RFSB, v.3, n.1

126
Revista Filosófica S ão B oaventura

Transcript of RFSB, v.3, n.1

Page 1: RFSB, v.3, n.1

Revista Filosófica

SãoBoaventura

Page 2: RFSB, v.3, n.1
Page 3: RFSB, v.3, n.1

ISSN 1984-1728

Fae - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura

Curitiba 2010

SãoBoaventuraRevista Filosófica

São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 1-126

janeiro/junho 2010

Page 4: RFSB, v.3, n.1

Copyright © 2008 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura

Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)R. 24 de maio, 135 – 80230-080 – Curitiba PR

E-mail: [email protected].

Reitor: Fr. Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos

Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão

Diretor do IFSB: Ms. Vicente Keller

Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini

Comissão editorial:Dr. Roberto H. PichMs. Vicente KellerDr. Jaime SpenglerDr. João Mannes

Dr. Marcelo Perine

Conselho editorial:Dr. Osmar Ponchirolli

Dr. Mauro SimõesDr. Antônio Joaquim Pinto

Dr. Écio Elvis PizzetaDr. Leonardo Mees

Ms. Solange Aparecida de Campos CostaDr. Renato Kirchner

Revisão: Editoria

Diagramação: Sheila Roque

Capa: Roland Cirilo

Catalogação na fonte

Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23 cm

SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto deFilosofia São Boaventura.

CDD - 105

Page 5: RFSB, v.3, n.1

SUMÁRIO

EDITORIAL

Vicente Keller ..................................................................................................................... 7

ARTIGOS .......................................................................................................................... 11

Autonomia do Sujeito

Hermógenes Harada ........................................................................................................ 13

Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário

Rachel Gazolla ................................................................................................................. 25

Notas a respeito da educação

Gilvan L. Fogel ................................................................................................................. 37

Mito e filosofia grega (Logos, mytos, eros)

Emmanuel Carneiro Leão ................................................................................................. 49

Espírito de geometria e espírito de finesse

Jaime Spengler ................................................................................................................. 61

ARTIGOS-RESUMO DE MONOGRAFIA ............................................................................... 75

O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski

Robson Luiz Scudela ........................................................................................................ 77

Page 6: RFSB, v.3, n.1

Por uma filosofia da carne. A proposta fenomenológica de Michel Henryna obra Encarnação

Frei Paulijacson Pessoa de Moura ................................................................................... 105

TRADUÇÕES ................................................................................................................... 117

Unicidade

Heirich Rombach ........................................................................................................... 119

Page 7: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 7-9, jan./jun. 2010 7

EDITORIAL

Alguns acontecimentos, neste ano de 2010, trazem à tonaum dos pensamentos de Pascal, ao se referir ao ser humano:“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da nature-za, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universointeiro se arme para esmagá-lo. (Um vapor, uma gota d’água,é o bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esma-gasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que omata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universotem sobre ele, o universo a ignora” (Pensamentos, ArtigoVXIII, XI).

Basta lembrar as tragédias acontecidas por causa de tem-pestades, os terremotos no Haiti e no Chile, e tantas outrascatástrofes atribuídas muitas vezes a fatores “naturais”. To-das mostram a atualidade do pensamento de Pascal. O ho-mem, realmente, nada é diante das forças da natureza.

Mas é justamente diante desses fenômenos que sobressai agrandeza e eloqüência do ser humano: mesmo podendo seresmagado pelo universo, ele pode enfrentar todas as adver-sidades e reconstruir o que foi destruído.

Mais: o ser humano é capaz de buscar respostas a este e aoutros problemas que o angustiam e que fazem dele um seritinerante no universo.

Daí surgem respostas e propostas aos seus mais profundosanseios.

Este número da Revista de Filosofia São Boaventura apresentaa contribuição de diversos autores, nos quais destaca-se estagrandeza do ser humano. Cada um a seu modo, mas de for-ma sutil e tênue, discute esta característica de racionalidadeque torna o ser humano ao mesmo tempo único e diferentede todos os demais seres. Algumas frases, extraídas de seusartigos, mostram essa linha de pensamento:

Page 8: RFSB, v.3, n.1

KELLER, Vicente. Editorial8

Tudo isso está vinculado com a compreensão de que o ser humanodeve ser colocado como aquele ente destacado entre todos os ou-tros entes não humanos, como a medida e o fundamento de todasas coisas, portanto, ser colocado como sustentáculo (sujeito) e agente(móvel e acionador) de tudo que é e não é, e isso não somentecomo quem interpreta o universo (mundo, homem e o divino) mascomo aquele que contribui para a transformação do universo e éresponsabilizado pelo sentido do mundo, a partir e dentro do qualeclodem as possibilidades de realização do mundo (Harada).

Estamos tão acostumados com esse modo de processar a realidadeque não sabemos sobre outro, mas há outros, muitos outros. En-tão, como ficam o imaginário e a liberdade nesse quadro? A liber-dade tende a esvaziar-se, isso é claro. Já o imaginário empobrece nasua capacidade de multiplicar as vias de sublimação, de criatividadequanto às defesas, o que torna pouco viável a manutenção da com-plexidade vital. Vitalidade é também forças pulsionais “livres”, ou,em outro modo de dizer, “desejos livres” para objetos não tão fá-ceis de conseguir (Gazolla).

Um dos aspectos reveladores da liberdade, em constituindo a es-sência do homem, é ver no homem coisa nenhuma, algo nenhum,mas só e tão-só um poder-ser, uma aptidão que se revela um insis-tente movimento de transformação e de alteração (= vir a ser ou-tro!) desde si e para si (é isso vida!) e que se chama criação. É daessência da liberdade humana a criação (Fogel).

A existência humana é a viagem que faz o homem entre realizaçãoe realidade. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe natotalidade e nesta irrupção instala estâncias de relacionamento comtudo que existe e não existe. Nesse sentido, o homem realiza emsua existência todas as realizações. Impulsionado pelo impacto oblí-quo da realidade, constrói sua existência num contacto direto daação transformadora do trabalho com as realizações (Carneiro Leão).

A razão adquire assim uma posição particular: de um lado, se em-penha na reflexão para a formulação das definições, distinções eorganização dos dados recolhidos a partir da experiência externa ecientífica; do outro lado, pode também ser constantemente desper-tada para acolher, a partir desta compreensão da finesse, a possibi-lidade de vislumbrar dimensões novas, de onde a experiência exis-tencial lhe concede sempre de novo a possibilidade de investigar(Spengler)

Se um dos princípios da filosofia é poder prestar atenção ao que édado, refletir a respeito disso, no “desabrochar-surgimento” dascoisas, é estar acordado àquilo que Heráclito apresentara (...) por

Page 9: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 7-9, jan./jun. 2010 9

que não perceber que os personagens de Dostoiévski, todos eles“humanos, demasiado humanos”, são possibilidade impulsionadorade reflexão; e, ainda mais, reflexão sobre quem reflete? (Scudela).

Como se viu, no desafio proposto por Michel Henry enquanto umpensar a vida, nada é acidental, porque tudo é sabor, provocaçãode aprender a ser. (...) A discussão pretende atingir uma plataformacomum, uma combinação, para superar certas dificuldades. (...) Daíque na experiência do encaminhar-se, do tornar-se de novo capazde escutar a palavra na profundidade de nossa interioridade (...)Com efeito, os caminhos dessa investigação não querem jamaisconstituir um corpo fechado, mas miram antes o testemunho deuma relação criadora da vida, sendo o que sempre ainda pode setransformar (Moura).

Unicidade pode acontecer a homens e coisas. Ela é imune à diferen-ça de pessoa e coisa. (...) Cada único possui seu próprio tempo. Notempo de um único ocorre também o outro único, não porém comoum único, mas talvez apenas como timoneiro (Vorschotmann). Notempo do outro único se dá também o outro único, mas talvezapenas como casa de férias. De modo bem imperceptível se dá queescorregamos de um tempo para o outro, e o outro único ainda falacomo o único, enquanto que ele é ouvido ainda apenas como otimoneiro. O não perceber que se está transpondo as barreiras pro-vém da incomparabilidade dos dois únicos (Rombach).

Vicente KellerDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura

e Coordenador do curso de Filosofia

Page 10: RFSB, v.3, n.1
Page 11: RFSB, v.3, n.1

ARTIGOS

Page 12: RFSB, v.3, n.1
Page 13: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 13

Autonomia do sujeito*

arti

go

s

Hermógenes Harada

Quando intitulamos a reflexão de autonomia do su-

jeito, estão em jogo dois verbetes: autonomia e sujeito.

Como se trata de reflexões dentro da área da filosofia,

esses termos não podem ser compreendidos simplesmente

num sentido geral e usual, mas devem ser processados

dentro do modo de ser, visto a partir da filosofia. Essa

observação metódica vale para o uso desses termos em

outras ciências e também no uso cotidiano em situações

especiais. Por isso quem usa os termos que vêm da filoso-

fia ou de outro tipo do saber, dentro de um saber ou de

uma ciência positiva particular, na qual a pessoa se exerci-

ta e se forma, deve examinar cuidadosamente o seu uso

dentro de cada ciência respectiva em questão.

Na filosofia, os dois termos estão intimamente liga-

dos. E dizem respeito à maturidade da humanidade na

responsabilização de ser existência humana. Damos aqui

apenas o significado nominal dos termos autonomia e

sujeito, e então, para a compreensão mais própria do

conteúdo desses termos, propomos a leitura de um pe-

queno texto de Kant que se intitula Resposta à pergun-

ta: Que é “esclarecimento?”1.

* Publicação póstuma.1 KANT, Immanuel, “Res-posta à pergunta: Que é‘Esclarecimento?’”, in:Textos Seletos.Petrópolis: Vozes, 1974,p. 100-117. Os comentá-rios desse texto de Kantforam feitos para seremdistribuídos ao(à)s parti-cipantes de um encontrode formação, realizadono Noviciado das IrmãsFranciscanas de São José,em Rondinha, no Carna-val de 2008, coordenadopor frei Dorvalino FasiniOFM (da Província fran-ciscana do Rio Grande doSul).

Page 14: RFSB, v.3, n.1

HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito14

Definição nominal

Autonomia: É uma palavra grega, autonomia (autonomia), e significa: indepen-

dência (política), liberdade, autonomia. Literalmente é composta de auto + nomia e

vem de autonomos (auto + nomos). Auto – os adjetivos autos <masculino>, auté

<feminino>, auto ou auton significam ele mesmo, ela mesma, a coisa ela mesma; o

que é destacado e vem ao encontro como ele mesmo; daí: em si mesmo, por e para

si mesmo; pessoalmente, em pessoa; a partir de si mesmo por seu próprio movimen-

to; todas essas significações nos levam ao significado: imediatamente, diretamente,

absolutamente, (ab-soluto = solto e livre de <ab>). O substantivo nomos vem do

grego nemo = dividir, partilhar, distribuir, e, como o que me foi partilhado, é meu, é

minha porção, pode significar também possuo, assumo como meu. Nomos significa,

portanto, o partilhado, o distribuído, o que é determinado e fixado como meu, teu;

a porção que cabe a cada um; o que assumo sob a minha responsabilidade como

próprio, pertencente a mim; daí também a significação costume, uso, e principal-

mente lei e constituição. Em todas essas significações o tom fundamental humano

da palavra nómos não é de ensimesmamento, mas de responsabilidade como a tare-

fa a mim partilhada, como o modo de assumir o haver e o habitat da terra dos

homens, como ética. Daí, a significação da autonomia atribuída como tarefa e mis-

são da filosofia moderna, representada no movimento denominado Aufklärung (es-

clarecimento): autonomia é a capacidade de, a partir de si, a partir e dentro do assu-

mir a responsabilidade da sua ab-soluta liberdade, dar comando a si mesmo.

Sujeito: O significado do termo sujeito, no nosso uso corriqueiro, hoje, se acha-

tou de tal maneira que mal conseguimos sentir nele a pulsação do élan vital que,

como o termo latino Subiectum e Substantia, na Idade Média carregava ainda eco da

palavra grega hypokeimenon; nosso uso do termo tampouco carrega ainda o entusi-

asmo do zelo e o empenho de busca da autonomia do homem moderno, que vibrava

na definição do homem como sujeito-eu, e que na filosofia moderna inicial impreg-

nava as categorias fundamentais do ser humano como: razão, racional, cogito (Des-

cartes), espírito (Hegel), vontade para poder (Nietzsche) etc. No nosso uso corriquei-

ro, sujeito é sinônimo de o cara e indica o ser humano ao modo da opacidade e

indiferença de uma coisa. A palavra sujeito, no nosso uso, ainda guarda um pouco

do que ela significava no início da era moderna, quando ocorre no adjetivo subjetivo(a),

empregado para destacar o oposto do objetivo-coisa, indicando o modo de ser do

humano, diferente do modo de ser da coisa, da planta e do bruto. Mas conosco, no

nosso uso cotidiano da palavra sujeito, tanto como o cara, como essa coisa ali, esse

Page 15: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 15

arti

go

s

joão-ninguém, mas também, já um tanto “personalizado”, o termo subjetivo é en-

tendido por sua vez como ensimesmado, individualista egoísta. Assim, nessa última

acepção, o termo sujeito acabou se tornando até o oposto e a negação de toda a

autonomia!

Na filosofia, se entende o termo sujeito, no seu uso maior, como indicando o

modo de ser fundamental da realização da autonomia. Nesse sentido de ser funda-

mento, sujeito significa literalmente o que foi lançado debaixo de, como sustentácu-

lo e agente do projeto da nova humanidade2. Tudo isso está vinculado com a com-

preensão de que o ser humano deve ser colocado como aquele ente destacado entre

todos os outros entes não humanos, como a medida e o fundamento de todas as

coisas, portanto, ser colocado como sustentáculo (sujeito) e agente (móvel e aciona-

dor) de tudo que é e não é, e isso não somente como quem interpreta o universo

(mundo, homem e o divino) mas como aquele que contribui para a transformação do

universo e é responsabilizado pelo sentido do mundo, a partir e dentro do qual eclodem

as possibilidades de realização do mundo.

Comentário do texto de Kant acerca do esclarecimento

O nome esclarecimento, segundo o dicionário Aurélio, indica “movimento filosó-

fico do século XVIII que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo

desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. Sinô-

nimos do Esclarecimento são Iluminismo, Ilustração, filosofia das luzes3.

Quando transformado em movimento, seja cultural, político ou social, o pensa-

mento filosófico torna-se mundividência, se não ideologia, e fixa toda uma maneira

de compreender a realidade, cujos sinônimos são vida, mundo, ser, estabelecendo-se

como doutrinas, i. é, material preestabelecido de ensino e de aprendizagem escolar,

explicações, leis e normas, teoria e praxe de visões e comportamentos acerca das três

grandes regiões do ente, intituladas: Deus, homem e universo. O pensamento filosó-

fico, já transmutado em mundividências e ideologias, cuja formulação sempre termi-

na em “ismos”4, quando virado para fora, para a publicidade, constitui o que deno-

2 Na Idade Média, subiectum dizia o mesmo que objectum e indicava o estar assentado na dinâmica da substantia(eco da compreensão grega do sentido do ser denominado hypokeímenon. Cf. Harada, H. “Comentário‘especulativo’ acerca da objetivação”, Scintilla, v.2, n.2, Curitiba, 2005).3 Aufklärung (alemão), Enlightenment (inglês).4 Cristianismo, marxismo, capitalismo, biologismo, cientificismo, misticismo etc.

Page 16: RFSB, v.3, n.1

HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito16

minamos de aspecto exotérico5. O contrário desse movimento ou a orientação con-

trária é a esotérica, termo que vem de esóteros e significa interior, dentro, virado

para dentro, para os de dentro. Daí a conotação de algo secreto, escondido, conhe-

cido somente aos que estão iniciados no segredo do grupo. Filosofia na sua tendên-

cia própria não é exotérica, mas esotérica, por buscar sempre e cada vez de novo os

fundamentos das pré-suposições do nosso saber, principalmente da própria filosofia.

Nessa acepção, ela é des-construtiva. É busca da origem. Nessa orientação própria e

essencial a ela, jamais é fundamentalista, mas sempre fundamental. Por isso, todo e

qualquer pensador, de qualquer época, se for pensador, deve ser considerado dentro

desse aspecto esotérico ou interior, acima mencionado.

O que se apresenta ao público enquanto aspecto exotérico do esclarecimento

como iluminismo, para os que se acham no tradicionalismo (os tradicionalistas), den-

tro do cristianismo sabe a racionalismo, relativismo, progressismo, cientificismo, sim

ateísmo. Para os que se acham no progressismo (os progressistas) sabe a autonomia,

antiautoritarismo, libertação, progresso, esclarecimento, maturidade humana.

A seguir vamos pinçar alguns pontos do texto para o destaque reflexivo, para

oferecer um subsídio para a reflexão autônoma de cada um de nós.

A importância da necessidade de esclarecimento

Importância: Importância significa literalmente a ação de carregar para dentro

(in-portar). Somente quem se carrega a si mesmo para dentro de uma tarefa está por

dentro do seu encargo, da sua missão, da sua vocação. Quem não se importa, jamais

pode assumir o trabalho para o qual foi designado ou para o qual ele mesmo se

designou. A tomada de consciência desse saber da importância é decisiva para o

sucesso do trabalho buscado na formação. Quem toma con-sciência dessa im-portância

sente a necessidade do esclarecimento.

Sentir aqui não é sentimento, nem sensorial nem sentimentalista. É muito mais

real, mais concreto, a ponto de o homem sentir a necessidade de se levantar e come-

çar a fazer alguma coisa, alguma coisa que seja bem próxima dele, por menor e

insignificante que ela seja.

5 Exóterikos, de exóteros. Exóteros = fora; exóterikos = externo, virado para fora; para os leigos, para os nãoiniciados, usual, compreensível a todo mundo; popular.

Page 17: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 17

arti

go

s

Necessidade, aqui, é algo como imposição, algo como situação na qual não há

mais nem escolha nem subterfúgio: é um cerco corpo-a-corpo de si e para si mesmo.

A esse tipo de imposição6, os antigos chamavam de possibilidade. Nós podemos,

nós estamos na possibilidade, estamos na potencialidade real, quando fomos inseri-

dos nessa necessidade premente. Por isso, na filosofia de hoje, se diz: a possibilidade

é mais real do que a realidade7.

Quando a necessidade se torna possível, i.é, quando a necessidade, seja de que tipo

for, toma corpo e se nos impõe, quando sentimos na carne o poder dessa necessidade,

com outras palavras, quando a necessidade se torna possível, potente, então estamos

convocados, em todo o nosso ser e em nosso não ser, a fazer alguma coisa conosco

mesmos, a fazer uso do que somos e não somos para trabalhar8, para nos realizarmos.

E a primeira coisa ou a causa a ser realizada é esclarecimento. Eu devo saber. Mas

atenção: não no sentido de eu primeiro devo saber isso ou aquilo para poder agir. Mas

sim: devo buscar como necessidade, me esclarecer, ou melhor, saber. Nesse caso, saber,

buscar a compreensão não é nenhum luxo, não é o cultivo sofisticado da informação,

do conhecimento, mas a límpida necessidade de saber. Este saber tem tudo a ver com

sabor, não no sentido astênico e “sofisticado” em que caímos quando falamos de sabe-

doria da vida, de sabedoria contra o saber racional etc., mas como quando na acepção

da língua alemã se pergunta, por exemplo, se alguém gosta de uma comida, então se

diz: Mögen Sie es? O senhor gostou (i.é, o pode)?9

Em vez de saber, diríamos, portanto, poder, e poder no sentido de pode, i.é,

realiza, no sentido de apreender e compreender de que se trata.

A grande tradição do Ocidente, dentro de cujo vigor se acha o que denominamos

de espiritualidade cristã, denominou esse poder de realizar a realidade, essa capaci-

dade de realização da realidade, de razão. A esse poder, a esse vigor da possibilidade,

i.é, da necessidade possível, Kant chama de uso da razão ou do entendimento.

Em Kant distinguimos dois momentos do racional: o momento entendimento

(Verstand) e o momento razão, ou melhor, o fundo (leia-se pro-fundo) racional

(Vernunft). Verstand (do verbo ver-stehen: stehen = ficar, estar de pé), em referência

6 Vida, história, ser, i.é, o ter-que-ser.7 Observemos como as nossas possibilidades não são necessidades, mas veleidades as quais desejamos, mas nãoqueremos de fato como dom de uma conquista. Nós quereríamos....8 O povo diz o provérbio: Pode quem pode.9 Possibilidade (Möglichkeit) vem do verbo mögen.

Page 18: RFSB, v.3, n.1

HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito18

ao seu vigor, se baseia na Vernunft (vem do verbo ver-nehmen: nehmen = tomar,

receber). Verstand, i. é, o entendimento é o vigor do saber que se firma e fica em pé

como uma compreensão concreta e bem constituída. Mas a dinâmica do poder sur-

gir, crescer e se consumar desse saber está baseada no fundo de si, que é a Vernunft,

i. é, a recepção atenta e obediente, i. é, ob-audiente aos acenos do toque do abismo

insondável e inesgotável da possibilidade da necessidade de ser. Vernunft, i.é, o ra-

cional, é como o ponto de salto, virado de um lado para a possibilidade do abismo

insondável e inesgotável do ser como límpida e pura recepção do toque de inspira-

ção e ao mesmo tempo a contensão da eclosão do mundo como uma das realizações

da realidade. Se chamarmos de entendimento e de racional, Verstand e Vernunft a

esse modo de o homem ser, então o homem está no uso da Vernunft e do Verstand

como lugar de esclarecimento de todas as coisas, como ponto de salto do mundo

enquanto exotérico e da sua possibilidade como a profundidade do abismo de ser

como esotérico. A responsabilização para ser e estar sempre de novo nesse ponto de

salto é a autonomia da razão, que em Kant recebe o nome de liberdade. E então:

aquela “pessoa”, que é o “único senhor no mundo diz: raciocinai (i.é, fazei uso da

razão), tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!”. Esse impe-

rativo é a palavra de ordem do esclarecimento.

Diante de uma tão grande proposta de responsabilidade pelo esclarecimento (i.

é, pela inserção no vigor e na vigência do uso da razão para o nascimento, crescimen-

to e consumação na liberdade, que é a capacidade de obedecer), como anda nossa

mentalidade a respeito da espiritualidade? Como anda o medo e o acanhamento

diante do esclarecimento?

O uso privado e público da razão

O uso privado da razão:

Embora muitas vezes o universal e o público estejam misturados, é preciso esta-

belecer a distinção entre eles. Público é o que aparece como a estrutura institucional

visível publicamente. O uso da razão que eu faço como pertencente à estrutura insti-

tucional visível publicamente é o uso privado da razão. A pessoa que pertence à

estrutura institucional visível publicamente recebe a sua denominação do cargo que

ele ali ocupa, por exemplo, sacerdote, juiz, militar, financista, professor, terapeuta

etc. Enquanto incumbidas por encargo público de pertencer e exercer a função que

lhe foi designada publicamente, essas pessoas fazem uso privado da razão. O uso da

Page 19: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 19

arti

go

s

razão que essa pessoa faz, portanto, enquanto sacerdote, juiz, militar, economista,

professor etc., não é uso público da razão. É uso privado, porque está privatizado,

particularizado ao encargo que ocupa e à lógica que rege a estrutura institucional

visível publicamente desse encargo. Aqui, tanto numa instituição privada como numa

instituição oficial (no sentido em que a nossa publicidade usa a palavra privado), se

faz e se deve fazer o uso privado da razão. Diz, portanto, Kant: “Denomino uso

privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou numa

função a ele confiada”.

É interessante observar que as palavras privado e público se referem ao uso, e ao

uso da razão. O uso da razão diz respeito ao que o homem tem como o mais próprio,

a saber, à essência do seu ser. É o que vale para cada pessoa, a saber, para todas as

pessoas que são e devem ser homem; diz Kant: “o espírito (leia-se: o sopro vital) de

uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por

si mesmo”.

Quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu

ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. Cada pessoa é igual a todas as

pessoas.

Se eu represento esse “cada pessoa” como “esta e/ou aquela” pessoa, estou

tratando a pessoa como se fosse uma, duas, três coisas. Assim, nesse caso não há

nenhuma diferença entre pessoa e coisa físico-material. Agora tentemos enfileirar os

diferentes entes um ao lado do outro: esta pedra, esta planta, este animal, este homem,

esta mulher, esta criança, este ancião, este anjo, este Deus. O que aqui está indicado

como ente individual (este<a> e aquele<a>) não leva em consideração as diferen-

ças dos entes: (pedra, planta, animal, homem, mulher, criança, ancião, anjo, Deus).

Mas atenção: também não leva em conta a própria diferença que em concreto e de

imediato caracteriza a coisa material na sua materialidade. Nivela, neutraliza, in- ou

des-diferencia tudo, dizendo que se trata de isto e isto e isto e isto e isto: . Se

eu aumento o volume espacial quantitativo ou o diminuo assim: ou ou

o esvazio , em direção ao espaço vazio infinito ou o pontualizo ..., reduzindo-o

infinitesimalmente até reduzi-lo ao espaço vazio ou cheio indeterminado e o chamo

de nada, tudo isso em nada mudou o modo de ser representado como indivíduo, i.é,

como a última porção quantitativamente indivisível; essa variante toma forma de

extensão quantitativa, desde o ponto infinitesimalmente mínimo até o máximo. Esse

modo de encarar o ente, seja o que, quem e como for, – ser, vida, Deus, pessoa, amor,

ódio, espírito, alma, matéria, idéia, razão, coração, espiritualidade, ateísmo, mate-

Page 20: RFSB, v.3, n.1

HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito20

mática, geometria, sim até o nada – esse modo de re-apresentar ou tornar presente,

i.é, representar o ente, é o horizonte, perspectiva, a partir e dentro da qual hoje

vivemos, somos e nos movemos, tanto no âmbito das ciências, quanto nos afazeres

cotidianos da vida. Trata-se aqui de um sentido do ser bem determinado, que tomou

conta de nós e determina o tom e a cor fundamental do nosso ser, saber, fazer e

sentir. Muitas vezes concebemos o modo desse determinado sentido do ser como o

corporal, o sensorial, o físico, o material. Na realidade, o corporal, o sensorial, o

físico, o material já estão desaparecidos, não são vistos, pois foram neutralizados,

reduzidos, des-diferenciados como apenas maior ou menor volume quantitativo da

extensão. Se isso que viemos refletindo até agora é de fato assim, então torna-se

impossível admitir ou ver que “cada pessoa é igual a todas as pessoas”.

Na paisagem do sentido do ser determinado como extensão quantitativa, há só

igualdade formal, e a diferença é apenas numérica, sem nenhum conteúdo. Esse

modo de ser formal, apenas lógico, limpidamente homogêneo, sem nenhum conteú-

do ou diferença a não ser a numérica, esconde em si um grande enigma, pois, nessa

ab-soluta in-diferença, nessa “superfície” lisa de homogeneidade, pode estar retraí-

do um sentido do ser cujas imensidão, profundidade e pulsação vital contidas ace-

nam para o abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser. Mas tudo isso só

se torna de algum modo “visível” se estivermos nos evadindo do sentido do ser

dominante na nossa epocalidade. Mas, como tudo isso já se refere a uma outra

tarefa da reflexão, deixemos assim incompleta a nossa observação, e deixemos para

uma outra ocasião a tentativa de tematizar esse assunto.

Acima dissemos: quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como es-

sência do seu ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. O que vale para

cada pessoa – como essência do seu ser – vale para todas as pessoas! Que coisa é essa?

Dizemos é o comum. Essa coisa comum é real, é algo que está em cada um dos indiví-

duos? Se dissermos sim, é real, é algo, e entendermos o real como algo, dentro da

perspectiva do sentido do ser da coisa, entendida como a extensão quantitativa, acima

descrita, então cada pessoa-coisa coincide com todas as pessoas-coisas enquanto

extensão quantitativa coisa, mas diferem entre si apenas numericamente. Disso se se-

gue que indivíduo é 1; comum é mais do que 1, é: 1+1+1+1. Comum é maioria. E o

que determina a comunidade, a qualidade de ser comum é número. Esse tipo de

comunidade pode ser chamado de generalidade. Comum é o geral10.

10 Aqui se entrecruzam dois tipos de modo de ser comum, o da generalização formal matemática e o do uni-versalda ontologia substancialista, mas já no esquecimento da sua própria origem.

Page 21: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 21

Quando, porém, nos libertamos da dominação do sentido do ser determinado,

acima descrito como constitutivo do modo de ser quantitativo-extensional-numéri-

co, começamos a ver uma comunidade toda própria, que coincide com a unidade,

formando um todo que não é soma dos algos 1+1+1, mas toda uma paisagem,

denominada mundo, a saber, universo, uni-verso, verso, virado, vertido ao uno. Aqui, o

que conta não é a qualidade diferencial de um ente para com outro, mas o que denomi-

namos de diferença de cada ente no seu ser; é a prenhez, a pregnância de cada ente no

seu ser, a densidade da participação na tonalidade fundamental, que retraída no fundo

caracteriza o colorido dominante da paisagem, mas que não ocorre em e por si como

uma coisa ao lado, no fundo, atrás dos elementos constitutivos da paisagem; neles,

porém, em toda parte, cada vez de jeito próprio, se torna, vem à luz, vem a si como

tônus vital entificante, em sendo. Deixar ser o mundo, cada vez no seu próprio ser é a

essência do homem, enquanto o homem é o ponto de salto da eclosão do mundo a

partir e dentro do sentido do ser que o toca como uma das insondáveis possibilidades

de ser. Esse modo de ser da passagem como realização da realidade, do abismo inson-

dável e inesgotável da possibilidade de ser é o que a grande tradição do Ocidente cha-

mou de razão. Estar no uso da razão é por isso uma ação universal, tarefa de respon-

sabilidade comum, a cura do espírito (leia-se: do sopro vital) de uma valoração, validez

e valentia em receber e assumir o próprio valor e a própria vocação de cada homem

de pensar por si mesmo na plena e ab-soluta liberdade. Exercer essa tarefa inalienável

é o que no texto se denomina: o uso público da razão.

O uso público da razão:

Kant define o que é o uso público da razão, dizendo: “Entendo (...) sob o nome

de uso público de sua própria razão aquele que qualquer11 homem, enquanto escla-

recido12, faz dela diante do grande público do mundo letrado”. Assim, primeiramen-

11 Leia-se: cada homem.12 O termo aqui traduzido por sábio é em alemão Gelehrter; a inconveniência de traduzir Gelehrter por sábio é que,para muitos de nós, a palavra sábio sabe à sabedoria, no sentido quase místico, digamos como o modo de saberque não fica somente no racional, mas recebe a unção toda própria da vitalidade e do sentimento, do coração. Se,porém, entendo o sábio, como aquele que sabe, e entendo o saber como o que foi conquistado com grandeempenho de aprendizagem, que em vez de me fazer um poderoso sabe-tudo, e um ‘ensinador’ prepotente e‘onisciente’, me conduz ao aprender e, em aprendendo mais e mais, me leva a ensinar o aprender como cordial eradical busca de se assumir, de se usar, e se tornar sempre mais clarividente em assumir o privilégio de ser atinenteao logos, à razão universal, então o termo sábio está dizendo o que o termo Gelehrter quer dizer. Esse modo de serna responsabilidade cordial e radical de estar no uso da razão, digamos na ética da razão, é o esclarecimento. Essemodo de ser se chama mundo letrado, i. é, totalidade dos que livremente se assumem como aqueles que lêem:Leserwelt. Com outras palavras, são o mundo, o modo de ser dos que trabalham o ler ou, dito com outras palavras,o mundo da escola, do ensino e da pesquisa desse grande empreendimento humano do aprender. ar

tig

os

Page 22: RFSB, v.3, n.1

HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito22

te, o termo público, na expressão uso público da razão, significa universal, no senti-

do de virado, versado, concentrado no único necessário, que é a essência do ser

humano, aquilo que vale para cada homem como o que ele tem de mais próprio, a

razão. No Ocidente, na sua história o que é indicado aqui por razão em Kant recebeu

vários nomes, como logos, noûs, alma (psiché), pensar, espírito. Não se trata, portan-

to, em primeiro lugar das faculdades do homem chamadas razão, vontade e senti-

mento. Todas essas faculdades estão contidas no que aqui chamamos de razão.

Ao mesmo tempo, o termo público significa, conforme o contexto, “coisas” diferen-

tes. Mencionemos, pois, a seguir, em alguns pontos o que o termo público pode estar

dizendo: 1. No caso em que, pois, público significa universal, não se trata propriamente

de publicidade, não está indicando se são todas as pessoas, se muitas ou poucas ou

apenas uma única pessoa que faz(em) o uso da razão, mas, sim indica o acontecimento

de – seja uma, poucas, muitas ou mesmo todas as pessoas – cada vez pessoalmente (i.

