ROSENFELD, Anatol - Gêneros e traços estilísticos & Os gêneros épico e lírico e seus traços...

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,< ~~ 1. G:eNEROSE TRAÇOS ESTILfSTICOS a} Observaçõesgerais A CLASSIFICAÇÃO de obras literárias segundo gêneros tem a sua raiz na República de Platão. No 3.0 livro. Sócrates . explica que há três tipos de obras poéticas: "O primeiro é inteiramente imitação." O poeta corno que desaparece, deixando falar, em vez dde. personagens. "Isso ocorre na tragédia e na éomédia." O segundo tipo "é um simples relato do poeta; isso encontramos principah.nente nos ditirambos." PIatão parece referir-se, neste trecho. aproximadamente ao que hoje se chamaria de gênero lírico, embora a coincidência não seja exata. "O terceiro tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopéias. . ." Neste tipo de poemas manifesta-se seja o próprio poeta (nas descrições e na apresentação dos personagens), seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar a impressão de que não é ele 15

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1. G:eNEROSE TRAÇOS ESTILfSTICOS

a} Observaçõesgerais

A CLASSIFICAÇÃOde obras literárias segundo gêneros tema sua raiz na República de Platão. No 3.0 livro. Sócrates .explica que há três tipos de obras poéticas: "O primeiroé inteiramente imitação." O poeta corno que desaparece,deixando falar, em vez dde. personagens. "Isso ocorrena tragédia e na éomédia." O segundo tipo "é umsimples relato do poeta; isso encontramos principah.nentenos ditirambos." PIatão parece referir-se, neste trecho.aproximadamente ao que hoje se chamaria de gênerolírico, embora a coincidência não seja exata. "O terceirotipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nasepopéias. . ." Neste tipo de poemas manifesta-se seja opróprio poeta (nas descrições e na apresentação dospersonagens), seja um ou outro personagem, quando opoeta procura suscitar a impressão de que não é ele

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quem fala e sim o próprio personagem; isto é, nosdiálogos que Interrompem a narrativa.

A definição aristotélica,no 3.° capítulo da ArtePoética,coincideaté certo ponto com a do seu mestre.Há, segundo Aristóteles, várias maneiras literárias deimitar a natureza: "Com efeito, é possível imitar osmesmos objetos nas mesmas situações, numa simplesnarrativa, ou pela introdução de um terceiro, como fazHomem, ou insilluando a própria pessoa sem que inter-venha outro personagem, ou ainda, apresentando a imi-tação com a ajuda de personagens que vemos agirem eexecutarem eles pr6prios." Essencialmente, Arist6telesparece referir-se, neste trecho, apenas aos gêneros épico(isto é, narrativo) e dramático. No entanto, diferenciaduas maneiras de narrar, uma em que há introduçãode um terceiro (em que os próprios personagens semanifestam) e outro em que se insinua a pr6pria pessoa(do autor), sem que intervenha outro personagem. EstaÚltima maneira parece aproximar-se elo que hoje cha-maríamos de poesia lírica, suposto que Aristóteles serefira no caso, como PIatão, aos ditirambos, cantosdionisincos festivos em que se exprimiam ora alegriatransbordante, ora histeza profunda. Quanto à formadramática, é definida como aquela em que a imitaçãoocorre com a ajuda de personagens que, eles mesmos,agem ou executam ações. Isto é, a imitação é executada"por personagens em ação diante de nós" (3.° capítulo).

Por mais que a teoria dos três gêneros, categoriasou arquiformas literárias, tenha sido combatida, ela semantém, em essência, inabalada. Evidentemente ela é,até certo ponto, artificial como toda a conceituaçãocientífica. Estabelece um esquema a que a realidadeliterária multiforme, na sua grande variedade hist6rica,nem sempre cOl'responde. Tampouco deve ela ser en-tendida como um sistema de normas a que os autoresteriam de ajustar a sua atividade a fim de produziremobras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramá.ticas puras. A pureza em matéria de literatura não énecessariamente um valor positivo. Ademais, não existepureza de gêneros em sentido absoluto.

Ainda assim o uso da classificação de obras literá-rias por gêneros parece ser indispensável, simplesmentepela necessidade (le toda ciência de introduzir certaordem na multipliciclaJe dos fenômenos. Há, no entanto,

razões mais profundas para a adoção do sistema degêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo.imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundoou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa ma-neira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, semdúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes emface do mundo.

b) Significado substantivo dos gêneros

A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de ostermos "lírico", "épico" e "dramático" serem empregadosem duas acepções diversas. A primeira acepção - maisde perto associada à estrutura dos gêneros - poderiaser chamada de "substantiva". Para distinguir esta acep-ção da outra, é útil forçar um pouco a língua e esta-belecer que o gênero lírico coincide com o substantivo"A Lírica", o épico com o substantivo "A :B:pica"e odramático com o substantivo "A Dramática".

