Roberto Marques

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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS A DERIVA DO PARENTESCO: GÊNERO, JUVENTUDE E MIGRAÇÃO NO NORDESTE CONTEMPORÂNEO Roberto Marques Em várias oportunidades em que tenho falado e ouvido falar sobre Narrativas, Memórias, Identidades e temas afins, assusta-me o formato que temos assumido em nossa escrita independente do local ou sujeitos sobre os quais falamos. Sobretudo no que diz respeito a dois aspectos: 1) as fronteiras entre “nossos” sujeitos e aqueles em oposição ao qual eles se identificam parecem espessas demais, evidentes demais, tornando o conceito de sociabilidade dado não questionado, em torno do qual se constroem identidades em bloco. 2) Não menos evidente é a idéia de indivíduo como modelo organizador da noção de pessoa, independente da comunidade que se esteja pensando. A noção de indivíduo ocidental se mundializa em nossas falas, torna-se uma entidade a-temporal. Parece que assumimos sem restrições a idéia de Thompson (1992) de dar voz aos sujeitos através de suas narrativas que recolhemos e interpretamos. Essa voz vem inelutavelmente de um sujeito com direitos e deveres, de uma sociedade que, se não o é, deveria ser igualitária. Por vezes é simplesmente essa ausência de eqüidade que estamos denunciando. Em uma palavra: prenunciamos um lugar para o sujeito e a sociedade, ocidentalizando seus lugares a partir de nosso modelo de sociedade e de pessoa. E se assumíssemos que tais lugares não são dados pré-existentes, mas constructos alinhavados em nossas pesquisas na relação com os sujeitos? E se estivéssemos dispostos a perceber não o que a fala denuncia, mas como a narrativa constrói sujeitos e noções de pessoas distintos daqueles sujeitos ideais cuja fala seria a marca racional que reclama uma identidade e um lugar social? E se esse lugar social fosse híbrido e posicional? Tentaremos tomar tais questões como desafios para esse texto, utilizando a noção de gênero, as contribuições da antropologia na construção da noção de pessoa e uma situação de campo que tem se demonstrado rica nas possibilidades não de um sujeito, mas de múltiplos sujeitos, todos igualmente verdadeiros, como também absolutamente contextuais. Para falarmos do Nordeste, trataremos aqui de uma região chamada Cariri, região ao sul do Ceará composta por 28 municípios, que faz fronteira com Piauí, Pernambuco e

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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS

A DERIVA DO PARENTESCO: GÊNERO, JUVENTUDE E MIGRAÇÃO NO

NORDESTE CONTEMPORÂNEO

Roberto Marques∗

Em várias oportunidades em que tenho falado e ouvido falar sobre Narrativas,

Memórias, Identidades e temas afins, assusta-me o formato que temos assumido em nossa

escrita independente do local ou sujeitos sobre os quais falamos. Sobretudo no que diz

respeito a dois aspectos: 1) as fronteiras entre “nossos” sujeitos e aqueles em oposição ao

qual eles se identificam parecem espessas demais, evidentes demais, tornando o conceito de

sociabilidade dado não questionado, em torno do qual se constroem identidades em bloco.

2) Não menos evidente é a idéia de indivíduo como modelo organizador da noção de

pessoa, independente da comunidade que se esteja pensando. A noção de indivíduo

ocidental se mundializa em nossas falas, torna-se uma entidade a-temporal. Parece que

assumimos sem restrições a idéia de Thompson (1992) de dar voz aos sujeitos através de

suas narrativas que recolhemos e interpretamos. Essa voz vem inelutavelmente de um

sujeito com direitos e deveres, de uma sociedade que, se não o é, deveria ser igualitária. Por

vezes é simplesmente essa ausência de eqüidade que estamos denunciando. Em uma

palavra: prenunciamos um lugar para o sujeito e a sociedade, ocidentalizando seus lugares a

partir de nosso modelo de sociedade e de pessoa. E se assumíssemos que tais lugares não

são dados pré-existentes, mas constructos alinhavados em nossas pesquisas na relação com

os sujeitos? E se estivéssemos dispostos a perceber não o que a fala denuncia, mas como a

narrativa constrói sujeitos e noções de pessoas distintos daqueles sujeitos ideais cuja fala

seria a marca racional que reclama uma identidade e um lugar social? E se esse lugar social

fosse híbrido e posicional? Tentaremos tomar tais questões como desafios para esse texto,

utilizando a noção de gênero, as contribuições da antropologia na construção da noção de

pessoa e uma situação de campo que tem se demonstrado rica nas possibilidades não de um

sujeito, mas de múltiplos sujeitos, todos igualmente verdadeiros, como também

absolutamente contextuais.