é, não terceirizando a responsabilidade de usar bem a razão i. é, assumindo o vigor de

compreender, querer e fazer livremente como a sua própria causa) estar no empenho e

desempenho da essência universal do ser humano: da razão. Público pode significar

ainda: 2. a massa de gente reunida; 3. a maneira de manifestação, de apresentação do

ser humano, em se ajuntando para formar coletividade de vários tipos, delimitando essa

coletividade em seu interesse, finalidade e estruturação, como um todo: trata-se, pois,

de público privado ou privativo, por exemplo, cargos públicos, profissões etc. Quando

cada pessoa esclarecida assume a tarefa de servir à humanidade, engajando-se num

encargo público privado, ela está fazendo uso privado da razão. Por isso, diz Kant:

“Denomino uso privado aquele que o esclarecido pode fazer de sua razão em um certo

cargo público ou função a ele confiado”.

Conclusão

Propor uma conclusão na leitura de um texto filosófico não significa que se resol-

veu um problema e se chegou ao fim de uma questão, de tal sorte que se fechou uma

questão, podendo-se assim com segurança e tranqüilidade construir a sua própria

vida, depois de corrigir uma falha. Concluir uma leitura filosófica de um texto signifi-

ca, antes de tudo, ir ao fundo de nossos problemas e ali no fundo abrir-se à questão.

A questão que se nos abre no fim da leitura desse pequeno texto de Kant, vem

exposta na seguinte conclusão:

Page 23: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 23

Ao falar do uso privado e público da razão, Kant não está tratando do problema

de como resolver e harmonizar uma compreensão madura e assumida entre a nossa

vida particular e a nossa vida social. Ele fala, sim, da responsabilidade pessoal e

inalienável de nascer e crescer na capacidade de assumir nossa liberdade e nos tor-

narmos nela esclarecidos, i. é, tornar-nos esclarecidos na autonomia do uso da razão.

Com outras palavras, aqui não se trata da nossa vida privada, particular, subjetivo-

“pessoal”, mas da tarefa uni-versal, que toca a cada um de nós no mais íntimo e no

mais próprio da essência humana, a saber, alcançar a maturidade do esclarecimento.

De que se trata? Que questão, i. é, que busca é essa que se nos abre ao lermos uma

afirmação de Kant como essa, quando ao se tratar do uso público da razão, ele nos

diz: “Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz:

não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai!

O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz:

raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!)”.

arti

go

s

Page 24: RFSB, v.3, n.1
Page 25: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 25

Rachel Gazolla *

Resumo: Este artigo analisa o conceito de liberdade como um valoratual, e suas relações com o tema da violência e do imaginário. NaGrécia Antiga, ser livre correspondia a não ser escravo; na sociedademoderna, ser livre significa ser cidadão entre outros cidadãos. Todaviaisso não expressa toda a verdade. Segundo Freud, liberdade tem a vercom imaginário, que é um fator do poder de sublimação da psique.Sublimação é saber escolher um objeto para a psique, quando não setem o que se quer; a liberdade e a violência têm a ver com essa boa oumá escolha sublimatória da psique. No nível da sociedade, porém, apsique é bombardeada por avalanches de sugestões de desejos, for-mando um processo imaginário moldado ao mundo circundante. Tra-ta-se do assim chamado processo de massificação de valores e ações.Nesse ponto, o artigo toca na questão da massificação: um processoque retira os contornos próprios, as qualidades específicas, as diferen-ças individuais e identitárias de cada um. É um processo de alienação eabdicação de si próprio, via de regra sem consciência disso. Talvez esseseja um dos piores modos de violência no que tange à liberdade.

Palavras-chave: liberdade, imaginário, sublimação, violência,massificação.

Abstract: This paper analyzes the concept of freedom as a presentvalue, and their relationship to the topic of violence and the imaginary.In ancient Greece, being free meant not being a slave; in modernsociety, being free means being a citizen among other citizens. Howeverit does not express the whole truth. According to Freud the conceptof freedom is related to the imaginary, which is a power factor ofsublimation of the psyche. Sublimation is how to choose an object,when you do not have what you want; freedom and violence arerelated to this good or bad choice sublimating. But at the societallevel the psyche is bombarded by an avalanche of suggestions ofdesires, forming an imaginary process shaped to the world aroundthem. This is the so-called process of massification of values and actions.At this point, the article touches on the issue of massification: a processthat takes the personality, the qualities specific, the individualdifferences and the personal identity of each. It is a process of alienationand abdication of its own, usually without knowing it. Perhaps this isone of the worst forms of violence, with regard to freedom.

Keywords: freedom, imaginary, sublimation, violence, massification.

Reflexões em torno da liberdade,violência e imaginário

* Rachel Gazolla é prof. dra.em História da Filosofia Antigana PUC-SP([email protected]). ar

tig

os

Page 26: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário26

Introdução

Somos livres por natureza, afirmaram John Locke no século XVII e Rousseau no

século XVIII. Essa idéia, na qual acreditamos e pensamos ou queremos praticar, é um

valor indiscutível nos dias de hoje e ninguém, em sã consciência, o desprezaria, ape-

sar de não estar completamente objetivado. No entanto, nem sempre esse valor teve

o sentido que hoje tem. Há uma história a ser feita sobre essa noção, e se ela veio a

ser importante e avidamente procurada, isso se deve ao fato de que não a vivemos

plenamente. Afinal, só se procura o que não se tem facilmente à mão. Liberdade é

um valor que nossa civilização ainda não efetivou como gostaria – se é que efetivará

–, é um paradigma para um tipo de sociedade datada historicamente, da qual somos

os herdeiros mais diretos: a sociedade que fundou o Estado Moderno e que carregou

no bojo de sua bandeira a classe burguesa.

Sabemos o que significa liberdade? Apesar de seu valor específico para nós ter

data recente, a palavra existe ao menos desde a Grécia arcaica, se tomarmos a Grécia

como raiz da civilização ocidental. Ser livre é não ser escravo: este é um primeiro

sentido que recolhemos, mas é uma resposta pouco esclarecedora. Foi essa a noção

das antigas fratrias. Ou se era livre ou escravo de guerra, eram as duas noções que

apareciam juntas. Pensadores mais próximos a nós, os citados acima, diferenciaram

liberdade de licenciosidade e criaram o contrato social e a nomeada sociedade civil,

como se sabe, marcando os valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade que

transportam o homem a uma nova visão do mundo, criadora do éthos moderno.

Nesse éthos, o valor “liberdade” vem marcar o que chamamos de subjetividade, isto

é, uma interioridade que sabe de si mesma, que tem responsabilidade para com o

outro e se vê igual a todos no tecido social, como se o gênero humano pudesse

transformar-se em átomo social e tivesse a identidade dada pelo contrato social: ser

cidadão. Mais que homens, somos cidadãos.

A esfera cívica nessa estrutura, com seu público e privado a princípio mal deline-

ados (como será visto adiante), passa a assentar-se na preservação de cada cidadão

como indivíduo livre, igual ao outro cidadão e fraterno, partícipe de uma mesma

totalidade que expressa nosso ser social, que é, afinal, nossa racionalidade, nossa

subjetividade. Dizer isso parece óbvio exatamente porque é essa a nossa atual ideo-

logia. Ser livre depende, assim, de um tipo de relação específica entre os homens

pertencentes a certa ordenação histórica, e só a essa ordenação. Ser licencioso, ao

contrário de ser livre, implica no desprezo ao outro quanto à sua subjetividade ou

racionalidade. Sem saber do outro, ou desprezando o outro, a ação estará à margem

Page 27: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 27

da cidadania. A licenciosidade caminha, desse modo, a par e passo com a falta de

amizade e contra a liberdade cidadã do Estado Moderno.

Mas dizer isso não é tão esclarecedor como parece. Se prezamos a liberdadecomo cidadãos, devemos prezar a liberdade de cada um como pessoa e não só comocidadão, o que é bem mais difícil para teorizar e praticar. A dificuldade está no fato

de que a cidadania é uma roupa necessária que vestimos modernamente, mas nempor isso nosso ser como pessoa – e não como subjetividade individual, o que é dife-

rente – segue essa roupagem. Talvez queiramos, em muitos momentos da vida, aquebra da ordem ético-política em nome de nossos desejos de liberdade imediata,dessa liberdade primária, pode-se dizer, que veio a ser o nome para licenciosidade.

Então, por mais que respeitemos em pensamento a noção de liberdade, de amiza-

de, de cidadania, o que sentimos não parece ser isso. Talvez, não seja suficiente explicarliberdade sem a vontade que temos de quebrá-la, e se assim fizermos adentramos no

que denominamos violência. Nesse novo ângulo, temos que refletir em dois camposentremeados por um terceiro: a) liberdade; b) violência; c) sentimentos.

Ora, o sentir está intimamente relacionado ao que imaginamos ao sentir, ao quesabemos para sentir. E o que sabemos, de fato, sobre o que nos ocorre? O imaginário

aparece como ferramenta primeira para pensar os três campos acima citados, pois aoagirmos temos imagens, sentimentos e pensamentos fundando nossa ação. Apresenta-

remos alguns aspectos do problema, dada sua complexidade, mas esperamos que se-jam suficientes para abrir um diálogo. Para isso, elencamos sete itens que devem orde-nar esta exposição e facilitar a reflexão sobre o imaginário em relação à liberdade, vio-

lência e sentimentos, caminhando também por campos tangenciais à filosofia.

1 Freud, o processo de sublimação e a liberdade

Pode-se dizer que para Sigmund Freud, o imaginário é o campo da nossa psique

formado pelas imagens, figurações de todo tipo, sendo o receptor das afecções sen-

síveis externas, e por vezes internas, a partir das quais se cria e se guardam as ima-

gens. Para a psicanálise, e escolhendo o texto “O ego e o id”, de 19231 para melhor

explicar o que queremos, é dito:

...Todas as percepções que são recebidas de fora (percepções sensórias) e de dentro –

o que chamamos de sensações e sentimentos – são conscientes desde o início. Mas, e

1 In Obras Completas, volume XIX, São Paulo: Ed. Standard Brasileira, 1976, p. 13-80. arti

go

s

Page 28: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário28

aqueles processos internos que podemos... resumir sob o nome de processo de pen-

samento? Eles representam deslocamentos de energia mental2 que são efetuados em

algum lugar no interior do aparelho (psíquico) à medida que essa energia progride

em seu caminho no sentido da ação. Avançam eles para a superfície, fazendo com

que a consciência seja gerada? Ou a consciência abre caminho até eles?... (p. 32)

Claro que tal pergunta é filosófica, e Freud sabe de sua dificuldade. Um pouco

mais adiante, ele afirma que “...pensar em figuras... é apenas uma forma muito in-completa de tornar-se consciente. De certa maneira, também elas se situam maisperto dos processos inconscientes do que o pensar em palavras” (p. 34-35). Desse

modo, as percepções externas que ajudam a formar o ego ou o consciente, para ele,costumam ser muito ricas, mas há os “acontecimentos” internos, que dizemos serem

subjetivos, e estes também incidem no sistema perceptivo consciente e pré-conscien-te e não são externos. Produzem, inclusive, sensações e processos psíquicos muito

profundos que não têm fundamento na realidade empírica. Claro está que tal visãorealmente torna complexo pensar nosso conhecimento e sentimentos.

No sentido de esclarecer nossa reflexão, usaremos a expressão memória imaginá-ria para indicar quer sejam as sensações, imagens, sentimentos, pensamentos advin-

dos e moldados pelas próprias afecções que nos chegam, quer nascidos dos própriosprocessos internos que incidem no imaginário e na sua memória figurativa, pois

externo e interno não vão, neste caso, um sem o outro. Freud parece dar ao imaginá-rio um tom negativo mais que afirmativo, como veremos. Esse campo de imagensvem a ser o conjunto de fantasias ou representações recebidas, eventualmente repri-

midas e sublimadas e que, apesar de nossa consciência, costumam trabalhar interna-mente quase por conta própria, ou seja, de modo inconsciente para o ego e seus

pensamentos e linguagem.

Como se sabe, a sublimação é um processo de defesa fundamental para nossasobrevivência, é um processo civilizatório que pressupõe um feixe pulsional, ou ener-gético, ou libidinal em sentido amplo3, que deseja algo mas se vê obrigado a trocar o

desejo objetal por outro objeto. Por vezes, troca bem, outras vezes, troca mal. Bem emal são ditos, aqui, no sentido de maior ou menor sobrevivência psíquica, maior ou

menor sofrimento psíquico (logo, também corpóreo). Como as pulsões pressionam ohomem sem que o ego venha a saber sobre elas enquanto tal, somente percebe, e

quando percebe, seus sinais na forma de uma espécie de “pressão” que se canalizará

em busca de algo desejável para estabilizar-se.

2 Sabe-se que energia mental é o que, em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud nomeará de libido.

Page 29: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 29

Assim, desejar algo que se sabe o que é já é indicativo de um longo caminho

anterior. Este caminho se oculta e vem a emergir, quando conscientizado, como de-

sejo de algo determinado, que vejo e posso agir para obter, sendo tal objeto capaz de

retirar a pressão sentida como dor ou pressão ou desprazer: a sede se acalma com

água, a saudade com a visão do ser amado, a pergunta, com a resposta, e assim por

diante. Esse “algo” que acalma a pressão pulsional-desejante é, por vezes, “escolhi-

do” pelo homem e conseguido por ele. Mas nem sempre, de modo que aparente-

mente sem exercermos a escolha ou sem termos o objeto desejado, a pressão pode

desaparecer e o desejo se acalma. Por quê?

Quando bem conduzidas, as pulsões chegam a bom termo, no sentido de que o

objeto escolhido cumpre o propósito do processo; se mal conduzidas, a pressão con-

tinuará mesmo após a escolha do objeto de desejo, e é aqui que a sublimação tem

entrada, pois se o homem busca e jamais se tranqüiliza, adoece necessariamente. O

processo de sublimação é, por isso, um processo de defesa importante.

Mesmo que essas colocações sejam muito gerais, o que se nota é que o homem

é um ser de carência e de busca de não-carência, o que a filosofia, desde a Grécia,

não negaria. Para Freud, a sublimação é um processo necessário à civilização porque,

para ele, civilizar-se é aprender a reprimir-se, é saber escolher bem um objeto de

desejo quando não se pode ter aquele que se quer, ou no momento em que se quer.

É, ainda, saber trocar de um objeto desejado para outro que venha a confortar a

psique e estabilizar a pressão pulsional. É um processo difícil para o ser humano e

indica, segundo Freud, nossa maturidade ou imaturidade. Uma sublimação, quando

conveniente, liberta-nos de algum modo das frustrantes repressões a que estamos

continuamente sujeitos; ou é ineficiente nos caminhos que se escolhe para defesa do

sofrimento, de modo que o objeto que servirá para o processo de sublimação não

cumprirá sua “função tranqüilizadora da psique”.

Esse dinamismo psíquico vai formando uma espécie de “geografia” de cada psi-

que, quer no sentido de construí-la, ou de destruir nossa vitalidade psíquica. Em

sendo assim, essa leitura da face negativa do imaginário aparece a partir dos jogos

variáveis de repressões-desejos-sublimações, jogos que nem sempre conhecemos e

nem sempre ganhamos quando conhecemos. Essa memória imaginária, como disse-

mos, é sempre uma válvula de escape para a repressão, quer seja eficiente ou não em

seu modo de processar impulsos desejantes. E se o poder do imaginário tiver um

3 Veja-se ensaio de S. Freud Psicologia de grupo e análise do ego. arti

go

s

Page 30: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário30

colorido mais negativo que positivo, como talvez tenha, cremos que isso se dá por-

que quase nunca sabemos do que realmente se passa em nós, ou não lembramos, e

a sublimação que deveria ser criativa na sua troca de objeto, transformadora e vital,

costuma repetir-se no modo de trocar objetos desejantes, o que faz de uma pessoa

um ignorante sobre si mesmo, ingênuo em suas interpretações do mundo e do Ou-

tro, viciado em suas leituras. As conseqüências para o agir costumam ser desastrosas,pois somos mais determinados do que determinamos nossa vida, nessa perspectiva.

Mas é preciso explicar melhor este último ponto, uma vez que nele está imbricada

a noção de liberdade e violência, como já se adivinha.

Metaforicamente, esse poder de sublimar pode dirigir-nos como marionetes ao

automatizar pensamentos e ações segundo princípios que desconhecemos, compro-

metendo a leitura de nós mesmos e do mundo, logo, nosso processo de sublimar osdesejos. O imaginário, a partir do qual sublimamos, costuma ser hegemônico, de

modo que nossas interpretações emergem dele de modo dogmático. Expliquemos.

Se o imaginário é criado a partir de sensações, sentimentos, figurações e pensamen-

tos sobre as coisas que nos afetam; e se os impulsos buscam, pela via do desejar, sua

realização, tem-se que são as imagens que permeiam os pensamentos para que se

encontre ou não a coisa desejada, ou outra coisa para colocar no lugar da desejada,se for o caso. Se desejo um sorvete e não posso porque estou febril, terei que subli-

mar tal desejo e procurar outro objeto compensatório: busco a imagem de algo para

trocar pelo sorvete (um pudim, por exemplo) ou nego esse desejo ou o reprimo,

como faz a raposa na fábula das “uvas verdes”, o que não é uma boa saída.

Então, a raposa não fez uma boa sublimação porque negou seu desejo sem

trocá-lo por outro, racionalizou, como dizemos, mas, na fábula do corvo e do queijo,

ela acaba conseguindo algo quando obriga o corvo vaidoso a abrir o bico para cantar

e ela apanha o queijo que cai. A astuciosa raposa, nesta última fábula, resolve bem

seu problema, o que nem sempre conseguimos resolver.

Há casos extremos em que pessoas imaginam objetos impossíveis: um homem

delirante, por exemplo, quer voar com seus próprios braços; um homem sem dinhei-

ro e com oitenta anos de idade deseja seduzir uma jovem de dezoito. Como será o

processo de sublimação? Não terá bom resultado. Temos mais dificuldades se

estruturamos imagens impossíveis ou inexistentes, e nem sempre sabemos que assim

fazemos. Então, as sublimações de cunho neurótico ou mesmo psicótico são aquelas

viciadas, ou eivadas de sombras que nada conseguem como compensação nas trocas

possíveis. Claro que as trocas, quando há, não resultam em vitalidade para a psique,

e os impulsos desejantes se acumulam sem bons caminhos, pressionando para saí-

Page 31: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 31

rem, o que leva à dor. Aquele que não tem critérios para saber do bom uso desse

importante processo de sublimação, não saberá o que é melhor para si nas escolhas.

Ora, a ética está comprometida nessa leitura. Como pensar a liberdade em relação

ao imaginário? Por que a psicanálise pode servir de ajuda para esta reflexão? Já adianta-

mos que o imaginário tem um lado determinador de nossas ações e, ao mesmo tempo,

tem potencialmente quase tudo de que necessitamos para a tranqüilidade da alma se e

somente se soubermos usar de bons critérios para escolher, na medida do possível,

nossos objetos de desejos e suas trocas. Vejamos, então, o segundo item.

2 Imaginário e massificação

Na obra A razão cativa, S.P. Rouanet é feliz. Recolhe o problema que nos interes-

sa com referência ao imaginário e a ponte com o social quando pergunta se esse

processo imagético-sublimador, exposto em detalhes por Freud com grande amos-

tragem de casos clínicos, tem ressonância nas classes sociais? Explicando melhor: se

o imaginário, quer no sentido destrutivo, não vital, quer no criativo, muda de cor em

função do poder econômico de uma classe social e de seu modo específico de viver?

O conteúdo – e não o processo – da sublimação é social? A raposa poderia, em última

instância, exercer sua astúcia com o corvo se não soubesse o que é um queijo? Um

operário que vive entre sua casa e a fábrica, tem família, filhos, amigos e uma rotina

determinada, apresenta um universo de imagens possíveis para o processo de subli-

mação: os objetos desejados e suas trocas nascerão das situações de repressão nas

quais é obrigado a viver e terá imagens, percepções, sentimentos, pensamentos es-

pecíficos, e tanto faz que ressoem os objetos de desejo das situações no trabalho,

familiares, de amizade.

As representações construídas, as imagens e suas misturas alquímicas lhe são

específicas? Terão o teor da vida da classe operária? É específico o recorte do mundo

de um operário, de um camponês, de um banqueiro, de um filósofo, de um pai de

família, de um solitário, de um político?

A resposta pode ser: formalmente, sim. No entanto, a qualidade do imaginário

de cada homem parece diferenciar-se, uma vez que o modo de vida, as situações

representadas e as repressões necessárias e sublimadas não serão as mesmas nos

exemplos apontados. Ou seriam? Tudo indica que não. Os processos de sublimação

parecem variar dependendo do tipo de objeto de desejo a ser eventualmente repri-

mido e sublimado, e da biografia de cada um. Um intelectual como Gramsci, quando

arti

go

s

Page 32: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário32

esteve na prisão e em contato mínimo com o mundo, escreveu Cartas do cárcere: sua

psique já era extremamente rica de conteúdos diversificados. No filme brasileiro Abril

despedaçado, o personagem “Menino”, do seco sertão de um só horizonte em que

os bois desenham círculos na terra o dia todo, se suicida pensando no mar e na

sereia, únicos objetos de desejo construídos por um imaginário carente de represen-

tações. O yuppie da bolsa de valores de NY pode drogar-se para superar seus desejos

nascidos da incansável multiplicação da virtualidade em que vive. A adolescente em

busca do grande amor pode considerar que não se casará por ter a imagem de si

mesma muito prejudicada, de modo que em estado depressivo se gastará, sem subli-

mação possível, no curto horizonte de um espelho... e assim por diante.

Se tivermos razão quanto à variabilidade dos modos de repressão e, conseqüen-

temente, de sublimação de desejos nascentes, sem bons canais para bons objetos de

troca; e se há dependência de vivências específicas socialmente, isso significa admitir

que o modo de produção em relação ao modo de viver determina a qualidade do

imaginário. Assim, o social e sua divisão em classes produtivas facilitará ou dificultará

as convenientes ou inconvenientes sublimações. Ora, se voltarmos à questão da li-

berdade, já se percebe que ela está a par e passo com o imaginário no sentido que

expusemos, e pode comprometer-se – e em geral está comprometida – com a leitura

que se faz do mundo. Essa leitura, por sua vez, depende não só das circunstâncias da

vida social, mas da dinâmica psíquica de cada um.

Deliberamos para agir, ou ao menos assim pensamos fazer, e como a liberdade

depende da relação com o outro (homem, cidade, cosmos), nossos processos inter-

nos se conformam, bem ou mal, com o que lhes afeta e como trabalha, sujeito a

circunstâncias variáveis e, por que não dizer, a certas determinações biológicas. De

modo que a nomeada liberdade não é tão fácil de definir, não é tão vasta nem trans-

parente como pensamos e queremos quando lemos a constituição de um país dito

democrático.

Há décadas atrás, foi feita uma pesquisa com operários de baixo salário do ABC,

à época do Natal. A pergunta: se ganhassem naquele momento na loteria, o que

fariam no Natal? As respostas foram, para a grande maioria: aumentaria a comida na

ceia de Natal, compraria bicicleta para os filhos, que mudariam para um colégio

melhor, bons presentes para a família, uma viagem, automóvel, moradia. Não é pre-

ciso comentar muito: a projeção desses desejos está calcada no modelo de outra

classe social, a pequeno-burguesa. Seria interessante continuar esse tipo de pesquisa

aprofundando-a para outros segmentos sociais para saber algo sobre as respostas de

Page 33: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 33

uma minoria social. Outro exemplo: numa favela, a mãe pobre e astuciosa coloca

num copinho de plástico, cuja embalagem é de uma multinacional conhecida, um

pouco de mingau doce para a criança que chora porque quer o iogurte que aparece

na televisão.

Trata-se de um ponto de nascimento de desejos reprimidos que vem a adquirir

contornos, figurações específicas, dependendo da sociedade em que se vive e como se

vive. Certos modos de sublimar uma repressão do desejo dependem do modo de comu-

nicação de uma sociedade, e a repressão do desejo pode mergulhar na via da astúcia ou

do ressentimento. Então, já é hora de levantar uma grave questão: se compreendemos

parte do problema da liberdade e sua relação com o imaginário – ou ao menos circuns-

crevemos um campo possível para refleti-los de modo mais articulado –, será que pode-

mos, ainda, falar em classes sociais numa sociedade massificada?

O conteúdo do imaginário, ao menos do imaginário nos lugares onde a

massificação e a globalização já se impuseram, está diferenciado? Se estiver, teremos

diferentes leituras de mundo, logo, diversos modos de reprimir desejos, sublimar,

agir. Se não estiver diferenciado, haverá uma uniformidade no interpretar e no agir,

dado o fato de o imaginário estruturar de modo homogêneo as mensagens-imagens

recebidas do olhar, da audição, do gosto, do tato, do cheiro e, finalmente, do pensa-

mento. O nó górdio é que a diferença de classes sociais e sua variabilidade cultural

estão esgarçadas na sociedade massificada, fato que temos de analisar.

Como nota Ortega y Gasset, estamos no mundo da quantidade, do grande nú-

mero que alcança todos os espaços anteriormente ocupados pela bem delineada

classe burguesa e pequeno-burguesa. Homens massificados não têm classes bem

delineadas, e os desejos por mercadorias – essas, sim, podem variar – transformaram

antigos gostos, possíveis virtudes e os vícios, objetivos, independente da classe a que

pertencem ou pertenciam. Não há novidade nisso, apenas coordeno algumas refle-

xões já feitas. Marx, nos Manuscritos econômicos filosóficos, afirma (no terceiro ma-

nuscrito):

...É evidente que o olho humano goza de modo distinto que o olho bruto, não huma-

no, que o ouvido humano goza de maneira distinta que o bruto etc.. o homem se

afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os senti-

dos... É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana

que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada e em parte

criada, que o ouvido se torna musical, que o olho percebe a beleza da forma, em

resumo, que os sentidos tornam-se capazes de gozo humano, tornam-se sentidos

que se confirmam como forças essenciais humanas. E não só os sentidos, como tam- arti

go

s

Page 34: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário34

bém os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), em

outras palavras... a humanidade dos sentidos...

Assim sendo, e focalizando a liberdade civil, é ela que está em jogo, pois a ela se

atrelava o modo de ler a si e ao outro, de uma só vez, na sociedade moderna que nasceu

liberal e democrática: somos livres, iguais e fraternos. Ora, se não há como escapar do

poder da psique de criar o imaginário em ângulos variados, negativo ou positivo, com

ou sem a incidente de classes, necessariamente com incidências biológicas, quer para o

bem quer para o mal, então, o que merece ser perguntado é até que ponto vai o poder

de massificar o imaginário e até que ponto a espinha dorsal da liberdade civil e de

outras noções que a acompanham se quebram com a massificação de ações e valores.

O que é massificação? E entramos no último item de nossa exposição.

3 Massificação e violência

Carlos Drummond de Andrade, o poeta, não foi um homem massificado, nem

Guimarães Rosa, nem os artistas consagrados, em geral. Também não são massificados

o coronel do fundo do sertão nordestino, nem o catarinense agricultor descendente

das famílias alemãs do interior do seu Estado. E pressupõe-se que um intelectual não

seja massificado. Um clã, uma tribo, não conhece a massificação, uma vez que a

comunidade é extensão de si mesmo, faz a identidade de cada um dos seus compo-

nentes. Massificação é outra coisa, pois deixa um indivíduo como o configurou a

modernidade, sem contorno, sem qualidade específica. Que são, então, homens

massificados? De um ângulo, são quantidades, números. De outro, são seres huma-

nos que trabalham, desejam e agem segundo valores e propósitos. Parte da pergun-

ta sobre massificação já foi respondida antes: massificar é homogeneizar, é transfor-

mar a diferença em semelhança, uma vez que ninguém é igual ao outro de fato, nem

tem os mesmos valores e desejos. Por meio de uma abstração – como a idéia de

cidadania – temos a consciência de sermos iguais e livres e simbolizamos a liberdade

cívica.

No homem massificado, essa capacidade de abstração está prejudicada, mas

vêm a nascer nele valores e desejos como se fossem imagens e pensamentos próprios

e que, de fato, lhe foram incutidos por violência, por repetição infindável, quer ex-

posta ou oculta. Ele nada sabe sobre si ou sobre o outro, mas ao imitar o que pensa

desejar e o que pensa pensar, vive e cria uma identidade alheia que pensa ser própria.

É esse o processo de alienação, no rigor dos termos.

Page 35: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 35

Ao mimetizar, ao imitar, suas afecções, imagens, desejos, valores, ações são pro-

dutos prontos provenientes do exterior e se interiorizam sem passagem, pois a vio-

lência da repetição, como toda violência, se dá in brutu. Mas, nesse processo parado-

xal, esse ser regurgita o que pensa ser si mesmo mas é o que guardou por imitação.

Nada há de novo. A massificação torna previsível o ser de cada um, dispensa a leitura

do social pela via das classes sociais que, afinal, não têm mais linhas definidas no

gosto, no olhar, no tato, nem no desejar, apesar de, economicamente, a definição de

classe ser preservada. O ângulo de leitura deve ser, agora, outro, que possa ler por

dentro o que antes nomeávamos com clareza “classes sociais”.

A massificação é nebulosa em muitos aspectos porque estamos dentro dela, ou

seja, como a vida para a sobrevivência, a vida do trabalho, é técnica e repetitiva,

nosso processo de pensar é técnico e repetitivo, ou seja, fabricamos pensamentos,

valores, ações e até desejos. Fabricar é produzir algo a partir de um material que

recebe uma forma do fabricador tendo em vista um fim. É o que fazemos conosco.

Por exemplo, ao perguntar quem sou, o processo de pensamento é, em geral, que

matéria tenho: Meu corpo, meu dinheiro, minha casa, meu carro, meu diploma, meus

amigos etc.; que forma darei a essa matéria? Um corpo sarado, mais dinheiro, outra

casa, troca de carro, aplausos no trabalho, mais um carro, mais amigos etc., é o que

pretendo produzir como fabricante de mim mesmo. Forma e fim formam o mesmo

na circularidade do processo técnico.

Estamos tão acostumados com esse modo de processar a realidade que não sa-

bemos sobre outro, mas há outros, muitos outros. Então, como ficam o imaginário e

a liberdade nesse quadro? A liberdade tende a esvaziar-se, isso é claro. Já o imaginá-

rio empobrece na sua capacidade de multiplicar as vias de sublimação, de criativida-

de quanto às defesas, o que torna pouco viável a manutenção da complexidade vital.

Vitalidade é também forças pulsionais “livres”, ou, em outro modo de dizer, “desejos

livres” para objetos não tão fáceis de conseguir. Na sociedade massificada a multipli-

cação de objetos de desejo é infindável, de modo que quanto mais se tem mais se

quer. O processo de sublimação está comprometido, não se pode ter tudo mas a

tudo se deseja sem critérios.

Creio que há uma capacidade de desejar e obter atualmente destrutiva, na medi-da em que a psique perigosamente se automatiza, se repete viciosa no querer, emimagens estruturadas para serem desejadas, imagens de coisas e de pessoas-coisas.O imaginário vai tomando a forma do que a sociedade produtora de mercadoriasdeseja, contra ela mesma, diga-se de passagem. De seres em abertura para o errar ouacertar nas ações, para pensar, para criar valores e desejar sempre em perigo de ar

tig

os

Page 36: RFSB, v.3, n.1

GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário36

conseguir ou não, de bem sublimar ou não, viemos a ser previsíveis, seres de poucasvias e poucas transformações.

Somos determinados no que desejamos, queremos o que desejamos e não pode-mos ter o que desejamos porque o desejar tornou-se infinito em objetos de desejos etomou conta do imaginário. As pulsões procuram todos os objetos sem critério, e oimaginário tem comida suficiente para elas, mas nosso ser não suporta tal peso. É acivilização, portanto, que não suporta tal peso.

Há muitos seres que não se civilizaram. Diz Aristóteles na Metafísica A, livro I, queos animais não lógicos têm os sentidos, têm memória, representam muito pouco enão criam a experiência como saber que une conjuntos de representações. Ou, sequisermos lembrar o livro I da Política, do mesmo Aristóteles, os escravos por nature-za são aqueles a quem é dado somente obedecer, à falta de pensamento de conjun-to, de relações mínimas entre as coisas e os pensamentos. Nós nos civilizamos eparece que não suportamos isso, pois criamos um modo de deixar aflorar o não-civilizado na forma da obediência ao que nos afeta primariamente. Nosso imagináriose estrutura, agora, numa paisagem de poucas cores, o que nos leva a desejar muitascoisas mas sempre com poucas cores.