Não há grandes problemas, na maioria dos casos,em atribuir as obras literárias individuais a um destesgêneros. Pertencerá à Lírica todo poema de extensãomenor, na medida em que nele não se cristalizarempersonagens nítidos e em que, ao contrário, uma vozcentral - quase sempre um "Eu" - nele exprimir seupr6prio estado de alma. Fará parte da :B:picatoda obra- poema ou não - de extensão maior, em que umnarrador apresentarpersonagensenvolvidosem situaçõese eventos. Pertenceráà Dramática toda obra dialogadaem que atuarem os pr6priospersonagenssemserem,emgeral; apresentadospor um narrador.

Não surgem dificuldadesacentuadas em tal classi-ficação. Notamos que se trata de um poema lírico(Lírica) quando uma voz central sente um estado dealma e o traduz por meio de um discursomaisou menosríhnico. Espécies deste genero seriam, por exemplo, ocanto, a ode, o hino, a elegia. Se nos é contada umaestória (em versos ou prosa), sabemos que se tratade Épica, do gênero narrativo. Espécies deste gêneroseriam, por exemplo, a epopéia, o romance, a novela,o conto. E se o texto se constituir principalmente dediálogos e se destinar a ser levado à cena por pessoasdisfarçadas que atuam por meio de gestos e discursosno palco, saberemos que estamos diante de uma obra

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drl\lIlt\lica (pertencente ;\ Dramática). Neste gênero seintegrariam, como espécies, por exemplo, a tragédia, acomédia, a farsa, a tragicomédia, etc.

Evidentemente, surgem dúvidas cüante de certospoemas, tais como as bafadas - muitas vezes dialogadase de cunho narrativo; ou de certos contos inteiramentedialogados ou de determinadas obras dramáticas emque um único personagem se manifesta at;ravés de ummonólogo extenso. Tais exceções, contudo, apenas con-Firmamque todas as classificações são, em certa medida,artificiais. Não diminuem, porém, a necessidade deestabelecê-Ias para organizar, em Jinhas gerais, a multi-plicidade dos fenômenos literários e comparar obrasdentro de um contexto de tradição e renovação. ~difícil comparar Macbeth com um soneto de Petrarcaou um romance de Machado de Assis. E: mais razoávelcomparar aquele drama com uma peça de Ibsen ouRacine.

narrativos ligeiros e dificilmente se encontrará uma peça.em que não haja alguns momentos épicos e líricos.

Nesta segunda acepção, os termos adquirem grandeamplitude, podendo ser aplicados mesmo a situaçõesextraliterárias. Pode-se falar de uma noite lírica, de umbanquete épico ou de um jogo de futebol dramático.Neste sentido amplo esses tennos da teoria literáriapodem tomar-se nomes para possibilidades fundamentaisda existência humana; nomes que caracterizam atitudesmarcantes em face do mundo e da vida. Há umamaneira dramática de ver o mundo, de concebê-Io comodividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modoépico de contemplá-Io serenamente na sua vastidãoimensa e múltipla; pode-se vivê-Io liricamente, integradono ritmo universal e na atmosfera impalpável dasestações.

Visto que no gênero geralmente se revela pelomenos certa tendência e preponderância estilística es-sencial (na Dramática pejo dramático, na ~pica peloépico e na Lírica pelo lírico), verifica-se que a classi-ficação dos três gêneros implica um significado maiordo que geralmente se tende a admitir.

c) Significadoadjetivodosgêneros

A segunda acepção dos termos lírico, épico, dramá-tico, de cunho adjetivo,refere-sea traçosestilí.sticosdeque uma obra pode ser imbuída em grau maior oumenor, qualquer que seja o seu gênero (no sentidosubstantivo). Assim, certas peças de Garcia Lorca, per-tencentes, como peças, à Dramática, têm cunho acen-tuadamente lírico (traço estilístico). Poderíamos falar,no caso, de um drama (substantivo) lírico (adjetivo).Um epigrama, embora pertença à Lírica, raramente é"lírico" (traço estilístico), tendo geralmente certo cunho"dramático" ou "épico" (traço estílístico). Há numerosasnarrativas, como tais classificadas na E:pica, que apre-sentam forte caráter lírico (particulannente da faseromântica) e outras de forte caráter dramático (porexemplo as novelas de Kleist).

Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gê-nero e traço estilístico: o drama tenderá, em geral, aodramático, o poema lírico ao lírico e a };;pica (epopéia,novela, romance) ao épico. No fundo, porém, todaobra literária de certo gênero conterá, além dos traçosestilísticos mais adequados ao gênero em questão, tam-bém traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros.Não há poema lírico que não apresente ao menos traços

