Se chegar aos 100 anos, hão de continuar a dizer- -me que...

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Tiragem: 24814 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 36 Cores: Cor Área: 25,50 x 30,00 cm² Corte: 1 de 3 ID: 67900306 24-01-2017 Começo de conversa Maria Teresa Horta "Se chegar aos 100 anos, hão de continuar a dizer- -me que queimei sutiãs. Não queimámos nada" PERFIL > Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros nasceu em Lisboa em 1937. > Começou a tra- balhar em jornalis- mo n'A Capital, a que se seguiram a revista Mulheres, O Diário e Diário de Notícias. > Já era um nome reconhecido no campo da poesia, associada ao grupo Poesia 81, quando em 1971 publicou com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno as Novas Cartas Portuguesas que causou um enor- me sobressalto e muita violência. Publicou depois muita poesia e ficção - com des- taque para As Luzes de Leonor, um trabalho a que se entregou ao Longo de 13 anos. O feminis- mo é uma das grandes causas de toda uma vida.

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Âmbito: Informação Geral

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Começo de conversa Maria Teresa Horta

"Se chegar aos 100 anos, hão de continuar a dizer- -me que queimei sutiãs. Não queimámos nada"

PERFIL

> Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros nasceu em Lisboa em 1937. > Começou a tra-balhar em jornalis-mo n'A Capital, a que se seguiram a revista Mulheres, O Diário e Diário de Notícias. > Já era um nome reconhecido no campo da poesia, associada ao grupo Poesia 81, quando em 1971 publicou com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno as Novas Cartas Portuguesas que causou um enor-me sobressalto e muita violência. Publicou depois muita poesia e ficção - com des-taque para As Luzes de Leonor, um trabalho a que se entregou ao Longo de 13 anos. O feminis-mo é uma das grandes causas de toda uma vida.

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ANA SOUSA DIAS

O pretexto da entrevista foram três no-vidades: a reedição do romance esgo-tado Ema (1984), o lançamento de A Dama e o Unicórnio em França e o prémio de tradução de poesia do The Guardian. Maria Teresa Horta, frioren-ta num dia de muito frio, fala sempre com entusiasmo. De poesia, de femi-nismo, da família. E de futebol. A ver-são completa da conversa está em www.dn.pt. O tratamento por tu vem da tradição- a entrevistada é jornalis-ta como a entrevistadora.

O romance Ema, agora reeditado, mantém uma atualidade infeliz pois é sobre a violência dentro do casaL São várias violências, ao longo das ge-rações. A Ema é uma mulher, várias mulheres nela, e não tem uma data de-

terminada. Ao longo dos séculos vão sendo vítimas de uma violência silen-ciosa, dentro da casa onde têm o seu mundo. E não sabemos qual delas está a falar. Só uma vai aparecendo ao longo do livro como atual - nos anos 1980, quando escrevi. Ela é inexistente dian-te de um homem intelectual, culto, com um escritório. Existe a ideia falsa de que as mulheres são espancadas ou violadas por homens incultos, de um estrato social baixo, e que os outros são maravilhosos. Não é verdade. Tanto ba-te na mulher um médico, um advoga-do, um político, como um operário ou um camponês. A mulher sempre apa-nhou e foi violentada. E as pessoas não encaram a violência do que se passa na cama, no ato sexual com o marido. Ain-da é difícil de perceber. Não estou a revelar um segredo, por-que surge logo na primeira página: esta mulher mata o marido. Mata e ama-o. É uma violência recôn-dita que parte da obsessão da paixão por um homem que não lhe liga. Ela quer sair de casa mas, no fundo, não quer sair. Isso passa-se ainda hoje, mes-mo com mulheres aparentemente li-bertas e que até estão na política, traba-lham e têm um ordenado. Até ao 25 de Abril, poderiam ter isto tudo mas os maridos podiam ir receber o ordenado delas ou acabar com o contrato de tra-balho da mulher. Os direitos das mulheres foram sem-pre uma paixão tua, masA Dama e o Unicórnio foi umarevelação.Val ser editadoem França? Eu entrei no Museu de Cluny tem Paris] tinha 17 anos. Havia uma sala enorme com tapeçarias à volta. À quinta ou sex-ta tapeçaria de batalhas, naturezas--mortas, paisagens, de repente apare-cem uma mulher a tocar harpa e uma dama a escutar e a tentar dar-lhe qual-quer coisa. Era um universo oposto do outro, muito feminino. Custou-me sair dali e é sempre a mesma coisa, não consigo sair, fico colada. Mais à frente, outra tapeçaria com as mesmas mu-lheres. Comecei a andar cada vez mais depressa para ver se havia mais. E ha-via, pasmosamente divididas, sendo claramente um núcleo que pertence à mesma história. Deviam estar juntas. Neste momento estão juntas? Sim, estão num sítio muito bonito, é um deslumbramento. Isso aconteceu quando eras jovem mas só escreveste agora, em 2012. Eu fazia poesia desde os 13 anos. Que-ria publicar mas nem sabia se deveria. Fiz uma jura a mim mesma: vou fazer qualquer coisa com isto, qualquer dia, seja o que for. Quero escrever sobre isto. Quando recebi a notícia de que ia ser publicado em França senti que era um sonho que se tinha realizado. Continuas a escrever todos os dias? Cada vez mais, nunca escrevi tanto. Te-nho de andar sempre com um papeli-nho. Quando vou para a cama levo tan-tos livros que o Luís diz "lá vem ela com a biblioteca". Os meus livros de poesia estão cheios de poemas. Depois de es-crever meto-os nas minhas autoras e nos meus autores queridos para eles to-marem conta.