Será que algo tem a dizer um poema de Drummond, nomeado Science fiction?

Vejamos o que ele nos diz:

O marciano encontrou-me na ruae teve medo de minha impossibilidade humana.Como pode existir, pensou consigo, um serque no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o.Precisava dele como de um testemunho.Mas, recusando o colóquio desintegrou-seno ar constelado de problemas.E fiquei só em mim, de mim ausente.

Drummond facilita o que quero dizer, e ao finalizar quero refletir sobre a ausência

de si mesmo, o modo mais violento e menos livre que temos para nossa destruição.

São Paulo, verão de 2009

Page 37: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 37

Gilvan L. Fogel *

1. É com vergonha, é escondendo mãos e cara que

escrevo o título e inicio estas breves considerações. Ver-gonha, pois, apesar de professor, preciso confessar que

entendo muito pouco de educação. Mas creio ser este ocaso de muitos, talvez da maioria dos professores. Sabe-se que são muitos os professores, os docentes, e pou-

cos, raros os mestres, entenda-se, os verdadeiros edu-cadores. E é perfeitamente possível, e mesmo corrente,

ser um grande educador sem entender, isto é, sem serversado, culto e bem informado a respeito do tema. Em

geral, é isso que acontece. Pressionado, porém, nãodeixo de emitir algumas poucas e vagas opiniões sobreo tema. Opiniões que não deveriam ser publicadas, mas

permanecer no recinto da conversa íntima, pois a publi-cação já dá ares de solenidade e lembro-me de

Montaigne afirmar não haver mal nenhum em se dizerbobagens, tolices (“sottises”) – o mal estaria em dizê-las com solenidade. Mas, enfim, aí vão as opiniões cur-

tas e breves – sem solenidade, espero.

2. Começo ponderando que o tema “educação” cos-tuma vir à baila no âmbito da chamada “filosofia da

educação”. A filosofia, desde seu nascedouro grego,sempre foi um esforço de compreensão de realidade.Isso vem expresso na fórmula canônica “amor ao sa-

ber” e também “amor à verdade”, à busca da verdade.

A verdade é o real na sua realidade ou no movimento

de sua realização, isto é, na sua essência.

Notas a respeito de educação

* Professor de Filosofia do IFCS,UFRJ.

arti

go

s

Page 38: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação38

Educação, educar, fala de levar, conduzir para. Também isso, educação, esta con-

dução do homem, foi realização grega, principalmente em torno do século V a. C.,

no contexto da sofística, aí incluídos Sócrates e Platão. O que chamamos educação, o

grego chamava “paideia”, que costumamos também traduzir por “formação”. Aqui,

porém, é preciso entender “formação” no sentido preciso, verbal, de dar forma,

enformar, mesmo cunhar, modelar, e isto no sentido de determinar. Entenda-se, pois:

dar forma ou determinação ao homem, formar, en-formar a sua humanidade, a sua

hominização. “Paideia”, formação, isto é, encaminhar, pôr (o homem) a caminho,

num caminho – o da verdade do homem para o próprio homem.

Através desta formação, “a paideia”, o grego visava a conquista da “areté”, isto

é, da virtude, que, tal como “valor”, quer igualmente dizer “força”. Através da educa-

ção, a areté! Não que educação fosse meio para se atingir um fim (a areté); um

instrumento para se obter uma meta, um objetivo, a areté, que estivesse projetado e

programado fora e além da educação e que fosse outra coisa (idealizada!) que a

própria educação, paideia. Não. A educação, paideia, já é areté. O movimento para a

coisa já é a própria coisa, isto é, o movimento para a areté, a paideia, já é ele mesmo

areté. Areté é, pois, formação, educação; educação, formação, é, pois, areté. E areté,

dizendo virtude, força, claro, não pensa ou subentende força no sentido bruto ou

físico, mas força no sentido de força de ânimo, de alma, que é força vital, vitalidade.

Isso, para o grego, está ligado à excelência, à nobreza ou ao aristocrata, isto é, ao

forte. Mais uma vez, aristocracia, nobreza, aqui, são termos que, de modo algum,

tem conotação étnica, social ou política, mas, sim, antes, filosófico-vital ou existenci-

al. Referem-se pois à essência do homem, à vitalidade humana. Nobre, aristocrata,

forte, é o homem mais homem, isto é, aquele que mais decidida e mais essencial-

mente realiza a sua humanidade. Educar é cultivar isso, cuidar disso.

Nesse contexto, a educação, a “paideia”, visa conquistar e realizar a “areté” e

isso através da transformação do homem pelo homem, ou seja, através da transfor-

mação da humanidade do homem pelo próprio homem e isso quer dizer: através de

seu saber radical ou fundamental a respeito da realidade como um todo e de si

próprio, em particular – isso, porém, é a filosofia. E aqui, agora, começa-se a enten-

der a expressão “filosofia da educação”, de cunhagem recente, como a conjugação

das duas noções.

O caminho de realização desta proposta ou deste ideal grego, sendo norteado

pela filosofia, pelo saber essencial ou radical, se faz pela via da conquista da verdade

no exercício da liberdade. O caminho é, pois, a verdade e a liberdade. Melhor: a

liberdade para a verdade ou, ainda, a verdade como realização e concretização da

Page 39: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 39

liberdade. Isso, a saber, este ideal, esta conjugação de saber, condução da vida, ver-

dade e liberdade – a excelência (“areté”) da vida! –, que o Ocidente herdou dos

gregos e que moderna e contemporaneamente se converterá no propósito implícito

na “filosofia da educação”, foi exemplar e emblematicamente formulado no “mito

da caverna”, de Platão.

Desde esta formulação de um projeto educacional humanista (a Grécia clássica,

os sofistas), este, grosso modo, se tornou ideal e norte de praticamente todas as

épocas da história ocidental-européia e, grosso modo, praticamente quase todos os

filósofos, quase todas as escolas filosóficas, uns ou umas de modo mais explícito e

outros ou outras menos, se ocuparam e pré-ocuparam com temas-problemas de

educação, de formação, inseparáveis do humanismo, entendendo-se este como o(s)

movimento(s) de promoção da humanidade do homem a partir de uma certa pré-

compreensão-definição deste próprio homem. Neste sentido amplo e geral, foram

preocupações de gregos, de medievais, modernos e o é dos contemporâneos. Na

modernidade e na contemporaneidade, chama a atenção a Alemanha e seus pensa-

dores, de Leibniz e Kant até Heidegger, passando por Hegel, Schelling, Schopenhauer

e Nietzsche. Todos tematizaram o problema da educação.

3. Hoje se fala da informática na educação. Fala-se da educação na era da socie-

dade informada e informatizada, forjada pela informação instantânea e, quantitati-

vamente, quase infinita. Fala-se de revolução na educação a partir do poder transfor-

mador da informática. Associa-se a isso, com razão, o fim do lápis, da borracha, do

giz, do quadro negro, do caderno, do livro, discute-se o prazo de validade do profes-

sor, com a entrada na sala de aula (?!) e a expansão do computador portátil. Cada

aluno, e também cada professor, com seu respectivo laptop. A partir disso, fala-se de

educar para o tempo, para a época e, mais, para o futuro. Mas o futuro, no caso, não

passa do presente projetado e super, e hiperdimensionado. O tema da educação,

agora, é a tecnologia da informação e a internet como as novas ferramentas na arte

do ensinar e do aprender, a velha educação – e nisso e no daí decorrente uma revo-

lução sem precedentes. Em meio a tudo isso, muito exercício de futurologia, de adi-

vinhação, de mirabolantes projeções, às vezes escatológicas, até mesmo um pouco

de jogo de búzios e de cartas. Faz-se um verdadeiro frenesi em torno do futuro, isto

é, do superpresente, e da revolução educacional, p. ex., a partir do laptop.

4. Bem, é possível que educar, tal como pensar, não seja algo que se faça, seguin-

do a corrente e a onda, isto é, indo solto e largado a favor, ao encontro do tempo, da

época, mas, antes, indo contra o tempo, contra a época. O educador, tal como o

pensador, talvez precise ser o que Nietzsche chamou, designando o pensador, “a arti

go

s

Page 40: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação40

consciência malvada de sua época”, “o crítico e o sátiro do momento”. E isso não por

caprichoso bel-prazer, mas para manter o tempo, a época alerta, viva, acesa em rela-

ção a si mesma, a seu próprio tempo ou época, isto é, em relação a seu passado,

presente e futuro.

Mas o que seria isso: pensar (e educar) contra seu tempo, contra sua época? Não

deve ser por meros ideais libertários e revolucionarescos. Não deve ser por uma pura

e simples autoafirmação reativa. Mas ... Mas o que? Como?

Retifiquemos e melhoremos um pouco este encaminhamento. Pensar (e tambémeducar?) é sempre pensar com um tempo, com uma época, a saber, a minha, a nossa,

a de cada um, e também contra este mesmo tempo, esta mesma época. Assim, pen-

sar (educar?) é um ir ao encontro e um ir contra, quer dizer, é, precisa ser, ao mesmo

tempo, compreender e desestabilizar, fazer e desfazer, construir e desconstruir – o

tempo, a época. Nesse sentido, pensamento, enquanto o diagnóstico e o prognósti-

co do tempo, da época, e educação, a condução de um tempo, de uma época, deuma geração, devem andar juntos, compassados. Assim sendo, a educação, assim

como o pensamento, não deve ser a porta-voz oficial e mesmo a advogada e a

ratificadora, endossadora das idéias vigentes ou dominantes, melhor, das opiniões

de uma época. Em suma, a educação não deve ser a defensora, a propagadora e a

propagandista do que se chama, em sentido pejorativo, a ideologia de seu tempo, de

sua época, ou seja, o que no tempo, na época, se diz, se pensa, se fala a torto e adireito e, assim, se torna como que o uni-forme, a farda da época, do tempo. A

educação, assim como o pensamento, não pode, não deve vestir este uni-forme, esta

farda, empunhar esta bandeira...

5. A opinião vigente, a idéia fixa da época, isto é, o uniforme, a farda e a futilida-

de do tempo é a informação. Hoje se diz e se pensa que conhecimento é informação

e que educar é, deve, precisa ser transmitir, divulgar e aumentar conhecimentos, ou

seja, acumular informações. Opções! Quanto mais memória, mais conhecimento,

mais educação! Peito estufado, boca cheia, fala-se de produzir conhecimentos, isto

é, gerar informações. Isto provoca um culto e uma beataria da, pela informação.Portanto, diz-se, acha-se, informação é conhecimento e adquirir e gerar mais e novos

conhecimentos é acumular, capitalizar (memória!) mais e novas informações, quer

dizer, dados, pois informação, por princípio e definição, é o dado, ou seja, o feito, o

cristalizado. O informado na informação é o registrado, o fixado ou o coisi-ficado no

dígito, como dígito.

Pois bem, contra isso há que pensar; isso é preciso desestabilizar, e educar precisa

ser um levar e um conduzir contra isso, a saber, contra a defesa e a consolidação de

Page 41: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 41

um tal modo de ser e de pensar, que se transforma na defesa, na propagação e na

consolidação do cadáver, da morte – a morte da vida, que, por seu lado, é essencial-

mente c r i a ç ã o. O contra é a favor da criação. Este, esta é o sim. Só na dimensão

da criação é preciso conceber o verdadeiro conhecimento e compassado com este

modo de ser, a criação, precisa andar e falar a educação.

Suposto que informação seja a transmissão do feito, do dado e, então, do morto

e que, portanto, não pode constituir o verdadeiro, o autêntico conhecimento, é pre-

ciso, é saudável que se faça um certo ceticismo, um pouco de desconfiança e de

descrédito em relação ao furor e à beataria da internet, em relação ao furor da pes-

quisa (internet e pesquisa são identificados, com razão!), que não passa de acúmulo,

de entulhação de informações, de dados. Esta atividade desenfreada, compulsiva, na

melhor das hipóteses, é distração ou do tédio ou do furor, melhor e mais precisamen-

te, é cumprimento do furor do tédio (o “aborrecimento humano” é “voluptuoso”, já

disse Machado de Assis!), convertido em pesquisa (memória!), jamais gerando o

verdadeiro conhecimento, o autêntico saber, desde e como criação.

Façamos uma retificação e uma concessão. É verdade que a vida, a criação, não

podem abrir mão do feito, do dado, pois este ou isto é seu necessário ponto de

partida. Assim, a partir do dado, vida recebe e transmite, herda e lega. Ela precisa,

porém, do feito e do dado para superá-los, para ultra-passá-los, enfim, para perdê-

los, esquecê-los e assim, leve e faceira, poder se auto-pro-mover. Isso é criação. A

perda, o esquecimento, o abandono e o desentulhamento são constitutivos da cria-

ção, da espontaneidade vital. A disposição da criação, o só que precisa ser promovi-

do e fomentado pela boa educação, ensina a, no tempo certo, perder, abandonar,

largar – esquecer. Tal disposição ensina a, saudavelmente, ou seja, em favor da saúde,

não mais precisar daquilo que, no acúmulo, entulha, paralisa, embota, enfim, mata.

Assim sendo, em relação à informação, ao feito (ao dado, ao realizado), é preciso

dele precisar para imediatamente dele abrir mão, jogá-lo fora, desfazer-se dele, perdê-

lo, esquecê-lo, para não entulhar, não asfixiar, e, assim, inibir e mesmo paralisar a

ação, a atividade criadora. É preciso poder viajar, navegar pela internet, nosso super,

nosso hiper, nosso panmercado, como Sócrates, o grande educador, altivo, orgulho-

so, mas também sóbrio, simples, cheio e seguro de si, andava pelo mercado na ágora

de Atenas, contemplando admirado, mas dizendo satisfeito: “Quanta coisa que eu

não preciso!”

6. Incluído como um aspecto do educar para o tempo, para a época, entende-se

também educar para a vida e sob educar para a vida costuma-se entender e suben-

tender o educar para a sociedade, para a sociedade constituída, com suas necessida- arti

go

s

Page 42: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação42

des e exigências. Também aqui, para a saúde da sociedade e da educação, aplica-se

aquele princípio do pensar-educar contra.

É louvável, é mesmo necessário uma dose de pragmatismo educacional e social,

p. ex., indo ao encontro de certas necessidades sociais, introduzir no ensino, a certa

altura da formação do jovem, a profissionalização. Escolas técnico-profissionais são

necessárias, úteis e precisam ser implantadas e cultivadas.

Por outro lado, a formação, a educação voltada para a preparação do ingresso

nas universidades, me parece, não deve se submeter às exigências do profissionalismo

acadêmico, isto é, às reivindicações estreitas que visam atender ao mercado e aos

chamados profissionais liberais, “executivos”, deixando correr solto, sem eira nem

beira, o pragmatismo e o carreirismo. Alimentar isso é coisa pequena.

Vê-se muitas escolas, de classe média e alta, subservientes a este pragmatismo e

carreirismo, servis à coletividade definidora de ondas e de correntes de profissões e

de carreiras. Parece-me, nada mais decadente e desvirtuante do que a identificação

de educação com um tal pragmatismo e imediatismo sociais, voltados para a tal

carreira, para o sucesso social, enfim, o carreirismo que, em geral, forma, isto é,

produz e gera deformando e degenerando, um tipo, claro, socialmente bem ajusta-

do, bem adaptado, bem-sucedido e que costuma ser, sobretudo do ponto de vista da

vitalidade, um tipo certo, melhor, certinho; um tipo asseado, limpo – limpinho; ajus-

tado – ajustadinho; bom – bonzinho! É, costuma ser o protótipo, o arché-tipo do

idiota, do medíocre – mas bem-sucedido!

Todo processo educacional, de condução de uma vida, mesmo no nível das esco-

las técnico-porfissionais e na preparação para a universidade, visando a formação

dos chamados profissionais liberais, me parece, deve deixar brechas e fomentar oca-

siões para muitas e grandes inutilidades. Não sei, não saberia enumerar quais, mas

inutilidades próprias do espírito livre, lúdico e criador (mostrar o próprio saber, o

próprio ver e o próprio compreender como dimensões lúdicas da vida, do homem),

para ventilar, para arejar e transformar (revolucionar!) também o profissional, a pro-

fissão, que costuma ser a atividade que se faz, que se cumpre de maneira automáti-

ca, certa, certinha, seguindo à risca o manual e a bula, sem nenhuma reflexão, me-

lhor, sem inovação ou criação alguma. As inutilidades podem abrir caminho para

estas inovações, para verdadeiras renovações no âmbito da esclerose de uma profis-

são, ou seja, renovações e transformações no âmbito do próprio automatismo pro-

fissional, inaugurando assim a alegria de um caminho nunca d’antes percorrido, de

um mar nunca d’antes navegado...

Page 43: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 43

7. Falando-se de informática na educação, de tecnologia da informação, de esco-

la-educação informatizada e de aluno e professor, cada qual, com seus respectivos

computadores portáteis a tiracolo, fala-se de educação “para os desafios do mundo

novo”, do “mundo futuro”.

Em meio a isso, não cabe recusar ou desdenhar as evidentes, as incontestáveis

conquistas em recursos técnico-materiais, virtuais, que evidentemente estão além do

giz, do quadro negro, do caderno, do mapa-múndi plano, pendurado e chapado na

parede, do singelo e, hoje, primitivo desenho do núcleo da célula na página do livro

etc. etc... Em meio a tudo isso, o que se contesta, o que é preciso provocar para uma

grave desconfiança, é a superestimação da informação; a carga, mais, a sobrecarga

até à exclusividade da informação no educar.

Antes de voltar a isso, porém, uma pequena observação. Falando de futuro, de

mundo novo, novíssimo, fazendo, como já dito, futurologia, com fantásticas anteci-

pações, previsões escatológicas, enfim, falando euforicamente disso, vem-nos ainda

uma ponderação de imediato senso comum: o mundo novo, o admirável mundo

novo, também é velho! Aliás, não seria, não poderia ser novo, se não fosse igualmen-

te velho! O mundo futuro é também passado – não seria, não poderia ser futuro, não

fora, de algum modo, presente e passado! Idem em relação ao homem e à educação.

Assim sendo e dando-se um pouco de crédito ao Conselheiro Acácio, isto é, ao

óbvio, ousa-se dizer que pelo menos duas coisas parecem estáveis neste mundo ne-

buloso, volúvel e volátil do futuro: a) no futuro, tudo indica, o homem será homem;

b) no futuro, tudo indica, educação será educação.

Isso parece ser elementar. Para este elementar queremos chamar a atenção. Cabe

voltar-se para o elementar e perguntar-se, re-perguntar-se, sempre: O que é o ho-

mem? O que é a educação? É preciso alguma orientação clara a respeito do elemen-

tar. Elementar, lembremos, é o que constitui o próprio elemento, o próprio medium

de alguma coisa. Neste sentido, o elementar é o essencial. E essência não é um algo

recôndito, um indeterminado X atrás e além das coisas. Afinal, não é sequer nenhum

algo, mas a própria coisa se realizando, se fazendo, vindo a ser isso que ela é. Essên-

cia é o que, apesar de todas as mudanças e sobretudo graças a todas as mudanças,

permanece e precisa permanecer e, enquanto tal, precisa ser cultivada e promovida

para que a coisa permaneça e insista nisso que é, que precisa ser ou vir a ser. Essência,

portanto, fala o que a coisa propriamente é ou o que está sempre necessariamente

sendo, a cada passo, a cada instante, a cada ato de seu vir a ser, de seu fazer-se ou

existir. Essência é o verbo-coisa. Então, algo imediato e concretíssimo.

arti

go

s

Page 44: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação44

Ao abrirem-se estas considerações/anotações, vimos que o grego, buscando es-

sência, encontrou o caminho de realização da transformação da humanidade do

homem (o homem vindo a ser homem desde sua essência, como essencialização de

sua essência) através da “paideia”, da educação, e esta, igualmente em sua essência,

se fazendo através do cultivo do saber radical ou essencial, a filosofia, que, por sua

vez, se realiza pela conquista da verdade no exercício da liberdade. Dissemos, então:

“O caminho é, pois, a verdade e a liberdade. Melhor, a liberdade para a verdade ou,

ainda, a verdade como realização e concretização da liberdade”.

Um dos aspectos reveladores da liberdade, em constituindo a essência do ho-

mem, é ver no homem coisa nenhuma, algo nenhum, mas só e tão-só um poder-ser,

uma aptidão que se revela um insistente movimento de transformação e de alteração

(= vir a ser outro!) desde si e para si (é isso vida!) e que se chama criação. É da

essência da liberdade humana a criação.

Toda educação, em sendo essencial e em sendo exercício da liberdade que é o ho-

mem, precisa ser aceno, insinuação, convite à criação. Educar, acompanhando a essên-

cia do homem, co-fazendo-a, precisa ser sempre um despertar para a criação. Despertar

via aceno, insinuação, convite, pois ninguém, a rigor, ensina, pode ensinar criação.

Mas porque é e precisa ser despertar para a criação – por isso, educar só pode, só

precisa ser algo, ainda que a partir de informação, de dado ou de coisa, além, para

além da informação. A educação não pode, pois, ser algo centrado, concentrado,

uni-formizado na informação, isto é, norteado por aquilo que é cristalizado, fixado,

coisi-ficado no dígito, como dígito e assim passado e repassado adiante como coisa

feita, como dado, como cadáver e fóssil. A informação é justo o que precisa ser

perdido, abandonado, esquecido. É preciso não precisar, poder não precisar dela.

8. Educar, formar. Educação, formação – a ação, a atividade de dar forma, de

enformar, que é, sim, modelar, cunhar um caráter. Esculpir um homem. Como enten-

der isso, este trabalho, este esculpir?

De imediato, a tendência é imaginar que se deva planejar e realizar um plano, um

projeto ou um programa, p. ex., um tal ou tal projeto educacional. Ou seja, imagina-

se educar, formar, como se fora perseguir um ideal, uma meta, subentendendo tal

meta como se fora o mencionado plano ou projeto que fixa um ponto em algum

lugar e que, então, se põe a perseguir, a correr atrás deste ponto para preencher o

ideal, o plano, a meta, isto é, o estereótipo. Os chamados “humanismos” costumam

proceder assim. Mas isso, a saber, tal procedimento, é sempre princípio de degrada-

ção, de degeneração, de de-formação. Não.

Page 45: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 45

Para educar, no sentido grande de formação, de enformar, ou seja, de encami-

nhar para a conquista da excelência do homem, da vida – para tal, é preciso não ter

“objetivo” nenhum, nenhuma meta, isto é, não se pôr à busca ou à perseguição de

nenhum algo previamente fixado como objetivo ou resultado final a alcançar. For-

mar, educar, precisa ser, sempre, despertar para a criação, para a liberdade para a

criação e, então, alimentar, promover, no sentido de possibilitar ou de liberar condi-

ções de possibilidade para que se faça uma vida enquanto e como a dinâmica de um

vir a ser, que virá a ser se vier (!!), isto é, se se fizer, se se conquistar em se

autorealizando. Ou seja, se este próprio vir a ser, melhor, se esta própria possibilidade

revelada, despertada, se fizer a si própria vir a ser – pôr-se a si própria em obra. Isso

é que é vida, ou seja, movimento que se move a si próprio desde si próprio enquanto

e como autoconquista e autorealização. Pura irrupção, pura emergência, pura

transcendência – ação, atividade de liberdade na e como criação. E isso como que

para a própria alegria da vida, para seu próprio gáudio. É um fazer que é, ao mesmo

tempo, autoliberação e, assim, cunhagem de uma identidade ou de um próprio, à

medida que afirma, como autoconquista, a diferença que é.

Educação, formação, portanto, como um pro-mover, que é cuidar para que um

tal poder-ser venha a ser. E isso quer dizer: atenciosamente, cuidadosamente, mas de

modo largado e despojado, deixar ser o que precisa ser, precisa vir a ser. Isto constitui

o movimento de forma (= gênese ontológica) vindo a ser forma, fazendo-se forma.

Forma e/ou essência. Educação, formação, portanto, é essencialização, realização ou

concretização de poder-ser, que é a essência do homem enquanto e como liberdade

de, melhor, p a r a criação. Cultura, cultivo da espontaneidade: deixar ser o que

precisa ser, precisa vir a ser. O educador precisa ser este ‘cura’, este curador. O com-

putador não vê, não sabe, não pode isso. Sobretudo, ele não pode ver, saber isso.

Isto transcende a informação, o cálculo, pois é de outra ordem, de outra natureza.

Interpõe-se aí um salto, um salto qualitativo, que abre o âmbito próprio da humani-

dade do homem, o âmbito de criação e de liberdade. Melhor e mais precisamente: de

liberdade para criação.

9. Assim se cumpre um educar, um formar, que é “deixar aprender”, isto é, um

ensinar que é fazer com que se aprenda o aprender1.

Aprender a aprender não é, como hoje às vezes se diz e eu já ouvi de um experto,

aprender (subentenda-se: ser destro e hábil na arte de!) a colecionar informações;

1 Sobre ensinar como “deixar aprender”, assim como ensinar e aprender, de modo geral, ver Heidegger, M., Washeisst denken?, Tübingen: Niemeyer, 1971, p. 50 e também Que é uma coisa?, Lisboa: Edições 70, 1987, p. 75 a82, principalmente 79/80. ar

tig

os

Page 46: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação46

aprender (i.é, ser destro, hábil!) a, no meio da selva, das miríades de informações,

separar o joio do trigo, quer dizer, no caso, discernir e separar, isolar, a informação

boa da ruim, a que interessa ou é útil, da que não interessa ou é inútil, supérflua,

desinteressante. Não. Aprender a aprender é, precisa ser coisa de outra ordem; é,

precisa ser coisa de outra musa! E, por falar em musa, aprender a aprender é, precisa

ser, como na poética de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, um insisten-

te exercício de desaprendizagem. É, portanto, um insistente aprender a desaprender.

Aprender a aprender ou, como formulamos agora, aprender a desaprender! Mas

é preciso perguntar: Como isso? Quem aprende a aprender, o que é que aprende?

Quem aprende a desaprender, o que é que desaprende e, por isso, graças a isso,

aprende ou se dispõe a aprender?! Tudo isso, no entanto, começa a se esclarecer

quando se entende o que é aprender.

Tal aprender é, na verdade, entrar no movimento de um fazer, de uma ação;

conquistar, assim entrando, a força de um fazer, a dinâmica de uma ação ou a pró-

pria ação da ação – uma autêntica formação. É, a partir do feito, do dado, p. ex., a

informação, conquistar a força do fazer. Na verdade, é ser tocado e tomado por tal

força, por tal poder e apropriar-se disso, qual seja, colocar-se sintonizado e sincroni-

zado com tal movimento, ser “in statu nascendi”. Assim vai acontecer o transformar,

o criar, o procriar.

Aprender a aprender não é, pois, ser dotado de uma certa destreza para escolher,

não é ser capaz de uma certa técnica para distinguir e selecionar (escolher, decidir

sobre) informações boas; não é ser esperto, i. é, vivo, sabido, e experto na selva da

informática, no infindável tecido da rede. Ao contrário, aprender a aprender é ga-

nhar a disposição de insistentemente perder o feito (i.é, o dado, a informação) a

favor do fazer, a favor do criar, do acontecer de vir a ser, enfim, do pro-criar. É isso, a

saber, o feito, o dado, a informação, que é sempre, a cada passo, perdido, esquecido

– desaprendido. Para Caeiro, que mencionamos acima, é perder, esquecer,

“desaprender” o sinal, o símbolo – a informação!

Portanto, quando se aprende a aprender não se aprende coisa nenhuma, não

nos fazemos donos de nenhum dado, de nenhuma informação; não nos tornamos

proprietários de nada fixado ou registrado como regra ou norma de controle, mas

subitamente nos transpomos ou somos transpostos, transportados para uma dimen-

são, para um modo de ser, que não é nada, que não é coisa nenhuma, mas tão-só um

participar e um co-fazer o movimento do nascer ou do fazer-se disso que se faz tal

como se faz, tal como se quer fazer, tal como precisa se fazer. Isso, este modo de ser,

Page 47: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 47

constitui a própria essência do homem. É isso mesmo o realizar-se e consumar-se de

sua liberdade, a liberdade para a criação. Cabe, na real aprendizagem, a do aprender

a aprender, apropriar-se disso e tal ato é um autoapropriar-se por parte do homem,

do aprendiz, para assim poder, para assim precisar vir a ser o que é, a saber, homem,

vida humana, homem humano.

Promovendo o aprender a aprender, neste sentido, a educação promove uma coisa

ínfima, um algo nenhum, que, no entanto, por menor, por mais ínfimo ou por um nada

que seja, constitui o essencial, o só que importa, pois este ínfimo marca ou define a

identidade, i.é, a diferença, do homem, o seu próprio, que é justamente não ser coisa

nenhuma e, portanto, em hora nenhuma poder ser reduzido a coisa alguma. O homem

não é coisa e, então, não pode alimentar sua hominização como se fora coisa. Ao

contrário, ele precisa realimentar-se insistentemente de sua própria essência, de sua

própria força ou identidade (i.é, sua diferença!), que é a liberdade – a liberdade para a

criação, para a transformação, ou seja, para a alteração ou diferenciação. Educar precisa

ser sempre a tarefa de renovação desta necessidade frágil, que se faz convite, indicação,

aceno. Assim, educação, tal como “a divindade que mora em Delfos” (Heráclito, frag.

93), não esconde, não pode esconder nada e não revela, e não pode revelar, no sentido

de escancarar, nada, mas só pode e precisa acenar – apontar, insinuar, e assim convidar

para a aventura de ser coisa nenhuma e que é a aventura-homem, enquanto e como

história, isto é, devir, suceder. O aceno é, precisa ser a bandeira da vida criadora – sem-

pre o aceno e o convite para a liberdade para a criação. Fazer, co-fazer o que, desde

nada, por pura doação e transcendência (graça!), se faz. Nisso, com isso, a informação

é o que precisa ser abandonado, perdido, esquecido – superado. Ela se torna entulho,

lixo. Como entulho, como lixo, precisa ser descartada, jogada fora. E aqui não cabe

salvar, não há reciclagem – é perda total!

10. Pode-se perguntar: quem educa, quem conduz para a criação, para a liberda-

de para a criação? Não é o “professor”, não é o “graduado”, o “erudito”, o “pós-

graduado”, o “doutor”, o “pós-doutor”. É, sim, o educador, um tipo simples, muito

simples (pode perfeitamente também ser “graduado”, “doutor”!) que é, sim, mestre,

um grande mestre e que, silencioso, discreto, praticamente despercebido, tal como

“passo de pombo, que traz grandes acontecimentos assim como grandes pensamen-

tos” (Nietzsche), e ainda tal como a já mencionada divindade de Delfos, que nem

esconde e nem escancara, mas acena, só acena. Quem tem olhos de ver, que veja!

Quem tem ouvidos de ouvir, que ouça! Insinua, acena, aponta e assim rege, assim

dirige – silencioso, manso, imperceptível. Sobretudo ele, também ele sobretudo, ou-

vindo, obedecendo, seguindo... silencioso, manso, imperceptível. arti

go

s

Page 48: RFSB, v.3, n.1

FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação48

Finalizando, este quem educa, conduz, não é tampouco, principalmente não é o

cara que, como eu, aqui, fica a falar, a tagarelar sobre criação, liberdade, educação.

O verdadeiro mestre, o verdadeiro educador jamais fala nisso, disso. Não precisa.

Não pode. Não é o caso... Falando, vendo desde grave experiência, disse

Heidegger que, na presença de um grande, de um autêntico mestre, de um grande,

de um autêntico educador, tem-se sempre a impressão que se está diante de nada,

de ninguém e que, na verdade, não se aprende coisa nenhuma...

Page 49: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 49

Emmanuel Carneiro Leão *

Dio kai philomythos philosophos pós estin(ARISTÓTELES, Metaph. 9, 2, 982b, 18).

Provindo do mistério temporal da realidade, os mi-

tos nos remetem para fontes inesgotáveis de inconsci-

ência e consciência históricas. São criações da experiên-

cia humana com os movimentos de seu próprio princí-

pio e os gestos de suas transformações. Pelo mito, a

sobrevivência se recolhe à densidade do verbo, em que

se concentra toda a autoridade da história, a força cria-

dora da linguagem. Para o mito converge a diversidade

essencial das experiências do homem com a realidade.

Do mito corre hoje o sangue de ontem para um novo

amanhã: possibilidades de vida e condições de herança

para o advento de uma história sempre já vigente e sem-

pre ainda por vir. Com o mito nos chega “o amor ainda

não aprendido, a dor não conhecida”, sabor deste mis-

tério insondável da realidade da vida-morte. Sem o mito

nem a música da história ressoa nas festas nem a dança

da capoeira ginga nas celebrações dos projetos.