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2. OSG~NEROS~PICOE L(RICOE SEUSTRAÇOSESTILfSTICOSFUNDAMENTAiS

1) Observaçõesgerais

DESCREVENDO-SEos três gêneros e atribuindo-se-Ihes os.traços esti1ísticosessenciais, isto é, à Dramática os traçosdramáticos, à ~pica os traços épicos e à Lírica os traçoslíricos, chegar-se-á à constituição de tipos ideais, puros,::omo tais inexistentes, visto neste caso não se tomaremem cunta as variações empíricas e a influência de ten-dências históricas nas obras individuais que nunca sãointeiramente "puras", Esses tipos ideais de modo ne-nhum representam critérios de valor, A pureza dramá-tica de uma peça teatral não determina seu valor, quercomo obra literária, quer como obra destinada à cena.Na dramaturgia de Shakespeare, um dos maiores autoresdramáticos de todos os tempos, são acentuados os traçosépicos e líricos. Ainda assim se trata de grandes obras

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teatrais. Uma peça, como tal pertencente à Dramática,pode ter traços épicos tão salientes que a sua própriaestrutura do drama é atingida, a ponto de a Dramáticaquase se confundir com a 1tpica. Mas, ainda assim, talpeça pode ter grande eficácia teatral. Exemplos dissosão o teatro medieval, oriental, o teatro de Claudel,Wilder ou Brecht. Trata-se de exemplos extremos queem seguida serão abordados, da mesma forma comoexemplos de menor realce nos quais o' cunho épicoapenas se associa à Dramática, sem atingi-Ia a fundo.1t evidente que na constituição mais ou menos épicaou mais ou menos pura da Dramática influem peetllia-ridades do autor e da sua visão do mundo, a sua filiaçãoa correntes históricas, tais como o classicisrnoou romanotismo, bem como a temática e o estilo geral da épocaou do país.

b) O gênero /(rico e seus traços estilz'sticos fundamentais

tipo do poema. Qualquer configuração mais nítida de.personagens já implicaria certo traço descritivo e narra-tivo e não con-esponderia à pureza ideal do gênero edos seus traços; pureza absoluta que nenhum poemareal talvez jamais atinja; Quanto mais os traços líricosse salientarem, tanto menos se constituirá um mundoobjetivo, independente das intensas emoções da subje-tividade que se exprime. Prevalecerá a fusão da almaque canta com .0 mundo, não havendo distância entresujeito e objeto. Ao contrário, o mundo, a natureza,os deuses, são apenas evocados e nomeados para, commaior força, exprimir a tristeza, a solidão ou a alegriada alma que canta. A chuva não será um acontecimentoobjetivo que umedeça personagens envolvidos em situa-çqes e ações, mas uma metáfora para exprimir o estadomelancólico da alma que se manifesta; a bem-amada,'recordada pelo Eu lírico, não se constituirá em perso-nagem nítida de quem se narrem ações e enredos; seráapenas nomeada para que se manifeste a saudade, aalegria ou a dor da voz central.

o gênero lírico foi mais acima definido como sendoo mais subjetivo: no poema lírico uma voz centralexprime um estado de alma e o traduz por meio deorações. Trata-se essencialmente da expressão de emo-ções e disposições psíquicas, muitas vezes também deconcepções, reflexões e visões enquanto intensamentevividas e experimentadas. A Lírica tende a ser a plas-mação imediata das vivências intensas de um Eu noencontro com o mundo, sem que se interponham eventosdistendidos no tempo (como na 1tpica e na Dramática).A manifestação verbal "imediata" de uma emoção oude um sentimento é o ponto de partida da Lírica. Daísegue, quase necessariamente, a relativa brevidade dopoema líriço. A isso se liga, como traço estiHsticoimportante, a extrema intensidade expressiva que nãopoderia ser mantida através de uma organização literáriamuito ampla.

Sendo apenas expressão de um estado emocional enão a narração de um acontecimento, o poema líricopuro não chega a configurar nitidamente o personagemcentral (o Eu lírico que se exprime), nem outros perso-nagens, embora naturalmente possam ser evocados ourecordados deuses ou seres humanos, de acordo com o

Apavorado acordo, em trova. O luar:s: como o espectro do meu sonho em mimE sem destino, e louco, sou o marPatético, sonâmbulo e sem fim.

(V1NICrusDE MORAIS,Livro de SOlleto.s)

A treva, o luar, o mar se fundem por inteiro como Eu lírico, não se constituem em um mundo à earte.não se emanciparam da consciência que se manifesta.O universo se torna expressão de um estado interior.

À intensidade expressiva, à concentração e ao ~-'ter "imediato" do poema lírico, associa-se, como traçoestilístico importante, o uso do ritmo e da. musicalidadedas palavras e dos versos. De tal modo se realça o valorda aura conotativa do verbo que este muitas vezeschega a ter uma função mais sonora que lógico-denota-tiva. A isso se liga a preponderância da voz do presenteque indica a ausência de distância, geralmente associadaao pretérito. Este caráter do imediato, que se manifestana voz do presente, não é, porém, o de uma atualidadeque se processa e distende através do tempo (como 'naDramática) mas de um momento "eterno". liApavoradoacordo, em treva" - isso pode ser uma recordação de