Para falarmos do Nordeste, trataremos aqui de uma região chamada Cariri, região ao

sul do Ceará composta por 28 municípios, que faz fronteira com Piauí, Pernambuco e

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Paraíba. Há diversas maneiras de delimitar a região, seja por sua formação histórica, por

suposta unidade natural, ou de forma político-administrativa, como fizemos acima. Em

geral, os trabalhos desenvolvidos na região consideram o Triângulo formado pelos

municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha o centro administrativo, político,

econômico e cultural da Região. Em trabalhos anteriores, questões aparentemente opostas

se colocavam como pistas para uma investigação acerca do feminino na região: a

supostamente recém adquirida diversidade do feminino, em um espaço marcado pela idéia

de tradição como signo identitário e, mais recentemente, nesse mesmo espaço, o assassinato

violento de mulheres e suas formas de apreensão pelos jornais locais. Ambos corpus

refletiam relativa independência, quem sabe, uma transformação nas relações de parentesco

do mundo rural contemporâneo. Ainda que analisada de forma tateante, tanto temporal

como metodologicamente, a questão da marcação da diferença masculino-feminino já se

adivinhava como aspecto central para a reflexão sobre a região. De acordo com

Albuquerque Jr. (2003:20): Na historiografia e sociologia regionais, na literatura popular e erudita, na música, no teatro, nas declarações públicas de suas autoridades, o nordestino é produzido com uma figura de atributos masculinos. Mesmo em seus defeitos, é com o universo masculino de imagens, símbolos e códigos que definem a masculinidade, em nossa sociedade, que ele se relaciona. O Nordestino é uma figura “em que se cruza uma identidade regional e uma

identidade de gênero”. Mas se para o historiador importa saber que relações de força

constituíram essa confluência de identidade espacial e gênero presentificadas pelos

atributos ocidentais masculinos de rudeza, prontidão e atividade na figura do Nordestino,

não nos parece menos importante perceber que essa personagem se constitui a partir de

relações que reiteram e presentificam tais signos, ainda que, ocasionalmente, estas relações

se organizem a partir desses atributos. Corrêa (1982), por exemplo, chama a atenção que a

organização de tal identidade não se daria se não fossem expedientes constantes de

suspensão da diferença. Para a autora, é exemplar desses jogos de esquecimento a

confluência da reflexão sobre família no Brasil a partir do modelo e relações presentes na

família patriarcal. Tal modelo se modernizaria natural e inexoravelmente dando espaço ao

modelo de família nuclear. Para Corrêa, essa narrativa linear escamotearia a existência de

diversas formas de organização e conseqüentemente a existência de outras relações sociais,

que ora teórica, ora empiricamente são pensadas como “outro” da família patriarcal,

ocupando, portanto, um lugar marginal em relação a esta.

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Mas seria uma estratégia útil questionar a existência da família patriarcal como

conceito?

Para Albuquerque Jr. (2003: 135- 148) tal crítica supõe que um conceito possa dar

conta de todas as práticas concretas do sublunar. Para o autor, não se trataria de

“desmistificar o conceito”, já que esse é também engenho humano; potencializador de

relações, mas de historicizá-lo, percebendo “que relações históricas possibilitaram a

emergência dele, que funcionamento ele teve, e a que relações de poder esteve ligado, num

dado momento histórico”.

