventos foram realizados no Haiti devido à atual conjuntura de ocupação militar, que se presta ao modelo neoliberal e à política de endividamento desse país, marcado por um histórico de colonização e dívida ilegítima, que vem se acumulando desde a independência haitiana. Na ocasião, a França impôs um bloqueio econômico de dez anos que só foi levantado quando os governantes do Haiti decidiram concordar com o pagamento de 150 milhões de francos ouro (US$ 22 bilhões em valores atuais) em compensação pela perda de seus escravos. Além disso, 45% da dívida externa do Haiti foram contratada durante as ditaduras cruéis de Francois e Jean-Claude Duvalier.

A realidade da ocupação militar do Haiti fi cou ainda mais obvia logo na chegada da delegação do Jubileu Sul / Américas ao Haiti devido à presença de um “comitê de recepção” no aeroporto – tanques da ONU com tropas de vários países, na sua maioria do Brasil, com metralhadoras, algumas das quais estavam sendo apontadas para os haitianos!

Por esta razão, “Hoje, no Haiti, está em jogo o futuro de toda América Latina e Caribe”, diz a abertura da Declaração Final destes eventos (disponível após estes relatos). Os eventos também representaram um seguimento da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade o Haiti, que esteve no país em abril de 2005, no

1 Fabrina Furtado (Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Internacionais) e Rodrigo Ávila (Auditoria Cidadã da Dívida – Rede Jubileu Sul Brasil)

Introdução1

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contexto da campanha de solidariedade com o Haiti, pela retirada das tropas estran-geiras e anulação da dívida externa.

A Delegação do Jubileu Sul / Américas presente aos eventos se compôs das se-guintes pessoas:

Nidia Hidalgo (Red Sinti Techan de El Salvador), Gustavo Castro (Edupaz do México), Beverly Keene (Jubileo Sur / Argentina), Luis Pacheco (Bloque Popular de Honduras), Fabrina Furtado (Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e Jubileu Sul / Brasil), Mariela Rivera Santander (Mesa Mulher e Economia da Co-lômbia), Maglio Vargas (Compa da Venezuela), Rodrigo Ávila (Auditoria Cidadã da Dívida e Rede Jubileu Sul / Brasil), Gladys Jarazo (Diálogo 2000 da Argentina), Luis Corral (Cdes/Aliança dos Povos do Sul Credores da Dívida Ecológica do Equador), Flavia Cherry (Cafra de Santa Lucía), Adalys Vázquez (Centro Memorial Martín Lu-ther King, Jr de Cuba), Carlton Gibson (Federação Independente dos Sindicatos Na-cionais/Fitun de Trinidad e Tobago).

As organizações haitianas envolvidas nos eventos foram:• Plataforma de Ação por um Desenvolvimento Alternativo (PAPDA)• Associação de Profi ssionais Haitianos Formados em Cuba (APROHFOC)• Konbit Fanm• Grupo de Apoio aos Refugiados e Repatriados (GARR)• Grupo Jovens Sabanet (Rajes)• Movimento Democrático Popular (MODEP)• CHANDEL• Centro de Busca de Ação para o Desenvolvimento (CRAD)• Instituto Cultural Karl Léveque (ICKL)• Solidaridad de Mujeres Haitianas (SOF)

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Esse seminário de formação e atualização aconteceu de 26 a 28 de outubro de 2006, contou com a participação de cerca de 100 pessoas, representantes de organizações populares haitianas e da Delegação do Jubileu Sul / Américas. Propiciou o intercâmbio de informações e experiências de luta frente à dominação exercida pela dívida, as Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e as políti-cas neoliberais e o desenvolvimento e aprofundamento de uma análise crítica acerca da situação atual e tendências de dependência fi nanceira e comercial no Haiti e região, assim como das perspectivas e estratégias para a construção e fortalecimento de alternativas.

Entre outras temáticas, foram abordadas as estratégias das Instituições Financei-ras Internacionais e do capital fi nanceiro para o país e sua relação com o desafi o de erradicação da pobreza e com a presença das tropas militares (Minustah – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). Foram analisados também os mecanismos de endividamento e os programas de “alívio” da dívida (Hipc/Prsp) em diferentes países da região, as estratégias de resistência frente às políticas das Ins-tituições Financeiras Internacionais (IFIs), seus novos mecanismos, e a relação com outros eixos de políticas de dominação imperialista, como o livre comércio, privatiza-ções e a militarização.

O Seminário enfocou também algumas iniciativas prioritárias na região atualmen-te, como as campanhas pela realização de auditorias integrais e participativas das dívidas e pelo reconhecimento das dívidas históricas, sociais, culturais e ecológicas devidas aos povos da região, e as perspectivas para seu fortalecimento, em relação com a situação e necessidades atuais do Haiti.

Capítulo 1

Seminário “Dívida, livre comércio, pobreza e perspectivas de desenvolvimento para o Haiti e a região”

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Durante o evento, os haitianos puderam expor a situação de seu país, abordando temas como educação, saúde, campo e mulheres. Foi relatado que 87% da popula-ção haitiana vive do campo, e que 80% dos camponeses do Haiti vivem em estado de miséria, enquanto que 2/3 dos empregos vêm do campo.

Livre comércioSobre a questão do livre comércio, foi informado que a tarifa de importação de al-

guns produtos como o milho é de 15%, enquanto a de outros produtos chega a 0,3%, muito menor que a tarifa de 35% vigente no Mercado Comum e Comunidade do Caribe (Caricom, bloco formado por quatorze países e quatro territórios da região caribenha).

Como resultado, houve um grande aumento na importação de produtos, devido à competição desleal.

Três setores são mais impactados pelo livre comércio: arroz, açúcar e frango. Nesses setores, em menos de três anos, 830 mil empregos foram extintos. Outro dado revelador é o crescimento das importações de alimentos: se em 1970 repre-sentaram US$ 10 milhões, atualmente o Haiti gasta US$ 300 milhões por ano em alimentos importados. Hoje, o Haiti importa 49% de todo o alimento para seu con-sumo. Nada menos que 82% do valor dos produtos exportados vai para pagar as importações. A pauta de exportação haitiana é composta principalmente por cacau, café e manga.

As exportações haitianas também se compõem de produtos manufaturados das zonas francas, outro resultado da política comercial no Haiti. A estratégia é garantir a acumulação de capital principalmente da indústria têxtil para a exportação, sob controle dos EUA e Canadá, que estão sempre à procura de mão-de-obra barata. Os dominicanos também montam suas fábricas no Haiti para pagar salário 1/3 menor que pagam na República Dominicana.

Para os haitianos, as zonas francas representam a destruição de suas capacida-des agrícolas, diminuindo gradualmente a produção local e aumentando a depen-dência da produção dos países do Norte, como os EUA, por exemplo. Os contratos dessas zonas francas possuem os seguintes itens:

• O Estado não tem direito de determinar os preços dos produtos básicos;• Privatizações;• Eliminação de barreiras ao investimentos dos EUA garantindo que os investido-

res desse país desfrutem de mais direitos que os investidores nacionais;• Eliminação de qualquer barreira à entrada de produtos dos EUA.

Além dos impactos na agricultura, as zonas francas, por serem áreas fora do controle do Estado, violam direitos trabalhistas e direitos humanos fundamentais. Enquanto estivemos no Haiti ouvimos várias denúncias de que os trabalhadores e trabalhadoras eram até probidos de irem ao banheiro e que qualquer tentativa de organização sindical é punida por demissão imediata e a elaboração de uma lista

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contendo os nomes dos envolvidos. Essa lista é circulada em todas as fábricas e outros locais de trabalho no Haiti para garantir que os sindicalistas não possam mais conseguir trabalho. A lista também foi solicitada pela embaixada dos EUA.

