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Odontologia em Sade ColetivaMANUAL DO ALUNO

ORGANIZADORES MARIA ERCILIA DE ARAUJO ANTNIO CARLOS FRIAS SIMONE RENN JUNQUEIRA

SO PAULO 2007

UNIVERSIDADE DE SO PAULO Faculdade de Odontologia Disciplina de Sade Coletiva em Odontologia APRESENTAO Este Manual do Aluno contm os textos de apoio a serem utilizados no desenvolvimento das atividades que integram o programa da disciplina: Sade Coletiva em Odontologia. O programa constitudo por atividades tericas realizadas em sala de aula onde imprescindvel a participao pr-ativa de cada um dos alunos e atividades prticas que acontecem junto a espaos sociais. As atividades foram programadas de modo a valorizar os conhecimentos adquiridos pelo aluno ao longo da formao, complementando-os. Para maior aproveitamento no aprendizado, adota-se a metodologia construtivista que uma tima ferramenta para se trabalhar os problemas complexos - desestruturados, os problemas da vida real, orientada tanto s questes tericas quanto ao contexto de aplicao de conhecimentos. Assim, as aulas tericas, em sua forma clssica, so reduzidas ao mnimo e as turmas so divididas para valorizar as discusses e reflexes inerentes a esta metodologia de ensino. Esta opo pedaggica implica, todavia, a preparao de materiais de apoio ao trabalho do aluno. esta a finalidade deste Manual. Os textos que o compem, cuja reproduo para qualquer outra finalidade requer autorizao dos autores, sero utilizados gradativamente ao longo do desenvolvimento do programa da disciplina. oportuno reafirmar, a propsito, que a utilizao deste Manual pelo aluno no o dispensa, obviamente, da leitura dos ttulos da literatura bsica relacionada e de consulta bibliografia complementar, nele identificada. So Paulo, fevereiro de 2007. Maria Ercilia de Araujo

COLABORADORES: Celso Zilbovicius Fausto Souza Martino

Julie Silvia Martins Luciana Hatsue Isuka

O CONCEITO DE SADE E A 1 DIFERENA ENTRE PREVENO E PROMOO Dina Czeresnia1

Esse texto uma verso revisada e atualizada do artigo "The concept of health and the diference between promotion and prevention", publicado nos Cadernos de Sade Pblica (Czeresnia, 1999). In: Czeresnia D, Freitas CM (org.). Promoo da Sade: conceitos, reflexes, tendncias. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2003. p.39-53.

O discurso da sade pblica e as perspectivas de redirecionar as prticas de sade, a partir das duas ltimas dcadas, vm articulando-se em torno da idia de promoo da sade. Promoo um conceito tradicional, definido por Leavell & Clarck (1976) como um dos elementos do nvel primrio de ateno em medicina preventiva. Este conceito foi retomado e ganhou mais nfase recentemente, especialmente no Canad, EUA e pases da Europa ocidental. A revalorizao da promoo da sade resgata, com um novo discurso, o pensamento mdico social do sculo XIX expresso na obra de autores como Virchow, Villerme, Chadwick e outros, afirmando as relaes entre sade e condies de vida. Uma das motivaes centrais dessa retomada foi a necessidade de controlar os custos desmedidamente crescentes da assistncia mdica, que no correspondem a resultados igualmente significativos. Tornou-se uma proposta governamenta1, nestes pases, ampliar, para alm de uma abordagem exclusivamente mdica, o enfrentamento dos problemas de sade principalmente das doenas crnicas em populaes que tendem a se tornar proporcionalmente cada vez mais idosas (Buss, 2000). A configurao do discurso da 'nova sade pblica' ocorreu no contexto de sociedades capitalistas neoliberais. Um dos eixos bsicos do discurso da promoo da sade fortalecer a idia de autonomia dos sujeitos e dos grupos sociais. Uma questo que se apresenta qual concepo de autonomia efetivamente proposta e construda. A anlise de alguns, autores evidencia como a configurao dos conhecimentos e das prticas, nestas sociedades, estariam construindo representaes cientficas e culturais, conformando os sujeitos para exercerem uma autonomia regulada, estimulando a livre escolha segundo uma lgica de mercado. A perspectiva conservadora da promoo da sade refora a tendncia de diminuio das responsabilidades do Estado, delegando, progressivamente, aos sujeitos, a tarefa de tomarem conta de si mesmos (Lupton, 1995; Petersen, 1997). Ao mesmo tempo, afirmam-se perspectivas progressistas que enfatizam uma outra dimenso do discurso da promoo da sade, ressaltando a elaborao de polticas pblicas intersetoriais, voltadas melhoria da qualidade de vida das populaes. Promover a sade alcana, dessa maneira, uma abrangncia muito maior

do que a que circunscreve o campo especfico da sade, incluindo o ambiente em sentido amplo, atravessando a perspectiva local e global, alm de incorporar elementos fsicos, psicolgicos e sociais. Independente das diferentes perspectivas filosficas, tericas e polticas envolvidas, surgem dificuldades na operacionalizao dos projetos em promoo da sade. Essas dificuldades aparecem como inconsistncias, contradies e pontos obscuros e, na maioria das vezes, no se distinguem claramente das estratgias de promoo das prticas preventivas tradicionais. Este texto tem o objetivo de contribuir para o debate, tematizando a diferena entre os conceitos de preveno e promoo; defende o ponto de vista de que as dificuldades em se distinguir essa diferena esto relacionadas a uma questo nuclear prpria emergncia da medicina moderna e da sade pblica. O desenvolvimento da racionalidade cientfica, em geral, e da medicina, em particular, exerceu significativo poder no sentido de construir representaes da realidade, desconsiderando um aspecto fundamental: o limite dos conceitos na relao com o real, em particular para a questo da sade, o limite dos conceitos de sade e de doena referentes experincia concreta da sade e do adoecer. A construo da conscincia desse limite estaria na base de mudanas mais radicais nas prticas de sade. Pensar sade em uma perspectiva mais complexa no diz respeito somente superao de obstculos no interior da produo de conhecimentos cientficos. No se trata de propor conceitos e modelos cientficos mais inclusivos e complexos, mas de construir discursos e prticas que estabeleam uma nova relao com qualquer conhecimento cientfico. Sade, Cincia e Complexidade A sade pblica/sade coletiva definida genericamente como campo de conhecimento e de prticas organizadas institucionalmente e orientadas promoo da sade das populaes (Sabroza, 1994). O conhecimento e a institucionalizao das prticas em sade pblica configuraram-se articulados medicina. Apesar de efetivamente superarem a mera aplicao de conhecimentos cientficos, as prticas em sade representaram-se como tcnica fundamentalmente cientfica. Essa representao no pode ser entendida como simples engano, mas aspecto essencial da conformao dessas prticas, as quais encontram suas razes na efetiva utilizao do conhecimento cientfico. A medicina estruturou-se com base em cincias positivas e considerou cientfica a apreenso de seu objeto (Mendes Gonalves, 1994). O discurso cientfico, a especialidade e a organizao institucional das prticas em sade circunscreveram-se a partir de conceitos objetivos no de sade, mas de doena. O conceito de doena constituiu-se a partir de uma reduo do corpo humano, pensado a partir de constantes morfolgicas e funcionais, as quais se definem por intermdio de cincias como a anatomia e a fisiologia. A 'doena' concebida como

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dotada de realidade prpria, externa e anterior s alteraes concretas do corpo dos doentes. O corpo , assim, desconectado de todo o conjunto de relaes que constituem os significados da vida (Mendes Gonalves, 1994), desconsiderando-se que a prtica mdica entra em contato com homens e no apenas com seus rgos e funes Canguilhem (1978). Uma primeira questo a de a sade pblica se definir como responsvel pela promoo da sade enquanto suas prticas se organizam em torno de conceitos de doena. Outra questo que suas prticas tendem a no levar em conta a distncia entre conceito de doena - construo mental - e o adoecer - experincia da vida -, produzindo-se a 'substituio' de um pelo outro. O conceito de doena no somente empregado como se pudesse falar em nome do adoecer concreto, mas, principalmente, efetivar prticas concretas que se representam como capazes de responder sua totalidade. A importncia de adquirir a conscincia de que o conceito no pode ser tomado como capaz de substituir algo que mais complexo enfocada por Edgar Morin em O Problema Epistemolgico da Complexidade. Nesse texto, o autor vincula a questo da complexidade ao problema da "dificuldade de pensar, porque o pensamento um combate com e contra a lgica, com e contra o conceito", destacando a "dificuldade da palavra que quer agarrar o inconcebvel e o silncio" (Morin, s.d.: 14). Ou seja, a palavra, mesmo que seja uma elaborada forma de expresso e comunicao, no suficiente para apreender a realidade em sua totalidade. O pensamento humano desenvolve-se em duas direes: por um lado, a profundidade, a reduo e o estreitamento; por outro, a amplitude, a abrangncia e a abertura de fronteiras. O pensamento cientfico moderno tendeu reduo, colocando para si o desafio de alcanar o mximo da preciso e objetividade por meio da traduo dos acontecimentos em esquemas abstratos, calculveis e demonstrveis. .A linguagem matemtica seria capaz de expressar as leis universais dos fenmenos. Os elementos dos acontecimentos que as palavras - ou, mais precisamente, os conceitos cientficos - no conseguiam alcanar, tenderam a ser vistos como erro ou anomalia. O significado da palavra objetiva apresentou-se em substituio prpria coisa, cujo aspecto sensvel no era tido como existente. Mas a referncia integridade dos acontecimentos que torna evidente o aspecto mutilante do conhecimento questo que se coloca desde o nascimento dessa forma de apreender a realidade. Sem dvida que tal problema tomou-se mais explcito no mundo contemporneo em decorrncia dos impasses gerados pela progressiva fragmentao do conhecimento. A necessidade de integrar as partes surgiu no interior da prpria lgica analtica - como integrar as' informaes e saberes construdos no sentido de uma profundidade crescente? Apresentou-se, para o pensamento cientfico, o desafio da busca da amplitude, valorizando a compreenso da interao entre as partes na direo da unidade e da totalidade. A questo da complexidade surgiu na discusso cientfica como possibilidade de explicar a realidade ou os sistemas vivos mediante modelos que

