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Cadernos de ESTUDOS LINGÜÍSTICOS (55.2), Campinas, Jul./Dez. 2013 ‘SARAVÁ ZIFIU!’: A INTEGRAÇÃO DO PREFIXO ‘ZI’ EM AFRO-VARIEDADES DO PORTUGUÊS LAURA ÁLVAREZ LÓPEZ * RESUMO: Tendo como pano de fundo a pesquisa sobre a participação de africanos e afrodescendentes na constituição do português brasileiro, o objetivo deste trabalho é analisar ocorrências do prefixo z’/zi, assim como sua variante ji, em representações orais e escritas da fala de africanos e seus descendentes no Brasil, e compará-las com ocorrências da mesma partícula em variedades do português africano. Ás questões de pesquisa são: qual é a origem desta partícula e como se deu sua integração no português brasileiro e nas variedades do português africano? Argumenta-se que a partícula em questão é um vestígio de prefixo de classe nominal de origem bantu que perdeu a sua função gramatical. PALAVRAS-CHAVE: contato linguístico, português Brasileiro, afro-português. ABSTRACT: Within the research on the participation of Africans and their descendants in the formation of Brazilian Portuguese, the aim of this paper is to analyze occurrences of the prefix z/zi, as well as its variant ji, in oral and written representations of speech of Africans and their descendants in Brazil as well as in Africa. The main issues are: a) what is the origin of this particle and how was it integrated into varieties of Brazilian and African Portuguese? It is argued that the particle zi is a remnant of a Bantu noun class prefix which has lost its grammatical function. KEYWORDS: Language contact, Brazilian Portuguese, Afro-Portuguese INTRODUÇÃO A presença histórica de falantes de línguas africanas no Brasil tem ocupado grande parte dos debates sobre o processo de formação do português brasileiro. Em geral, as discussões estão marcadas pela polarização de ideias sobre a questão do aporte dos falantes de línguas africanas e seus descendentes no processo de fixação das particularidades linguísticas que singularizam o português brasileiro frente ao português europeu. No que concerne especificamente aos estudos favoráveis à ideia de ter havido um aporte da população de origem africana na fixação de marcas linguísticas singularizadoras de variedades de português brasileiro, os argumentos apresentados partem parcialmente da observação de paralelismos entre essas marcas e aquelas encontradas em variedades do português africano. * [email protected]

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7Cadernos de ESTUDOS LINGSTICOS (55.2) Jul./Dez. 2013Cadernos de ESTUDOS LINGSTICOS (55.2), Campinas, Jul./Dez. 2013SARAV ZIFIU!: A INTEGRAO DO PREFIXO ZI EM AFRO-VARIEDADES DO PORTUGUSLAURA LVAREZ LPEZ*RESUMO: Tendo como pano de fundo a pesquisa sobre a participao de africanos e afrodescendentes na constituio do portugus brasileiro, o objetivo deste trabalho analisar ocorrncias do prefxo z/zi, assim como sua variante ji, em representaes orais e escritas da fala de africanos e seus descendentes no Brasil, e compar-las com ocorrncias da mesma partcula em variedades do portugus africano. s questes de pesquisa so: qual a origem desta partcula e como se deu sua integrao no portugus brasileiroenasvariedadesdoportugusafricano?Argumenta-sequeapartculaemquestoum vestgio de prefxo de classe nominal de origem bantu que perdeu a sua funo gramatical.PALAVRAS-CHAVE: contato lingustico, portugus Brasileiro, afro-portugus.ABSTRACT:WithintheresearchontheparticipationofAfricansandtheirdescendantsinthe formation of Brazilian