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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 3

E D I TO R I A L

“A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas,um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, quepadecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menosteimosa e de uma lesão de coração: era um hospitalconcentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde.”

Esta frase do livro de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cuba”, me foiapresentada pelo grande amigo Marco Akerman, da Faculdade de Medicina do ABC/

SP, em um encontro onde tinha o desafio de discutir sobre a construção de indicadorespara a Promoção da Saúde. Inicio esse editorial com essa frase porque a cada dia ficomais certo que existe mais coisa entre a saúde e a doença do que os nossos conhecimentosbiomédicos possam explicar.

Inegavelmente, o mundo atual vem passando por profundas transformações nosdiversos setores. No da saúde, deparamo-nos com novos desafios que infelizmentemuito pouco o modelo atual de intervenção tem conseguido promover mudanças: aquestão da violência e a prevenção das doenças crônico-degenerativas seriam bonsexemplos.

Este exemplar da revista Sanare é fruto de um trabalho que envolveu diversaspessoas, todas com importantes contribuições e com uma capacidade imensa de construircoletivamente os principais conceitos ligados à Promoção da Saúde.

O principal fator motivador para esse trabalho foi a clareza, por parte dessegrupo, de que a Promoção da Saúde é o principal objetivo da Estratégia de Saúde daFamília. Em outras palavras, o modelo que estamos construindo seria um modelo promotorde saúde, contrapondo-se a outros modelos: curativo, preventivo.

É importante ainda destacar que os textos apresentados nesse exemplar serviramcomo base para a produção de um material a ser entregue ao Ministério da Saúde, eque acreditamos que poderá contribuir bastante para a difusão desses conceitos entreas equipes do Programa Saúde da Família e gestores da saúde.

Agora, penso que apenas devo desejar que as páginas dessa revista possam setransformar em objeto de profundas reflexões e possam assim apresentar algumaspistas sobre a vitalidade e saúde dos olhos de Viegas.

Tomaz Martins JúniorDiretor Presidente da Escola de Formação em Saúde

da Família Visconde de Sabóia/Sobral-CE

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S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20034

MARCO CONCEITUAL DA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSF○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○11Ana Cecília Sucupira

O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: UM COMPROMISSOCOM A QUALIDADE DE VIDA○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○19Márcia Faria Westphal

CIDADANIA, CAMINHO PARA UMA VIDA SAUDÁVEL○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○31Maria Cecília Cordeiro Dellatorre

PROMOÇÃO DA SAÚDE: CONCEITOS E DEFINIÇÕES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

07Ana Cecília Sucupira e Rosilda Mendes

A BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○15Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto e Geison Vasconcelos Lira

APODERAMENTO○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○27Tomaz Martins Júnior

SUMÁRIO

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 5

RELAÇÃO EDUCATIVA DA EQUIPE DE SAÚDE DAFAMÍLIA COM A POPULAÇÃO○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○35Ausônia Favorito Donato e Rosilda Mendes

TERRITÓRIO: ESPAÇO SOCIAL DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E DE POLÍTICAS○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○39Rosilda Mendes e Ausônia Favorito Donato

MÚLTIPLOS ATORES DA PROMOÇÃO DA SAÚDE○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○43Márcia Faria Westphal

PROMOÇÃO DA SAÚDE, PODER LOCAL E SAÚDE DA FAMÍLIA:ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS LOCAIS SAUDÁVEIS, DEMOCRÁTICOS ECIDADÃOS - HUMANAMENTE SOLIDÁRIOS E FELIZES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○51Neusa Goya

A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO BRASIL E A SUPERAÇÃODA MEDICINA FAMILIAR○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○57Tomaz Martins Júnior, Luiz Odorico Monteiro de Andrade eIvana Cristina de Holanda Cunha Barreto

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PPROMOÇÃO DA SAÚDE:

CONCEITOS E DEFINIÇÕESHealth Promotion: Concepts and Definitions

A promoção da saúde é mais ampla que a prevenção da saúde. É preciso ampliar a discussão da prevenção para a ótica da

promoção da saúde. Ou seja, mudar a lógica simplista da visão economicista de que é melhor prevenir do que curar para a

concepção do direito de não ter um agravo para o qual já existem conhecimentos e práticas disponíveis, que podem proteger o

indivíduo de ter tal agravo. A concepção anterior reduz o objetivo das ações simplesmente, para ausência da doença. Na verdade,

a promoção da saúde está vinculada à noção de direitos, ou seja, o direito a ter uma vida saudável.

Promoção da saúde; programa saúde da família; Carta de Ottawa.

Ana Cecília SucupiraPediatra Sanitarista

Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral

Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública,

assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo

Health promotion is more extensive than sickness prevention. It is necessary to widen discussion of prevention for the

viewpoint of health promotion. In other words, to alter the simplistic logic of economist vision that it is better to prevent

than to cure in support of the concept of the right to not contract an illness for which already exists knowledge and available

practice, which can protect the individual from contracting such illness. The previous concept reduces the objective of actions

simply, for the absence of sickness. In reality, health promotion is linked to the notion of rights, in other words, the right of

having a healthy life.

Health promotion; family health program; constitution; The Ottawa Charter.

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PROMOÇÃO DA SAÚDE, PREVENÇÃO DE DOENÇAS

Na Constituição de 1988, privilegiam-se as ações de promoção,

proteção e recuperação da saúde, colocando-se essas três

ações em um mesmo plano. Ao se discutir a promoção da saúde no

Programa Saúde da Família (PSF), considerou-se esta como o

objetivo principal dos profissionais do PSF e nomeou-se a

promoção como gênero e a prevenção como espécie. Nesse texto,

será fundamental diferenciar o que se entende por promoção da

saúde, educação em saúde e prevenção.

Há algumas décadas discutia-se nas Faculdades de Medicina

a importância de introduzir a questão da prevenção das doenças.

A partir do modelo de Leawell & Clark, no esquema da História

Natural das Doenças, definiu-se a promoção da saúde como os

cuidados à saúde, em atividades dirigidas à mudança de

comportamentos dos indivíduos, tendo como base as atitudes e

hábitos que caracterizam os diferentes modos de vida. A promoção

ficava restrita ao nível primário. Já a prevenção deveria acontecer

em todos os níveis da História Natural das Doenças, seja prevenindo

a doença ou as suas complicações nos diferentes momentos de

evolução da doença.

A concepção principal que orientava a discussão nas

faculdades estava fundamentada na visão economicista de que "é

melhor prevenir do que curar" "é melhor prevenir do que remediar"

Na verdade, o "melhor" referia-se ao fato de que era mais barato

investir na prevenção do que na cura das doenças. Essa noção foi

incorporada nos currículos médicos, como uma atribuição dos

Departamentos de Medicina Preventiva ou de Saúde Coletiva. A

Clínica remetia para a Medicina Preventiva a discussão das medidas

de prevenção.

A prevenção concebida sob a ótica economicista foi

rapidamente incorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se

à lógica do paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de

incorporar tecnologia adequada para essas ações. Assim,

desenvolveu-se a prática dos exames de "chekup" e a indústria da

prevenção. Na realidade, o "custo menor" ficava no discurso de

tom moralista, pois cada vez mais foi necessária a incorporação de

exames e procedimentos preventivos. Testes de "screening" para

diferentes doenças foram introduzidos, muitos deles com

procedimentos de baixa especificidade e sensibilidade, sem

evidências suficientes que comprovassem o seu valor preditivo.

Entretanto, deve-se recuperar a importância da prevenção

dos agravos na lógica do direito à saúde, o direito de não ter um

agravo, para o qual já existem conhecimentos e procedimentos

que podem evitar tal agravo. As campanhas de prevenção das

doenças infecciosas são extremamente válidas porque utilizam

conhecimentos e práticas que comprovadamente podem evitar

muitas doenças, sendo efetivas na redução da incidência dessas

doenças. Um exemplo típico são as campanhas de prevenção da

AIDS e as de vacinação. A redução dos agravos em ambos os casos

foi muito importante. A queda da mortalidade infantil, no Brasil,

teve como um dos principais fatores a redução das doenças

imunopreveníveis.

OS LIMITES DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE

A educação em saúde é um outro conceito referido na

introdução deste texto, sendo uma das práticas mais antigas,

voltadas principalmente para a prevenção das doenças. No início

do século passado, as campanhas higienistas tinham como um

dos pilares as propostas de educação sanitária. Partia-se do

princípio que as doenças eram decorrentes da ignorância da

população, sendo fundamental educar e ensinar comportamentos

saudáveis para se ter populações sadias. A concepção higienista

foi dominante nas ações da Higiene Escolar desde o final do século

XIX, com medidas que visavam ensinar as crianças comportamentos

saudáveis, que tinham como traço marcante a visão moralista e

preconceituosa das elites sobre as classes populares.

Entretanto, ainda hoje, permanece a idéia de que é importante

e suficiente educar as pessoas para que elas possam adquirir

comportamentos mais saudáveis. Muda-se o discurso. A Carta de

Ottawa fala da importância da capacitação dos atores, para que

identifiquem opções e tomem decisões por hábitos de vida mais

saudáveis, mantendo a idéia de que os atores desconhecem os

hábitos de vida que seriam saudáveis e por isso necessitam de

capacitação. Nessa visão, a adoção de hábitos de vida mais

saudáveis depende apenas de decisões individuais, a partir de um

leque de opções. Persiste a negação das condições materiais de

vida que impedem a grande maioria da população de poder optar

por hábitos de vida mais saudáveis. Culpabiliza-se assim a vítima

por não ter observado melhor os preceitos e ensinamentos da

saúde.

Nos últimos 20 anos, como reflexo da mudança do perfil

epidemiológico com maior predomínio das doenças crônicas e

das causas externas, houve um redirecionamento da atenção à

saúde nos países mais desenvolvidos. Nesse sentido, o modelo

proposto pela promoção da saúde parece mais adequado às novas

realidades de saúde.

A prevenção concebida sob a ótica economicista foi rapidamenteincorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se à lógica do

paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de incorporartecnologia adequada para essas ações. Assim, desenvolveu-se a prática dos

exames de "chekup" e a indústria da prevenção.

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A promoção da saúde enquanto campo conceitual

e de prática vem se desenvolvendo como uma reação à

medicalização da saúde, na sociedade e no interior do

sistema de saúde e tem, no atual contexto, um marco

de referência mais amplo do que o enfoque usado no

esquema da História Natural das Doenças, centrado no

indivíduo, família ou grupos.

As estratégias da promoção da saúde têm seu

desenvolvimento, como movimento ideológico e

social, de forma mais intensa no Canadá, Estados

Unidos e países da Europa Ocidental, com avanços

mais lentos na América Latina e Caribe. As Conferências

Internacionais, a partir da Primeira Conferência de

Promoção da Saúde realizada em Ottawa, em 1986,

têm difundido conceitos básicos que exigem a

revigoração da saúde pública em torno do compromisso

de saúde para todos. As discussões de Ottawa tiveram

como parâmetros a Declaração de Alma-Ata para os

Cuidados Primários em Saúde (1978) e debates

posteriores realizados ao redor do mundo.

DISCUTINDO SAÚDE COMO UM PRODUTOSOCIAL

Os encontros e as conferências subsequentes

relacionados ao tema, especialmente as Conferências

Internacionais realizadas em Adelaide, na Austrália,

em 1988, em Sundsvall, na Suécia, em 1991, em

Jakarta, em 1997 e no México em 2000, procuraram

reafirmar a Conferência de Alma-Ata, ressaltando a

necessidade de se adotar propostas de intervenção

inovadoras e mais abrangentes na implementação de

políticas públicas saudáveis. Definiram, ainda, as

políticas públicas saudáveis como o interesse de todas

as áreas das políticas públicas em relação à saúde e

eqüidade.

Na América Latina a introdução da reconceituação

da Promoção da Saúde e o estabelecimento de

estratégias de desenvolvimento de ações de promoção

da saúde nos países em desenvolvimento, tiveram início

com a Conferência de Promoção da Saúde realizada em

Santa Fé de Bogotá em 1992. A iniqüidade sem

precedentes da América Latina, agravada pela crise

econômica e pelos programas das políticas de ajuste

macroeconômico, a situação política que limita o

exercício da democracia e a participação pela

cidadania, foram considerados fatores determinantes

na deterioração das condições de saúde e vida das

populações latino-americanas.

O que vem caracterizar a promoção da saúde, nos

dias de hoje, é a constatação de que a saúde tem uma

determinação social, portanto está relacionada com a

totalidade da vida. Pode-se afirmar que o enfoque da

Promoção da Saúde é mais amplo e abrangente e é

conseqüente a uma mudança de visão do que é saúde.

A promoção da saúde é considerada um instrumental

conceitual, político e metodológico em torno do

processo saúde-doença, que visa analisar e atuar sobre

as condições sociais que são críticas para melhorar as

condições de saúde e de qualidade de vida (CERQUEIRA

1997; BUSS 1998).

É importante destacar, aqui, alguns pontos: o

primeiro é que começa a se delinear um "novo paradigma

de saúde": a saúde é produzida socialmente. Assim, a

Promoção da Saúde está relacionada a um conjunto

de valores: vida, saúde, solidariedade, eqüidade, de-

mocracia, cidadania, participação, parceria, desenvol-

vimento, justiça social, revalorização ética da vida.

Portanto, relaciona as determinações da saúde às di-

mensões sociais, culturais, econômicas e políticas nas

coletividades para alcançar um desenvolvimento soci-

al mais eqüitativo. Ressalta-se, ainda, a combinação

de estratégias, ou seja, a promoção da saúde demanda

uma ação coordenada entre os diferentes setores soci-

ais, ações do Estado, da sociedade civil, do sistema de

saúde e de outros parceiros intersetoriais. Em suma, a

saúde não é assegurada apenas pelo setor da saúde.

Para a prevenção, evitar a

ocorrência de enfermidade e a

perda do bem estar é o objetivo

final. Para a promoção da saúde

o objetivo contínuo é buscar

expandir o potencial positivo de

saúde, portanto, a ausência de

doenças não é suficiente.

As ações de promoção da

saúde concretizam-se em

diversos espaços, em órgãos

definidores de políticas, nas

universidades e, sobretudo,

... a Promoção da Saúde está

relacionada a um conjunto de valores:

vida, saúde, solidariedade,

eqüidade, democracia, cidadania,

participação, parceria,

desenvolvimento, justiça social,revalorização ética da vida.

Para a promoçãoda saúde o objetivo

contínuo é buscar

expandir o potencial

positivo de saúde,

portanto, a ausência

de doenças não

é suficiente.

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localmente, nos espaços sociais onde vivem as pessoas. As cidades,

os ambientes de trabalho e as escolas são os locais onde essas

ações têm sido propostas.

Como a saúde é entendida a partir de seus determinantes

sociais, há de se promover uma responsabilidade social para com

ela. Na formulação de políticas públicas saudáveis, todos os setores

de governo devem direcionar sua atuação tendo como perspectiva

que a saúde é um aspecto essencial da vida, daí a necessidade de

criar parcerias e alianças com todos os setores da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Buss PM. organizador. Promoção da saúde e a saúde pública : contribuiçãopara o debate entre as escolas de saúde pública da América Latina.ENSP. Rio de Janeiro; 1998.

Cerqueira MT. Promoción de la salud y educacón para la salud: retos yperspectivas. In: Arroyo HV, Cerqueira MT. La promoción de la saludy educación para la salud en América Latina: un análisis sectorial.Puerto Rico: Editorial de la Universidade de Puerto Rico/OPS; 1997.p. 7-47.

Mendes Gonçalves, RB.- Tecnologia e Organização Social das Práticas deSaúde - Hucitec/Abrasco, São Paulo, 1994.

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MMARCO CONCEITUAL DA

PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSFConceptual Landmark of Health Promotion in PSF (Family Health Program)

A promoção da saúde deve ser o objetivo principal no trabalho dos profissionais do PSF. Isso implica ir além da resolubilidade

imediata da queixa trazida pelo indivíduo e a necessidade de construir um novo processo de trabalho que permita à

população identificar os problemas e potencialidades, reconhecendo as condições e os fatores envolvidos na produção da queixa,

do sofrimento e da saúde.

Promoção da saúde; programa saúde da família; sistema único de saúde.

Ana Cecília SucupiraPediatra Sanitarista

Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral

Health promotion should be the main objective in the practice of PSF professionals. This implies going beyond the

immediate resolubility of the complaint presented by the individual and the necessity to construct a new practice process

that permits the population to identify the problem and potentialities, recognizing the conditions and factors involved in

creating the complaint, of the suffering and health.

Health promotion; family health program; unified health system.

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O NOVO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE

A aprovação do Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal de 1988 forneceu

os princípios para a reorganização da atenção à saúde no Brasil, mas tem sido o

Programa de Saúde da Família a estratégia estruturante que viabiliza a construção de

um novo modelo de atenção à saúde. O modelo que se pretende com a implantação do

PSF, pode ser visto como novo, porque implica uma mudança no modelo existente,

que se torna passado, antigo. Isto não significa dizer que as idéias que fundamentam

o modelo do PSF sejam todas novas. Algumas dessas idéias já estavam presentes, há

algumas décadas, mas obtiveram pouco sucesso, uma vez que eram introduzidas sem

que houvesse uma mudança substancial na orientação do modelo de atenção à saúde.

Não há, portanto, uma negação mecânica do modelo anterior, mas uma negação

dialética, uma superação, na qual se considera o que havia de bom no modelo antigo

e elementos novos são incorporados para a construção do modelo novo. Vale ressaltar

que o PSF pode ser considerado como um novo modelo, porém sua prática ainda não

é nova e reproduz em muitos casos o paradigma biomédico.

A afirmação de que a promoção da saúde deve ser o objetivo principal da Equipe

de Saúde da Família é conseqüente ao ideário de princípios que norteiam a implantação

do PSF e que estão contidos na formulação do SUS. Assim, revendo esses princípios

vamos encontrar os elementos necessários para justificar essa assertiva.

A marca principal do PSF, fundamentada na promoção da saúde, é a mudança de

foco que passa a ser a saúde e não mais a doença. Pensar a saúde, não como a simples

ausência da doença, mas como produto da

qualidade de vida, socialmente determinada,

implica necessariamente, a superação do

paradigma da biomedicina, organicista e a

incorporação de um novo referencial que

considere os aspectos históricos, culturais e

sociais que interferem no modo como deve ser

prestada a atenção à saúde. Nesse novo olhar,

o indivíduo só pode ser compreendido na sua

totalidade se estendermos esse olhar para a

família com a qual ele convive, a moradia como

núcleo de elementos favoráveis ou

desfavoráveis a sua saúde e o cenário da

comunidade e da sociedade que, influenciam

do ponto de vista social e cultural a adoção

de determinados modos de vida.

PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA E PROMOÇÃO DA SAÚDE

Nessa perspectiva, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) tem como cliente a

família, inserida numa comunidade e a saúde dessa família não pode ser objeto de

trabalho apenas da equipe, mas é também, objeto de um conjunto de intervenções da

comunidade e do Estado, enquanto instância de governo. Insere-se, assim,

obrigatoriamente a noção da intersetorialidade no PSF.

Ao ter como objeto principal de trabalho a saúde do indivíduo, da família e da

coletividade, a proposta do PSF é necessariamente centrada na promoção da saúde.

Mas o que se entende por promoção da saúde? Resumidamente, pode-se dizer que é a

atuação nos determinantes da saúde, ou seja, um conjunto de ações assumidas pelos

indivíduos, a comunidade e o Estado com o objetivo de criar condições favoráveis ao

A marcaprincipal do PSF,

fundamentada na

promoção da

saúde, é a

mudança de

foco que passa a

ser a saúde enão mais a doença.

pleno desenvolvimento das potencialidades

humanas. Isso implica intervir coletivamente

visando a qualidade de vida. As condições

favoráveis são criadas individualmente por

meio de atitudes e modos de vida saudáveis,

coletivamente por ações conjuntas da

comunidade ou ainda por intervenções dos

vários setores do governo. Ao se falar em

atitudes e modos de vida mais saudáveis na

promoção da saúde, é preciso ter cuidado para

não se responsabilizar apenas o indivíduo pela

sua própria saúde, portanto, tem que se

colocar a participação da comunidade no

desenvolvimento de uma política saudável,

ou seja, discutir os aspectos individuais dos

modos de vida, a participação coletiva na

gestão das políticas e as desigualdades

estruturais da sociedade que impõem diferenças

no modo de vivenciar a saúde e a doença.

Deduz-se que os atores da promoção da saúde

são vários, ou seja, a promoção da saúde é

uma responsabilidade de toda a sociedade.

Obviamente, a prevenção das doenças

está inserida na promoção da saúde. A

prevenção atua sobre os determinantes da

doença. Assim, as medidas de redução do

número de veículos circulantes nas grandes

cidades, nos períodos em que a qualidade do

ar se torna crítica, tem como objetivo reduzir

a incidência de doenças respiratórias. Já a

proibição da circulação de veículos nos fins

de semana, em algumas ruas, tornando-as áreas

de lazer, tem como objetivo maior possibilitar

às pessoas um espaço para atividades ao ar

livre melhorando a qualidade de vida da

população. Além disso, é uma medida também

preventiva que serve para reduzir doenças

ligadas à qualidade do ar e à vida sedentária.

No dizer de Andrade (2002): "...no PSF a

promoção é gênero e a prevenção é espécie".

A assistência está contida na promoção da

saúde que é uma ação mais ampla que a

... a promoção da

saúde é uma

responsabilidade de

toda a sociedade.

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assistência. Mas é fundamental entender que ao se assumir a

promoção da saúde como objetivo principal, ela vai direcionar a

assistência que é prestada na atenção básica e influenciar

diretamente os outros níveis de atenção, uma vez que se concebe

o PSF como estratégia estruturante de todo o sistema.

Em última instância o PSF tem como objetivo a melhora da

qualidade de vida para se ter como produto a saúde. Ora, a pergunta

que se segue é o que se deve entender por qualidade de vida? Que

qualidade de vida se pretende e para quem? São questões cuja

resposta deve ser encontrada a partir de discussões que considerem

os aspectos históricos, culturais e sociais de uma determinada

comunidade.

Uma conseqüência lógica do que foi exposto acima e que

constitui uma idéia-força contida na assertiva inicial é a

necessidade de mudança do processo de trabalho dos profissionais

na unidade de saúde.

A doença, ou melhor, a queixa, tem sido a principal linguagem

de comunicação entre a unidade de saúde e a população. A

demanda trazida é sempre a queixa de um sofrimento, visto sempre

na sua manifestação somática, orgânica. O idoso, em busca de

uma escuta, é atendido pela sua queixa de dores recorrentes. As

manifestações alérgicas são inibidas pela prescrição contínua da

medicação, sem que os alergenos sejam identificados, a doença

sexualmente transmitida é medicada, sem que os profissionais

avaliem as suas repercussões no relacionamento do casal, o

sofrimento psíquico não é percebido e a depressão, a angústia, o

alcoolismo são vistos como doenças orgânicas, portanto, passíveis

de tratamento medicamentoso.

UNIVERSALIDADE, EQUIDADE E INTEGRALIDADE

Essa visão medicalizante do sofrimento foi impondo um modo

específico de funcionamento dos serviços de saúde que se traduziu

no modelo de atenção, definido por Ricardo Bruno (1994), de

queixa/conduta. Os serviços de saúde organizam o atendimento à

demanda na forma do pronto-atendimento, caracterizando o que

Mendes (2001) chama de modelo agudocêntrico. A atenção à

saúde encerra-se com a prescrição da receita, a solicitação de

exames e o encaminhamento para serviços mais especializados.

Reforça-se assim a imagem de ineficiência da atenção básica.

A pressão política pelo acesso ao atendimento nos serviços

de saúde expressa a idéia de que a assistência médica traz saúde

aos indivíduos. O médico, visto como alguém que cura, é o centro

que direciona o modelo de atenção. Os demais profissionais são

acessórios, para os quais são encaminhados os casos que o modelo

biomédico não consegue resolver, transformados quase sempre em

mazelas sociais.

Os princípios do SUS são reinterpretados: a universalidade, a

eqüidade e a integralidade da atenção são entendidas como o

direito de todos à tomografia, à ressonância. O hospital representa

o acesso diferenciado à atenção à saúde. O modelo concentra no

hospital os investimentos sob a pressão da indústria de

equipamentos e farmacêutica. A atenção básica ou primária é vista

como um apêndice do nível terciário.

O esgotamento desse modelo é inevitável. Os países mais

desenvolvidos já redirecionaram a atenção à saúde, fortalecendo a

promoção da saúde. A mudança no perfil epidemiológico, no qual

as doenças infecto-contagiosas vão sendo substituídas pelas

doenças crônicas, degenerativas ou não, e pelos agravos externos

exige mudanças no modelo. Agravos que demandam um outro

enfoque, pois não é a cura o objetivo, mas a prevenção das

complicações e a manutenção da qualidade de vida.

A superação do modelo antigo não invalida os diferentes

níveis de atenção, o hospital, os serviços especializados e as

unidades básicas, mas integra-os no sistema hierarquizado e

regionalizado, tendo como porta de entrada a unidade básica de

saúde, tal como previsto no SUS. O PSF na construção do novo

modelo radicaliza ao priorizar a promoção da saúde e reconhecer a

unidade básica de saúde como a instância de excelência para dar

conta de mais de 80% da demanda. O hospital passa a ser visto

como uma instância de atenção não primária, assumindo sua

vocação de atendimento de alta complexidade, destinado a uma

pequena minoria de casos que irá necessitar dessa modalidade de

atenção.

A questão que se coloca é como construir um novo processo

de trabalho, centrado na perspectiva prioritária da promoção da

saúde. Teoricamente, a construção do PSF tem na sua essência a

filosofia da promoção da saúde ao ter como objeto de atenção a

saúde e não a doença. Entretanto, ao se tratar de um processo de

trabalho em construção é preciso definir o marco teórico e

metodológico para a promoção da saúde nos contornos do PSF. É

importante ainda, discutir o papel dos gestores nesse novo processo

de trabalho.

Não se limitar a simples resolução imediata da queixa significa

antes de tudo entender a dimensão dessa queixa, para além do que

ela explicita. E mais, significa a compreensão de que a saúde só

poderá ser alcançada se a queixa, o sofrimento, a doença forem

compreendidos nos seus determinantes. É preciso identificar os

condicionantes do sofrimento que se expressam naquele sintoma

manifestado pelo paciente e pensar o problema no espaço do

território, para que possam ser identificadas soluções coletivas. Os

casos de diarréia não podem ser vistos de forma isolada. É necessário

Os princípios do SUS são

reinterpretados: a universalidade, a

eqüidade e a integralidade da

atenção são entendidas como o

direito de todos à tomografia,

à ressonância.