Dívida externaSobre a questão da dívida haitiana, foi ressaltado que o montante dos pagamentos

de dívida externa reclamados ao Haiti duplicou entre os anos 1996 e 2003. Durante os anos de 2004 e 2005, em meio à crise social e política, 22% do orçamento gover-namental foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida reclamada. Nos anos de 2005 e 2006, o pagamento dos juros da dívida mais as amortizações alcançou US$ 69.21 milhões, o dobro do valor desse mesmo orçamento destinado a gastos com saúde pública (US$ 33.34 milhões). No orçamento 2006/2007, o pagamento de juros da dívida alcançará US$ 22.98 milhões e as amortizações US$ 47.92 milhões, ou seja, um total de US$ 70.9 milhões

Atualmente, 41% do valor total da dívida externa do Haiti é cobrada pelo BID (US$ 556 milhões de um total de US$ 1.348 milhões). Isso signifi ca que durante 2006/2007, o Haiti terá pago ao BID o valor de US$ 33.82 milhões em juros e amortizações (US$ 11.96 milhões em juros e US$ 21.86 milhões de amortizações). Em julho de 2003, o Haiti pagou US$ 32 milhões ao BID em dívidas atrasadas. Supostamente, esse pagamento deveria dar acesso a novos empréstimos desse organismo. No entanto, os desembolsos do BID não foram reiniciados. Esse pagamento representou uma transferência líquida de capital para o BID. Os recursos foram retirados das reservas internacionais do país, provocando uma grave situação de vulnerabilidade.

Durante a 47ª Assembléia Anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ocorrida em abril de 2006 na cidade de Belo Horizonte, Brasil, os países-mem-bros do BID iniciaram um processo de discussão em torno da anulação da dívida ex-terna da Bolívia, Guiana, Honduras, Nicarágua e Haiti reivindicada pelo BID. Porém, o BID não abriu nenhum processo de consulta formal e efetiva com a sociedade civil. Durante a assembléia mencionada acima, foi criada uma comissão para tratar dessa questão, que se reuniu novamente em 17 de novembro de 2006.

Os resultados dessa reunião foram pífi os. O Brasil e o México concordaram em contribuir no pagamento dos custos da “anulação” das dívidas desses cinco países, porém, há uma controvérsia em torno de qual será o valor anulado (se o estoque da dívida vigente em 2001, 2003 ou 2004). Ou seja: não se trata de anulação, mas de apenas redução da dívida. E no caso do Haiti, mesmo que a dívida com o BID fosse totalmente anulada, ainda restariam os demais 59% da dívida externa haitiana, devi-dos a outros credores (que não o BID). Mas o pior é que tal “anulação” apenas seria efetivada no ano que vem, e está condicionada à obtenção, pelos cinco países, do “selo de aprovação” do FMI, que representa a implementação de pontos da agenda neoliberal. Dos cinco países, apenas o Haiti não possui tal “selo” e, portanto, terá de cumprir as exigências do Fundo para obtê-lo.

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Um dos impactos mais fortes da dívida externa haitiana é sobre a educação. Os representantes haitianos informaram que nada menos que 88% das escolas no Haiti são privadas e somente 8% do orçamento governamental são destinados para edu-cação. Como resultado desses problemas sociais e econômicos, a imigração é muito grande. Dessa forma, para os haitianos, o Haiti se torna um anexo dos EUA perdendo a sua capacidade de defi nir e implementar suas próprias políticas.

É reveladora a fala de um dos participantes do Seminário:

“É tempo de ação: Não basta ter um líder progressista se o povo é desorganizado, nem basta um povo organizado com um líder neoliberal apoiado pelos EUA”

Conclusões do seminárioApós as exposições dos membros da delegação do Jubileu Sul / Américas e dos

movimentos sociais haitianos, os participantes se reuniram em oito grupos para dis-cutir as prioridades de luta para o Haiti. Tais prioridades se traduziram nas delibera-ções fi nais do seminário, dentre as quais a luta contra a ocupação militar (defi nindo-se a data de 5 de dezembro de 2006 como “Dia de Mobilização contra a Ocupação”) e contra o endividamento, que inclui a realização de auditorias e tribunais sobre a dívida haitiana. Foi instalado também um Comitê de Seguimento de organizações Haitianas, que coordenarão as ações decorrentes do seminário. Algumas das ações discutidas foram: conscientizar e sensibilizar a população através da educação popu-lar; elaborar folhetos com informações sobre a Minustah e a dívida; realizar um tribu-nal popular; fazer mobilizações de rua; difi cultar as ações das tropas; fazer petições nacionais e internacionais; elaborar documento contra a ocupação a ser entregue nas embaixadas do Haiti e em vários países; obter informações precisas sobre os malefícios da Minustah, para serem publicadas na imprensa; lutar pela auditoria da dívida; lutar contra a lei Hope (que representa um acordo de livre comércio com os EUA); integrar dados sobre violações contra as mulheres em todas as lutas; fazer constantes denúncias dos maus-tratos por parte das tropas e fortalecer a produção local. É marcante a fala de um participante do seminário: “precisamos comer o que plantamos e plantar o que comemos”.

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Esse evento realizou-se na Faculdade de Etnologia no dia 29 de outubro, foi um seguimento do seminário anterior, e contou com a presença de cerca de 200 pessoas. Inicialmente, houve a exposição de especialistas e integrantes de movi-mentos sociais haitianos, sobre a história e a atual conjuntura local. Os integrantes da delegação do Jubileu Sul / Américas também puderam dar pequenos aportes à discussão, relacionados com os temas tratados no Seminário anterior – no caso do Brasil, os principais pontos colocados foram o papel destruidor das IFIs no Haiti e na região e a auditoria de dívida como instrumento de luta.

Após o evento, o público presente e os expositores realizaram uma manifestação nas ruas de Porto Príncipe, contra a ocupação militar e a dívida. A manifestação pa-rou em frente ao palácio do governo e à embaixada estadunidense. Durante a mar-cha, os ativistas gritaram o lema do Jubileu Sul: “NOU PA DWE, NOU PAP PEYE”, em português “NÃO DEVEMOS, NÃO PAGAMOS”.

Capítulo 2

Foro Público sobre a resistência dos povos do continente frente à dominação imperialista e as Instituições Financeiras Internacionais

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Ainda no dia 29, foi realizado encontro e intercâmbio com representantes de or-ganizações e redes haitianas para realizar um balanço da experiência da Missão Internacional (abril de 2005) e avaliar as perspectivas de continuidade da campanha de solidariedade em nível continental.

Cada país relatou como conduziu a campanha até o momento, incluindo a di-vulgação do relatório da Missão e audiências com autoridades em seu país. Os re-presentantes brasileiros relataram os esforços realizados, como a repercussão do relatório (e outros materiais, como o dvd e cartazes) aqui no Brasil, as audiências com autoridades brasileiras para exigir a retirada das tropas e a anulação da dívida haitiana, e os eventos realizados em várias cidades brasileiras, que contaram com a presença de representantes haitianos.

Os movimentos sociais sugeriram que a Campanha de Solidariedade pudesse reper-cutir nos países os graves fatos ocorridos no Haiti devido à presença das tropas (Minustah – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). Foram relatados exemplos claros de que estas tropas não estão no Haiti para auxiliar o país, mas, sim para ocupá-lo.