buscam no s descrever os elementos dos objetos, mas, principalmente, as relaes que se estabelecem entre eles. Evidenciaram-se diferentes nveis de organizao da realidade e qualidades emergentes prprias a cada nvel. Porm, esta tentativa encontra limite na 'indizibilidade' do real, que sinaliza a construo de qualquer modelo como inevitavelmente redutora. A sade e o adoecer so formas pelas quais a vida se manifesta. Correspondem a experincias singulares e subjetivas, impossveis de serem reconhecidas e significadas integralmente pela palavra. Contudo, por intermdio da palavra que o doente expressa seu mal-estar, da mesma forma que o mdico d significao s queixas de seu paciente. na relao entre a ocorrncia do fenmeno concreto do adoecer, a palavra do paciente e a do profissional de sade, que ocorre a tenso remetida questo que se destaca aqui. Esta situa-se entre a subjetividade da experincia da doena e a objetividade dos conceitos que lhe do sentido e prope intervenes para lidar com semelhante vivncia. Carregado de emoo, o relato das queixas e sintomas dos doentes traduzido para uma linguagem neutra e objetiva. Em troca, as lacunas que o texto mdico apresenta para dar conta da dimenso mais ampla do sofrimento humano acabaram por aproximar medicina e literatura. Inmeros mdicos lanaram mo da literatura como meio de expressar o sofrimento humano para alm dos limites da objetividade do discurso cientfico. Escritores como Thomas Mann e Tolsti conseguiram exprimir, como poucos, a condio do homem em sua relao com a doena e a morte. Este o tema que Moacyr Scliar tambm mdico e escritor desenvolve no livro A Paixo Transformada, mostrando como a fico reveladora "porque fala sobre a face oculta da medicina e da doena" (Scliar, 1996: 10). O discurso mdico cientfico no contempla a significao mais ampla da sade e do adoecer. A sade no objeto que se possa delimitar; no se traduz em conceito cientfico, da mesma forma que o sofrimento que caracteriza o adoecer. O prprio Descartes, considerado o primeiro formulador da concepo mecanicista do corpo, reconheceu que h partes do corpo humano vivo que so exclusivamente acessveis a seu titular (Caponi, 1997: 288). Esse aspecto foi analisado com profundidade por Canguilhem (1978) na obra O Normal e o Patolgico. Em trabalho mais recente, este autor afirma o conceito de sade tanto como noo vulgar - que diz respeito vida de cada um - quanto como questo filosfica, diferenciando-o de um conceito de natureza cientfica (Canguilhem, 1990). Nietzsche, que adota o vital como ponto de vista bsico, relaciona medicina e filosofia, mostrando a dimenso de amplitude que o termo sade evoca: Ainda estou espera de um mdico filosfico, no sentido excepcional da palavra - um mdico que tenha o problema da sade geral do povo, tempo, raa, humanidade, para cuidar -, ter uma vez o nimo de levar minha suspeita ao pice e aventurar a proposio: em todo o filosofar at agora nunca se tratou de verdade', mas de algo outro, digamos sade, futuro, crescimento, potncia, vida. (Nietzsche, 1983: 190)

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Conforme ressaltou Morin (s.d.), o que a aproximao entre medicina, literatura e filosofia afirma seno a evidncia de que a objetividade no poderia excluir o esprito humano, o sujeito individual, a cultura, a sociedade? A medicina foi tambm considerada arte; porm, em seu desenvolvimento histrico, tendeu hegemonicamente a identificar-se com a crena da onipotncia de uma tcnica baseada na cincia. No houve o devido reconhecimento do hiato entre a vivncia singular da sade e da doena e as possibilidades de seu conhecimento. Isto produziu um problema importante na forma com que se configurou historicamente a utilizao dos conceitos cientficos na instrumentalizao das prticas de sade. Atribuiu-se predominncia quase exclusiva verdade cientfica nas representaes construdas acerca da realidade e, principalmente, das prticas de sade. Ao contrrio da literatura, o pensamento cientfico desconfia dos sentidos. No processo de elaborao do conceito cientfico, o contato imediato com o real apresenta-se como dado confuso e provisrio que exige esforo racional de discriminao e classificao (Bachelard, 1983: 15). A explicao cientfica, ao deslocar-se dos sentidos, constri proposies que se orientam por planos de referncia, com delimitaes que contornam e enfrentam o indefinido e o inexplicvel (Deleuze & Guattari, 1993). A circunscrio de um plano de referncia necessidade que se impe construo cientfica. no interior do limite que se torna possvel a explicao, criando-se recursos operativos para lidar com a realidade. Assumir o domnio limitado do pensamento cientfico constitui, portanto, uma qualificao de sua pertinncia. No entanto, tambm conforma uma definio de restrio, pois o limite ilusrio e qualquer explicao objetiva no poderia pretender negar a existncia do misterioso, inexplicvel ou indizvel. A questo que se apresenta que o discurso da modernidade no levou em conta essa restrio. Levando-se em considerao o limite da construo cientfica e o seu inevitvel carter redutor, pode-se afirmar que nenhum conceito - ou sistema conceitos - poderia se propor a dar conta da unidade que caracteriza a singularidade. O conceito expressa identidades, j a unidade singular expresso da diferena. Por mais que o conceito tenha potencial explicativo e possa ser operativo, no capaz de expressar o fenmeno na sua integridade, ou seja, no capaz de 'representar' a realidade. Ao se elaborar um sistema lgico e coerente de explicao, assumir essa construo mental como capaz de substituir a realidade, mutilam-se as possibilidades de sua apreenso sensvel, por se encerrar a realidade em uma reduo. No caberia, portanto, questionar o pensamento cientfico por ser limitado e redutor, mas sim criticar o ponto de vista que nega o limite da construo cientfica. Essa negao se expressa, por um lado, ao se considerar a verdade cientfica como dogma, tornando-se insensvel ao inexplicvel, ao que no foi conceituado; por outro lado, ocorre tambm quando se exige que a cincia responda ao que no lhe pertinente. Nenhuma cincia seria capaz de dar conta da singularidade, por mais que se construam novos modelos explicativos - complexos - da realidade. Buscar dar

conta da singularidade estabelecer novas relaes entre qualquer conhecimento construdo por meio de conceitos e modelos e o acontecimento singular que se pretende explicar; Enfatiza-se aqui a necessidade de redimensionar os limites da cincia, revalorizando e ampliando a interao com outras formas legtimas de apreenso da realidade. Como foi explicitado acima, a filosofia e a literatura, mesmo que marginalmente, sempre foram complementares medicina. Ao questionar hoje o primado da objetividade cientfica, no caberia propor a imploso de fronteiras em direo construo de um discurso unificador. O que se afirma a exigncia de revalorizar a aproximao complementar - na ao - entre formas de linguagem essencialmente diferentes entre si. Trata-se de relativizar o valor de verdade dos conceitos cientficos; utiliz-los, mas no acreditar totalmente neles, abrindo canais para valorizar a interao de sensibilidade e pensamento. Sem abrir mo de ter conhecimento de causa dos saberes cientficos, preciso recolocar a importncia do papel da filosofia, da arte e da poltica. Trata-se do esforo voltado para a construo de uma nova relao com a verdade, que permita "encontrar uma sabedoria atravs e para alm do conhecimento" (Atlan, 1991: 18). No a descoberta de uma novidade, mas a renovao de questes que a modernidade e o pensamento iluminista sufocaram. No deixando de empregar os conhecimentos cientficos e, ao mesmo tempo, buscando ampliar as possibilidades dos modelos construdos, no se fecham os canais que nos tornam sensveis realidade. Trata-se da renovao de velhas filosofias que foram esquecidas e marginalizadas pela crena desmedida na razo e no poder de controle e domnio do homem. O objetivo no a verdade, mas a felicidade, a sabedoria e a virtude (Atlan, 1991). Tal como a prpria medicina, a sade trata, como afirma a citao de Nietzsche feita anteriormente, no de 'verdade', mas de "(...) futuro, crescimento, potncia e vida" (1983: 190). Essa questo estrutural constituio do campo da sade pblica e est na origem do que se denomina a sua' crise'. Para compreender o que diferencia preveno e promoo da sade, do ponto de vista deste trabalho, esse aspecto fundamental, pois situa o contexto das transformaes contemporneas"do discurso _ sade pblica. As transformaes discursivas envolvidas no so somente internas lgica do discurso ,cientfico, mas recolocam, em especial, os limites e os sentidos do conhecimento produzido na configurao das prticas de sade e, por conseqncia, na elaborao dos programas de formao profissional. Trata-se da proposta de uma forma inovadora no que se refere a utilizar a racionalidade cientfica para explicar o real e, em particular, para agir. Esse processo implica _formaes mais radicais do que a mudana no interior da cincia, pois diz respeito construo de uma concepo de mundo capaz de interferir no enorme poder de a racionalidade cientfica construir representaes acerca da realidade.

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Sade Pblica: diferena entre preveno e promoo O termo 'prevenir' tem o significado de "preparar; chegar antes de; dispor de maneira que evite (dano, mal); impedir que se realize" (Ferreira, 1986). A preveno em sade "exige uma ao antecipada, baseada no conhecimento da histria natural a fim de tornar improvvel o progresso posterior da doena" (Leavell & Clarck, 1976: 17). As aes preventivas definem-se como intervenes orientadas a evitar o surgimento de doenas especficas, reduzindo sua incidncia e prevalncia nas populaes. A base do discurso preventivo o conhecimento epidemiolgico moderno; seu objetivo o controle da transmisso de doenas infecciosas e a reduo do risco de doenas degenerativas ou outros agravos especficos. Os projetos de preveno e de educao em sade estruturam-se mediante a divulgao de informao cientfica e de recomendaes normativas de mudanas de hbitos. 'Promover' tem o significado de dar impulso a; fomentar; originar; gerar (Ferreira, 1986). Promoo da sade define-se, tradicionalmente, de maneira bem mais ampla que preveno, pois refere-se a medidas que "no se dirigem a uma determinada doena ou desordem, mas servem para aumentar a sade e o bem-estar gerais" (Leavell & Clarck, 1976: 19). As estratgias de promoo enfatizam a transformao das condies de vida e de trabalho que conformam a estrutura subjacente aos problemas de sade, demandando uma abordagem intersetorial (Terris, 1990). A constatao de que os principais determinantes da sade so exteriores ao sistema de tratamento no novidade. Oficialmente, contudo, bem recente formulao de um discurso sanitrio que afirme a sade em sua positividade. A Conferncia Internacional sobre Promoo de Sade, realizada em Ottawa (1986), postula a idia da sade como qualidade de vida resultante de complexo processo condicionado por diversos fatores, tais como, entre outros, alimentao, justia social, ecossistema, renda e educao. No Brasil, a conceituao ampla de sade assume destaque nesse mesmo ano, tendo sido incorporada ao Relatrio Final da VIII Conferncia Nacional de Sade: Direito sade significa a garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida E acesso universal e igualitrio s aes e servios de promoo, proteo e recuperao da sade, em todos os seus nveis, a todos os habitantes do territrio nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade. (Brasil/MS, 1986). Apesar de configurar avano inquestionvel tanto no plano terico quanto no campo das prticas, a conceituao positiva de sade traz novo problema. Ao se considerar sade em seu significado pleno, est-se lidando com algo to amplo como a prpria noo de vida. Promover a vida em suas mltiplas dimenses envolve, por um lado, aes do mbito global de um Estado e, por outro, a singularidade e autonomia dos sujeitos, o que no pode ser atribudo a responsabilidade de uma rea de conhecimento e prticas. conquista inegvel o reconhecimento oficial dos limites do modelo sanitrio