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avaliar a ocorrência de outros casos e analisar com a população o

porquê desses casos, discutindo as características dos modos de

vida da comunidade e as condições ambientais que estejam

favorecendo o aparecimento de tantos casos de diarréia. As

soluções encontradas nas discussões dos conselhos locais de saúde

têm muito mais efetividade que as orientações que possam ser

dadas pela equipe de saúde. Um outro aspecto importante desse

modo de trabalhar é evitar que visões preconceituosas da equipe

de saúde tendam a culpar a própria família ou a comunidade pelos

casos de diarréia. Essa postura é freqüente e pode ser exemplificada

em frases do tipo: "a mãe é irresponsável" "o povo é relaxado

mesmo".

Algumas ferramentas são fundamentais na construção desse

novo processo de trabalho da equipe de saúde. Inicialmente, o

trabalho tem de ser visto na perspectiva da co-gestão com a

comunidade. Para isso, é preciso pensar a saúde tanto do ponto

de vista individual quanto coletivo e o desenvolvimento de um

conhecimento específico para trabalhar essas questões. Porém o

fundamental é a mudança de atitude por parte dos trabalhadores

em saúde.

O instrumental epidemiológico dá visibilidade à população

do processo saúde/doença. Entretanto, os conhecimentos

epidemiológicos têm de ser socializados coletivamente. A

comunidade deve participar ativamente da investigação

epidemiológica. Experiências nas quais os conselhos locais de

saúde têm também a função de investigar as mortes por causas

externas, mostram que as informações sobre as causas dessas mortes

são muito mais próximas da realidade, pois são obtidas por quem

está no bairro e conhece a vida do bairro. Além disso, é possível

trabalhar a epidemiologia do potencial de saúde das comunidades,

reconhecendo nas condições e modos de vida da comunidade o

que pode ser feito para a promoção da saúde. Rompe-se com o

modelo da epidemiologia tradicional ligada à doença e de

propriedade dos médicos e enfermeiros, abrindo-se para a

participação das pessoas da comunidade. Essa é uma forma concreta

da população se apropriar das informações sobre o processo saúde/

doença na sua comunidade e construir um diagnóstico das

condições de saúde que permita trabalhar na direção da promoção

da saúde.

Obviamente, duas outras ferramentas estão necessariamente,

incorporadas nesse processo, a territorialização e a ação intersetorial.

A atenção básica territorializada é fundamental e está

instrumentalizada pela adscrição da clientela, prevista no modelo

do PSF. A construção do diagnóstico de saúde da comunidade

implica o conhecimento do território enquanto um espaço vivo

de relações, que produz a saúde e a doença. O processo de

elaboração do diagnóstico epidemiológico, com base territorial

possibilita articular os serviços de saúde com a comunidade e

outros setores da sociedade, principalmente aqueles relacionados

ao ambiente e ao desenvolvimento urbano. A identificação das

condições e fatores envolvidos no processo saúde/doença requerem

a ação intersetorial tanto no reconhecimento do modo de atuação

desses fatores como na sua superação. Os diferentes olhares da

equipe contribuem para trazer uma diversidade maior de elementos

que vão compor o cenário e o processo que levou a um determinado

problema de saúde vivenciado por uma família, por um grupo de

famílias ou por uma comunidade. Essa produção coletiva do

diagnóstico do problema e da discussão em busca de suas soluções

requer uma organização interna da estrutura de trabalho da unidade

que democratiza as competências e ajuda a construir o trabalho

em equipe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na construção do novo processo de trabalho é necessária a

formação de novos atores, novos no sentido de terem condições

de fazerem a crítica ao paradigma da biomedicina.

Resumindo, a assertiva enunciada no início do texto tem

três idéias-força:

1a : a promoção da saúde deve ser o objetivo principal dos

profissionais do PSF;

2a : é necessário construir um novo processo de trabalho;

3a : o atendimento deve ir além da queixa, ou seja, discutir

os fatores envolvidos na queixa e no sofrimento.

A idéia é que o novo modelo garanta a universalidade, a

equidade, a integralidade, mas com um salto de qualidade, porque

deve estar centrado na comunidade, considerando os aspectos

antropológicos, sociais e culturais da população e tendo sempre

presente o direito à saúde. A participação da população nos

conselhos municipais de saúde e nas instâncias de decisão das

políticas públicas relacionadas à saúde deve ser estimulada

enquanto um exercício da cidadania.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Andrade, LOM, Relatório sobre a "Oficina de Promoção da Saúde noPSF", Documento mimeo, Sobral, 2002.

Mendes Gonçalves, RB, - Tecnologia e Organização Social das Práticasde Saúde. Hucitec/Abrasco. São Paulo, 1994.

Mendes, EV, Grandes Dilemas do SUS. Ed. Casa da Qualidade SalvadorBahia. 2001

Rompe-se com o modelo da

epidemiologia tradicional

ligada à doença e de propriedade

dos médicos e enfermeiros, abrindo-

se para a participação das

pessoas da comunidade.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 15

AA BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA

SAÚDE DA FAMÍLIABioethics and the Family Health Strategy

O Sistema Único de Saúde, conquista do povo brasileiro garantida pela Constituinte de 1988, após anos de luta de inúmeros

cidadãos, tem como princípios norteadores a Universalidade, a Eqüidade, a Acessibilidade e a Participação Social. Podemos

afirmar que todos estes princípios estão de acordo com os da Bioética, ou melhor, se cumpridos, estarão possibilitando a efetivação

dos mais importantes preceitos da Bioética. Também discutiremos no trabalho como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/

ou vem efetuando, na prática, princípios da bioética.

Bioética; sistema único de saúde; estratégia de saúde da família; constituição.

Ivana Cristina de Holanda Cunha BarretoProfa. Assistente da Fac. de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Mestre em Saúde Pública

Geison Vasconcelos LiraMédico, auditor da Coordenação de Controle e Avaliação do município de Sobral

Especialista em Saúde do Trabalhador

The Unified Health System, a conquest of the Brazilian people guaranteed by the 1988 Constituent Assembly, after years

of struggle by innumerous citizens, has as guiding principles Universality, Equity, Accessibility and Social Participation.

We can affirm that all these principles are in accord with those of Bioethics, or better, if fulfilled, will be enabling the bringing

about of the most important precepts of Bioethics. We will also discuss in the task how the Family Health Strategy can turn out

to and/or is turning out to carry out, in practice, principles of bioethics.

Bioethics; unified health system; family health strategy; constitution.

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OS PRINCÍPIOS

A Universalidade é o princípio segundo o qual a "Saúde é

direito de todos e dever do Estado". Aqui se pode inferir que

se a Universalidade for efetivada, estar-se-á efetivando a

"beneficência".

A Eqüidade, princípio segundo o qual deve-se tratar

"desigualmente os desiguais", privilegiando com mais

investimentos em saúde as populações menos favorecidas, chega

a ser referida por alguns autores como um dos princípios da bioética

(Berlinguer, 1996). Segundo Berlinguer, pondo em prática a

eqüidade, através de políticas públicas socialmente justas, o estado

estaria contribuindo para que no futuro se alcance senão a

igualdade entre pobres e ricos, a redução das desigualdades.

A acessibilidade, segundo a qual o Estado deve prover fácil

acesso aos serviços de saúde a todos os cidadãos brasileiros, cumpre

também os preceitos bioéticos da beneficência e da eqüidade.

A participação social, preceito constitucional que garante

aos cidadãos brasileiros, através dos Conselhos de Saúde de âmbito

nacional, estadual e municipal, o poder de controlar socialmente

os serviços de saúde, garante o cumprimento do princípio bioético

da "Autonomia", se analisado do ponto de vista da coletividade.

Enfim, poderíamos afirmar: "a Constituição Brasileira, no que

se refere ao capítulo da Saúde, é Bioética".

Como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/ouvem efetuando na prática alguns princípios da bioética?

Tentaremos, nos parágrafos seguintes, discutir como a

Estratégia Saúde da Família vem promovendo os princípios da

bioética no Brasil:

Promovendo eqüidade:

Informações divulgadas por agências internacionais como a

OMS e o UNICEF, dão conta da crescente desigualdade social entre

países industrializados e países em desenvolvimento e

subdesenvolvidos. Hoje chama atenção o abismo entre os países

europeus e da América do Norte, com relação aos países populosos

e pobres da África, Ásia e América Latina. As diferenças na esperança

de vida ao nascer entre um homem pobre da Europa e um igualmente

pobre em um desses países, chega a vinte anos. O Brasil é conhecido

internacionalmente pela grande desigualdade social, sendo que

estas diferenças podem ser observadas entre distintas regiões do

país, como o Sudeste e o Sul com relação ao Nordeste e o Norte,

bem como, entre cidades de um mesmo estado e bairros de uma

mesma cidade. As desigualdades existentes na nossa sociedade já

foram bem evidenciadas por diversos estudos epidemiológicos de

base populacional, do IBGE (2000) e de outros grupos de pesquisa

brasileiros (Victora & Barros) que evidenciaram diferenças na

esperança de vida ao nascer, nas curvas de mortalidade

proporcional, na mortalidade infantil, na mortalidade específica

por causas, na proporção de baixo peso ao nascer e diversos outros

indicadores que demonstram como os menos favorecidos

socialmente têm também menos "saúde".

Mais recentemente, os especialistas em saúde pública tem

denunciado uma nova epidemia no Brasil, "a Epidemia de

Violência", relacionada ao tráfico de armas e drogas. O homicídio

passa ser a principal causa de morte entre os adultos jovens,

principalmente do sexo masculino (IDB, Brasil, 2001). Também

com relação a este indicador os menos favorecidos socialmente

são mais atingidos. A falta de perspectiva no futuro, faz com que

centenas de jovens das favelas e bairros periféricos das grandes

cidades brasileiras ingressem na atividade do tráfico, reduzindo

substancialmente seu tempo de vida.

No interior de todo este quadro social e epidemiológico é

que vem sendo implantada a Estratégia de Saúde da Família (ESF),

as primeiras equipes em cidades de pequeno e médio porte, e, mais

recentemente, em cidades de grande porte, como Curitiba, Belo

Horizonte e São Paulo.

A ESF iniciou sua implantação no Brasil em 1994, precedida

pelo PACS, sendo que um de seus objetivos seria reduzir as

iniqüidades em saúde, descentralizando e tornando mais acessível

a atenção à saúde aos grupos sociais menos favorecidos. Neste

sentido, as equipes de saúde da família foram inicialmente

implantadas justamente na região Nordeste, e dentro desta, nos

municípios do interior, onde o acesso a serviços de saúde foi

historicamente mais difícil que nas capitais. Dentro dos próprios

municípios do interior, organizaram-se equipes nos distritos rurais

mais distantes e carentes, bem como nas favelas urbanas. Como

justificativa recorreu-se ao princípio da eqüidade, que, segundo

Berlinguer, é um mecanismo através do qual os gestores públicos

podem promover igualdade social.

Nos primeiros anos de implantação do PSF e, como forma de

viabilizá-lo, foi utilizado o pagamento de maiores valores para as

consultas médicas e de enfermagem realizadas pelas equipes de

saúde da família, em relação àquelas efetuadas por outros serviços

da própria rede pública e da rede credenciada, ou seja, os

O Brasil é conhecido

internacionalmente pela grande

desigualdade social, sendo que

estas diferenças podem ser

observadas entre distintasregiões do país, como o Sudeste e o

Sul com relação ao Nordeste e o

Norte, bem como, entre cidades de

um mesmo estado e bairros de

uma mesma cidade.

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profissionais de saúde da família passaram a receber

remunerações relativamente maiores pelos mesmos

procedimentos realizados em outros serviços. O que os

gestores afirmavam naquele momento é que os

procedimentos realizados pelas equipes de saúde da

família tinham maior transcendência, visto que a

permanência dos profissionais por mais tempo no

serviço, a territorialização, o planejamento local

estratégico e a adscrição de clientela, criavam

condições para um vínculo efetivo entre os profissionais

de saúde e a população, inexistente nos serviços

ambulatoriais tradicionais do país. Muitos profissionais

do setor, bem como segmentos da academia, não

entenderam estas iniciativas, que estavam baseadas

no princípio bioético da eqüidade. Estes incentivos

financeiros vêm sendo mantidos pelo Ministério da

Saúde, que hoje assume a ESF como estruturante do

SUS.

Aumentando a acessibilidade:

Um outro aspecto fundamental da ESF foi o

aumento da acessibilidade. Este fato pode ser

facilmente verificado pelas informações (Machado,

2000) que demostram o aumento acelerado no número

de profissionais dedicados a atenção básica à saúde,

sejam os agentes comunitários de saúde, sejam médicos

e enfermeiros, em todas as regiões do país, e, em

especial, nas regiões menos desenvolvidas. Além deste

fato, o estudo realizado com profissionais de saúde da

família em 1999, com a participação de

aproximadamente 50% dos médicos e enfermeiros

membros de equipes de saúde da família naquele

momento, evidenciou uma maior satisfação destes

profissionais com o seu trabalho. A maioria dos

participantes do estudo identificaram uma melhoria

na relação com os usuários após seu ingresso em equipes

de saúde da família. É de esperar-se que esta melhora

na relação usuário-profissional, sentida pelos últimos,

influencie para uma melhor qualidade da atenção à

saúde e a construção de vínculos afetivos e culturais

entre as equipes de saúde da família e a população por

elas atendida (Machado,2000).

Aumentando a participação social:

A autonomia na perspectiva do coletivo vem

sendo promovida pela ESF. Isto ocorre na medida em

que as equipes facilitam e provocam a organização da

comunidade nos Conselhos Locais de Saúde. Em

inúmeras experiências da estratégia saúde da família

no Brasil, vem-se observando a organização de redes

sociais, como os grupos de interesse (grupos de

caminhada, grupos de gestantes, grupos de mães,

grupos de idosos, grupos de jovens etc.), promovidas

pelas equipes. Estas redes sociais aumentam a

autonomia de cada um de seus membros, assim como,

a autodeterminação coletiva, favorecendo sentimentos

e ações solidárias, bem como o resgate da auto-estima

das pessoas beneficiadas com estas atividades.

Promoção dos princípios da bioética do ponto

de vista do indivíduo pela ESF:

Promovendo o autocuidado / autonomia dos usuários

No âmbito das relações individuais, entre

médico/usuário, enfermeiro/usuário, auxiliar de

enfermagem/usuário e agente comunitário de saúde/

usuário, segundo as diretrizes da estratégia saúde da

família, deve-se estabelecer uma relação de respeito

mútuo, com uma postura democrática do profissional

em relação ao cidadão. O primeiro deve atuar também

como educador, estabelecendo um diálogo com os

usuários que possibilite ao mesmo tomar suas próprias

decisões e ter papel ativo e autônomo em relação a

realização de qualquer procedimento e ou tratamento,

bem como, compreender melhor a determinação do

seu processo de saúde - doença.

O diálogo com a população atendida também se

estabelece na medida em que são conhecidas e

respeitadas práticas vigentes na Cultura Popular, como

a utilização de medicamentos fitoterápicos e a fé nas

lideranças religiosas populares, como as rezadeiras e

curandeiros. Evidentemente, cabe aos profissionais das

equipes de saúde da família alertar a população quando

estas práticas trouxerem riscos para a saúde da

população.

É de esperar-se que esta melhora na

relação usuário-profissional,sentida pelos últimos, influencie para uma

melhor qualidade da atenção à saúde e

a construção de vínculos afetivos e

culturais entre as equipes de saúde

da família e a população por elas

atendida (Machado,2000).

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Utilizando protocolos

A adoção de protocolos clínicos de atenção básica à saúde,

uma das medidas que deve ser implementada na ESF, utilizando-se

como medicamentos e procedimentos pelas equipes, unicamente

aqueles comprovados por evidências científicas, é uma medida

através da qual dois princípios da bioética estão sendo efetivados,

"a beneficência e a não maleficência (primo non nocere)". Neste

sentido, esta prática deve ser estimulada.

Que outros aspectos devem ser observados para que aESF efetue os princípios da bioética?

Intensificação das ações de promoção da Saúde e o estímulo ao

autocuidado e autoconhecimento (princípio bioético da

autonomia).

Apesar dos progressos e ações já empreendidas pelas equipes

de saúde da família no sentido de promover saúde, ao invés de

apenas tratar as doenças, e estimular o autocuidado, é preciso

reconhecer que o paradigma hegemônico de nosso sistema de

saúde ainda é o da "Biomedicina", que compreende a saúde como

sendo "a ausência de doença". As ações das equipes de saúde da

família ainda vêm sendo medidas e acompanhadas com base neste

paradigma e nos indicadores gerados por esta racionalidade, como

os Indicadores de Mortalidade e Morbidade. É preciso criar e

fortalecer dia a dia, a racionalidade da promoção da saúde, que

entende saúde como resultante da qualidade de vida. As equipes

de saúde da família precisam cada vez mais fortalecer as ações que

intervenham na determinação do processo saúde-doença, seja no

sentido mais amplo, o que incluiria ações multisetoriais de políticas

públicas, seja no sentido mais restrito, que pressupõe mudanças

nos hábitos de vida. Estas ações direcionam a população para um

cuidado mais autônomo, desestimulando dependências

desnecessárias com relação aos profissionais de saúde,

medicamentos e exames complementares.

As ações de promoção da saúde, que embutem a capacidade

de alterar fatores intervenientes no processo saúde-doença, têm

um potencial maior para estimular o autocuidado e a autonomia

dos cidadãos, tendo em vista que oportunizam o aprendizado e a

capacidade de cada usuário atuar sobre o referido processo.

A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DA FAMÍLIAEM LARGA ESCALA: EFETUANDO A ACESSIBILIDADE

No atual momento de implantação da ESF, o limitante mais

importante tem sido a insuficiência dos profissionais de saúde

para efetivação do número de equipes necessárias, tanto do ponto

de vista quantitativo quanto do qualitativo. Isto se aplica

principalmente no que se refere à categoria médica, que é escassa,

sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, e tem formação

preponderantemente para atuar nos serviços hospitalares. A

formação e capacitação de profissionais em quantidade suficiente

e de boa qualidade para estratégia saúde da família, tornam-se

então fatores essenciais para propiciar o acesso deste serviço a

todos os brasileiros que dele necessitam. Alguns autores tem

alertado para a necessidade de formação de profissionais de saúde

da família em larga escala, dado o grande número de equipes já

implantadas e a implantar nos próximos meses, pois só profissionais

adequadamente capacitados poderiam realmente pôr em prática

todos os objetivos da ESF.

Do ponto de vista da formação profissional na graduação, o

Ministério da Saúde deu um grande passo ao propor mecanismos

de financiamento para as Faculdades de Medicina que se

propusessem a realizar transformações curriculares que tornassem

os cursos de graduação em Medicina capazes de formar um

profissional que responda as necessidades do Sistema Único de

Saúde. Desta forma o Ministério atende ao artigo 200 da

Constituição que afirma que cabe ao Sistema regular a formação de

recursos humanos para a saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O SUS e a ESF, estratégia estruturante do primeiro, estão

calcados por princípios jurídicos e normativos bioéticos. Resta

aos gestores de saúde das três esferas do governo, federal, estadual

e municipal, aos profissionais de saúde e aos cidadãos usuários

destes serviços, empreenderem uma luta constante com o objetivo

de efetuá-los na prática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLINGUER, GIOVANNI. Ética da saúde. Editora Hucitec. São Paulo,1996.136p.

VICTORA, CESAR & BARROS, FERNANDO. Epidemiologia da Desigualdade.São Paulo, HUCITEC, 1988. 187p.

BRASIL. Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para aSaúde. Indicadores e Dados Básicos para a Saúde, 2001.

MACHADO, MARIA HELENA. Perfil dos médicos e enfermeiros do Programade Saúde da Família no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.146p.

FRANKLIN, A & SOUSA, M.F. Construção Cotidiana, Saúde da Família naprática: os princípios na visão de quem faz. Revista Brasileira deSaúde da Família. Ano II, no. 4, janeiro de 2002. Brasília: Ministérioda Saúde.

BARRÊTO, I.C.H.C.; OLIVEIRA, E.; ANDRADE, L.O.M.A . Residência emSaúde da Família de Sobral: um ano formando profissionais emlarga escala. SANARE: Revista Sobralense de Políticas Públicas, v.2, no. 3, out/dez, 2000.

É preciso criar e fortalecer dia a

dia, a racionalidade da

promoção da saúde, que entendesaúde como resultante da

qualidade de vida.

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OO PROGRAMA DE SAÚDE DAFAMÍLIA: UM COMPROMISSOCOM A QUALIDADE DE VIDA

The Family Health Program: a Commitment with the Quality of Life

O Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de saúde e os municípios que optaram por reestruturar o modelo de assistência

à saúde e o aparelho formador de pessoal que colabora para viabilizá-lo, via Programa Saúde da Família (PSF), têm

acompanhado, alimentado e enriquecido as discussões relacionadas ao tema qualidade de vida, que é ou deve ser o objetivo final

deste programa. Vários grupos dentro do setor saúde e muitos fora dele tem se dedicado a conceituar qualidade de vida, partindo

ou de revisões da literatura ou de premissas desenvolvidas por teóricos nacionais e/ou internacionais. Vamos apresentar vários

componentes e características do conceito enunciados na literatura e discuti-los a partir de dados de experiências vivenciadas na

prática, no contato com diferentes grupos da população.

Carta de Ottawa; programa saúde da família; qualidade de vida.

Márcia Faria Westphal

Profa. Titular do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Públicada Universidade de São Paulo

The Ministry of Health, state health secretaries and the municipals which opted to restructure the health care model and

the personnel training apparatus that collaborates to make this feasible, via the Family Health Program (PSF), have

accompanied, maintained and enriched discussions related to the quality of life theme, which is or should be the final objective

of this program. Various groups within the health sector and many outside of it have dedicated themselves to evaluate the

quality of life, coming from either published reviews or from premisses developed by national and/or international theoreticians.

We are going to present several components and characteristics of the concepts expressed in publications and discuss them based

on data from experience witnessed in practice, in contact with different groups of the population.

The Ottawa Charter; family health program; quality of life.

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O QUE É QUALIDADE DE VIDA?

Qualidade de vida é "uma construção social, com marca da

relatividade".

Recentemente MINAYO, HARTZ E BUSS (2000), reviram a

literatura e discutiram o conceito não conseguindo conceituá-lo

a não ser "como uma noção polissêmica", "uma construção social,

com a marca da relatividade". Segundo os autores "qualidade de

vida abrange muitos significados, que refletem conhecimentos,

experiências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se

reportam em variadas épocas, espaços e histórias diferentes...".

De acordo com esta afirmação, a relatividade tem três fóruns

de referência: o histórico – parâmetros de referência em relação a

qualidade de vida de uma sociedade diferem em diferentes etapas

da história; cultural – valores e necessidades são construídos e

hierarquizados diferentemente pelos povos, revelando suas

tradições; estratificações e classes sociais – o bem estar das camadas

superiores é o padrão aspirado por todos e a passagem de um

limiar a outro se faz na perspectiva de atingir este padrão superior.

QUALIDADE DE VIDA E CONSUMO

No momento atual em que iniciamos um novo século, o

cenário mundial se apresenta como um movimento dinâmico de

globalização no qual surgem, além de novas fronteiras econômicas,

sociais e geográficas, crescentes conflitos culturais, religiosos e

humanos. O Estado tem o seu papel modificado, sendo a ação

governamental agora dirigida quase exclusivamente para tornar

possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem

condições estruturais de competitividade em escala global. O

capitalismo então na sua terceira fase de desenvolvimento, se rege

pelo mercado, baseia-se na flexibilidade em relação aos processos

de trabalho, ao mercado de trabalho, aos produtos e aos padrões

de consumo. Ao mesmo tempo com apoio dos novos sistemas de

comunicação e informação, dos bancos eletrônicos e do "dinheiro

de plástico" estas mudanças expandiram a sociedade de consumo.

O ritmo do consumo acelerou-se em diferentes áreas: vestuário,

ornamentos, decoração, hábitos de lazer, esportes e consumo de

eletrônicos. O consumo de serviços aumentou não apenas o

comércio, as necessidades de educação, saúde, mas grande parte

do capital está sendo aplicado na provisão de serviços efêmeros

que contribuem para alienar a população: diversões, espetáculos,

hapennings, reality shows.

Todas estas mudanças acentuaram a instabilidade dos

princípios temporais que organizam a vida. Assim, neste novo

século, as condições que favorecem positivamente o mercado,

como o consumo, são vistas como boas, como positivas. O mundo

de hoje nega o sistema, o coletivo, para afirmar o indivíduo, o

diferente, o atípico. O homem não participa mais com as massas na

política, mas dedica-se ao seu cotidiano, ao seu mundo. Envolve-

se com as minorias, com as pequenas causas, com as metas pessoais

e a curto prazo.

Dentro deste contexto, o conceito de qualidade de vida –

"padrão de consumo" – está se tornando hegemônico e a um passo

de adquirir "significado planetário" (MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000).

"Conforto, prazer, boa mesa, moda , utilidades domésticas,

viagens, carro, televisão, telefone, computador... entre outras

comodidades e riquezas"... são valores do mundo ocidental,

urbanizado, rico e muitas pessoas se mobilizam para adquirí-los,

muitas vezes a qualquer custo (CARDOSO IN: HERCULANO 1998;

MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000).

Justamente por existirem formas de conceituar qualidade de

vida, como a já mencionada, isto é, consumo como sinônimo de

qualidade de vida, do nosso ponto de vista, uma abordagem

eticamente enganosa e alienante da população é necessário um

trabalho de recuperação de valoress. Se considerarmos ainda o

argumento do relativismo cultural, e de todo aporte da discussão

que a literatura nos trás, é necessário estimular valores de

solidariedade e justiça social, entre os profissionais do programa

de saúde da família, para que possam combater a indiferença em

relação à marginalização, a exclusão, à fome e à doença, problemas

que estão na raiz dos conflitos, da violência e da má qualidade de

vida da população.

Mesmo considerando e valorizando o relativismo histórico e

cultural, outros autores deste século, especialmente ligados à

ciências sociais e filosofia vem discutindo formas de conceituar

qualidade de vida, a partir de universais da cultura e atendimento

de necessidades de sobrevivência.

Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as

condições materiais de vida e à subjetividade nas relações dos

homens entre si e com a natureza.

O homem não participa mais com

as massas na política, mas

dedica-se ao seu cotidiano, ao

seu mundo. Envolve-se com as

minorias, com as pequenascausas, com as metas pessoais

e a curto prazo.

Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as condições

materiais de vida e à subjetividade nas relações dos homens entre si

e com a natureza.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 21

A leitura dos textos destes autores sobre a

determinação da qualidade de vida permitiu observar

uma tensão constante entre o fato da mesma estar

relacionada a fatores objetivos, tais como as condições

materiais necessárias à sobrevivência (status sócio-

econômico, renda, habitação, acesso à agua pura,

saneamento básico, educação, emprego ou trabalho e

outros) ou a fatores subjetivos tais como a necessidade

de se relacionar com outras pessoas, formar identidades

sociais, sentir-se integrado socialmente e em harmonia

com a natureza, atitudes, percepções, sentimentos,

religião, crenças, tendência política, avaliação que o

indivíduo faz da sua qualidade de vida). Há autores

que expressaram posições radicalizadas relacionadas a

valorização de um dos dois fatores (DUBOS, 1970,

ANDREWS & WITNEY, 1976, BERLIGUER, 1983, COIMBRA,

1985, ROCHE, 1990, CROCKER, 1993, HERCULANO,

1998). Para SÉTIEN a qualidade de vida deveria atender

a dimensões objetivas e subjetivas, mas sob a ótica

coletiva e não individualizada, relacionada a satisfação

global dos grupos, comunidades ou sociedades

priorizando o bem estar social.

A partir do crescimento do movimento

ambientalista na década de 70, a maior parte da

literatura consultada, entretanto, segue uma tendência

preponderante da consideração de dois tipos de fatores

na constituição de um conceito orientador de ações:

os aspectos humanos e os ambientais. A perspectiva

ambientalista acrescenta o questionamento dos

modelos de bem estar predatórios, agregando

fortemente às preocupações anteriores, a visão da

ecologia humana (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS

SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992;

CONFERÊNCIA PAN – AMERICANA SOBRE SAÚDE E

AMBIENTE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO

SUSTENTÁVEL, 1995).

PRÉ-REQUISITOS PARA A SAÚDE E AQUALIDADE DE VIDA

No campo da saúde, o discurso da qualidade de

vida, embora bastante inespecífico e generalizante,

existe desde o nascimento da medicina social, nos

séculos XVIII e XIX. Nos últimos anos esta discussão

tem no conceito de Promoção de Saúde e nos textos

básicos das Conferências Internacionais desta área sua

fonte inspiradora. Segundo o nosso entendimento a

Carta de Ottawa que sintetiza as conclusões da I

Conferência Internacional de Promoção de Saúde

enfatiza também aspectos humanos e ambientais, a

objetividade e a subjetividade em conjunto, como pré-

requisitos para qualidade de vida e saúde de indivíduos

e coletividades. Os pré-requisitos para os quais chamou

a atenção foram: a paz; posse de uma habitação, que

atenda à necessidade básica de abrigo, adequada em

termos de dimensões por habitante, condições de

conforto térmico e outras; acesso a um sistema

educacional eficiente, em condições que favoreçam a

democratização da informação e formação dos cidadãos;

disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente

para o atendimento das necessidades biológicas,

promoção do crescimento e desenvolvimento das

crianças e adolescentes e reposição da força de trabalho;

renda suficiente para o atendimento às necessidades

básicas e pré-requisitos anteriores; recursos renováveis

garantidos por uma política agrária e

industrial voltada para as necessidades

da população e o mercado interno e

não somente exportação e

importação, ecossistema preservado e

manejado de forma sustentável – (OPAS,

1996, STROZZI & GIACOMINI, 1996).

As recomendações desta Carta na

prática das equipes de Saúde da família

é que farão a diferença destes em

relação aos programas tradicionais e

que garantirão a mudança de

paradigma, de práticas e de resultados.

A discriminação deste pré-requisitos,

nesta perspectiva ampliada da saúde

não permite mais a restrição das ações

relacionadas a resolução das questões

da qualidade de vida, ao setor saúde.

Clama as diferentes instituições e os

diferentes atores sociais a verificar

como a sociedade está satisfazendo

as necessidades básicas da população,

a distribuição de bens e serviços, as

carências decorrentes de iniqüidades.

A qualidade de vida também é

desenvolvimento de capacidades

humanas básicas e com a participação dos grupos

populacionais

Uma discussão atual e com potencial para

questionar este fluxo hegemônico é o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) de autoria de

Nussbaum e Sen e o conceito subjacente a ele. Esses

autores influenciados pelos conceitos e a ética de

Aristóteles e os conceitos de Marx, elaboraram uma

concepção da "existência e do florescimento humano"

e a partir disto propuseram a forma atual de

desenvolvimento do Índice (CROCKER, 93). Dentro

desta perspectiva ética do desenvolvimento, definem

... I Conferência

Internacionalde Promoção de

Saúde enfatizatambém aspectos

humanos e

ambientais, a

objetividade e a

subjetividade em

conjunto, como

pré-requisitos

para qualidadede vida e saúde de

indivíduos e

coletividades.

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S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200322

qualidade de vida a partir de dois conceitos: "capacidade", que

representa as possíveis combinações de potencialidades e situações

que uma pessoas está apta a "ser" ou "fazer" e "funcionalidade" –

que representa partes do estado de uma pessoa – as várias coisas

que ela faz ou é. Para os autores então, qualidade de vida pode ser

avaliada em termos de "capacitação para alcançar funcionalidades

elementares – alimentar-se, ter abrigo, saúde – e as que envolvem

auto respeito e integração social – tomar parte na vida da comunidade".

A capacitação dependerá de muitos fatores e condições,

inclusive da personalidade do indivíduo, mas principalmente de

acordos sociais e de participação da população. Com este enfoque

os autores privilegiam a análise política e social das privações –

valorizando as oportunidades reais que as pessoas tem a seu favor.

Nesta perspectiva "qualidade de vida não deve ser entendida com um

conjunto de bens, confortos e serviços, mas através destes, das

oportunidades efetivas das quais as pessoas dispõe para ser e se

realizar no passado e no presente"... e no futuro (HERCULANO,

1998).

Nesta perspectiva o bem estar ou a melhoria da qualidade de

vida, a possibilidade de ser ou de se realizar depende de uma opção

política de desenvolvimento a partir da democratização da socieda-

de. Uma opção política para obtenção de acordos sociais seria a

ética da solidariedade, que consiste em um esforço de mudança

do Estado em sua relação com a sociedade que se expressa pela

formação de novas modalidades de parceria entre a sociedade e o

governo para resolução dos grandes e complexos problemas que

vivemos. O processo de democratização complementarmente se

propõe a, através da educação, ampliar as possibilidades da cole-

tividade influenciar nas decisões que dizem respeito à ela e parti-

cipar na vida comunitária se disponibilizando como coletividade,

a ser influenciado por ações passadas e presentes.

QUALIDADE DE VIDA, HÁBITOS E ESTILOS

Ainda, para podermos encontrar o caminho mais adequado

para tratar a questão da qualidade de vida no mundo atual, em

função de um novo modelo de desenvolvimento, é necessário

colocar em questão uma assertiva, um componente muito presente

em programas do setor saúde e em programa de "qualidade na

empresa". A concepção a ser discutida é a que encara a depreciada

relação ser humano/natureza, como decorrente basicamente dos

comportamentos inadequados dos indivíduos, buscando adentrar

o campo das forças que determinam estes comportamentos, para

modificá-los. A mudança de comportamento ou de estilo de vida

surge como uma importante estratégia para a consecução da

qualidade de vida. Na medida em que não se consegue modificar o

comportamento "deletério à saúde" ou qualidade de vida de um

indivíduo ou de uma coletividade, transforma-se a vítima, que

geralmente vive condições adversas de vida, em culpada por não

querer assumir um estilo de vida considerado "de qualidade",

"saudável", e por conseqüência não ter um padrão de saúde

adequado.

CONCLUSÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE QUALIDADEDE VIDA

Em síntese, um conceito de qualidade de vida orientador de

ações deve considerar a relatividade histórica, cultural e social.

Neste início de século, a complexidade que ele representa em um

mundo também difícil e complexo, reflete a organização política

e social do momento e do passado recente com todas sua dinâmica.

Não representa somente a possibilidade de consumir bens duráveis

e não duráveis, fundamentais para a sobrevivência e os supérfluos,

nem depende exclusivamente dos indivíduos assumirem estilos de

vida saudáveis. Integra muitas dimensões, tantas decisões políticas

quantas estiverem interferindo no nosso desenvolvimento

econômico, social e humano e tantas condições políticas, de vida

e trabalho quantas forem necessárias para que possa vir a ser

empregado como substrato de uma crítica em profundidade a um

estilo de desenvolvimento vigente, que valoriza o indivíduo e o

consumo que ele pode gerar. O movimento pela qualidade de vida

neste momento não é considerado apenas um modismo, mas um

movimento de indagação sobre o futuro, onde a desigualdade

está presente de forma contundente.

Enfim conceituar qualidade vida, tentando resgatar o

princípio ético da vida, como o fizeram os participantes da

Conferência de Ottawa é fundamental (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2001). Uma conceituação deste tipo, estimula as diferentes

instituições e os diferentes atores sociais a verificar como a

sociedade está satisfazendo as necessidades básicas da população,

a distribuição de bens e serviços, as carências decorrentes de

iniqüidades e da falta de oportunidade de adquirir conhecimentos

orientadores de práticas mais saudáveis.

... a ética da solidariedade, que

consiste em um esforço de

mudança do Estado em sua

relação com a sociedade que

se expressa pela formação de

novas modalidades de parceria

entre a sociedade eo governo para resolução dos

grandes e complexosproblemas que vivemos.

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Este trabalho entretanto não é fácil. Geralmente os

profissionais de saúde têm seus valores pessoais e profissionais e

como pertencem a uma classe diferente da população em geral,

em função do relativismo do mesmo já mencionado, têm

dificuldade de entender, a partir dos discursos da população os

seus conceitos de qualidade de vida e agem preconceituosamente

em relação à priorização que a população dá às suas necessidades

e seus sonhos.

Para exemplificar isto temos uma história verídica a contar.

Certa vez em uma cidade pequena do interior de São Paulo, a

universidade trabalhando junto ao Departamento de Saúde local

na implementação do SUS e seus princípios, levou a efeito um

levantamento de necessidades junto a grupos organizados da

população do município e o lazer apareceu como uma ação

prioritária a ser atendida pelo governo local, juntamente com a

oferta de capacitação profissional para os adolescentes fora do

horário escolar.

O Serviço de Saúde local neste momento em expansão, estava

com dificuldades de conseguir verba da prefeitura para a extensão

dos serviços de atenção à saúde da comunidade e o prefeito,

desonesto e interessado em superfaturar obras, aproveitou a

oportunidade para começar a construção de um ginásio local de

esportes. O chefe do Departamento de Saúde não quis negociar e

inclusive considerou problemática a ação da universidade que

havia interferido negativamente na negociação de verbas para a

saúde. O chefe do Departamento do Serviço de Saúde levou a

efeito investigações que comprovaram a desonestidade do prefeito

e este foi colocado em disponibilidade, tendo o ginásio de esportes

ficado com suas obras paradas por muitos anos. Naquele tempo,

1990 ainda não se discutia Promoção de Saúde e tudo ficou como

distorção da pesquisa e ação enganosa do Prefeito. Somente em

2000 este ginásio ficou pronto e em uso. Não sabemos se agora a

comunidade tem lazer neste local.

Hoje, revendo esta questão ficaram comprovadas duas coisas,

que nós profissionais de saúde perguntamos à comunidades seus

interesses, mas na maior parte das vezes não ouvimos e não

entendemos ou não conseguimos dialogar com pessoas que tem

pontos de vista diferentes dos nossos. Fazemos aquilo que

tecnicamente consideramos correto do ponto de vista

epidemiológico e de técnicas de gestão, ignorando o que ouvimos,

considerando que a população não sabe o que melhor para ela, ou

melhor não sabe o que precisa para melhorar suas condições e

qualidade de vida. As soluções exclusivamente técnicas as vezes,

podem não ser acertadas, porém isto não quer dizer que o técnico

tenha que se omitir, bem como a população também precisa

participar das decisões porque é ela que vive o dia a dia, no

território geográfico e de relações. É ela que conhece a história e

que a partir de seu mundo aspira ter tudo aquilo que a mídia lhe

apresenta como valor. É ela que não tem condições para mudar

seus estilos de vida e torná-los mais saudáveis, é ela não tem água,

que não tem esgoto e local para colocar o lixo para ser recolhido.

É ela que vive o stress do trabalho, do desemprego, da fome, da

habitação acanhada e da falta de espaço para fugir de todas estes

problemas.

Hoje a partir do conceito de Saúde e das estratégias de

Promoção da saúde, nosso horizonte se amplia, mas o risco do

preconceito continua. Vários grupos começam a colocar na mesa

seus pontos de vista, discutir e argumentar, técnicos e população

e negociar soluções, compreendendo que os valores e as

necessidades são relativos, que os comportamentos necessitam de

condições para serem modificados e que a síntese cultural deve ser

buscada para que a solução seja a mais acertada possível.

A identificação dos problemas e a consciência da causalidade

fortalece os grupos e segmentos da população e colabora para a

organização dos mesmos no sentido de que planejem e

implementem iniciativas saudáveis que colaborem para a melhoria

das condições de vida e trabalho e para que se reunam para

advogar junto ao Estado, as condições necessárias à garantia dos

direitos humanos básicos e para trabalhar de forma articulada e

parceira com ele para a resolução dos problemas do país.

A QUALIDADE DE VIDA E O PROGRAMA SAÚDE DAFAMÍLIA

Uma estratégia adotada para implementar o Sistema Único

de Saúde (SUS) é o Programa de Saúde da Família, que deve se

responsabilizar por atender às demandas relacionadas ao

diagnóstico e tratamento de doenças das famílias que vivem no

território onde a mesma atua, identificar e promover o controle

dos fatores de risco destas doenças e desenvolver atividades, para

que os pré-requisitos sintetizados na Carta de Ottawa para saúde e

qualidade de vida da população sejam atendidos.

Ações individuais, coletivas, com base na ética da

solidariedade e que busquem a sustentabilidade e respeito nas

relação do homem com a natureza precisam ser programadas e

desenvolvidas. O programa de saúde da família tendo uma atuação

mais ampla poderá dar uma contribuição importante para a mudança

de modelo e atendimento das necessidades da população.

Há, entretanto, uma demanda de trabalho para os

profissionais de saúde envolvidos nos programas de Saúde da

Família que é, por assim dizer, adicionada à demanda tradicional.

No campo da prática, ao mesmo tempo em que o profissional deve

dar conta de tarefas tradicionais, sobretudo as de caráter técnico,

Ações individuais, coletivas, com base na ética da solidariedade e que

busquem a sustentabilidade e respeito nas relação do homem com a

natureza precisam ser programadas e desenvolvidas.

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necessita compreender o que é trabalhar pela

qualidade de vida hoje. Mais do que isso, deve

ser preparado, com o conhecimentos e a

habilidades para a interlocução, para se dirigir

a um público mais amplo do que fazia

tradicionalmente, e principalmente, para

incorporar em suas tarefas e aptidões o universo

político que o rodeia. Há uma demanda extensa

por parte de um público, até certo ponto

incomum, para o profissional que se insere

neste campo de trabalho.

A interdisciplinaridade e a interse-

torialidade, condição básica para a resolução

dos complexos problemas de qualidade de

vida, trazem dificuldades que lhe são inerentes

e desafios que não são novos (BUSS, 1996).

Aqui talvez resida o maior desafio e grande

parte da missão da equipe de saúde da família

e dos profissionais que a integram,

especialmente no atual estágio de construção

em que o modelo se encontra e no

enfrentamento dos complexos problemas do

mundo contemporâneo.

Os profissionais, para desempenhar o

papel de promotores da qualidade de vida,

devem ser capazes de fazer uma avaliação crítica

da realidade, serem autônomos e aptos ao

diálogo técnico e leigo com os mais variados

setores. Devem ainda estar habilitados a

desempenhar atividades antes não requeridas,

como a atuação política junto a grupos

populacionais, institucionais e órgãos de

administração pública.

As Unidades de PSF e seus profissionais

responsáveis têm que se preocupar com a

apresentação e as interações que ocorrem no

seu ambiente interno. O ambiente dos serviços

de saúde nem sempre representam aquilo que

se ensina para a população nos atendimentos

domiciliares ou nas unidades. Nem sempre o

ambiente dos mesmos favorece o bem estar

físico, mental, social e espiritual dos seus

profissionais, dos seus funcionários e muito

menos usuários durante a permanência nas suas

dependências.

O clima de competição entre os

profissionais e ou funcionários, a mudança da

relação espaço/tempo tanto para profissionais

como para funcionários vem favorecendo a

criação e permanência do estresse, violência e

outros problemas de origem emocional em

... cada

Unidade de

Saúde da Família e

sua equipe,

precisa se

conscientizarde sua

responsabilidade

em relação à

qualidade de

vida das pessoas

que convivem nas

suas dependências,

no dia a dia,

e assumir

concretamente

um projetointerdisciplinar,

intersetorial e

ético para ser

desenvolvido com

este objetivo,

dentro e fora da

Unidade.

suas dependências. A carga psicológica do

trabalho, muitas vezes juntamente com o baixo

salário e riscos de acidentes do trabalho

introduzem a necessidade de análise da

organização do trabalho e prescrição

tecnológica inerente à saúde do trabalhador.

Os ambientes administrativos, de

atendimento e laboratórios criados sem

preocupação com o bem estar dos indivíduos

que os freqüentam, fazem-nos pensar em

abordagem ambiental interna para as áreas,

com controle atmosférico de poluentes

químicos e biológicos, controle de som e

iluminação.

Muitas práticas realizadas nas Unidades

de saúde se caracterizam por manter o statu

quo, por desenvolver pouca consciência social,

por tentar instigar comportamentos

inaceitáveis, mais do que encorajar as pessoas

a mudar a sociedade e por culpar a vítima por

seus comportamentos inadequados. O que

existe de positivo ou de mudanças

correspondem a esforços isolados e algumas

unidades e baseada em uma visão parcial do

que seja qualidade de vida ou de qual seja a

contribuição da mesma para sua transformação.

Para uma contribuição efetiva para o

tema, cada Unidade de Saúde da Família e

sua equipe, precisa se conscientizar de sua

responsabilidade em relação à qualidade de

vida das pessoas que convivem nas suas

dependências, no dia a dia, e assumir

concretamente um projeto interdisciplinar,

intersetorial e ético para ser desenvolvido com

este objetivo, dentro e fora da Unidade (BUSS,

2000).

A QUALIDADE DE VIDA MENSURADAEM TODOS OS SEUS ASPECTOS

A qualidade de vida como um objetivo a

ser atingido por Programas de Promoção de

Saúde como o Programa de Saúde da Família,

precisa mensurar seus resultados e

compreendê-los para melhorar constan-

temente suas possibilidade de melhorar as

condições de vida e trabalho da população,

em conjunto com outras iniciativas existentes

nas comunidades onde atuam.

O índice de desenvolvimento humano

proposto por Sen & Naussbaum, o IDH

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(CROCKER, 93), mensura a qualidade de vida obtida a

partir de vários modelos de desenvolvimento

utilizados do primeiro, ao terceiro mundo. Apura não

só o desenvolvimento da produção a partir de dados

do PIB per capita, mas verifica a expectativa de vida

ao nascer que afere as possibilidades de adoecimento

na população e a alfabetização que contabiliza o

acesso a escolarização. Contudo, falham do ponto de

vista de muitos autores, por não incorporarem a

dimensão ambiental, o que possibilitaria a percepção

sobre o estado do ecossistema, muito importante,

especialmente nos dias de hoje, com a urbanização e

a industrialização, degradando a qualidade de vida

nas cidades. Falham também por não incluir indicadores

e metodologias qualitativas de pesquisas que dêem

conta dos aspectos subjetivos e da complexidade do

conceito.

Outros indicadores precisam ser criados pelos

programas de Saúde da Família pensando

principalmente na relatividade cultural e estrutural do

conceito, como também será importante participar do

jogo de construção de indicadores e mensuração a

partir de um conceito que considere o contexto sócio-

econômico-cultural, a história, as condições objetivas

de vida e as potencialidades de uma população que

vive em um território.

Os indicadores devem ser objetivos suficiente,

que sejam capazes de indicar problemas e

potencialidades e capaz de subsidiar sugestões para a

implementação de políticas, que garantam uma ordem

social mais eqüitativa de distribuição de riqueza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caso não seja feito este esforço, a identificação

de problemas e a criação de propostas transformadoras

em qualquer ambiente serão ingênuas e parciais e a

possibilidade de demonstrar a eficiência do programa

será muito pequena. Hoje é possível contabilizar o que

foi feito e alguns indicadores de resultados em função

de redução de índices de incidência e prevalência de

doenças, bem como de mortalidade. Mas não é possível

verificar impacto em termos de melhoria da qualidade

de vida, de saúde, que é a proposta da Promoção da

Saúde. Caso não se faça este esforço de construção de

indicadores, esta proposta de "Programa Saúde da

Família" serão marginalizados de interesses vitais do

processo decisório, pois as autoridades e a sociedade

necessitam que suas atividades tenham sua efetividade

em relação a melhoria da qualidade de vida comprovada,

se possível em números.

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Os indicadores devem ser objetivos

suficiente, que sejam capazes de indicar

problemas e potencialidades e capaz

de subsidiar sugestões para a

implementação de políticas, que

garantam uma ordem social mais

eqüitativa de distribuição de riqueza.

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AAPODERAMENTO

Empowerment

Inicialmente, esse texto tem a ousadia de propor a adoção de um novo termo para o “objeto” que ele tratará. O termo

“empoderamento”, reconhecidamente um neologismo da língua inglesa, do termo “empowerment”, no português gera um

desconforto ideológico. Empoderar seria “dar poder a”. Nessa concepção, uma pessoa detentora de poder compartilha o seu poder

com alguém partindo de um desprendimento, podendo da mesma forma “tirar esse poder” quando lhe convier. O objeto aqui

tratado é outro. Trata-se de um processo de reconhecimento do poder existente, ainda não exercido, mas disseminado na

estrutura social que não escapa a nada e a ninguém. Se o poder é um elemento da sociedade, apoderamento, “ad-poderamento”,

significa “trazer o poder mais próximo de si”, o que está mais de acordo com a idéia que será trabalhada. Essa dinâmica só pode

ser entendida com base na dialética consenso/conflito, competência profissional/sabedoria leiga, instituições hierárquicas/

círculos comunitários.

Empoderamento; modelo biomédico; saúde pública; programa saúde da família; promoção da saúde.

Tomaz Martins JúniorDiretor Presidente da Escola de Saúde da Família Visconde de Sabóia

Initially, this text has dared to propose the adoption of a new term for the "object" with which it will deal. The term

"empoderamento", recognizably a neologism of the English language, from the word "empowerment", in Portuguese

generates an ideological discomfort. To empower would be "to give power to". From this concept, a person holding power shares

his power with someone parting with it as a release, being able in the same way "to take away this power" whenever convenient

for him. The object dealt with here is another one. It is about a process of recognizing the power already existing, not yet

exercised, but disseminated within the social structure that does not exclude anything or anyone. If the power is an element

of society, empowerment, "ad-poderamento", means "to bring power closer to oneself", which is more in agreement with the

idea that it will be developed. This dynamic can only be understood based on the dialectics of consensus/conflict, professional

competence/lay wisdom, and hierarchic institutions/communitarian groups.

Empowerment; biomedical model; public health; family health program; health promotion.

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HISTÓRIA DO PODER

O desconforto ideológico para o termo "empoderamento" é fortalecido pela

tendência histórica à dominação, em que o poder exercido por um grupo

minoritário, comanda o majoritário. Nessa relação de poder, a participação social nos

processos políticos é considerada como uma concessão dos poderosos, que se sentem

no direito inclusive de delimitar o espaço dessa participação: concessão, sob controle,

de poder. Essa relação de dominação fica bastante evidente em toda a América Latina,

continente onde se registram as maiores desigualdades.

Fazendo uma análise histórica das relações de poder no Brasil, podemos destacar

que sempre existiu uma forte relação de dominador/dominado. Tal característica esteve

presente na relação colonizador-colonizado (português e os povos indígenas), repetiu-

se de forma também bastante cruel na cultura colonial escravocrata, na relação entre

oligarquias rurais e imigrantes, ganha nova roupagem nos regimes populistas dos anos

50 e 60, e segue-se nos anos da ditadura militar, mais uma vez com fortes traços de

crueldade.

A partir dos anos 70 percebe-se o início de um processo de democratização

desencadeado pela mobilização e pressão da sociedade civil e política. Com a

substituição dos regimes militares pelos regimes civis, os movimentos sociais cresceram

em número, ganharam visibilidade e têm promovido mudanças na cultura política

brasileira. Mudanças essas baseadas numa visão de direitos sociais coletivos de grupos

sociais oprimidos e/ou discriminados, o que tem promovido uma importante discussão

da necessidade de mudanças no papel do Estado e da sua relação com a sociedade.

Nos dias de hoje, esse conceito vem sendo incorporado pela saúde pública no

campo da promoção da saúde. Esse novo enfoque fundamenta-se em uma compreensão

de saúde relacionada a um conjunto de valores: solidariedade, cidadania, participação,

revalorização ética da vida. Portanto, relaciona as determinações de saúde ao impacto

das dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas. Segundo Kuhn, essa mudança

de paradigma caracteriza o abandono relativamente abrupto dos modelos teóricos

prevalecentes, dos protocolos experimentais e de hipóteses proeminentes, com vistas

a adotar uma visão radicalmente nova da realidade.

A MODÉSTIA NO SABER

Nesse "novo movimento" da Saúde

Pública, o conceito de saúde encontra-se

significantemente afetado pela necessidade

que cada um tem de controlar sua própria vida

e pela quantidade de poder ou de falta de

poder que a pessoa julga ter. Por essa razão,

dedica uma especial atenção ao conceito de

fortalecimento, como uma das principais

estratégias de promoção de saúde. Sem dúvida,

essencial à noção de fortalecimento, encontra-

se o conceito de poder, definido por Weber

como a capacidade que o indivíduo tem de

fazer com que os outros façam aquilo que ele

deseja, por meio da persuasão ou da coerção.

O fortalecimento de uma comunidade se dá

no processo de reconhecimento daquilo que a

afeta e da capacidade de ter acesso ao poder,

de forma a transformar a sua realidade.

Com a substituição

dos regimesmilitares pelos

regimes civis, os

movimentossociais cresceram

em número,

ganharam

visibilidade e

têm promovido

mudanças na

cultura políticabrasileira.

O movimento de promoção da saúde

reforça a necessidade de compartilhar o poder,

o "poder com". Isso envolve a noção de

parceria entre profissionais e indivíduos ou

comunidades, para superar o relacionamento

mais tradicional e hierárquico do fornecedor/

cliente.

Na nossa sociedade, é ainda difundido e

aceito pelo senso comum, a relação existente

entre o possuir conhecimento, o saber algo e

o poder. Mesmo quando consideramos outros

elementos materiais, o saber ocupa espaço

importante na hierarquia que o senso comum

constrói ordenando quem pode mais ou quem

pode menos. O "poder dizer sobre" (isto é ter

um saber) legitima o "prescrever para" o outro

e colocá-lo sob controle. Entretanto, nessa

nova visão da promoção da saúde esse

"prescrever para" a transformação da realidade

implica a valorização de uma outra forma de

saber: o conhecimento dos problemas da

realidade em que vivem. Nessa perspectiva os

"não instruídos" podem participar dessa

relação de poder, ocupando uma posição

importante por possuir um conhecimento.