Nesse debate interessa-nos a perspectiva empregada por Albuquerque Jr. de apontar

a instituição do Patriarcalismo como conceito possível para a reflexão sobre a família

brasileira, como viés instituinte de uma confluência entre identidade espacial e de gênero na

figura do Nordestino. As relações descritas por Gilberto Freyre; José Lins do Rego; Raquel

de Queiroz e outros impõem-se como conceito, organizam a percepção , produzindo falas,

gestos e corpos masculinos e as relações por eles engendradas. Embora reconheça a

existência de “uma brecha entre o dizer e o fazer, que inventa um cotidiano diferente

daqueles que os discursos enunciavam”, tal abordagem prioriza a formatação do sensível

pela linguagem aproximando percepção, classificação e institucionalização.

Como poderia a Antropologia contribuir com tal discussão?

Para essa “ciência social do observado” importa a tentativa de apreensão do sensível

a partir de suas bordas, a produção de um discurso sobre o outro no momento do embate

com a alteridade, produzindo e multiplicando o fulgor e fugacidade dos sujeitos, onde antes

havia a opacidade dos conceitos.

Possivelmente nenhum outro conceito em antropologia atrele e defina tanto os

sujeitos a partir de suas posições em dada relação social como o de Parentesco. Como tal

confluência interessa a alguns dos pontos levantados nesse estudo, pensemos, ainda que de

forma esboçada e breve, os caminhos e limites desse conceito. Limitarei, no entanto,

minhas observações àquilo que parece ser instrumental para a pesquisa.

Como ressaltamos, ao tempo que o conceito institui-se como dispositivo de

construção de sensibilidade e institucionalização de sujeitos, a antropologia pode constituir-

se no entre conceitos e práticas; na ambigüidade possível daquele que se entrega à

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construção do outro em si. Esse entre-lugares distancia-se bastante daquilo que o campo

erigiu como noção privilegiada de Parentesco.

Para Heritier, o estudo das relações de parentesco contrasta a diferença e o

equilíbrio de “conjuntos diferentes do nosso” que “encontram intelectualmente justificação

(...) através da própria harmonia da sua adequação a todos os domínios da atividade social,

econômica, política, natural e simbólica (1997: 29)”.O termo se aproximaria daquilo que

Mauss classificou como fato social total. A partir do instante que se expressa pelos sistemas

de designação, regras de filiação, aliança e residência, bem como evidencia os interditos

que obrigam a formação dessas alianças, o parentesco seria a formulação sintética de tudo

aquilo que é durável em cada agrupamento humano, princípio onipresente da sociabilidade

e definição, no grupo, daquilo que é humano/semelhante e o que não é.

Como dissemos, em que pese a importância do instrumental acima referido na

construção do campo da antropologia, a definição de um objeto com fronteiras tão rígidas

possivelmente atenue a importância da produção de novas formas de legitimação entre

grupos, a possibilidade da produção da diferença pelo sujeito amparado por essas redes

simbólicas, ou mesmo, a importância do discurso antropológico na construção NOS

sujeitos desse conceito. A este respeito, alguns teóricos parecem potencializar as brechas do

conceito, tencionando seu destino e multiplicando usos.

Strathern (1995:306) define Parentesco como a maneira como “os euro-americanos

pensam sobre a formação de relacionamentos íntimos baseados na procriação”. Em alguns

artigos, utiliza a tensão nos papéis de pai e mãe característicos das novas tecnologias

reprodutivas para pensar o trânsito nas formas de parentalidade, possivelmente distintos das

figuras atuais do feminino e masculino, ao tempo que reflete sobre como somos acessados,

como antropólogos e como euro-americanos a partir dessas figuras de gênero. Assim, ao

invés do dado onipresente, o Parentesco aparece aqui como produção de relações que

desencadeiam deslocamentos de significação, trânsitos e produção do humano.

O “culturalmente pensável” é, portanto, fruto de uma triangulação entre práticas,

discurso nativo e sua descrição pela comunidade de antropólogos que o produz.

Ainda assim, no que diz respeito a formas de parentesco descrito e reescrito pela

atividade intelectual, tudo aquilo que está à sua margem é tomado como anti-norma,

fímbria, inominável. Faz-se necessário uma pergunta: Estamos incluídos nessa forma de

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parentesco descrita por Schneider ou Strathern? Se não estamos incluídos, não estamos

propriamente excluídos. Não somos o outro do parentesco. Aliemos, portanto à pergunta

anterior uma outra: O que se faz no Cariri quando não se está fazendo comunidade ou

parentesco? O que nos leva mais uma vez a buscar os fenômenos invisíveis, o resto, mas

nem por isso, como veremos, fenômenos menos ruidosos.