baseado na medicina, estimando-se que ele deve estar integrado s dimenses ambiental, social, poltica, econmica, comportamental, alm da biolgica e mdica (Carvalho, 1996). As aes prprias dos sistemas de sade precisam estar articuladas, sem dvida, a outros setores disciplinares e de polticas governamentais responsveis pelos espaos fsico, social e simblico. Essa relao entre intersetorialidade e especificidade , no obstante, um campo problemtico e deve ser tratado com cuidado, pois sustenta uma tenso entre a demarcao dos limites da competncia especfica das aes do campo da sade e a abertura exigida integrao com outras mltiplas dimenses. Se a especificidade no disciplinar, ela deve constituir-se a partir da delimitao de problemas, possibilitando a implementao de prticas efetivas. No contexto da implementao das prticas de sade mantm-se a tenso entre duas definies de vida: uma, a de nossa experincia subjetiva; outra, a do objeto das cincias da vida, do estudo dos mecanismos fsico-qumicos que estruturam o fundamento cognitivo das intervenes da medicina e da sade pblica. A partir de concepes e teorias a respeito da especificidade biolgica ou psquica, foram elaboradas intervenes objetivas e operacionais de assistncia sade. Qualquer teoria redutora e incapaz de dar conta da totalidade dos fenmenos de sade e do adoecer. Ao se tentar pensar a unidade do sujeito, o mximo que se consegue express-la como 'integrao bio-psico-social' que no deixa de se manifestar de forma fragmentada, mediante conceitos que no dialogam com facilidade entre si. Se, de um lado, o vital mais complexo do que os conceitos que tentam explic-lo; de outro, atravs de conceitos que so viabilizadas as intervenes operativas. No h como produzir formas alternativas de ateno sade que no busquem operacionalizar conceitos de sade e doena. Essa demarcao aplica-se no s ao limite da ao especfica da assistncia sade em relao aos condicionantes sociais envolvidos na dimenso da intersetorialidade, como tambm aos limites dos conceitos objetivos que configuram a lgica das intervenes em relao dimenso da singularidade e subjetividade do adoecer concreto. Nesse ltimo aspecto, a afirmao de Canguilhem manifesta com propriedade o reconhecimento de que a necessria preocupao com o corpo subjetivo no deve levar obrigao de uma libertao da tutela, tida como repressiva, da medicina: o reconhecimento da sade como verdade do corpo, no sentido ontolgico, no s pode seno como deve admitir a presena, como margem e como barreira, da verdade em sentido lgico, ou seja, da cincia. Certamente, o corpo vivido no um objeto, porm para o homem viver tambm conhecer" (Canguilhem, 1990: 36). Sem dvida, fundamental valorizar e criar formas de ampliao dos canais de abertura aos sentidos. O ponto de partida e a referncia da experincia da sade e da doena a intuio primeira do corpo. Porm, a razo - mediada pelo conhecimento cientfico e se utilizada sem reificao - permitiria alargar a intuio e principalmente servir como "instrumento de dilogo e tambm como barreira de proteo" ao

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processo de vivncia singular do adoecer (Atlan, 1991: 13). O conhecimento cientfico e a possibilidade operativa das tcnicas nas prticas de sade deveriam ser empregados sem provocar a desconexo da sensibilidade em relao aos nossos prprios corpos. O desafio poder transitar entre razo e intuio, sabendo relativizar sem desconsiderar a importncia do conhecimento, alargando a possibilidade de resolver problemas concretos. justamente a que se afirma a radical e, ao mesmo tempo, pequena diferena entre 'preveno' e 'promoo' da sade. Radical porque implica mudanas profundas na forma de articular e utilizar o conhecimento na formulao e operacionalizao das prticas de sade - e isso s pode ocorrer verdadeiramente por meio da transformao de concepo de mundo, conforme problematizado anteriormente. Pequena porque as prticas em promoo, da mesma forma que as de preveno, fazem uso do conhecimento cientfico. Os projetos de promoo da sade valem-se igualmente dos conceitos clssicos que orientam a produo do conhecimento especfico em sade - doena, transmisso e risco - cuja racionalidade a mesma do discurso preventivo. Isto pode gerar confuso e indiferenciao entre as prticas, em especial porque a radicalidade da diferena entre preveno e promoo raramente afirmada e/ou exercida de modo explcito. A idia de promoo envolve a de fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com a multiplicidade dos condicionantes da sade. Promoo, nesse sentido, vai alm de uma aplicao tcnica e normativa, aceitando-se que no basta conhecer o funcionamento das doenas e encontrar mecanismos para seu controle. Essa concepo diz respeito ao fortalecimento da sade por meio da construo de capacidade de escolha, bem como utilizao o conhecimento com o discernimento de atentar para as diferenas e singularidades dos acontecimentos. No contexto das transformaes das abordagens tradicionais da sade pblica, a formulao de Castellanos (1997) acerca do conceito de situao de sade permite ampliar a concepo de promoo da sade. Uma situao de sade define-se pela considerao das opes dos atores sociais envolvidos no processo; esta no pode ser compreendida " margem da intencionalidade do sujeito que a analisa e interpreta" (Castellanos, 1997: 6). Vinculado ao conceito de situao de sade, estabelece-se a diferena entre necessidade e problema de sade. As necessidades so elaboradas por intermdio de anlises e procedimentos objetivos. Os problemas demandam abordagens mais complexas, configurando-se mediante a escolha de prioridades que envolvem a subjetividade individual e coletiva dos atores em seus espaos cotidianos (Castellanos, 1997). O reconhecimento de valores, tais como subjetividade, autonomia e diferena, apresentou-se no contexto das transformaes no discurso cientfico, que h cerca de uma dcada manifestou-se mais explicitamente na sade coletiva. Buscou-se reinterpretar o significado de conceitos, como, por exemplo, sujeito e natureza, na compreenso dos processos de sade e doena (Costa & Costa, 1990),

questionando-se abordagens que restringiam os processos ora a uma dimenso biologista ora a determinantes genricos e estruturais (Fleury, 1992). O amadurecimento das discusses no interior do campo tomou mais claro que o fato de se pensar de modo complexo a questo da sade no diz respeito incorporao de novo discurso que migra do plo da objetividade ao da subjetividade, do universal ao singular, do quantitativo para o qualitativo etc. No se trata simplesmente de optar por valores que ficaram subjugados no decorrer do desenvolvimento da racionalidade cientfica moderna, submetendo-se, agora os que eram anteriormente hegemnicos. No se trata, portanto, de construir novos posicionamentos que mantm a reproduo de antigas oposies, mas de saber transitar entre diferentes nveis e formas de entendimento e de apreenso da realidade, tendo como referencial no sistemas de pensamento, mas os acontecimentos que nos mobilizam a elaborar e a intervir. A compreenso adequada do que diferencia promoo de preveno justamente a conscincia de que a incerteza do conhecimento cientfico no simples limitao tcnica passvel de sucessivas superaes. Buscar a sade questo no s de sobrevivncia, mas de qualificao da existncia (Santos, 1987). algo que remete dimenso social, existencial e tica, a uma trajetria prpria referida a situaes concretas, ao engajamento e comprometimento ativo dos sujeitos, os quais dedicam sua singularidade a colocar o conhecido a servio do que no conhecido na busca da verdade que emerge na experincia vivida (Badiou, 1995). Pensar, conseqentemente, em termos de promoo da sade saber que as transformaes de comportamento so orientadas simultaneamente por aquilo que se conhece acerca dos determinismos e pela clareza de que no se conhece, nem se chegar a conhecer, todos eles (Atlan, 1991). A conscincia prtica cio limite do conhecimento acarreta que no se tenha a pretenso de encontrar uma nova teoria cientfica que possa formular um discurso unificador de todas as dimenses que envolvem a sade. Promover sade envolve escolha e isso no da esfera do conhecimento verdadeiro, mas do valor. Vincula-se a processos que no se expressam por conceitos precisos e facilmente medidos. Termos como empowerment (Eakin & Maclean, 1992) ou 'vulnerabilidade' (Ayres et al., 1997) vm sendo desenvolvidos e utilizados cada vez mais no contexto das propostas de promoo da sade. Esses 'quase conceitos' no s permitem abordagens transdisciplinares, articulando-se a conceitos de outras reas, como abrem-se a mltiplas significaes que emergem da considerao da diferena, subjetividade e singularidade dos acontecimentos individuais e coletivos de sade. Essa abertura, contudo, no deixa de ter, como referncia dialgica; os conceitos que configuram a especificidade do campo da sade pblica. Esse dilogo no se estabelece sem lacunas e pontos obscuros. Um dos exemplos, nesse sentido, a marcante vinculao dos projetos em promoo da sade com o conhecimento elaborado mediante estudos epidemiolgicos de risco. Essa ligao ocorre mesmo nas pesquisas que alcanam articular mltiplas abordagens, como o caso dos

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estudos de vulnerabilidade Aids, que integram as dimenses de comportamento pessoal, contexto social e de organizao de programas institucionais (Mann; Tarantola & Netter, 1993; Ayres et al., 1997). Grande parte dos projetos definidos como promoo tambm aponta exposies ocupacionais e ambientais na origem de doenas, assim como prope o estmulo a mudanas de comportamento, como, por exemplo, o incentivo prtica de exerccios, ao uso de cintos de segurana, reduo do fumo, lcool e outras drogas etc. Epidemiologia e Promoo da Sade A integrao entre epidemiologia e promoo da sade situa-se no campo problemtico analisado neste texto. O que foi discutido acerca da diferena (e semelhana) entre preveno e promoo diz respeito tambm ao uso dos conceitos epidemiolgicos, que so ,a base do discurso sanitrio preventivo. No se trata de 'acusar' o aspecto redutor desses conceitos como limite compreenso da complexidade dos processos de sade e doena em populaes e conformao das prticas de sade pblica, mas de ter maior clareza dos limites desses conceitos, o que possibilitaria direcionar melhor as tentativas de aprimorar mtodos, construir novos conceitos e utiliz-los de modo mais integrado e apropriado aos interesses e necessidades de estruturao das prticas de sade. O conhecimento epidemiolgico nuclear na conformao das prticas de sade pblica. O discurso preventivo tradicional ressentiu-se da pobreza terica e da hegemonia da lgica mecanicista e linear na elaborao conceitual da epidemiologia. Problemas desse tipo so manifestos, em especial, nas crticas j feitas ao conceito epidemiolgico de risco (Goldberg, 1990; Almeida Filho, 1992; Castiel, 1994; Ayres, 1997). Quais valores so produzidos atravs das representaes formadas a partir desse conceito? Que significados so gerados socialmente ao se estabelecer determinados hbitos e comportamentos como risco de agravos sade? O objetivo formal do estudo de risco inferir a causalidade, avaliando a probabilidade da ocorrncia de eventos de doena em indivduos e/ou populaes expostos a determinados fatores. No entanto, apesar de se propor a mensurar riscos individuais e/ou coletivos, o que o mtodo matemtico utilizado estima o 'efeito causal mdio' - uma reduo tanto do ponto de vista individual quanto do coletivo. As redues - passagens lgicas necessrias e inevitveis viabilizao do mtodo constroem representaes que no correspondem complexidade dos processos. O problema que as informaes produzidas por meio dos estudos de risco tendem a ser empregadas sem se levar em conta as passagens de nvel lgico que efetuam. No se considera devidamente os limites estritos de aplicao das estimativas de risco, 'apagando-se' assim aspectos importantes dos fenmenos (Czeresnia & Albuquerque, 1995). Esse 'apagamento' no destitudo de valor; pelo contrrio, por meio dele que proliferam significados culturais. As opes envolvidas no processo em que, por uma