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algoj mas este algo permanece, nlio é passado. O Eun!lo diz "apavorado acordei"; Isso daria 1 recordação umcunho narrativo: há certo tempo acordei e aconteceu-meisto e aquIlo. Mas o "eu acordo" e o pavor associadosilo Itrrancados da sucessão temporal, permanecendo Amargem c acima do fluir do tempo, como um Diomentoinóllteró,\'el,como presença IntemporaJ. "O elefanta éli'" animal enorme" - esta oração refere-se 1 espécie,é um cllllliciado que não toma em conta os variaçõesdos elefantes individuais, existentes, temporais. "O ele-fante era enorme" - esta oração individualiza o animal,situando-o °no tempo e, por isso, também no espaço.Trata-se de uma oração narrativa.

c} O ginero Ip,ico e stUs traços tsti'''sticos fundamentais

O gênero épico é mais objetivo que o Ifrico. Omundo objetivo (naturalmente Imaginário), com suaspaisagens, cidades e personagens (envolvidas em certassituações), emancipa-seem larga medida da subJetivi.dade do narrador. _~s!e_g!:raJmente não exprime_~_.

_ pr6prios estados de alma, mas naiTa os ae outros seres.P:irticij)a;-cõntüdõ~-em -inaior ou'menãrgrau, -das seu!destinos e está sempre presente através do ato de narrar.Mesmo quando os próprios personagens começam a dia.logar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá apalavra, Ihes descreve as reaçlJes e indica <\uem fala,através de observações como "disse João", 'exclamouMaria quase aos gritos", etc.

No poema ou canto Urlcosum ser humano solitário- ou um grupo - parece exprimir-se. De modo algum énecessário imaginar a presença de ouvintes ou lnterlo.cutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ouassobiamos assim melodias. O que é primordial é aexpressão monológlca, não a comunlcaçllo a outrem. Jáno caso da narração é dlflcll Imaginar que o narradornão esteja narrando a est6r1a a alguém. O narrador,muito mais que se exprimir a si mesmo (o que natural.mente não é excluldo) quer comunfc~r_~~ma coisa a!,utro~'.1~!._e~!~.e!mel!.te, _estãos~~~.dc?!.,.e-~tom_o_~!e~ llie__p~~ que Ih~ -~nt~ um caso. Como naoexprime o próprio estado de-alma, Dias-narra est6rias

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que aoonteceram a outrem, falará com certa serenidadee d_~~ç.TI''yer'objetivamente as circunstândas objetivas.A est6da ]õrãssfut. Era fã aconteceu - a vozeaõ-

fretéd~o :- e aconteceu a outre~: ~--P!.Qnomt!~~..:~re"-- João; Maria) e em geral não eu. Isso cria certadistdncla el,tre o narrador e o mundo narrado. Mesmo

_ quando o narrador usa o pronome "eu" para nar:ar umaestória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apre-senta-se lá afastado dos eventos contados, mercê dopre~érlto. 'Isso lhe permite tomar uma atitude distan-ciada e obJetiva, contrária à do poeta Ifrico.

A função mais comunicativa que expressiva da lin-guagem épica dá ao narrador maior fôlego para desen-volver, oom calma e lucidez, um mundo mais amplo.Arist§teles_ s~lIentQu este tr~Ç9 esti!lsUc«.>._ao _dizer:__~~IJ-tendo por épico um conteúdo de vast.gassu/}to." Disso'decorrem. em geral, sintaxe e linguagem mais -lógicas,atenuação do uso sonoro e dos recursos rltmicos.

g sobretudo fundamental na narração o desdobra.mento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado).-O narrador, ademais, já conhece o futuro dos perso-nagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por issoum horl%ontemai! va.stoque estes; há,geralmente, doishorizontes: o dos personagens, menor, e 0°do narrador,maior. Isso não ocorre no poema llrico em que existesÓ o horizonte do Eu lírico que se exprime. Mesmo nananação em que o narrador conta uma estória aconte.cida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte majordo que o eu narrado e ainda envolvido nos eventos,visto já conhecer o desfecho do caso.

Do exposto também segue que o narrador, distan.clado do mundo narrado, não finge estar fundido comos personagens de que narra os destinos. Geralmentefinge apeDas que presenciou os acontecimentos ou que,de qualquer modo, está perfeitamente a par deles. Deum modo assaz misterioso parece conhecer até o Intimodos personagens, todos os seus pensamentos e emoções.como se fosse um pequeno deus onisciente. Mas nãofinge estar identificado ou fundido com eles. SempreconserVa certa distância face a eles. Nunca se trans-forma neles, não se metamorfoseia. Ao narrar a estóriadeles imitará talvez, quando falam, as suas vozes eesboçará alguns dos seus gestos e expressões fislon~

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micas. Mas permanecerá, ao mesmo tempo, o narradorque apenasmostra ou ilustra como esses personagensse comportaram, sem que passe a transformar-se neles.Isso, aliás, seria difícil, pois não poderia transformar-sesucessivamente em todos eles e ao mesmo tempo mantera atitude distanciada do nalTador.