É importante que a comunidade perceba

que atuando com base em um modelo de

atenção à saúde de base biomédica, é possível

que os profissionais se sintam detentores de

todo o conhecimento considerado como

necessário para garantir a ausência de doença

de uma população. A aplicação desse modelo

biomédico ao longo dos anos tem fortalecido

a postura autoritária dos profissionais, "os

O fortalecimento de

uma comunidade se dá no

processo de

reconhecimento daquilo

que a afeta e da

capacidade de ter acesso

ao poder, de forma a

transformar a sua

realidade.

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instruídos", na sua relação com os "não instruídos". A nova relação,

com base na promoção à saúde, parte da consciência do profissional

de reconhecer a sua incapacidade de resolver os principais

problemas de saúde da população. Os problemas mais prevalentes

são de tamanha complexidade que o saber clínico (biomédico)

mostra-se bastante insuficiente para promover mudanças. Portanto,

para um novo modelo que consiga promover a saúde da população

é importante que o profissional reconheça a amplidão de

conhecimentos necessários para a promoção da saúde, e dentro

dessa amplitude a importância do conhecimento adquirido pela

vivência, reconhecido aqui como instrumento de apoderamento

da população.

CONSTRUINDO A PROMOÇÃO DA SAÚDE

O apoderamento de uma comunidade não se dá de forma

espontânea, mas pressupõe a percepção por parte de seus membros

das formas de como esse poder se realiza e se dissemina na

sociedade. A não percepção das formas de realização do poder é

percebida pela comunidade como ausência de poder. O processo

de apoderamento requer o desenvolvimento de uma mobilização

social que promova a participação das pessoas, das organizações e

das comunidades nas decisões. Esse processo deve partir da

percepção da capacidade que a população tem de transformar a

informação ou o conhecimento, o que pressupõe então uma relação

educativa, troca de conhecimentos entre profissionais e população,

gerando a produção de novos conhecimentos.

Há de se ressaltar entretanto que apenas o reconhecimento

da falta de poder e o conhecimento dos mecanismos de poder

existentes não são suficientes, pela forma como a sociedade se

encontra organizada. Existe uma impermeabilidade nas estruturas

de poder, que para ser rompida requer a capacidade de aglutinação:

um processo de apoderamento coletivo que extrapola o

apoderamento individual e que é conseguido a partir da capacidade

de aglutinar pessoas ou grupos que comungam com uma mesma

visão de mundo, as mesmas aspirações, interesses e motivações.

Esse processo de aglutinação deve ser norteado por princípios

como o respeito às pessoas e aos espaços de convivência, à

solidariedade, à transformação, na perspectiva da construção

coletiva de realidades saudáveis.

Na evolução do conceito de promoção da saúde, a Carta de

Ottawa trabalha com o conceito de apoderamento ao definir

Promoção da Saúde como o "processo de capacitação da

comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e

saúde, incluindo uma maior participação no controle deste

processo".

A Declaração de Sundsvall, ao enfatizar o tema Ambientes

Saudáveis à Saúde, também identifica como uma das estratégias

fundamentais para a ação em saúde pública "capacitar comunidade

e indivíduos a ganhar maior controle sobre sua saúde e ambiente,

através da educação e maior participação nos processos de tomada

de decisão". A Declaração de Jacarta reconhece que a promoção

da saúde efetua-se pelo e com o povo, e não sobre e para o povo

e que para melhorar a capacidade das comunidades e promover a

saúde, é preciso que as pessoas tenham direito de voz e mais

acesso ao processo de tomada de decisão e às habilidades e

conhecimentos essenciais para efetuar a mudança.

Entretanto, é importante reconhecer que a relação entre

profissionais e população não deve ser um processo educativo de

mão única: profissional que ensina e população que aprende. A

promoção da saúde deve ser entendida como um campo de

conhecimento ainda em construção que prioriza a relação dialógica

entre o conhecimento dos profissionais e o da comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Promover a mudança para um modelo com base na promoção

da saúde é uma tarefa árdua da Estratégia Saúde da Família.

Entretanto, esse deve ser o seu objetivo principal. Assim, os

profissionais têm um papel importante em promover um diálogo

entre as informações importantes sobre a promoção da saúde, já

sistematizadas, com aquelas tão importantes quanto as primeiras,

fruto da vivência da comunidade e que por isso guarda uma relação

com a sua cultura, com o seu modo de viver. Para isso, é necessário

que reconheçam a impossibilidade de resolver os atuais problemas

de saúde de uma população apenas com os conhecimentos

biomédicos, evidenciando assim, a necessidade de dialogar

continuamente com a comunidade. O reconhecimento da

necessidade desse processo dialógico é vital para o processo de

apoderamento da população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDEIAS, N.M.F. Promoção em saúde, a nova ciência normal. 1999 inmimeo.

FERREIRA, J.R. & BUSS.P.M. Atenção Primária e promoção da saúde inPromoção da Saúde. Ministério da Saúde.

Brasília, 2001.

Organização Mundial da Saúde, Carta de Ottawa, 1986.

Organização Mundial da Saúde, Carta de Sundsvall, 1991.

Organização Mundial da Saúde, Carta de Jacarta, 1997.

WESTPHAL, M.F. Participação e cidadania: aplicação à proposta depromoção de saúde. In mimeo.

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CCIDADANIA, CAMINHO

PARA UMA VIDA SAUDÁVELCitizenship, the Road to a Healthy Life

Intersetorialidade para uma cidadania participativa. Essa é a base para a atuação do dia-a-dia das equipes do saúde da família,

que devem pautar suas atividades no diálogo mediador com os atores sociais locais e seguimentos institucionais ou não, na

busca da garantia e reconhecimento dos direitos da comunidade. Assim, estimulando práticas de saúde e soluções de problemas

comuns.

Cidadania; equipe de saúde da família; intersetorialidade; promoção da saúde.

Maria Cecília Cordeiro DellatorreMédica sanitarista

Mestre em Saúde ColetivaDocente de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de Marília

Intersectoriality for participative citizenship. This is the basis for the day-to-day actuation of the family health

teams, which should direct their activities into mediating dialogue with the local social performers and institutional

followings or not, in the search for guarantee and recognition of community rights. In this way, stimulating health practices

and solutions to common problems.

Citizenship; family health team; intersectoriality; health promotion.

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CAUSAS E EFEITOS

Uma pesquisa feita por estudantes de enfermagem e Agentes

Comunitários de Saúde (ACS), em três microáreas de uma

unidade básica de saúde, mostrou as dificuldades das pessoas em

cumprirem a recomendação de fazerem caminhadas. Cerca de 70%

havia recebido esta recomendação, porém, de todos entrevistados,

apenas 30% caminhavam. Uma das dificuldades apontadas foi o

estado das calçadas (esburacadas, com desníveis, cheias de

entulho), das ruas de moradia e para o bairro como um todo. Dos

que receberam a recomendação, 30% já havia sofrido queda recente,

74% das quais nas calçadas, 15,6% em buracos nas ruas e 5,2%

atropelados por bicicletas e 5,2% porque sentiram tontura.

Esta justificativa para não caminhar, não seguir a orientação

recebida, é colocada com freqüência pelas pessoas. Talvez não

diretamente para o médico, mas para o ACS. Outras razões

impeditivas, ou que dificultem as caminhadas, podem gerar

constrangimentos e não serem colocadas tão facilmente. A lista

pode ser interminável como não ter sapatos confortáveis, não ter

roupas adequadas, não ter companhia ou, ainda, a "urina solta", a

flatulência, os calos, a sede, o entusiasmo e a vontade que somem

na hora de sair de casa.

Outra ordem de razões: não podem deixar os netos sozinhos,

têm compromissos de trabalho em casa, têm pessoas dependendo

delas, por problemas físicos e/ou mentais, têm medo de desafetos

e /ou marginais...

São muitas as variáveis explicitadas, ou não explicitadas,

que podem levar a que a aparente simples recomendação de fazer

caminhadas não "possa" ser cumprida.

O ACS que cobra com insistência passa a ser evitado, mesmo

o médico ou enfermeiro da equipe.

As desculpas evasivas do paciente não são aceitas, o que

pode levar até ao abandono de todo o tratamento. Por parte da

equipe, pode se iniciar um discurso de invalidação da clientela do

tipo: "a gente cansa de falar, mas não ligam", "só querem remédios

e exames", "não entendem que é para o bem deles", "ignorantes e

irresponsáveis"... As conseqüências podem ser o desânimo com o

trabalho, a valorização apenas dos que aderiram, deixando de lado

os "desanimados, desinteressados", o uso de medidas um tanto

autoritárias, com certa dose de chantagem emocional ou mesmo

material, recursos vários, para que as "metas" sejam cumpridas.

Relativizando as dificuldades externadas, o reconhecimento

de que as pessoas só participam quando se sentem realmente

envolvidas e quando dispõem de clareza e condições para ultrapassar

as barreiras que se interpõem ao cumprimento do recomendado

pela ESF.

COMUNICAÇÃO PARA A CIDADANIA

As condições ou barreiras tanto podem ser individuais como

coletivas. A busca de soluções e apoio pode ser parte das funções

da Equipe de Saúde da Família (ESF), mas também pode ser do

executivo, legislativo, judiciário, associação do bairro, da esfera

municipal, estadual ou federal. Muitas vezes a própria ESF ou seus

coordenadores podem pretender ser a "síntese da intersetorialidade"

e tentar dar conta de tudo. Ser um pouco terapeuta ocupacional,

monitor de lazer, líder de mutirões, diplomata e negociador com

as diferentes estâncias de poder local, cozinheiro, hortelão,

fornecedor de roupas e comida. Enfim, tentar preencher uma

infinidade de lacunas de responsabilidades e/ou direitos sociais e

até mesmo civis. Como saber e dar conta das limitações da ESF,

quais as responsabilidades da sociedade, do(s) governo(s) ou do

estado?

Murilo de Carvalho cita uma pesquisa feita em 1997, no Rio

de Janeiro, onde ficou demonstrado a precariedade do

conhecimento dos direitos civis, políticos e sociais. A pesquisa

mostrou que 57% dos entrevistados não sabiam mencionar um só

direito, sendo que só 12 % mencionaram algum direito civil.

Como pode, então, a ESF dar conta desde as caminhadas,

que não são feitas por conta dos buracos nas calçadas, das unhas

compridas do pé, da falta de creches, de espaços e cuidadores para

deficientes físicos e mentais, o direito ou não à aposentadoria, à

renda, ao trabalho, saneamento, moradia, alimentação, educação,

lazer, que são todos determinantes e/ou condicionantes da saúde,

sem se transformar em "síntese da intersetorialidade"?

Não pretendendo ser "resumo" dos direitos sociais, civis e

políticos, ou "rascunho" de cidadania.

O primeiro ponto essencial é a certeza de estar existindo

comunicação entre a ESF e os que moram no bairro, no território

da unidade.

A busca de soluções e apoio pode

ser parte das funções da Equipede Saúde da Família (ESF), mas

também pode ser do executivo,

legislativo, judiciário, associação do

bairro, da esfera municipal,

estadual ou federal.

São muitas as variáveis explicitadas, ou não explicitadas, que podem

levar a que a aparente simples recomendação de fazer caminhadasnão "possa" ser cumprida.

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Quando a equipe começa a perceber que invalida

parte da comunidade, rotulando-a como a "que não

entende", que é "acomodada", é um primeiro sinal de

alerta.

Durante define a "linguagem como atividade

humana complexa que permite aos homens representar

as realidades mantendo estreita relação com o

pensamento. Através da linguagem é possível a

representação, a regulação do pensamento e da ação,

e a comunicação de idéias, pensamentos e intenções".

Se a linguagem do ACS com a comunidade vai se

burocratizando, escravizando as metas e programas

rígidos, o risco de não estabelecer um diálogo e sim

um monólogo constrangedor, é muito grande. Um

recurso de fala muito utilizado é o de diminutivos,

infantilizada, um arremedo de comunicação. Ela é

ensurdecedora, de mão única, não transmite

pensamentos, sequer intenções.

No caso da ESF pretender desempenhar um papel

mediador, estimulador de práticas que busquem saúde,

precisa decodificar os fatores impeditivos, debatê-los

com pequenos grupos já mobilizados, procurando

estabelecer novos vínculos, ou reforçar antigos que

estejam fragilizados, entre os que apresentam problemas

comuns.

Voltando ao exemplo, quem pode ajudar o outro

a cortar as unhas dos pés, quem pode tratar os calos,

quem pode dar o braço na caminhada, ficar e cuidar do

neto ou do sobrinho deficiente?

D'Incao e Roy alertam sobre o papel mediador,

para que "a intervenção permita que novas relações se

construam sobre a autonomia das pessoas no direito

de se exprimir e de negociar livremente as soluções

dos problemas que lhes são comuns". Alerta, ainda,

sobre o "cuidado de não permitir que as pessoas se

alienem", transferindo, no caso a ESF, suas

responsabilidades. A ESF deve informar, questionar,

debater práticas que garantam a saúde e, reenviando a

cada questão, o sentido e conseqüências das escolhas

efetuadas.

Partindo desta relação mediadora, de respeito,

segue-se a intermediação para o significado de direito,

iniciando pelo direito à saúde, que é, e deve ser do

conhecimento de toda a equipe do PSF.

CIDADANIA PARTICIPATIVA

Para garantir o direito à saúde, que outros direitos

devem ser assegurados, quais instâncias têm a função

de garanti-los, quais organizações (ONGs) estão

disponíveis para apoiar este debate, que secretarias

municipais podem e devem ser acionadas, quais outras

instituições, como a promotoria pública , as

companhias de saneamento, etc.?

A ESF deve ser cuidadosa nesta função, não

avocando todos os encaminhamentos, saídas e

soluções, pois corre o risco de se constituir em nova

fonte de alienação, reproduzindo pela mediação os

comportamentos de dominação, cooptação e/ou

populistas.

É essencial que na Unidade de Saúde da Família

(USF) cada morador do bairro tenha uma relação de

cidadania e que isto seja aclarado, levando a uma

cidadania participativa.

A relação cidadã é explicitada no tratamento

respeitoso, chamando cada um por seu nome próprio,

respeitando horários, cumprindo compromissos

assumidos, explicando ou explicitando as

intercorrências que não permitiram a função de servir

ao público. Estabelecendo e negociando regras claras,

buscando garantir sempre normas de negociação nas

situações de conflito. Sposati e colaboradores

enfatizam a necessidade de interiorização "pelos

quadros da administração pública, não apenas o sentido

do direito, mas o dever, da necessária oferta

universalizante dos serviços". Na questão das

negociações, a autora sugere que se componha parceria

com a sociedade que garanta negociações democráticas

e co-participativas, alterando-se, assim, a prática

tutelar e manipuladora.

O ESTABELECIMENTO DA RELAÇÃO CIDADÃ ÉA BASE PARA A CONSTRUÇÃO DE UMPROCESSO EDUCATIVO

O processo educativo que leve em conta algumas

das qualidades indispensáveis – "qualidades não são

algo com que nascemos ou que encarnamos por decreto

ou recebemos de presente" – contidas na Quarta Carta

de Paulo Freire: "Humildade – qualidade que exige

coragem, confiança em nós mesmos, respeito a nós

mesmos e aos outros. Reconhecer ... ninguém sabe

É essencial que na Unidade de Saúde da

Família (USF) cada morador do bairrotenha uma relação de cidadania e que

isto seja aclarado, levando a uma

cidadania participativa.

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tudo; ninguém ignora tudo (...). A humildade ajuda a jamais

deixar-me prender no circuito de minha verdade. Um dos auxiliares

fundamentais da humildade é o bom senso que nos adverte

estarmos próximos, com certas atitudes de ir mais além do limite a

partir do qual nos perdermos"; "Tolerância não é, porém, posição

irresponsável de quem faz o jogo do faz-de-conta. Ser tolerante

não é ser conivente com o intolerável, não é acobertar o

desrespeito, não é amaciar o agressor, disfarçá-lo. A tolerância é a

virtude que nos ensina a conviver com o diferente"; e

"Segurança... demanda competência científica, clareza

política e integridade ética."

A linguagem, a relação cidadã, as qualidades de educador, a

compreensão dos membros da comunidade como pessoas presas

nas múltiplas realidades coletivas que determinam suas condições

de vida, mas que podem fazer, como propõe D'Incao e Roy, "a

escolha de se encolher sobre si mesmo, de se resignar, mas também

pode ser a escolha de se unir aos outros para transformar sua

própria condição e a de todos" que vivem as mesmas questões.

Cabe aos mediadores, isto é, a ESF "encontrar o caminho para

ajudar cada um desses homens e mulheres a conquistar sua

autonomia e a escolher livremente, unidos a outros e,

conjuntamente, enfrentar tudo que lhes pesa em comum".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É função essencial da ESF fornecer dados e estudos

epidemiológicos sobre a área. Torná-los público para subsidiar as

reivindicações, a busca de soluções, para organizar e mobilizar o

debate, pode ser um ponto de partida para a construção da

cidadania, para a promoção da saúde.

Enfim, a ESF precisa cumprir o papel de mediador, de

"alfabetizador" no Direito à Saúde, em cidadania, buscando, assim,

caminhos para uma vida saudável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carvalho JM. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2001.

D'Incao MC, Roy G. Nós, cidadãos: Aprendendo e ensinando a democracia.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

Durante M. Alfabetização de adultos: leitura e produção de textos.Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo:Olho d'Água, 1993.

Origassa MC, Shinohara E, Dellatorre MCC. "Caminhe": as dificuldadesdos idosos em seguir esta recomendação. In: 52º Congresso Brasileirode Enfermagem [CD ROM]; 2002 ; Curitiba.

Sposati AO, Falcão MC, Fleury S. Os direitos dos desassistidos sociais.4ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

... "encontrar o caminho para

ajudar cada um desses homens e

mulheres a conquistar sua

autonomia e a escolher

livremente, unidos a outros e,

conjuntamente, enfrentar tudo que

lhes pesa em comum".

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RRELAÇÃO EDUCATIVA

DA EQUIPE DE SAÚDE DAFAMÍLIA COM A POPULAÇÃO

Educative Relationship of the Family Health Team with the Population

A Promoção da Saúde em seu sentido mais amplo revela alguns componentes dentre os quais podemos citar: a ação

intersetorial, o fortalecimento da participação social e a afirmação do papel ativo da população no que se refere ao acesso,

apreensão e apropriação de conhecimentos, que a possibilitem a fazer escolhas "saudáveis" e obter maior controle sobre sua

própria saúde e sobre o seu ambiente. Esse último aspecto, o papel ativo da população, constitui-se em nosso objeto de reflexão,

uma vez que na estratégia de Saúde da Família, embora seja um dos mais relevantes é contraditoriamente muito pouco debatido.

Promoção da saúde; participação social; programa saúde da família; educação.

Ausônia Favorito DonatoEducadora, doutora em saúde pública, diretora técnica de serviços do Instituto de Saúde da Secretaria de

Estado da Saúde de São Paulo

Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública, assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo

Health Promotion in its wider sense reveals some components from which we can cite: intersectorial action, the

strengthening of social participation and the affirmation of the population's active role where it refers to

access, perception and appropriation of knowledge, which enables it to make "healthy" choices and obtain greater

control over its own health and over its environment. This final aspect, the active role of the population, is

constituted in our consideration objective, seeing that in the Family Health strategy, though it may be one of the

most relevant, it is contradictorily very little debated.

Health promotion; social participation; family health program; education.

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PROMOÇÃO DA SAÚDE E EDUCAÇÃO

Para que a Promoção da Saúde alcance o que se propõe a primeira condição é que

os participantes nela envolvidos assumam que estão compartilhando de uma ação

educativa. E, como toda ação educativa, aliás, toda ação humana, traz embutida uma

intenção, cabe à equipe de Saúde da Família explicitar de que intenção se trata.

A segunda condição, que complementa a primeira, é eleger a direção, dentre as

várias possíveis, (voltaremos a esta questão) da ação que se pretende realizar, bem

como das etapas que devem ser percorridas para atingirmos o que nos propusemos. Por

desnecessário que seja, é sempre oportuno relembrar que nada disso é possível sem um

planejamento coerentemente detalhado de todo o processo.

Não se trata de deter-se unicamente na dimensão técnica da ação educativa, ou

seja, de ressaltar a importância dos objetivos, estratégias, conteúdos, recursos e

avaliação, pois ela não nos levará muito longe.

Concretamente, como isto tem ocorrido na educação em saúde?

No geral, entende-se que há, por um lado, a presença de técnicos que detém

determinados conhecimentos elaborados, prontos, acabados, cientificamente

comprovados e sistematizados, e por outro, a população, desprovida de conhecimentos.

Portanto o que deve ser feito é muito simples: os técnicos "passam" os conhecimentos

que possuem para a população que não os possui.

E damo-nos por satisfeitos e felizes. Nós, técnicos, com a sensação do dever

cumprido e a população deveras agradecida pelos conhecimentos recebidos e pelo

empenho que demonstramos.

Como todos sabemos, é sempre preciso avaliar o processo e o produto de nosso

fazer educativo. E, se o fizermos, o que teremos?

Muitas vezes observamos que as pessoas após conversarem com as equipes de

saúde acabam por repetir certos termos, certas expressões, certos princípios e até

certos conceitos.

Entretanto, precisamos estar atentos, pois pode ser, e na maioria dos casos é, um

tipo de aprendizagem que reproduz idéias, símbolos, mas não os decodifica, isto é,

não consegue relacioná-los com a sua vida e com seus saberes anteriores. São idéias,

símbolos ou mesmo conceitos que são

repetidos, mas que nada significam, que não

têm sentido. É uma aprendizagem mecânica.

Como ilustração, desse tipo de

aprendizagem e, desta vez, saindo do campo

da saúde, podemos lembrar o caso de crianças

que, em muitas cidades brasileiras assumem o

papel de guias turísticos. Podemos dizer que

eles sabem verbalizar muitas idéias a respeito

das várias características da cidade, isto é

aprenderam para poder se comunicar com os

turistas. Entretanto, podemos observar

também que, o mais das vezes, se lhes fizermos

algumas perguntas no decorrer de sua narrativa

tentando relacionar alguns dados

mencionados, elas invariavelmente retornam

para o início da sua fala e a repetem

integralmente. Por quê? É um caso de

esquecimento? Não, elas adquiriram o que aqui

denominamos de aprendizagem mecânica.

MECANIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃODA REALIDADE

Passemos a outro caso concreto, ocorrido

com uma pediatra. Quando essa profissional

indagou a uma mulher se ela havia lavado as

mãos, fervido o bico da mamadeira e a chupeta,

ela orgulhosamente respondeu que sim. E a

seguir guardou o bico da mamadeira e a

chupeta, cuidadosamente fervidos, na mesma

sacola onde havia colocado a fralda usada do

seu nenê! O paradoxo é notável.

Houve uma ação educativa, a aluna

aprendeu, tanto que reproduziu as ações que

lhe foram ensinadas, mas por não entender os

princípios que as fundamentavam, o resultado

em termos da promoção da saúde foi nulo!!

Como poderíamos explicar tão fragoroso

fracasso?

Se não há porque duvidar-se da

competência técnica dos técnicos e nem da

possível incoerência do planejamento, só nos

resta pensar no modelo de educação escolhido.

Com muita calma, pois este é um

momento delicado, recordemos que no tipo

de educação considerado acima, tínhamos os

técnicos, detentores do saber e a população,

desprovida deles e que o fulcro da ação

educativa consistia na transferência de

conhecimentos de uns para outros.

Claro que se a população só recebe

informações, o máximo que pode fazer com

elas é repeti-las. Daí o fracasso.

Ou seja, o tipo de educação escolhida

tende necessariamente para manutenção, a

estagnação, a domesticação e alienação. E

frise-se que não se trata de uma escolha

idiossincrática, mas, pautada em visões e

concepções de projeto social, de ser humano,

de aprendizagem, de educação, e do modo de

ver-se o mundo.

Essa concepção de educação tem sido

contraditada pela concepção crítica da

educação que pretende ser uma educação para

a mudança, para a transformação, para a

conscientização, para a libertação.

Esta nova concepção que dá suporte aos

movimentos de educação popular em saúde,

se contrapõe a essa visão por entender que, na

relação do profissional da saúde com a

população, necessariamente ambos se

modificam, porque ambos são percebidos como

Muitas vezes

observamosque as pessoas

após conversarem

com as equipesde saúde acabam

por repetircertos termos,

certas

expressões,

certos princípios e

até certos

conceitos.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 37

portadores e produtores de conhecimentos distintos.

Esses conhecimentos podem e devem ser comparados

e confrontados resultando em novos conhecimentos.

Nessa relação educativa a produção de um

conhecimento é coletiva, processual, o que significa

dizer que, o conhecimento deve ser construído

continuamente.

Vale dizer que na Estratégia de Saúde da Família,

a relação da equipe com a população, deve ser

necessariamente aprofundada para que se constitua

numa relação educativa que permita que todos os

envolvidos, se descubram como sujeitos não apenas

no processo educativo, mas no processo de vida. Qual

o significado das pessoas se tornarem sujeitos? Significa

tomarem consciência de sua prática social, isto é, o

que fazem, vivem, aprendem e sentem no seu dia-a-

dia, e por que dessa forma e não de outra?

Nesse aspecto é importante lembrar-se que os

agentes locais de saúde que compõem a equipe de

Saúde da Família são pessoas da própria comunidade e

assim sendo, possuem uma história de vida semelhante

a das pessoas da população. Dito de outro modo,

possuem valores, crenças, credos, tabus,

conhecimentos, preconceitos em relação a saúde

similares a da população com a qual vai trabalhar. Com

isso pretende-se dizer que esses trabalhadores

necessitam de oportunidades planejadas para o

exercício da reflexão constante sobre o seu fazer

cotidiano para tornarem-se conscientemente atores e

possibilitadores de situações de ensino-aprendizagem

para que outros se tornem sujeitos.

CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

Nesse sentido, é fundamental, que a equipe de

Saúde da Família na sua prática educativa considere as

opiniões diferentes, os vários jeitos de ver as coisas e

perceba que as experiências são heterogêneas porque

são vivenciadas de modos diferentes, por diferentes

sujeitos e em momentos históricos diferentes. Cabe

enfatizar que coerentemente aqui adotamos uma

concepção problematizadora do processo ensino-

aprendizagem, isto é, que considera educandos e

educadores como sujeitos concretos desse processo,

ou seja, esses sujeitos são percebidos como seres

que sabem, sabem que sabem, sabem porque

sabem, sabem como sabem, e sabem dizer a terceiros

o que sabem e não menos importante, agem

conseqüentemente aos seus saberes.