Luciana não é do Cariri. Como tantas outras jovens chegou ao Crato a fim de

assumir um cargo de funcionária pública. Tinha, então, cerca de 30 anos. Ao caracterizar o

momento de sua chegada ali, Luciana dizia que “era um momento muito rico para o Cariri,

quando representantes comerciais dos estados da Paraíba, Pernambuco e Piauí cruzavam

constantemente a região”. Ela, então, divertia-se em bares de forma pouco convencional:

ensaiava performances em casa, cantava e dançava como se estivesse em um show

particular, sendo ela mesma a performer e o Cariri, seu público. Entre as performances

relatadas gostaria de citar um momento em que Luciana contratara um dançarino com quem

ensaiara por algumas semanas, ao final das quais apresentou-se em um Bar, em Frente à

Praça da Igreja Matriz. Em outra oportunidade, enviara, para ela mesma, um ramalhete de

flores, entregue ao final de uma de suas apresentações. No dia seguinte, não tendo bebido

durante a noite um gole de álcool, Luciana retornava à instituição em que trabalhava, onde

lhe eram confiados cerca de 300 adolescentes por semestre.

Darão essas noites algum sentido ao Cariri? Ajudará tal descrição uma compreensão

da Região? Talvez se colarmos à descrição desse evento uma outra observação, realizada

durante a exposição agropecuária.

Às noites, durante a exposição[agropecuária], os jovens vestem-se e vão à “Festa”.

No ano de 2007, a “Festa” compunha-se majoritariamente de bandas de forró. No entanto,

opondo-se a interpretações recentes do forró no Nordeste como algo imutável em oposição

ao forró universitário das metrópoles do país, onde este teria se transformado, as bandas

não correspondem ao estereótipo de imutabilidade. Vejamos as notas de campo de minha

primeira noite na exposição: Aproximando-me do show, poucas pessoas dançam. Um rapaz moreno, pequeno, com roupas bastante simples é o cantor. Ele canta “Adultério”. A letra é uma paródia sobre a música Tédio, sucesso dos anos 80, na voz do grupo Biquíni Cavadão. Uma amiga comentou que Mr. Katra, cantor de funk tipo “proibidão” cantava essa música no show. Ao final da seqüência: Sua mina só reclama/ e tira a sua paz/ (ela é chata demais!)/ procura a profissional que ela sabe o que faz/ é uma coisa louca: quica/ quica em cima de mim/ assim!, assim!/ Antes, durante e depois/ Até o fim! Sentada no meu colo, agente zoa, gata que delícia! Boa!/ O Negócio ta sério/ vai rolar um adultério/

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- o cantor repete diversas vezes: “E eu acho é bom! E eu acho é bom....Enquanto ele canta, 4 dançarinas fazem coreografias no palco. (...) [embora a platéia esteja cheia], poucas pessoas dançam. Ficam olhando o palco (...) Saio dali e vou para a tenda eletrônica. Lá está tocando funk e a freqüência me parece ser de um público bem jovem. A tenda seria uma programação paralela à exposição.A contrário das bandas de forró, a música na tenda seria moderna, dançantes, urbanas (...). Será possível perceber um sentido nisso? Estarão esses jovens fazendo comunidade

nesse momento? Poderá esse momento existir OU ele deve ser decantado para que se possa

perceber um verdadeiro “sentido da vida tribal?”.