Todo mito é uma avalanche da linguagem que toma

corpo e se encarna numa história. Lei significa recolher-

se à escuta desta encarnação, na medida em que vai

desaparecendo na própria carne a dicotomia entre cor-

po e alma, carne e espírito, linguagem e história. Reco-

lher-se a tal escuta é o que faz a filosofia, quando pensa

Mito e filosofia grega

* Professor de filosofia do IFCS,UFRJ. Agradecemos à editoraDaimon pela permissão em pu-blicar esses textos. Trata-se detextos que irão compor um vo-lume sobre “filosofia grega” aser publicado em breve pelaDaimon Editora. ar

tig

os

Page 50: RFSB, v.3, n.1

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)50

a realidade em suas realizações. Por isso também Aristóteles nos diz no capítulo 29

do livro 19 de sua Metafísica: dio kai philomythos philosophos pós estin!

É que a filosofia vive a vida que desperta com os acordes e se acorda com as vibra-

ções de cada som da realidade. Toda obra é mítica por ter a vida própria do pensamen-

to, a vida da vida; por alcançar suficiente autonomia a ponto de desligar-se da biografia

de indivíduos e da história de comunidades; por transcender para a universalidade da

vida de todos os homens, para aquela vida, portanto, donde no momento oportuno ela

mesma assomou a fim de concretizar-se numa história humana. É esta universalidade

concreta, esta autonomia transitiva que decide a verdade do mito. Isso significa: a obra

do mito nos liberta não apenas de todas as coisas já prontas e acabadas: substâncias,

individualidades, sistemas, mas nos liberta sobretudo para o verbo de todas as coisas,

seu nascimento, sua vibração e morte. É com a arte dessa libertação que os mitos pre-

senteiam os filósofos. É nessa profundidade que os gregos teceram as relações entre

mito e filosofia para toda a história do Ocidente.

Em suas realizações o mito é anônimo. Não tem autor. A atribuição não é obra

mítica. É apropriação. Uma obra do mito só possui mesmo a autoridade da história,

tem apenas a autoria da convivência humana. Pois nela nos chega o desafio de con-

viver com o outro no tempo na medida em que nos convoca a sermos mais livremen-

te o que fomos, descortinando o que seremos no horizonte do que somos e não

somos. Só escutaremos o sentido originário do mito aceitando esta convocação, co-

locando-nos em questão, submetendo à força do questionamento nossas pretensas

sabedorias. Ler um mito não é nem ver nem ouvir ou sentir realizações, mas ser em

tudo isto e em tudo o mais o desafio que a realidade nos faz a cada instante. Deste

poder do mito advém a estranheza nunca domesticada de sua obra: o mito acabado

não acaba, nunca deixa de provocar novos sentidos, de rasgar novos horizontes, de

gerar outras possibilidades. É a independência transbordante e difusa de sua obra.

Dela sabem os criadores de todos os tempos, com um sabor feito de criações.

Do mito valem as palavras de André Gide da arte: “a obra de arte acabada tem a

propriedade misteriosa de nos proporcionar sempre mais do que pretendia seu cria-

dor”. Esta experiência pertence às grandes surpresas do encontro da filosofia com o

mito desde a primeira vez. Surpresa é algo inesperado que não pode ser controlado.

Com a surpresa nós nos poderemos encontrar às vezes depois do primeiro contato,

às vezes após muitos contactos, mas sempre na tentativa de escutar-lhes as pausas

sonoras de expectativas musicais.

Mas, sem dúvida, toda obra do mito não é apenas transcendente. É também

imanente às épocas, ou melhor, sendo fiel às épocas é que a obra do mito as trans-

Page 51: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 51

cende. No grau de inserção desta imanência o discurso mítico presta esclarecimentos

sobre as épocas, dá informação sobre mentalidades, indica maneiras de estar no

mundo com os outros, anuncia concepções de homem, de vida e de mundo. Mas, se

os discursos do mito nos proporcionam tudo isso, uma leitura guiada apenas por

todos esses interesses passaria à margem da obra criadora do mito. E por quê? –

Porque não concentraria a escuta, a visão e a sensibilidade na obra do mito, na arte

de ser “novo princípio, gesto de transformação”. A ironia de toda tentativa interes-

seira de leitura está na segurança de sonâmbulo com que evita encontrar-se e medir-

se com a originariedade do mito e a criatividade de sua obra. Isso porque ambas só

existem encarnadas nas realizações reveladoras da linguagem. E estas só podem ser

escutadas num único interesse, no interesse da história. Sem o interesse da história,

não se ouve o mito, só se ouve a si mesmo até no mito. As palavras do pensamento

sobre o interesse da história nos ajudam a ler o mito como obra de história mesmo

no horizonte de compulsão de repetição de muitos interesses, interesseiros e interes-

santes, que se opõem ao interesse da história nas relações com as obras: “interesse

significa: estar no meio e entre as realizações, morar e permanecer no interior do

advento da realidade. Mas para o interesse de hoje vale apenas o interessante. Inte-

ressante é o que permite ficar indiferente já no momento seguinte ao encontro e

substituí-lo por outra coisa que tanto quanto a primeira não transforma o relaciona-

mento. Hoje em dia se pretende muitas vezes valorizar especialmente uma coisa por

achá-la interessante. Mas, na verdade, já se empurrou seu encontro para a indiferen-

ça, a monotonia e a repetição”.

Uma leitura filosófica renuncia de bom grado a “explicar” o mito. Espera apenas

preparar as condições para um encontro originário com seu advento. Nesse encon-

tro, a densidade da linguagem mítica nos leva a superar o desnível e a dualidade

entre ouvido externo e ouvido interno, entre audição e escuta. A cada passo da pas-

sagem dessa leitura fazemos sempre a experiência do silêncio da fala. No mito toda

palavra só fala por já não poder calar-se. Silêncio da fala, porém, não diz ausência de

palavras. Ao contrário, diz vigência, tanto no falar quanto no calar, da obra essencial

do próprio mito. Ler filosoficamente uma realização significa também acolher nas

peregrinações dos discursos a diferença entre língua e linguagem. Significa propiciar

o diálogo entre a fala do mito e a escuta do leitor a propósito da realidade no adven-

to de realizações históricas. Mas realizações históricas nunca constituem motivos

para o mito. É que a obra de um mito não pode ser explicada por nenhum motivo. Só

se explica o que não é criador. O criador é sempre inexplicável. Tocados pelo “coração

intrépido da verdade de circularidade perfeita” do mito (alétheiés eukukleos atremes

arti

go

s

Page 52: RFSB, v.3, n.1

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)52

étor), quanto chegam à obra, todos os motivos já deixaram de ser motivos para se

integrarem numa palavra mítica.

Em nossas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, encontramos a cada passo

uma diferença entre real, realização e realidade. É uma diferença, entretanto, e não

uma coisa entre coisas, seja dada, feita ou pronta. Trata-se do diferenciar-se próprio

de toda história de realização da realidade. Isso porque a realidade é sempre sub-

reptícia, dá-se como realização na medida e enquanto se retrai e se retira. A fortaleza

e o modo de ser de uma época se definem pela integração das obras dos homens

dentro dessa diferenciação. A existência humana é a viagem que faz o homem entre

realização e realidade. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe na totalida-

de e nesta irrupção instala estâncias de relacionamento com tudo que existe e não

existe. Nesse sentido, o homem realiza em sua existência todas as realizações. Impul-

sionado pelo impacto oblíquo da realidade, constrói sua existência num contacto

direto da ação transformadora do trabalho com as realizações. As épocas históricas

são as vicissitudes daquele impacto oblíquo e deste contacto direto, isto é, das vari-

ações provocadas nos contactos com as realizações pelo impacto da realidade. Na

mira de suas ações o homem nunca pode ter a realidade. Só realizações servem de

alvo à suas relações. Para fazer a sua história, o homem é feito pela história. Por isso,

Marx lembrou no 18 Brumário de Luiz Bonaparte aos revolucionários de ontem e de

hoje uma frase muito citada mas pouco pensada. Uma frase tão histórica que pode-

ria figurar na Teogonia de Hesíodo e de fato figura na dinâmica de todos os seus

versos: “Os homens fazem sua história mas não a fazem arbitrariamente nas condi-

ções por eles escolhidas e sim nas condições diretamente dadas e herdadas do passa-

do. A tradição de todas as gerações mortas pesa com grande peso no cérebro dos

vivos”. Por causa dessa circulação de futuro e passado no círculo virtuoso do presen-

te, perguntaram de certa feita a Tales de Mileto: ti proteron nyx é émera; Tales res-

pondeu num círculo: Nyx mia émera proteron!

Nesta circulação, o homem é, pois, uma realização que diretamente só alcança

realizações e jamais chega à realidade. Mas às vezes produz realizações privilegiadas

que parecem abolir a diferença da temporalidade. Isso porque dão acesso, embora

indireto e oblíquo, aos mistérios da realidade. São os mitos. Em seu envio se faz a

experiência de momentos intensos de uma temporalidade não apenas povoada de

realizações mas sobretudo integrada pela realidade.

As leituras filosóficas do mito proporcionam um encontro com essa temporalidade

originária. Abordam as realizações pela taumaturgia do instante. Descolam a existên-

cia do desejo de poder e continuação em benefício da criatividade temporal. Nos

Page 53: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 53

interstícios entre realização e realidade intervém mediadora a força criadora do mito:

sua obra não é nem ser nem não ser mas a temporalização pura do vir a ser. Na sua

dinâmica de inauguração se desvela o verbo real: a realidade, retirando-se, faz desa-

brochar o tempo das realizações, transforma o instante numa sucessão de momen-

tos abraçados criativamente por um mesmo impacto. Com força irresistível sente-se,

então, que só é possível viver os fundamentos do tempo em termos de criação. O

mito demonstra a invenção de um momento puramente ativo de ser. Ora, ação,

criação, invenção são pontes de passagem, nas palavra de Nietzsche, “o que há de

grande e amável no homem”. Entre a realização e o nada negativo age o instante

criativo. Toda a obra do mito está aí inserida na pobreza desses interstícios. A criação

histórica provém dessa pobreza. Isso porque o movimento de subtrair-se da realida-

de se dá numa aventura e é todo um salto no escuro. O instante de invenção não

apenas nunca se repete como nunca se aprende. Todo instante se improvisa num

risco e se arrisca numa improvisação. Hoje o instante de risco e improvisação se nos

propõe nas experiências, tensões e impulsos de uma passagem histórica com todas

as inseguranças, hesitações e ansiedades mas também com toda a ousadia, aventura

e fascínio próprios de toda passagem. Nosso século XX se torna cada vez mais um

século vespertino e o homem de hoje é um homem de transição, “ein Hinüber-Mensch”.

O que é um século vespertino? – Século vespertino é um século de acumulação e

esvaziamento, onde relacionamentos, afazeres, conquistas, recursos, instituições,

grupos e indivíduos, tudo enfim é protegido, promovido e favorecido, mas, ao mes-

mo tempo, perde a liberdade e fenece em originariedade. Impera em toda parte um

vazio saturado pelas dependências de ter e não ter. Por outro lado, mobilizam-se em

compensações as forças da grandeza humana e crescem os empenhos de descer e as

tentativas de passar. Só se fala do passado, dirigindo-se para o futuro em sintonia do

que está por vir.

Toda a grande filosofia grega nos liberta hoje para um encontro com esta essên-

cia originária do mito, que se revela, ao velar-se na própria funcionalidade vigente

tanto de sujeitos como de objetos. Escutando o ditado do mito nas transições da

história, o filósofo torna-se profeta no sentido de escutar o porvir no silêncio das

falas. Nesse presente de futuro se concentra toda sua autoridade. Hesíodo o sentiu

na obscuridade essencial das palavras silenciosas das musas do Monte Helicão:

Pastores agrestes, más línguas, somente ventres

nós sabemos dizer muitas falsidades como verdades,

mas, quando queremos, sabemos também dizer verdade na forma de mitos.

arti

go

s

Page 54: RFSB, v.3, n.1

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)54

A obscuridade do mito não é negativa no sentido de mera recusa ou simples

negação de possibilidades. A obscuridade do mito é sobretudo positiva no sentido

de nos atrair e por em condições de aceitar, nos limites de que não sabemos, a doa-

ção de novas possibilidades de ser e realizar-se. Os limites não apenas nos retiram e

recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o fazem para nos conceder e

por nas possibilidades que somos e por isso mesmo temos. Pretender eliminar obs-

curidades tão criadoras equivaleria à impotência de poder tudo, de saber tudo, de

fazer tudo. Pretender esclarecer tudo é não ver nada. Para o homem finito, definido

pela mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, cega. Assim, o filósofo

não fala de moto próprio. E por isso ele se faz todo ouvido para escutar a voz silen-

ciosa, no alarido das passagens e transições, do mito. É o que nos lembra ao pensa-

mento Aristóteles na passagem em epígrafe que abriu, desenvolveu e agora conclui

essas colocações sobre Mito e filosofia grega: “Por isso, também o filósofo é de

alguma maneira amigo dos mitos!”

Logos - mythos - eros

A integração de Mythos e Eros no Logos e pelo Logos transparece em todos os

diálogos de Platão. Aparece, sobretudo, de maneira lapidar e pregnante no Simpó-

sio, no Banquete, quando Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia, desvenda e revela a

Sócrates a profundidade misteriosa de Eros na totalidade do real e no universo de

todas as realizações.

A passagem mais densa e concentrada desta compactação encontra-se no Sim-

pósio 205 b:

Poesia é todo deixar e fazer passar do não ser de ser (ek toy mé ontos) para ser (eis to

on), qualquer que seja, de modo que as criações de todas as artes são poesias e todos

os criadores, poetas.

É a partir dessa famosa passagem do Simpósio que vamos pensar aqui e agora a

integração de mythos e eros no logos.

Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e se reconhece fora das

possibilidades de ser, conhecer e dizer. É que para se dar e acontecer mistério é indis-

pensável morar nos vãos da linguagem e descobrir-se no seio de logos. A forma mais

frequente de se sentir e descobrir essa morada é a narrativa do extraordinário no

mythos e a forma mais intensa de vigência da narrativa mítica é a poesia, o eros, pois

todo desempenho de um real instala poesia, é poético.

Page 55: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 55

Aqui, nestas parcas reflexões a partir da vigência do Logos, sobre as peripécias

não apenas de língua e discurso, mas de qualquer vivência humana, vamos propor

análises de pensamento desta passagem extraordinária do mistério do Eros ontológi-

co pela poesia de toda realização de um real, que nos propõe Platão no discurso de

Diotima.

Criação é uma atropelada que não tem, nem data de nascimento, nem berço de

origem. Todo criar se dá sempre numa e como uma irrupção do inesperado. É a

própria criação que faz a data e determina a origem de criadores e criações. Se a arte

de criar, a poética, fosse um rio, a obra criada não seria, nem a margem, nem o leito,

mas a correnteza e o criador seria o barco balançando na passagem das águas que

demarcam as margens e estendem o leito para o curso e percurso da criação.

Em sua travessia de ser, não ser e vir a ser, o homem, em todos nós, vive em todo

momento e a cada passo de sua passagem pela vida, a identidade e diferença entre

ser e não ser, entre realidade e irrealidade, entre real e irreal. O homem, já pregava

Zaratustra, é uma ponte e não um ponto final. Ora, ponte não é apenas instalação de

recursos para serviços. Só há e só se dá ponte onde ocorra passagem, porque acon-

tece travessia. Não se trata na passagem e travessia de dados entre dados, nem de

fatos entre fatos.

Trata-se da estranheza constitutiva e do desafio sempre antigo e sempre novo da

existência histórica, porque finita, dos homens. A poética mostra que a realidade é

sempre subreptícia. Sua vigência nunca é direta, seu vigor é sempre mediado pelas

realizações do real. Seu impacto é sempre oblíquo. A realidade se dá na medida e

enquanto se retrai nas realizações do real. Em toda poesia, o poético nem se esgota

nem se recusa de todo. Tudo que se apresenta de poesia numa realização poemática

se dá enquanto o poético se retrai. Ora dar-se no retraimento, apresentar-se na pró-

pria ausência, manter-se vigente na falta, é o vigor próprio, a força inaugural da

criação em toda e qualquer obra.

De certa feita, Nietzsche disse que o filósofo vive “nas geleiras das altas monta-

nhas”, im Eis- und Hochgebirge, tendo por companhia o monte vizinho, onde mora

o poeta”.

O que estas palavras do pensador nos querem dizer e fazer pensar? Será que as

geleiras têm algo a ver com a vizinhança de filosofia e de ética? Que poderá ser?

Sem dúvida, alimentando ambas de vida e dando vitalidade, a linguagem, o

logos, mantém vizinhos poetas e filósofos. Poética e filosofia são dois modos, embo-

ra diferentes, de ser pensamento e de estar na linguagem. arti

go

s

Page 56: RFSB, v.3, n.1

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)56

Sem dúvida, as muitas filosofias e as diversas poéticas não são apenas maneiras

diferentes de se responder as mesmas perguntas e de se encaminhar os mesmos

desafios. São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as respostas dadas, sãomodos diversos de se encaminhar desafios criados pela experiência história dos ho-

mens e preservados pela linguagem.

Sem dúvida, nas palavras de Wittgenstein, “os limites da linguagem são os limi-tes do mundo”. Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos nesta terra, só faz sentido

mesmo o que pudermos falar uns com os outros na ambiência do poético, o quepuder receber uma significação poética na e da linguagem. Não há verdade no singu-lar fora de toda envergadura de comunhão da poesia. A verdade nos é dada por

existirmos sempre na linguagem plural do poético, numa correnteza que nos arrastapara a convivência criadora das e com as diferenças.

Sem dúvida, já se tornou um desafio de pensamento para a poética e a filosofia,

a sequência lapidar da Carta sobre o humanismo: “A linguagem é a casa do ser. Nocasamento de ser e linguagem mora o homem. Os poetas e os pensadores lhe são osvigias e as sentinelas”.

Muito bem! Mas o que tem a ver geleira com linguagem? – É que ambas, tanto

as geleiras como sobretudo a linguagem têm o poder, ou melhor, são o poder depreservação radical da vida, depondo o passado e dispondo o futuro para o presente.

As geleiras conservam. Conservaram os mamudes da Sibéria e o homem da neve dosAlpes. E a linguagem preserva, em seus étimos, usos e jogos, as criações do passadoe as entrega às gerações presentes para as criações futuras.

Deste fluir e refluir da linguagem vive toda a tradição e toda a dinâmica história

da criação, recolhendo em suas correntezas culturais ta t’eonta – o que é – tat’essomena – o que será – ta pro t’eonta – o que foi antes. É a sabedoria que, no dizer

de Hesíodo, o pensamento criador, Mnemósina, passa para as musas nas nove noites

de amor (Teog. 27):

Poimenes agrayloi, kak’ elegkhea, gasteres oion.idmen pheydea polla legein etymoisin homoia.idmen d’ eyt’ ethelómen, aléthea mythésasthai.

Pastores rudes, más línguas, somente ventres,sabemos recolher muitos desvios ao seio das raízes,

sabemos também, quando nos dispomos, desvendar a verdade em forma de mito.

Um dos mistérios da história ocidental se tem concentrado na dinâmica de ex-

pansão e no poder de transformação do radical indo-europeu de leg-ó que conferetoda a criatividade poética à cultura e civilização do Ocidente.

Page 57: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 57

A experiência originária, donde provém e a que remete este radical lg, não é de

reunir, recolher e concentrar, como muitas vezes se repete. A experiência inaugural

tanto do grego legein, quanto do latim leg-ere e do alemão les-en, é a experiência de

por e depor, de dispor e propor. Uma pergunta que, então, se impõe é: como e em

que medida esta experiência originária passou a exercer e a significar a atividade

poética de reunir e dizer, de falar e ler, de narrar, de pausar e repousar?

Para se perceber e sentir esta passagem, deve-se analisar toda a experiência que

o radical denota e conota em suas muitas derivações. É que por e depor, dispor e

propor não ajuntam de qualquer jeito. Remetem para um processo ontológico de

instauração em que se leva uma coisa para o pouso de seu ser e a faz assim repousar

na vivência de sua realização.

E como se edifica e elabora tal processo?

Através de ordenamentos e de diferenciações! O reunir de leg- não amontoa

simplesmente unidades a esmo. Colhe e escolhe para acolher e recolher, diferencian-

do por parâmetros, selecionando por princípio de ordem. Trata-se, portanto, de um

acolhimento diferenciado por identidade, que não só aceita as diferenças, como pro-

move e estimula a diferenciação. É a vitalidade do poético. Na raiz de todo é e/ou não

é age a força de leg-ein, a força de produzir tensões e integrar conflitos. Nas vicissi-

tudes e peripécias de realização deste radical vive o poder criador e destruidor da

linguagem de gerar posições e compor oposições. É por isso que a forma medial, leg-

esthai, diz e pode dizer a experiência de assentar-se no recolhimento do repouso de

si mesmo e dos outros. Talvez agora se possa perceber com alguma transparência por

que um derivado de leg-ein constitua a palavra grega para o leito, a capa, o repouso,

o lekh-os, e outro derivado, o lokh-os, que diz a tocaia e emboscada, onde repousa

uma armadilha.

Assim a experiência originária do radical indo-europeu se desdobra em três cons-

telações irradiadoras de muitos derivados, todos articulados pela dinâmica poética

da linguagem através do movimento de por e depor, dispor e propor.

a) a constelação de reunir, colher e concentrar;

b) a constelação de pousar, assentar e repousar;

c) a constelação de relacionar, narrar, listar.

Exemplos de sentido de reunir encontramos na Ilíada, XXIII, 239, e na Odisséia

XVIII, 359; na forma medial, Ilíada, II, 125, XXIV, 793; VIII, 507 e 547, e Odisséia XXIV,

507 e 547, e Odisséia XXIV, 108. Esta última passagem é famosa: Ulisses havia retor- arti

go

s

Page 58: RFSB, v.3, n.1

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)58

nado para Ítaca e encontrara no palácio os nobres pretendentes à mão da rainha,

dilapidando os bens de sua substância. Com ajuda de Telêmaco e do fiel porcariço os

elimina com o arco e a flecha, um a um até o último descendo para o mundo subter-

râneo; os pretendentes mortos encontram entre as sobras do Hádes Agamenon, que

logo os reconhece e lhes fala numa pergunta:

Amphimedon, ti pathontes ephemén gaian edyte,

Pantes kekrimenoi kai homélikes;

oyde ken allós krinmenos lexaito kata ptolin andras aristoys.

Amfimedão, tendo sofrido o quê, mergulhastes na terra escura, todos distintos e da

mesma idade? Alguém procurando numa cidade não poderia reunir varões tão nobres!

O verbo reunir está na forma lexaito. É o optativo meio do aoristo de leg-ó.

Numa composição com a partícula enclítica ?e? forma o potencial: poderia reunir!

Aqui não é possível traduzir leg-ó por dizer e falar. Não daria sentido algum.

Um outro exemplo do sentido originário de leg-ó, reunir, concentrar, recolher,

encontramos no fragmento 114 de Heráclito de Éfeso, que equipara a dinâmica de

recolhimento do pensamento à lei, princípio de ordem e organização de uma pólis:

Xyn noói legontas iskhyrizesthai khré tói xynói pantón, hokósper nomói polis.

É mister que aqueles que recolhem com o viço criador do pensamento se fortaleçam

pela coesão de todos, tal como uma pólis pela lei.

Heráclito faz aqui um jogo de palavra e sentido com o eco das expressões xyn

noói (= com viço criador do pensamento) e xynói (= com coesão). No jogo deste eco

o que realmente ecoa é o vigor originário de leg-ein, exercendo-se tanto na força de

recolhimento do pensamento, como no poder de conjugação das realizações. Qual-

quer dicionário de grego traduz xynos por comum e geral. O sentido originário, po-

rém, nos remete para a dinâmica de reunião de toda experiência de real e realização

na realidade. Não é que seja impossível traduzir xynos por comum e geral. É possível

desde que se pense em toda sua envergadura o processo gerador da comunhão e

dinâmica de generalização. É o que nos confirma o fragmento 103, um dos mais

antigos aforismas da poética de todos os tempos:

Xynon arkhé kai peras epi kykloy periphereias.

Reunidos em si, coincidem princípio e fim na periferia do círculo.

Como princípio de ordem e força de organização do real em sua realização, leg-

ein remete sempre para o “casamento de ser e linguagem”, onde mora o homem, no

Page 59: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 59

mais elevado grau de sua explosão na poética das criações humanas. Por isso a vigên-

cia poética de leg-ein revoluciona não apenas a fala e o discurso mas também o

ouvido e a escuta. Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de leg-ein, seguin-

do o advento de sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da história.

O simples ouvir, no sentido de captar e registrar sons se dispersa na variedade múlti-

pla e diversa dos ruídos e vocábulos. Ouvir apenas com os ouvidos é não pensar nem

compreender. Equivale, no dizer de Heráclito, a ouvintes surdos. Desta função origi-

nária de leg-ein nos dá um exemplo Aristóteles na Física, VII, 1, 252 a 13:

Táxis de pasa logos.

Toda ordem, porém, é uma força de reunião!

Dessas 3 constelações de leg-ein nos vários níveis da experiência criadora do

Ocidente vive e se realiza a poética. Dela poderemos colher, seguindo a experiência

originária dos gregos, quatro sintonias essenciais para o desempenho criador do

poético em todos os exercícios de invenção e descoberta da verdade do real:

1º leg-ein vive em toda força de reunião como a conjunta de integração. É a

conjugação ontológica de ser e pensar, de que falava o Poema de Parmênides,

em tudo que, de alguma maneira, é e se realiza.

2º pertence a leg-ein coesão e consistência de estruturação.

3º leg-ein diz sempre a realidade que impera na totalidade do real e no universo

das criações.

4º a Linguagem é a operação primordial nas línguas de todos os códigos e nos

discursos de toda realização deste legein inaugural que instala ordem e desor-

dem, coesão e dispersão no mundo.ar

tig

os

Page 60: RFSB, v.3, n.1
Page 61: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 61

Jaime Spengler *

1. É de nosso conhecimento a apresentação que

realiza Pascal do que seja espírito de geometria e espíri-

to de finesse. Ele procura caracterizar um e outro em

alguns de seus pensamentos e em outras obras pontu-

ais. Procuramos aqui apresentar uma síntese de um e

outro espírito, sem, num primeiro momento, entrar no

mérito do modo de apresentá-los. Num segundo ins-

tante procuraremos elencar alguns elementos que pos-

sam, talvez, caracterizar um e outro.

2. O espírito de geometria – Os geômetras, se-

gundo Pascal, estão acostumados a só raciocinar de-

pois de terem visto bem e bem manejado os seus prin-

cípios, pois procuram determinar exata e exaustivamente

todos os axiomas e noções. Estes têm um espírito reto à

medida que se lhes expliquem bem todas as coisas por

definições e princípios. O modo de proceder guiado pelo

espírito de geometria, no seu modo típico de proceder,

raciocina corretamente; mas não possui uma boa vista.

Os geômetras não raciocinam mal sobre os princípios

que conhecem, mas não vêem o que está na frente

deles, pois estão acostumados aos princípios nítidos e

grosseiros, próprios da geometria. No âmbito desse

modo de proceder se procura demonstrar os princípios

e as deduções que daí se realizam, seguindo uma or-

dem, uma marcha do raciocínio. Os geômetras raramen-

te são sutis, pois querem tratar geometricamente coisas

Espírito de geometria e espíritode finesse

* Professor de filosofia no Insti-tuto de Filosofia SãoBoaventura da FAE – CentroUniversitário.

arti

go

s

Page 62: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse62

sutis, procurando começar pelas definições e, em seguida, pelos princípios e por isso

se tornam ridículos.

Este modo de proceder deriva com exatidão as consequências, partindo de pou-

cos princípios, pois é servo da razão. Segue um modo de proceder, o qual rende asdemonstrações convincentes. Ela conhece as verdadeiras regras do raciocínio; por

isso, quem possui a geometria, vence e adquire um vigor novo, embora o seu modode proceder seja lento, duro e inflexível. De fato o seu método consiste, teoricamen-

te, em provar todas as proposições e de dispô-las na melhor ordem.

Esta ordem consiste no manter-se no ponto justo, isto é, não querer definir ascoisas claras e entendidas por todos, isto é, os termos primitivos, e de definir todas asoutras; e de não demonstrar todas as coisas conhecidas pelos homens e de provar

todas as outras. Ora, as definições são feitas somente para designar as coisas que sãonomeadas e não a sua natureza. Por isso, não é a natureza destas coisas que é conhe-

cida por todos, mas somente a relação entre o nome e a coisa.

O espírito de geometria... propõe o que é perfeitamente demonstrável, ou com aluz natural ou com as provas. E se este modo de proceder não define e não demons-

tra tudo, é só porque tal empresa é impossível.

3. O espírito de finesse – Segundo Pascal, para o modo de conhecer guiado pelo

espírito de finesse os princípios são de uso comum; estão diante dos olhos de todomundo. Basta, para percebê-los, virar a cabeça, sem nenhum esforço; trata-se so-

mente de ter boa vista, mas que seja boa, pois os princípios são tão sutis e em tãogrande número, que é quase impossível não nos escaparem alguns. Ora, a omissão

de um princípio leva ao erro; assim, é preciso possuir a vista bem clara para ver todosos princípios e também o espírito justo para não raciocinar erroneamente sobre prin-cípios conhecidos. (...) Os espíritos sutis seriam geômetras, se pudessem volver a vista

para os princípios desusados da geometria. Eles não podem de todo voltar-se para osprincípios da geometria. Já os geômetras (...) perdem-se nas coisas da finura, onde os

princípios não se deixam manejar como no modo de proceder geométrico. Eles sãoapenas entrevistos; mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinitopara torná-los sensíveis a quem não os sente por si próprio: são coisas de tal maneira

delicadas e tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado e muitopreciso para senti-las, e para julgar reta e justamente de conformidade com esse

sentido, sem poder, o mais das vezes, demonstrá-las em ordem, como na geometria,porque não lhes possuímos do mesmo modo os princípios, e tentá-lo seria um não

acabar mais. É preciso, num instante, ver a coisa num só golpe de vista, (...) ao menos

até certo grau. (...) O sentimento só pertence a poucos homens.

Page 63: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 63

Os espíritos sutis, (...) acostumados a julgar com um só golpe de vista, ficam tão

espantados (diante do modo de proceder da geometria), que se afastam e se desgos-

tam. (...) Os sutis, que são apenas sutis, não podem ter a paciência de descer aos

primeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação, que nunca viram no

mundo e que estão completamente fora de uso.

O espírito de finesse deriva com exatidão as consequências das coisas em que há

muitos princípios; ele julga com o sentimento e por isso não entende nada das coisas

do raciocínio, pois quer logo chegar a perceber com um golpe de vista e não tem o

hábito de procurar os princípios.

O espírito de finesse... sente os princípios e os colhe em unidade...; estão diante

dos olhos... É preciso num instante, ver a coisa num só golpe de vista, e não pela

marcha do raciocínio, ao menos até certo grau!

O espírito de finesse “possui uma ductilidade de pensamento que se adapta ao

mesmo tempo às diversas partes amáveis daquilo que se ama; dos olhos vai até o

coração e dos movimentos exteriores conhece o que acontece no interior”. Este modo

de colher, de sentir os princípios “não se adquire através do costume; se pode somente

aperfeiçoá-lo”. Ele “é um dom da natureza e não uma aquisição através da arte”.

“Quando se possuem um e outro (espírito) juntos, que prazer dá o amor! Porque

se têm juntas a força e a flexibilidade do espírito”.

4. Vamos tentar levantar alguns aspectos/pontos que possam, talvez, ilustrar/

caracterizar um e outro modo de proceder.

O espírito de geometria, agindo com exatidão, colhe os princípios e os elementos

singularmente, exigindo rigor na apresentação dos dados recolhidos. Ele propõe o

que é perfeitamente demonstrável, ou com a luz natural ou com as provas. E se este

modo de proceder não define e não demonstra tudo, é só porque tal empresa é

impossível1! Esse rigor exigido significa aqui clareza. Ora, clareza é possível através

da constituição de sistemas racionais, aos quais o método geométrico-matemático

serve de modelo, isto é, através desse método, a natureza é assumida como objeto

de investigação a partir do princípio da calculabilidade.

O conhecimento iluminado pelo espírito de geometria evita equívocos e confu-

sões, possibilitando a apresentação dos resultados colhidos através da investigação

1 PASCAL, B. “De l’esprit géométrique et de l’art de persuader”, in: Oeuvres complètes I, (a cura de M. Le Guern)Gallimard, 1998, p. 351. ar

tig

os

Page 64: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse64

de forma coerente, clara e distinta, e isto por dois motivos básicos: o primeiro é

representado pela razão que aciona este modo de investigação; a razão em si é um

instrumento, uma faculdade formal sem conteúdos próprios; mais ainda: ela de-

monstrará tudo o que se desejar, segundo os princípios que lhe serão fornecidos

como fundamento; o segundo motivo advém da necessidade que brota da própria

investigação: seu caráter de rigor e clareza, e consequentemente, capacidade de-

monstrativa (...)