parte, alguma coisa se revela e, por outra, algo se oculta, correspondem a interesses, valores e necessidades. O conceito de risco e sua enorme importncia na constituio da cultura moderna tardia (Guiddens; Beck & Lasch, 2000), devido, tambm, exacerbao da pertinncia do conceito na sua utilizao social. O conceito de risco contribuiu para a produo de determinadas racionalidades, estratgias e subjetividades, sendo central na regulao e monitorao de indivduos, grupos sociais e instituies (Lupton, 1999). O desenvolvimento dos estudos de risco esteve vinculado a um processo cultural construtor de um homem individualista, que enfrentou a necessidade de lidar com as foras desagregadoras da natureza e da sociedade por intermdio da lgica da ordem e da proteo, ao passo que pouco investiu no amadurecimento das relaes com o outro mediante o fortalecimento de sua vitalidade e autonomia (Czeresnia, 1997). Considerando que um dos aspectos fundamentais da idia de promoo da sade o estmulo autonomia, retoma-se a pergunta: com que concepo de autonomia os projetos em promoo da sade efetivamente trabalham? Pensar na possibilidade de estimular uma autonomia que potencialize a vitalidade (sade) dos sujeitos envolveria transformaes profundas nas formas sociais de lidar com representaes cientficas e culturais como o risco. No h como propor 'recomendaes objetivas e de execuo rpida' que capacitem uma apropriao de informaes sem o 'risco' da incorporao acrtica de valores. A clareza a respeito dos valores contidos nos diferentes projetos em promoo um dos principais pontos problemticos da proposta. Qualquer prtica em promoo da sade apresenta pontos de vista acerca do que 'boa sade'. A idia genrica de promover sade esconde profundas tenses tericas e filosficas (Seedhouse, 1997). Promoo da sade contempla um amplo espectro de estratgias tcnicas e polticas que incluem tanto posturas conservadoras como extremamente radicais (Lupton, 1995). com esse cuidado que se deve avaliar, por exemplo, propostas como a de medicina baseada em evidncias, que utiliza fundamentalmente critrios e mtodos epidemiolgicos para sistematizar resultados de pesquisas aplicadas, experincias clnicas e de sade pblica (Jenicek, 1997). Como articular um achado de best evidence, formulado por meio do conhecimento clnico epidemiolgico, com a experincia clnica e de sade pblica? Quais as mediaes entre critrios operacionais e decises prticas? Como traduzir 'boas recomendaes' tcnicas em ao (Jenicek, 1997)? No ser um protocolo tcnico que vai resolver a implementao de uma 'boa prtica', o que no desqualifica - pelo contrrio - a pertinncia da construo de protocolos que otimizem a informao acerca de procedimentos. No h como trabalhar devidamente e de modo prtico a construo da idia de promoo da sade sem enfrentar duas questes fundamentais e interligadas: a necessidade da reflexo filosfica e a conseqente reconfigurao da educao (comunicao) nas prticas de sade.

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A questo filosfica vulgarmente tida como 'diletante', pairando acima da vida e do mundo real. Mas, sem ela, no h como lidar com pontos obscuros que se apresentam quando se procura dialogar e fluir entre as diferentes dimenses que caracterizam a complexidade da sade. Sem a reflexo, no h como dar conta do desafio que existe em traduzir informaes geradas por meio da produo de conhecimento cientfico em aes que possam efetivamente promover transformaes sociais, ambientais e de condutas 'no saudveis' dos sujeitos. Os desafios que se apresentam, nesse sentido, no se resolvem 'apenas' com a aplicao de novos modelos, da mesma maneira que a questo da educao no se resolve 'apenas' com informao e capacitao tcnica. Referncias BibliogrficasALMEIDA FILHO, N. A Clnica e a Epidemiologia. Salvador: Rio de Janeiro: APCE/Abrasco, 1992. ATLAN, H. Tudo, No, Talvez: educao e verdade. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. AYRES, J. R. M. C. Sobre o Risco: para compreender a epidemiologia. So Paulo: Hucitec/Abrasco, 1997. AYRES, J. R. et aI. Aids, vulnerabilidade e preveno. In: SEMINRIO SADE REPRODUTIVA EM TEMPOS DE AIDS, II, 1997, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Abia, 1997. BACHELARD, G. Epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. BADIOU, A.tica: um ensaio sobre a conscincia do mal. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1995. BRASIL/M:S. In: VIII CONFERNCIA NACIONAL DE SADE, 1986, Braslia. Anais...Braslia: MS, 1986. BUSS, P. Promoo da sade e qualidade de vida. Cincia & Sade Coletiva, 5(1): 163-177, 2000. CANGUILHEM, G. O Normal e o Patolgico. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1978. CANGUILHEM, G. La Sant: concept vulgaire e question philosophique. Paris: Sables, 1990. CAPONI, S. Georges Canguilhem y el estatuto epistemolgico deI concepto de salud. Histria, Cincias e Sade: Manguinhos, 4(2): 287-307, juI.-out., 1997. CARVALHO, A. L Da sade pblica s polticas saudveis: sade e cidadania na psmodernidade. Cincia & Sade Coletiva, 1(1): 104-121, 1996. CASTELLANOS, P. L: Epidemiologia, sade pblica, situao de sade e condies de vida: consideraes conceituais. In: BARATA, R. B (Org.) Sade e Movimento: condies de vida e situao de sade. Rio de Janeiro: Abrasco, 1997. CASTIEL, L. D. O Buraco e o Avestruz: a singularidade do adoecer humano. Campinas: Papirus, 1994. COSTA, D. C. & COSTA, N. R. Teoria do conhecimento e epidemiologia: um convite leitura de John Snow. In: COSTA, D. C. (Org.) Epidemiologia, Teoria e Objeto. So Paulo: Hucitec/Abrasco, 1990. CZERESNIA D. Do Contgio Transmisso: cincia e cultura na gnese do conhecimento epidemiolgico., Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. CZERESNIA, D. The concept of health and the diference between promotion and prevention. Cadernos de Sade Pblica_ 15(4): 701-710, 1999. CZERESNIA, D. & ALBUQUERQUE, M. F. M. Modelos de inferncia causal: anlise crtica da utilizao da estatstica na epidemiologia. Revista de Sade Pblica, 29(5): 415-423, 1995.

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SADE BUCAL COLETIVA

A OMS tem esse conceito hoje (ser que ele correto?) mas a humanidade, ao longo de sua histria, tem formulado os mais variados conceitos na tentativa de compreender a relao entre a sade e a doena. Veremos a seguir um pouco dessa histria. 2-A CAUSA DAS DOENAS NA ANTIGUIDADE Para alguns dos povos da antigidade (hebreus, assrios, egpcios etc. ) a doena seria causada por fatores naturais ou sobrenaturais; em geral, a manifestao da vontade dos deuses. O Velho Testamento, por exemplo, contm inmeras referncias a pestes e outras doenas que teriam ocorrido por desobedincia vontade divina. No caso, o homem seria apenas o objeto dessa vontade, isto , inteiramente passivo. As causas seriam sempre externas ao homem e o organismo humano no teria nenhuma participao. J para os chineses e hinds, embora podendo sofrer a influncia dos astros e do clima, a doena seria a manifestao do desequilbrio dos "humores" que compem o organismo. Nesta viso, os agentes externos causariam desequilbrios internos e o organismo participaria ativamente nesse processo. Para ser curado seria necessrio restabelecer o equilbrio e isto se conseguiria mediante uma interveno sobre o corpo doente. A medicina chinesa elaborou muitas tcnicas de interveno h milhares de anos e algumas delas so praticadas ainda hoje, como a acupuntura e o do-in. Os gregos antigos tinham uma concepo prxima a dos chineses. Tambm eles trabalharam com a idia dos "humores" e desenvolveram explicaes bastante sofisticadas acerca das doenas. A qualidade do ambiente fsico o ar e a gua, particularmente tinha grande importncia. Entre eles surgiram grandes mdicos, dos quais Hipcrates considerado o maior. A influncia das concepes dos gregos foi grande e de um modo ou de outro estiveram presentes no mundo ocidental at o fim da Idade Mdia. 3-A CAUSA DAS DOENAS DURANTE A IDADE MDIA A medicina grega, ou medicina hipocrtica, continuou a ser praticada durante muitos sculos, mesmo depois do desaparecimento do mundo grego-romano. Na Idade Mdia, todavia, no observado nenhum avano ao nvel das explicaes para a doena. Ao contrrio, sob influncia do cristianismo, o carter religioso do processo sade/doena foi retomado, particularmente por causa das inmeras epidemias que assolaram a Europa nesta poca. A medicina, tal como praticada pelos gregos, foi abandonada. A interveno sobre o corpo doente (clnica) seria de pouca ou nenhuma utilidade para a cura.

Carlos Botazzo; Marcos Antnio Manfredini; Paulo Capel Narvai; Paulo Frazo. Elaborado como material de apoio ao Curso para Formao de Tcnico em Higiene Dental, do SUDS-SP. So Paulo, 1988.