Em outras palavras, estão conscientes de que são

capazes de construir e reconstruir o seu próprio

conhecimento. E, isto só é possível quando se considera

suas experiências anteriores como elementos

fundamentais e desencadeadores de novos

aprendizados. Só assim é possível no nosso entender, a

aquisição de uma aprendizagem significativa.

O que implica a população construir o seu

conhecimento?

Construir o seu conhecimento significa que a

população, diante de um problema gerado por uma

situação que o seu conhecimento ainda não explica,

se valha das informações disponíveis para elaborar e

socializar uma explicação que, mesmo já existente, passa

a ser a sua explicação para o fenômeno. Trata-se de

atribuir significado às novas informações, ou seja,

articulá-las ao já conhecido, transformando-o.

Salta aos olhos, portanto, a necessidade de

conhecermos o que a nossa população já sabe e o que

ela ainda não sabe. Assim, se oferecermos a ela

problemas que o seu saber não sabe, o que ela sabe

poderá, pelo seu esforço intencional de saber,

transformar-se no que ela ainda não sabe.

Mais uma outra idéia que gostaríamos de ver aqui

pensada é a que se refere a uma outra dimensão presente

na relação educativa entre os componentes da equipe

... na Estratégia de Saúde da Família, a relação da equipe com a

população, deve ser necessariamente aprofundada para que se constitua

numa relação educativa que permita que todos os envolvidos, se

descubram como sujeitos não apenas no processo educativo, mas no

processo de vida.

... é fundamental, que a equipe de Saúdeda Família na sua prática educativaconsidere as opiniões diferentes, osvários jeitos de ver as coisas e perceba queas experiências são heterogêneasporque são vivenciadas de modos diferentes,por diferentes sujeitos e em momentoshistóricos diferentes.

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de Saúde da Família com a população: a dimensão humana

constitutiva dessa relação. É uma relação autoritária, democrática,

horizontal?

Novamente é uma questão de escolha. Defende-se aqui, no

sentido de se reafirmar o papel ativo da população na Promoção

da Saúde, uma relação democrática, isto é, que percebe, entende

e respeita as diferenças. Isso só é possível no nosso entender, com

o diálogo entre os protagonistas da ação.

Uma observação que se faz necessária, é a de que não estamos

de forma alguma dizendo que o diálogo implica necessariamente

consensos, visões harmoniosas sobre as coisas. A idéia de conflito

está sempre presente pois, como já dito, saberes desiguais, uma

vez que são procedentes de fontes diferentes, estão

permanentemente em confronto. Ressaltamos que o confronto

propicia aprendizados.

E, A CONVERSA PÁRA AQUI?

Para finalizar o texto, mas não a problemática, apresentamos

uma última idéia, não menos importante: aprender e conhecer

fazem parte do "ser cidadão". Para além do conhecimento utilizado

pela população em suas escolhas "saudáveis", considera-se que o

acesso ao conhecimento sistematizado, acumulado pela

humanidade é de seu direito enquanto cidadã, garantido inclusive

pelas leis, referentes a educação. Isto fornecerá elementos à

população para uma participação ativa na vida de sua cidade -

afinal resgata-se aqui, o sentido primordial da palavra cidadão:

aquele que vive, usufrui e intervém plenamente nas questões vitais

de sua cidade.

A idéia de conflito está

sempre presente pois,

como já dito, saberes

desiguais, uma vez

que são procedentes de

fontes diferentes,

estão permanentemente

em confronto.

Ressaltamos que o

confronto propicia

aprendizados.

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TERRITÓRIO: ESPAÇOSOCIAL DE CONSTRUÇÃO DE

IDENTIDADES E DE POLÍTICASTerritory: The Social Period of Construction of Identities and Policies

A intenção de enfocar a relação da saúde com a totalidade da vida, encontra amparo na Constituição Federal Brasileira de

1988, no capítulo sobre Saúde, que a define no sentido positivo. Aproximando-a das proposições relativas à qualidade de

vida, a saúde deve ser observada a partir da interlocução com outras áreas, buscando a integralidade da ação social. As políticas

de saúde que vêm sendo delineadas, desde então, têm reafirmado o pressuposto da descentralização e a importância do espaço

local ou território, considerado como cenário de integração de diversos sujeitos sociais para o desenvolvimento da saúde e de

constituição e construção da cidadania.

Território; programa saúde da família; cidadania; geografia.

Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública, assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo

Ausônia Favorito DonatoEducadora, doutora em saúde pública, diretora técnica de serviços do Instituto de Saúde da Secretaria de

Estado da Saúde de São Paulo

The intention of tackling the relationship of health with the totality of life, encounters support in the Brazilian Federal

Constitution of 1988, in the chapter on health, which defines it in positive sense. Bringing it close to the proposals

relating to quality of life, health should be observed from inter-discussion with other areas, seeking the integrality of social

action. The health policies which have been outlined, since then, have reaffirmed the presupposition of decentralization and

the importance of local space or territory, considered as an integration scenario of diverse social subjects for the development of

health and the constitution and construction of citizenship.

Territory; family health program; citizenship; geography.

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IDENTIFICANDO O TERRITÓRIO

O espaço deve se constituir o lugar da promoção da saúde, por

meio da promoção da solidariedade, onde vários sujeitos

sociais – profissionais da saúde e de outros setores, movimentos

populares, organizações não governamentais, conselhos, dentre

outros, e o Estado – atuam coletivamente com a intenção de

promover a melhoria das condições de vida e saúde.

Se tivermos como referência o Programa de Saúde da Família,

cabe-nos, nesse momento, uma indagação: qual é o significado

da discussão sobre espaço social – território na implantação de

equipes de Saúde da Família?

Numa primeira aproximação podemos afirmar que o processo

de apropriação do território pela equipe do Programa de Saúde da

Família, permite conhecer as condições em que os indivíduos

moram, vivem, trabalham, adoecem e amam a depender do segmento

social em que se situam. Esse conhecer implica assumir o

compromisso de responsabilizar-se pelos indivíduos e pelos espaços

onde esses indivíduos se relacionam. A adscrição da clientela

naUnidade de Saúde não é uma mera regionalização formal do

atendimento, mas um processo necessário para definir relações de

compromisso. Quer se enfatizar, que este é um pré-requisito

fundamental, imprescindível para se elaborar estratégias de ação

cuja relevância social possa alterar tais condições.

É preciso que se considere, no entanto, que existem diferentes

leituras acerca do espaço-território, que acabam por determinar as

formas e o sentidos das intervenções.

Tendo isto em consideração é nossa intenção explicitarmos

o conceito de espaço local ou território, e ao fazê-lo nos colocamos

como questões: por meio de quais entendimentos, de quais

concepções este conceito tem sido abordado?

Segundo o léxico, local é limitado a uma região e, território

à área de um país, estado, província ou cidade. No entanto, a

maioria das pessoas usa indistintamente as palavras local, região,

área e território atribuindo-lhes o mesmo significado quando se

trata da delimitação de um espaço geográfico.

Na Geografia há no mínimo duas correntes de pensamento

que apreendem de forma distinta a questão do espaço.

A primeira o apreende de forma naturalizada, como um espaço

físico que está dado, onde o ambiente em que vivemos é alguma

coisa externa à vida da sociedade. Para os defensores de tal

concepção são os critérios geofísicos e/ou geopolíticos que

delimitam os espaços – estes, dados pelos interesses do Estado,

onde o social é mais uma variável – que vão definir o território,

área, região ou localidade.

Esta concepção, ao ser adotada pelo setor saúde, por exemplo,

na delimitação de área de responsabilidade de uma equipe de

Saúde da Família, definiria apenas um local onde se opera a base

do sistema, isto é, o número de famílias a ser considerado, a

localização dos equipamentos de saúde e outros, o número de

equipes por área de abrangência, distribuição da população por

faixa etária, dentre outras variáveis. Tal abordagem limita-se a uma

descrição estática do espaço onde deve atuar a Equipe de Saúde

da Família.

Essa concepção de apropriação de espaço naturalizado,

previamente estabelecido, presta-se, ou melhor, é eficaz, quando

adotamos a concepção de saúde apoiada no modelo biomédico

que a considera como ausência de doença e, esta definida como

alteração fisio-patológica. Portanto, também naturalizada,

biologizada e, ao tratar o social o faz reduzindo-o a um conjunto

de características individuais, os chamados "fatores sociais", não

assumindo o dinamismo da construção do espaço como processo

social.

Há uma releitura do espaço. Nesta, a apreensão do espaço

delimitado em território (área, região ou localidade) é uma

construção decorrente do processo histórico resultante da ação

de homens concretos e em permanente transformação. É também

um espaço histórico, uma vez que revela as ações passadas e

presentes. Sendo território uma construção, é produto da dinâmica

onde tencionam-se as forças sociais em jogo. Uma vez que essas

tensões e conflitos sociais são permanentes, o território nunca

está pronto, mas sim em constante transformação. Ao mesmo tempo

que território é um resultado, é também condição para que as

relações sociais se concretizem. E, sendo construído no processo

histórico é historicamente determinado, ou seja, pertence a uma

O espaço deve se constituir o

lugar da promoção da saúde, por

meio da promoção da

solidariedade, onde vários

sujeitos sociais (...) atuam

coletivamente com a intenção de

promover a melhoria das

condições de vida e saúde.

... o processo de apropriação

do território (...) permite

conhecer as condições em que os

indivíduos moram, vivem,

trabalham, adoecem e amam adepender do segmento social

em que se situam.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 41

dada sociedade, de um dado local, que articula as forças

sociais de uma determinada maneira.

Como resultado deve-se entender o modo como

ao longo do tempo foi se organizando a vida local

definindo, por exemplo, o tipo de equipamentos sociais

e onde eles estão situados; as características das

habitações e o modo como elas se dispõem e abrigam as

pessoas; a circulação dos meios de transportes; a

utilização dos espaços e equipamentos como praças,

clubes sociais, escolas, igrejas, delegacias, entre outros.

A partir dessas considerações, fica evidente a

necessidade da Equipe de Saúde da Família conhecer a

história dos indivíduos, do seu território de

responsabilidade e como esse território se insere na

dinâmica da cidade. Qual a história da Unidade de Saúde,

das pessoas que freqüentam aquele serviço de saúde e a

partir daí entender as representações da comunidade

sobre a unidade. O modo como os indivíduos na

comunidade vêem a unidade determina a especificidade

das relações que se estabelecem entre a comunidade e

os serviços de saúde. Por outro lado, os profissionais da

Equipe de Saúde da Família têm suas próprias

representações sobre a clientela as quais definem os tipos

de ações de saúde a serem desenvolvidas e como elas

devem ser realizadas.

É preciso destacar que nessa concepção, a

superfície solo e as características geofísicas são apenas

uma das dimensões do território e que as características

geo-humanas não são consideradas como variáveis

isoladas, fragmentadas, mas com a complexidade de um

espaço construído pelas forças sociais. Assim, ao adotarmos

esta concepção no Programa de Saúde da Família, sabe-se

que o território estará em permanente processo de

reconstrução, de redefinição e de transformação. Cabe,

portanto, às equipes de Saúde da Família um constante

processo de conhecimento e desvelamento da realidade –

território vivo – onde atuam, no sentido, já dito de

transformação.

O LUGAR NA GEOGRAFIA

Uma outra noção relevante é a

de que o território contém inúmeros

lugares; e lugar, é um conceito-chave

da Geografia. Nessa porção do

espaço, é onde se desenvolve a trama

das relações sociais de cada

indivíduo, e que produz a

identificação com o lugar. O

significado de cada lugar é dado

pelo seu uso: lugar de produzir ou

lugar de consumir; lugar de adoecer

e lugar de curar; lugar de amar e

lugar de lutar (CARVALHO, 2001).

Nessa visão, esses espaços

locais são concebidos como algo concreto, sínteses de

múltiplas determinações, campos privilegiados de ação,

que podem permitir a implementação de iniciativas

inovadoras, com a inclusão de diversos sujeitos locais no

estabelecimento de políticas. O Programa de Saúde da

Família ao ser pensado nessa lógica possibilita a

participação cotidiana dos cidadãos na gestão pública e

no controle das condições que podem interferir na sua

saúde e da coletividade onde vivem e trabalham. É

necessário, que os sujeitos se apoderem do território, o

que implica um processo de identificação com os diferentes

lugares e as particularidades históricas e políticas desses

lugares, possibilitando assim uma participação mais

efetiva. É, portanto, o espaço de aprendizado e conquista

de cidadania.

Pode-se nesse momento reforçar o entendimento

do conceito de território trazendo a idéia de que o

território constitui-se como "ator" e não apenas como um

"palco". Significa entendê-lo no seu papel ativo, ou seja,

como um espaço que dinamiza as relações, que integra

culturalmente e que se converte em um lugar de respostas

... o território nunca está

pronto, mas sim em constante

transformação. Ao mesmo

tempo que território é um

resultado, é também

condição para que as

relações sociais se

concretizem. E, sendo

construído no processo

histórico é historicamente

determinado, ou seja, pertence

a uma dada sociedade, de

um dado local, que articula as

forças sociais de uma

determinada maneira.

O significadode cada lugar é

dado pelo seu uso:

lugar de

produzir ou lugar

de consumir;

lugar de adoecer e

lugar de curar;

lugar de amar e

lugar de lutar.

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possíveis aos propósitos sociais, econômicos, políticos e culturais

de nossa época (CASTELLS e BORJA,1996; SANTOS e SILVEIRA 2001).

CONCEITUANDO CIDADANIA

Assim, como o fizemos para o conceito de território, o faremos

em relação ao conceito de cidadania.

A cidadania como princípio político-ideológico da

igualdade, é individualizante. Todos – isto é, cada um – são iguais

perante a lei. A medicina anátomo-clínica também é

individualizante. A medicina individual dirá que a tuberculose,

por exemplo, é a mesma em todos os indivíduos tuberculosos,

reduzindo a doença à sua dimensão biológica, deixando de fora

todas as variáveis como não essenciais, inclusive a dimensão social

de cada indivíduo. Em um só movimento, portanto, a clínica

anátomo-patológica se alia ao individualismo político-ideológico

que se alia a apropriação naturalizada do espaço que é a forma

mais concreta de realização do princípio da igualdade.

Entretanto, a cidadania também pode ser concebida numa

outra leitura, não mais considerada como um estado pleno de

direitos. É sim entendida como uma conquista, fruto de um processo

de aprendizado, expresso diferentemente segundo as classes e

frações de classes sociais. A questão da cidadania hoje é recolocada

em todos os setores da sociedade ao nosso entender decorrente

da conjuntura política.

Apropriar-se do território nessa perspectiva e utilizá-lo

efetivamente implica implementar projetos que tenham por

princípio a "inovação democrática" que responde à participação

dos cidadãos, à cooperação social, à integração das políticas

urbanas, à participação e formulação de políticas públicas. Este

aspecto merece atenção, especialmente porque a inclusão de amplos

setores da sociedade civil na formulação, implementação e controle

das políticas, tem conseqüências muito importantes para o

desenvolvimento de projetos sociais. No Brasil, este processo é

muito recente e tem relação com o processo de democratização.

Historicamente, os atores sociais advindos de grupos comunitários

e associações sempre estiveram à margem da definição de políticas

públicas, sob forte gerência de um Estado burocrático, com tradição

política paternalista e clientelista. Esse processo exige, contudo,

reconhecer a existência de campos de negociação e conflitos na

prática cotidiana (IANNI 1996).

Reforçando as concepções descritas diríamos que esse espaço

representa muito mais que uma superfície geográfica, ou seja, para

compreender o território deve-se levar em conta a interdependência

e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e

o seu uso, que inclui a ação humana, isto é o trabalho e a política.

Desta forma, defronta-se com o território vivo, vivendo em

permanente construção (SANTOS E SILVEIRA 2001).

Nessa perspectiva, deve-se conceber a saúde enquanto

expressão de um fenômeno coletivo e este não mais entendido

como um todo homogêneo.

Nessa outra concepção apreendemos a saúde e a doença

enquanto processo socialmente determinado e coletivo. Como já

afirmado, os indivíduos vivem, adoecem e morrem diferentemente

segundo sua inserção nas classes e frações de classes sociais.

Retomando o exemplo da tuberculose, ela não é a mesma em

todos os indivíduos tuberculosos, pois embora tendo em comum

o mesmo agente etiológico, a determinação social para a

manifestação da doença é distinta para diferentes pessoas, assim,

por exemplo, ela é diferente num jovem executivo e em um jovem

morador da periferia de um grande centro urbano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, lembramos que nos discursos da saúde coletiva

tem-se reiterado a questão da exclusão. A esse propósito podemos

afirmar que o território é o espaço por excelência onde podemos

perceber, apreender, sentir, identificar, mas, o que é mais importante,

intervir nas condições e vivências objetivas de exclusão, construindo

condições de inclusão.

Esse processo supõe participação, pois estar incluído significa

não só condições materiais, mas, sobretudo, democracia, cidadania

e felicidade (SPOSATI 2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTELLS ME, BORJA J. As cidades como atores políticos. Novos Estudos1996; (45): 152-166.

CARVALHO CAJ. "O Território da Saúde: uma análise de seus componentes."In [www.escola.org/geografia/saude/territorioesaude.html],novembro de 2001.

IANNI O. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;1996.

SANTOS M e SILVEIRA ML O Brasil: território e sociedade no início doséculo XXI. Rio de Janeiro e São Paulo, Ed. Record, 2001.

SPOSATI A. Pela inclusão na política de saúde. XI Conferência Municipalde Saúde de São Paulo. 2001.

... deve-se conceber a saúde

enquanto expressão de um

fenômeno coletivo e este

não mais entendido como um

todo homogêneo. (...) os indivíduos

vivem, adoecem e morrem

diferentemente segundo sua

inserção nas classes e

frações de classes sociais.

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MMÚLTIPLOS ATORES

DA PROMOÇÃO DA SAÚDEMultiple Performers in Health Promotion

Em 1986, realizou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde em Brasília, primeira aberta a participação de vários segmentos da

sociedade, inclusive os setores populares. As conclusões deste evento deram origem ao Capítulo de Saúde da Constituição

Federal de 1988, onde ficou estabelecido o conceito norteador do Sistema Único de Saúde – “saúde como resultante de condições

de vida e trabalho” e um estado coletivo “que pode ser alcançado através de políticas econômicas e sociais”. O reconhecimento

da múltipla determinação do processo saúde doença nos faz reconhecer, que a saúde se produz socialmente e que todo trabalho

relacionado com este objetivo deve ser realizado através dos múltiplos atores sociais e das redes de apoio social. Este artigo indica

como reconhecer estes atores e como articular as ações desenvolvidas por outros setores.

Sistema único de saúde; doença; carta de Otawa; promoção da saúde.

Márcia Faria WestphalProfa. Titular do Departamento de Prática de Saúde Pública da

Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

In 1986 the 8th National Health Congress was held in Brasília, the first open to participation from the various segments of

society, including popular sectors. The conclusions from this event gave origin to the Chapter on Health in the 1988 Federal

Constitution, where the guiding concept of the Unified Health System was established – “health as a result of living and

working conditions” and a collective state “which can be reached through economic and social policies”. The recognition of

multiple determination of the health/sickness process made us realize, that health is produced socially and all practice related

to this objective should be carried out through the multiple social performers and the networks of social support. This article

indicates how to recognize these performers and how to articulate the actions developed by other sectors.

Unified health system; sickness; The Ottawa Charter; health promotion.

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CONCEITUANDO A HISTÓRIA

O conceito oficial de saúde – hegemônico (até hoje) – era "ausência de doença" e

as ações para obtê-la eram a assistência médica de competência da Previdência

Social, que tinha circunscrita sua ação aos trabalhadores de carteira assinada. Ações

preventivas, universais, eram de competência de outro setor do governo, o Ministério

da Saúde, a Saúde Pública, situação que concretizava a dicotomia prevenção/cura.

Naquele momento, o Brasil vivia uma crise previdenciária e as condições para

manter a assistência médica para os integrantes do sistema eram quase inexistentes. No

mesmo momento, estava em curso o processo de redemocratização do país e as camadas

populares exigiam outras soluções que permitissem diminuir as iniqüidades acentuadas

durante o período de ditadura. Os resultados obtidos com um sistema de saúde dual

e fragmentado, como o anterior à constituição, não correspondiam aos investimentos

feitos. Fazia-se necessária e urgente a racionalização dos serviços de saúde via Sistema

Único de Saúde, sendo que este Sistema foi regulamentado e passou a funcionar a

partir da Lei 8080 de 1990. Assistência universal à saúde e seu financiamento foram o

grande mote dos defensores do Sistema e das lutas por melhoria dos níveis de saúde no

Brasil. A iniciativa de promover mudanças macroestruturais, junto com outros setores

de governo foi iniciada pelas lideranças do movimento sanitário ainda na década de

80, no sentido de, através de ações intersetoriais e políticas, interferir nas condições

de vida e saúde da população. Nos anos 90, porém, as forças políticas mudaram e esta

estratégia foi deixada de lado.

O conjunto dos atores do Sistema Único de Saúde, portanto ficaram restritos aos

profissionais e técnicos da saúde, funcionários e agentes que garantem a atenção e

prevenção das doenças e a população que participa através de seus representantes nos

"conselhos gestores" e conselhos municipais e estaduais de saúde.

Do outro lado do mundo, ainda nas décadas de 70 e 80, os países do norte

enfrentavam outras situações de crise – a crise do Estado de Bem Estar – que vários

países europeus e americanos (do norte), haviam adotado e que equilibrava as tendências

de aumento das iniqüidades naqueles países. Aos poucos os Estados começaram a

sentir-se esgotados e incapazes de atender a todas as necessidades da população,

através dos benefícios e auxílios estabelecidos anteriormente. Os perfis demográficos

e de saúde se modificaram tornando impossível ao Estado sozinho dar conta da

assistência médica, assistência ao desemprego e outros.

Diante desta crise os responsáveis pelo setor saúde foram

obrigados a fazer uma reflexão e sentiram que sua visão de

saúde precisava ser ampliada, dada a interferência

biológica, bem como econômica, na causalidade do

processo saúde e doença. Com a queda do socialismo

ficou mais evidente a influência de outras condições: das

políticas globais, nacionais e locais, das mudanças sociais,

das diferenças culturais e étnicas e até religiosas na origem

das doenças e causalidade de mortes. Em

decorrência desta ampliação do conceito foi

necessário rever as estratégias para promover a

saúde, ampliando as preocupações para além

da assistência a saúde.

Colocar a Saúde no centro do processo

de tomada de decisões, como um critério para

a definição de políticas e ações passou a ser

uma necessidade básica e o movimento

predominante na Europa e em parte do

continente americano.

Foi a partir de 1986, também, alguns

anos depois desta discussão ter se iniciado

nos países em desenvolvimento, que ocorreu

a Primeira Conferência Internacional de

Promoção de Saúde em Otawa, no Canadá. Neste

foro recuperou-se o sentido ético da vida

tentando reverter os efeitos já sentidos da

globalização em curso e da revolução

tecnológica e do mundo do trabalho. Saúde

foi considerada como resultado da melhoria

da qualidade de vida e dependente de várias

condições: paz, educação, alimentação, posse

de habitação digna, renda, ecossistema

sustentável e outros. Valores de equidade e

justiça social foram considerados

imprescindíveis para que esta tarefa se

efetivasse.

Várias Conferências, declarações e cartas

que sintetizam as conclusões e recomendações

de outras Conferências Internacionais de

Promoção de Saúde, se seguiram nos últimos

15 anos. A partir da concepção de saúde,

definida na Carta de Otawa, na qual esta prática

esta fundamentada, define compromissos para

a implementação da Promoção de Saúde, que

extrapolam o setor saúde e exigem parcerias

com outros setores de governo – políticos,

sociais, econômicos, culturais, ambientais,

educacionais e de saúde no sentido estrito.

Fazia-se necessário convocar outras forças

sociais para participar deste movimento de

Assistência universal à saúde e seu

financiamento foram o grande mote dos

defensores do Sistema e das lutas por

melhoria dos níveis de saúde no Brasil.

Várias Conferências, declarações ecartas que sintetizam as conclusões e

recomendações de outras Conferências

Internacionais de Promoção de Saúde,

se seguiram nos últimos 15 anos.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 45

ampliação das estratégias de Promoção da Saúde. Era

necessário fortalecer a capacidade de convocação do

setor saúde para mobilizar recursos na direção da

produção social da saúde, estabelecendo

responsabilidades dos diferentes atores sociais em seus

efeitos sobre a saúde.

Esta estratégia que havia sido a vertente inicial

da Reforma Sanitária Brasileira, só portanto começou a

ser recuperada, na década de noventa, mais

precisamente depois de 1995, a partir da introdução

do ideário da Promoção da Saúde no Brasil.

As estratégias para incentivar a melhoria das

condições de saúde passaram a incluir a advocacia de

Políticas Públicas que garantam a eqüidade e favoreçam

a criação de ambientes e opções saudáveis; o

estabelecimento de mecanismos de negociação entre

setores sociais e institucionais; o fortalecimento da

capacidade da população para participar nas decisões

que afetam sua vida e para optar por estilos de vida

saudáveis; o estímulo ao diálogo dos saberes diversos;

o reconhecimento ou melhor a inclusão como

trabalhadores e agentes de saúde responsáveis por

viabilizar ações de atenção e promoção de saúde de

populações.

Os atores da Promoção da Saúde tornaram-se

potencialmente muitos e na medida em que novos

atores se sentiram envolvidos, ou melhor incluídos

neste novo movimento, passaram de atores a sujeitos

desta nova prática.

QUAIS SÃO OS ATORES DA PROMOÇÃO DASAÚDE? QUEM DEVEM SER OS ATORESPROTAGONISTAS DESTE NOVO MOVIMENTO?

A melhoria da qualidade de vida da população

em países em desenvolvimento como o Brasil não se

fazem sem o papel preponderante e protagônico do

Estado, pois as necessidades de construção de

condições de infra-estrutura ainda são muito grandes

e a sociedade civil, com suas instituições públicas e

privadas não pode dar conta das tarefas sozinha. O

ator fundamental, sujeito da Promoção da Saúde,

portanto continua sendo o Estado e não somente o

setor saúde, mas todos os setores de governo, de forma

articulada de preferência, constituindo uma ação

intergovernamental pela melhoria da qualidade de vida.

O compromisso de modificar e potencializar as

condições determinantes da saúde e qualidade de vida

e de estabelecer políticas públicas saudáveis no sentido

de atingir este objetivo implica uma abordagem mais

complexa, devendo ser compreendida como uma

formulação inovadora tanto do conceito de saúde

quanto do conceito de Estado e de seu papel perante

a sociedade. Assim sendo, a nova concepção de Estado,

de que estamos falando, estabelece a centralidade de

seu caráter público e o compromisso com o interesse

público e com o bem comum.