Um ponto reafi rmado com muita veemência pelos movimentos haitianos é o de que as tropas estrangeiras se prestam à implantação do modelo neoliberal, uma vez que servem de escudo para as manifestações populares. Desta forma, os patrões, empresários de multinacionais e zonas francas se sentem encorajados e protegi-dos para poder, por exemplo, explorar os trabalhadores, reduzir seus salários, retirar direitos trabalhistas. Os países do Norte e as Instituições Financeiras Multilaterais também se sentem protegidas de eventuais revoltas populares contra o pagamento da dívida ou contra qualquer mudança na política neoliberal. As tropas se utilizam do

Capítulo 3

Reunião sobre a Campanha de Solidariedade com o Povo Haitiano

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argumento de que estão apenas seguindo as diretrizes do governo haitiano, mas na prática estão acima da política nacional.

O exemplo mais claro de como isso ocorre é nas manifestações populares no Haiti que, quando conseguem juntar número razoável de pessoas, são seguidas por veículos e tanques da Minustah, cujos soldados apontam suas metralhadoras para os manifestantes, e tiram fotos dos integrantes das manifestações, numa clara ten-tativa de ameaçá-los.

Outros casos emblemáticos de como a Minustah é uma força de ocupação, e não de ajuda:

• Casos de violência contra as mulheres haitianas, pelas tropas internacionais;• Impunidade, caso haja algum crime cometido pelos soldados, estes não são jul-

gados pelas autoridades haitianas, mas por um foro especial da Minustah; A Minus-tah tem seu próprio mecanismo de direitos humanos – criaram um departamento com 48 funcionários que fazem informes sobre a situação dos direitos humanos no Haiti. São esses informes que são considerados no meio internacional. Por exemplo, a alta comissária de direitos humanos da ONU visitou o Haiti e foi recebida pela Minustah! Isso vai contra um Estado soberano e uma tropa de ajuda!

• O Estado-maior da Minustah se compõe, em sua maioria, de comandantes ori-ginários dos países no Norte, e não dos países latino-americanos. O Estado-maior se compõe de 20 membros: dois são da América Latina (um brasileiro e um do Uruguai) e os outros dos EUA, França, Itália e Canadá;

• A polícia local está sob controle da Minustah, tendo inclusive de consultar as tropas estrangeiras para poder promover seus integrantes para uma patente mais alta ou contratar novos funcionários.

Os movimentos haitianos mencionaram que a Minustah sempre interferia na mí-dia para justifi car suas ações e seduzir a população. Porém, depois dos últimos mas-sacres, eles não se expressam mais publicamente. Ou seja: a máscara está caindo!

Uma das questões mais discutidas para fortalecer a campanha de solidariedade com o Haiti, durante essa reunião, foi a necessidade de agilizar o intercâmbio de in-formações e análises em diferentes idiomas. Como resultado, os movimentos Haitia-nos se comprometeram a elaborar informes sobre os impactos da Minustah, informes esses divididos por nacionalidade dos soldados responsáveis pelos incidentes, para que os países que têm tropas no Haiti possam utilizar essas informações como ins-trumento de luta pela retirada das tropas. A Sofa elabora informes a cada seis meses sobre o impacto da Minustah sobre as mulheres, e esses informes serão enviados para organizações do Jubileu Sul / Américas.

Além disso, discutimos a necessidade de pensar em alternativas e como continuar o trabalho. Caso seja possível retirar as tropas, deve-se pensar em qual segurança o povo haitiano quer para seu país. E caso a dívida seja anulada, deve-se impedir que isso sirva somente aos grupos de poder haitianos. Deve-se ter metas concretas de ação e elaborar propostas alternativas de apoio ao desenvolvimento do Haiti.

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Antes das audiências, representantes do Papda fi zeram um breve relato sobre a situação política do país e o histórico de cada autoridade visitada.

Ministra do Comércio (Maguy Durce)No início da sua carreira, trabalhava com sindicatos, mas com o golpe de Estado

de 1990-1994, ela já não estava mais com o movimento popular. Na última eleição de fevereiro deste ano, que elegeu o presidente – pela segunda vez – René Préval, do partido Lespwa (Esperança), o partido da ministra (Alyans Demokratik - Aliança De-mocrática) ganhou menos de 1% dos votos. No entanto, a comunidade internacional ainda considera o partido uma referência política e o Quadro de Cooperação Interina – composta por ténicos dos EUA, da Usaid, Banco Mundial e do BID para elaborar o plano para a reconstrução do Haiti – insistiu que todos os partidos deveriam fi car com um ministério para garantir um governo de coalizão.

Ministro do Planejamento e Cooperação Externa (Jean Max Bellerive)Pertence ao partido do ex-presidente Aristide (Fanmi Lavalas) e é um pouco mais

aberto aos movimentos populares. Porém, é também aliado dos grupos privados.

Primeiro ministro (Jacques-Edouard Alexis)Designado por Préval, já é um político mais experiente. Antes de ser nomeado pri-

meiro-ministro, ele era ministro de Educação, Juventude e Esporte, e também já foi pri-meiro-ministro no governo de Préval, de 1999 a 2001. Nos anos de 1980, foi o líder da matança generalizada de porcos no Haiti, ocorrida por pressão estrangeira, com base

Capítulo 4

Audiências com autoridades haitianas

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no argumento de que estavam infectados com alguma doença. A promessa era repor os porcos para os (as) camponeses (as), o que não aconteceu, uma vez que os novos porcos não se adaptaram ao clima haitiano. Isso teve grande impacto negativo na pro-dução agrícola do país, e levou à destruição da agricultura familiar para muitos (as).

Durante esse breve relato fomos informados de que os movimentos populares haviam feito um ultimato. Caso o governo não apresentasse propostas para atender às reivindicações do povo haitiano eles iam fazer grandes mobilizações, seqüestros e assassinatos. O dia do ultimato era 30 de outubro de 2006.

O partido Fanmi Lavalas (do ex-presidente Aristide), além de reivindicar a volta de Aristide, reivindica compensações pelos dois anos que fi caram sem trabalho, uma vez que, quando Aristide foi retirado do país, todos perderam seus cargos de trabalho. Como não boicotaram a eleição, exigem que o novo governo atenda suas demandas.

Os haitianos terminaram expressando o que esperavam dessas audiências. Dado que a mobilização social no Haiti não está forte o sufi ciente para pressionar o governo, essa força tem que estar conectada com forças externas. Assim, essas reuniões permitiram que as organizações haitianas demonstrassem que contam com apoio internacional.

Audiência com a Ministra do Comércio e Indústria (Maguy Durce)Nessa audiência, Beverly Keene (Argentina) e outros membros da delegação ex-

puseram a preocupação do Jubileu Sul / Américas com os rumos da política de acor-dos internacionais do Haiti, em especial o projeto dos Estados Unidos para o Haiti: o “Hope” (Haitian Hemispheric Opportunity through Partnership Encouragement), que representa um acordo de livre comércio e visa também, dentre outras coisas, a atração de investimentos para o país, através da instalação de empresas que se utilizariam de mão-de-obra barata haitiana. O mecanismo seria o mesmo das fábricas maquiladoras instaladas no México, como conseqüência do Nafta – acordo de livre comércio na América do Norte: estas empresas importam insumos dos Estados Unidos, usam a mão-de-obra local apenas para montar os produtos, que são reexportados.