3. O G~NERO DRAMÁTICO E SEUSTRAÇOSESTILisTICOS FUNDAMENTAIS

a) Observações gerais

NA LÍRICA,pois, concebidacomo idealmentepura, nãohá a oposição sujeito-objeto. O sujeito como que abarcao mundo, a alma cantante ocupa, por assim dizer. todoo campo. O mundo, surgindo como conteúdo destaconsciência lírica, é completamente subjetivado. Nat:pica pura verifica-se a oposição sujeito-objeto. Ambosnão se confundem. Na Dramática, finalmente, desapa-rece de novo a oposição sujeito-objeto. Mas agora asituação é inversa à da Lírica. };: agora o mundo quese apresenta como se estivesse autÔnomo. absoluto (nãorelativizado a um sujeito). emancipado do narrador eda interferência de qualquer sujeito, quer épico. querlírico. De certo modo é, portanto, o gênero oposto ao

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lirico. Neste último o sujeito é tudo, no dramático oobjeto é tudo, a ponto de desaparecer no teatro, porcompldo, qualquer mediador, mesmo o narrativo que,na ~pica, apresenta e conta o mundo acontecido.

b) A concepçãodeHegel

Até certo ponto, porém, poder-se-ia considerar aDramática também como o gênero que reúne a objeti-vidade e distância da ~pica e a subjetividade e inten-sidade da Lírica; pois a Dramática absorveu em certosentido o subjetivo dentro do objetivo como a Líricaabsorveu o objetivo dentro do subjetivo. Tanto o nar-radar épico desapareceu, absorvido pelos personagenscom os quais passou a identificar-se completamente pelametamorfose, comunicando-Ihes todavia a objetividadeépica, como também se fundiu o Eu lírico com ospersonagens, comunicando-Ihes a sua intensidade e sub-jetividade. Assim, os personagens apresentam-se autÔ-nomos, emancipados do narrador (que neles desapare-ceu), mas ao mesmo tempo dotados de todo o poderda subjetividade lírica (que neles se mantém viva).Esta é, aproximadamente, a concepção de Regel (1770--1831): o gênero dramático é aquele "que reúne emsi a objetividade da epopéia com o princípio subjetivoda Lírica", na medida em que representa como se fossereal, em imediata atualidade, uma ação em si conclusaque, originando-se na intimidade do caráter atuante, sedecide no mundo objetivo, através de colisões entreindivíduos. O mundo objetivo é apresentado objetiva-mente (COlIJOna J1:pi<:a),mns mediado pela interiori-uauedos sujeitos (como na Lírica). Também histori-camente o surgir do drama pressuporia, segundo Hegel,tanto a objetividade da ~pica como a subjetividade daLírica, visto que a Dramática, "unindo ri ambas, não sesatisfaz com nenhuma das esferas separadas" (G. W. F.HECEL,Asthetik, organizada por Friedrich Bassenge,Editora Aufbau, Berlim, 1955, com introdução de GeorgLukács, págs. 1038/39).

A Dramática, portanto, ligaria a J1:picae a Líricaem uma nova totalidade que nos apresenta um desen-volvimento objetivo e, ao mesmo tempo, a origem desseuesenvolvimento, a partir da intimidade de indivíduos,de modo que vemos o ob;etivo (as ações) brotando da

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interioridade dos personagens. De outro lado, o subje-tivo se manifesta na sua passagem para a realidade .

externa. Vemos, pois, na Dramática uma ação esten-dendo-se diante de nós, com sua luta e seu desfecho(como na J!;p1ca);mas ao mesmo tempo vemo-Ia defluiratualmente de dentro da vontade particular,da morali-dade ou amoralidade dos caracteres individuais, osquais por isso se tomam centro conforme o princípioHrico. Na Dramática, portanto, não ouvimos apenas anarração sobre uma ação (como na ~pica), mas pre-senciamos a ação enquanto se vem originando atual-mente, como expressãoimediata de sujeitos (como naLírica) (op. cit., págs. 935/36).

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c) Divergência da concepção aqui exposta

A concepção de Hegei, que apresenta a Dramáticacomo uma síntese dialética da tese épica e da antíteselírica, resulta numa teoria de alto grau de convicção:entretanto, a Dramática não pode ser explicada comosíntese da Lírica e ~pica. A ação apresentada porpersonagens que atuam diante de nós é um fato total-mente novo que não pode ser reduzido a outros gêneros.A história prova que um influxo forte de elementosUricos e épicos tende a dissolver a estrutura da Dramá-tica rigorosa. Ademais, o princípio de classificação aquiadotado diverge do hegeliano. Hegel, segundo sua con-cepção dialética, parte da idéia de que a Dramática éum gênero superior à Lirica e à ~pica, devendo porisso contê-Ias, superando-as ao mesmo tempo. A classi-ficaç~o aqui exposta, todavia, não reconhece nenhumasuperioridade de um dos gêneros. Parte da relação domundo imaginário para com o "autor", este tomado comosujeito fictício (não biográfico e real) de quem emanao texto literário e que aqui foi designado como "Eulírico" e como "narradol'''. Na Lírica (de pureza ideal)o mundo surge como conteúdo do Eu lírico; na J!;pica(de pureza ideal), o narrador já afastado do mundoobjetivo, ainda permanece presente, como mediador domundo; na Dramática (de pureza ideal) não há maisquem apresente os acontecimentos: estes se apresentampor si mesmos, como na realidade; fato esse que explicaa objetividade e, ao mesmo tempo, a extrema força eintensidade do gênero. A ação se apresenta como tal,