Compreendi melhor essa noite quando viajei, alguns dias depois, para o município

de Campos Sales, a 03 horas da cidade do Crato, para uma festa de município. Ali, o

investimento realizado na festa não permitia eventos paralelos, então cada fase da

programação era anunciada, ás vezes em diferentes palcos a algumas dezenas de metros de

distância um do outro, permitindo que tudo fosse visto por todos os moradores, visitantes e

antropólogos presentes. Farei aqui apenas um relato da programação da festa no Município:

A programação iniciou em torno das 19 h. com apresentação do artista paraense Vivinho

dos Teclados. Na apresentação, o cantor interpretou os últimos sucessos das rádios: Um

duo de Eros Ramazoti e Tina Turner, em que interpretava alternadamente ambos os

cantores, em seguida, um sucesso de Alessandro Sanz, um pagode e um sucesso da dupla

Bruno e Marrone. Terminada a apresentação, o mestre de cerimônias chamou a atenção

para a tenda eletrônica. Aproximando-me, vi jovens musculosos dançando como se

estivessem em um show de streap-tease, uma senhora de cerca de 60 anos balançava os

braços, que mantinha à altura da cintura a 90 º , e punhos cerrados. Seu corpo balançava

inteiro para cima e para baixo, em um movimento infantil, como se estivesse quicando no

mesmo ritmo da música. Ao microfone da tenda eletrônica, um D.J. dizia que logo mais se

apresentaria um D.J. de Fortaleza. O centro da atenção da festa volta-se, então, ao palco

onde a orquestra municipal de Campos Sales toca música dos Beatles, Luiz Gonzaga e

repertório variado acompanhada de guitarras. Um novo momento na tenda eletrônica, agora

bem mais cheia de gente, é seguida então por três bandas de forró. A partir das 22 horas,

não seria exagero dizer que toda a cidade estava na praça, presente, é verdade, em

diferentes locais, a diferentes distâncias e vínculos em cada momento da programação. Mas

não seria menos verdadeiro dizer que aquele convívio possibilitava a circulação em

ambientes diferentes e a produção de um público diverso a informações diversas. O rapaz

bombado, uma outra senhora de 70 anos dançando ritmadamente ao lado do D.J. de

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Fortaleza, os adolescentes negros e mestiços se espremendo na pista da tenda eletrônica às

moças que acabaram de sair do salão de beleza atestam que aquele evento é produzido na

comunidade e a partir de informações migrantes. Que guarda vínculos com as noites na

exposição e que esse circuito cria uma territorialidade, se não uma territorialidade perene,

ao menos algo que produz , e estanca, gestos, possibilidades e significados.

Se o território é definido por critérios de parentesco e descendência (Woortmann,

1995), as situações de campo até agora descritas parecem valorizar TAMBÉM o trânsito, a

possibilidade de deslocamento, o entre-lugares como característica desse espaço.Tal análise

faz-me retomar uma frase de um entrevistado sobre os encontros entre conhecidos durante

as noites da exposição agropecuária: Se um conhecido seu lhe encontra em frente ao palco [lugar mais exposto a um público geral], ele fala

com você de uma determinada maneira; se encontra com você na tenda [eletrônica], fala de outra

maneira, se encontra você em um outro lugar, durante a mesma festa, já falará de outra. Provavelmente, ao comunicar-se de maneiras distintas, os conhecidos estão

agenciando socialidades, manifestadas pelos gestos possíveis em lugares distintos;

sinalizações percebidas entre eles e diluídas alguns passos além. Essa fala também lança

luzes sobre uma comunidade em que as relações face-a –face não se opõem a relações de

anonimato. Ao contrário, elas complexificam formas de socialidade, criando zonas de

sombra e densidades distintas ao tempo em que, como veremos adiante, é dependente

também de eventos unificadores.

Eventos como este são chamados simplesmente “Festa”. Para meus sujeitos,

“Festas” eram os shows realizados em casas de eventos ou em praças públicas onde

invariavelmente se ouvia forró eletrônico, com bandas, torres de som, dançarinos dançando

coreografias em roupas de malha esvoaçantes.

Em uma noite de Festa, encontrei uma ex-aluna com o namorado. Provavelmente

suspeitando da minha falta de afinidade com a música que se tocava ali, Antonia, minha

aluna, começou a ironizar as canções, o apelo sexual das letras através de repetição de

palavras e gestos. Perguntei então: Qual o motivo de vocês saírem de casa para esse show?-

Ouvi em resposta: - “É tão chato ficar em casa!” -.