A ministra, colocando as prioridades do Ministério como: 1. a promoção do inves-timento e 2. a liberalização comercial, contestou as críticas, afi rmando que essa é a política mais correta para o país, e que devem ser estabelecidas condições atrativas para os investimentos estrangeiros, para que haja desenvolvimento no país. Citou como exemplo as zonas francas, que estariam sendo fi scalizadas pelo governo, no que se refere às condições de trabalho.

Para a ministra, os maiores problemas do Haiti em termos de comércio são a qualidade dos produtos – tanto da produção quanto da distribuição e comercialização – e a falta de equipamento para a produção agrícola. Para superar isso, segundo ela, é necessário atrair investimentos. Para planejar melhor a promoção do investimento

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no Haiti, a ministra contou que o Ministério havia feito uma visita à Argentina onde discutiram com vários economistas sobre o modelo argentino.

Beverly Keene contestou novamente, afi rmando que essa política foi aplicada na Argentina e foi um fracasso, uma vez que redundou recentemente em grave crise econômica. Quando questionada sobre as violações de direitos humanos nas zonas francas e o impacto da política de liberalização comercial na agricultura familiar, a ministra respondeu descrevendo três missões do Plano de Compensação Social que o Ministério está implementando em uma zona franca como projeto piloto. Segundo a ministra, esse plano envolve a construção de casas, distribuição de material es-colar e aula de música para os fi lhos e fi lhas dos trabalhadores. A ministra também mencionou a necessidade de formalizar o mercado informal, regularizar o comércio entre o Haiti e a República Dominicana e combater a corrupção. Terminou dizendo que o Ministério pretende promover uma relação entre investidores, consumidores e trabalhadores para a promoção do desenvolvimento com “cara humana”.

A visão geral dessa audiência foi de que a Ministra não conhece bem a realidade do Haiti e muito menos das zonas francas e que foi colocada no ministério para servir aos interesses do grande capital, que na verdade, é quem governa o Ministério.

Audiência com o Ministro do Planejamento e Cooperação Externa (Jean Max Bellerive)

Para a audiência com o Ministro do Planejamento, a delegação do Jubileu Améri-cas elegeu o tema da auditoria da dívida como prioritário. A Campanha da Auditoria Cidadã da Dívida brasileira expôs a necessidade de uma auditoria da divida haitiana, face à ilegitimidade desta dívida e às experiências bem sucedidas de auditorias em outros países. O Ministro concordou com o pleito, e se comprometeu a abrir todas as informações ofi ciais sobre o endividamento, para os movimentos sociais haitianos. O Ministro ainda expôs graves ilegitimidades da dívida haitiana, como por exem-plo, o fato de que o governo não possui controle sobre o destino dos empréstimos que chegam ao país. Relatou que a maior parte dos recursos destes empréstimos são destinados a ONGs, ou a empreendimentos predefi nidos pelos emprestadores ou doadores internacionais. Dessa forma, os empreendimentos sociais no país não seguem um planejamento, sendo que o único papel que o governo efetivamente desempenha é o pagamento de tais empréstimos. Não há controle governamental sobre a aplicação de tais recursos, e menos ainda uma avaliação global dos efeitos de tais empréstimos sobre o povo haitiano. Alguns exemplos dessa falta de plane-jamento são os casos de fi nanciamentos para escolas que, após construídas, não dispõem de professores para trabalhar.

O ministro acrescentou que necessita da ajuda dos movimentos populares hai-tianos para dar um rumo fi rme ao governo, frente a essa situação. O representante da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil então sugeriu que uma auditoria da dívida haitiana, com participação ativa dos movimentos sociais, poderia permitir esse pro-

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cesso, uma vez que as conclusões da auditoria fortaleceriam eventual decisão de suspensão do pagamento da dívida haitiana. O ministro concordou com a idéia, mas levantou difi culdades para a sua implementação, uma vez que poderia não ser aceita pelo conjunto do governo. Os membros da delegação do Jubileu Sul / Américas su-geriram então que poderiam facilitar esse processo, denunciando as ilegitimidades da dívida haitiana, forçando o governo a realizar a auditoria.

O representante do Equador ressaltou que tal desmonte do planejamento estatal é um resultado da imposição do receituário neoliberal, que prega o livre-mercado. O representante de Honduras também relatou ao ministro a experiência negativa da-quele país com a iniciativa Hipc (Países Pobres Altamente Endividados), patrocinada pelas Instituições Financeiras Multilaterais que, em troca de reduções insignifi cantes da dívida desses países, ainda impôs a eles a agenda neoliberal (como as privatiza-ções e o livre comércio). Tal exemplo negativo foi um alerta para o ministro, uma vez que o Haiti seria alvo de proposta semelhante, na reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em 17 de novembro de 2006.

Audiência com o Primeiro-ministro (Jacques-Edouard Aléxis)O primeiro-ministro iniciou a audiência com longa exposição sobre a história hai-

tiana e atual conjuntura durante a qual ele repetiu várias vezes que os grandes cul-pados pela atual crise que vive o Haiti são os próprios haitianos e que quem teve oportunidade de estudar têm responsabilidade de promover as mudanças. O primei-ro-ministro explicou que o atual governo está em uma batalha para legitimar a vitória do presidente Préval e implementar uma experiência concreta de cooperação. Até agora, explicou o primeiro-ministro, o governo haitiano vem tentando liderar o pro-cesso de cooperação para o desenvolvimento do país, mas o Quadro de Cooperação Interina (QCI) não permite. Isso ocorreu durante a Conferencia Internacional para o Desenvolvimento Econômico e Social do Haiti, coordenada pela QCI, que ocorreu em julho de 2006, na qual o governo haitiano não pôde explicitar seus próprios proble-mas. Para o primeiro-ministro, esse tipo de cooperação internacional não ajuda.

Após, os representantes da delegação do Jubileu Sul / Américas enfatizaram a necessidade da anulação da dívida haitiana e a retirada das tropas da Minustah, plei-tos esses que contaram com a concordância do primeiro-ministro. No entanto, para o primeiro-ministro, antes de retirar as tropas é preciso discutir como, para que daqui a cinco anos não precisarem voltar. Ele lembrou que a imprensa tenta mostrar o povo haitiano como violento, o que é falso. Existem lugares sem polícia e sem violência. Tentam mostrar que o Haiti é uma ameaça para a região, como disse um represen-tante da Minustah para justifi car a presença militar.

Ele ainda revelou que discorda da metodologia da Instituições Financeiras Mul-tilaterais para o país, e que também discorda da postura dos países que defi nem políticas para o Haiti junto às Assembléias da ONU. Segundo o primeiro-ministro, os países ricos procuram difundir que o Haiti necessita da presença de tropas estrangei-

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ras. Também foi pleiteada ao primeiro-ministro a necessidade de auditoria da dívida haitiana, uma vez que este instrumento poderia aumentar o poder político do governo e do povo haitiano frente às Instituições Financeiras Multilaterais.

Foi informado de que, no dia 30 de novembro de 2006, haverá outra Conferencia Internacional para o Desenvolvimento Econômico e Social do Haiti, quando o gover-no Haitiano irá discutir:

• A importância de apoios orçamentários;• A criação de um fundo de reconstrução do país;• A criação de um fundo de garantia para empresas de reconstrução e serviços;• A importância de governança política;• A necessidade de dar mais espaço à sociedade civil;• Necessidade de ter instituições públicas funcionando;• Lutar contra a corrupção;• Necessidade de ter um sistema fi scal eqüitativo.