Neste contexto, é possível superar a idéia de

políticas públicas como iniciativas exclusivas do

aparelho estatal. Serão sempre

elaboradas e pactuadas em fóruns

participativos onde estarão presentes

os diversos atores sociais,

representando múltiplos interesses e

necessidades sociais, outros setores

sociais e áreas de conhecimento. Esta

pactuação não exime o Estado de seus

compromissos.

O fato de se adotar uma

perspectiva global para a análise da

questão saúde e não só do setor saúde,

indica a necessidade de uma primeira

ampliação dos atores sociais que se

envolvem com as questões de saúde e

qualidade de vida. Não mais só o

Estado, nem só o setor saúde são

envolvidos, mas profissionais,

intelectuais e a população em geral

cada uma representando o seu grupo

de conhecimento ou interesse (BUSS,

2000).

Finalmente, em relação à

participação da sociedade civil neste

processo de construção social da

saúde é necessário fazer algumas

considerações sobre suas formas de

organização na contemporaneidade,

no sentido de chamar a atenção para

algumas condições que podem

interferir na possibilidade de

estabelecer parcerias e alianças e

mesmo articular setores e iniciativas

com as propostas de Promoção da

Saúde, a partir de valores de equidade

e justiça social, ampliando mais uma

vez o número e a qualidade dos

parceiros nas ações de Promoção da

Saúde e melhoria da qualidade de

vida.

Destacam-se como formas de organização da

sociedade civil internamente no país, neste início de

século, os movimentos de redemocratização do país e

as reformas institucionais, sendo que ambos têm grande

afinidade com os objetivos da Promoção da Saúde.

A melhoria da

qualidade de vida

da populaçãoem países em

desenvolvimento

como o Brasilnão se fazem sem

o papelpreponderante e

protagônico do

Estado, pois as

necessidades de

construção de

condições de infra-

estrutura ainda

são muitograndes e a

sociedade civil,com suas

instituições

públicas e

privadas não pode

dar conta das

tarefas sozinha.

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Externamente, a queda do socialismo como utopia e as

mudanças tecnológicas e na organização social do trabalho mudam

o cenário dos movimentos e iniciativas de organização da

sociedade. Merece destaque como inovação, o surgimento de

práticas políticas articulatórias das ações localizadas, de redes de

movimentos e iniciativas de organização comunitária. Já se inicia

no país um movimento de articulação de iniciativas e movimentos

que têm reforçado as ações particularizadas. A forma de integração

que temassumido tem sido orgânica e não formal, e mecânica

como foi tentado anteriormente (Scherer Warren, 1993 e 1999;

Inojosa, 2000; Westphal & Mendes, 2000; Teixeira & Paim, 2000).

O reconhecimento das limitações das análises macro e

microsociais permitiu o entendimento das formas de organização

da sociedade enquanto práticas sociais em construção, locais,

mas que não podem ser entendidas no seu verdadeiro sentido a

não ser quando relacionadas ao que acontece no mundo global. A

busca das interconexões de sentido entre o local (comunitário) e

o global (supranacional, transnacional), o reconhecimento da

pluralidade social e cultural e da possibilidade de

intercomunicação mesmo na diversidade entre iniciativas ou

movimentos tem indicado, por um lado, formas de recomposição

do tecido institucional, conducente à democratização e à equidade.

Esta iniciação em uma nova cultura política – das parceiras e

alianças – tem obrigado muitos líderes locais a alargarem as suas

visões e juntarem forças em frentes unificadas de ação.

As redes de movimentos feministas, ecopacifistas e os

movimentos de base, o novo sindicalismo urbano e rural, o

movimento dos sem-terra e outros estão reconhecendo a

necessidade de articulação e de ampliar sua representação efetiva

através dos partidos políticos para dar andamento a um projeto

mais global de democratização da sociedade, no qual a melhoria

da qualidade de vida e saúde se inserem.

Uma outra visão contrária e oposta é aquela de que a

sociedade civil, no momento atual, não mais se mobiliza. Vem, ao

contrário, assumindo a forma de "massa", um todo inorgânico de

individualidades, de manifestações atomizadas, de condutas de

crise, constituindo antimovimentos, que agem sem intermediação

do Estado (Zermeno, 1989 In: Scherrer Warren, 1993). Ganham

importância, nos interstícios da modernização, em meio aos

avanços tecnológicos os bandos de jovens, grupos de delinqüentes

ou outros grupos de violência organizada, chegando a formar um

poder paralelo concorrendo com o Estado, adotando formas ilegais

de reação ao aumento da pobreza, da insegurança. Será que a

sociedade civil está totalmente anômica, está realmente se

tornando uma massa amórfica? Serão estes atores da Promoção da

Saúde? Devem estes serem banidos do processo, para proteger o

restante dos atores?

Os partidários da primeira visão, a de que os movimentos, as

instituições e iniciativas devem ser articuladas em redes, para

atingir objetivos comuns, sugerem um novo

esforço de pesquisa para ampliação de

conhecimentos e experiências sobre as

potencialidades e dificuldades de integração

com outros movimentos e outras iniciativas

de inclusão, considerando a realidade interna

do país e as forças externas. Este

conhecimento deve ser buscado pelos

profissionais envolvidos com a Promoção da

Saúde e incorporado em suas estratégias.

Tentativas de articulação da Promoção da

Saúde com o movimento ecológico, a mais

forte utopia deste século, e outros,

representantes da herança mais genuína da tendência progressista,

que se movimentam entre o protesto, a resistência não violenta e

a desobediência civil (David Thoreau, Gandhi e Martin Luther King)

por exemplo, é uma das experiências a serem tentadas e um caminho

possível para fortalecimento da rede social pela melhoria da

qualidade de vida. Entretanto, a convivência em meio a conflitos

e contradições, quando se escolhe enfrentar a diversidade não

pode ser desconsiderada. A negociação, com ganhos e perdas

durante o processo e a dificuldade e até a impossibilidade de

chegar a um consenso, equilíbrio e a uma produção social são

expectativas de dificuldades, que devem os profissionais, técnicos,

agentes e os segmentos da população estarem dispostos a enfrentar.

A idéia de rede, segundo Scherer Warren (1993):

"implica pensar, desde o ponto de vista epistemológico, na

possibilidade de integração de diversidade". Distingue-se da idéia de

unicidade totalizadora, comum em interpretações do marxismo

positivista acerca da necessidade de articulações das lutas sociais. A

análise em termos de "redes de movimentos" implica buscar as formas

de articulação entre local e global, entre particular e o universal,

entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores

com o pluralismo. Enfim trata-se de buscar os significados dos

movimentos sociais num mundo que se apresenta cada vez mais como

interdependente, intercomunicativo, no qual surge um número cada

vez maior de movimentos de caráter transnacional, como os de direitos

humanos, pela paz, ecologistas, feministas, étnicos e outros...

Merece destaque como inovação, o

surgimento de práticas políticas articulatórias

das ações localizadas, de redes de movimentos

e iniciativas de organização comunitária.

Já se inicia no país um movimento de articulação

de iniciativas e movimentos que têm

reforçado as ações particularizadas.

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Os compromissos com os princípios humanistas,

opção do SUS e da Promoção da Saúde, de acordo com

as Conferências Internacionais, poderão permitir a

comunicação, a articulação, o intercâmbio e a

solidariedade entre os atores sociais individuais e

coletivos, que ao se integrarem ao movimento pela

melhoria da saúde e qualidade de vida se tornarão

sujeitos na consecução destes objetivos.

OS MÚLTIPLOS ATORES/ SUJEITOS DAPROMOÇÃO DA SAÚDE E OS PROGRAMAS DESAÚDE DA FAMÍLIA

Este novo conceito, esta nova forma de pensar a

saúde, pode transformar as estratégias tradicionais de

enfrentar os problemas de saúde e a sua causalidade, a

partir das potencialidades existentes no território de

responsabilidade do setor saúde, de um Distrito, uma

Unidade de Saúde ou uma equipe de saúde da família.

O pessoal de saúde conhecendo as condições

que os indivíduos moram e trabalham, os outros atores,

instituições e as outras iniciativas existentes no local,

poderá intervir na causalidade do processo saúde/

doença, por exemplo da mortalidade infantil,

envolvendo outros setores de governo e da sociedade

civil na identificação, análise e resolução das suas

causas, como a deficiência de saneamento básico, as

deficiências de habitação e outras condições de infra-

estrutura urbana, emprego e renda da família,

alimentação e outros. Estes setores a partir de um

diagnóstico compartilhado poderão definir objetivos

comuns e proporem estratégias articuladas de ação

coletiva.

Se realmente a proposta for produzir saúde

socialmente, todos os atores do território devem

participar das ações, pois a tarefa será não só o

atendimento ao doente ou à doença, mas a minimização

gradativa dos efeitos das causas primeiras dos

problemas. Os atores que estão aqui mencionados não

são só indivíduos isolados, as organizações não

governamentais, o setor privado de comércio, serviços

e indústrias - como locais de trabalho - e outros setores

de governo como a escola, outras instituições ou

melhor, o município como um todo. Como já foi

mencionado, esta integração de atores individuais e

coletivos não é tarefa fácil uma vez que a sociedade é

fragmentada e o individualismo é um valor do mundo

contemporâneo, globalizado. Há que enfrentar a

diversidade, respeitar pluralidade de valores e encontrar

caminhos conflituosos para construir acordos e

parcerias.

O território é diferente de espaço geográfico. É

um espaço de relação como já foi discutido em outro

capítulo. Neste sentido ele é dinâmico e está em

constante transformação. Os atores que vivem, militam

ou atuam precisam ser reconhecidos como parceiros,

com quem os profissionais de saúde tem que estar em

contato constante, trabalhando juntos por sua

iniciativa ou por iniciativa dos outros setores ou

instituições. Entre a necessidade

de reconhecer a importância das

parcerias e resolver as dificuldades

para concretizá-las vai uma grande

distância e muito tempo e

persistência para efetivar esta

ação.

Os profissionais, técnicos e

agentes dos programas de saúde

da família podem ser as escolas

dos bairros, preocupadas em

construir uma escola saudável,

escola de qualidade, escola aberta

à comunidade por exemplo, ou

em resolver problemas comuns

como o da violência, a Dengue, o

uso de drogas e a gravidez precoce

de seus adolescentes. Se os

objetivos comuns e afinidades

forem encontrados a tarefa já se

torna mais fácil e possível.

O setor privado, pode ser um

parceiro potencial, que da mesma

forma pode querer melhorar as

condições de trabalho de seus

funcionários e/ou querer cuidar do

meio ambiente relacional ou

externo do entorno da empresa.

Pode querer exercer sua

responsabilidade social em

conjunto com outros aliados e

outras iniciativas que surgem na

comunidade, fortalecendo as

ações já em curso, de promover a

distribuição dos lucros da

empresa, promovendo a distribuição da renda na região.

Esta é uma situação difícil de ser encontrada, mas não

impossível e, em sendo reconhecida pode favorecer a

formação de rede de organizações que objetivam a

Promoção da saúde.

A reunião solidária de todos parceiros

representativos, governo, organizações não governa-

mentais, sociedades privadas, líderes comunitários,

Os profissionais,

técnicos e agentes

dos programas de

saúde da famíliapodem ser as

escolas dos

bairros, preocupadas

em construir uma

escola saudável,

escola de qualidade,

escola aberta àcomunidade por

exemplo, ou em

resolver problemas

comuns como o da

violência, a

Dengue, o uso de

drogas e a

gravidez precoce de

seus

adolescentes.

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movimentos sociais, em ação no espaço de uma cidade,

potencializam a probabilidade de desenvolvimento de um projeto

município saudável, desde que objetivem o desenvolvimento de

planos de ação locais para a Promoção da Saúde e meio ambiente,

e que haja um compromisso das autoridades locais de abrirem um

canal de participação para a sociedade civil no processo de tomada

de decisões relacionadas ao plano de desenvolvimento local

integrado.

A defesa da saúde e da Promoção da Saúde junto a políticos

e movimentos sociais pode conduzir à adoção mais rápida e em

maior profundidade das estratégias de Promoção de Saúde: elaborar

políticas públicas saudáveis, construir ambientes de apoio à

Promoção da Saúde, fortalecer a ação comunitária, desenvolver

habilidade e por em prática a reorganização dos serviços de saúde

com novas práticas como o Programa de Saúde da Família (SANTOS

& WESTPHAL, 1999; WESTPHAL, 2000).

O programa de Saúde da Família, estratégia estruturante do

setor saúde, objeto deste trabalho, que identifica problemas, fatores

de risco, causas de problemas, as potencialidades das famílias e do

bairro para enfrentá-los, pode ser ponto de partida para a

articulação de vários atores pela melhoria das condições de saúde

locais. Hoje em dia quase todos os locais que se tem notícia, tem

iniciativas comunitárias em curso com os mais diferentes objetivos.

Aos atores locais, militantes e funcionários envolvidos em

programas de saúde da família, precisam articular suas ações para

potencializar seus efeitos, seja para interferir na saúde como

qualidade de vida de uma população, seja para resolver questões

relacionadas à doenças e fatores de risco.

Todos os territórios alternam momentos de maior intensidade

de problemas e maior calmaria e é necessário manter esta articulação

dos diferentes atores e iniciativas locais para caminhar para uma

situação mais permanente de trabalho participativo pela saúde e

qualidade de vida. A forma de articulação pode variar, mas a

organização social em redes sociais, são a forma como as sociedades

mais desenvolvidas, têm se organizado para conhecer e intervir em

realidades complexas, como as que o SUS tem que dar conta, em

um mundo globalizado e caótico como este

que se descortina no início deste século

(JUNQUEIRA, 2000; WESTPHAL & MENDES,

2000).

Rede social é entendida como "campo

presente em determinado momento,

estruturado por vínculos entre indivíduos,

grupos e organizações construídos ao longo do tempo" (MARQUES,

1999: 46).

Os vínculos que as equipes de Saúde da Família, os projetos

municípios saudáveis e outras estratégias de Promoção da Saúde

têm que desvendar são de diversas naturezas, podem ter sido

construídos intencionalmente ou não e estão em constante

interação e transformação.

A análise de rede para o entendimento da realidade social é

muito apropriada para os que trabalham na perspectiva da

Promoção da Saúde e que têm uma percepção da realidade social

como uma complexidade. A formação de uma articulação, de um

conjunto de relações de redes tanto pessoais como organizacionais,

é também fundamental para a Promoção da Saúde.

O reconhecimento da posição dos atores nessas redes é

importante para os profissionais do Programa de Saúde da Família,

pois suas práticas positivas e valores podem contribuir para

advocacia de melhores condições e as

necessárias para apoiar estilos de vida e

construção de ambientes de apoio à

Promoção da Saúde.

As óticas das certezas, que marca o

pensamento positivo, já não funcionam e

precisam ser substituídas por outra que

considera as interações dinâmicas e as

transformações.

O SUS como projeto político, construído por grupos que

acreditam na construção de uma sociedade mais justa e equânime

e o Programa de Saúde da Família, uma das estratégias estruturantes

para atingir este objetivo, com base em uma visão global do

processo saúde e doença, necessita incorporar os múltiplos atores,

para torná-los sujeitos do processo. O próprio programa constitui-

se de vários atores, que tendem a formar uma rede de profissionais

e pessoal de saúde que interage com organizações, pessoas,

interesses em um determinado local e que se inter-relacionam e

interdependem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de mudança das condições de Saúde via Programa

de Saúde da Família, deve contribuir para transformar as relações

sociais dos profissionais com a população em relações de

solidariedade, aproximando a sociedade de si mesma e das decisões

que lhe interessam e que lhes dizem respeito. Indivíduos inseridos

em redes sociais, podem ser alertados para a possibilidade de

articular suas agendas sociais as de saúde e a partir daí transformar

O programa de Saúde da Família, estratégia

estruturante do setor saúde (...) pode ser ponto

de partida para a articulação de vários atores

pela melhoria das condições de saúde locais.

O processo de mudança das condições de

Saúde via Programa de Saúde da Família, deve

contribuir para transformar as relações

sociais dos profissionais com a população...

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sua relação com o SUS, passando de objetos, a sujeitos responsáveis

pela consecução de melhores níveis de saúde, dentre eles o de

garantir seus direitos de cidadania.

A questão – múltiplos atores da Promoção da Saúde – está

relacionada portanto, aos seus princípios e também aos do SUS

com os quais na maioria das vezes se confunde. Nada mais pode ser

tratado de uma forma individual neste mundo globalizado, onde

predominam problemas complexos, sob pena de tudo permanecer

como está. As relações dos atores que se dá via redes de relações e

redes de compreensão da realidade são mais efetivas no

desvendamento dos problemas e facilitam a atuação sobre eles.

A ação coletiva em rede da qual participam múltiplos atores

do governo e da sociedade civil, envolvendo especialmente as

ONGs, que estão exercendo um papel importante na nossa

sociedade, justifica não só o Programa de Saúde da Família como

estratégia para melhorar os níveis de saúde, através da diminuição

da pobreza, mas principalmente como um caminho do SUS, como

colaborador essencial na direção do alcance dos ideais de equidade

e justiça social.

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MARQUES, E.C. Redes sociais e instituições na construção do Estado eda permeabilidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Anpocs,14 (41): 45-67, 1999.

A ação coletiva em rede da qual

participam múltiplos atores do

governo e da sociedade civil (...)

justifica não só o Programa de

Saúde da Família como estratégia

para melhorar os níveis de saúde,

através da diminuição da

pobreza, mas principalmente como

um caminho do SUS, como

colaborador essencial na direção do

alcance dos ideais de equidade e

justiça social.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 51

PPROMOÇÃO DA SAÚDE, PODER

LOCAL E SAÚDE DA FAMÍLIA:ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS

LOCAIS SAUDÁVEIS, DEMOCRÁTICOS E CIDADÃOS -HUMANAMENTE SOLIDÁRIOS E FELIZES

Health promotion, Local Power and Family Health: strategies for theconstruction of healthy local places, democrats and citizens - humanely united and fortunate

A partir da Constituição Brasileira de 1988, o município é fortalecido enquanto espaço local privilegiado para a vivência de

processos políticos democráticos e para o desenvolvimento de políticas públicas que respondam, plenamente, as necessida-

des de seus cidadãos. Nesse contexto, é fundamental o estabelecimento de estratégias que venham a contribuir com a formação

de cenários políticos favoráveis ao desenvolvimento local e ao bem estar integral do indivíduo. O presente artigo, além de discutir

as temáticas do espaço e do poder local, reafirmando sua relevância atual, propõe que estratégias como a Promoção da Saúde e

o Saúde da Família sejam implementados no município, por apresentarem grande potencial de transformação das relações e da

constituição do poder local em prol da construção de espaços locais saudáveis, democráticos e cidadãos, humanamente solidários

e felizes.

Espaço local; poder local; desenvolvimento local; estratégia saúde da família; promoção da saúde.

Neusa GoyaAssistente Social, Especialista em Sistema Local de Saúde,

Assessora Técnica da Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia de Sobral edo Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Ceará

From the 1988 Brazilian Constitution, the municipal is strengthened while local space privileged for the existence of

democratic political processes and for the development of public policies that respond, fully, to the needs of citizens. In this

context, it is fundamental to establish strategies that proceed to contribute with the formation of favorable political scenarios

towards local development and the integral well-being of the individual. This current article, apart from discussing the themes

of space and local power, reaffirming its current relevance, proposes that strategies such as Health Promotion and Family Health

be implemented in the municipal, for they might present great potential for the transformation of relationships and of the

constitution of local power for the benefit of the construction of healthy local spaces, democrats and citizens, humanely united

and fortunate.

Local space; local power; local development; family health strategy; health promotion.

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"Saúde é a harmonia do ser humano comele mesmo, com a natureza e com osoutros em busca de tranqüilidadeespiritual." Ensinamento dos índios andinos

COMPREENDENDO A LÓGICA DA GLOBALIZAÇÃO E DOESPAÇO LOCAL

A discussão mundial, hoje, encontra-se centrada na importância

do espaço global, o que não significa, conforme o economista

Ladislau Dowbor, considerar a inexistência e grande relevância do

espaço local uma vez que "a globalização não é geral (...). Se

olharmos o nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola

de nossos filhos, o médico para a família, o local de trabalho, até

os hortifrutigranjeiros da nossa alimentação cotidiana, tratam-se

de atividades de espaço local e não global."

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a humanidade convive

com "produtos globais", como o automóvel, equipamentos de

informática e outros, inseridos em uma lógica de produção

econômica e social globalizada e, ao mesmo tempo, encontra-se

inserida em uma outra racionalidade determinada pelo espaço

local. Para Dowbor, é necessário que haja uma substituição da

idéia de que "tudo se globalizou". É preciso que haja uma "melhor

compreensão de como os diversos espaços do nosso

desenvolvimento se articulam, cada nível apresentando seus

problemas e oportunidades e a totalidade representando um

sistema mais complexo".

O cenário que ora se coloca, de sociedades complexas

integradas por espaços globais e locais, ao contrário do que se

possa pensar, não é contraditório. A ordem de problemas hoje

postos, que vão desde a

pobreza extrema de parcela

significativa da população

mundial até a deterioração

e comprometimento do

meio ambiente e da vida na

Terra, impõem a lógica de

que muitas das soluções

devem ser iniciadas e

praticadas no espaço local.

As populações locais devem

estar convencidas de que

somente a partir de sua

participação direta pode-se

modificar, mesmo que

gradativamente, cenários

nacionais, mundiais.

Aliado a isso, tem-se

o fato das mudanças fre-

qüentes ocorridas na socie-

dade moderna requererem

maior agilidade na condução, desenvolvimento e ajuste das polí-

ticas. As estruturas centrais de poder não conseguem mais atender

a este desafio com a devida eficiência. Tratam-se de estruturas

pesadas, altamente burocratizadas, que não dão conta de impri-

mir, através das políticas globais, respostas às exigências postas

pelas situações complexas hoje vivenciadas. Assim, as estruturas

de poder tendem a ser descentralizadas para os espaços locais,

possibilitando o desenvolvimento de processos mais democráti-

cos, que venham atender às necessidades sentidas pelos cidadãos.

MAS O QUE É MESMO ESPAÇO LOCAL?

Espaço local é um espaço de vida. Para Dowbor, o espaço

local, no Brasil, é o município, "mas é também o bairro, o quarteirão

em que vivemos". É o espaço onde as pessoas vivem, seu cotidiano,

constituindo-se, dessa forma, como o espaço mais próximo do

cidadão, com um grande potencial de transformação das relações

sociais que nele se estabelecem.

A perspectiva é de assegurar relações sociais que

proporcionem, no espaço local, o efetivo exercício da cidadania.

Para isso, o espaço local deve ser um espaço favorável à implantação

e ao desenvolvimento de processos democráticos, não só do ponto

de vista representativo, como também, participativo e

redistributivo, seja do capital econômico como do social.

Assim, inscreve-se no espaço local o exercício da cidadania,

possibilitando ao cidadão movimentar-se para ter acesso aos seus

direitos básicos e fomentando processos de participação nas

decisões sobre o seu desenvolvimento pessoal e do espaço onde

vive.

É importante salientar que o desenvolvimento proposto é

compreendido a partir de uma visão holística e integradora, onde

o homem é mais um elemento na teia da vida, constituída por

vários outros elementos e sistemas vivos. Além disso, há que se ter,

no conceito de desenvolvimento, a percepção ecológica que o

situa como um processo que deva satisfazer as necessidades do

As populações

locais devem

estar convencidas

de que somente a

partir de sua

participaçãodireta pode-se

modificar,

mesmo que

gradativamente,

cenáriosnacionais,

mundiais.

... inscreve-se no espaço local o

exercício da cidadania,

possibilitando ao cidadão

movimentar-se para ter acesso aos

seus direitos básicos e

fomentando processos de

participação nas decisões sobre

o seu desenvolvimentopessoal e do espaço onde vive.

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homem e demais seres vivos sem, contudo,

comprometer os recursos ambientais.

Nesta perspectiva, processa-se uma modificação

qualitativa do entendimento e construção do que venha

a ser desenvolvimento, que deixa de estar centrado na

lógica econômica e produtiva. As atividades econômicas

deixam de ser fim e passam a ser meio. O fim, ou o

objetivo central dos processos de desenvolvimento é o

bem estar pleno e integral dos cidadãos. É a sua qualidade

de vida no espaço que habita. É a sua felicidade. É a

possibilidade de construção de espaços e entornos

saudáveis, ecologicamente protegidos e preservados para

as vidas futuras.

O MUNICÍPIO, O TERRITÓRIO, O BAIRRO, ACOMUNIDADE, O QUARTEIRÃO: ESPAÇOSLOCAIS DE CONSTRUÇÃO DO PODER LOCAL

A Constituição Brasileira de 1988 é um marco

histórico normativo dos mais significativos. A partir

de sua instituição, são dadas as bases legais para se

processar a reforma no Estado brasileiro. O desenho

político-organizacional do Estado passa a ser orientado

por princípios como a descentralização política-

administrativa, a desconcentração e a municipalização

de serviços básicos.

A lógica de funcionamento do Estado muda.

O município, através do governo local, fortalece-

se enquanto instância de elaboração e execução de

políticas públicas, incorporando, assim, competências

e autoridade antes legada a administração federal ou

estadual.

No processo de democratização e garantia efetiva

da cidadania, o município é compreendido como o

espaço local privilegiado para dar respostas

institucionais às necessidades sentidas pela população.

Conforme Dowbor, "80 ou 90% das ações que

concernem as nossas necessidades do dia-a-dia, como

a construção e gestão das escolas, a organização das

redes comerciais e financeiras, a criação das infra-

estruturas de saúde, a preservação do meio ambiente,

as políticas culturais e tantas outras, podem ser

resolvidas localmente, e não necessitam de intervenção

de instâncias centrais de governo, que tendem a

burocratizar o processo". Mesmo as ações que por sua

amplitude extrapolam o âmbito municipal, podem ser

melhor encaminhadas por uma rede de municípios

regionais do que pelo governo central, afirma Dowbor.

O município reveste-se, então, de uma

importância vital. Tanto por estar legitimamente e

legalmente investido de competências vinculadas à

vida dos cidadãos e ao desenvolvimento do espaço

em que vivem e morrem, como por caracterizar-se como

local de mudança qualitativa das relações estabelecidas

entre os homens e as instâncias de poder. A partir de

um governo democrático, instituído no município,

podem ser proporcionadas condições adequadas para

a realização de uma gestão participativa, aberta e

fomentadora do poder local, exercido por organizações

comunitárias, sociais, políticas, entre outras.

PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PLANEJAMENTO:FERRAMENTAS DE CONSTRUÇÃO DO PODERLOCAL E DE FORTALECIMENTO DACOMUNIDADE NAS RELAÇÕES DE PODERLOCAL

Satisfatoriamente, constata-se que as

comunidades, mediante processos de conscientização

onde os cidadãos assumem sua condição de sujeitos

históricos, estão cada vez mais se articulando e

intervindo na organização dos espaços em que vivem,

numa demonstração clara da força que representam no

contexto do poder local. A organização comunitária

assume, nesse sentido, um importante papel de agente

impulsionador do desenvolvimento.

O exercício do poder local

torna possível ao cidadão tomar

em suas mãos o destino do lugar

onde vive, fortalecendo a esfera

comunitária. A participação é

assim, um instrumento básico do

poder local, através do qual os

indivíduos manifestam-se en-

quanto sujeitos do espaço em que

vivem, planejando e decidindo.

Na configuração do poder

local, entre outros, são protago-

nistas, por um lado, os governos

municipais e, por outro, a

sociedade civil, representada por

diferentes formas de organização.

Ambos apresentam potencial de

transformação social, cabendo a

cada um o desempenho de papéis

específicos, mas que podem

somar-se nos processos de tomada de decisão sobre a

organização, o funciona-mento e o desenvolvimento

do espaço local.

O poder local não se constitui, nesse sentido,

como sendo a expressão de forças políticas que intervêm

na "cosmética urbana". "Trata-se de um eixo estratégico

de transformação da forma como tomamos as decisões

A participaçãoé assim, um

instrumento básico

do poder local,

através do qual os

indivíduosmanifestam-se

enquanto sujeitosdo espaço em que

vivem, planejando

e decidindo.

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que concernem o nosso desenvolvimento econômico e social", conforme assegura

Ladislau Dowbor.

Identifica-se, assim, na lógica da construção e funcionamento do poder local a

qualificação da participação social não apenas sobre a ótica da democracia meramente

representativa mas, também, participativa e redistributiva.

Dessa forma, não se tem apenas a democratização das decisões mas,

fundamentalmente, a oportunidade concreta de fazer com que estas, a partir do

planejamento municipal, possam corresponder às reais necessidades da população.

Isto é a alma do poder local: garantir, através da participação comunitária e de sua

intervenção, seja no planejamento ou nas instâncias de poder e pactuação municipal,

os caminhos para a superação dos problemas e necessidades sociais.

Além destes aspectos, ainda de acordo com Dowbor, a participação comunitária

também funciona como mecanismo de regulação das diferentes políticas e atividades.

As medidas que geram impacto social, necessariamente, apresentam controle social,

ou seja, são reguladas e construídas por meio da participação comunitária.

Neste contexto, os conselhos municipais e locais assumem hoje um significado

mais do que relevante. Além de representarem, na organização do Estado, as novas

estruturas formais de poder local, oriundas dos processos de descentralização e

municipalização das diferentes políticas públicas, essas instâncias, por tratarem-se de

instâncias paritárias, podem também vir a ser espaços de formação de consensos e

pactuação e não somente de decisão.

Na perspectiva da pactuação, as decisões não são tão somente votadas, mas

compartilhadas, co-responsabilizadas entre as diferentes forças que integram os

conselhos municipais e locais, potencializando, nesse sentido, a perspectiva de

construção coletiva e participativa de acordos

e decisões em prol do desenvolvimento. Além

disso, há que se destacar essas instâncias como

espaços favoráveis ao "apoderamento" dos

diferentes atores e representações sociais.

Outra ferramenta do poder local é o

planejamento – já mencionado anteriormente.

É importante situar que na discussão ora

apresentada, o processo de planejamento,

necessariamente, deve ser democrático,

descentralizado, participativo e representativo

das várias forças políticas que compõem o

espaço local, seja ele o município, bairro,

comunidade, território. Os cidadãos,

exercendo sua cidadania, devem não só

apresentar suas reivindicações e necessidades

sentidas mas, principalmente, tomar decisões

sobre como resolvê-las. Porém, o planejamento

não deve restringir-se às decisões sobre como

suprir necessidades. O processo de

planejamento, enquanto ferramenta do poder

local, deve viabilizar aos cidadãos, seja

individualmente ou coletivamente, o exercício

de sonhar. Acreditar que é possível construir

desejos futuros sobre como deve ser o espaço

onde ele vive, trabalha, ama e morre.

Isto é a alma do

poder local:

garantir, através

da participação

comunitáriae de sua

intervenção, seja

no planejamento

ou nas instâncias

de poder e

pactuaçãomunicipal, os

caminhos para

a superação dos

problemas e

necessidades

sociais.

A SAÚDE NO ESPAÇO LOCAL TECIDANAS RELAÇÕES DE PODER LOCAL

A saúde em seu conceito "ampliado" e

"positivo" encontra-se vinculada diretamente

à qualidade de vida das pessoas. Qualidade de

vida que além de garantir o acesso do cidadão

aos seus direitos constitucionais, possibilite

a este vivenciar seu desenvolvimento

integralmente – em uma visão holística e

ecológica, em harmonia com a natureza.

Qualidade de vida que promova o

desenvolvimento equilibrado e sustentável do

espaço onde vive o cidadão.

Saúde pressupõe, assim, a existência de

ambientes harmônicos, saudáveis,

participativos e democráticos, abertos a todas

as manifestações e possibilidades de

construção e contribuição das várias forças

políticas e atores sociais, em uma expressão

clara do poder local em âmbito local.

Nesse sentido, construir as condições

necessárias para que as pessoas, nos espaços

onde vivem, possam ter saúde – física, mental

e espiritual – é um desafio. Desafio que deve

ser assumido por todos cidadãos, movidos por

uma consciência coletiva de reconhecimento

do outro como um ser humano semelhante a

si mesmo, tornando-se construtores da saúde

de sua coletividade no espaço em que vivem.

Coloca-se, dessa forma, a relevância da

apropriação, por todos os atores sociais, do

conhecimento e vivência do espaço e poder

local. Somar esforços para fazer acontecer a

saúde implica em conhecer, intervir, relacionar-

se com as representações do poder local no

espaço local.

Saúde pressupõe, assim,

a existência de

ambientes harmônicos,

saudáveis, participativos

e democráticos (...) em

uma expressão clara

do poder local em

âmbito local.

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A PROMOÇÃO DA SAÚDE: DESENHANDO UMANOVA LÓGICA DE VIDA E SAÚDE NOCONTEXTO DO PODER LOCAL

A visão de saúde, aqui desenvolvida, não tem

como ser construída nos marcos teóricos que amparam

a doença. Necessário se faz trilhar novos caminhos e

incorporar novas estratégias. A promoção da saúde é o

caminho que possibilita a construção da saúde dos

cidadãos. Falar de promoção da saúde é reconhecer o

protagonismo do cidadão diante da construção da

sua saúde e da saúde de seu próximo. É possibilitar ao

cidadão, não no sentido de concessão mas de

conquista efetiva porque consciente, a apropriação de

conhecimentos que garantam a si e a comunidade onde

vive o aprendizado do saber cuidar-se. O aprendizado

do saber construir ambientes e formas cotidianas de

viver saudavelmente. É construir a autonomia cidadã,

tanto do indivíduo como das organizações

comunitárias.

Nesse sentido, desenvolver ações ou iniciativas

locais tendo como guia a promoção da saúde,

oportuniza o estabelecimento de uma nova lógica de

relacionamento no contexto do poder local. Os atores

sociais, integrantes ou não das diferentes organizações

comunitárias, adquirem poder (conhecimento) para

intervir e para desenvolver seu autocuidado, de sua

coletividade e do ambiente onde vive. Assim, o exercício

de convivência nas relações estabelecidas no poder

local é democratizado. Os conhecimentos e os saberes

são compartilhados e a construção das condições para

a saúde passa a ter o caráter de responsabilidade social

e não apenas governamental.

Assim, a renovação da dinâmica social no espaço

local, proporcionada pela ótica da promoção da saúde,

requer a revisão do papel do governo municipal,

enquanto responsável direto pela elaboração e

execução das políticas públicas, entre elas a do setor

Saúde. Além de revisar e imprimir seu novo papel, os

governos municipais precisam, também, pautar novas

diretrizes governamentais, destacando-se aqui a

intersetorialidade, a descentralização e a participação

social.

No que concerne a Secretaria da Saúde, além de

dar conta da organização dos serviços assistenciais,

coloca-se a tarefa, ou melhor dizendo, o desafio de

processar estratégias promocionais que orientem a

execução de ações em prol da saúde e da melhoria

qualitativa do local onde vivem os cidadãos.

SAÚDE DA FAMÍLIA: A ESTRATÉGIA DEFORTALECIMENTO DO ESPAÇO E DO PODERLOCAL

O Saúde da Família constitui-se como uma das

principais estratégias, instituídas pelo setor Saúde,

para desencadear, fomentar e contribuir, no espaço

local, com o desenvolvimento de processos favoráveis

à construção da saúde e de ambientes saudáveis e

harmônicos, na relação homem-natureza.

A Estratégia Saúde da

Família, enquanto organizadora da

atenção primária, apresenta

grande potencial para instituir um

novo modelo de atenção à saúde,

que tenha como enfoque central

não mais o indivíduo, a doença,

e sim, a promoção da saúde no

território de sua responsabilidade.

"Considerado como estratégia

estruturante dos sistemas

municipais de saúde, o Programa

Saúde da Família (PSF) tem

demonstrado potencial para

provocar um importante

movimento de reordenamento do

modelo vigente de atenção",

afirma Heloísa Machado de Sousa,

Coordenadora do Departamento

de Atenção Básica do Ministério

da Saúde, aos leitores da Revista

Brasileira de Saúde da Família.

Nessa perspectiva, o Saúde

da Família caracteriza-se como

uma estratégia de fortalecimento

do espaço e poder local, à medida

que, expandindo sua atuação para

além da doença e assistência,

encontra na dinâmica do território vivo, a possibilidade

de mobilização e organização de seus moradores e

demais atores, de forma a exercitar com a população o

poder de decisão sobre as suas necessidades concretas,

com vistas a aquisição de ambientes e entornos sãos e

modos de viver saudáveis.

A utilização pelas equipes de saúde da família de

ferramentas como a territorialização em saúde, a

adscrição das famílias sob sua responsabilidade, o

cadastramento familiar, o planejamento participativo,

a participação comunitária no Conselho Local de Saúde,

entre outras instâncias, potencializam mudanças

significativas no território e nas relações ali

estabelecidas.

A Estratégia Saúdeda Família, enquanto

organizadora da

atenção primária,

apresenta grande

potencial para

instituir um novomodelo de atenção à

saúde, que tenha

como enfoquecentral não mais o

indivíduo, a doença,

e sim, a promoção da

saúde no

território de sua

responsabilidade.

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A partir da adscrição das famílias é estabelecido o seu vínculo

com a unidade básica de saúde, o que não traduz apenas a

organização do sistema mas representa uma nova lógica de

relacionamento entre os serviços e os profissionais de saúde e a

comunidade. A unidade está inserida no território e a população

vinculada a esta unidade apropria-se dela como um espaço seu de

direito. Ou seja, há uma aproximação dos serviços e profissionais

com a comunidade.

Ainda nesta ótica, o fato das equipes de saúde da família

trabalharem e responsabilizarem-se por um território e pela saúde

das pessoas ali residentes, implica, também, no estabelecimento

de vínculos. Implica na vivência de processos de reconhecimento,

valorização e incorporação daquele território como espaço permeado

por necessidades sociais que requerem respostas, sob pena de não

viabilizar a qualidade de vida e saúde de seus moradores. Espaço

que precisa ser cuidado, protegido, promovido no sentido de vir a

ser saudável, solidário, fraterno e feliz.

Além disso, trabalhar no território possibilita aos profissionais

de saúde da família constituírem-se como parte integrante das

relações nele estabelecidas. Assim, as equipes acabam sendo uma

força emergente no poder local. Como tal, apresentando um enorme

potencial para estimular e fomentar novas formas de viver e ser na

perspectiva da promoção da saúde.

Novas práticas e iniciativas, no enfoque da promoção da

saúde, podem, portanto, ser experimentadas. Não é à toa, que a

tendência mundial das sociedades é de estabelecer redes. Redes

humanas construídas por pessoas que se aproximam por

apresentarem problemas ou desejos comuns e, diante da

apropriação da idéia de que são capazes de se apoiarem, de se

auto-ajudarem ou, então, de construírem coletivamente seus

sonhos, acabam por formar uma rede. Redes sociais de solidariedade

que se fortalecem em meio a relações de cuidado, proteção,

desenvolvimento humano, amor e felicidade. É a instalação de

uma nova ordem de sentimentos e de ética.

Dessa forma, as ações cotidianas desenvolvidas pelas equipes

de saúde da família podem, na perspectiva da promoção da saúde,

ser impulsionadoras e promotoras de transformações das mais

profundas, porque trabalham com o homem e o ambiente em sua

totalidade. As ações das equipes de saúde da família saem, assim,

do âmbito da prestação de serviços de saúde individualizados ou

até coletivizados, caminhando para a transformação positiva do

espaço e das relações desenvolvidas no território. Nesse processo,

ganha corpo a participação social que, por sua vez, dá consistência

ao exercício da democracia e cidadania, manifestada nas diferentes

instâncias participativas e representativas.

Assim, falar ou escrever sobre as possibilidades que estão

postas para fazer o Saúde da Família ir além do que é hoje, colorindo

os espaços e as relações de poder local com as tintas da cidadania,

do prazer de bem viver em ambientes alegres e saudáveis, não é um

sonho. Ou, se assim o for, que o seja com toda a força da Saúde e

da Vida. Afinal como disse o grande pensador, Lenin, "sonhos,

acredite neles".

À idéia dos sonhos é preciso acrescer a felicidade. Não se

conjuga vida, sem saúde e felicidade. Daí porque a importância do

Saúde da Família, na ótica da promoção da saúde, incorporar no

seu dia-a-dia o cuidado com a felicidade.

A FELICIDADE E A PROMOÇÃO DA SAÚDE

Felicidade. Segundo Dalai Lama "... a motivação da nossa

vida é a felicidade". Ser feliz é um dos grandes objetivos perseguidos

pelas pessoas. Para cada um, a felicidade tem um rosto, um jeito

de ser e de sentir. A felicidade apresenta, portanto, uma face

subjetiva.

Uma face que espelha a identidade da pessoa. Identidade

construída em um lugar, em um espaço local que pode ser chamado

de município, território, comunidade, bairro, quarteirão, grupo,

família... A compreensão essencial é a de que as pessoas formam e

vinculam sua identidade a um espaço local vivo, permeado por

relações sociais, humanas, relações vivenciadas cotidianamente.

Espaço local vivo porque, também, construído a partir da cultura,

dos valores e das tradições de um povo, incorporados e

redesenhados localmente.

É importante destacar que mesmo inscrita no campo da

subjetividade, a busca ou a realização da felicidade, para Dalai

Lama, não leva "ao egoísmo, ao ensimesmamento". Ao contrário,

a felicidade manifesta-se positivamente nos espaços locais, gerando

benefícios nas relações estabelecidas: "... à medida que começarmos

a identificar os fatores que levam a uma vida feliz, estaremos

aprendendo como a busca da felicidade oferece benefícios não só

ao indivíduo, mas à família do indivíduo e também a sociedade

como um todo."

Portanto, a felicidade, ao contrário do que muitos possam

imaginar ou até pensar, é um estado de ser e estar ou até de vir a

ser, por demais valioso. Pessoas felizes ou em busca de felicidade

apresentam um maior potencial de exercer coletivamente o poder

local em prol da construção de espaços de vida saudáveis, humanos

e cidadãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAMA, Dalai e CUTLER, Howard C. A Arte da Felicidade: Um manual paraa vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DOWBOR, L. Da globalização ao Poder Local: a Nova Hierarquia dosEspaços, In: Pesquisa e Debate, PUC-SP, Vol. 7, número 1(8), 1996

______. O que é o Poder Local. Coleção Primeiros Passos, São Paulo:Brasiliense, 1995.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Revista Brasileira de Saúde da Família, ano II,nº 04, p.66.

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AA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

NO BRASIL E A SUPERAÇÃODA MEDICINA FAMILIAR

The Family Health Strategy in Brazil and the surpassing of familiar medicine

A Estratégia Saúde da Família é uma proposta estruturante na construção de um novo modelo de atenção que seja mais

adequado às atuais necessidades sociais de saúde, e que consiga dar respostas às complexas relações do processo saúde-

doença da sociedade atual. Esse artigo tenta demonstrar a pertinência de considerá-la uma superação do modelo médico de

família, bastante difundido em vários países.

Estratégia saúde da família; medicina familiar; modelos assistenciais em saúde; atenção básica ; sistema único de saúde.

Tomaz Martins JúniorOdontólogo, mestrando em Gestão e Modernização de Políticas Públicas, Diretor Presidente da Escola de

Formação em Saude da Família Visconde de Sabóia, Sobral/CE.

Luiz Odorico Monteiro de AndradeMédico, mestre em Saúde Pública pela UFC e doutorando pela UNICAMP. Professor da Faculdade de

Medicina da UFC/Sobral, Ceará, Secretário de Desenvolvimento Social e da Saúde de Sobral, Ceará.

Ivana Cristina de Holanda Cunha BarretoMédica, mestre em Saúde Pública pela UFC , Professora da Faculdade de Medicina da UFC/Sobral, Ceará,

Coordenadora da Residência em Saúde da Família de Sobral.

The Family Health Strategy is a structural proposal in the construction of a new care model that may be more suitable to

current social health needs, and which succeeds in providing answers to the complex relationships of the health-sickness

process of present society. This article tries to demonstrate the pertinence of considering it as surpassing the family doctor

model, quite widespread in several countries.

Family health strategy; familiar medicine; health assistance models; basic care; Unified Health System.

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INTRODUÇÃO

Uma dúvida surge hoje em muitos debates dos profissionais

dedicados a Estratégia Saúde da Família (ESF) e a Medicina

Familiar (MF) no Brasil. Seriam os dois modelos de organização de

serviço idênticos? Teriam os mesmos propósitos?

Os que defendem que ESF e MF são a mesma coisa, com base

nisto, também defendem que o médico de família deve ter uma

pós-graduação em Medicina de Família, com programa específico,

e em espaço separado dos outros profissionais de nível superior

membros da equipe de saúde da família. Os que defendem a idéia

de que a ESF supera a medicina familiar e tem suas especificidades,

defendem que atuação em equipe interdisciplinar é imprescindível

para o sucesso da ESF e, portanto, todos os profissionais membros

da equipe de saúde da família devem ser formados em conjunto no

nível da pós-graduação, quando já dominam o núcleo básico de

conhecimentos de suas respectivas profissões.

Neste artigo, tentaremos fundamentar a nossa hipótese de

como e porque a ESF supera o modelo de medicina familiar.

Inicialmente é importante destacar que o conceito de

"modelo" utilizado não tem uma relação direta com modelagem,

portanto não é um conjunto de normas, regras, ideal a ser copiado.

Neste artigo, utiliza-se o conceito de modelo descrito por Ricardo

Bruno: "é a construção de consistência prática entre objetos de

trabalho, instrumentos e a ação do agente do trabalho, para que

o processo possa efetivamente objetivar-se em um produto".

O produto desse novo modelo de atenção à saúde deve ser

portanto respostas concretas aos atuais problemas de saúde, e

considera-se que para isso o mesmo deve ter como paradigma o da

construção social da saúde (contrapondo-se ao paradigma

dominante: biologista, centrado na doença, na hegemonia médica,

na atenção médica e na utilização intensiva de tecnologia).

Analisando a organização do processo de trabalho do modelo

Médico de Família, verifica-se que traz importantes contribuições

para esse processo de mudança: a organização do sistema tendo

uma rede de médicos de família como a porta de entrada,

fortalecimento e universalidade da atenção primária, integração

da atenção preventiva e curativa, garantia de acesso da população

aos serviços de saúde, entre outras.

Entretanto, percebe-se que a sua construção ainda tem a

biomedicina como principal campo de conhecimento e que o seu

processo de trabalho ainda guarda uma hegemonia do profissional

médico em relação aos outros profissionais.

A proposta da Estratégia Saúde da Família não nega a

importância desses conhecimentos ou da prática clínica. Busca

promover reflexões profundas sobre a organização atual do processo

de trabalho em saúde e sua questionável aplicabilidade ao modelo

atual de sociedade.

Esta adequação entre modelo de atenção à saúde e modelo

de sociedade pode ser percebida nas diferentes experiências vividas

ao longo da história da humanidade. Quando analisamos os

diferentes modelos de atenção à saúde numa perspectiva histórica,

percebemos que eles se relacionam com a ideologia predominante

em cada sociedade, e nesse contexto, a sua forma de pensar o

processo saúde-doença.

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PROCESSOS DE TRABALHONOS MODELOS DE ATENÇÃO À SAÚDE

O sentido do trabalho está ligado a uma aplicação de energia

para promover a transformação de uma realidade, ou em outras

palavras, satisfazer um carecimento. Dessa forma, poderíamos

considerar um eterno ciclo: carecimento – processo de trabalho –

carecimento... (lembrando, é claro, que esse segundo carecimento

será sempre diferente do primeiro, pois faz parte de uma realidade

transformada).

Esse carecimento, entretanto, deve ser visto não como uma

necessidade pessoal, ou mesmo uma necessidade pessoal

"socializada". É importante caracterizá-lo como uma "necessidade

da sociedade". Os indivíduos, ao estabelecer um conjunto de

relações, constituem uma sociedade. Ela própria passa a ser

possuidora de necessidades acima das necessidades dos indivíduos.

Essas necessidades são determinadas pela leitura da realidade

com base no conjunto de conceitos, valores, pela visão de mundo

presente nessa sociedade. No campo da saúde, essas necessidades

estão relacionadas de forma estreita com a atitude dessa sociedade

ante o corpo humano e seus valores relativos à saúde e à doença.

Passeando pela história da humanidade, percebe-se que nas

civilizações primitivas a doença guardava uma relação com o

sobrenatural. Portanto, para a cura das doenças era necessário

promover uma mediação entre os homens e o universo, o que era

conseguido pelo xamã ou sacerdote, figuras capazes de falar e

entender as linguagens das coisas. Para isso, utilizavam terapêuticas

baseadas em práticas mágico-religiosas.

A civilização greco-romana, rompendo com esses conceitos

e práticas, passa a construir outras explicações para as doenças,

dando a elas um caráter natural (fenômeno da própria natureza -

teoria humoral). Assim, o processo de trabalho do médico grego

A proposta da Estratégia Saúde

da Família não nega a importância

desses conhecimentos ou da

prática clínica. Busca promover

reflexões profundas sobre a

organização atual do processo

de trabalho em saúde e sua

questionável aplicabilidade ao

modelo atual de sociedade.

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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 59

consistia praticamente em ajudar as forças naturais.

Tanto esse médico hipocrático, como o pequeno artesão

que mais tarde passou a ser o cirurgião-barbeiro

procuravam restabelecer, cada um de sua maneira, o

reequilíbrio da natureza.

Na Idade Média, a idade das trevas, a doença

voltou a ser vista como uma entidade com vida própria,

portanto, sobrenatural. Passou a ser a provação, o preço

a ser pago pelo paraíso. Assim, prevaleceu a assistência

aos doentes, entendida aqui como a expectância,

acompanhamento solidário do transe do sofrimento

para a morte e para a vida eterna e surgiram os mosteiros

com acomodações especialmente destinadas à pessoa

doente – o hospital.

O renascimento comercial a partir do século XV

promoveu profundas alterações na estrutura

socioeconômica. O acúmulo de capital com as grandes

navegações, a exploração colonial e a crise do regime

feudal deram início ao período de transição para o

capitalismo, estabelecendo uma nova relação entre os

homens através do trabalho.

Além das grandes navegações, as cortes das

monarquias absolutas promoveram as novas

investigações científicas, criando novas formas de vida

intelectual (mais próximas da Antigüidade clássica). O

conhecimento dogmático da Igreja não foi mais aceito

e deram lugar, no caso do setor saúde, ao início do

desenvolvimento da medicina científica.

Ganham destaque, em meados do século XIX, as

teorias desenvolvidas por Pasteur a respeito dos

microorganismos e o desenvolvimento da biologia

como ciência que fizeram com que a explicação sobre

as causas das enfermidades passasse a ser atribuída a

agentes microbianos.

A medicina muda como ciência mas também como

profissão. Segundo Navarro ela adota os mesmos

princípios ideológicos do capitalismo: o liberalismo e

o individualismo. Fica bastante evidente a relação entre

as novas relações sociais e a organização do processo

de trabalho da medicina quando percebe-se o

desenvolvimento de uma visão mecanicista no trato

com o indivíduo. Semelhante ao que passa a ocorrer

nos diversos setores da sociedade, o corpo humano é

dividido em diversos sistemas e órgãos e a doença

passa a ser vista como um desequilíbrio entre essas

partes de um mesmo corpo. Surge a especialidade como

uma forma de divisão horizontal do trabalho em saúde.

Ressalta-se que essa visão individualista, ao

culpabilizar o indivíduo pela doença, harmoniza-se

com a ideologia capitalista, absolvendo o meio

ambiente econômico e político da responsabilidade

na origem da enfermidade.

Surgiram também novas necessidades sociais,

emergentes com o capitalismo. No campo específico

da saúde, essas necessidades poderiam ser apresentadas

resumidamente em: 1- controlar a ocorrência de doença

(vista como incapacidade de trabalhar) e 2 - recuperar

a força de trabalho incapacitada pela doença.

De início, todo o processo de trabalho em saúde

era possível de ser desempenhado por um único

trabalhador: o médico, sendo que esse

desempenhava papéis ora mais

intelectuais, ora mais manuais. O

hospital passa a ser numa visão

moderna, local de trabalho para esse

profissional, mas também como

instrumento de trabalho, possibi-

litando-o dar respostas às duas

necessidades apresentadas acima.

A complexidade do hospital

moderno transformou o médico em um

trabalhador coletivo, onde desem-

penhava o papel mais intelectual

(diagnóstico e definição terapêutica).

Dentre os outros profissionais

presentes nessa forma de trabalho

coletivo estava o enfermeiro, que

surgiu com funções relativamente

"mais manuais", associadas ao

processo terapêutico. Mais tarde o

trabalho do enfermeiro também se

dividiu, ficando esse com as atividades

mais intelectuais da "parte manual"

da atenção à saúde e deixando para

seus auxiliares as partes "menos intelectuais". Essa

divisão vertical passou a conviver com uma outra

divisão, horizontal, que comporta dois tipos de

expressão: a especialização da profissão (médicos

especializados em partes dos processos diagnósticos e

terapêuticos) e a criação de outras profissões com áreas

de atuação complementares: o odontólogo, o

fonoaudiólogo, o terapeuta ocupacional, o

fisioterapeuta, o psicólogo, o assistente social, o

educador físico etc. É importante ressaltar que toda

essa organização do processo de trabalho guarda uma

relação bastante estreita com a organização do

trabalho na sociedade industrial.