Portuguese, the aim of this paper is to analyze occurrences of the prefx z/zi, as well as its variant ji, in oral and written representations of speech of Africans and their descendants in Brazil as well as in Africa. The main issues are: a) what is the origin of this particle and how was itintegratedintovarietiesofBrazilianandAfricanPortuguese?Itisarguedthattheparticleziisa remnant of a Bantu noun class prefx which has lost its grammatical function.KEYWORDS: Language contact, Brazilian Portuguese, Afro-Portuguese INTRODUOA presena histrica de falantes de lnguas africanas no Brasil tem ocupado grande parte dos debates sobre o processo de formao do portugus brasileiro. Em geral, as discusses esto marcadas pela polarizao de ideias sobre a questo do aporte dos falantes de lnguas africanas e seus descendentes no processo de fxao das particularidades lingusticas que singularizam o portugus brasileiro frenteaoportuguseuropeu.Noqueconcerneespecifcamenteaosestudos favorveisideiadeterhavidoumaportedapopulaodeorigemafricana nafxaodemarcaslingusticassingularizadorasdevariedadesdeportugus brasileiro,osargumentosapresentadospartemparcialmentedaobservao deparalelismosentreessasmarcaseaquelasencontradasemvariedadesdo portugus africano. * [email protected] ALVAREZ SARAV ZIFIU: A Integrao do Prefxo ZI em Afro-Variedades do PortugusTendoemcontaoacimaexposto,oobjetivodesteestudoanalisara integrao do prefxo z/zi, assim como sua variante ji, em um conjunto de fontes que incluem representaes orais e escritas, assim como descries do portugus falado por africanos e seus descendentes no Brasil e em variedades do portugus africano. As questes que norteiam o presente estudo so: qual a origem desta partcula e como se deu sua integrao em afro-variedades do portugus?CORPUS E MTODODada a escassez de outros dados lingusticos diacrnicos, os linguistas que estudam afro-variedades do portugus tm se valido, assim como no caso do presente artigo, de representaesescritasdafaladessesgrupossejamestesexagerosouesteretipos, sejamrepresentaescuidadosasdaoralidadepormeioderecursosutilizadospor autores que procuram refetir modalidades de fala divergentes da linguagem considerada padro.Noquedizrespeitooralidade,foramconsideradosnestetrabalhodadosde comunidadesafro-brasileirasisoladas,assimcomodadosdafaladeentidadescomo ospretos-velhosdaUmbandaque,aorepresentaremamemriadaescravido, revelam um comportamento lingustico associado a essa condio: uma fala particular esupostamentedesviante,comodeveriaserafaladeumvelhoescravoafricano (cf. Alkmim e lvarez Lpez, 2009; Bonvini, 2000). Os cerca de 200 exemplos aqui analisados do prefxo em questo provm das seguintes fontes (em total 13 fontes):-Representaesescritasdafaladenegrosincludasnareediodetrscordis annimos sem data (Diniz/Oliveira 19991).-Representaesescritasdafaladenegrosapresentadasemhistriasemsicas coletadas por folcloristas e historiadores (Nery 1889; Martins 1912; Andrade 1934; Brando 1949; Duarte 1957; Ribeiro 19682; Neves 2004).-Representaesdafaladenegroseescravospublicadasemumjornaldosculo XIX (A Evoluo, Campos dos Goytacazes, 20 de maio de 1886, pgina 1, citado em Gomes, no prelo).-Representaesescritasdefaladepretos-velhos3emsicasdepretos-velhos encontradas em publicaes sobre a Umbanda (Zespo 1951; Mandarino 1967).-Representaesorais:dadosdefaladepretos-velhos(Bonvini,2000);gravaes realizadas durante trabalho de campo em comunidades de Umbanda (Alkmim/lvarez Lpez, 2005).1 Segundo os editores, o texto teria sido escrito entre 1858 e 1865.2 Ribeiro coletou quadras em 1968 que j tinham sido publicadas em um jornal local em 1888.3 O preto-velho ou preta-velha o esprito de um escravo de idade avanada que se caracteriza pela sua pacincia e sabedoria. 