A ciência, como expressão da consciência moderna, isto é, guiada pelo princípio

matemático-geométrico, não pode ter a pretensão de alcançar o domínio da nature-

za na sua totalidade, pois ela conhece somente o dado fenomênico, condicionado.

Não inutilmente Descartes, na segunda regra da sua obra Regulae ad directionem

ingenii, afirma que é necessário ocupar-se somente daqueles objetos 0a respeito dos

quais para o certo e seguro conhecimento parece ser suficiente a nossa inteligência.

Por isso, à ciência restará sempre um saber parcial, devendo renunciar a toda preten-

são metafísica.

A consciência moderna, guiada pelo princípio do método geométrico-matemáti-

co, não possui, porém, nenhum início absoluto e nenhum fim, ela está sempre a

caminho2. Por isso, os pressupostos com os quais a ciência trabalha são sempre pres-

supostos lançados a partir de uma decisão de um ente. Entre os pressupostos que

garantem à ciência o seu desenvolver-se e a originária abertura a partir de onde os

termos de uma proposição são definidos, existe um abismo! Consequentemente pode

Pascal afirmar: “(...) existem palavras que são incapazes de serem definidas; e se a

natureza não tivesse suprido tal dificuldade com uma idéia correspondente que ela

deu a todos os homens, todas a nossas impressões restariam confusas; enquanto

elas são usadas com a mesma segurança e a mesma certeza como se fossem explica-

das em um modo perfeito e privo de equívocos; porque a natureza mesma nos for-

neceu, sem palavras, uma inteligência mais precisa do que aquela que nos fornece a

arte com as suas explicações”3.

A ciência moderna, embora não possua um início absoluto nem um fim predeter-

minado, senão aquele da evidência, possui um valor prático inegável. Porém, o que

2 Fr. 72: “(...) Todas as ciências são infinitas na amplitude de suas investigações. (...) São infinitas também namultidão e na delicadeza de seus princípios, pois quem não percebe que aqueles que se consideram últimos nãose sustentam sozinhos, mas se apóiam em outros, os quais, tendo por sua vez outros por apoio, nunca são osúltimos? Nós, porém, consideramos últimos os que parecem últimos à nossa razão, tal qual fazemos com as coisasmateriais, em que denominamos ponto indivisível aquele para além do qual os nossos sentidos nada mais distin-guem, embora continue divisível independentemente por sua própria natureza” (PASCAL, 1961).3 PASCAL, B. De l’esprit géométrique et de l’art de persuader, op. cit., p. 350.

Page 65: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 65

deve ser considerado criticamente é a presunção, a pretensão absolutista deste modo

de proceder que se arroga a possibilidade de ser o critério único de toda proposição

verdadeira, pois este procedimento representa sempre uma perspectiva de indagação

da verdade, mas que não pode de antemão excluir outras, talvez mais penetrantes e

compreensíveis. Tarefa das ciências é verificar os dados que o próprio contato com os

entes nos oferece. A ciência jamais poderá ter a pretensão de poder tematizar a totalida-

de dos entes. Mais ainda, e isto é importante ressaltar, o modo de relacionar-se com os

entes não é idêntico ao âmbito próprio do nosso mundo vital; trata-se de campos diver-

sos. E isto por uma razão muito simples: À ciência restará para sempre uma expressão

privilegiada da capacidade humana da razão e, enquanto tal, participa da condição

humana, isto é, limitada; ela pode, sim, oferecer respostas a inúmeras questões que

abraçam a existência humana; todavia, ela não possui competência suficiente para

oferecer ao homem respostas sobres as “primeiras e últimas coisas”.

É a partir de tais considerações que podemos melhor compreender a crítica feita

por Pascal a Descartes4, embora ele também tivesse abraçado com entusiasmo o

ideal que a nova possibilidade de fazer ciência, segundo uma ordem lógica e linear

oferecia: “...que não somente cada homem progrida dia a dia nas ciências, mas que

todos os homens juntos façam nelas um progresso contínuo, à medida que o univer-

so envelhece”5. A partir da descoberta do Cogito, sob o princípio da evidência, Des-

cartes pretendia edificar o inteiro edifício da ciência, que forneceria ao homem a

chave do universo. Pascal critica não a ciência, a qual permanecerá limitada no cam-

po da experiência, mas a sua pretensão de querer alcançar uma explicação ampla e

definitiva do mundo. A causa de seu modo próprio de proceder restará condicionada

a um progresso constante; cada época, cada geração oferece uma sua contribuição,

a fim de aperfeiçoar o seu próprio avançar. Isto porque os segredos da natureza

estão velados, mas o tempo os revela de época em época, pois com o avançar do

mesmo, o espírito humano vai se enriquecendo à causa das experiências que se mul-

tiplicam em continuação. Este aspecto da ciência moderna evidencia o fato de que o

conhecimento humano, fruto do metodológico trabalho científico, é sempre históri-

co, mutável, e, portanto, sujeito à dinâmica do progresso e aos limites da razão.

Pascal descreve o modo de proceder da ciência guiada pelo espírito de geome-

tria, tendo como princípio a necessidade da definição dos termos da proposição e

4 Fr. 78: “Descartes: inútil e incerto”. Fr. 79: “Descartes: - Cumpre dizer, grosso modo: ‘Isso se faz por figura emovimento’, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina é ridículo, pois é inútil e incerto epenoso (...)” (PASCAL, 1961).5 PASCAL, ‘Préface sur le Traité du vide’, in: Oeuvres complètes I, (a cura de M. Le Guern) Gallimard, 1998, p. 232. ar

tig

os

Page 66: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse66

demonstração, e não partindo da intuição. Isto concede a possibilidade de lançar o

ponto de partida da pesquisa lá onde o arbítrio humano decide, pois “não estamos

seguros senão acerca do que vemos com nossa vista” (PASCAL, 1961, Frg. 80). Daqui

podemos vislumbrar as razões da crítica de Pascal a Descartes: “Escrever contra os

que aprofundam demais as ciências. Descartes” (PASCAL, 1961, Frg. 76). Por quê? Por-

que Descartes parte de um conceito prévio, tido como seguro, mas não investigado,

sobre o qual pode apoiar a constituição de um saber universal, inaugurando assim

uma nova metafísica, que pode servir de fundamento às ciências. Pascal critica esta

metafísica, pois o seu fundamento resta sempre algo de inseguro e inconstante. Ele

entrevê os limites desta impostação cientifica, pois tudo o que não pode ser objetiva-

do segundo a determinação matemática passa a ser considerado indigno de ser sub-

metido ao trabalho cientifico. Este modo de impostar a busca de compreensão do

ente representa um ataque do homem à natureza, o qual é guiado somente pelo

método experimental e pela pretensão de alcançar o domínio sobre a mesma. Esta

pretensão pode representar uma ditadura do espírito que degrada o espírito e o

reduz a operador de cálculos, organizador de conceitos operativos e representante

de um modelo operativo predefinido. À base de tal crítica está o princípio cartesiano

da redução dos corpos à extensão, impedindo assim a tematização de toda existência

individual. Todavia, pode-se apontar ainda para uma motivação ainda mais radical

por parte de Pascal na sua crítica a Descartes. Pascal permite entrever que Descartes

não só não fundamenta a sua filosofia da natureza, mas também não funda nem

justifica a existência humana. A incerteza invocada por Pascal traz consigo a sua

inutilidade, pois, “é não somente impossível, mas também inútil conhecer Deus sem

Jesus Cristo” (PASCAL, 1961, Frg. 549); “impossível” porque, partindo de um princípio

hipotético, não se tem a sua evidência; “inútil” porque, supondo que se possa conhe-

cer Deus de tal modo, resta ainda uma grande distância entre o conhecê-lo e o amá-

lo! Desse modo, Descartes se torna “inútil e incerto” (PASCAL, 1961, Frg. 78). Pascal

está indicando a existência de competências; desejar provar a existência de Deus é

algo de inútil, do mesmo modo como seria inútil a Jesus Cristo ser reconhecido rei em

geometria ou a Arquimedes príncipe no espetáculo ostentativo da política, pois, para

ele, a única coisa que conta é o amor de Deus. A crítica de Pascal a Descartes não

representa uma acusação de ignorância de Deus, mas de O utilizar para regular a

máquina do mundo e não para submeter-se6.

6 Fr. 77: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôdeevitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus” (cf.MARION, J.-L. Sur le prisme métaphysique de Descartes. Paris: PUF, 1986, p. 316).

Page 67: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 67

Existe também, segundo Pascal, uma dimensão sutil da existência que não se

deixa manejar como gostaria o geômetra, pois ali mais se observa do que se discerne.

O geômetra necessita realizar um enorme esforço para poder penetrar em tal dimen-

são. Isto porque ele procede a partir de pressupostos não evidentes. Ao lado deste

modo de proceder, mas não em oposição, Pascal descreve um outro modelo de co-

nhecimento, extremamente fecundo e que denomina espírito de finesse.

Segundo Pascal, para o modo de conhecer guiado pelo espírito de finesse osprincípios são de uso comum; estão diante dos olhos de todo mundo. Basta, parapercebê-los, virar a cabeça, sem nenhum esforço; trata-se somente de ter boa vista,

mas que seja boa, pois os princípios são tão sutis e em tão grande número, que équase impossível não nos escaparem alguns. Ora, a omissão de um princípio leva ao

erro; assim é preciso possuir a vista bem clara para ver todos os princípios e tambémo espírito justo para não raciocinar erroneamente sobre princípios conhecidos. (...)Os espíritos sutis seriam geômetras, se pudessem volver a vista para os princípios

desusados da geometria. Eles não podem de todo voltar-se para os princípios dageometria. Já os geômetras (...) perdem-se nas coisas da finura, onde os princípios

não se deixam manejar como no modo de proceder geométrico. Eles são apenasentrevistos; mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinito para torná-

los sensíveis a quem não os sente por si próprio: são coisas de tal maneira delicadase tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado e muito preciso parasenti-las, e para julgar reta e justamente de conformidade com esse sentido, sem

poder, o mais das vezes, demonstrá-las em ordem, como na geometria, porque nãolhes possuímos do mesmo modo os princípios, e tentá-lo seria um não acabar mais. É

preciso, num instante, ver a coisa num só golpe de vista, (...) ao menos até certograu. (...) O sentimento só pertence a poucos homens.

Os espíritos sutis, (...) acostumados a julgar com um só golpe de vista, ficam tãoespantados (diante do modo de proceder da geometria), que se afastam e se desgos-

tam. (...) Os sutis, que são apenas sutis, não podem ter a paciência de descer aosprimeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação, que nunca viram no

mundo e que estão completamente fora de uso.

O espírito de finesse deriva com exatidão as consequências das coisas em que hámuitos princípios; ele julga com o sentimento e por isso não entende nada das coisas

7 Temos aqui uma visão panorâmica daquilo que Pascal, sob o título “Espírito de Finesse”, apresenta nos fragmen-tos de 1 a 3. ar

tig

os

Page 68: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse68

do raciocínio, pois quer logo chegar a perceber com um golpe de vista e não tem o

hábito de procurar os princípios7.

O espírito de finesse é conduzido por uma dinâmica própria de conhecimento;

“ele sente os princípios e os colhe em unidade”, manifestando uma amplidão de

espírito que lhe permite penetrar com vivacidade e profundidade nas consequências

dos princípios. Trata-se, pois, de intuição, de imediatez que não depende simples-

mente de uma disposição arbitrária do que ‘está aí diante dos olhos’, mas é algo com

o qual já desde sempre somos confrontamos: “estão diante dos olhos”. Este mostrar-

se do que está diante dos olhos acontece já antes que a ‘subjetividade’, a partir de si,

saiba deste fato!

Pascal afirma que, segundo o modo de proceder do espírito de finesse, a multi-

plicidade dos princípios é colhida em uma unidade, sem nenhuma intervenção pre-

determinada da subjetividade; trata-se de princípios que se sentem, que se impõem

a nós, e por isso não são vistos em seus nexos lógicos. Todavia, apesar da não evidên-

cia de seus nexos lógicos, este modo de proceder representa um modo fecundo de

conhecer. É preciso num instante, ver a coisa num só golpe de vista, e não pela

marcha do raciocínio, ao menos até certo grau! Trata-se de uma espécie de intuição.

Em um outro texto, Pascal precisa que o espírito de finesse “possui uma ductilidade

de pensamento que se adapta ao mesmo tempo às diversas partes amáveis daquilo

que se ama; dos olhos vai até o coração e dos movimentos exteriores conhece o que

acontece no interior”. Este modo de colher, de sentir os princípios “não se adquire

através do costume; se pode somente aperfeiçoá-lo”. Ele “é um dom da natureza e

não uma aquisição através da arte”. O modo de proceder do espírito de finesse se

caracteriza por uma dinamicidade que está numa constante atenção para acolher na

sua totalidade o que pode se manifestar! Através deste espírito se tocam realidades

complexas, que se exprimem de modo singular, de forma subtil, fugidias, caracteriza-

das por nuanças que escapam a uma análise metódica. O próprio Pascal afirma que,

para penetrar nesta dimensão, é necessário um “sens” (sentido) muito delicado e ao

mesmo tempo muito preciso (PASCAL, 1961, Frg. 1), capaz de discernir o emaranhado

das relações e oferecendo uma compreensão da totalidade antes que se entre em

considerações metódicas. Estamos, pois, diante de um segundo uso, ou melhor, de

um segundo nível do espírito, correspondente a um segundo grau de interiorização.

Podemos, portanto, sugerir que, se de um lado o modo de proceder geométrico

carrega em si um limite, pois jamais poderá superar as fronteiras que caracterizam a

sua organização prévia, isto é, procede por distinções, por outro lado necessita man-

Page 69: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 69

ter-se aberto a um campo de conhecimento, onde o espírito de finesse pode encon-

trar o chão para a possibilidade de superação dos dados adquiridos e organizados

metodicamente, aprofundando e penetrando dimensões novas: “Quando se possu-

em um e outro juntos, que prazer dá o amor! Porque se têm juntas a força e a

flexibilidade do espírito”. Um e outro modo de proceder estariam assim, profunda-

mente empenhados autenticamente na busca do sentido do modo do ser.

A razão adquire assim uma posição particular: de um lado, se empenha na refle-

xão para a formulação das definições, distinções e organização dos dados recolhidos

a partir da experiência externa e científica; do outro lado, pode também ser constan-

temente despertada para acolher, a partir desta compreensão da finesse, a possibili-

dade de vislumbrar dimensões novas, de onde a experiência existencial lhe concede

sempre de novo a possibilidade de investigar.

Os princípios colhidos pelo Espírito de Finesse são de tal modo finos e sutis,

afirma Pascal, que a gente os pode mal e mal sentir. Ora, este sentir impõe a necessi-

dade de uma abertura à dimensão do sentimento. Com o termo sentimento designa-

mos um conjunto de atos, onde acontecem as emoções intelectivas, as experiências

de valores e do querer8. O sentimento tem as suas leis e objetos próprios; deste modo

constitui-se também um mundo singular tão real quanto aquele constituído pela

dimensão meramente racional. Existe entre o sentimento e o seu objeto específico

uma imediatez própria, independente das leis psíquicas do indivíduo. Basta recordar,

a título de exemplo, o fragmento 276: “O Sr. Roannez dizia: ‘as razões vêm-me de-

pois: antes, a coisa me agrada ou me choca sem que eu saiba a razão, e, no entanto,

choca-me, por essa razão que descubro a seguir’. Não creio que a coisa choque pelas

razões que se descobrem depois e sim que só se encontram essas razões porque a

coisa choca”.

O sentimento oferece os conteúdos fundamentais que constituem o homem na-

quilo que ele é; mais ainda: lhe concedem a possibilidade de conhecer aquilo de que

ele necessita para subsistir (PASCAL, 1961, Frg. 72)9; nesse sentido, o homem se cons-

titui enquanto sentimento; este existe por si mesmo e se basta a si mesmo. As expe-

riências de sentimento constituem o homem como sujeito de emoções; nelas nos

encontramos, por exemplo, em dor, em alegria, em confiança etc. São estas experiên-

8 Seria interessante ampliar a compreensão do que seja sentimento...9 Sabemos da grande importância de uma boa compreensão do que seja sentimento para uma justa compreensãoda estrutura da existência humana. O sentimento é algo constitutivo da estrutura ontológica da existência huma-na. Cf. M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 29. ar

tig

os

Page 70: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse70

cias que abrem um horizonte de compreensão da condição humana, difícil de ser

compreendido por quem não se deixa conduzir pelo princípio da finesse. A dimensão

do sentimento representa uma imediata presencialidade dada que agarra o homem,

onde, como afirma Pascal no fragmento 01, “os princípios são apenas entrevistos;

mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinito para torná-los sensí-

veis a quem não os sente por si próprio”. Esta dimensão do conhecimento parte de

uma compreensão de totalidade para chegar ao particular. Tal descrição apresenta

uma tensão do pensamento proporcionada pelo sentimento: ele está sempre em

ação, mas não em uma pressa desmedida; ao contrário: está sempre novamente e de

forma nova procurando checar cada possibilidade, indagando-as nas suas variadas

manifestações. Assim, nenhuma solução parcial pode ser satisfatória, pois não é pos-

sível permanecer junto à parcialidade. O pensamento assim acionado aspira a “um

sempre mais além”, não considerando como progresso o simples fruto do raciocínio

lógico-matemático, mas sondando as possibilidades de vislumbrar dimensões novas,

onde uma compreensão mais ampla dos entes na sua totalidade possa ser alcançada.

Assim, o sentimento representa não aquilo que um certo tipo de psicologia compre-

ende quando utiliza tal termo, mas o fundamento mesmo da existência humana e de

suas possibilidades; o chão a partir do qual a existência humana se constitui.

O pensar comum esquiva-se da tensão do pensamento; tal pensar tenta sempre

escapar do encontro-desencontro das oposições, pois procura sempre uma certa via

média, representada pela ciência com suas certezas. Ora, o pensamento autêntico

não pode jamais esquivar-se da tensão que domina os seus contrastes fundamentais;

estes contrastes são tão evidentes que é impossível não os considerar10.

O sentimento se realiza num corpo; melhor dizendo, é no corpo que se dá o

sentir. O corpo, portanto, não pode ser considerado simplesmente no seu modo

exterior de se apresentar; do mesmo modo o sentimento. É da unidade de corpo e

sentimento que surge uma totalidade nova11. O corpo, assim considerado, torna-se a

porta de entrada para o mundo. É através dele que são dadas ao homem as possibi-

10 Fr. 72: “Daí a confusão generalizada entre quase todos os filósofos que misturam as idéias das coisas, falandoespiritualmente das coisas corporais e corporalmente das coisas espirituais. Dizem, ousadamente, que as coisastendem a cair, que aspiram ao centro, que fogem à sua destruição, que temem o vácuo, que tem inclinações,simpatias, antipatias, qualidades todas que somente ao espírito pertencem. E, referindo-se ao espírito, conside-ram-no como se estivesse em determinado espaço, e lhe atribuem a capacidade de movimentar-se, coisas quepertencem apenas aos corpos. Em vez de recebermos a idéia pura das coisas, tingimo-la com nossas qualidades eimpregnamos de nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos” (PASCAL, 1961).11 Fr. 512: “A união de duas coisas sem mudança não permite dizer que uma se transforma na outra: assim a almaestá unida ao corpo, o fogo à lenha, sem mudança. É preciso uma mudança que permita que a forma de uma setorne a forma da outra: tal como a união do Verbo ao homem” (PASCAL, 1961).

Page 71: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 71

lidades de confrontar-se com os entes que o cercam; é nele e com ele que experimen-

tamos, por exemplo, as possibilidades e os limites da nossa condição; nele experi-

mentamos os pressupostos dos talentos, dos impedimentos insuperáveis, da condi-

ção de raça, nacionalidade, costumes; é no corpo que vivemos as relações com nosso

grupo social e familiar. Portanto, o corpo não é simplesmente qualquer coisa de

material e por isso espacial. O corpo representa a possibilidade de abertura do ho-

mem para o mundo, segundo os modos primitivos da quantidade, temporalidade,

espacialidade e mensurabilidade. Esta abertura para o mundo, possível no e através

do corpo, o homem deve aceitar assim como ela é; trata-se de algo que lhe é dado:

lhe é natural. O homem não pode, a partir da sua subjetividade, mudar esta condi-

ção; ela não depende de uma sua decisão, pois lhe é o fundamento. Por isso, afirmar

que a compreensão pascaliana do homem como corporeidade reflete a concepção

bíblica do homem como unidade de corpo e alma, não significa um andar para além

daquilo que ele descreve como sentimento, porque podemos afirmar que corpo e

sentimento formam uma unidade, são sinônimos. Tarefa do homem é conservar esta

sua condição, pois ela pode ser corrompida: “como se estraga o espírito, estraga-se

também o sentimento” (PASCAL, 1961, Frg. 6).

Se as considerações sobre o sentimento nos conduziram novamente ao tema da

corporeidade, é porque esta nos provoca a refletir sobre a sua dimensão da finitude

e de vulnerabilidade não como uma restrição, mas como amplitude. Por que amplitu-

de? Porque, segundo o proceder geométrico, a “ratio” é já sempre guiada por pres-

supostos dados, enquanto que no âmbito da finitude se está sempre na disposição

para uma abertura originária do que caracteriza o homem enquanto tal, isto é, finito.

A ciência no seu agir positivo, jamais poderá explicar completamente os desejos e

interesses do homem, ou seja, o seu ser lançado no mundo.

A possibilidade de compreender a nossa vida é algo que nos é concedido somen-

te à medida que vivemos. As teorias, os sistemas com seus métodos e organização

não nos dão o acesso ao elementar da nossa existência enquanto tal. A vida tem um

seu modo próprio de esclarecimento, segundo uma medida própria. Por isso afirma

Pascal: “a verdadeira eloquência zomba da eloquência, a verdadeira moral, zomba

da moral;(...) zombar da filosofia é, em verdade, filosofar” (PASCAL, 1961, Frg. 4). Não

se trata de refutação ou oposição entre um e outro modo de investigar as diversas

situações vitais; trata-se, sim, antes de tudo, de modos distintos e originais de proce-

der; ou em outros termos: Pascal não concebe a atividade do pensar como uma mera

organização racional dos entes, mas como um movimento vital, como um modo de

ser que, em avançando na tarefa de autoconhecer-se, faz irromper dimensões sem- arti

go

s

Page 72: RFSB, v.3, n.1

SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse72

pre mais amplas da própria existência. Assim sendo, a tarefa do pensar emana da

plenitude da vida e a ela deve conduzir e dar-lhe condições de se conservar.

Esta tentativa de compreender o modo de proceder denominado espírito de finesse

nos mostra que não somos nós que possuímos as formas de clarificação da existência

enquanto tal, mas que somos guiados por dinâmicas originais de sua compreensão.

Ao mesmo tempo, podemos entrever que semelhante interpretação não pode ser

facilmente reconhecida pela razão positiva; para esta a “finesse” é cega e como tal

poderá ser identificada com o instinto. Deste modo, podemos compreender Pascal

quando afirma que “duas coisas instruem o homem acerca de sua natureza: o instin-

to (espírito de finesse) e a experiência (espírito de geometria)” (PASCAL, 1961, Frg.

396). E ainda: “instinto. Razão - Temos uma incapacidade de provar, que nenhum

dogmatismo pode vencer. Temos uma idéia da verdade, que nenhum pirronismo

pode suplantar” (PASCAL, 1961, Frg. 395).

Pode-se vislumbrar mais uma vez aquela importante função que tem o conceito

de finitude do homem na obra de Pascal; essa finitude não poderá jamais ser extinta:

na verdade, é ela que constitui o homem enquanto homem. Ao mesmo tempo,

tematizando a questão da finitude, Pascal lança uma forte critica àquele modo de

conceber o ente somente enquanto representado pelo “eu”, trazendo deste modo

novamente à luz a questão da incapacidade natural da razão de provar os princípios

originários. Estes requerem uma idéia de verdade que a pura razão, guiada somente

pelo espírito de geometria, não pode alcançar; para poder entrever tais princípios

originários, o homem goza das possibilidades que lhe são oferecidas pelo instinto.

No fragmento 4, Pascal afirma que ao juízo pertence o sentimento. O que signi-

fica aqui juízo? Não estaria aqui implícito um modo próprio de movimentar-se no

chão da vida? Não seria possível entrever nesta afirmação que é a partir de um agir

que conduz a uma clarividência da vida ela mesma, que podemos compreender o

que significa sentir, sentimento, corpo? Se assim é, então o juízo pode ser compreen-

dido como resultado de uma decisão. A partir da decisão, é possível um entrar no

movimento da abertura originária da natureza, no equilíbrio de toda particularidade,

naquilo que significa “finesse”. Mais ainda: o próprio modo de proceder científico se

torna possível, somente através de uma intuição imediata dos primeiros princípios,

isto é, tempo, espaço, movimento, número, igualdade própria do espírito de finesse;

assim sendo, ainda que o modo de proceder geométrico-matemático, possa parecer

mais convincente, este não pode desconsiderar a intuição originária que lhe possibi-

lita o avançar. Trata-se de algo que nos ultrapassa, sim, mas que não pode ser igno-

Page 73: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 73

rado. Com tais observações, Pascal, possibilitou a compreensão da abertura de uma

dimensão do conhecer tão real quanto aquela denominada positiva, a qual, todavia,

possui uma forte tendência a impor-se como única e evidente12. Esta nova dimensão

do conhecimento, guiada por uma mais ampla profundidade de espírito, Pascal de-

nominou com a expressão coração.

Referências

PASCAL, B. Oeuvres complètes I (a cura de M. Le Guern), Gallimard, 1998.

PASCAL, Pensamentos. (trad. portuguesa de S. Millet), 2. edição, São Paulo: Difusão

européia do livro, 1961. (Esta mesma versão, juntamente com A vida de Pascal escri-

ta por G. Périer, foi publicada em 1973, pela Abril S.A. Cultural e Industrial, São

Paulo, na coleção Os Pensadores – História das grandes idéias do mundo ocidental).

12 Fr. 281: “Coração, instinto e princípios” (PASCAL, 1961).

Fr. 282: “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira queconhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. Os pirrônicos,que só têm isso como objetivo, trabalham inutilmente. Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossaimpotência em prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razão, e não acerteza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem (...)” (PASCAL, 1961).

Fr. 283: “A ordem. Contra a objeção de que a Escritura não tem ordem - O coração tem sua ordem; o espírito tema sua, através de princípios e demonstrações; o coração tem outra. Não se prova que se deve ser amado expondopor ordem as causas do amor: seria ridículo” (PASCAL, 1961). ar

tig

os

Page 74: RFSB, v.3, n.1
Page 75: RFSB, v.3, n.1

ARTIGOS-RESUMO DEMONOGRAFIA

Page 76: RFSB, v.3, n.1
Page 77: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 77

Robson Luiz Scudela *

Resumo: O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma refle-xão a respeito do homem, a partir das obras de Dostoiévski. É motiva-do pelo trecho das Memórias do subterrâneo: “Nas recordações decada homem há coisas que este não descobre a ninguém, a não ser aseus amigos” (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p.688). A reflexão abordará,neste aspecto, a história pessoal de Dostoiévski e o contexto social noqual ele viveu, a fim de compreender de onde surgiram as principaisinfluências em seu pensamento. É apresentada a relação filosofia-lite-ratura, buscando superar a concepção de que ambas se opõem. Éelaborada, também, uma reflexão no que diz respeito à relação deDostoiévski e a filosofia.

Palavras-chave: Dostoievski, homem, antropologia filosófica, filoso-fia, literatura.

Abstract: This paper aims to develop a reflection on the man, fromthe works of Dostoevsky. It is motivated by the passage of the Memoirsof the underground: “In memory of every man there are things thathe does not reveals anyone, unless your friends” (Dostoyevsky, 1963c,v.2, p.688). In this aspect the discussion will address of Dostoevsky’spersonal history and social context in which he lived, to understandwhere it came from the main influences of his thinking. It shows therelationship philosophy-literature, seeking to overcome the idea thatboth oppose. It produced also a reflection regarding the relationshipof Dostoevsky and philosophy.

Keywords: Dostoyevsky, man, philosophical anthropology, philosophy,literature.

O conhecer a si mesmo, emDostoiévski

* Estudante da ProvínciaFranciscana da ImaculadaConceição do Brasil, atual-mente estagiário na missãoda Província, em Angola.email: [email protected]. O presente artigo foi ela-borado originalmente apartir do trabalho de con-clusão de curso apresenta-do ao Instituto de FilosofiaSão Boaventura da FAE –Centro Universitário Paraná. ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 78: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski78

Introdução

Antes, talvez, da leitura das linhas que seguem, seria de maior proveito se o leitor

as deixasse de lado e, saindo de casa, fosse andar por uma das ruas na qual o encon-

tro com outras pessoas pudesse acontecer. Se isto se tornar realidade, não se preocu-

pe, no encontro com elas, dizer-lhes algo ou querer que lhe o digam. Apenas ande e

veja que as pessoas são tão desiguais que seria inconcebível chamá-las assim, subme-

tendo-as a um conceito.

Sob o conceito pessoa há um homem que surge em sua individualidade, em e de

seu jeito próprio, o que o torna único. Se, pois, o que observa e que é observado é

este individual, este único em seu próprio, a questão homem torna-se, evidentemen-

te, a que mais clama por uma resposta, uma vez que faz referência àquele que a

elabora.

Nessa perspectiva, não há, primordialmente, outra questão que provocaria o

homem, a não ser a do conhecer-se.

O diferencial dessa questão é que ela não é de simples solução. O homem, por

mais que queira, não consegue submeter seu viver aos conceitos e aos fatos exter-

nos. É uma fonte borbulhante que, se impedida em algum lugar de sair, encontrará,

por necessidade, outro.

A descoberta do homem, por Dostoiévski, encontra-se neste caminho, no qual a

fonte borbulhante do viver é maior que qualquer limite racional ou pré-determina-

ção. O homem vive numa dinâmica cuja vivacidade encontra-se no próprio homem.

Assim, o conhecer-se não poderia ser entendido como uma possibilidade do homem

que, ao realizá-lo, estaria em condições de pré-determinar-se. O conhecer-se é o pró-

prio homem que se vê libertado daquela “antiga-pré-definidora-presente” impressão

de que em si há apenas o homem santo ou somente o pecador.

O homem é viver. Por mais que houvesse o objetivo de defini-lo em sua dinâmica,

pelo bom senso racional, este jamais seria realizável. O viver sacrifica o bom senso em

seu altar, para o louvor de si.

Se, porém, o homem é viver, qualquer busca por ele seria inútil e insegura. A

possibilidade de colher frutos é incerta, uma vez que é impossível pré-definir as atitu-

des humanas, e uma descoberta, facilmente, perderá o seu norte diante do agir hu-

mano que pode surgir. Todavia, está aí a desafiadora tarefa à qual deve-se acender a

vela e fazer a prece. A tarefa é a busca do homem não no conceito, mas na sua

vivacidade.

Page 79: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 79

Não é objetivo desta abordagem realizar a adjetivação da essência humana, mas

sim, perceber como esta acontece, e como nela o homem surge, não havendo mais

uma roupa científica que o vista, dando, assim, a ele, a capacidade de surpreender,

tornando-o capaz de, apesar das poucas peças, dar o xeque-mate e o convite para

uma nova jogada.

Dostoiévski, contemplando o homem em suas obras, dá a ele espaço para acon-

tecer. O homem não é objeto colocado no mundo, mas sim, é acontecimento e,

neste, revelação.

Sendo assim, para melhor ver o homem, a partir de Dostoiévski, o presente estu-

do se inspira no trecho das Memórias do subterrâneo: “Nas recordações de cada

homem há coisas que este não descobre a ninguém, a não ser a seus amigos. Há

outras também que nem a seus amigos descobre, e apenas a si próprio as confessa,

e isto ainda em segredo. Mas há finalmente outras que o homem receia confessar a

si próprio, e todo homem guarda na sua alma uma pilha dessas coisas” (DOSTOIÉVSKI,

1963c, v.2, p. 688).

No primeiro momento, “nas recordações de cada homem há coisas que este não

descobre a ninguém, a não ser a seus amigos”, serão abordadas as questões presen-

tes nas “conversas” do-dia-a dia, quando, diante de seus amigos, o homem encontra

espaço para abordá-las. Nesta abordagem, será apresentada a vida de Dostoiévski,

suas obras e o contexto social no qual viveu. Apresentar-se-á, também, uma reflexão

no que diz respeito à relação entre filosofia e literatura durante a história, e como

esta acontece nas obras de Dostoiévski.