"Ema mata e ama-o. Ela quer sair de casa mas, no fundo, não quer sair. Isso passa-se ainda hoje, mesmo com mulheres aparen-temente libertas"

"Ah, alguém que me deixa dizer isso, finalmente! Ninguém queimou sutiãs. Era uma coisa caríssima. Na nossa idade ninguém tinha sutiãs"

Quando o Benfica joga fico tão inquieta que não sou capaz de escrever poesia. Ler, nem uma linha. Sinto--me mal do coração. Vou engomar"

E como foi com o prémio Stephen Spender de 2016 do The Guardian? Foi uma surpresa completa. Não sabia nada. Falaram-me na Lesley Saunders, uma poetisa que gostava da minha poesia. Encontrámo-nos e foi um coup de foudre. Ela traduziu-me e ganhou o prémio da melhor tradução. E um pré-mio com muito prestígio em Inglaterra. É professora de Latim e adora o som da língua portuguesa. Pediu-me que lesse três poemas... Eu tenho uma mania: só eu é que leio a minha poesia, só eu sei onde paro. Nunca fico a ouvir, sofro imenso e sou muito malcriada. Já me aconteceu em direto na televisão al-guém ler e eu dizer-está a ler tão mal, desculpe, dê cá. Coisas horríveis de que depois me arrependo e peço desculpa. Fazes 80 anos neste ano. Como estás a viver isso? Ah, não vejo nada, não acredito. Acho que a minha mãe se enganou. Não me sinto nada assim, sinto-me igualzinha e muito mais malcriada e rebarbativa. A tua vida continua a centrar-se na poesia? A minha vida interior centra-se na poe-sia e sempre se centrou. Mas levanto--me todos os dias às seis e meia da ma-nhã, desde pequenina, quero levan-tar-me antes de toda a gente, nunca percebi porquê. Fiz 14 anos de psicaná-lise e fiquei sem saber porquê. E continuas a tratar de tudo em casa? Costumo dizer às minhas amigas-sete levantares às sete da manhã, pensa em mim e eu estou a passar a ferro. Estou a passar as camisas do Luís. Porque essas coisas não vão para a máquina.

Aí está uma coisa que foge do estereó-tipo da feminista. As pessoas não sabem o que é o femi-nismo. E não andaste a queimar sutiãs? Não. Ah, alguém que me deixa dizer isso, finalmente! Ninguém queimou sutiãs. Era uma coisa caríssima. Nin-guém usava, na nossa idade ninguém tinha sutiãs. Nós tínhamos combinado fazer uma coisa divertida. Foi em janei-ro de 1975. Pensámos: porque é que não vamos fazer no Parque Eduardo VII uma fogueirinha e queimar os estereó-tipos -o véu da noiva... Queimaram um véu de noiva? Não chegámos a queimar nada porque ninguém nos deixou nem acender um fosforozinho. Porque a Helena Vaz da Silva fez o grande favor de pôr na pri-meira página do Expresso, à direita-"fe-ministas vão fazer stripteaseno Parque Eduardo VII". Se há coisa que as femi-nistas detestam é o striptease. Fomos para casada Madalena Barbosa, do Mo-vimento de Libertação das Mulheres [promotor da iniciativa], que morava no topo do Parque EduardoVIL Levávamos as crianças, porque era uma coisa di-vertida. Uma ia vestida de dona de casa e ia queimar a vassoura, outra de vamp, eia queimar o turbante e o salto alto. E acabaram por não queimar nada? Cheguei à janela e só via subir homens. À porta estavam umas meninas parvas com cartazes contra o aborto. Coitadi-nhas, foram logo as primeiras que apa-nharam. Que coisa horríveL Levávamos uns fosforozinhos e umas aparas de madeira- foi tudo pelo ar. Metemos as crianças numa carrinha e os homens começaram a tentar virá-la. Fugimos com elas. Houve duas coisis muito bo-nitas. O Adelino Gomes, que estava a fa-zer a reportagem, disse "é a primeira vez que sinto vergonha de ser homem". E o Augusto Abelaira, diretor d' OSécu-lo, escreveu um texto sobre isso. Foi assim que nasceu a lenda? Nunca houve tanto homem junto em Lisboa, nem no futebol porque agora fe-lizmente já lá estão mulheres- eu gosto muito de futebol. Acho que se eu che-gasse aos 100, estaria velhinha, velhinha, e haviam de me dizer "quando tu quei-maste sutiãs no Parque EduardoVII..." Gostas de futebol? Gosto imenso de futebol. Mas ainda gosto mais do Benfica. Acho que já nas-ci do Benfica. Eu sou sócia, os meus ne-tos, o meu filho também. A minha fa-mília, de um lado ou de outro, é toda do Benfica. Apaixonadamente. Quando vês um Jogo gritas? Farto-me de engomar. Fico tão inquieta que não sou capaz de escrever poesia. Ler, nem uma linha. Sinto-me mal do co-ração, não aguento mais, vou para den-tro. Depois passo a vida: e então, e então? Aí vou engomar, porque não penso. Dá--me jeito, fico com a roupa engomada, distraio-me. Engomo desde pequenina. Tenho uma carta escrita à minha mãe, que se tinha ido embora de casa, em que digo: são seis e meia da manhã e já me ensinaram aengomar, alavareaborrifar. Isto é mesmo um começo de conversa. Mas é melhor fazer poesia. Eu gosto de fazer poesia. Eu sou a minha poesia.

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País: Portugal

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Corte: 3 de 3ID: 67900306 24-01-2017

ANA SOUSA DIAS ENTREVISTA

Maria Teresa Horta: "Ninguém queimou sutiãs. Era uma coisa caríssima" PÁGS. 38 E 37