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não s~ndo Rpan'lItl'mente filtrada por nenhum mediador.Isso St~1I1:.\lIífcstano texto pelo fato de somente ospróprios pC'rsonngensse apresentarem dialogando semjntl'l'ft'r~ncia do "autor". Este se manifesta apenas nasruhriC'as que, no palco, são absorvidas pelos atores e

á . O 1 . "d "cen' nos. S ceni.U'1OS,por sua vez, esaparecem nopi.1ko, tornando-se ambiente; e da mesma forma desa-parecem os atores, metamorfoseados em personagens;nÜovemos os atores (quando representam .bem e quandonão os focaJizamos especialmente), mas apenas os per-sonagens, na plenitude da sua objetividade fictícia.

d) Traços estiUsticos fundamentais da obra dramática pura

O simples fato de que o "autor" (narrador ou Eulírico) parece estar ausente da obra - ou confundir-secom todos os personagens de modo a não distinguir-secomo entidade específica dentro da obra - implica umasérie de conseqüências que definem o gênero dramáticoe os seus traços estilísticos em termos bastante aproxi-mados das regras aristotélicas. Estando o "autor" ausen-te, exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dosacontecimentos, sem intervenção de qualquer mediador,já que o Uautor" confiou o desenrolar da ação a perso-nagenscolocadosem determinada situação. O começoda peça não pode ser arbitrário, como que recortadode uma parte qualquer do tecido denso dos eventosuniversais, todos eles entrelaçados, mas é determinadopelas exigências internas da ação apresentada. E !I.peçatermina quando esta ação nitidamente definida chegaao fim. Concomitantemente impõe-se rigoroso encadea-mento causal, cada cena sendo a causa da próxima eesta sendo o efeito da anterior: o mecanismo dramáticomove-se sozinho, sem a presença de um mediador queo possa manter funcionando. Já na obra épica o narra-dor, dono do assunto, tem o direito de intervir, expan-dindo a naITatívuem espaçoe tempo,voltandoa épocasanteriores ou antecipando-se aos acontecimentos, vistoconhecer o futuro (dos eventos passados) e o fim daestória. Bem ao contrário, no drama o futuro é desco.nhecido; brota do evolver atual da ação que, em cadaapresentação, se origina por assim dizer pela primeira

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vez. Quanto no passado, o drama puro não pode retor-na1' a ele, a não ser através da evocação dialogada dospersonagens; o flash back (recurso antigüíssimono gê-nero épico e muito típico do cinema que é uma arte nar-rativa ), que implica não s6 a evocação dialogada e simo pleno retrocesso cênico ao passado, é impossível noavanço inintnrrupto da ação dramática, cujo tempo élinear e sucessivo como o tempo empírico da realidade;qualquer interrupção ou retomo cênico a tempos pas-sados revelariam 1\ intervenção de um narrador mani.pulando a estória.

A ação dramática ac.:onteceagora e não aconteceuno passado, mesmo quando se trata de um dramahistórico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo(11.0 capítulo), diz com acerto que o dramaturgo nãoé um historiador; ele não relata o que se acredita 'haveracontecido, "mas faz com que aconteça novamente pe.-rante os nossos olhos." Mesmo o "novamente" é demais.Pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, seapresenta sempre "pela primeira vez". .Não é a repre.sentação secundária de algo primário. Origina-se, cadavez, em cada representação, "pela primeira vez"; nãoacontece "novamente" o que já aconteceu, mas, o queacontece, acontece agora, tem a sua origem agora; aação é "original", cada réplica nasceagora, não é citaçãoou variação de algo dito há muito tempo.

e) A correspondência de Goethe e Schi/ler

Muitos dos elementos abordados acima foram dis-'eutidos com grande argúcia por Goethe e Schiller nasua correspondência, em que tratam com freqüência doproblema dos gêneros. Tendo superado a sua fasejuvenil de pré-romantismo shakespeariano, voltam-se, naúltima década do século XVIII, para a anti&:1idadeclássica e debatem a pureza dos seus trabalhos dramá-ticos em elaboração. O estudo aprofundado de Arist6.teles e da tragédia antiga suscita o problema de comoseria possível manter puros os gêneros épico e dramá.tico em face dos assuntos e problemas modernos.