O segundo momento, “há outras também que nem a seus amigos descobre, e

apenas a si próprio as confessa, e isto ainda em segredo”, será dedicado às questões

que o homem não revela aos seus amigos, confessando somente a si, em segredo.

Será apontado, nessas questões, o mal, o sofrimento, o bem, a liberdade e Deus,

como questões presentes no homem e que dele exigem uma resposta.

No terceiro e último momento, “mas há finalmente outras que o homem receia

confessar a si próprio, e todo homem guarda na sua alma uma pilha dessas coisas”,

serão abordadas a questão do homem, a relação dele com seu próximo e a relação

com o si mesmo, em uma perspectiva de, nestas questões, também, conhecer-se.

Com isso, deseja-se que o presente estudo seja uma possibilidade de o próprio

homem ver-se e conhecer-se, sentindo-se provocado pelo viver.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 80: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski80

1 “Nas recordações de cada homem há coisas que estenão descobre a ninguém, a não ser aos seus amigos”1.

Cada homem é único. O que o torna único são as milhares de diferenças presen-

tes em todos, que, quando “ordenadas”, os identificam, não no sentido matemático

que vê a perfeição somente ao chegar no resultado preciso e esperado, mas sim

quando se depara com o “aparecer” motivado por uma realidade anterior, sustentadora

do aparecimento, a essência2, no momento em que é compreendido que quando

“dois e dois são quatro não é vida, [...] mas o começo da morte” (DOSTOIÉVSKI,

1963c, v.2, p. 684).

Ver o homem nesta perspectiva abre a possibilidade de, a partir das obras de

Dostoiévski, fazer uma reflexão provocativa e instigadora de excelentes frutos para a

antropologia filosófica, uma vez que, nas obras deste autor, o homem não se reduz à

soma de partes matemáticas que possuem um resultado eternamente único. Ele vive e,

pelo fato de viver, expressa a “fundamental ambiguidade do homem, em virtude da

qual não existe sujeito bom que de algum modo não está estimulado pelo mal, nem há

um delinquente tão degradado que não possua, em algum sentido, o bem” (PEREYSON,

2007, p. 225, tradução nossa3). É a ambiguidade presente no ser humano, comprovada

quando se vê que um mesmo homem pode tomar uma atitude de compaixão huma-

na e, logo depois, outra que poderá levá-lo ao desprezo do humano.

Porém, para chegar a esta visão do homem, a própria vida de Dostoiévski revela

fatos que potencializam a questão da ambigüidade humana, gerando esse esplendor

visionário, único que não permite àqueles que conhecem sua alma e suas obras,

ambas proféticas, sair delas de algum modo não transformado, questionado pelos

problemas filosóficos presentes nas “malditas” questões de Dostoiévski, ou, ainda,

não se ver espiritualmente nu.

Pelos apontamentos destas primeiras linhas, percebe-se que o presente estudo

não buscará ser, em seu objetivo principal, um ensaio de história literária ou uma

crítica literária, mas sim, apontar como nas obras de Dostoiévski encontram-se ques-

tões que auxiliam o homem no processo de conhecer a si mesmo, possibilitando à

filosofia antropológica um galgar as “escadas do horizonte” e chegar, assim, em um

lugar perfeito para “sentar-se” e refletir a questão: o homem!

1 DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 688.2 “Essência é aquilo que faz com que uma coisa seja o que é, aquilo pelo qual um ente tem determinado grau deperfeição” (PIRES in: LOGOS, 1990, v.2, p. 256).3 Do original: “fundamental ambigüedad del hombre, en virtud de la cual no existe sujeto bueno que de algúnmodo no esté influido por el mal ni hay delincuente tan degradado que no posea algún sentido del bien”.

Page 81: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 81

Antes, porém, de entrar-se por este “buraco de agulha”, requer-se conhecer a

paisagem que a antecede, o caminho que conduz até ela, ou seja, a vida de Dostoiévski

como homem na história, para, assim, poder daí colher algumas direções facilitadoras

para a reflexão.

1.1 Dostoiévski

E eis que de súbito ecoou um grito novo [...] um grito fraco, inarticulado, o vagido de

uma criança. [...] O aparecimento de um novo ser na terra é um grande e inexplicável

mistério (DOSTOIÉVSKI, 1975d, v.3, p.1280).

1.1.1 Um grito novo e primeiros anos de um mistério

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, aquele que viria a ser o maior metafísico russo,

o escritor dos Irmãos Karamazov, nasceu na cidade de Moscou em 11 de novembro(30 de outubro, segundo o calendário Juliano) de 1821, no seio da família Dostoiévski,

originalmente católica da Lituânia, descendente de um sacerdote grego ortodoxo,cultivador de um gênio orgulhoso, intolerante e devoto. Era uma família pobre, umatribo de intelectuais nômades que ia aonde os impulsos a levasse, “para o céu ou

para o inferno, mas nunca para a obscuridade” (THOMAS, 1957, p. 171).

Mikhail Andreievitch, pai de Fiódor, era médico no chamado Hospital dos Pobres;um hospital que se dedicava aos cuidados dos indigentes de Moscou. Viveu lá com

sua mulher, Maria Fiodorovna Netchaier, “uma figura doce, sofrendo em silêncio odespotismo doméstico do marido avaro, que não lhe dá o dinheiro necessário para oprovimento da casa” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 26), além das crises de

ciúme injustificadas que esta sofria.

Havia, no hospital, o “Jardim dos doentes”, lugar onde estes passavam as horas,marcadas pela tristeza das doenças; esta situação, este ambiente visto por Dostoiévski,

ficaria marcado em sua memória, aquela realidade do espantoso paradoxo da vida: “Osofrimento do homem no meio da formosura da natureza” (THOMAS, 1957, p. 172).

Em 1931, Dostoiévski, já com dez anos, mudou-se com os quatro irmãos paraTula, perto de Moscou, onde puderam desfrutar de uma vida livre do autoritarismo

paterno que, se não chegara aos castigos físicos, chegou à aspereza, à rigidez morale ausência de calor humano.

A alegria de Dostoiévski começa a nascer no mesmo período em que ingressa no

Liceu Tchermak, em Moscou. Essa alegria, porém, não encontra alimento para se

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 82: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski82

manter. No dia 27 de fevereiro de 1837, sua mãe, Maria Fiodorovna, falece, deixando

profundas marcas de ausência no jovem, uma vez que este era mais ligado, pelos

sentimentos familiares, a ela do que ao pai. A morte de seu pai, contrária à da mãe,

representou a Dostoiévski uma libertação.

Para Fiódor, a morte da mãe trouxe um verdadeiro drama existencial que provoca

profundas influências na psique do jovem.

Dostoiévski, em criança, teria assistido às cenas de despotismo paterno, teria visto

por várias vezes a sua terna e submissa mãe chorar. Quer por sua natureza afetiva e

excessiva, quer por sua qualidade de filho e de rapaz, era natural que tomasse o

partido da mãe contra o pai. Num temperamento como o seu, este amor pela mãe

tornar-se-ia exclusivo e teria mesmo como reverso o ódio pelo pai (NUNES, in:

DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 27).

No colégio, Dostoiévski encontra em sua personalidade outro aspecto doloroso,

a sua incapacidade de sociabilidade, o que o levava ao isolamento. Troyat afirma que

Dostoiévski gostaria de arranjar amigos, mas era afastado desses pelo seu “amor-

próprio” excessivo e uma certa desconfiança doentia (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963,

v.1, p. 29). Tinha um desejo de conhecer, dedicar-se ao outro, porém, retraía-se,

fechava-se dentro de si. Tinha medo das múltiplas possibilidades que a vida oferece

em seus imprevistos.

Em 1837, é aprovado na Escola dos Engenheiros Militares de São Petersburgo,

onde encontrou mais uma vez a dificuldade de se adaptar aos ambientes coletivos, o

que, neste local, foi reforçado pelo protótipo de seus companheiros que, motivados

pelos interesses econômicos e pela sucessão na carreira, despertavam, em Dostoiévski,

o desprezo por eles. “Entrega-se antes aos seus anseios e devaneios infinitos e lê

muito: Balzac, Vitor Hugo, Goethe, Racine, Corvelle” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963,

v.1, p. 29).

A estreia literária de Dostoiévski, para toda a Rússia, aconteceu no ano de 1846,

com a publicação de sua primeira obra, Pobre gente, que fora escrita no ano de

1844, quando o escritor tinha apenas 23 anos, no Almanaque Petersburguês, que

estava sob coordenação de Nicolai Nierkrássov. Esta novela foi elogiada por muitos

críticos da época, Bielínski foi um deles que, quando a leu, exclamou que aí surgia um

novo Gógol.

Um dos motivos que levaram o crítico Bielínski a glorificar o primeiro romance de

Dostoiévski, parece que foi o fato de tê-lo considerado como um romance de caráter

social, pois ele era também um socialista russo do seu tempo. Entretanto um roman-

Page 83: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 83

ce como Pobre gente não pode classificar-se de social, no mesmo sentido, por exem-

plo, da Ressurreição de Tolstói. O lado psíquico dos personagens, o estado de sua

solidão moral íntima, a captação do fundo bondoso nuns, malévolo ou maldoso e

egoísta noutros, considerados independentes do meio social, é qualquer coisa que

atenua sempre, tanto nesta primeira obra como em todas as seguintes, o seu aspecto

social. O que se vê, desde já, é a sua compenetração amorosa no sofrimento dos

humilhados e oprimidos (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 127).

Depois de Pobre gente, Dostoiévski publica outros romances, que, juntamente

com este, são, depois, considerados como novelas da juventude. São eles: O duplo; O

Senhor Prokháetchin; A dona de casa; Um romance em nove cartas; Polzunkuv; Cora-

ção frágil; O ladrão honrado; A mulher alheia; A árvore de natal; Noites brancas;

Nietotchka Niezvânova; O pequeno herói; O sonho do tio e A granja de

Stiepântchikovo, escritos na Sibéria na tentativa de lhe abrir novamente as portas da

literatura; e Humilhados e ofendidos, que são consideradas como “transposição au-

tobiográfica e prefiguradora dos grandes temas e de certos caracteres de protagonis-

tas ou de personagens secundários, desenvolvidos em toda a sua plenitude na obra

da maturidade” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 156). A repercussão destas

outras novelas da juventude não foi tão aplaudida quanto a de Pobre gente.

Na leitura destas novelas, percebem-se certos temas que abrem a possibilidade

de encontro com as ideias filosóficas. Encontram-se aí: “O valor ético da confissão, o

resgate do pecado pela humildade e pelo sofrimento, apologia à fraternidade univer-

sal, crença no destino, [...] crítica à literatura empolada e afastada da vida real” (NUNES,

in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 157). Percebe-se desde o início da carreira literária

uma presença filosófica nas obras de Dostoiévski, comprovada nas atitudes de seus

personagens.

Em uma carta que escreve a seu irmão, Mikhail, neste período, afirma: “Vou no

terceiro ano de minha carreira literária e ando como no meio de um nevoeiro denso,

não descubro a vida, não tenho ocasião para parar e refletir. A minha arte perde-se

‘por falta de tempo’” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 33). Porém, o destino,

que em Dostoiévski se apresenta como o fruto de cada minuto, o leva à prisão, onde

encontrou o tempo que desejara para refletir, o que lhe assegurou bons frutos para a

obra Memórias da casa dos mortos que escreveria.

Para melhor compreender o que levou Dostoiévski à produção das Memórias da

Casa dos mortos, faz-se necessário, antes, apresentar o contexto histórico da Rússia,

como ela era vista pelo autor, a relação entre ambos, para poder, assim, apresentar a

Casa dos mortos e o que dela provém.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 84: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski84

1.1.2 Sim, a Rússia: um fenômeno extraordinário

E se existe no mundo um país desconhecido para os demais países, afastado dos

vizinhos, ignoto, inexplorado, incompreendido e incompreensível, esse país é, sem

dúvida, a Rússia. [...] Sim, acreditamos que a nação russa... constitui um fenômeno

extraordinário na história de toda a humanidade (DOSTOIÉVSKI, 1975a, v.4, p. 1235).

A Rússia nesse período é marcada por uma grande agitação social. Como na

Europa, na Rússia surgem também grupos clandestinos motivados por ideias socialis-

tas e progressistas. Porém, o czar não admitia que houvesse outras cabeças, a não ser

a dele, que pensasse o futuro da Rússia. Visando este fim, criou a “Ochrana”, isto é,

a polícia política, que dedicava cuidado especial às ideias de revolução provindas dos

intelectuais.

Em meados do ano de 1840, os grupos revolucionários, apesar da atuação da

polícia czarista, se apresentavam em número elevado, formados de jornalistas, estu-

dantes universitários, funcionários, escritores e pequenos burgueses. Um destes gru-

pos é o de Pietrachévski, no qual Dostoiévski começa em 1847 a fazer parte. Todavia,

este grupo não era um dos mais revolucionários e perigosos. Era mais um grupo de

cabeças quentes apoiadas no lírico, em que o falar sempre estava acima do agir.

“Alguns rapazes reúnem-se em torno de Pietrachévski, fumando e bebendo chá, fa-

lam de literatura, de política, criticam o regime [...] nenhum programa definido, ne-

nhum plano de ação” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 35). Apesar de

Dostoiévski participar desse grupo e reconhecer a sua visão humanística, ele acredita-

va que essas ideias não seriam a total solução para a Rússia, já que esta se encontra-

va, segundo Dostoiévski, na própria história. “Nós acreditamos com toda a força na

alma russa” (DOSTOIÉVSKI, 1975a, v.4, p. 1238), alma esta que perpetua a história e

apresenta a salvação.

Entretanto, a polícia do czar via essas pessoas como das mais revolucionárias e

perigosas da história, argumento este que causou a prisão do grupo no dia 23 de

abril de 1849, ficando retido na fortaleza de Pedro e Paulo, onde aguardaria a orga-

nização do processo Pietrachvskistas. Neste presídio temporário, Dostoiévski escreve

uma carta a seu irmão na qual apresenta uma breve impressão do que se passava

consigo: “já imaginei três novelas e dois romances. Há uma vitalidade surpreendente

na natureza do homem. Nunca suporia que existisse tanto, mas agora o sei por expe-

riência própria” (TROYAT, in: NUNES, in: DOSTOIESKI, 1963, v.1, p. 35).

Segundo Nunes, a instauração do processo durou cinco meses. “Dostoiévski é

acusado de tomar parte em reuniões onde se criticavam atos do governo, a instaura-

Page 85: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 85

ção da censura e a servidão; de ter lido numa dessas reuniões uma carta de Bielinsky4,

a qual continha injúrias contra a Igreja Ortodoxa e ao poder supremo” (in:

DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 36).

A Dostoiévski, após o término do inquérito, coube a pena de quatro anos de

trabalhos forçados na Sibéria como prisioneiro, e, depois, quatro anos ainda como

soldado raso. Porém, o imperador desejara dar, antes da prisão, uma lição que con-

sistiu na simulação de fuzilamento. Para dar caráter verossímil, foi feita a representa-

ção do detalhe da bandeira branca autorizando o rito sumário. No auge da tensão,

leu-se uma carta em que se ressaltava a “clemência” do czar5.

1.1.3 Os dias na Sibéria: a escorrer gota a gota sobre um teto

E o que eu queria era mostrar-vos o nosso presídio e tudo o que aí passei durante

todos esses anos. [...] Lembro-me, por exemplo, de que todos esses anos, no fundo

tão semelhantes, desfilaram uns atrás dos outros, tediosos, longos, tão monótonos

como a água que, depois de uma chuvarada, continua a escorrer gota a gota sobre

um teto. Lembro-me que só uma apaixonada ânsia de ressurreição, de renovação, de

uma vida nova, me fortaleceram na esperança e na ilusão. [...] Lembro-me de que,

apesar das centenas de companheiros, me encontrava numa horrível solidão, e aca-

4 Bielinsky (Vissarion Grigorievitch): “Escritor russo. Teve grande influência no movimento literário de sua pátria,exercendo verdadeiro magistério crítico, através da colaboração que deu a diversas revistas de cultura” (FERREIRA,in: VERBO, 1965, v.3, p. 1314).5 Muitos críticos afirmam que este episódio é recordado por Dostoiévski no livro O Idiota, descrito da seguinteforma: “Chegou o momento em que não lhe restavam senão cinco minutos de vida. Contava ele que aquelescinco minutos tinham-lhe parecido um espaço de tempo infinito, uma riqueza enorme; parecia-lhe que naquelescinco minutos tinha gasto tanta quantidade de vida, que nem sequer pensava em seu último momento e continu-ava adotando diferentes determinações; descontava o tempo necessário para despedir-se de seus camaradas,destinando a isso dois minutos e outros dois minutos para pensar pela derradeira em si mesmo e o restante dotempo para espalhar a vista em torno de si. Lembrava-se perfeitamente de que havia feito precisamente estas trêspartilhas e precisamente desse modo. A morrer aos vinte e sete anos, sadio e forte; ao despedir-se dos companhei-ros, lembrava-se de ter feito a um deles uma pergunta totalmente insignificante e que aguardou com muitointeresse a resposta. Depois de ter-se despedido de seus camaradas, achou-se dono daqueles dois minutos quehavia destinado a pensar em suas coisas; sabia de antemão em que havia de pensar; toda a sua ânsia era imaginar,com a maior rapidez e clareza possíveis, como haveria de ser aquilo: que ele, naquele instante existisse e vivesse e,ao fim de três minutos, tivesse de ser já outra coisa, alguém ou algo diferente... O quê? Tudo isso pensava eleresolvê-lo naqueles dois minutos, não longe daí havia uma igreja e o telhado da dourada cúpula refulgia ao solradiante. Recordava ter-se ficado a mirar, com suma atenção, aquela cúpula e os raios de sol que nela cintilavam.Não podia apartar os olhos daqueles raios de sol, parecia-lhe que aqueles raios de sol fossem para ele uma novanatureza, como se dentro de três minutos fossem fundir-se com ele... A ignorância e o horror daquela coisa novacom que dali a um momento iria defrontar-se eram espantosos, mas assegurava o homem que em todo aquelemomento não tinha havido nada de mais terrível para ele que esse contínuo pensamento: ‘E se não tivesse demorrer? E se voltasse à vida? Que eternidade! E tudo isso seria meu. Então converteria cada minuto em um século,não perderia nada, pediria conta a cada minuto, não gastaria nem um em vão’. Dizia que este pensamentochegou a inspirar-lhe tal raiva, finalmente, que a única coisa que queria era que o fuzilassem o quanto antes”(DOSTOIÉVSKI, 1975c, v.3, p. 182). ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 86: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski86

bei, finalmente, por adaptar-me a essa solidão. Moralmente solitário, passava revista

a toda a minha vida passada, apercebia-me dos mais insignificantes pormenores de

tudo; apreciava o meu passado, julgava-me a mim mesmo de maneira implacável e

severa e havia até instante em que dava graças ao destino por me ter deparado aque-

la solidão, sem a qual não me teria sido possível julgar-me a mim próprio, nem chegar

àquele severo exame da minha vida pretérita (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 540).

Iniciam neste período os anos de condenação na Sibéria. Como em toda a sua

vida, a dificuldade da prisão e os desentendimentos não eram superiores aos desejos

de Dostoiévski em buscar o conhecimento das almas dos que com ele viviam e, acima

disso, o seu próprio conhecimento. A prisão é, assim, o lugar propício para ele desco-

brir o ser humano naquilo que lhe é próprio.

Acontecia às vezes no presídio que uma pessoa conhecesse um homem durante al-

guns anos e pensasse que ele era uma fera, e não um homem, e que o desprezasse. E,

de repente, chegava casualmente um instante em que a sua alma descobria num

ímpeto involuntário o seu interior e se via nele tal riqueza, tal sentimento e coração,

tal clara compreensão da dor própria e alheia, que era como se vos abrissem os olhos,

e no primeiro instante nem se queria acreditar naquilo que se via e ouvia (DOSTOIÉVSKI,

1963b, v.2, p. 517).

O período na prisão foi o impulso decisivo e necessário para desabrochar o seu

gênio que, como ele mesmo anteriormente afirmara, estava em um “nevoeiro den-

so”, impedido de descobrir a vida. Assim, as suas obras passarão por uma evolução,

uma vez que, esses quatro anos, segundo Troyat, “são como o reservatório secreto

onde o seu gênio se alimentará daí para o futuro” (in: NUNES, in: DOSTOIÉVSKI,

1963, v.1, p.38). São as relações, as cenas dos dias vividos na prisão que acompanha-

rão sua vida, implicando em muitas das suas concepções a respeito do ser humano e

a sua relação com a sociedade. “O direito de impor castigos corporais outorgado a

um sobre o outro é uma das pragas da sociedade, é um dos meios mais poderosos

para aniquilar nela todo o germe de civismo e a base completa para a sua dissolução

inevitável e infalível” (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 471). Nesse sentido, percebe-se

que o período de prisão instiga em Dostoiévski uma reflexão sobre como o ser huma-

no tortura e machuca o outro, um ser humano que se imagina no direito de posse do

corpo do outro humano, amparado pelo cargo estabelecido socialmente. São essas

ponderações a respeito da tortura, que o autor percebe na prisão, que o levam a

buscar o que significa o homem, a discutir os limites da sociedade que se enaltece na

degradação do outro. Todas essas considerações formam em Dostoiévski um estilo

autêntico e singular, influenciando os temas presentes em suas obras.

Page 87: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 87

Os Textos Sagrados causarão, também, uma influência decisiva na formação de

Dostoiévski. O estudo dos textos sagrados:

terá uma influência no aspecto formal das suas futuras obras. Henry Troyat define

perfeitamente esta influência: “As alegrias e os sofrimentos das suas criaturas já não

são mais estritamente terrenos. Todos os romances que fizer terão como que dois

planos. No primeiro agitar-se-á a vida cotidiana, com as suas complicações, os ciú-

mes, questões de dinheiro e de procedência, no segundo desenrolar-se-á o verdadei-

ro drama do homem: a procura de Deus, a procura do ente novo” (NUNES, in:

DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 39).

Sua obra, Memórias da casa dos mortos, deixa transparecer esta influência:

Há pessoas que parecem tigres ávidos de beber sangue humano. Quem exerceu uma

vez esse poder, esse ilimitado domínio sobre o corpo, o sangue e a alma de um seme-

lhante seu, de uma criatura, de um irmão em Cristo, quem conheceu o poder e a

plena faculdade de infligir a suprema humilhação de outro ser, que traz em si a ima-

gem de Deus – converte-se sem querer em escravo das suas sensações (DOSTOIÉVSKI,

1963b, v.2, p. 471).

Em fevereiro de 1854, Dostoiévski sai do presídio e é enviado ao sétimo batalhão

da Sibéria, onde recebe uma autorização possibilitando sua morada fora do quartel,

em uma pequena casa onde começa a redigir Memórias da casa dos mortos.

Em novembro de 1859, depois de muitos pedidos ao imperador, é concedida a

Dostoiévski a possibilidade de retornar a Petersburgo. Neste período a Rússia se en-

contrava sob o poder do imperador Alexandre II que, apesar de possibilitar algumas

reformas liberais e conceder a emancipação dos servos, não amenizou a insatisfação

do povo russo, que continuava exigindo mudanças. Era difícil ao imperador conceder

a tranquilidade ao ânimo deste povo. Dostoiévski, neste contexto, apresenta-se sub-

misso à Ortodoxia e ao regime, considerando o imperador como o amparo do povo

russo. Segundo Troyat (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, p. 42) “perante os seus con-

temporâneos, assume a velha atitude. O presídio não o modificou. Não é conserva-

dor-russo. Não é liberal. É liberal-russo. Imagina uma série de reformas, não copiadas

das do Ocidente, mas extraídas dos recônditos da história”.

Ao chegar em Petersburgo, funda, com seu irmão Mikhail, a revista O tempo, nas

páginas da qual encontra espaço para divulgar suas ideias a respeito do destino da

Rússia e publicar Humilhados e ofendidos, romance que ainda não lhe devolveu a

fama perdida, que só seria alcançada com a publicação de Memórias da casa dos

mortos, livro que o levou à popularidade e ao êxito novamente, e que, segundo

comentadores, levou o imperador às lágrimas.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 88: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski88

Começam a surgir as obras de transição. Humilhados e ofendidos e Memória da

casa dos mortos foram as duas primeiras às quais sucederam: Uma história aborreci-

da; Notas de inverno sobre impressões de verão; e As memórias do subterrâneo.

Chega-se, assim, à maturidade de um “pequeno mundo especial”6, no qual co-

meça o “grande período criador” de Dostoiévski. Surgem Crime e castigo; O jogador;

O idiota; O eterno marido; Os demônios; O adolescente; O diário de um escritor, que

é uma produção jornalística de Dostoiévski; e Os irmãos Karamazov. Nesses roman-

ces da maturidade percebe-se, mais claramente, o quanto eles apresentam os gran-

des problemas éticos e metafísicos. As experiências das personagens não são um

mero acontecimento. Em cada uma delas está a decisiva opção pelo destino. Em cada

uma das experiências encontra-se a experiência do humano que, ao lê-las, vê nelas

sua própria existência.

O escritor está cansado, velho, doente, sofrendo de enfisema pulmonar e epilep-

sia. No dia 28 de janeiro de 1881, no fim da tarde, com 59 anos de idade, chega ao

fim a vida corporal de Dostoiévski. Começa, porém, a verdadeira vida dele, fora dos

pressupostos de tempo e espaço.

1.2 Filosofia e literatura

Não se quer apresentar aqui uma possibilidade de encontro entre a filosofia e a

literatura7. O norte deste estudo está na questão de que, acima de uma divisão cau-

6 DOSTOIÉVSKI, 1963a, v.2, p. 926.7 Durante a história, muitos filósofos dedicaram-se ao estudo desta relação. Entre eles podem-se citar: Platão,Aristóteles, Boécio, Sartre. Iniciando por Platão, percebe-se, em seu pensamento, uma certa aversão a esta rela-ção. Ele apresenta: “Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomartodas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade nãohá homens dessa espécie, nem se quer é lícito que existam, e manda-lo-íamos embora para outra cidade, depoisde lhe termos derramado mirra sobre a cabeça e de o termos coroado com grinaldas” (PLATÃO, 1976, p. 125). Apreocupação de Platão em expulsar da cidade os poetas e não autorizar que o governo da cidade estivesse nasmãos destes, está no fato de que a cidade, sob governo dos poetas, estaria orientada pelo prazer e pela dor, “emlugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor” (PLATÃO, 1976, p.475). O prazer e a dor, segundo Platão, podem colocar-se, por serem sentimentos, acima da lei, quando nohomem não há o “seu bom governo interior” (PLATÃO, 1976, p. 477). Todavia, apesar de Platão ter tido estaatitude, ele próprio usa de uma linguagem ilustrativa, não real, para auxiliar os seus na compreensão da ideia queele buscava demonstrar. Os próprios diálogos socráticos são expressão de uma nova forma de arte, de um roman-ce que surge. São louváveis as palavras de Nietzsche, que reforçam a compreensão deste trabalho: “O diálogoplatônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos:apinhados em um espaço estrito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro deum novo mundo que jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo. Na realidade, Platãoproporcionou a toda a posteridade o protótipo de uma nova forma de arte, o protótipo do romance, que é misterconsiderar como a fábula esópica infinitamente intensificada, onde a poesia vive com a filosofia dialética em umarelação hierárquica semelhante à que essa mesma filosofia manteve, durante muitos séculos, com a teologia, isto

Page 89: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 89

sada pelas ciências positivas, há a unidade primária, aquela que esteve presente na

origem da humanidade, aquela que deu impulso a tudo.

Nesse sentido, percebe-se, desde Heráclito, a ideia de uma unidade subjacente a

tudo, portanto, a todas as ciências; no fragmento número 57, o filósofo afirma:

“Mestre da maioria é Hesíodo8; pois este reconhece que sabe mais coisas, ele que não

conhecia dia e noite; pois é uma só (coisa)” (HERÁCLITO, in: OS PENSADORES, 1973,

v.1, p. 91). E, ainda, no fragmento 50: “Se ouvissem, não a mim, mas ao logos9,

provarão ser sábios se admitirem que tudo é um” (in: BERGE, 1969, p. 259). Heráclito

aponta para esta unidade garantida pelo logos. A filosofia e a literatura não podem

ser compreendidas a não ser nessa unidade originária, em que, acima de representa-

rem conceitos próprios que buscam defendê-las, são, em sua essência, inclinação ao

“Um” originário, tal como afirmava o próprio Heráclito.

é, como ancilla (escrava, criada)” (Nietzsche, 1992, p. 88). Já para Aristóteles, “imitar, tendência natural, concernea coisas ou ações concretas e não mais a ideias abstratas. [...] Aristóteles admite uma evolução possível das formasartísticas: elas cessam de obedecer a uma forma de beleza imutável e eterna” (JIMENEZ, 1999, p. 219). Assim, apoesia em geral assume uma possibilidade mais filosófica, pois a imitação é enriquecida pela imaginação docriador. Aristóteles afirma na Poética que a epopéia, a tragédia, a poesia “todas elas imitam com o ritmo, alinguagem e a harmonia, usando estes elementos separados ou conjunturalmente” (ARISTÓTELES, 1966, p. 69).Este imitar está na origem da poesia, já que o “imitar é congênito ao homem [...] e os homens se comprazem noimitar” (ARISTÓTELES, 1966, p. 71). São estas as duas causas, o imitar e o se comprazer no imitado, ambasnaturais, que dão origem à poesia, e estão na origem do próprio homem. Assim, uma vez que todas as coisas nãosão “belas”, uma poesia pode imitar o ato mais perverso ou o mais supremo. Ao poeta cabe, então, o compromis-so de, na distinção dos atos perversos e supremos, ver-se também incluído nestes acontecimentos, para, movidopelo ânimo das personagens, viver as mesmas paixões escolhendo os atos que o levem à felicidade. Boécio, porsua vez, escreve a obra A consolação da filosofia onde aborda, em uma relação harmônica, a filosofia e a literatu-ra, mostrando-a inegável nessa obra, de tal maneira que em certos momentos elas se mesclam. Ora, a história éficcional, é uma invenção de Boécio, com personagens e diálogos, tal qual uma obra de Literatura. A filosofia e opróprio Boécio são os protagonistas da história. O uso constante de poemas e imagens se mostra como recursoficcional, próprio do gênero literário. Já a filosofia está presente tanto como personagem, quanto como no usoargumentativo dialético presente nos discursos, na persuasão e nas questões sobre vida e morte que são debati-das. Já Sartre confessa que se sentia, por vezes, orgulhoso em poder ler muitos livros, o que o levou a pensar emintroduzir-se “no campo da literatura, não como escritor, como homem de cultura” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 175).Depois, sentiu-se motivado ao estudo da filosofia, uma vez que esta pareceu a ele como o conhecimento domundo: “eu pensava que se me especializasse em filosofia, apreenderia o mundo inteiro, sobre o qual deveriafalar em literatura. Isso me dava, digamos, a Matéria” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 185). O romance, para Sartre,deveria “retratar o mundo, tal como era, tanto o mundo literário e crítico como o mundo das pessoas vivas” (in:BEAUVOIR, 1982, p. 186), por isso o escritor deveria ser um filósofo, que, no estudo da filosofia, encontraria adisciplina que lhe possibilitasse o conhecimento de tudo. O livro seria um belo objeto no qual se transmitiria, sobforma literária, a verdade do mundo. Sartre confessa: “Queria que a filosofia, na qual acreditava, as verdades queeu atingiria, se exprimissem em meus romances” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 193).8 “Poeta grego, que viveu provavelmente no séc. VIII A.C., e cuja obra, produzida após o florescimento da poesiahomérica, somente em parte é atualmente conhecida, através de alguns textos de caráter religioso, didático emoral. É um dos primeiros professores e civilizadores do homem, ao lado de Homero e Orfeu, e o precursor dapoesia didática” (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1967, v.7, p. 289).9 Logos: “A razão enquanto primeira substância ou causa do mundo. [...] Foi defendida pela primeira vez porHeráclito: ‘Os homens são obtusos com relação ao ser do Logos, tanto antes quanto depois que ouviram falardele, e não parecem conhecê-lo, ainda que tudo aconteça segundo o Logos’ (Fr. 1). O Logos é concebido porHeráclito como sendo a própria lei cósmica: ‘Todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque estadomina tudo o que quer, e basta para tudo e prevalece a tudo” (ABBAGNANO, 2003, p. 630). ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 90: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski90

Devido, porém, ao caminho que a humanidade tomou e que, por consequência,

a levou ao esquecimento dessa unidade, se faz necessário apresentar a compreensão

da filosofia e da literatura naquilo que as ciências positivas chamam de “seu pró-

prio”, criando âmbitos separados para cada ciência, tentando apontar e resgatar a

unidade originária que subjaz a toda e qualquer separação entre elas.