Para terminar, o primeiro-ministro falou da necessidade de se lutar pelo respeito, de ser capaz de recusar algumas “ajudas” e fazer frente à globalização. O Haiti preci-sa fazer seu dever de casa e lutar para que qualquer “ajuda” internacional passe pelo Estado. Atualmente, 80% vai para as ONGs internacionais. “O povo haitiano é adulto o sufi ciente para levar a cabo seu próprio desenvolvimento, tem de haver confi ança” disse o primeiro-ministro. Segundo ele, para isso é preciso ter cooperação Sul-Sul criando a própria metodologia já que atualmente tudo está baseado na metodologia do Banco Mundial, FMI e BID, ou seja, não existe autonomia. Ele contou que Cuba é atualmente o maior provedor de fundos para o Haiti e que o governo está discutindo uma cooperação ABC – Argentina, Brasil e Chile.

Esse último ponto foi o que mais preocupou os representantes do Jubileu Sul.

Audiência com a Comissão Econômica do SenadoNessa audiência, que contou com a presença de ¼ dos senadores haitianos, o

tema prioritário também foi o da auditoria da dívida, uma vez que o Senado possui a atribuição de aprovar e acompanhar o endividamento externo daquele país. O repre-sentante da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil ressaltou a necessidade do Senado haitiano de realizar a auditoria da dívida haitiana, face às ilegitimidades da dívida fi nanceira e à dívida histórica, social e ecológica que o Norte deve ao povo haitiano. Os senadores concordaram com o pleito, e ainda relataram alguns exemplos de ir-regularidades, como alguns empréstimos que servem para pagar salários altíssimos para funcionários estrangeiros fazerem planos de desenvolvimento para o Haiti. Pla-nos esses piores do que os que poderiam ser feitos pelos próprios haitianos. O repre-sentante de Honduras também alertou os senadores para não autorizar que o Haiti seja submetido a qualquer processo semelhante ao Hipc. Os senadores também se mostraram contrários à presença das tropas militares no Haiti.

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Hoje no Haiti, está em jogo o futuro de toda a América Latina e Caribe. Com esta convicção, nós, representantes das organizações sociais e redes, estudan-tes, trabalhadores, camponeses, sindicalistas, feministas, defensores dos direitos humanos, jovens, habitantes de bairros populares/favelas, cooperativistas, pro-dutores, que viemos de vários países do continente como Argentina, Brasil, Co-lômbia, Cuba, Equador, El Salvador, Honduras, México, Santa Lucía, Trinidad e Tobago, Venezuela e nove departamentos geográfi cos do Haiti (Norte, Noroeste, Nordeste, Platô Central, Artibonite, Oeste, Sul, Sudoeste e Nippes), nos reunimos em Porto Príncipe de 26 de outubro a 02 de novembro de 2006, convocados pelo Jubileu Sul / Américas e pela Plataforma de Ações para um Desenvolvimento Al-ternativo no Haiti, Papda. Durante essa semana cumprimos uma pesada agenda de trabalho que nos permitiu:

• Realizar um intercâmbio de nossas experiências de luta contra a dominação da dívida, as Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), o livre comércio, a militariza-ção, a destruição do meio ambiente, a mercantilização dos recursos naturais e da vida, as privatizações e a guerra, através de um seminário no qual pudemos afi nar e atualizar nossas análises e diagnósticos sobre o sistema capitalista globalizado em sua etapa atual, sua violência destrutiva crescente e seus múltiplos planos como a Estratégia para a Redução da Pobreza (Prsp, sigla em inglês), o Plano Puebla Panamá, o Plano Colômbia, a Iniciativa para Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (Iirsa), os acordos regionais ou bilaterais de livre comércio tais como o Tratado de Livre Comércio da América Central, República Dominicana e Estados Unidos (Cafta – DR, sigla em inglês) e o projeto de EUA para o Haiti, Programa de

Anexo 1

Declaração de Porto Príncipe, Haiti

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Incentivo Hemisférico para a Participação da Sociedade Haitiana (Hope-Haitian He-mispheric Opportunity through Partnership Encouragement).

• Difundir informações sobre o contexto de nossos países e aprofundar com as organizações haitianas os desafi os atuais em um fórum popular que terminou com uma manifestação de protesto em frente do Palácio Nacional, do Ministério da Eco-nomia e Finanças e do Consulado dos Estados Unidos, exigindo a retirada das tropas da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah) e a anulação ime-diata e incondicional da ilegítima e odiosa divida que as IFIs e outros emprestadores bilaterais cobram do Haiti.

• Realizar uma reunião de coordenação regional durante a qual pudemos esta-belecer um balanço de nossas ações no continente e nos diferentes países desde a Assembléia Global do Jubileu Sul de setembro de 2005, além de traçar linhas de trabalho até dezembro de 2007.

• Encontrarmo-nos com autoridades haitianas, como o primeiro-ministro, Jaques Édouard Alexis, vários ministros do governo e a Comissão de Finanças do Senado, proporcionando o desenvolvimento de um amplo consenso sobre a imensa dívida das potências capitalistas para com o povo do Haiti e a imperiosa necessidade de realizar uma auditoria participativa da situação integral de endividamento do país a fi m de estabelecer quem deve a quem e respaldar os esforços do povo e do Estado para recuperar o patrimônio que lhes têm sido roubados.

Através dessas atividades, reafi rmamos e estabelecemos programas comuns de ação que reforçam nossas lutas em todo o continente. Entre eles, trabalhamos sobre a necessária e urgente solidariedade com o povo do Haiti, que vive uma trágica si-tuação de invasão, como também de destruição de sua economia e de suas institui-ções pelas políticas das IFIs – incluindo os programas para Países Pobres Altamente Endividados (Hipc/Ppae) e o Prsp – e de negação de sua soberania por uma custosa e inefi ciente ocupação de quase 10.000 soldados das Nações Unidas. É com a preo-cupação de compartilhar as conclusões e os acordos alcançados e somar apoios que elaboramos a seguinte declaração e chamado para a ação.

Declaramos1. Que a dívida cobrada de nossos países pelas instituições fi nanceiras interna-

cionais, pelos bancos transnacionais, e pelas potências imperialistas do Norte é uma dívida ilegítima, ilegal, odiosa e que foi paga várias vezes. Ao contrário, nossos povos são os credores de enormes dívidas históricas, sociais, culturais e ecológicas; a pu-nição de seus responsáveis nacionais e internacionais e a restauração e reparação das mesmas terão um papel chave para a reconstrução de nossas sociedades. Um exemplo concreto é a longa história de endividamento do Haiti, que remonta a expe-riência colonial e a dívida de independência imposta pela França como compensação pela perda de seus escravos. Esse endividamento continua acumulando até o pre-sente com os custos humanos, sociais, fi nanceiros, ecológicos e culturais resultantes

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da proliferação de zonas francas e outras políticas do Quadro de Cooperação Interna (QCI) desenhado e aplicado pelas IFIs e os chamados “doadores internacionais”, indo contra o direito do povo haitiano de determinar e participar em seu próprio de-senvolvimento. Junto ao povo do Haiti e de todo o Sul dizemos: “não devemos, não pagamos; somos nós os credores”. “Nou padwe, Nou pap peye”.

2. Saudamos a força acumulada pelas mobilizações e campanhas pela vida acima da dívida e seu impacto na crise de legitimidade que agora afeta as institui-ções fi nanceiras internacionais e seu modo de operar. Saudamos a decisão do gover-no da Noruega de anular unilateralmente e incondicionalmente a cobrança de dívidas irresponsáveis e exigimos que restitua o que foi cobrado injustamente e que outros governos sigam seu exemplo, como também aplaudimos o trabalho das organiza-ções sociais equatorianas e norueguesas pela investigação realizada e a pressão exercida sobre o caso.