1-INTRODUO A compreenso ou o entendimento do que venha a ser sade no uma tarefa complicada para a maior parte das pessoas. O senso comum, a opinio do leigo, coloca juntas a noo de sade com a noo de bem-estar: "Eu me sinto bem, logo estou com sade". Quando comeamos a refletir sobre esse tema, entretanto, surgem os primeiros obstculos. De fato, uma pessoa pode "sentir-se bem" mesmo estando enferma. Os que tm alguma experincia com doentes sabem disso. Podemos, ento, fazer um raciocnio inverso: a ausncia de doena seria a sade. Mas como saber se uma pessoa est ou no doente? .Muitas vezes uma pessoa aparenta estar bem e depois percebemos que esta no era a realidade. Por outro lado, sabemos que as doenas no so fsicas somente, ou seja, elas no se manifestam de modo visvel no organismo humano mas afetam tambm o psiquismo das pessoas. So as chamadas "doenas mentais". Ainda tentando compreender o que vem a ser a sade, podemos imaginar que uma pessoa se sinta bem, no tenha conhecimento de nenhuma doena, nem visvel nem invisvel, nem fsica nem mental, porm sua condio de vida muito precria: no ganha o suficiente, se alimenta mal, mora em local sem gua e esgoto, os transportes so deficientes etc. Mesmo no apresentando "nada", ser que esta pessoa pode ter sade? "Sentir-se bem" ou "haver ausncia de doena, portanto, no significa ter sade. Os estudiosos desse assunto vm h muito tempo debatendo essa questo. O estudo desse tema importante pois as prticas de sade, isto , o modo como os profissionais trabalham, como as doenas so tratadas e como so organizados os servios de sade, dependem do conceito que temos sobre a sade e a doena. Atualmente a Organizao Mundial da Sade (OMS) conceitua sade como um "estudo de completo bem-estar fsico, psquico e social, e no apenas a ausncia de doena".

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As doenas transmissveis eram o centro das atenes. Foi formulado o conceito de contgio, isto , a idia de que um homem (ou animal) doente pode transmitir doena a uma pessoa s. As ca4sas das doenas, todavia, eram as mais diferentes, indo desde guas de poos "podres" ou "envenenados", passando por influncias astrolgicas, feitios e bruxarias, ou ainda atribuda influncia malfica de judeus e no batizados em geral. No fim da Idade Mdia, porm, a prtica da medicina em moldes clnicos foi retomada, como tambm foram reiniciadas as experincias e observaes acerca da constituio e do funcionamento do corpo humano, as quais foram fundamentais para a formao das cincias bsicas (Anatomia, Patologia, Fisiologia etc). 4-A CAUSA DAS DOENAS NA IDADE MODERNA OU INDUSTRIAL Entre os sculos XVI e XVIII a preocupao com o contgio foi dominante. O centro das atenes continuou sendo as doenas transmissveis. Surgiu a teoria dos miasmas, ou seja, odores mal-cheirosos originados em pntanos, guas paradas e corpos em decomposio, os quais seriam os responsveis pelas doenas. A tentativa de explicar a disseminao das epidemias fez surgir a idia de que "partculas invisveis" poderiam ser responsveis por elas. Esta poca (entre 1.500 e 1.600) assinala o retorno da explicao da doena a partir de um elemento externo que, invadindo o corpo, causa doena (o organismo humano seria apenas um receptculo). As concepes dos gregos sobre a sade e a doena, que situavam o homem em sua relao com a natureza, foram abandonadas. O desenvolvimento da cincia (no campo da qumica e da fsica, de modo particular) foi transportado para a prtica clnica. Entre o fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX o que se busca explicar no mais porqu as pessoas adoecem, mas sim onde as doenas se localizam no corpo e quais os danos que provocam. Procura-se desvendar o significado dos sinais e sintomas ao nvel exclusivo do indivduo. Os estudiosos da poca se dividiram em dois grupos: de um lado clnicos e pesquisadores em laboratrios que procuravam encontrar uma causa que pudesse explicar o surgimento de uma doena (uma "partcula invisvel", por exemplo) e de outro os que procuravam explicar as causas das doenas (ou sua causalidade) a partir das condies concretas de existncia social, ou seja, o modo real como as pessoas vivem, onde trabalham, quanto ganham etc. Para compreender essa diviso entre os estudiosos das causas das doenas, e as propostas que faziam para enfrent-las, necessrio entender alguns aspectos especficos da poca que estamos estudando. Sem dvida, a coisa mais importante que ocorreu neste perodo foi o desenvolvimento acelerado do capitalismo, aps a Revoluo Industrial.

Para que o capitalismo se desenvolvesse e se consolidasse como modo de produo hegemnico, isto , dominante na sociedade, a burguesia estimulou o desenvolvimento das cincias e da tcnica em nveis jamais alcanados pela humanidade em sua histria anterior. Mas o capitalismo tambm significava misria e explorao. Por toda parte milhes de pessoas perderam suas terras e seus instrumentos de trabalho e, como gado humano, foram amontoados nas cidade, enfiados nas minas, confinados nas fbricas para produzirem at a completa exausto de suas foras. Naquela poca no havia limites: homens, mulheres e crianas, todos encontravam-se obrigados a jornadas dirias de at 19 horas, em condies hoje inimaginveis. A mortalidade infantil era to alta que ameaavam a prpria capacidade de reproduo biolgica da fora de trabalho. Incapacidade fsica, envelhecimento e morte precoce, este era o destino reservado a todos os trabalhadores, incluindo mulheres grvidas e crianas de tenra idade. VIRCHOW foi um mdico e estudioso das causas das doenas em seu tempo. Ele viveu entre o sculo XVIII e o XIX. Eis o que escreveu sobre esse assunto: "Se a doena uma expresso da vida individual sob condies desfavorveis, a epidemia deve ser indicativa de distrbios, em maior escala, da vida das massas." Ou ainda: "As epidemias no apontaro sempre para as deficincias da sociedade? Pode-se apontar como causas as condies atmosfricas, as mudanas csmicas gerais e coisas parecidas mas, em si e por si, estes problemas nunca causam epidemias. S podem produzi-las onde devido s condies sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo em situao anormal." Eis o ponto central da questo: uma "partcula invisvel" poderia causar doena mas a sua produo s seria possvel onde e quando condies objetivas de existncia social (isto , o modo como as pessoas trabalham e vivem) permitissem que a doena se desenvolvesse. Por este raciocnio era possvel entender porque milhares de pessoas podiam estar contaminadas ( com o bacilo da tuberculose, por exemplo) mas, com uma ou outra exceo, apenas as pessoas que compunham um determinado grupo, vivendo em condies semelhantes, desenvolviam a doena. J naquela poca a explicao simplista, unicausal (presena de micrbio = doena) no satisfazia pesquisadores com Virchow. Para esclarecer esse raciocnio pode-se apresentar outros exemplos dos dias atuais: o risco de ter doenas no corao no igual para todas as pessoas para as que fumam o risco maior; os operrios que trabalham na indstria do cimento ou do cal esto sujeitos a riscos maiores de terem doenas nos pulmes; uma pessoa que toma

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caf adoado com sacarose vrias vezes ao dia apresenta maior risco de ter crie dental do que outra que toma menos caf ou que tome caf sem acar . Mas os pesquisadores que defendiam esta viso do processo sade/doena no obtiveram xito. Na segunda metade do sculo XIX foi aberto o caminho para a afirmao dos interesses empresariais capitalistas na rea da sade. A necessidade de maior controle sobre os trabalhadores urbanos e o prprio desenvolvimento da economia capitalista na rea da sade (equipamentos, instrumentos, medicamentos, construo de hospitais e ambulatrios) fez com que a idia de causa nica se tornasse dominante. A nfase dada ao individual, ao biolgico, ao tcnico. Os alunos da rea mdica (medicina, enfermagem, odontologia etc.) aprendem como os tecidos e clulas se alteram nos processos patolgicos. Aprendem, por extenso, como curar a partir de uma interveno tcnica sobre o corpo doente. O modelo de interveno baseado nesta concepo recebeu o nome de Medicina Cientifica (Odontologia Cientfica). Esta medicina encarrega-se de prestar assistncia sade das pessoas. O local privilegiado de sua interveno o corpo doente, o indivduo. Para esta medicina conveniente (e tambm altamente lucrativo) que o social seja esquecido. Assim, embora se pretenda cientfica, ignora o conjunto dos conhecimentos que a cincia produziu sobre sade e a doena, utilizando apenas parcelas desse conhecimento. 5-A CAUSA DAS DOENAS NA POCA ATUAL Habitualmente as pessoas so acostumadas tambm a associar boa sade com assistncia sade, isto , com a possibilidade que as pessoas tm de se consultar com mdicos e dentistas, ou de se internar em hospitais. Isto tem importncia, no h dvida. Porm, como esse modelo de prtica vem sendo exercido h mais de um sculo, uma pergunta se faz necessria: essa concepo das causas das doenas e essa prtica mdica (e, tambm, de odontologia) conseguiu obter melhores nveis de sade para a humanidade? A resposta seguramente negativa. Sem dvida sabemos que, em geral, hoje vivemos mais e melhor do que h 100 anos. Mas isso se deu no como decorrncia do modelo de interveno mdica hegemnico e sim devido s melhores condies sociais de existncia, possveis nos dias atuais. De fato, ao lado do desenvolvimento material da sociedade no sculo XIX e incio do sculo XX, foi tambm sendo desenvolvida a idia de que as condies de vida e trabalho precisavam mudar . Por um lado, era preciso, do ponto de vista da burguesia, criar um cordo sanitrio que, nas cidades dos pases capitalistas, separasse os bairros ricos dos bairros pobres. Se nos bairros pobres a doena era () uma constante, durante as epidemias as fronteiras entre eles podiam ser rompidas, submetendo os moradores dos bairros de alta renda aos mesmos riscos de adoecer aos quais a populao dos bairros

pobres est permanentemente sujeita. A prpria atividade econmica acabava sendo comprometida. Por isso, as grandes cidades so saneadas; constrem-se redes de gua e esgoto e so institudos esquemas racionais de coleta e destino para o lixo urbano. Por outro lado, os trabalhadores organizaram-se em associaes e sindicatos e, em muitos pases, suas lutas levaram obteno de melhores condies de vida e trabalho: a jornada diria foi reduzida (muito lentamente.....), determinados tipos de ocupao foram proibidos s mulheres grvidas e crianas abaixo dos 15 anos. Aumentou a produo de alimentos, os salrios tambm aumentaram. As pessoas passaram a morar em casa melhores, a trabalhar em melhores condies, a se alimentar melhor . As alteraes ocorridas na forma de produzir e consumir na sociedade que foram (e so) as responsveis, no fundamental, pela modificao da situao de sade da populao. Isto pode ser demonstrado de modo claro com o grfico abaixo:

TUBERCULOSE PULMONAR : TAXAS MDIAS ANUAIS DE MORTALIDADE (PADRONIZADO PARA A POPULAO DE 1901): INGLATERRA E GALES

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Para explicar situaes como esta, que coloca em evidncia a extrema limitao do conceito de unicausalidade (isto , que apenas um agente o responsvel pela produo da doena), surgem a partir do incio deste sculo desdobramentos desta concepo. So as teorias de multicausalidade. O homem passa a ser entendido como uma unidade bio-psico-social e se considera que vrias causas ou fatores intervm para que a doena ocorra. O surgimento da psicologia e da psicanlise conduz idia de que a mente do homem tambm seria importante e se admite que o social teria influncia. Nesta viso, porm, o social compreendido como sendo um conjunto de condies relativas apenas ao ambiente e famlia, e no como sendo as relaes dinmicas e contraditrias que os homens estabelecem entre si ao trabalharem. Desse modo, nessa concepo, os trs elementos (o biolgico, o psicolgico e o social) tm o mesmo peso e a mesma importncia, sendo o homem sempre compreendido isoladamente. Para entender melhor os limites dessa concepo, duas coisas ainda precisam ser ditas. A primeira que, mesmo no desconhecendo a existncia real da sociedade humana, os defensores dessa teoria na verdade ignoram o modo concreto como a sociedade formada, as contradies existentes entre os grupos e as classes sociais e o porque dessas contradies. Como seu modo de pensar alcana apenas o biolgico, confundem a doena com os doentes e pensam que a psicologia uma extenso da fisiologia do sistema nervoso. Por isso, importante destacar, e esta a segunda coisa que deve ser dita, que o social deve ser compreendido no como um atributo (qualidade) encontrado nas pessoas, mas sim como o cenrio, o espao ou local onde os homens, os grupos e as classes sociais estabelecem relaes entre si, e no qual a cultura, a cincia, a moral e todos os demais valores humanos so produzidos. por isso que cada sociedade humana ( cada povo ), em cada poca especfica, produz coisas diferentes umas das outras: literatura, arquitetura, msica, vesturios, alimentao, cincia, moral, hbitos etc. Do contrrio, a vida social no Brasil ou no Alasca, no presente ou no passado, seria a mesma coisa, e esta uma idia absurda. Este um modo de interpretar o conceito de multicausalidade. Outro modo de interpretar esse conceito fornecido pelo modelo ecolgico. Ele assim chamado por dar grande importncia ao ecossistema no qual o homem est inserido, isto , o conjunto dos elementos que compem o meio ambiente. As atividades do homem, nesta viso, seriam condicionadas pelo meio ambiente e, embora se admita que o meio pode ser modificado pela atividade humana, todos acabam colocados num mesmo plano: homens, agentes etiolgicos (causadores de doenas) e a prpria doena. Ou seja, como se vivssemos em equilbrio biolgico exclusivo com a natureza, como se o homem tivesse uma relao animal (natural)

com outro homem, e no social. Vivendo em "equilbrio", numa espcie de mundo parecido com o paraso no haver doena; esta ocorrer quando sobrevier o "desequilbro". Assim eles pensam. Claro que guas contaminadas ou poludas (um rio ou um lago) so causadoras de doenas, algumas bastante graves. Mas podemos afirmar que essa gua poluda apenas conseqncia do desequilbrio ambiental? Aqui tambm preciso estar atento pois desastres ecolgicos naturais ocorrem com pouca freqncia, sendo muito mais freqentes e lesivos para o homem aqueles produzidos continuamente em decorrncia da atividade humana e diretamente relacionada com o modo como a sociedade est organizada e produzindo (poluio do ar provocada por automveis, rios poludos por dejetos industriais ou esgotos no tratados etc ). Mergulhados nas concepes biologicistas, os defensores do modelo ecolgico no conseguem perceber como a vida humana articula-se socialmente, percebendo a vida apenas como um fenmeno "natural". Outra conseqncia dessas formulaes foi o surgimento, desde o sculo XIX, de idias que, reduzindo o homem a um fenmeno biolgico, procurou explicar as bases do comportamento humano a partir de detalhes anatmicos ou fisiolgicos. Assim, particularidades da anatomia racial, segundo eles, so indicativos de alguns comportamentos em geral negativos. Por exemplo, malares salientes, testa baixa, nariz achatado e queixo largo, podem caracterizar uma pessoa potencialmente criminosa. Este tipo de observao "cientfica", desenvolvida muito bem por Lombroso na Itlia, dentre outros, apesar do tempo passado ainda est presente entre ns. Muita gente, sinceramente, acredita que o miservel o responsvel por sua misria e o doente por sua doena: pior, h os que pensam que as doenas da infncia so "naturais" e que funcionam como mecanismo para a seleo da espcie. Voltemos ao nosso tema, porm. Como acabamos de ver, todas essas concepes so parecidas com o conceito de sade proposto pela OMS: "sade um estado de completo bem estar bem-estar fsico, mental e social, e no apenas a ausncia de doena". Fica mais claro agora percebermos os limites desse conceito, pois o "bem-estar fsico, mental e social" um bem (tanto no sentido do valor econmico quanto no sentido do bom, isto , de qualidade positiva) que no igual para todos os homens ou grupos e classes sociais. Em resumo, a possibilidade de uma pessoa alcanar o "bem-estar fsico, mental e social" vai depender do grupo social ao qual ela pertena. Vai depender ainda da ocupao principal da pessoa, quanto ela ganha, nvel de escolaridade, da possibilidade de acesso maior a informaes, da participaes maior ou menor nas esferas de deciso poltica, do consumo (gua potvel, alimentos, moradia, transporte, vesturio, lazer etc) e de acesso a servios de sade, dentre outros.

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Por isso, fala-se hoje na determinao social do processo sade/doena. Ela entendida como um conceito que permite explicar no s a produo das doenas como tambm sua distribuio e localizao enquanto causa especfica de morte para os vrios grupos populacionais. As prticas de sade derivadas desta concepo denominam-se Sade Coletiva. 6-ODONTOLOGIA INTEGRAL ? Como j foi dito, o modo como so organizados os servios de sade, e como as doenas so tratadas, dependem do modo como o processo sade/doena entendido. Evidentemente, isto tambm vlido para a odontologia. Ao se constituir como especialidade da medicina em meados do sculo passado, a odontologia se organizou tendo por base a teoria da unicausalidade. Mais tarde, so aceitas as teorias da multicausalidade e do modelo ecolgico. A explicao atual para a crie dental, ensinada em todos os nossos cursos de odontologia, um bom exemplo disso. Nos ltimos anos surgiram no Brasil vrios grupos de cirurgies-dentistas, professores universitrios e pesquisadores que procuram analisar a situao de sade bucal da nossa populao. Esses grupos tambm vm estudando o modo como prestada a assistncia odontolgica s pessoas, bem como as condies em que essa assistncia realizada. Estudam, portanto, o modelo de prtica odontolgica que dominante (hegemnico) em nosso pas. As caractersticas desse modelo j foram discutidas em vrias oportunidades. Vale, neste momento, relembrar algumas delas : nfase no biolgico e no curativo; baixa cobertura; uso de tecnologia sofisticada em procedimentos bsicos; altos custos; ineficincia e ineficcia; iatrognica e mutiladora; pouco ou nenhum impacto;

tecnologia menos sofisticada (apropriada) diminuindo, assim, os custos. Desse modo, a odontologia poderia vir a se tomar mais eficaz e menos iatrognica. Seria possvel, ento, conseguir maior impacto, isto , alterar a situao atual de sade bucal da populao. Os estudiosos que se preocupam com esta situao costumam falar em odontologia simplificada ou odontologia integral. No tarefa das mais fceis, entretanto, definir odontologia integral pois existem muitos entendimentos para esta expresso. Para alguns ela seria a integrao das atividades educativas, preventivas e curativos. Genericamente os que defendem esta posio so chamados de preventivistas. Reconhecem a debilidade do curativismo e colocam a necessidade de incorporar medidas preventivas individuais e "de massa" (de alcance coletivo) como forma de equacionar os problemas de sade bucal mais agudos. No que diz respeito crie dental, por exemplo, os preventivistas identificam os fatores mais frgeis na "cadeia" da doena e se propem atuar exclusivamente sobre eles. Assim, a preveno dessa doena seria possvel atravs do fortalecimento do esmalte (flor), do controle da dieta (acar) e do controle mecnico da placa bacteriana (escovao) baseiam-se no modelo de explicao multicausal da doena para o qual, como vimos anteriormente, as condies objetivas de existncia social no tm muita importncia. O preventivismo prope ainda outras medidas profilticas como o flor, etc. Isso, porm, no lhe modifica a essncia. Bastaria, portanto, identificar na rede de causalidade os fatores mais vulnerveis, intervir neles e ser bem sucedido. Outras interpretaes da odontologia integral vo alm da simples integrao entre preveno e cura. Passa a ter grande importncia, tambm, a racionalizao do trabalho odontolgico, tomada possvel atravs da simplificao, da utilizao de tecnologia apropriada, da incorporao de recursos humanos auxiliares e da desmonopolizao do saber. O diagnstico tambm deve ser integral, isto , no deve estar restrito apenas ao dente ou boca, mas deve relacionar a doena bucal atual com outros eventos observveis no indivduo, tais como possveis manifestaes sistmicas da doena bucal ou vice-versa; considera indispensvel a valorizao de aspectos do psiquismo, da histria mdica anterior etc. Pretende-se, assim, que ao odontologia seja integral no por no separar a preveno da cura, mas por considerar que a cavidade bucal e suas estruturas tm importantes relaes com outros componentes do organismo, os quais no deveriam ser desconsiderados para a compreenso das aes clnicas. Estas, por sua vez, deveriam ser desenvolvidas enfatizando-se os aspectos preventivos, com a utilizao

Tecnicamente, a odontologia brasileira , sem dvida, comparvel dos pases desenvolvidos e at melhor em certos aspectos. Mas tambm reconhecido que esta odontologia, com as caractersticas que apresenta, no vem sendo capaz de resolver, ou manter em nveis compatveis com nossa poca, os problemas de sade bucal da populao, aps mais de 100 anos de existncia. Por isso, todas as propostas que visam superar essa situao colocam a necessidade de se dar uma nfase maior preveno, em aumentar a cobertura, em usar

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de recursos humanos adequados e em ambientes fsicos onde fosse possvel a racionalizao do trabalho odontolgico. Ora, na medida em que se avana por este caminho, tem-se a impresso de que a prtica da odontologia se tomaria efetivamente integral. Aqui, porm, surge um problema: medida que a odontologia vai se tomando cada vez "mais integral", vai tambm se tomando cada vez "menos odontologia". Para melhor compreendermos esses aspectos, vamos imaginar algumas situaes concretas, bastante comuns no dia-a-dia das nossas instituies. Dizendo de outro modo, a prtica odontolgica realiza a assistncia sade bucal das pessoas. A ao clnica ocorre nos indivduos pois a doena, embora produzida socialmente, est obrigatoriamente localizada num corpo biolgico e no "na sociedade". Por isso, importante que sejam organizados os sistemas de assistncia s pessoas doentes. Assim, ao paciente que procura o servio de sade com queixa de abscesso dental ser oferecida a assistncia que o caso requer: exame clnico, diagnstico da leso e a prescrio de medicamentos ou a realizao de interveno cirrgica. Esta uma histria bastante comum em nossa populao, onde os ndices de crie dental so elevados e os nveis de assistncia baixos. Podemos, ento, pensar num conjunto de atividades que visem diminuir o nmero de casos de abscessos dentais: educao em sade, controle mecnico da placa bacteriana dental, uso de substncias fluoradas, diagnstico e tratamento precoce das leses de crie etc. Algumas destas atividades so realizadas pelo cirurgio-dentista exclusivamente; outras podem ser realizadas pelo pessoal auxiliar. Outras delas, entretanto, no dependem nem so realizadas seja pelo cirurgiodentista, THD ou ACD. Aplicao tpica de fluoretos, por exemplo, uma atividade de preveno que pode ser realizada por qualquer membro da equipe de sade bucal. Mas no depende dessa equipe a fluoretao das guas de abastecimento pblico. A primeira atividade (aplicao tpica) uma atividade odontolgica mas a segunda (fluoretao das gua) no , embora ambas atividades se relacionem com sade bucal. A mesma coisa pode ser dita com relao educao em sade. Prossigamos com nossa reflexo... Como o abscesso dental , na maior parte dos casos, conseqncia da crie e esta, por sua vez, tem uma relao com o consumo abusivo e/ou indisciplinado de acar, ao realizarmos atividades educativas vamos enfatizar este aspecto, isto , que as pessoas devem comer menos alimentos aucarados e, ao faz-Io, disciplinar a ingesto.