... o corpohumano é dividido

em diversossistemas e órgãos

e a doença passa a

ser vista como um

desequilíbrioentre essas partes

de um mesmo

corpo. Surge a

especialidadecomo uma forma

de divisãohorizontal do

trabalho em saúde.

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OS DESAFIOS DA ESTRATÉGIA SAÚDE DAFAMÍLIA FRENTE AO ATUAL MODELO

Vários são os desafios colocados hoje para a

implantação da Estratégia Saúde da Família. Destaca-

se nesse contexto a estruturação da atenção básica,

entendida aqui como a viabilização do acesso universal

e, acima de tudo, a superação das várias limitações

que o atual modelo implantado no país não conseguiu

resolver.

É importante avaliar que o

modelo de atenção à saúde ainda

hegemônico, de base biomédica,

conseguiu alcançar um certo impacto

na morbidade e mortalidade da

população. Esta afirmativa fica

bastante clara quando evidenciamos

uma inegável mudança do perfil

epidemiológico da população

brasileira, com considerável redução,

seja proporcional como também em

números absolutos da mortalidade por

doenças infecto-contagiosas (pre-

dominante no passado) e um

aumento da importância das doenças

crônico-degenerativas e das causas

externas de morbidade e mortalidade.

Entretanto, surge aqui a

necessidade de avaliar alguns

aspectos. Se de um lado o impacto do

modelo hegemônico é inegável, é

igualmente correto afirmar que ele não

conseguiu avanços no que diz respeito

à democratização do atendimento e

dos resultados. Basta observarmos o

atual estágio de nossa transição de

perfil epidemiológico, onde con-

vivemos com um crescimento da forma

de adoecer e morrer de países mais

desenvolvidos e ao mesmo tempo com

problemas básicos, já perfeitamente

resolvidos pelo modelo biomédico,

como a diarréia, a tuberculose, a hanseníase, as

infecções respiratórias agudas. Tal fato pode ser

explicado pela incapacidade percebida nesse modelo

de garantir a universalização da atenção à saúde.

Outro importante aspecto que deve ser

considerado é o novo desafio que surge com essa

mudança do perfil epidemiológico. Para a prevenção,

tratamento e cura das doenças mais prevalentes no

que ousadamente poderíamos chamar de antigo perfil

epidemiológico, são necessários instrumentos e

conhecimentos bastantes específicos da prática

biomédica. É interessante deixar claro que não pode

ser ignorada a importância de aspectos como a

educação, moradia, hábitos na evolução dessas

doenças. Entretanto, os instrumentos disponibilizados

a partir da prática biomédica, como vacinas, melhoria

tecnológica dos fármacos, avanços tecnológicos da

prática médica, conseguiram inclusive minimizar o

impacto desses fatores sociais na morbidade e

mortalidade da população. Como exemplo, vale a pena

citar a redução da mortalidade infantil conseguida em

várias cidades e estados brasileiros, sem entretanto

promover uma mudança na desigualdade social.

Quando analisamos o novo perfil epidemiológico

(aqui mais uma vez correndo o risco de um excesso de

ousadia), observamos que a prática biomédica não

dispõe de instrumentos e capacidades eficazes para

mudança da realidade. Qual a real capacidade desse

modelo de reverter o crescimento de óbitos e agravos

provocados por causas externas? Quais os instrumentos

que o profissional médico tem disponível para evitar

um suicídio, um homicídio ou um acidente,

considerando que para atingir esse objetivo é premente

a mudança de comportamento? E sabemos que o

simples conhecimento não tem se mostrado muito

eficiente para esse propósito. Igualmente, quais os

instrumentos disponibilizados pelo modelo biomédico

para prevenir as doenças crônico-degenerativas senão

apenas o conhecimento da sua evolução e fatores

predisponentes. Mas uma vez, sendo propositadamente

repetitivo, essa prevenção passa acima de tudo pela

mudança comportamental, onde apenas o

conhecimento não tem se mostrado muito eficaz.

Diante do exposto, fica evidente que para a

superação das várias limitações que o atual modelo

implantado no país não conseguiu resolver, surgem

dois importantes desafios: um deles seria o aumento

da cobertura, com vistas a garantir a universalização

da atenção à saúde; o outro seria uma mudança do

modelo de atenção à saúde.

Temos hoje a experiência de várias cidades

brasileiras que conseguiram construir uma rede de

Unidades Básicas de Saúde, o que de certa forma

garantiu um considerável avanço no enfrentamento

do primeiro desafio apresentado. De outro lado, temos

que aceitar o tão pouco que conseguiu-se avançar na

mudança do modelo de atenção à saúde, o que faz

com que o modelo biomédico ainda guarde, em larga

escala, a hegemonia da atenção à saúde.

Neste artigo procuramos estabelecer algumas

comparações entre o modelo clássico de Unidades

Básicas de Saúde e a Estratégia Saúde da Família.

... convivemoscom um

crescimento da

forma de

adoecer e morrer

de países mais

desenvolvidos e ao

mesmo tempo com

problemasbásicos, já

perfeitamente

resolvidos pelo

modelo biomédico,

como a diarréia, a

tuberculose, a

hanseníase, as

infecçõesrespiratórias

agudas.

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Conceito de Saúde:

O modelo clássico tem como alicerce o conceito de saúde

como ausência de doença, e a Estratégia Saúde da Família conta

como conceito fundante a saúde como qualidade de vida. Conceitos

como esses são historicamente construídos. São frutos de um

processo de construção coletiva da forma de pensar e agir de uma

sociedade, e portanto, incorporados de forma profunda por essa

população. Para que seja viabilizado um processo de transformação,

é imprescindível que se estabeleça um novo processo social.

O primeiro passo para atingir esse objetivo é criar a

possibilidade dessa sociedade vivenciar esse novo conceito. Para

isso, é inegável a potencialidade surgida com a democratização

do acesso aos serviços. Entretanto, apenas isso não é suficiente. É

necessário que os profissionais de saúde consigam implantar a

nova lógica que norteia a construção desse conceito, o que aponta

para duas limitações do processo. Uma delas seria a própria

formação/conscientização desses profissionais para essa nova

prática. O outro seria a pressão social para o atendimento das

demandas, que é importante ressaltar, geradas a partir do conceito

clássico de saúde.

Quanto à formação, reverte-se o desafio para a classe

acadêmica. Com a implantação de uma nova consciência revertida

em mudanças significativas nos currículos de formação dos

profissionais de saúde, é perfeitamente possível neutralizar a

primeira limitação. Quanto à segunda, é necessário a maestria

desses profissionais para promoverem esse processo de transição.

Infelizmente, para isso não existe uma receita, mas talvez uma boa

estratégia seria a incorporação gradativa de práticas inovadoras

nas unidades básicas de saúde, permitindo que a população tenha

contato com ações norteadas pelo novo conceito de saúde. Essa

incorporação gradativa, e com o impacto positivo dessas novas

ações gerarão, sem dúvida alguma, novos elementos na construção

coletiva do conceito de saúde. Assim, talvez a única receita que

existe é a necessidade da paciência histórica.

Clientelismo x direito de cidadania:

O modelo clássico construiu suas práticas centrado, muitas

vezes, na prática clientelista, onde a prestação de serviços de

saúde é realizada como um favor e não como um direito de

cidadania. Reverter esse aspecto no imaginário da população talvez

seja um pouco menos complicado que a mudança de conceito

apresentada anteriormente.

Essa afirmativa é apresentada partindo-se da constatação de

que essa é uma discussão bastante atual não apenas no setor

saúde, mas em todos os setores da sociedade. Após alguns anos de

castração do direito dos cidadãos de participar ativamente da

política, percebemos claramente alguns avanços na relação entre

a sociedade e a administração, infelizmente em alguns aspectos,

ainda de forma isolada e regionalizada. Vem aumentando ao longo

dos anos a conscientização da sociedade quanto à importância da

garantia dos direitos e deveres de cidadania. Vem igualmente

crescendo uma nova consciência do papel do Estado, não mais

como mero provedor de necessidades de seus clientes (população)

e sim como coordenador de um difícil processo de desenvolvimento

de uma sociedade mais justa, mais farta e mais fraterna.

Cabe uma melhor consciência dos profissionais de saúde

desse importante processo, para que o mesmo norteie a sua prática,

além de um estímulo à participação social no planejamento,

execução e avaliação de suas ações.

Indivíduo x coletivo

O modelo clássico tem como centro de sua atenção o

indivíduo. Tal fato norteou todo o processo de formação dos

profissionais. Mesmo o modelo de Medicina Familiar, que avançou

em alguns aspectos ao modelo hospitalocêntrico, ainda considera

o indivíduo como o foco principal da atenção à saúde. Desta

forma descreveu LIMA (2001):

"Assim desenvolveu-se ao longo do século XIX uma divisão do

modelo assistencial, em contraposição ao modelo ontológico

dominante surgiu um modelo fisiológico ou ecológico, em que o

indivíduo era o centro das atenções. Buscava-se aí um equilíbrio

entre a análise dos quadros clínicos com o hospedeiro, entendendo-se

os fatores que predispunham ao desenvolvimento das doenças de

formas diversas em diferentes pessoas. Este modelo passou a ser o

centro do programa de saúde da Inglaterra, sendo depois levado a

vários outros países, entre os quais Cuba e Canadá, são os mais

estudados, um por ter um sistema com boa resposta apesar da falta de

recursos e o outro por ser o que tem o melhor índice de satisfação de

usuários aliado a uma excelente saúde da população."

Já na Estratégia de Saúde da Família, têm-se ressaltado que

as equipes devem concentrar sua atenção no "coletivo" (ANDRADE

& MARTINS JÚNIOR, 1999).

Reverter o foco de atenção dos profissionais de saúde do

indivíduo para o coletivo é outro grande desafio, pois requer a

Vem igualmente crescendo uma

nova consciência do papel do

Estado, não mais como mero

provedor de necessidades de seus

clientes (população) e sim como

coordenador de um difícilprocesso de desenvolvimento de uma

sociedade mais justa, mais

farta e mais fraterna.

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incorporação de novos instrumentos ainda não muito comuns nas

práticas médicas e de outras profissões da área de saúde atualmente.

Talvez o principal deles seria a epidemiologia. A epidemiologia

é indispensável para a saúde coletiva assim como a clínica o é para

o modelo clássico de atenção à saúde. A epidemiologia é que

permite o diagnóstico de saúde-doença de uma população, primeiro

passo para a percepção do "prognóstico" e estabelecimento de

uma "terapêutica". Outro desafio, sem nenhuma dúvida é no

estabelecimento de uma "terapêutica" (estratégia) que promova

uma melhoria do quadro, o que somente poderá ser conseguido

com a utilização de bases de dados epidemiológicos no

planejamento e programação das ações, aplicando-se o princípio

da eqüidade priorizando as famílias ou grupos com maior risco de

adoecer e morrer.

Processo Saúde-doença

O modelo clássico centra sua atenção na pessoa doente. Tal

fato é perfeitamente justificável pela potencialidade dos

instrumentos e conhecimentos utilizados em sua prática para atingir

a reversão desse quadro.

A Estratégia Saúde da Família tem como centro de sua atenção

a pessoa saudável, o que não poderia ser diferente pelo conceito

de saúde utilizado e já apresentado neste artigo. Entretanto, há

de se reconhecer a enorme dificuldade para promover essa mudança.

Se para o trato com a pessoa doente existem instrumentos e

conhecimentos já comprovadamente eficientes, para a atenção à

pessoa saudável é necessário criar novos instrumentos e novos

conhecimentos, o que talvez possa ser facilitado com o próximo

conceito a ser apresentado.

Profissional médico x equipe interdisciplinar

O predomínio do profissional médico nas intervenções geradas

pelo modelo clássico é bastante evidente. Entretanto, resgatando

a discussão apresentada na introdução deste artigo, com a mudança

do perfil epidemiológico que vem sendo observada e a necessidade

de centrar a atenção na pessoa saudável, é indispensável a

incorporação de novos conhecimentos oriundos de outras

disciplinas do próprio setor saúde, como também de outros setores

como a sociologia, a antropologia, as ciências sociais, a urbanística,

a comunicação, apenas como alguns exemplos. Apenas com

intervenções onde haja predomínio da atuação de uma equipe

interdisciplinar é que será possível dar respostas concretas no

enfrentamento do complexo quadro de morbi-mortalidade atual.

Em outras palavras, em sua atuação na Estratégia Saúde da

Família, e para que esta possa ter sucesso, cada profissional membro

da equipe (médico, enfermeiro, odontólogo), deve utilizar-se do

cabedal de conhecimentos e ferramentas de sua profissão, mas

deve necessariamente estar disposto a construir um novo campo

de conhecimento, este comum a todas as profissões atuantes na

ESF, já que possui um mesmo objeto de conhecimento: a população

a ser atendida. Este campo, interdisciplinar, está em construção e

será tanto mais enriquecido e aprofundado, quanto mais tempo

empregarmos para construi-lo e entendê-lo (Figura 1).

... é indispensável aincorporação de novos

conhecimentos oriundos de

outras disciplinas do próprio setor

saúde, como também de outros

setores como a sociologia, a

antropologia, as ciências sociais, a

urbanística, a comunicação,

apenas como alguns exemplos.

Para enfrentamento e superação do complexo quadro

nosológico atual, torna-se necessária a humildade do profissional

de saúde (em especial do médico) de reconhecer a sua incapacidade

de sozinho atingir esse objetivo, e a consciência dos outros

profissionais e setores do seu papel na construção desse processo.

Hospital x Rede Hierarquizada

O modelo clássico, tem como seu principal centro de atenção

o hospital. Tal fato é explicável quando consideramos que sua

prática é centrada na pessoa doente, com um atendimento

predominantemente individualizado. Para o bom exercício dessa

prática, o hospital é a estrutura que fornece uma maior capacidade

estrutural e tecnológica. Entretanto, quando avalia-se a nova prática

FIGURA 1 - A CONSTRUÇÃO DA

INTERDISCIPLINARIDADE NO SAÚDE DA FAMÍLIA

MÉD

IC@

ASSIS

TENT

E SOCIA

L

FISIOT

ERAP

EUTA

PSICÓLOG@DENTISTA

EDUCADOR FÍSICO

ENFERMEIR@

T. OCUPACIO

NAL

CAMPOCOMUM

Andrade, L. O. M. 2000.

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gerada pela Estratégia Saúde da Família percebe-se que o melhor

local de intervenção é o mais próximo possível da população

assistida, permitindo uma convivência e um maior conhecimento

das relações que são estabelecidas em cada território e que geram

as formas de adoecer e morrer da população assistida.

No caso da medicina familiar, muitos programas que se

propõem a formar o especialista em medicina de família em todo o

mundo, ocupam a maior parte do tempo do profissional em

formação, em atividades intra-hospitalares. Na prática, os egressos

destes programas de residência tem muito mais um perfil de clínico

geral e internista, do que propriamente de um profissional preparado

para enfrentar os problemas complexos da atenção primária de

saúde.

A supervalorização da estrutura hospitalar faz parte também

da cultura da "população leiga", até mesmo porque essa comunga

do mesmo conceito de doença (o que já foi tratado nesse artigo).

Outro aspecto importante é que a Estratégia Saúde da Família não

nega a importância do hospital. Ela apenas avança em uma melhor

categorização de demandas e necessidades, e assim passa a ter um

importante papel na organização dessa demanda, viabilizando a

existência de uma rede hierarquizada de atendimento e a melhoria

do acesso aos níveis secundário e terciário de atenção à saúde

para aqueles que de fato necessitam.

Demanda expontânea x demanda organizada

A base do atendimento no modelo clássico é a demanda

expontânea. Com a incorporação dos novos conceitos dentro da

Estratégia de Saúde da Família é importante ter a clareza da

necessidade de uma estruturação em torno da demanda organizada.

Esse aspecto torna-se de extrema importância quando são

apresentados desafios como centrar a atenção na pessoa saudável

e garantir a equidade, priorizando os grupos de maior risco de

adoecer e morrer. A demanda expontânea surge

a partir de uma percepção individual da

necessidade de um serviço de saúde,

perfeitamente compatível com o modelo

clássico, e que não pode ser ignorado pelos

serviços de saúde. Ao estabelecer como centro

da atenção a pessoa saudável, vista como parte

de um coletivo, promove-se uma nova forma de

perceber as demandas e consequentemente a

necessidade de sua organização.

É importante ressaltar que esse aspecto é bastante importante

para viabilização da rede hierarquizada proposta.

OS DESAFIOS ATUAIS DA ATENÇÃO À SAÚDE:

Na sociedade atual percebemos uma necessidade do consumo

de serviços de assistência à saúde. O alto desenvolvimento

tecnológico tem imprimido à prática médica e à sua relação com

o paciente uma retomada de um componente mágico na medicina

atual. O profissional e o paciente desenvolvem um processo de

mitificação da tecnologia, onde o primeiro, muitas vezes a utiliza

mesmo desconhecendo a intimidade de sua estrutura e o segundo

desenvolve uma crença ilimitada nessas técnicas.

A implementação desse modelo tem alcançado o seu apogeu

mas também o seu questionamento em relação ao efetivo impacto

na saúde da população, além do incremento exagerado de custos.

Surge nas últimas décadas a necessidade de consumo daquilo

que parece negar a doença: saúde vista como qualidade de vida.

Nesse contexto, destacamos a questão da dieta, dos exercícios

físicos, dos remédios protetores, dos estilos de vida saudáveis,

entretanto ainda com uma roupagem individualista.

O intenso processo de urbanização e seu reflexo na situação

de saúde da população tem promovido constantes fracassos do

modelo clínico individual, no que se refere à sua capacidade de

efetivamente promover mudanças nesse quadro. Isso tem gerado

uma tentativa de mudança de atuação do sistema, voltando-se

para o coletivo e assumindo um papel mais de promotor de saúde

e menos de curador. Se o momento "mais intelectual" do trabalho

no modelo clínico individual, o diagnóstico clínico e a prescrição

terapêutica sobre o indivíduo está concentrado no médico, nessa

nova forma de atuação do sistema o diagnóstico pára a ser sobre

o coletivo, assim como a terapêutica.

O principal produto desse novo processo de trabalho passa a

ser a transformação de "necessidades de consumo individual" em

uma postura ativa e mediatamente social em relação ao andamento

humano da vida. Os profissionais para atuarem de forma competente

nesse novo modelo, devem ter a capacidade de facilitar essa

transformação social. Isto se dá a partir de um compartilhamento

de poder, do reconhecimento da importância de outros

conhecimentos e da necessidade de construção de novas práticas

para a efetivação de um modelo que tem a saúde como qualidade

de vida.

Assim, se o modelo clínico individual tem a biomedicina

como a fonte de conhecimentos para sua organização, quais campos

de conhecimento são necessários para esse novo modelo? Os

conhecimentos biomédicos, sem dúvida alguma continuam a ser

importantes, porém são insuficientes para a construção das novas

práticas que possibilitem o diagnóstico e a prescrição sobre o

coletivo.

Reconhece-se nessa proposta a interseção de vários campos

de conhecimento. Dentre esses vários campos de conhecimento,

O principal produto desse novo processo de

trabalho passa a ser a transformação de

"necessidades de consumo individual" em uma

postura ativa e mediatamente social em

relação ao andamento humano da vida.

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destaca-se um de grande importância: o profundo conhecimento

das dinâmicas das comunidades que convivem no seu cotidiano

com os problemas de saúde. Esse conhecimento somente pode ser

adquirido pela vivência, e portanto, a fonte desse conhecimento

é a própria comunidade.

É importante reconhecer ainda outros conhecimentos para

esse diagnóstico e intervenção coletiva para a promoção da saúde

da população. Os profissionais que possuem esses conhecimentos

como campo específico de seu processo de formação não podem

ser vistos como marginais ao processo de trabalho do setor saúde.

Esse talvez seja um outro avanço significativo da Estratégia Saúde

da Família em relação ao Modelo Médico de Família.

Deve-se reconhecer que o médico diante das mudanças das

formas de intervenção na Estratégia Saúde da Família, passa a

competir em pé de igualdade com os outros profissionais no que

diz respeito à fragilidade de suas habilidades e conhecimentos.

Por isso, não deve existir uma relação de hegemonia desse

profissional em relação aos outros, mas sim deve-se reconhecer

que os conhecimentos do campo específico de outros profissionais

são fundamentais para a construção desse novo modelo. Deve ser

viabilizado um diálogo entre os profissionais, não negando a

importância de campos específicos de conhecimento, mas pelo

contrário, valorizando-os como importantes para o

desenvolvimento de um processo reflexivo, gerador de mudanças.

Além disso, deve-se reconhecer a existência de um campo comum

de conhecimento, percebendo-o como espaço privilegiado de

construção de novas práticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, M.; FEURWERKER, L. et all. A educação dos profissionais desaúde na América Latina. HUCITEC. São Paulo, 1999.

CANESQUI,A.M. et all. Ciências Sociais e saúde para o ensino médico.FAPESP. São Paulo, 2000.

GONÇALVES, R.B.M. Práticas de saúde: processos de trabalho enecessidades. Cadernos CEFOR. São Paulo, 1992.

NAVARRO,V. Classe social, poder político e o Estado e suas Implicaçõesna medicina in Ciências sociais 1. ENSP/FIOCRUZ - ABRASCO. Rio deJaneiro, 1983.

Relatório Final do I Seminário de Experiências Internacionais em Saúdeda Família. Ministério da Saúde. Brasília, 1999.

ROSEN, G. Uma história da saúde pública. HUCITEC. São Paulo, 1994.

SILVA JR, A.G. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campoda saúde coletiva. HUCITEC. São Paulo, 1998.

Reconhece-se nessa

proposta a interseção de

vários campos de

conhecimento. Dentre

esses vários campos de

conhecimento, destaca-se

um de grandeimportância: o profundo

conhecimento das

dinâmicas das

comunidades que convivem

no seu cotidiano com os

problemas de saúde.

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Tornar sã, em latim, SANARE é uma revista do município de Sobral (Ceará),

que tem por finalidade divulgar toda e qualquer experiência, prática e teórica,

em políticas públicas, como forma de contribuir com o processo de elaboração

e sistematização de políticas públicas voltadas para a construção de novos

paradigmas, sobre gestão governamental. A revista está aberta a trabalhos de

autores de todo Brasil, que uma vez encaminhados, passarão por procedimentos

de seleção técnico e sigiloso, sempre preservando a integridade do(s) autor(es).

O corpo editorial reserva-se o direito de adaptar ou corrigir erros de escrita

ou normalização, visando o melhor aproveitamento do artigo, mas sem interferir

na essência do conteúdo descrito pelo(s) autor(es).

ORIENTAÇÕES GERAIS

Os trabalhos deverão estar assinados por todos os autores, acompanhados de

uma declaração de que aceitam as normas para publicação aqui descritas,

assim como de um anexo contendo endereço completo, telefone para contato

e endereço eletrônico. Havendo ilustrações, as legendas (fotos, gráficos,

desenhos) deverão constar em uma folha separada.

APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

Enviar, para o Núcleo de Comunicação da Escola de Formação em Saúde da

Família (núcleo.com), endereço localizado no verso da capa e no final dessas

instruções, com as seguintes especificações: trabalhos em português, no

formato .doc, compatíveis com Microsoft Word, espaço 1,5, fonte times new

roman tamanho 12, papel A4, limite de 13 laudas, incluindo as referências

bibliográficas. Enviar um original impresso e outro em disquete. Os originais

não serão devolvidos.

FOLHA DE ROSTO

Deve constar título de artigo, com versão português/inglês, nome completo

do autor, com referências profissionais para a publicação e demais dados que

julgar importantes, como endereço eletrônico e telefone para contato.

ESTRUTURA DO TRABALHO

·Título do Trabalho

Em português e em inglês – corpo 14 pontos com, no máximo, 80 caracteres,

nome(s) do(s) autor(es), e referência à instituição a que pertence(m).

·Resumo

Todos os trabalhos em português deverão trazer o resumo composto por no

máximo 150 palavras. A versão em inglês (abstract) deve acompanhar a original.

O resumo deve ser elaborado com informações claras quanto ao objetivo do

trabalho, metodologia empregada, os resultados obtidos e suas principais

conclusões. Não fazer uso de abreviaturas.

·Unitermos

São palavras ou expressões que o autor deve utilizar para ajudar na identificação

do conteúdo redigido (em português e em inglês).

·Texto

Em todos os trabalhos para publicação, o texto deve ter organização de

reconhecimento fácil, com títulos e subtítulos que reflitam essa organização.

O texto deve ser conciso. No caso de artigos originais o texto deverá

apresentar: Introdução, Métodos, Resultados, Discussão e Conclusão. Mas

todos os textos devem apresentar Introdução, Discussão e Conclusão, além

do título e subtítulos.

·Referências Bibliográficas

É fundamental a todo tipo de trabalho.

As referências deverão estar localizadas no final dos trabalhos, conforme os

exemplos abaixo para:

Livros

BOOG, M.C.F. Alimentação natural: pós e contras. São Paulo. IBRASA, 1985.132P.

Capítulo de livro

Amâncio, O.M.S. Requerimentos nutricionais, In NÓBREGA, F. J. de.

Desnutrição: Infra-uterina e pós-natal. 2ed. rev. atual. São Paulo.

Panamed, 1986.p.19-32 .

Artigos de periódicos

DUTRA DE OLIVEIRA, J. E. ; MARCHIN, J. S. A balanced diet does not have to

contaum meat. World Health Forum, Geneva, v.12, n.3, p.261, maio/jun.

1991.

SORENSEN, J. ; KANG, S. K. ; TORRES, T. J. et al. Status of prospective clinical

trial on in-ciram bugdes. J. Dent., Rev., v.71, p.533. (resumo n.142).

Dissertação e Teses

WOLKOFF, D. B. A revista de nutrição da PUCCAMP: análise de opinião de seus

usuários. Campinas: (s.n), 1994. 131p.

Dissertação (mestrado em biblioteconomia) - Faculdade de Biblioteconomia,

PUCCAMP, 1994.

Trabalhos apresentados em congressos ou similares

THOMPSON, N. LILLO P, ANDRADE, P. R. The crescent probien of DST: adolescent.

Abstracts of the XXV American Pediatries Congress. Iohahio, 1991, 104.

ENDEREÇO PARA ENCAMINHAMENTO DE TRABALHOS

A/C Monica Torres

Escola de Saúde da Família Visconde de Sabóia

Av. John Sanford, 1320 - Bairro Junco - Sobral/CE

CEP 62030-000 - Fone/Fax: (88) 614.5570 / 614.5520

e-mail: [email protected]

INSTRUÇÕES AOS AUTORES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Page 65: sanare IV N1 2 · ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 3 EDITORIAL “A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e

S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200366