Em outras noites de trabalho de campo, percebi que a dança a dois não era a única

forma de encontro durante as “festas”. O caráter de espetáculo, os dançarinos no palco, os

efeitos de luzes e os watts de potência presentes em todas as apresentações possibilita que

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as pessoas estejam ali apenas para ver o forró. Por outro lado, em uma domingueira, vi uma

jovem dançando absolutamente sozinha. Em sua dança, levantava a perna esquerda à altura

da cintura, dava três passos para um lado e alternava para o outro. Quando parava, jogava

os ombros alternadamente. Enfim, a moça repetia os gestos das dançarinas. Acompanhava a

dança como se ela mesma fizesse parte do espetáculo. Uma outra possibilidade foi revelada

por um casal de adolescentes durante a exposição. Transcrevo aqui, então, minhas

anotações de campo: Observo dois casais de adolescentes. O rapaz chega com um amigo e o apresenta a duas moças. Em segundos, o rapaz com maior intimidade com as moças, aproxima-se de uma delas e faz menção de dançar. Eles não dançam. Ela está com um copo na mão, ele também. Não se esforçam por seguir o ritmo da música. Ficam estancados, próximos. Peito com peito. Não é uma dança, mas uma forma de aproximação. Vale salientar também que em conversas entre casais ou mesmo deambulando, as

pessoas dublavam as músicas. Hábito facilitado pelo fato de várias bandas tocarem as

mesmas músicas durante a festa. Por vezes, uma só música é tocada várias vezes pela

mesma banda e inúmeras vezes durante a noite.

Provavelmente, a forma mais impactante de estar na “Festa” foi performada por

Márcio. Na parte interna do salão, Márcio alternava alvos de aproximação: ora passava a

mão na parte inferior das nádegas de qualquer moça que estivesse passando, ora esbarrava

com força nos corpos dos homens. Quando o homem se voltava para ele, tomando

satisfação, Márcio oferecia o seu copo para que o outro bebesse, bebia do copo do iminente

oponente e assim se irmanavam. Em um quarto de hora, Márcio passou a mão em pelo

menos 07 moças e esbarrou em no mínimo 05 homens. Ao final, desolado, comentava: -

“Aqui não se arranja mulher não!”

As citações permitem-nos algumas direções: Em princípio por se opor a uma certa

imobilidade de um dançar nordestino em oposição ao jeito de dançar em transformação do

forró universitário. Uma imagem provisória, porém bastante forte dessa mobilidade são as

centenas de motocicletas estacionadas ao redor dos locais de “festas”. Os estacionamentos

lotados de motos ou as dezenas de moto-taxistas parados em frente às portas dos clubes ou

do Parque de Exposição, parecem confirmar que tudo que ali acontece é provisório; que

cada veículo desenhará um destino. Um corpo sobre um veículo em mil trajetórias, pelos

seus mil veículos com um ou dois ocupantes sobre duas rodas.

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A este respeito, aproximamo-nos das intenções de Jean Rouch ao voltar sua câmera

não para as estruturas ou repetições de um África ancestral, mas buscando rituais que

atualizem esses lugares, as materialidades e gestos produzidos nesses encontros. Como nos

diz Predal (1996: 14) : “Ele é o cineasta dos contatos, das mutações que se agenciam

hoje”.Tais contatos não conferem estatuto de verdade a nada que não seja visível, o

etnografável, que guarda ali, no momento de sua expressão, a potência de produzir efeitos.

Dessa forma, as mediações necessárias para se produzir os gestos, os sons, os vestuários ali

presentes são suspensos em nome de sua potência produtiva. Nada é explicado, tudo se

explica pela sua capacidade de agenciamento e produção. Para Gonçalves (2008): A contemporaneidade operada a partir do registro da globalização institui uma conceituação de localidade ao atribuir uma nova semântica que desterritorializa e deslocaliza o local (...) Agora, a localidade se conecta diretamente ao global sem as antigas e necessárias intermediações e as imagens (...) são emblemáticas destas conexões cada vez mais rápidas e diretas, acenando uma transição de comunidades transnacionais não imaginadas pelas imagens digitais. Tal reflexão impõe algumas palavras sobre os marcadores espaciais embalados por

esse ritmo. Se aceitarmos no jogo de oposições estabelecidos entre um Nordeste da

Tradição e um ritmo que ultrapassa os limites daquela região (Vieira, 2000) e se faz ritmo

nacional a partir de redes diferenciadas e múltiplas apropriações, como localizar tais festas?