4 Publicado originalmente em 1880-1886.9Cadernos de ESTUDOS LINGSTICOS (55.2) Jul./Dez. 2013Osdadosacimareferidossocomplementadoscomexemplosretiradosde estudos sobre variedades de portugus brasileiro (Amaral, 1920 [1980]; Azevedo, 1984;Bueno,1954;Byrd,2005;Castro,2001;Coelho,19674;Laytano,1936; Machado 2012; Melo, 1946; Mendona, 1933; Raimundo, 1933; Ribeiro, [1888-1889]1939;Vasconcellos,1883)eexemplosdomesmofenmenoobservados emvariedadesdeportugusnafrica,comasquaisosdadosbrasileirosso comparados(Cannecattim1805,Chatelain1888-1889;Johnson,1930;Mingas 2000, Ribeiro, 1939). Cabedestacarqueavariedadededadosefontesnosquaisapartculaji/zi temsidoregistradadifcultaoseuestudo.Noobstante,importantesalientar ofatorunifcadordessesdados,queconsistenofatodeosexemplosanalisados seremrepresentaesoraisouescritasdoportugusfaladoporpersonagens africanoseafrodescendentes.Foraocasodoscordeisannimos,osautoresdas fontes consultadas so conhecidos e conviveram, no Brasil, com os grupos cujas falassorepresentadas.Porisso,podem-seexagerarostraoslingusticosat certoponto;aomesmotempo,contudo,osleitoresfcariamdesconfados,caso as representaes se afastassem de modo marcante da realidade (Baker e Winer, 1999: 104; lvarez Lpez, 2008).Nessa perspectiva, constata-se que vrios autores fornecem dados especfcos, como a idade dos informantes (Andrade, 1934) e o mtodo de transcrio. Brando (1949: 122) assinala que documentou histrias relatadas pelo velho amigo Castro Azevedo, anos atrs, e que teve o cuidado de transcrever procurando gravar a pronncia de gria africana, de fala de negro da costa, que os contadores de tais estrias ainda hoje empregam na narrativa. Duarte (1957, sem pgina) informa queaoseguiroexemplodeoutrosautores,procureireproduzi-las[ashistrias doPaiJoo]comtodaaexatido,nosnagrafadosmodismospeculiaresao negro africano, como no enredo. Da mesma maneira, Zespo (1951: 5), afrma que o ponto deve ser cantado com msica exata e letra idntica quelas fornecidas pelo esprito, destacando que no se deve modifcar a letra em funo de erros. Prope-se aqui que, se um trao lingustico atribudo a indivduos de origem africanafrequente,mostrando-seestvelaolongodotempoeaparecendo emdiferentesfontes,escritaspordiferentesautores,comdiferentesfnseem diferentesregiesgeogrfcasemomentoshistricos,muitoprovvelque,em algum momento, realmente tenha sido caracterstico da fala do grupo estudado5. A presena do prefxo em dados coletados em comunidades afro-brasileiras no sculo XXI (Byrd 2005; Machado 2012) sustenta a validade das representaes escritas.5Paraumadiscussomaisaprofundadasobrefontesescritascomodocumentaodafalade africanos e seus descendentes no Brasil ver lvarez Lpez (2008).6Publicao pstuma que apresenta dados do Dicionrio Gramatical do mesmo autor, publicado em 1888-89.10 ALVAREZ SARAV ZIFIU: A Integrao do Prefxo ZI em Afro-Variedades do PortugusPRESENA E ORIGENS DE ZI NO PORTUGUS BRASILEIROO Dicionrio Gramatical de Joo Ribeiro , segundo meu conhecimento, o primeiro estudo que menciona a possibilidade de analisar a partcula em questo, considerandoocontatoentrealnguaportuguesaeaslnguasdogrupoBantu faladas em Angola, lugar de origem de muitos dos africanos introduzidos no Brasil (ver Ribeiro 19396: 83-97). O mesmo autor alega que os negros do Brasil, quando falamoportugusrepetemporaliteraoaparticulaprefxainicialemtodoo corpo da frase, como em:Zere zmandou zdiz (