Esta atividade "fcil": basta falar s pessoas. Isto tambm pode ser feito por qualquer membro da equipe de sade bucal. preciso compreender, entretanto, que as pessoas consomem acar no apenas quando adoam caf ou suco mas tambm numa quantidade enorme de preparaes, a maior parte das quais na forma de produtos industrializados. Os trabalhadores de baixa renda compensam a deficincia calrica de sua dieta com a ingesto de alimentos aucarados. E isto ocorre tambm particularmente entre as crianas e adolescentes filhos desses trabalhadores, pois a maior parte dos alimentos que o salrio permite comprar destinada aos adultos produtivos. Por outro lado, ainda, o consumo de aucarados vai depender das prticas sociais e culturais da populao. E, por fim, se grande parte do consumo de acar est relacionada com o consumo de produtos industrializados (refrigerantes, balas, bombons, bolachas etc), a propaganda macia atravs dos meios de comunicao induz esse consumo, desenvolvendo novas prticas. Se entendemos isso, vamos entender que o consumo de acar, ou de produtos que contenham acar de cana, d-se no por opo individual mas por uma necessidade existente (dficit calrico ou prtica cultural e alimentar) ou por necessidades artificialmente criadas (propaganda). Por isso tudo, medida que vai se tomando "mais integral", a prtica ser cada vez "menos odontolgica": se as pessoas ganhassem melhor, poderiam ter mais acesso a uma dieta equilibrada; se houvesse um sistema educacional adequado, crianas e adolescentes seriam alimentados em creches e escolas; se no houvesse tanta propaganda, o consumo de acar seria menor... Mas estas questes no podem, evidentemente, ser resolvidas pela clnica, mesmo que os profissionais da equipe de sade bucal tenham disso conscincia. Aqui, justamente, est a essncia da questo: a assistncia odontolgica (ou mdica etc) s pessoas compreende aes clnicas e cirrgicas restritas, limitadas ao atendimento individual. Esta a prtica odontolgica. A ateno sade bucal compreende, por outro lado, as atividades de assistncia individual mas implica, alm disso, tambm em ao sobre as causas das doenas, sejam estas de que natureza for (biolgicas, sociais, econmicas ou polticas). Estas aes, situando-se num campo extra-clnica, so englobadas por prticas de sade no mais no campo da assistncia odontolgica, mas num campo que poderamos chamar sade bucal coletiva. Seria prefervel, portanto, se concordamos que o processo sade/doena socialmente determinado, falar em prticas de sade bucal ao invs de prtica odontolgica (integral ou no), pois as aes necessrias manuteno da sade tm como sujeito no apenas os profissionais da rea (cirurgio-dentista, THD ou ACD) com suas prticas clnicas restritas, mas tambm outros sujeitos sociais desenvolvendo prticas as quais, repercutindo na sade, no so prticas clnicas.

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Assim, pode-se afirmar que o modo mais conseqente de ampliar os limites e as funes sociais da odontologia seria a critica explicao ecolgica da doena e, por extenso, do seu carter a- histrico, biologizante e individual. A compreenso do processo sade/doena a partir da sua determinao social tem um potencial transformador muito grande. Os autores acreditam que em tomo dessa tarefa de transformao que os profissionais da sade bucal devem hoje se posicionar , se pretendem desenvolver sua ao profissional no campo da sade, em coerncia com os conhecimentos produzidos pela Cincia at o presente.

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RECOMENDAES SOBRE USO DE PRODUTOS FLUORADOS NO MBITO DO SUS-SP EM FUNO DO RISCO DE CRIE DENTRIA

A) GUAS DE ABASTECIMENTO PBLICO

RSS-164, de 21/12/2000/DOE de 27 e 30/12/2000. Grupo de Trabalho: JA Cury, PC Narvai, RA Castellanos, TIB Forni, SR Junqueira, MC Soares O flor vem sendo utilizado, sob diversas formas, como instrumento eficaz e seguro na preveno e controle da crie dentria. Por isso considerado elemento estratgico das tecnologias empregadas nos sistemas de preveno em sade bucal. Nos anos 80 e 90, houve grande expanso na utilizao de produtos fluorados no Estado de So Paulo. O principal veculo para o flor vem sendo a gua de abastecimento pblico. Em 1996, 30,7 milhes de paulistas tinham acesso a essa medida preventiva, correspondendo a 79,3% da populao do Estado e a 91,8% da populao com acesso rede de gua tratada. Contudo, o flor est presente tambm em dentifrcios, solues para bochechos, gis para aplicaes tpicas e em outros produtos. Este uso de flor em larga escala, em sade pblica, combinado com aes educativas e prticas adequadas de higiene pessoal, vem produzindo importantes mudanas no perfil epidemiolgico da crie dentria, conforme ficou documentado no levantamento Condies de sade bucal Estado de So Paulo, 1998. Este novo contexto epidemiolgico e a necessidade de se utilizar produtos fluorados apenas quando o seu emprego est efetivamente indicado e, ainda, associando-se adequadamente diferentes mtodos so as justificativas para a edio dessas Recomendaes. PRODUTOS FLUORADOS Alguns produtos fluorados mais utilizados tm certas caractersticas que precisam ser devidamente consideradas no planejamento e execuo das aes preventivas.

A fluoretao das guas de abastecimento pblico uma medida eficaz, segura, de baixo custo relativo e fcil aplicao. Reduz a prevalncia da crie em 60% em mdia. recomendada pela Organizao Mundial da Sade e pelo Ministrio da Sade sendo obrigatria por lei no Brasil onde houver estao de tratamento de gua (Lei Federal 6.050, de 24/05/1974). A ao setorial de sade especfica em relao a este produto a vigilncia sanitria, que deve ser feita por rgos especializados no municpio (do SUS-SP) com base no princpio do heterocontrole. Cabe reiterar que competncia do SUS assegurar que a populao consuma um produto em conformidade com as exigncias legais. A Resoluo SS-293/96, de 25/10/1996, estabelece os procedimentos do programa de vigilncia da qualidade da gua para consumo humano no Estado de So Paulo e d providncias correlatas.B) DENTIFRCIOS

Seu uso dirio um dos maiores responsveis pela reduo dos nveis de crie dentria, devido ao tpica do flor na cavidade bucal. Pela Portaria SNVS no 71, de 29/05/1996 que teve alguns anexos revogados pela Resoluo no 79, de 28/08/2000 , no h obrigatoriedade de os dentifrcios comercializados conterem flor mas, se tiverem, devem obedecer s recomendaes em relao ao tipo e caractersticas do composto de flor. Os dentifrcios tambm so utilizados nas aes coletivas como veculo para flor tpico durante a escovao supervisionada. Esta atividade deve ser realizada no mnimo trimestralmente, em todas as pessoas, seja qual for o grupo de risco em que estejam includas. Crianas de 2 a 4 anos deglutem, em mdia, 50% do dentifrcio utilizado na escovao. Para crianas de 5 a 7 anos, esse percentual inferior a 25%. Isto um comprovado fator de risco para fluorose dentria. Para prevenir o problema, pais ou responsveis devem ser orientados para supervisionar as escovaes domsticas ou as realizadas em aes coletivas pelo menos at os 7 anos de idade, para instruir a criana para que no engula a espuma da escovao, e para colocar na escova pequena quantidade de pasta. A tcnica recomendada para uso a transversal. Tcnica Transversal: consiste em, com o tubo de dentifrcio em posio perpendicular ao longo eixo da escova, dispensar no centro da ponta ativa do instrumento, uma quantidade de dentifrcio correspondente a, no mximo, metade da

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sua largura da ponta ativa. Essa quantidade equivale, de modo geral, a um gro de ervilha pequeno e suficiente para a finalidade. Esta tcnica tambm recomendada para adolescentes e adultos. Para reduzir ainda mais a quantidade de dentifrcio a ser utilizado nas crianas menores de 4 anos (j que estas ingerem maior quantidade), sugere-se a tcnica da tampa: Tcnica da Tampa: consiste em, com a bisnaga fechada, pressionar levemente o tubo de modo a que fique retida, na parte interna da tampa (seja ela rosquevel ou no), uma pequena quantidade de pasta. Ento, abre-se o tubo e pressiona-se a ponta ativa da escova contra a parte interna da tampa de modo a transferir para a escova a pequena quantidade de pasta ali retida. Esta quantidade suficiente para veicular o flor necessrio e para produzir os outros efeitos do dentifrcio. Esta tcnica indicada para os primeiros anos de vida e at aproximadamente os 4 anos de idade.C) BOCHECHOS FLUORADOS

crianas menores de 6 anos. O uso de bochechos semanais seguro e no representa risco quanto ocorrncia da fluorose. No entanto, a ingesto da soluo de bochecho dirio ou semanal pode representar algum problema em relao intoxicao aguda, se ingerido mais do que a dose provavelmante txica, que de 5 mgF/Kg. Nesse caso, problemas gastro-intestinais (nusea, vmitos) e cardiovasculares (hipotenso), neurolgicos (parestesia), podem ocorrer. Todo o cuidado quanto letalidade deve ser tomado na manipulao dos produtos usados (sais, sachs, solues concentradas) para o preparo das solues que, alm da rotulao, devem ser mantidos longe do alcance de crianas. Em caso de acidente ministrar clcio oral; se necessrio, induzir vmitos com emticos e proceder internao para controle. Como ao de cobertura universal, os bochechos so indicados, principalmente, para municpios que no contam com o servio de fluoretao das guas de abastecimento pblico e sejam justificados pela prevalncia de crie da populao alvo. Dentre as vrias tcnicas para aplicao de bochechos fluorados, as duas mais difundidas no Estado de So Paulo so a do copo descartvel e a da "pisseta". Tcnica do Copo: consiste em entregar a cada participante um copo descartvel contendo aproximadamente 5 ml para crianas de 6 e 7 anos e 10 ml de soluo para as maiores de 7 anos. A um sinal do supervisor da ao a soluo levada cavidade bucal e bochechada durante 1 (um) minuto. Aps o bochecho a soluo devolvida ao copo e este descartado. Tcnica da Pisseta: consiste em substituir a tampa cnica de uma almotolia de plstico de cerca de 500 ml por uma pisseta em forma de V invertido. Uma das extremidades, a mais longa, atinge o fundo da almotolia atravs de uma cnula de imerso e prende-se ao recipiente atravs da tampa. A outra extremidade colocada prxima abertura bucal, sem toc-la. O dispositivo ento acionado mediante presso digito-palmar no corpo da almotolia, liberando um jato com quantidade controlada de soluo, suficiente para cobrir os dentes a serem atingidos. A criana comea ento a bochechar a soluo por 1 (um) minuto (como descrito acima) e em seguida a despreza no bebedouro ou pia.