Nota-se, pois, uma perfeita intuição do fato de queos gêneros e, mais de perto, a pureza estilística com

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que se apresentam, devem ser relacionados com a lús-tórii.l e as transform:lções d:lí decorrcntes. Ambos ospoetas ret'Ouhecem O fato de que - na expressãodeG. Lukács - "as formas dos gêneros não são arbitrárias.Emanam, ao contrário, em cada caso, da determinaçãoconcreta do respectivo estado social e histórico. Seucaráter e peculiaridade são deterp1inados pela maior oumenor capacidade de exprimir os traços essenciais dedada fase histórica" (Introdução à Xst'hetik de HegeJ,op. cit., pág. 21). Tálvez se diria melhor que o usoespecífico dos gêneros - a sua mistura, os traços esti-lísticos com que se aprescntam (por cxemplo, o gênerodramático com forte cunho épico) - adapta-se emgrando medida à situação histórico-social e, concomi-tantementc, à temática proposta pela respectiva época.

Na sua discussão, Coethe e SchilIer verificam "quea autonomia das partes constitui caráter essencial dopoema épico", isto é, não se exige dele o encadeamentorigoroso do drama puro; o poema épico "descreve-nosapenas a existência e o atuar tranqüilos das coisassegundo as suas naturezas, seu fim repousa desde logoem cada ponto do seu movimento; por isso niio corremosimpacientes para um alvo, mas demoramo-nos com amora cada passo.. ." (Schiller).Tal observaçãosugerequea Épica, além de narrar ações (manifestando-sesobreelas, em vez de apresentá-Ias como o drama), se debruçaem ampla mediàa sobre situações e estados de coisas.Contrariamente, no drama cada cena é apenas elo, tendoseu valor funcional apenas no todo.

Coethe, por sua vez, destaca que o poema épico"retrocede e avança", sendo épicos "todos os motivosretardantes". O que sohretudo salienta é que o dramaexige um "avançar ininterrupto". E SchilIer: o drama-turgo "vive sob a categoria da causalidade" (cada cenaum elo no todo), o autor épico sob a da substancia-lidade: cada momento tem seus direitos próprios. "Aação dramática move-se diante de mim, mas sou eu queme movimento em torno da ação épica que parece estarem repouso." A razão disso é evidente: naquela, tudomove-se em plena atualidade; nesta tudo já aconteceu,é o narrador (e com ele o ouvinte ou leitor) que S6move escolhendo os momentos a serem narrados.

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f) As unidades

E claro que também o dramaturgo faz uma seleçãodas cenas - mais rigorosa, aliás, que o autor épico,sobretudo por necessidade de compressão. Regel diriaque a Dramática reúne a concentração da Lírica coma maior extensão da Epica. Todavia, o que prevalecena seleção dramática é a necessidade de criar um meca-nismo que, uma vez posto em movimento, dispensaqualquer interferência de um mediador, explicando...seapartir de si mesmo. Qualquer episódio que não brotassedo evolver da ação revelaria a montagem exteriormentesuperposta. A peça é, para Arist6teles, um organismo:todas as partes são determinadas pela idéia do todo,enquanto este ao mesmo tempo é constituído pela intera-ção dinâmica das partes. Qualquer elemento dispensá-vel neste contexto. rigoroso é "anorgânico", nocivo, nãomotivado. Neste sistema fechado tudo motiva tudo, otodo as partes, as partes o todo. Só assim se ohtém nverossimilhança, sem a qual não seria possível a des-carga das emoções pelas próprias emoções suscitadas(catarse), último fim da tragédia.

Coro, prólogo e epílogo são, no contexto do drama,como sistema fcchado, elementos épicos, por se mani-festar, através deles, o autor, assumindo função lírico--narrativa. Dispersão em espaço e tempo - suspendendoa rigorosa sucessão, continuidade, causalidade e unidade- faz pressupor igualmente o narrador que monta ascenas a serem apresentadas, como se ilustrasse umevonto maior com cenas selecionadas. Um intervalotemporal entre duas cenas ou o deslocamento espacialentre uma cena e outra sugerem um mediador queomite certo espaço de tempo como não relevante (comose dissesse: "agora fazemos um salto de três anos") ouque manipula os saltos espaciais ("agora vamos trans-ferir-nosda sala do trihunaJpara o aposentodo conde").Mais ainda, revelam a intervenção do narrador cenasepisódicas, na medida em (lue interrompem a unidadeda ação e não se afiguramnecessáriasao evolvercausalda fábula principal. As famosas três unidades de ação,lugar e tempo,das quais sÓa primeira foi consideradarealmente importante por Aristóteles, parecem, pois, comoperfeitamente lógicas na estrutura da Dramática pura.