3. Denunciamos os programas de alívio da dívida do G8 e das IFIs que é igual aos programas Prsp e outras “soluções” oferecidas historicamente pelos em-prestadores, que têm demonstrado sua incapacidade de resolver os problemas do endividamento e impõem a nossos países um modelo de endividamento que aumenta a dependência de nossas nações e agrava a vulnerabilidade de nossas economias. Denunciamos a crescente conversão de dívidas externas em dívidas internas, assim como o impacto de outras modalidades de endividamento como os que resultam das políticas de liberalização comercial e das privatizações ou da prorrogação de jurisdi-ções e a aceitação de processos injustos de arbitragem ou conversão de dívida. O endividamento de nossos países vem sendo parte de uma estratégia de acumulação e dominação por parte do capital transnacional e alertamos em especial o papel das IFIs e os sistemas de endividamento na atual expansão destrutiva das piores indús-trias extrativistas e contaminadoras em nossos países.

4. Saudamos a grande vitória da mobilização de nossos povos contra a Alca. Em Mar Del Plata em novembro de 2005, este projeto de morte foi enterrado e Geor-ge Bush teve que voltar a Washington sem nenhum acordo fi rmado. Denunciamos a estratégia de avanço da mesma agenda da Alca através da OMC e acordos sub-regionais (como o Cafta-DR) ou bilaterais e tratados de proteção aos investimen-tos, assim como a incorporação de elementos de defesa e militarização nos acordos comerciais, como é o caso das novas negociações entre EUA, Canadá e México. Saudamos em especial a mobilização dos povos da Nicarágua e da Costa Rica na última semana do mês de outubro contra os TLC’s e as políticas de privatização e de destruição dos serviços públicos, impostas pelas IFIs.

5. Denunciamos que a Iirsa, criada por iniciativa das IFIs e do grande capital, não é uma alternativa de integração. Essa iniciativa responde à necessidade de criar uma base física para que as corporações possam expandir suas atividades e controlar recursos estratégicos como as fontes de energia, água e biodiversidade, transfor-mando nosso continente em uma plataforma de exportação, completando assim o

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círculo vicioso de endividamento. Existem alternativas de integração e infra-estrutura com menos custos sociais, ambientais e fi nanceiros para os povos. A integração tem que ser dos povos para os povos!

6. Denunciamos o aumento dramático de diversas formas de violência contra as mulheres e suas organizações em todo o continente. As violações como fer-ramenta política se multiplicam. As mulheres são as primeiras vítimas das políticas de endividamento, liberalização, privatização, de destruição dos serviços públicos e de retrocesso no que diz respeito aos direitos humanos fundamentais. A mobilização pela defesa dos direitos das mulheres e a elaboração de novas políticas públicas, colocando como prioridade a defesa das mulheres, constituem pilares de ação dos nossos movimentos.

7. Condenamos as agressões militares da administração Bush e seus cúmpli-ces contra os povos do mundo. Condenamos os processos de militarização em nosso continente dirigidos à expropriação de recursos estratégicos como a água, os recursos energéticos e a biodiversidade, e à contenção dos processos de mo-bilização popular que buscam a reconquista da nossa soberania e a defesa dos nossos direitos. A presença militar no Paraguai, na Tríplice Fronteira, as novas bases militares na América Latina, as invasões disfarçadas pelo guarda-chuva das Nações Unidas, como no Haiti, a criminalização de nossos movimentos fa-zem parte dessa ofensiva de re-militarização do continente como eixo da atual estratégia de dominação. Condenamos também a situação de ocupação colonial que continuam vivendo vários povos na região, entre eles os da Guiana Francesa, Martinica, Porto Rico, Guadalupe e Curazao. Rechaçamos em especial a ativa participação dos governos e das tropas de muitos países da América Latina na ocupação Militar do Haiti. Por isso, dizemos: Não à militarização, não às tropas de ocupações militares; não à presença da Minustah no Haiti! Viva a autode-terminação de nossos povos!

8. Declaramos nossa profunda e ativa solidariedade com o povo haitiano que, no princípio do século XIX tentou globalizar os direitos humanos com a espetacular vitória contra o exército francês e o jugo escravista e seu decidido apoio a todos os processos de libertação da região. Hoje, o povo haitiano vive condições muito difí-ceis, produto de 514 anos de invasões e saque, e da aplicação de políticas de ajuste estrutural a partir do fi nal da década de 1980. Nossos movimentos e redes estão decididos a apoiar a luta desse valente povo por sua segunda independência.

9. Saudamos as recentes conquistas dos nossos povos, como a vitória eleito-ral de Evo Morales que desencadeou um esperançoso processo de recuperação da soberania do povo boliviano sobre seus recursos estratégicos e o manifesto apoio do povo venezoelano ao processo bolivariano. Saudamos os múltiplos processos de resistência dos povos indígenas, dos camponeses (as), das mulheres, das trabalha-doras e trabalhadores, dos movimentos de favelas, dos jovens que reafi rmam nossa vontade de pôr fi m às políticas neoliberais e construir outro mundo possível.

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10. Apoiamos as novas formas de resistência que estão se articulando ao longo de todo o continente, contra os megaprojetos econômicos de extração de recursos naturais em grande escala, como são as centrais hidrelétricas, os projetos de mineração a céu aberto, os monocultivos de exportação com transgênicos e a exportação de hidrocarbonetos. Nossas organizações sociais, criminalizadas pelo estado de ocupação militar, resistem contra novas formas de deslocamento mas-sivo, que trazem conseqüências irreversíveis para a natureza e para as culturas e povos americanos.

11. Denunciamos as agressões do imperialismo contra o povo cubano. Sauda-mos a resistência heróica desse povo caribenho. Denunciamos o bloqueio criminoso imposto há mais de 40 anos pelo imperialismo e que tem um custo humano elevado. Estamos seguros de que, no próximo dia 8 de novembro, a Assembléia Geral das Nações Unidas condenará de maneira quase unânime, mais uma vez, esse bloqueio que é uma violação fl agrante e inaceitável das convenções internacionais. Demanda-mos a liberação imediata dos cinco cubanos presos injustamente e ilegalmente pelo império há 8 anos. Condenamos o plano para reforçar o bloqueio e as novas amea-ças contra a soberania do povo cubano. Viva Cuba revolucionária e soberana!

Compromissos e chamados1. Exigimos a anulação total e incondicional da dívida cobrada dos nossos

países. Exigimos que nossos governos repudiem essas dívidas ilegítimas e odio-sas e que apliquem medidas imediatas de suspensão dos pagamentos. Exigimos a realização de amplas auditorias participativas sobre os processos de endivida-mento de nossos países para estabelecer quanto já foi pago a mais e documentar a imensa dívida histórica, social, cultural e ecológica contraída com nossos povos. Impulsionaremos várias estratégias de luta para resistir ao aprofundamento do sa-que instrumentado através do endividamento e das políticas das IFIs, e conquistar a reparação dos danos que seguem acumulando-se há 514 anos de colonialismo e dominação imperialista, incluindo a intensifi cação do trabalho de sensibilização e educação sobre a ilegitimidade da dívida e as IFIs. Chamamos todas e todos a se unirem nessa luta.

2. Demandamos, como fez o presidente Evo Morales na última Assembléia Geral do BID, em Belo Horizonte, a anulação imediata, total e incondicional da dívida cobrada dos cinco países mais pobres do continente (Haiti, Nicarágua, Hondu-ras, Bolívia e Guiana) por esse organismo regional. Mobilizaremo-nos para que as vozes dos movimentos sociais do continente sejam ouvidas na ocasião da próxi-ma reunião do BID que analisará esse problema, prevista para o dia 17 de novembro de 2006, em Washington, e em todos os outros momentos necessários.