Definir o que é filosofia, no seu próprio, torna-se um trabalho amplo, uma vez

que esta se divide em diversas áreas, como por exemplo: filosofia da linguagem,

antropologia filosófica, filosofia política, e outras, onde cada uma delas apresenta a

sua definição própria para o termo filosofia. Porém, em todas elas é possível encon-

trar uma constante.

A abordagem que mais articula os diferentes significados do termo

é a definição comentada no Eutidemo Platônico: A filosofia é o uso do saber em

proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de

transformar as pedras em ouro a quem não soubesse valer-se do ouro, de nada adian-

taria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse servir-se da imortalidade

e assim por diante. É necessária uma ciência em que coincidam fazer e saber valer-se

daquilo que se faz, e esta ciência é a filosofia (ABBAGNANO, 2003, p. 442).

Portanto, a filosofia implica, necessariamente, a posse ou aquisição do conheci-

mento e que este seja o mais válido e o mais extenso, e, ainda, que sirva de benefício

para o homem. Nada adiantaria este conhecimento se o homem não tivesse a capa-

cidade de transformá-lo em seu proveito.

A palavra literatura, por sua vez, tem sua origem na palavra latina littera que

significa letra ou sinal impresso. Durante a história, este termo foi alvo de muitas

tentativas de definição, segundo o contexto em que fora abordado. Na busca de

definir esta palavra, muitos lhe atribuem a característica de ser uma evasão do pró-

prio homem, ou um jogo (homo ludens10), uma atividade espiritual em que o ho-

mem, em seus momentos de folga, faria uma leitura desinteressada. Porém, estas

tentativas são insuficientemente definidoras, pois podem ser também atribuídas para

as demais obras de arte.

Buscando “superar” estas primeiras impressões, a definição de Massaud Moisés,

apresenta-se precisa e superior: “Literatura é expressão, pela palavra escrita, dos con-

10 Homo ludens: Corresponde ao jogo, atividade típica do homem. “Ele (o homem) distingue-se profundamente,essencialmente dos animais, não apenas graças ao pensamento, à liberdade, à linguagem, ao trabalho, mastambém graças ao jogo. O homem inventa jogos e diverte-se como nenhum animal sabe fazer” (MONDIN, 1980,p. 215).

Page 91: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 91

teúdos da ficção ou imaginação” (in: LOGOS, 1971, v.12, p. 308). Aquilo que o ho-

mem imagina, aquilo que ele retira como fruto de sua ficção, pode ser expresso na

palavra escrita.

Segundo a enciclopédia Logos (1971, v.12, p. 308),

literatura é a perfeita encarnação sensível da ideia na palavra significante. Sensível

porque se trata de expressão imaginativa; de palavra, porque é ela a matéria-prima

desta arte; mas palavra significante, para excluirmos toda a “coisificação” abusiva da

linguagem literária; e perfeita, porque da “qualidade” dessa encarnação sensível jul-

ga a crítica, sempre no suposto de que não basta observar os preceitos para que seja

conveniente a sensibilização do ideal.

É o fruto da imaginação, da expressão imaginativa, portanto, que se encarna,

toma “vida” na palavra que possui significado. Esse processo visa sempre tornar

conveniente a sensibilização do ideal e tornar esse processo perfeito, que não encon-

tra a perfeição na simples observação, por exemplo, de alguns pressupostos grama-

ticais. Acontece a relação entre a ordem espiritual e a material que não são percebi-

das através do mundo lógico, mas se tornam evidentes na obra literária. Pode-se

dizer, assim, de uma obra literária: é o real. Real porque é a suprema imaginação

individual que se faz possibilidade ao ser transmitida às demais pessoas.

Relacionando, nesta perspectiva, filosofia e literatura, logo se percebe que a pri-

meira mostra-se como um conhecimento racional, reflexivo e a segunda uma criação

verbal do literato. Pode-se diferenciá-las, “por um lado, até a mais extrema oposição

e aproximá-las, por outro, até a mais estreita vizinhança” (NUNES, 1993, p. 191).

Todavia, os “espíritos” que são atraídos pela exigência do pensamento filosófico

e pela atração da ficção percebem que ambos os levam a uma realidade única que é

o “ventre” do mundo, único lugar em que se pode pensar esse mundo. Na atualidade

o desejo que aparenta prevalecer é o de conciliação. “O esforço de conciliação a que

hoje se admite, retira-se na sequência de uma longa tradição, responde a uma exi-

gência profunda do espírito” (BEAUVOIR, 1965, p. 80). É o espírito que clama pela

unidade originária.

Ressalta-se, ainda, a questão da relação entre as obras de filosofia e de literatura

em que ambas podem ser escritas por um mesmo homem. “Esse encontro num só

homem de um filósofo e de um literato, ambos excelentes, vem também da possibi-

lidade que lhe ofereceram a filosofia e a literatura de se encontrarem nele” (BLANCHOT,

1987, p. 189). E esse encontro é a unidade que está na origem do homem que em si,

na sua essência, não é formado por partes, mas é um todo.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 92: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski92

Assim, neste possível diálogo entre filosofia e literatura, “repudiar-se-á o roman-

ce filosófico se definirmos a filosofia como um sistema completamente constituído e

bastando-se a si próprio” (BEAUVOIR, 1965, p. 87). Neste diálogo, a iniciativa parte

da filosofia originária e não de uma teoria da literatura ou teoria filosófica, logo, as

reflexões tornam-se filosóficas.

O diálogo se efetua no plano da crítica, isto é, no plano interpretativo das obras. E a

proximidade máxima ocorre, sobretudo em relação àquelas obras de acentuada “dis-

posição filosófica”. [...] O primeiro risco a se evitar é a busca de conceitos instrumen-

tais na filosofia para o exercício de uma pretensa crítica filosófica, que tentaria estu-

dar a obra como a ilustração de verdades gerais (NUNES, 1993, p. 197).

Deve-se ter o cuidado de não subordinar a obra literária aos conceitos instrumen-

tais da filosofia, o que, neste zelo, levaria a crítica a se colocar mais próxima da

“verdade”. “A busca de sua verdade como ficção legitimaria a preocupação filosófica

dessa crítica. Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para nos dar

essa ideia de exigência de verdade que a norteia” (NUNES, 1993, p. 198). O perigo é

limitar-se na busca de uma metodologia, que possibilite o acesso às obras de literatu-

ra. Assim, filosoficamente, o objeto literário permanece inesgotável. O papel da filo-

sofia se encontra na iluminação da obra literária buscando, cada vez, de forma nova,

um acesso à obra, um decifrá-la, uma reflexão, e não uma definição ou classificação

utilitarista.

Assim, superar esta visão de que há uma divisão entre filosofia e literatura, é

superar a divisão das ciências positivas, ou seja, ousar ir à origem da humanidade.

1.3 Dostoiévski e a filosofia

Sim, senhor, é aqui que, conforme penso, se encontra a dificuldade. Desculpem-

me, meus senhores, divaguei de tal maneira que me pus a filosofar, mas pensem no

que representam quarenta anos de subterrâneo (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 681).

Dostoiévski marcou sua presença na história. Tornou-a imortal quando se dedi-

cou à abordagem de temas imortais. Essa sua capacidade permitiu e permite que seu

nome seja lembrado em grandes escritos literários11, religiosos12, sociais13, psicológi-

cos14, filosóficos.

11 Quando apresenta a importância de Dostoiévski para a literatura, a enciclopédia Barsa afirma que “é impossívelimaginar qualquer história da literatura sem um grande lugar reservado a Dostoiévski” (CALLADO, in:ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1967, v.5, p. 224). Essa importância se encontra, também, na peculiaridade deseus romances que apresentam seus personagens com consciência e vozes independentes. Segundo Bakhtin

Page 93: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 93

A importância das reflexões que Dostoiévski desenvolve na sua obra, tendo re-

percussões nas mais diferentes áreas, levou também a interpretações superficiais do

autor. A busca de uma filosofia nos romances de Dostoiévski concentra-se, muitas

vezes, em uma interpretação pessoal do leitor. Esta busca filosófica preocupa, o que

é perfeitamente compreensível, muito críticos e literatos; porém a argumentação

que esta reflexão busca desenvolver se atém a uma relação profícua entre a literatura

e a filosofia, alicerçando-se em textos de comentadores de Dostoiévski e autores da

filosofia. Há que se considerar que para a filosofia é inconcebível acreditar na possi-

bilidade de entrar em contato com um pensador, um escritor, ou algo escrito por um

literato, sem com isso co-filosofar. Assim, a própria leitura pressupõe um olhar filosó-

fico que, no entanto, deve ser fundamentada para não se perder numa apreensão

(1981, p. 2): “É a multiplicidade de caráter e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência unado autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes (cons-ciência ou vozes que participam do diálogo com outras vozes em pé de absoluta igualdade) e seus mundos queaqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Também a Dostoiévski éconferida figura de “criador do romance polifônico. Criou um gênero romanesco essencialmente novo. Por isso,sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas histórico-literários que costuma-mos aplicar às manifestações do romance europeu. Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz seestrutura do mesmo modo que se estrutura a voz do próprio autor no romance comum” (BAKHTIN, 1981, p. 3).Aproveita-se o momento para mencionar que Dostoiévski é, também, abordado pelos grandes cineastas. Paranhosafirma referente a Dostoiévski: “Um romancista filósofo, autor de verdadeiros tratados de filosofia moral [...] éuma grande tentação para qualquer cineasta. [...] Memórias do subsolo torna-se Notas do subterrâneo, comroteiro e direção de Gary Walkow. [...] Crime e castigo tem uma versão brasileira, dirigida por Heitor Dhalia”(PARANHOS in: Revista Ciência e vida – Filosofia, 2008, p. 62).12 Os críticos que abordam Dostoiévski no campo da religiosidade encontram nele, também, um campo vasto deabordagem. Para Guardini, “em última instância todos os personagens de Dostoiévski estão determinados porforças e elementos de ordem religiosa, do que dependem as decisões que a eles são próprias. E, ainda mais, omundo de Dostoiévski como universo, o conjunto conexo de realidades e valores, a mesma atmosfera em que semovem as suas criaturas, tudo é, no fundo, da natureza religiosa” (GUARDINI, 1958, p. 11, tradução nossa). (Dooriginal: “En ultima instancia todos los personajes de Dostoiévski están determinados por fuerzas y elementos deorden religioso de que dependen las decisiones que les son propias. Es más aún, el mundo de Dostoiévski comouniverso, el conjunto conexo de realidades y valores, la atmósfera misma em que si mueven sus criaturas, todo es,en el fundo, de natureza religiosa”). Também, em suas obras, Dostoiévski aborda essa questão da religiosidade ede Deus com muita frequência. Em Os demônios, Dostoiévski apresenta nas palavras de Kirilov: “Cada qual pensa,depois, imediatamente, pensa em outra coisa. Eu não posso pensar em nenhuma outra. Penso a vida inteira namesma coisa. Deus me tem atormentado a vida inteira” (DOSTOIÉVSKI, 1975d, v.3, p. 890).13 Nessa perspectiva social, Dostoiévski apresenta-se solidário e preocupado com as realidades alheias. NatáliaNunes ao referir-se ao social de Dostoiévski apresenta que: “temos um Dostoiévski que luta pela dignidade doindivíduo, pelo amor do próximo, pela fraternidade humana universal, pela piedade pelos fracos e oprimidos –expondo em suas obras os quadros negros da miséria e da concepção da sociedade e satirizando vaidades emediocridades (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 68). Nessa questão social, porém, não se pode esquecerque Dostoiévski também é fruto do meio social e é, por sua vez, influenciado por esse. “A obra e as idéias deDostoiévski traduzem perfeitamente o drama desses homens russos do século XIX, que saem de um mundosemibárbaro e entram em contato com toda a moderna civilização européia, por sua vez tão carregada tambémde problemas, de dúvidas e incertezas” (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 72). “Uma Rússia que saiu doczarismo absolutista e caminha para a revolução social” (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 72).14 Freud, no escrito: “Dostoiévski e o parricídio” apresenta que “dificilmente pode dever-se ao acaso que três dasobras primas da literatura de todos os tempos – Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e os IrmãosKaramazov de Dostoiévski – tratam todos do mesmo assunto, o parricídio. Em todos os três, ademais, o motivopara a ação, a rivalidade sexual por uma mulher, é posto a nu” (FREUD, 1974, v.21, p. 217). ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 94: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski94

particular precipitada. É preciso considerar que as obras de Dostoiévski são motiva-

doras de uma filosofia reflexiva sobre o próprio homem. Não se quer, neste processo

de co-filosofar, preocupar-se exclusivamente com os conceitos que podem ser retira-

dos de suas obras, mas sim, nos diferentes temas, encontrar a visão do autor que vê

a própria vida como dinâmica e impossível de ser codificada, aqui o arcabouço ofere-

cido pela filosofia será útil.

Se um dos princípios da filosofia é poder prestar atenção ao que é dado, refletir

a respeito disso, no “desabrochar-surgimento” das coisas, é estar acordado àquilo

que Heráclito apresentara no fragmento 89: “Para os despertos um mundo único e

comum é, mas os que estão no leito cada um se revira para o seu próprio” (HERÁCLITO,

in: OS PENSADORES, 1973, v.1, p. 93), por que não perceber que os personagens de

Dostoiévski, todos eles “humanos, demasiado humanos”, são possibilidade

impulsionadora de reflexão; e, ainda mais, reflexão sobre quem reflete?

No prefácio do livro O espírito de Dostoiévski, Berdiaeff ([s.d.], p. 5) confirma

esta abordagem, afirmando que: “se desde cedo, os problemas filosóficos se puse-

ram diante de minha consciência, a razão está certamente nas ‘malditas perguntas’

de Dostoiévski” e este fato se confirma quando, por exemplo, lê-se o trecho no qual

Dolgoruki, protagonista de O adolescente, reflete em suas relações com Viersilov:

Ora, acontece que aquele homem não é senão um sonho, um sonho dos meus anos

de infância. Fui eu que o imaginei desta maneira; na realidade ele é bem diferente,

bem abaixo da minha fantasia. Foi um homem honrado que vim procurar e não este.

Mas por que me deixei fascinar por ele, de uma vez para sempre, naquele curto ins-

tante em que o vi outrora, ainda menino? Esse para sempre deve desaparecer

(DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 72).

É na sutileza desta citação dostoieviskiana que a afirmação de Pereyson (2007, p.

34) pode ser compreendida: “Sua concepção filosófica deve ser buscada em sua arte,

porque, somente em sua arte, pode estar plenamente revelada” (PEREYSON, 2007, p.

34, tradução nossa15).

Pode-se, com esforço, compreender que surjam afirmações de uma impossibili-

dade de encontro com a filosofia de Dostoiévski através de suas obras, uma vez que

nelas encontra-se um homem santo e outro pecador, um criminoso e outro de agir

correto, personagens controversos, como uma prostituta que abraça a Bíblia. Assim

sendo, O diário de um escritor poderia, por exemplo, ser a base de uma filosofia, uma

15 Do original: “debe ser buscada em su arte, porque solo em su arte puede estar plenamente revelada”.

Page 95: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 95

vez que nele encontram-se algumas definições de Dostoiévski referentes à arte, às

relações sociais e à ética, mas é justamente neste ponto que o Diário perde a riqueza

em comparação aos romances. Nos romances encontram-se as ideias e elas são mais

filosofia, mais reflexão, uma vez que são mais vivas e não buscam o seu fim na rigidez

cadavérica do conceito.

O que é notável em Dostoiévski é que ele conseguiu transmitir a uma árida questão

de filosofia aquele mesmo ardor das suas tragédias passionais. Não é inteligência

pura, isolada que se eleva desinteressadamente nas mais profundas abstrações para

atingir este ou aquele aspecto da realidade, é o homem todo, espírito e carne, inteli-

gência e coração (NOGUEIRA, 1974, p. 46).

A filosofia ocupava um lugar especial para Dostoiévski. Em certa ocasião ele afir-

mou: “Sou bastante fraco em filosofia (mas não no meu amor a ela; no meu amor a

ela sou forte)” (Cf. BERDIAEFF, [s.d.], p. 35). Esta fraqueza de Dostoiévski na filosofia

refere-se à filosofia acadêmica, destarte sua busca e sua preocupação estavam no

caminho e, nesse caminho, encontravam espaço para demonstrar o quanto a filoso-

fia era amada por ele.

“Foi um verdadeiro filósofo. O maior filósofo russo. Deu infinitamente à filosofia,

e parece que a especulação filosófica deve ser penetrada de suas concepções”

(BERDIAEFF, [s.d.], p. 35). Essas concepções oferecem, por exemplo, uma alavanca à

filosofia moral como a que aparece na abordagem das concepções de Raskolnikov;

suscitam discussões da filosofia da religião como na questão de Deus, abordada por

Ivan, ou mesmo permeia os grandes debates da antropologia filosófica, através da

forma com que cada personagem se revela motivada por uma ideia.

“Talvez a filosofia lhe tenha dado pouco, mas ela pode tomar muito dele, se ele

lhe abandona as questões provisórias; no que concerne às coisas finais, é ela que

vive, desde longos anos sob o signo de Dostoievski” (BERDIAFF, [s.d.], p. 35). Realida-

de possível pelo fato de que “a iniciação filosófica de Dostoiévski brota daquele seu

singular sofrimento especulativo que o vincula sempre e incessantemente aos temas

mais profundos e angustiantes da existência humana” (Centro Di Studi Filosofici Di

Gallarate, 1976, p. 319, tradução nossa)16.

16 Do original: “L’iniziazione filosofica di Dostoievskij scaturisce da quella sua singulare sofferenza speculativa. Chelo ritorna sempre ed incessantemente ai temi piú profondi ed angosciosi dell’esistenza umana”. ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 96: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski96

1.3.1 A ideia

E eis que de repente, uma ideia assombrosa me veio ao pensamento [...] Essa ideia

temerária foi-se apoderando de mim pouco a pouco, até o ponto de não me deixar nem

um momento de descanso. Meditava continuamente nela com angústia [...] Esse proje-

to afigurava-se-me cada vez mais possível e provável (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 696).

O mundo das ideias está, para Dostoiévski, no fundamento, uma vez que elas são

vivas, pré-anunciam um destino vigoroso, possuem uma dinâmica própria, não po-dem ser resumidas ao esfriamento mecânico “dois e dois são quatro”. As ideias são

em Dostoiévski algo totalmente original. Diferenciam-se da concepção de Platão,para quem a idéia é um protótipo do ser, um fim último ao qual as coisas, quantomais semelhantes, mais perfeitas são. Para Dostoiévski, as ideias são a energia que

move e orienta o homem, são o seu destino. “Toda idéia, em Dostoiévski, está ligadaao destino do homem, ao destino do mundo, ao destino de Deus. As ideias demons-

tram esses destinos” (BERDIAFF, [s.d.], p. 8).

Assim, as ideias não se encontram no fim, mas no caminhar. A compreensãodisso não é alcançada pelas ciências positivas, como a psicologia, por exemplo, uma

vez que a abordagem das ciências positivas está no “positum”, ao contrário do quese encontra na dinâmica da ideia em Dostoiévski, que torna louvável uma atuação dafilosofia neste campo. “Ele foi o grande pintor do que é; Dostoiévski apenas se preo-

cupou do vir-a-ser. Ora, é mais fácil atingir a perfeição sobre uma matéria estática doque sobre uma matéria em evolução, [...] (ele) conhece a eterna contradição humana

que força a cada passo voltar para trás” (BERDIAFF, [s.d.], p.21). O que demonstraque, no homem, esse ser em “evolução” instável, Dostoiévski encontra a realidade daideia que está no mesmo jogo. “A vida das ideias em Dostoiévski é em altíssimo grau

dinâmica e contraditória. Não se poderia tomá-la de maneira parada e estática, epedir-lhe simplesmente um sim ou um não” (BERDIAFF, [s.d.], p. 189). O sim ou o

não, neste sentido, são apenas um julgamento daquilo que fora realizado, ou seja,daquilo que fora vivido, logo, o sim ou o não são apenas conceitos, e o mais impor-tante é a vida que acontece anteriormente.

Desse modo, os heróis, na obra de Dostoiévski, são ideias. Neles, elas tomam

vida. Em O adolescente, no diálogo entre a mulher furiosa que procurava Viersilov eo protagonista, este ressalta a importância da ideia na vida dos heróis: “Karft suici-

dou-se, por causa da ideia, imagine, Karft, um rapaz tão cheio de promessas... [...]Lê-se já na bíblia que os filhos deixem seus pais e fundem seu ninho... Quando a ideia

nos arrasta... quando existe uma ideia... A ideia é tudo, tudo está na ideia”

(DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 147).

Page 97: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 97

As personagens, movidas por uma ideia, buscam compreendê-la, questionam-

na, e, no questionamento, caminham para o destino. Entretanto, deve-se ter o cuida-

do de não tornar isso em um modelo transcendental da realidade, uma vez que a

ideia é “uma força vivente que produz e anima o mundo” (PEREYSON, 2007, p. 45,

tradução nossa17), pois, “a primeira imagem da qual Dostoiévski se serve para definir

a palavra ideia é a de ‘semente divina’” (PEREYSON, 2007, p. 45, tradução nossa18),

fato recordado pelas palavras de Zossima:

Muitas coisas na Terra nos estão ocultas, mas em troca nos foi dada a sensação mis-

teriosa e arcana da nossa ligação viva com outro mundo, com o mundo das alturas e

superior; aliás, as raízes dos nossos pensamentos e sentimentos não estão aqui, mas

em outros mundos. Eis porque os filósofos dizem que a essência das coisas não pode

ser compreendida na terra. Deus pegou as sementes de outros mundos e as semeou

aqui na Terra e cultivou o seu jardim, e tudo o que podia germinar germinou, mas o

cultivado vive e é animado apenas pela sensação de um contato com os outros mun-

dos misteriosos; se esta sensação enfraquece ou se destrói em ti, morre também o

que foi cultivado em ti. Então te tornarás indiferente à vida e até a odiarás

(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 435).

Ideia não é sinônimo de cultura, “e eu sou o primeiro a afirmar que no homem

mais inculto, no seio mais baixo, entre esses homens que sofrem, se encontram as-

pectos da mais refinada evolução espiritual” (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 516). As-

sim, cada criatura tem o valor de uma ideia. Quando Raskolnikov mata a velha usurária,

ele mata a ideia presente no outro, o que, mais tarde, com o passar dos acontecimen-

tos, entrará em confronto com a ideia presente em Raskolnikov, que não suportará

mais carregar o peso de uma outra ideia pertencente ao outro; uma vez que as ideias

são “contagiosas”, cada pessoa é capaz de sustentar a ideia que lhe for particular.

Raskolnikov é movido por uma ideia de valor moral utilitarista que descartava a im-

portância das demais ideias, o que lhe causara a impressão de ser lícito o crime.

Outra concepção de ideia para Dostoiévski é que esta consiste em um segredo de

cada homem. “Para Dostoiévski um homem tem uma autêntica personalidade en-

quanto chega em seu interior uma ideia e vive sob o amparo da mesma” (PEREYSON,

2007, p. 46, tradução nossa19). O Adolescente ilustra esta concepção:

17 Do original: “una fuerza viviente que produce y anima el mundo.18 Do original: “La primera imagen de la que Dostoiévski se sirve para definir la palabra ideia es la de ‘semilladivina”.19 Do original: un hombre tiene una auténtica personalidad en cuanto lleva en su interior una ideia y vive bajo elamparo de la misma. ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 98: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski98

Estava bem certo de que esta ideia, não lhe entregaria eu, não lha daria, mas podiam

elas (pessoas que estavam na casa de Diergatchor) (ainda uma vez, elas ou pessoas do

mesmo estilo) dizer-me coisas que me fariam perder confiança em minha ideia, mes-

mo que não fizessem a ela alusão. Havia na minha ideia problemas não resolvidos,

mas não queria eu que outrem os resolvesse em meu lugar [...]. A única coisa que me

consolava [...] era que malgrado tudo, a minha “ideia” me restava, sempre no meu

esconderijo e que eu não a revelara. Com um aspecto de coração, imaginava por

vezes que, no dia em que tivesse eu comunicado a alguém a minha ideia, de súbito

nada mais me restaria, de modo que seria semelhante a todo mundo e talvez abando-

nasse a minha ideia; assim, guardava-a, conservava-a e temia as falações [...] minha

ideia é um refúgio (DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 57).

A ideia torna-se um refúgio no sentido de que o homem encontra nela motiva-

ção para partir em direção ao viver que é sustentado pela ideia, encontrando nela

aquele “seguro” sem o qual ele não quer existir. “A minha ideia é fortaleza onde, a

qualquer tempo e a qualquer ocasião, posso fugir de todos os homens, ainda que

fosse como o mendigo morto no barco” (DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 88).

Assim, “as personagens são ideias encarnadas: a semente divina, isto é, a ideia

transcendente, se transforma em um segredo imanente, íntimo de toda a personali-

dade digna de tal nome” (PEREYSON, 2007, p. 46, tradução nossa20). Dostoiévski

designa com a mesma palavra duas realidades, o que leva o leitor a uma concepção

mais profunda de onde é o ponto de encontro da natureza dialética da realidade e o

exercício humano da liberdade.

1.3.2 Dostoiévski e a antropologia filosófica

Uma questão que motivou a filosofia em toda a sua história passada e que con-

tinua atual é a busca pelo esclarecimento do que é o homem. Max Scheler, em sua

obra A posição do homem no cosmos, oferece uma visão deste homem que é a

preocupação da filosofia. Para ele:

Somente o homem – uma vez que é pessoa – consegue se alçar sobre si mesmo –

enquanto ser vivo –, e, a partir de um centro como que para além do mundo espaço-

temporal, incluindo aí ele mesmo tornar tudo objeto de seu conhecimento. Desta

forma, o homem como ser espiritual é o ser que se coloca acima de si mesmo como

ser vivo e acima do mundo (SCHELER, 2003, p. 44).

20 Do original: “Las personalidades son ideias encarnadas: La semilla divina, esto es, la ideia transcendente, setransforma en el secreto inmanente, íntimo, de toda personalidad digna de tal nombre”.

Page 99: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 99

Assim, se há um problema urgente a ser resolvido no contexto atual é o da antro-

pologia filosófica, que, segundo Mondin (1980, p. 8) é:

Uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura ética do homem; da sua

relação com os reinos da natureza (minerais, planta e animais) e com o princípio de

todas as coisas, da sua origem essencial metafísica e o seu início físico, psíquico e

espiritual no mundo, das forças e potencias que agem sobre ele e aquelas sobre as

quais ele age, das direções e das leis naturais do seu desenvolvimento biológico,

psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essen-

ciais. Os problemas da relação entre alma e corpo (entre psíquico e físico) e a relação

entre espírito e vida estão compreendidos em tal antropologia, somente a qual pode-

ria dar um válido fundamento de natureza filosófica e, juntamente, finalidades deter-

minadas e seguras à pesquisa de todas as ciências que tem por objeto o homem.

Dostoiévski apresenta em suas obras essas mesmas preocupações que são pró-

prias da antropologia filosófica. Suas abordagens, presentes nos romances, não são

simples ilustrações de paisagens, mas demonstram o vigor de vida que move as per-

sonagens, representando os questionamentos próprios da filosofia, provocando as

perguntas que norteiam o homem.

Há uma concepção de homem e de liberdade da humanidade nas obras de Dostoiévski

que causou uma influência central na antropologia filosófica do século XX. Friedrich

Nietzsche, Max Scheler, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Albert Camus

e muitos outros, que admitiram explicitamente que as obras de Dostoiévski tiveram

uma evidente influência na forma pela qual foram instruídos a conceber a natureza do

homem e o mundo onde o homem vive (WOLF, 1997, p. 2, tradução nossa)21.

O que esses filósofos encontram nas obras de Dostoiévski é a forma pela qual a

realidade é apresentada. Ela é a “profundeza espiritual do homem, é o destino do

espírito humano, [...] as relações do homem com Deus, do homem com o diabo, [...]

são as ideias pelas quais o homem vive” (BERDIAFF, [s.d.], p. 24), e, nesta realidade, o

homem percebe-se “limitado pela sociedade, condições econômicas, leis, história,

pela igreja e, especialmente, por Deus” (WASIOLEK, 1972, p. 411, tradução nossa)22.

É a própria realidade que “desnuda” o homem.

21 Do original: “There is a conception of man and human freedom in Dostoievsky’s work which has had a centralinfluence on twenteeth-century philosophical anthropology. Friedrich Nietzsche, Max Scheler, Martin Heidegger,Jean-Paul Sartre, Merleau- Ponty, and Albert Camus, among others, have explicity admitted that the works ofDostoievsky had a certain influence on de manner in which they leaned to conceive of the nature of man and theworld in which humans live”.22 Do original: Limited by society, economic conditions, laws, history, the church and especially by God”. ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 100: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski100

A partir da leitura de Dostoiévski, chega-se à conclusão de que sua obra “nãoassinala somente a crise, mas a verdadeira derrota da humanidade” (BERDIAFF, [s.d.],p. 69). O homem não é mais obrigado a sentir-se no centro, como ponto referencialde “boas condutas”, do qual provirá o destino do mundo. O homem assume o seulugar, e se, por acaso, este for o centro, será assumido como centro, mas não maissob a antiga obrigação. Sendo assim, Dostoiévski pode ser colocado ao lado deNietzsche, uma vez que, depois dos dois, é impossível retornar ao humanismo racio-nalista. Entre os dois há, porém, uma diferença considerável. “Dostoiévski reconhecea ilusão da deificação; explorara profundamente o caminho da arbitrariedade huma-na. [...] Nietzsche foi dominado pela ideia de super homem, que nele matava a dohomem” (BERDIAFF, [s.d.], p. 70).

Este caminho da arbitrariedade humana é aquele que desperta a preocupaçãoque o homem tem pelo seu destino que o leva ao grande desejo de querer conhecer-se a si mesmo, a fim de poder medir suas forças e compreender quem ele é, naperspectiva de ter uma prévia noção de qual caminho deverá trilhar. E é justamentenesse conhecer a si mesmo que os temas do bem, do mal, da imortalidade, da liber-dade e de Deus surgem; e é em virtude do conhecimento daquilo que surge nopróprio homem, que, nas obras de Dostoiévski, os espaços físicos externos e os acon-tecimentos são colocados em segundo plano, buscando dar importância maior àviagem que cada um pode fazer em si, ou seja, o conhecer-se.

Na influência que Dostoiévski tem na antropologia filosófica, está esse processode conhecer-se e, nesse conhecer-se, colocar-se em relação com o próximo que é“mais precioso do que o longínquo, toda a vida humana, toda alma humana valemais do que o melhoramento de uma humanidade em formação, que uma ideiaabstrata” (BERDIAFF, [s.d.], p. 116); assim, vê-se que, como um antropólogo, nãodeixa de ver cada pessoa em sua individualidade, indiferente de suas característicasexternas. É uma unicidade que se dá a partir da concepção de que cada um é uma

ideia e essa ideia move o ser.

Enquanto ainda é tempo, recuso-me aceitar esta harmonia superior. Acho que não

vale ela uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e reza-

va ao “bom Deus”, no seu quarto infecto. [...] E se o sofrimento das crianças serve

para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde

agora que essa verdade não vale tal preço. [...] Imagina que os destinos da humanida-

de estejam entre tuas mãos e que para tornar as pessoas definitivamente felizes,

proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas,

a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre as suas lágrimas

a felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante felicida-

de? Responde sem mentir. – Não, não consentiria! (DOSTOIÉVSKI, 1975e, v.4, p. 694).

Page 101: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 101

Esta visão só se torna possível quando compreendido que em cada pessoa há um

“subterrâneo”, o que é realizado quando a motivação desta percepção encontra-se

na visão de uma antropologia, em uma visão existencialista. Com Dostoiévski

começa o ciclo de um existencialismo russo que vai seguir uma trajetória religiosa,

como a de Kiekegaard. Embora as qualidades excepcionais de suas novelas o situem

como uma das principais figuras da literatura, seu pensamento tem um lugar importan-

te na filosofia e se destaca pela influência que exerceu na mentalidade russa no fim do

século passado e no início do presente (CORREA, 1965, p. 349, tradução nossa)23.