Como refletir sobre tais apropriações neste recanto sertanejo? Como se pode perceber a

partir do público particularmente indistinto que freqüenta tais festas, o tecno-forró é um

evento de massa particularmente desterritorializado. A temática do “Nordeste”,

pretensamente uma aglutinadora do ritmo forró está quase ou totalmente ausente da

fórmula. Um efeito particularmente visível disto é que tais eventos não contam com o valor

agregado da idéia de tradição.É antes uma fórmula que agencia e reterritorializa relações,

particularmente as de gênero, sem arranhar a idéia de Nordeste como tema privilegiado.

A ausência de uma matriz cultural homogênea, visível e onipresente há muito

deixou de ser novidade para a antropologia. Como nos diz Gonçalvez (2007: 35) A antropologia contemporânea tem se ocupado sobremaneira com a denúncia do inautêntico, produzindo assim um estranho paradoxo: somente a partir de sua denúncia enquanto um objeto inautêntico é que se pode elege-lo enquanto um objeto possível e justificado de investigação, empregando-o, assim, de ‘ autenticidade’ não mais nativa senão antropológica. No entanto, se tudo é híbrido e indistinto qual o alcance prático dessa indistinção

para o refinamento dos problemas, objetos e práticas desse campo? Em confluência a essa

duvidosa potencialidade do fluido para descrever um possível objeto para a antropologia,

nosso campo, o Cariri pode ser caracterizado por uma produtiva relação com as noções de

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deslocamento, mudança ou migração. Ao invés de tais noções porem em dúvida uma

suposta identidade regional, constituem-se como pilares de construção da região.

Aproximamo-nos, portanto, na nossa percepção da relação do Cariri como híbrido,

da proposta de Canclini(1993)de etnografar ao invés de museus, vagas de garagem e

aeroportos, lugares onde um objeto é aproveitado de uma nova maneira, a partir de um

contexto em que se faz útil e produtivo. A “Festa” aparece, portanto, como espaço de

deriva, salvo dos clichês narrativos que compõem o Cariri: ambientes em que sujeitos

dublam letras de música, ensaiam formas diversas de aproximação e, rapidamente, se

dispersam. Ao mesmo tempo a variedade de sujeitos põe em xeque uma suposta unidade de

vivências para os sujeitos FORA daquele espaço. Aos poucos, percebi que a suposta

unidade é composta por uma variedade de público que precisa ser mapeado.A diversidade

de público, a quase virtualidade do ambiente de festa desafiam a narrativa do forró como

um ritmo que viria “debaixo do barro do chão” podendo instaurar-se agora a partir de redes

de impulsos elétricos e sonoros, com guitarras e lantejoulas, acontecendo aqui e ali, de

acordo com a programação das bandas divulgadas em sites da internet, por carros de som

pela cidade e boca-a-boca pelas redes de socialidade.

A “Festa”, portanto, parece um ambiente pródigo na produção de gestos, ações e

representações que, embora não se possa dizer que sejam característicos do Cariri são fruto

de um jogo de forças presente nesse espaço de mutações. Um jogo de forças que se

modifica a partir das posições dos sujeitos, e ao tempo que depende de eventos

unificadores, de mapas identitários, tais eventos possibilitam também um transe dos

sujeitos, por eles envolvidos e acessados, mas nem sempre com eles comprometidos.

Como esperamos ter deixado claro acima, todos os espaços são complexos, não

apenas as metrópoles, sobretudo se não nos deixamos levar pelos mapas pré-existentes que

o formataram e observamos as ações presentes e produzidas nesse espaço.Os sujeitos aqui

descritos são jovens produtores dessa complexidade. Possivelmente as linhas tecidas por

suas vivências possam estancar, sem jamais darem relevo a este ou aquele signo de

identificação para o homem, a mulher ou a região que habitam. Ainda assim, em sua deriva

há uma potência produtiva que instiga a construção do presente artigo.

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Nordestino. Uma Invenção do Falo. Maceió:

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1∗ Professor da URCA, Doutorando pelo IFCS/UFRJ, Bolsista da FUNCAP.

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