3. Comprometemo-nos a aprofundar, em cada um de nossos países e regionalmen-te, a construção de alternativas de fi nanciamento que sejam soberanas e solidárias, incluindo o desenvolvimento de políticas fi scais eqüitativas, de restituição e reparação

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por parte dos responsáveis pelas dívidas acumuladas contra nossos povos e de co-operação solidária entre os países do Sul. Nesse sentido, chamamos todos os povos do continente para se mobilizarem para preparar e participar da Cúpula Social para a Integração dos Povos, em Cochabamba de 6 a 9 de dezembro de 2006. Será uma oca-sião-chave na nova Bolívia para defi nir um verdadeiro projeto de integração baseado nos direitos e interesses estratégicos das grandes maiorias exploradas e excluídas de nossos países. A refl exão coletiva e as novas políticas dirigidas à mudança das rela-ções de força no sistema econômico mundial, como por exemplo, a retirada ou o fi m das instituições fi nanceiras internacionais existentes e a implementação de um banco solidário do Sul, são parte das decisões estratégicas a tomar nesta cúpula, alertando contra a mera reprodução no Sul dos mesmos esquemas de dominação e espoliação que até hoje fazem nossos povos sofrerem nas mãos dos centros de poder no Norte.

4. Fazemos uma chamada ao desenvolvimento e fortalecimento de todos os pro-cessos de cooperação econômica baseada em uma autêntica solidariedade. Saudamos as conquistas da Alternativa Bolivariana para a América (Alba) e a siste-matização do Tratado de Comércio dos Povos (TCP) e pedimos o aprofundamento e expansão dessas lógicas.

5. Saudamos a resistência e a criatividade dos nossos povos através de novas propostas e inovações. Pedimos o fortalecimento e a expansão das maravilhosas ex-periências de economia solidária, do movimento cooperativista, das empresas recuperadas e autogeridas pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores e chama-mos todos os nossos movimentos e redes a apoiar e impulsionar processos similares em cada um de nossos países.

6. Somamo-nos à Vigília Continental pela Paz, contra a Militarização do pró-ximo 18 de novembro, para denunciar a militarização, a guerra e a violência que o governo dos Estados Unidos vem exercendo sobre diferentes povos do mundo e solicitamos que todos e todas incorporem em suas ações e mobilizações o chamado pela retirada das tropas estrangeiras do Haiti.

7. Convocamos a realização de um dia continental de solidariedade com a luta do povo Haitiano pela conquista de sua segunda independência no dia 5 de dezembro de 2006, aniversário da resistência camponesa e estudantil haitia-na contra as invasões e dominações. Convidamos todas as redes, os movimentos e as organizações progressistas do continente a realizarem ações de mobilização signifi cativa para demandar a saída das tropas da Minustah do território haitiano, a anulação total, imediata e incondicional da dívida externa cobrada desse país e a implementação de projetos autênticos de solidariedade com o povo haitiano sobre a base de suas necessidades, direitos e propostas. Apoiamos a luta iniciada pelos es-tudantes da Universidade Pública do Haiti e os movimentos sociais contra a presença de tropas estrangeiras. Comprometemo-nos, conjuntamente com os movimentos so-ciais do Haiti, a continuar desenvolvendo essa campanha de solidariedade nos níveis nacional, regional e internacional, durante o ano de 2007.

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8. Convocamos uma grande mobilização no continente para apoiar a realização do VII Fórum Social Mundial em Nairóbi, de 20 a 25 de janeiro de 2007. Esse FSM será uma ocasião privilegiada para tecer laços e construir articulações entre os movimentos sociais que lutam contra a globalização capitalista na África, na Ásia e na América Latina e Caribe, junto com os movimentos e povos do Norte que com-partilham o mesmo sonho de vida digna, soberania e justiça para todas e todos. Uniremos nossas lutas pelo repúdio das dívidas fi nanceiras ilegitimamente cobradas e o reconhecimento, restituição e reparação das dívidas das quais os povos são credores. Com esse mesmo espírito, chamamos os movimentos e organizações da região a participar ativamente na preparação e realização da Jornada Mundial de Mobilização contra a Guerra e o Neoliberalismo por Outro Mundo Possível, que se realizará em janeiro de 2008.

Pelo fi m da dívida externa e do roubo de nossas riquezas!Não devemos, não pagamos, nós somos os credores!Nou padwe, nou pap peye!Fora a ocupação militar do Haiti!Fora a invasão militar dos yankees do Iraque, as agressões de Israel contra

o Líbano e contra o povo palestino!Viva as alternativas populares!Viva a soberania de todos os povos!Viva Cuba revolucionária e o processo bolivariano!Viva a solidariedade e a integração solidária entre os povos oprimidos!

Porto Príncipe, 2 de novembro de 2006.

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Prezado Sr. Presidente Banco Interamericano de Desenvolvimento Luis Alberto Moreno,

É do nosso conhecimento que durante a 47ª Assembléia Anual do Banco Interameri-cano de Desenvolvimento (BID), ocorrida em abril de 2006, na cidade de Belo Horizonte, Brasil, os países-membros do Banco iniciaram um processo de discussão em torno da anulação da dívida externa da Bolívia, Guiana, Honduras, Nicarágua e Haiti reivindicada pelo Banco. Essa iniciativa é de suma importância já que qualquer proposta de redução ou anulação da dívida externa dos países da América Latina e Caribe tem que incluir o BID já que até o fi nal deste ano , Bolívia, Guiana, Honduras, Nicarágua e Haiti terão sido obrigados a pagar mais de US$ 313 milhões em serviços da dívida demandada pelo BID, mais que US$320 milhões em 2007 e até US$ 361 milhões até 2016 – valores que superam os disponíveis para a implementação de políticas sociais.

No caso do Haiti, o país mais pobre da região, por exemplo, a situação de endivi-damento é crítica. O montante dos pagamentos de dívida externa reclamados ao Haiti duplicou entre os anos de 1996 e 2003; durante os anos de 2004 e 2005, em meio a crise social e política, 22% do orçamento governamental foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida reclamada. Nos anos de 2005 e 2006 o pagamento dos juros da dívida mais as amortizações alcançou US$ 69.21 milhões, o dobro do valor desse mesmo orçamento destinado a gastos com saúde pública (US$ 33.34 milhões). No or-çamento de 2006 e 2007 o pagamento de juros da dívida alcançará US$ 22.98 milhões e as amortizações US$ 47.92 milhões, ou seja, um total de US$ 70.9 milhões.

Anexo 2

Carta ao BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

Referente: Anulação da dívida da Bolívia, Guiana, Honduras, Nicarágua e Haiti 15 de novembro de 2006,

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Atualmente, 41% do valor total da dívida externa do Haiti é cobrada pelo BID (US$ 556 milhões de um total de US$ 1.348 milhões). Isso signifi ca que durante 2006 e 2007, o Haiti terá pago ao BID o valor de US$ 33.82 milhões em juros e amortizações (US$ 11.96 milhões em juros e US$ 21.86 milhões de amortizações). Em julho de 2003, o Haiti pagou US$32 milhões ao BID em dívidas atrasadas. Supostamente, esse pagamento deveria dar acesso a novos empréstimos deste organismo. No en-tanto, os desembolsos do BID não foram reiniciados. Esse pagamento representou uma transferência líquida de capital para o BID. Os recursos foram retirados das reservas internacionais do país, provocando uma grave situação de vulnerabilidade.