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Face a essasrazões, que decorrem da lógica interna dogênero, são assaz ineptos os argumentos geralmenteaduzidos, sobretudo o de (1110é necessário aproximartempo e lugar cênicos do tempo e lugar empíricos daplatéia (ou da representação) por motivos de verossi-milhança, uma vez que o público, permanecendo apenasdurante três horas no mesmo iugar, não poderia con-ceber uma ação cênica de seis anos acontecendo emRoma, Paris e Jerusalém.

les - particularmente com relação ao público - mascom relação aos outros personagens prepondera o apelo,o desejo de influir, convc'ncer, dissuadir. .

h) Texto dramáticoe teatro

g) O diálogo

Comoo texto dramáticopuro secompõe,em essê~-da, de diálogos, faltando-lhe oi moldura narrativa quesitue os personagens no contexto ambiental ou Inesdescreva o comportamento físico, aspecto, etc., ele deveser caracterizado como extremamente omisso, de certomodo deficiente. Por isso necessita do palco para com-pletar-se cenicamente. 1!:o palco que o atualiza e oconcretiza,assumindode certa forma, atravésdos atorese cenários, as funções t}u~ na Épica são do narrador.Essa função se manifesta no texto dramático através dasrubricas, rudimento narrativo que é inteiramente absor-vido pelo palco. Fortes elementos coreográficos, panto-mímicos e musicais, enquanto surgem no teatro decla-mado constituído pelo diálogo, afiguram-se por isso emcerta medida como traços epico-lfricos,já que a cenase encarrega no caso de funções narrativas ou líricas,de comentário, acentuação e descrição que não cabemno diálogo e que no romance ou epopéia iriam ser exer~cidas peronarrador. O paradoxoda Hteraturadramáticaé que ela não se contenta em ser literatura, já que,senao "incompleta", exige a complementação cênica.

Faltando o narrador,cuja funçãofoi absorvidapelosatores transformados em personagens, a forma naturalde estes últimos se envolverem em tramas variadas, dese relacionarem e de exporem de maneira compreensíveluma ação complexa e profunda, é o diálogo. 1!:comefeito o diálogo que constitui a Dramática como litera-tura e como teatro declamado (apartes e monólogosnão afetam a situação essencialmente dialógica). Paraque através do diálogo se produza uma ação é imposi-tivo que ele contraponha vontades, ou seja, manifestaçõesde atitudes contrárias. O que se chama, em sentidoestilístico, de "dramático", refere-se particularmente aoentrechoque de vontades e à tensão criada por umdiálogo através do qual se externamconcepçõese-obje-tivos contrários produzindo o conflito. A esse traçoestilístico da Dramática associa-se uma série de momen-tos secundários como a "curva dramática" com seu nó,peripécia, clímax, desenlace, etc. O diálogo dramáticomovea ação atravésda dialéticade afirmaçãoe réplica,através do enb'echoquedas intenções.

Se o pronome da Lírica é o Eu e du :6:picao Ele,o da Dramáticaserá o Tu (Vósetc.). O tempo dramá-tico não é o presente eterno da Lírica e, muito menos,o pretérito da Épica; é o presente que passa, queexprimea atualidadedo acontecere que evolve tensa-mente para o futuro. Sendo o pronome Tu o do diálogo,resulta que a função lingüística é menos a expressiva(Lírica) ou a comunicativa (Épica) que a apelativa.Isto é, as vontadesque se externamatravés do diálogovisom a influenciar-se mutuamente. Sem dúvida, tam-bém as funções expressiva e comunicativa estão presen-

i) Teatro e público

O canto Hrico, como foi exposto, não exige ouvintes(Parte I, Capítulo2, Letra c). Tem caráter mono16gicoe pode realizar-se como pura auto-expressão. A narra-ção, bem ao contrário, exige na situ~ção concreta oouvinte, o público. O teatro, como representação real,naturalmente depende em escala ainda maior de umpúblico presente e nes~efato reside uma das suas maioresvantagens e forças. Ainda assim, o drama puro - pelomenos o europeu na época pós-renascentista - tende aser apresentado como se não se dirigisse a públiconenhum. A platéia inexiste para os personagens e nãohá narrador que se dirija ao público. O ator, evidente-mente, sabe da presença do público; é para ele que

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desempenha o seu papel. Mas está mctamorfoseado empersonagem; quem está no palco é Hamlet, Fecha ouNora, não o sr, João da Silva ou a sra. Maria da Cunha,

Macbeth não se dirige ao p,úblico da Comédie Fran-çaise, Nora não fala ao publico da Broadway. Elesse dirigem aos seus interJocutores, a Lady Macbeth oua Helmer.

Esta breve caracterização do g'êncro e estilo dra-máticos - que em seguida será enriquecida por dadoshistóricos - é naturalmente uma abstração; refere-se rium "tipo ideal" de drama, inexistente em qualquer rea-lidade histórica, embora haja tipos de dramaturgia quese aproximam desse rigor. Na medida em que as peçasse aproximarem desse tipo de Dramática pura, serãochamadas de "rigorosas" ou puras, por vezes tambémde "fechadas", por motivos que se evidenciarão. Namedida em que se afastarem da Dramática pura, serãochamadas de épicas ou lírico-épicas, por vezes tambémde "abertas", por motivos que igualmente se evi,denciarão.