As solues fluoradas para bochechos contendo 225 ppm F (0,05% de NaF) so recomendadas para o uso dirio e as que contm 900 ppm F (0,2% de NaF) so recomendadas para uso semanal. Os bochechos semanais vm sendo largamente utilizados no Brasil e no Estado de So Paulo. Como sua eficcia est condicionada continuidade da ao, quando utilizada soluo de fluoreto de sdio a 0,2%, preciso realizar, no mnimo, 25 aplicaes por ano. So indicadas apenas a partir dos 6 anos de idade e no requerem profilaxia prvia. Em So Paulo, a Resoluo SS-39 de 16/03/1999 estabelece normas para a realizao de procedimentos coletivos, nos quais esto includos os bochechos fluorados. As crianas entre 3 e 5 anos de idade ingerem de 10 a 20% da soluo de bochecho. Na faixa etria de 6 anos ou mais, a porcentagem de ingesto , no mximo, de 10%. Portanto, estes devem ser feitos apenas aps cuidadosa avaliao profissional da necessidade e no so indicados para crianas menores de 6 anos ou para aquelas que no tm controle de seus reflexos. Em relao fluorose dentria, cuidados devem ser tomados no que diz respeito aos bochechos dirios, pois, embora a concentrao de flor seja reduzida, a ingesto constante do produto pode significar algum risco, principalmente se usado em

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D) OUTRAS FORMAS DE APLICAO DE SOLUES FLUORADAS

A soluo de fluoreto de sdio a 0,02% vem sendo utilizada para o uso dirio em bebs, aplicando-a com o auxlio de cotonete. Naqueles que apresentam um maior risco para a crie, solues mais concentradas (0,5%) vm sendo preconizadas em aplicaes semanais, durante um ms. Entretanto deve-se salientar que tais recomendaes no esto fundamentadas em estudos clnicos controlados. Para crianas menores de 2 anos, no se recomenda nenhum tipo de soluo de flor para a aplicao tpica. Essas crianas recebem o benefcio da gua fluoretada, usada no preparo de alimentos. Caso sejam de alto risco, os vernizes teriam melhor indicao. H no mercado solues comerciais que contm flor, entretanto, essas no tm indicao teraputica na preveno da crie, e sim para casos de hipersensibilidade.E) PRODUTOS COM ALTA CONCENTRAO DE FLOR PARA USO PROFISSIONAL

Sendo a tcnica da escova dentria a mais comumente empregada nas aes coletivas no Estado de So Paulo, oportuno descrev-la em linhas gerais. Tcnica de Aplicao de Gel Fluorado com Escova Dentria: consiste em colocar no centro da ponta ativa de uma escova dentria, utilizando-se a tcnica transversal, uma pequena quantidade de gel, equivalente a um gro de ervilha pequeno (menos que 0,5 g). Durante cerca de 30 segundos, fricciona-se a ponta da escova contendo o gel sobre as superfcies dentrias de um hemi-arco, exercendo leve presso nas proximais e oclusais. Iniciar pelo hemi-arco superior direito e, em sentido horrio, repetir o procedimento de modo a atingir os quatro hemi-arcos, perfazendo um total de 2 minutos de exposio ao gel. Orientar a criana para no engolir em nenhuma hiptese. O objetivo da atividade , naquele momento, apenas aplicar flor no , portanto, escovar os dentes. Assim, quem aplica o flor no a criana mas o agente da ao. Recomenda-se que este no chame mais do que 6 crianas ao mesmo tempo para fazer a aplicao de gel fluorado, de forma a facilitar o fluxo. da maior importncia que esse nmero no seja excedido, uma vez que o teor de flor presente em gis muito elevado, sendo necessrio absoluto controle sobre o uso do produto em crianas. Cabe reiterar que no se trata de escovao dentria com gel fluorado. Recomenda-se enfaticamente que no se deve permitir que a criana, ou mesmo um adulto no qualificado, manipule gel fluorado. Tcnica de Aplicao de Verniz Fluorado: embora a quantidade de flor reagente nos vernizes fluorados seja de aproximadamente 23.000 ppm F, sua adesividade permite que o produto seja aplicado apenas nas reas de maior risco, minimizando a exposio a uma alta quantidade de flor. Por esse motivo, o veculo de flor mais indicado para bebs de alto risco de crie (e para outros indivduos tambm). Vale destacar que a aplicao de verniz feita em ambiente clnico, com o auxlio de pincis, e no se tem descries de tcnicas de aplicao em ambientes coletivos.F) MEDICAMENTOS FLUORETADOS

Os produtos utilizados para aplicaes profissionais so os gis e os vernizes (existe tambm a apresentao em mousse). Os gis fluorados contm de 0,9 a 1,23% de flor (9.000 a 12.300 ppm F). Nos vernizes so encontrados 22.600 ppm F. So, portanto, produtos com alta concentrao de flor e que devem ser manipulados por profissionais qualificados, uma vez que o seu emprego indicado nos procedimentos de fluorterapia intensiva, preconizados para indivduos de mdio e alto risco de crie. H situaes em que o gel fluorado empregado para a aplicao em massa, indiscriminadamente, em geral uma vez por semestre, e sem profilaxia prvia. Isto ocorre quando os indivduos no esto expostos ao flor por outros veculos, ou essa exposio mnima, ou quando a prevalncia de crie alta. Nesses casos, a condio individual praticamente no levada em conta na definio da estratgia. Entretanto, em contextos de baixa prevalncia de crie e alta exposio ao flor, a aplicao indiscriminada de gel fluorado no mais indicada. Mas seu uso continua vlido, desde que restrito aos indivduos que, efetivamente, dele necessitam. Sua aplicao pode ser realizada em ambiente clnico ou em espaos coletivos. Existem vrias tcnicas descritas para cada ambiente, entre as quais destacamos a do cotonete, a da gaze, a da moldeira e a da escova dentria. A finalidade sempre a mesma, a aplicao de gel fluorado, e qualquer tcnica, para ser efetiva, deve ser realizada de maneira adequada, respeitando-se os passos inerentes a cada uma.

O uso pr-natal de medicamentos fluoretados (ex: complementos vitamnicos) no se justifica por no causar nenhum benefcio. O uso ps-natal, mesmo em regies sem gua fluoretada, no recomendado em sade pblica se a populao infantil tem acesso a dentifrcios fluoretados. uma tendncia mundial a afirmao de que experincias em sade pblica com uso ps-natal de solues e comprimidos dirios no tm mostrado resultados positivos. Mesmo do ponto de vista individual, sua prescrio seria extremamente limitada.

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ASPECTOS TICOS DA APLICAO DE SUBSTNCIAS FLUORETADAS Pelas caractersticas desses produtos e pela dimenso tica presente na realizao dos procedimentos, recomenda-se que os responsveis pelas aes obtenham autorizao escrita dos responsveis pelos beneficirios, retendo-a na instituio promotora da atividade. De fato, no apenas para a realizao de fluorterapia, mas para qualquer atividade desenvolvida fora da Unidade de Sade, necessria a autorizao dos pais ou responsveis. Nos procedimentos em ambiente clnico, a autorizao do paciente ou responsvel tambm necessria, de acordo com as Resolues SS-15, de 18/01/1999 e CFO-179/91, de 19/12/1991 (Cdigo de tica Odontolgica) e o Cdigo de Defesa do Consumidor. PRINCPIOS PARA AVALIAO EPIDEMIOLGICA DO RISCO DE CRIE DENTRIA Sade e doena so determinadas por fatores sociais, econmicos e psicolgicos. Mais importante a incorporao das preocupaes com a sade nas discusses e implementaes de polticas pblicas baseadas num modelo socioeconmico, objetivando o desenvolvimento de estilos de vida saudveis. Nesse sentido, admite-se que a promoo da sade bucal o processo social de produo de condies gerais de vida e de trabalho favorveis a um desenvolvimento sadio da boca, compreendida em sua integralidade biolgica e social. Portanto, e conforme a 2a Conferncia Nacional de Sade Bucal, (Braslia, 25 a 27 de setembro, 1993) "(...) a sade bucal parte integrante e inseparvel da sade geral do indivduo e est relacionada diretamente com as condies de saneamento, alimentao, moradia, trabalho, educao, renda, transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, aos servios de sade e informao". Nestas Recomendaes admite-se que, para uma avaliao sumria do risco de crie, so necessrias informaes adicionais s relacionadas s caractersticas biolgicas individuais e que, em relao a estas, algumas so suficientes para caracterizar o risco individual. Esta opo visa apenas simplificao operacional de procedimentos e no significa que, com outras finalidades, informaes adicionais no sejam necessrias. Uma das caractersticas epidemiolgicas da crie dentria o fenmeno da polarizao. Observa-se que, em situaes de baixa prevalncia de crie dentria,

cerca de um quarto da populao concentra aproximadamente 75% das necessidades de tratamento decorrentes de crie. Esta distribuio no uniforme da doena entre os indivduos faz com que seja necessrio diferenciar as medidas preventivas a serem desenvolvidas junto aos diferentes grupos populacionais. indispensvel, entretanto, sublinhar que aes preventivas so imprescindveis para todos e devem ser realizadas segundo o princpio da universalidade. Reitera-se, portanto, que a polarizao no razo para descontinuar medidas preventivas dirigidas a toda populao, mas justifica a nfase que deve ser dada s aes direcionadas aos grupos mais vulnerveis. Com tal finalidade avaliao do r