Lembramos que esse país tem uma renda per capita que representa 15% da média latino-americana, menos de uma pessoa entre 50 tem emprego fi xo, menos de 40% da população tem acesso à água potável, o analfabetismo atinge 45% da po-pulação e a expectativa de vida caiu de 52,6 anos em 2002 para 49,1 anos em 2003. Esse quadro é resultado de um longo processo de deterioração e crise estrutural, agravada pela aplicação dogmática de várias políticas de “estabilização” e “ajustes” impostos pelas Instituições Financeiras Multilaterais com o acordo de sucessivos go-vernos haitianos. O povo haitiano é o credor!

Enquanto que reconhecemos a importância da decisão do BID de estudar a possibi-lidade de anular a dívida cobrada desses cinco países, lamentamos o fato de que o BID ainda não tenha aberto nenhum processo de consulta formal e efetiva com a sociedade civil. Sabemos que, durante a assembléia mencionada acima, foi criada uma comissão para tratar dessa questão e que esta realizou sua primeira reunião no dia 17 de julho deste ano. Entendemos que agora essa mesma comissão terá sua segunda reunião no próximo dia 17 de novembro. É inaceitável que o Banco realize essas reuniões decisórias sem incluir a participação de organizações dos cinco países diretamente impactados por essa proposta como também dos outros países da região que serão indiretamente afetados. Essas organizações, muitas das quais realizam um importante trabalho no que diz respeito ao monitoramento das dívidas externas e internas dos países do Sul, precisam ser ouvidas, pois suas propostas e preocupações abrangem aspectos da questão que não são contemplados pelo Banco.

Preocupa-nos que a atual proposta a ser discutida na próxima reunião do BID não considera a possibilidade de anulação total das dívidas e que a iniciativa possa resultar em condicionalidades futuras para os cinco países e outros tomadores de empréstimos do Banco. Questionamos o fato de que as dívidas do Capital Ordinário (CO) não estão contempladas, quando teriam um impacto imediato maior nos indicadores de serviço da dívida e, portanto, no montante de recursos disponíveis para os prementes gastos sociais. Também sabemos que, dentro da proposta do Banco, a dívida a ser conside-rada é a de 2003, quando deveria ser a dívida atual. Com esse suposto cancelamento de US$716 milhões para Honduras, de US$ 517 milhões para Nicarágua, de US$ 382 milhões para Bolívia, de US$ 326 milhões para Haiti e de US$ 248 milhões para Guia-na, os cinco países continuarão com uma dívida de US$ 1.623 milhões, segundo dados

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de dezembro de 2005. Mesmo assim, o BID pretende implementar esse cancelamento insufi ciente somente em 2007 sem data defi nida, quando por sua urgência deveria ser implementado já. Esses países não podem mais esperar!

Exigimos que a dívida cobrada pelo BID a esses cinco países seja totalmente anu-lada imediatamente sem condicionalidades. No caso específi co do Haiti, exigimos que o país não seja obrigado a cumprir as condições do programa Países Pobres Altamente Endividados (Ppae/Hipc) e/ou do Programa Estratégico de Redução da Pobreza (Prsp), que têm causado tantos impactos nefastos nos outros quatro países. Exigimos que o BID se submeta a um processo de auditoria externa dessas dívidas cobradas dentro do marco de uma auditoria geral das dívidas cobradas de todos os países da América Latina e Caribe para verifi car os reais impactos nas condições de vida dos povos, os termos, condições e benefi ciários dos contratos, assim como os valores já pagos. Entendemos que na realidade são os povos desses cinco países e de toda a região que são os verdadeiros credores e que a única dívida legítima a ser cobrada é a dívida histórica, social, cultural e ecológica para com nossos países.

A situação atual do Haiti demonstra fi rmemente a importância de reivindicar a dívida histórica, social, cultural e ecológica. Isso remonta à experiência colonial e o bloqueio econômico de dez anos imposto pela França que só foi levantado quando os governantes do Haiti decidiram concordar com o pagamento de 150 milhões de franco-ouro (US$ 22 bilhões em valores atuais) em compensação pela perda de seus escravos. Essa dívida continua acumulando custos humanos, sociais, fi nanceiros, ecológicos e culturais resultantes da proliferação de zonas francas e de outras políti-cas elaboradas e implementadas pelas Instituições Financeiras Multilaterais e pelos ditos “doadores internacionais”, violando o direito de autodeterminação do povo hai-tiano, o direito de defi nir suas próprias políticas, sua trajetória e seu destino.

Consideramos que todas as Instituições Financeiras Multilaterais têm grande res-ponsabilidade no crescimento das dívidas fi nanceiras, sociais culturais e ecológicas dos nossos países e, assim, são os países que se benefi ciaram delas que devem pagá-las. Os Estados Unidos da América, como maior acionista do BID, é um dos paí-ses mais responsáveis pela conjuntura regional atual e, assim, devem ser encarrega-dos do reabastecimento dos fundos do banco. Os países tomadores de empréstimos não devem ter que arcar com nenhuma conseqüência negativa desse processo.

Entendemos que os programas de “perdão” da dívida promovidos pelo G8 e pelas Instituições Financeiras Multilaterais demonstram uma incapacidade de resolver os problemas de endividamento dos nossos países. Pelo contrário, favorecem um mo-delo que aumenta a dependência das nossas nações e agrava a vulnerabilidade das nossas economias. Portanto, o BID não deveria adotar o mesmo modelo. Nesse sen-tido, demandamos do BID a anulação total e incondicional da dívida do Haiti, Bolívia, Guiana, Honduras e Nicarágua, propiciando uma determinação soberana por parte dos governos desses países em relação ao destino eventual dos recursos que não gastarão com os serviços da dívida anulada.

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Exigimos a realização imediata de uma reunião coletiva com organizações e mo-vimentos sociais da sociedade civil de diversos países da região diretamente e in-diretamente impactados pela proposta de cancelamento da dívida do BID para que possamos colocar efetivamente nossas demandas e preocupações conforme men-cionadas nesta carta.

Aguardamos uma pronta resposta,Atenciosamente, Beverly Keene - Coordenadora Jubileu Sul / Américas

Organizações assinantes:Jubileu Sul/Américas;Aliança dos Povos do Sul Credores da Dívida Ecológica;Dialogo 2000, Argentina;Rede Jubileu Sul - Campanha Auditoria Cidadã da Dívida, Brasil;Rede Jubileu Sul – Rede Brasil sobre as Instituições Financeiras Multilaterais, Brasil;Mesa de Trabalho Mulheres e Economia, Colômbia;Centro Memorial Martin Luther King, Cuba;Ação Ecológica, Equador;Rede Sinti Techan, El Salvador;Plataforma de Ação por um Desenvolvimento Alternativo (Papda), Haiti;Associação de Profi ssionais Haitianos Formados em Cuba (Aprohfoc), Haiti;Konbit Fanm, Haiti;Grupo de Apoio aos Refugiados e Repatriados (GARR), Haiti;Grupo Jovens Sabanet (Rajes), Haiti;Movimento Democrático Popular (Modep), Haiti;Chandel, Haiti;Centro de Busca de Ação para o Desenvolvimento (CRAD), Haiti;Instituto Cultural Karl Léveque (ICKL), Haiti;Solidariedade de Mulheres Haitianas (Sofa), Haiti;Bloque Popular, Honduras;Cafra, Santa Lucía;Fitun, Trindade y Tobago;Compa, Venezuela.

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