Conclusão

Dostoiévski viveu em uma atmosfera ardente, isto é, em um contexto histórico,

social e pessoal desafiadores. É nesse contexto que vão sendo forjadas e florescem

aquelas ideias que sustentam o próprio viver humano. “Elas tornam-se para o espíri-

to um pão cotidiano, sem o qual não se pode viver. Não se pode viver se não se

resolverem as questões de Deus e do demônio, da imortalidade, do mal, do destino

do homem e da humanidade” (BERDIAFF, [s.d.], p. 277). Essas questões não se en-

contram no âmbito daquelas que o homem descobre aos seus amigos, aquelas apre-

sentadas até o presente momento e que são facilmente abordadas nas conversas

cotidianas e não exigem do homem a “nudez”. Apresentar dados biográficos, rela-

cionar conceitos, é fácil à recordação, pois não exige desta o “compromisso” com a

essência humana.

O homem, porém, não acontece somente nas questões externas ou nos concei-

tos, ou seja, naquelas coisas que ele revela aos seus amigos. Essas “coisas” apontam

para outras, que, devido à relação que o homem tem com elas, ele não as revela aos

seus amigos, mas somente a si, em segredo. Essas questões, todavia, exigem uma

resposta do homem e, nesta resposta, há a possibilidade de o homem acontecer.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 4. ed. São Paulo:

Paulus, 2003.

23 Do original: “Comienza el ciclo de un existencialismo ruso que va a seguir una trajectoria religiosa, como el deKierkegaard. Aunque sus cualidades exepcionales de novelista lo sitúen como una de las principales figuras de laliteratura, su pensamiento le da un puesto importante en la filosofía y destaca el influjo que ejerció en la mentalidadrusa de fines de siglo passado e principios del presente”. ar

tig

os-

resu

mo

de

mo

no

gra

fia

Page 102: RFSB, v.3, n.1

SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski102

BAKHTIN, Mikhail. O problema da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1981.

BERDIAEFF, Nicolai. O espírito de Dostoiévski. Trad. Otto Schneider. Rio de Janeiro:

Panamericana, [s.d.].

CENTRO DI STUDI FILOSOFICI DI GALLARATE. Dizionario dei filosofi. Firenze:

Dall’antoniana, 1976. p. 318-319.

CORREIA, Jaime Veloz. Filosofia moderna y contemporanea. Madrid: Compañia

bibliografica Española, 1965.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Crime e castigo. Trad. Natália Nunes. In: Obra completa. Rio

de Janeiro: Companhia Aguilar, 1963a. v. 2, p. 773-1228. (Biblioteca de autores uni-

versais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Excertos do diário de um escritor. Trad. Natália Nunes. In:

Obra completa. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1975a. v. 4, p. 1103-1246. (Bibli-

oteca de autores universais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Memória da casa dos mortos. Trad. Natália Nunes. In: Obra

completa. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1963b. v. 2, p. 305-555. (Biblioteca de

autores universais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Memórias do subterrâneo. Trad. Natália Nunes. In: Obra

completa. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1963c. v. 2, p. 661-749. (Biblioteca de

autores universais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. O adolescente. Trad. Oscar Mendes. In: Obra completa. Rio

de Janeiro: Companhia Aguilar, 1975b. v. 4, p. 11-488. (Biblioteca de autores univer-

sais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. O idiota. Oscar Mendes. In: Obra completa. Rio de Janeiro:

Companhia Aguilar, 1975c. v.3, p.129-677. (Biblioteca de autores universais: Fiódor

Dostoiévski: Obra completa, 4v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os demônios. Oscar Mendes. In: Obra completa. Rio de Ja-

neiro: Companhia Aguilar, 1975d. v. 3, p. 793-1375. (Biblioteca de autores univer-

sais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamazóv. Oscar Mendes. In: Obra completa. Rio

de Janeiro: Companhia Aguilar, 1975e. v. 4, p. 489-1101. (Biblioteca de autores uni-

versais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

Page 103: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 103

FREUD, Sigmund. Dostoievski e o parricídio. Trad. Jayme Salomão. In: FREUD, Sigmund.

O futuro de uma ilusão, O mal estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro:

Imago, 1974. p. 201-223. (Edição Estandart Brasileira de obras psicológicas comple-

tas de Sigmund Freud, 21).

GUARDINI, Romano. El universo religioso de Dostoievski. Buenos Aires: Emecé Edito-

res, 1958.

MONDIN, Battista. O homem, quem é ele?: Elementos de antropologia filosófica.

Trad. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari. 10. ed. São Paulo: Paulus, 1980.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimis-

mo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1992.

NOGUEIRA, Hamilton. Dostoiévski. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

NUNES, Benedito. No tempo do Niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.

NUNES, Natália. In: DOSTOIEVSKI, Fiódor. Obras completas. São Paulo: Aguilar. 1963. v.

1. p. 11-158. (Biblioteca de autores universais: Fiódor Dostoiévski: Obra completa, 4 v.).

PEREYSON, Luigi. Dostoievski: Filosofia, novela y experiencia religiosa. Trad. Constanza

Giménez Salinas. Madrid: Encuentro, 2007.

SARTRE, Jean-Paul. In: BEAUVOIR, Simone. A cerimônia do adeus: Seguido de

entrevistas com Jean-Paul Sartre, agosto-setembro 1974. Trad. Rita Braga. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Trad. Marco A. Casanova. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2003.

TROYAT, Henri. In: NUNES, Natália. In: DOSTOIEVSKI, Fiódor. Obras completas. São

Paulo: Aguilar, 1963, v. 1. p. 11-158.

WASIOLEK, EDWARD. Dostoievski. In: EDWARDS, Paul. The encyclopedia of philoso-

phy. New York: Macmillan Publishing, 1972. v. 1 e 2, p. 411-412.

WOLF, Peter McGuire. Dostoevsky’s Conception of man: Its impact on Philosophical

Anthropology. Florida: Dissertation, 1997.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 104: RFSB, v.3, n.1
Page 105: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 105

Frei Paulijacson Pessoa de Moura, OFM

Resumo: Evidenciando o caminho de Michel Henry na fenomenolo-gia, enquanto recondução da reflexão do corpo à carne, o presentetrabalho configura-se como exame de considerações e pensamentosdesse filósofo francês acerca daquele que foi o verdadeiro Leit-Motivde sua reflexão, a saber, a vida, a meditação, a filosofia da vida. Esteestudo será norteado pela compreensão e clarificação – a partir daassim chamada “virada (bouleversement) fenomenológica” do seu pen-samento – do modo sui generis em que este filósofo aborda o temada vida e aqueles que são estreitamente unidos a esse, a saber, otema da corporeidade e da encarnação. Esses temas são consideradosporque a linha de fundo da sua reflexão é uma compreensão da ma-nifestação da vida enquanto pathos. Assim, a verdade do cristianismo– a revelação de Deus como Verbo encarnado – pertence a esta ordemde revelação. Para uma compreensão elucidativa desses temas, seráanalisada a obra Encarnação de Michel Henry, que os aborda de modointenso na medida em que se dedica expressamente a uma interpre-tação filosófica do cristianismo, elaborada à luz de uma concepção davida como imanência.

Palavras-chave: Michel Henry, fenomenologia, bouleversement, cor-po, carne, encarnação, vida, etos, cristianismo, imanência.

Abstract: Showing the path of Michel Henry’s phenomenology,reconducting the reflection of the body to the flesh, this work presentsitself as an examination of considerations and thoughts of that Frenchphilosopher about him that was the real Leit-Motiv of his reflection,namely life, meditation, philosophy of life. This study will be guidedby the understanding and clarification – from the so-called “turn(bouleversement) phenomenological” of his thinking – the way suigeneris in which this philosopher addresses the topic of life and thosethat are closely linked to this, namely the theme of corporeity andincarnation. These themes are considered because the central line oftheir reflection is the understanding of the manifestation of life aspathos. Thus, the truth of Christianity – the revelation of God asIncarnate Word – belongs to this order of revelation. For an illuminatingunderstanding of these issues, will be analyzed the work of MichelHenry Incarnation, which addresses these issues intensely, trying tomake a philosophical interpretation of Christianity, in the perspectiveof a conception of life as immanence.

Keywords: Michel Henry, Phenomenology, bouleversement, body,

flesh, incarnation, life, ethos, Christianity, immanence.

Por uma filosofia da carne.A proposta fenomenológica deMichel Henry na obra Encarnação*

* O presente artigo foi ela-borado originalmente apartir do trabalho de con-clusão de curso apresenta-do ao Instituto de FilosofiaSão Boaventura da FAE –Centro Universitário; o au-tor atualmente cursa teolo-gia no ITF – Instituto Teoló-gico Franciscano. E-mail:[email protected]

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 106: RFSB, v.3, n.1

MOURA, Frei Paulijacson Pessoa de. Por uma filosofia da carne106

Introdução

Michel Henry mostra, a partir da obra Encarnação, que a colocação da questãoacerca do que significa encarnação, encarnar-se, fazer-se carne representa o levar àconsumação a virada fenomenológica, que lança raízes na própria essência da vida, aqual, por sua vez encontra no cristianismo uma afirmação mais profunda e rica, aomesmo tempo. Cumpre-se evidenciar que este trabalho se encaminhará como umainvestigação que considera, em modo particular, mas não exclusivo, a obra Encarnação(Incarnation) de Michel Henry. Investiga-se a intuição das considerações e dos pensa-mentos deste filósofo francês acerca da fenomenologia e de seu objeto, a saber, avida no seu próprio manifestar-se, na imediação de seu pathos, evidenciando, assim,o quanto a essa ordem de revelação imediata da vida pertence a verdade do cristia-nismo, uma vez que encarnação se identifica com a própria vida enquanto autoafeiçãoradicalmente imanente, que outra coisa não é que a carne do homem.

Deste modo, apresenta-se o que o autor entende por inversão da fenomenolo-gia, esclarece-se o que vem a ser uma fenomenologia da carne e se reflete fenomeno-logicamente o sentido cristão de encarnação enquanto revelação da vida.

1 A viragem da fenomenologia

Situando seu pensamento dentro do âmbito da fenomenologia, Michel Henry1,

depois de anos de formação dedicados ao pensamento de Descartes e Kant, cedeu

1 Michel Henry (Haïphong, 10 de janeiro de 1922 – Albi, 3 de julho de 2002) foi um filósofo francês, reconhecidocomo um dos mais importantes da época contemporânea, que pertencia à tradição fenomenológica de EdmundHusserl e Martin Heidegger. Filho de um oficial militar, Henry transcorre os primeiros anos de sua vida na Indochina.Depois da morte prematura do pai, retorna, em 1929, com a mãe, para a França, onde mais tarde estudaráfilosofia em Lille, no Liceu Henry IV de Paris e, enfim, na Sorbonne. Nesta célebre universidade terminará osestudos com a tese “Le bonheur de Spinoza” (A bem-aventurança em Spinoza). No fim da Segunda GuerraMundial, durante a qual participou da resistência, recebeu o cargo de professor catedrático em filosofia no ensinosuperior (agrégation). Depois de anos de investigação no Centro Nacional de Pesquisas Científicas de Paris, exerceo magistério, ministrando aulas no exterior e, na França, conclui seu doutorado, tornando-se docente universitá-rio na Universidade Paul Valéry, em Montpellier, nessa permanecendo até a sua aposentadoria em 1982. MichelHenry é conhecido como fundador da “fenomenologia radical da vida”, exposta em sua obra capital “L’Essence dela manifestation” (1963), em que se confronta com a ontologia tradicional e a fenomenologia histórica. A feno-menologia de Henry pode ser definida “radical” enquanto evidencia que a manifestação dos fenômenos externostem suas “raízes” na doação (la donation) da vida, compreendida de modo puro e não-intencional. Bibliografia:As pressuposições e a envergadura da diferença da reflexão do pensar de Henry podem ser lidas, saboreadas nosseguintes textos de sua lavra: 1. Textos de filosofia: L’Essence de la manifestation. Paris: Presses Universitaires deFrance (PUF), 1963 (II ed. em um volume: 1990); Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l’ontologiebiranienne. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1965; Marx. I. Une philosophie de la réalité. II. Unephilosophie de l’économie. Paris: Gallimard, 1976 (2a. ed.: 1991); Généalogie de la psychanalyse: le commencementperdu. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1985; La barbarie. Paris: Grasset, 1987; Voir l’invisible. SurKandinsky. Paris: Bourin, 1988 (2.ed.: Paris: PUF, 2004). Phénoménologie matérielle. Paris: Presses Universitaires deFrance (PUF), 1990; Du communisme au capitalisme. Théorie d’une catastrophe. Paris: Jacob, 1990; C’est moi lavérité. Pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil, 1996; Incarnation. Une philosophie de la chair. Paris:Seuil, 2000. Paroles du Christ. Paris: Seuil, 2002. 2. Romances e contos: Le jeune officier. Paris: Gallimard, 1954;L’amour les yeux fermés. Paris: Gallimard, 1976; Le fils du roi: Paris: Gallimard, 1981; La vérité est un cri. Radio-France, théâtre, 1982; Le cadavre indiscret. Paris: Albin Michel, 1996.

Page 107: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 107

espaço à fenomenologia de Husserl, da qual, por sua vez, discordou a partir de uma

espécie de virada, que possibilitou, no seu dizer, a verdadeira atuação dos princípios

fenomenológicos. O primeiro de todos, a Vida absoluta, absoluta imanência e, con-

comitantemente, absoluta manifestação, enquanto fundamento da carne.

Com efeito, a sua filosofia da imanência busca se opor não somente à posiçãohusserliana que vincula a manifestação a uma exterioridade, a uma ‘transcendência’enquanto o próprio horizonte da manifestividade, mas também à tradição grega

portadora no Ocidente do monismo ontológico.

Henry afirma não poder existir uma fenomenologia do mundo, enquanto essanão puder tomar em consideração a existência história dos homens e de seu destino

concreto2.

Essa tarefa é assumida somente a partir da fenomenologia da vida, uma vidainvisível que escapa das “garras” do pensamento. A vida, segundo Henry, não temdesdobramento entre o seu ser e o seu aparecer; nesse sentido, a vida é precisamente

aquilo que não aparece e, no entanto, se manifesta. Não aparece porque não se dáno distanciamento de si, que constitui a condição da visibilidade; a vida se manifesta

no seu único modo, a saber, aquele do pathos, da afetividade, da carne.

A relação de Michel Henry com a fenomenologia aparece, por um lado, comouma continuidade ao método proposto por Husserl, por outro lado, se propõe emtermos mais conflituais, até configurar-se aquilo que o filósofo define um

bouleversement, uma virada, que não significa abandono das premissas e dos obje-tivos da fenomenologia, mas a sua verdadeira atuação, ou seja, a busca de uma

concreta elaboração do pensamento husserliano. Destarte, com a elaboração de umafilosofia da imanência, Michel Henry propõe uma teoria da vida concebida comoabsoluta imanência e, ao mesmo tempo, absoluta manifestação.

Aparentemente trata-se de duas conotações opostas e inconciliáveis, visto que a

manifestação parece implicar necessariamente uma exterioridade, uma“transcendência” enquanto o próprio horizonte da “manifestatividade”. Mas essa é

precisamente a tese que Michel Henry busca confutar, invertendo-a de cima parabaixo, constituindo-se aqui o terreno de desconcerto com a fenomenologia de Husserl,como se evidencia nas páginas de Encarnação.

Michel Henry busca, portanto, uma teoria da verdade toda fundamentada no

próprio manifestar-se da vida na sua essência profunda, na sua imanência, que é

2 Cf. HENRY, M. “Quatre príncipes de la phénoménologie”, In: Revue de Metaphysique et Moral (1991), 1, 3-26. arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 108: RFSB, v.3, n.1

MOURA, Frei Paulijacson Pessoa de. Por uma filosofia da carne108

pathos, afetividade de cabo a rabo. Caracteriza-se, assim, a antinomia profunda que

Henry releva entre uma noção de verdade, e de manifestação, toda concentrada

sobre o fenômeno como aquilo que aparece no horizonte, no “fora” do mundo, e

uma perspectiva que se liberta de tal redução, já que a vida na sua imanência, no seu

pathos, se subtrai radicalmente a tal manifestação.

Deste modo, busca-se mostrar o quanto a vida – como sublinha Henry – não

suporta hiato, ruptura, desdobramento entre o seu ser e o seu aparecer; o quanto

essa não se coloca nunca à distância de si; aquela distância que vice-versa constitui a

própria condição de visibilidade. Nesse sentido, a vida é justamente o que não apare-

ce e, no entanto, se manifesta naquele único modo que há de se manifestar, a saber,

aquele do pathos, da afetividade na qual desde sempre se vincula no próprio abraço,

percebendo-se, experienciando-se no seu próprio viver, na sua carne.

À luz desta interpretação fenomenológica da vida, Henry busca fundamental-

mente a possibilidade de uma interpretação filosófica mais propícia do cristianismo.

O intento, portanto, é realizar um ensaio hermenêutico acerca da verdade da

encarnação cristã, o seu significado, inscrevendo-a em um horizonte mais amplo de

verdade, que se torna compreensível somente à luz de uma radical reconsideração da

própria noção de “carne”, no sentido daquela filosofia da carne que o filósofo fran-

cês elabora a partir dos princípios de uma fenomenologia da vida.

Se em C’est moi la Vérité o fio condutor da reflexão se dava a partir do autorevelar-

se de Deus no Verbo, no qual e pelo qual todos tem a vida, ou seja, são “filhos de

Deus”, em Incarnation vem a lume o tema do Verbo que “se fez carne e veio habitar

entre nós”, indissolúvel no Prólogo de João da afirmação segundo a qual “o Verbo

estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Este é precisamente o tema de Incarnation:

evidenciar o quanto na verdade cristã a encarnação aparece estreitamente solidária

com a revelação de Deus no Verbo que se fez carne. A verdade da encarnação cristã,

o seu significado, move a busca de uma reconsideração radical da noção mesma de

“carne”, constituindo, assim, à luz dos princípios próprios de uma fenomenologia da

vida, uma reflexão que coloque em questão o que significa encarnar-se, fazer-se

carne, ou seja, a necessidade de uma filosofia da carne. Assim como já se deu em sua

obra anterior – C’ est moi la Vérité –, em Incarnation instaura-se uma espécie de

círculo hermenêutico, em virtude do qual possibilita-se à verdade cristã uma manifes-

tação do seu significado à luz de uma verdade mais ampla que se enraíza na própria

essência da vida, que, por sua vez, encontra no cristianismo uma afirmação, ao mes-

mo tempo, mais rica e profunda.

Page 109: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 109

Da própria estrutura da obra delineiam-se os motivos fundamentais da reflexão

de Henry, reelaborados à luz da problemática que Incarnation aborda. Com efeito,

esta obra em estudo pode ser considerada quase uma summa do pensamento de

Michel Henry. Na sua primeira parte, o filósofo francês declara assumir a perspectiva

fenomenológica e, ao mesmo tempo, teoriza a respeito dessa uma verdadeira e pró-

pria “virada”, repropondo e sintetizando os motivos principais de discordância com a

“fenomenologia histórica”. Já minuciosamente examinados em Phénomenologie

matérielle, pode-se afirmar que, em substância, os motivos referem-se ao que Henry

atribui à fenomenologia husserliana, a saber, a assim chamada “inversão temática”.

Pois segundo Husserl, as Erlebnisse, ou seja, as vivências, as impressões vivenciais,

chegam à manifestação somente através da redução dessas a eidos, quer dizer so-

mente quando transformadas em vivências da consciência, com a consequente “subs-

tituição” de um modo de aparecer por um outro (HENRY, 2001, p. 82). Daí sucede

que a noesis se impõe sobre o noema, ditando-lhe os modos de seu próprio manifes-

tar-se, com o qual “todas as modalidades efetivas da vida – o seu conteúdo hilético

assim como o noético, segundo a linguagem de Husser1: as impressões assim como

as operações intencionais –, se desvanecem sob o olhar do ver que procura apreendê-

las” (HENRY, 2001, p. 84). Daí a necessidade da “virada”, cujo sentido é assim defini-

do: “não é o pensamento que nos dá acesso à vida, é a vida que permite ao pensa-

mento aceder a si, de se experienciar, enfim, ser o que é a cada momento...” (HENRY,

2001, p. 96). Consequentemente, como se anuncia no título do § 15, o fundamento

do método fenomenológico outro não pode ser que “a autorevelação originária da

vida”, o seu revelar-se na sua própria essência efetiva, no seu pathos.

O ponto de partida da reflexão de Incarnation constitui-se sobretudo da distin-

ção entre “corpo” e “carne”, o grande tema husserliano que o filósofo francês assu-

me integralmente, inserindo-o, no entanto, em um contexto analítico que, como se

evidencia, se extravia do quadro definido pelo fundador da fenomenologia. No pen-

samento de Henry, com efeito, a distinção joga no sentido de tornar clara a dicotomia

entre “verdade do mundo” e “verdade da vida”, na qual o corpo pertence à primeira

ordem de verdade, enquanto a carne, à verdade da vida. Na realização dessa análise,

retoma-se, portanto, a famosa distinção husserliana entre Körper, corpo, e Leibkörper

ou simplesmente Leib, carne, na qual esta última está indicando o fato que o corpo

humano não é um corpo qualquer, simplesmente dado, que está na sua objetividade,

mas é “corpo próprio, singular”, corpo encarnado. O corpo é o objeto de experiên-

cias do homem, das suas miras intencionais, aquilo que se faz presente no horizonte

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 110: RFSB, v.3, n.1

MOURA, Frei Paulijacson Pessoa de. Por uma filosofia da carne110

do mundo, pelo qual o homem é no mundo: o corpo “tocado”3, que é colocado em

questão em Incarnation. O outro modo, mais originário, de ser do corpo é aquele

pelo qual esse não é “objeto de experiência”, mas sim “princípio de experiência”

(HENRY, 2001, p. 128), corpo radicalmente “subjetivo”, como se precisou desde

Philosophie et phénoménologie du corps – esse é a carne. Corpo significa, portanto,

somente o corpo-objeto, despojado de todos os atributos da subjetividade, em uma

palavra, o corpo estudado, analisado e dissecado pela ciência; o corpo subjetivo sig-

nifica, ao invés, aquele em primeira pessoa, que se sente viver, que se colhe e se

prova em uma experiência primordial e irredutível. “Corpo próprio”, que se faz intei-

ramente um com o ego e, nesse sentido, é radicalmente subjetivo, é, portanto, unica-

mente o corpo encarnado, Leib; daqui surge toda a problemática da encarnação.

Com efeito, como afirma Henry não existe carne sem encarnação, ou seja, sem o

pressuposto transcendental que torna possível uma coisa como uma carne. A carne,

não o corpo, é, pois, propriamente o tema de Incarnation, na medida em que essa se

processa no horizonte da invisibilidade que é própria da vida, não da visibilidade do

mundo. Invisível não no sentido de irreal ou fantástica, mas enquanto manifestação

de sua própria essência prática. Daí a afirmação, apenas aparentemente paradoxal,

segundo a qual “viventes, somos seres do invisível. Não somos inteligíveis senão no

invisível, a partir dele” (HENRY, 2001, p. 91).

2 A fenomenologia da carne

Da carne à encarnação, portanto, não vice-versa, visto que a encarnação “não

consiste em ter um corpo (...), mas no fato de ter uma carne – mais talvez: ser carne”

(HENRY, 2001, p. 3). Por conta disso, acrescenta Henry, “a elucidação sistemática da

carne, do corpo e da sua relação enigmática, permitir-nos-á abordar o segundo tema

da nossa investigação: a Encarnação no sentido cristão” (HENRY, 2001, p. 4). Com

efeito, é claro que aquilo que João nos diz em sua excepcional proposição – “E o

Verbo se fez carne” – não deve ser entendido no sentido de que o Verbo entrou em

um corpo, nem, muito menos, que tenha assumido as aparências de uma carne. João

diz: o Verbo “se fez carne”; o que quer dizer que a expressão tem de ser apreendida

e pensada em todo o seu rigor. Esse é um ponto de estruturação do discurso, a partir

do qual Henry tece toda a profunda diferenciação da perspectiva cristã da encarnação,

ou seja, a visão mesma do homem enquanto “filho de Deus”, em relação seja à visão

3 Cf. MERLEAU-PONTY, O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Page 111: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 111

grega quanto à hebraica. Quanto à perspectiva grega, mostra o quanto sua noção

dualística do ser humano, dividido entre alma e corpo, espírito e matéria não dá

espaço para se pensar uma verdadeira encarnação; e que, justamente por conta dis-

so, as divindades gregas, em suas epifanias ocasionais, podem somente assumir uma

forma humana, sem nunca encarnar-se realmente. Quanto ao hebraísmo, mostra o

quanto em tal perspectiva domina a idéia do corpo enquanto formado a partir da

matéria bruta e inerte, “barro da terra”, tornando-se, assim, para os hebreus radical-

mente impensável a encarnação de Deus. Com as seguintes palavras, Henry resume

essa diferenciação:

Que o eterno, o Deus longínquo e invisível de Israel, o que esconde sempre a face [...],

venha ao mundo, impondo-se um corpo terreno para nele sofrer o suplício de uma

morte ignominiosa reservada aos malvados e aos escravos, eis o que era absurdo, no

fim de contas, quer para um rabino erudito, quer para um sábio da Antiguidade

pagã. Que este homem, o mais miserável, pretenda ser Deus, eis a maior blasfêmia,

que bem merece a morte (HENRY, 2001, p. 6).

A partir dessa reflexão provém a necessidade de uma plena elucidação do concei-

to de “carne”, tendo em vista que, também para o cristianismo, a própria possibilida-

de de uma revelação é vinculada estreitamente a tal noção. Se o fato que Deus se

revela no Verbo encarnado significasse que o Verbo assumiu um corpo, como isso

poderia ser o médium de uma revelação que permitisse distinguir o Cristo de cada

outro ser humano? A afirmação de João, então, apreendida em toda a sua radicalidade,

pode somente significar que “a carne do Verbo não provém do barro da terra, mas

do próprio Verbo. (...) No barro da terra existem somente corpos, não carne. Uma

coisa como uma carne não pode vir e não vem senão do Verbo” (HENRY, 2001, p. 18).

Assim, comungando da autoridade dos escritos de diversos Padres da Igreja, Henry

considera o quanto a origem e a natureza da carne de Cristo é a mesma da carne do

homem e o quanto, encarnando-se, o Filho de Deus realmente se apropriou da con-

dição humana, comungando realmente a existência do ser humano, sujeitando-se

realmente ao peso de uma carne finita como a humana, com as suas necessidades, a

sua sede, a sua fome, a sua precariedade, com a sua morte inscrita nessa desde o

nascimento. Caso contrário, o Cristo

não morreu realmente, também não ressuscitou, numa palavra, é todo o processo

cristão da identificação real do Verbo com o homem, como condição da identificação

real do homem com Deus, que fica reduzido a uma série de aparências e, ao mesmo

tempo, a uma espécie de mistificação (HENRY, 2001, p. 136).

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 112: RFSB, v.3, n.1

MOURA, Frei Paulijacson Pessoa de. Por uma filosofia da carne112

3 A fenomenologia da encarnação

De um pensamento assim elaborado provém, como se mostra, o estreito vínculo,

inaugurado pelo cristianismo, entre Encarnação e Salvação, que é particularmente

examinado na terceira parte de Incarnation.

Tudo isso significa, portanto, que a carne do Cristo não tem somente a aparência

de uma carne humana, mas é realmente humana: capaz, como esta última, de sentir

e sofrer. São, pois, o sentir e o sofrer que fazem dessa não um mero corpo, mas sim

uma carne visível no mundo. “Opera-se, então, na problemática dos Padres, a vira-

gem decisiva pela qual as determinações objetivas do corpo material, mostrando-se-

nos no mundo, cedem o lugar às determinações impressionais e afetivas que se revelam

no pathos da vida” (HENRY, 2001, p. 138). De modo particular, é a capacidade de sofrer

que faz da carne de Cristo uma carne humana, “sendo o sofrimento (...) uma das tona-

lidades afetivas fundamentais, pelas quais a vida toca no seu próprio Fundo” (HENRY,

2001, p. 138): com efeito, como já se dizia no L’Essence de la manifestation, é na alter-

nância de alegria e dor, de prazer e sofrimento que a vida realiza a si mesma.

A encarnação assim compreendida manifesta, portanto, toda “violência do con-

fronto entre a concepção grega do corpo e a concepção cristã da carne” (HENRY,

2001, p. 134), visto que somente assim é superado totalmente o dualismo de alma e

corpo, próprio da herança grega e do qual o cristianismo, na sua longa história,

nunca se libertou completamente.

O corpo material e mundano dos gregos é semelhante ao pedaço de terra que se torna

carne sob o sopro divino – que é o sopro da vida. Mas quando o corpo é transformado

em carne pela operação da vida, ele só recebe a sua condição de carne da vida que lhe

permite experienciar-se a si mesmo, nela, e tornar-se carne (HENRY, 2001, p. 142).

Compreende-se, então, a estreita conexão que para o filósofo francês existe en-

tre a narração do Gênesis e o Prólogo de João, no sentido, porém, que a autêntica

compreensão da primeira é possível unicamente à luz do segundo: somente à luz da

encarnação, com efeito, é possível compreender até o fim a transformação do barro

da terra, do corpo objetivo, em corpo subjetivo e vivente. O espírito de vida não se

une do exterior a uma matéria já dada, como poder-se-ia fazer pensar a narração

bíblica ou uma sua interpretação sob o influxo da conceitualidade grega; ao contrá-

rio, a transforma a partir do interior, tornando-a em tudo e para tudo matéria viven-

te, carne. Com absoluta coerência interpretativa Henry pode afirmar que “toda carne

provém do Verbo”, se é verdade que – como se lê no Prólogo – “todas as coisas foram

feitas por meio dele e sem ele nada se fez do que foi feito”. É o que, com extrema

Page 113: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 113

clareza, viu Irineu, para quem – observa o filósofo – existe “uma afinidade essencial

entre a criação original do homem e a Encarnação do Verbo, de modo que só a

segunda nos permite entender a primeira” (HENRY, 2001, p. 248).

Se essa colocação é verdadeira, faz-se necessário dizer, então, que “o homemnunca foi criado, nunca foi visto no mundo. Ele veio à vida. É nela que ele é seme-

lhante a Deus, feito da sua mesma realidade, a vida de todo o vivente” (HENRY, 2001,p. 246). Por isso, “as proposições iniciáticas do Prólogo de João (...) nos permitem

compreender a unidade da visão transcendental das Escrituras. É esta unidade que éposta a nu quando a ideia de criação cede o lugar à de geração” (HENRY, 2001, p.

247); impostação transcendental porque não se trata de uma gênese histórica, massim a-histórica e a-cósmica – transcendental, portanto – como é sempre o gerar-se davida na vida.

Com a encarnação de Deus se esclarece também o sentido de sua “transcendência”.

Nada é mais estranho, com efeito, ao pensamento cristão que um Deus “impassível”,que não participe da sorte dos homens, bem-aventurado na sua autosuficiência. A

transcendência não é compreendida, portanto, como na tradição filosófica, a modode um Deus artífice do universo, exterior à sua criação, que entrega aos homens atarefa de decifrar os vestígios que nessa deixou: “num sentido radical e o único acei-

tável, se se trata com efeito do absoluto, transcendência designa a imanência da Vidaem cada vivente” (HENRY, 2001, p. 128). Retoma-se, aqui, a palavra-chave “imanência”,

que recapitula toda a perspectiva do filósofo francês; palavra altamente suspeitapara os ouvidos cristãos, aos quais evoca ressonâncias panteístas, de origem pagã.Viu-se, porém, que para Henry a imanência não exclui a realidade da ipseidade, na

qual a vida se gera cada vez: o “Filho de Deus”, o Verbo encarnado é o próprioprincípio de toda ipseidade, na qual e pela qual todo ser nasce à vida. Daí a nítida

recusa, formulada já em C’est moi la Vérité, do infinito romântico, no qual a individu-alidade não encontra verdadeira consistência, uma vez que existe só para suprimir a

si mesma. Além disso, como é justamente acentuado, a originalidade do cristianis-

mo, em relação às outras formas de espiritualidade, reside próprio no fato que

a unidade absoluta entre todos os si vivos, longe de significar ou de implicar a disso-

lução ou a aniquilação da individualidade de cada um deles, é pelo contrário

constitutiva desta, visto que é na efetuação fenomenológica da vida no seu Verbo

que cada um deles está unido a si, gerado em si como este si irredutivelmente singu-

lar, irredutível a todo e qualquer outro (HENRY, 2001, p. 266).

Daí origina-se, enfim, que se a vida do homem é dada no Filho e pelo Filho, por

meio do qual todos os homens são filhos de Deus, também a salvação não é possível

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 114: RFSB, v.3, n.1

MOURA, Frei Paulijacson Pessoa de. Por uma filosofia da carne114

senão por meio dele, uma vez que essa é chamada a restaurar o vínculo que prende

o ser humano à vida infinita, a reconstituí-lo cada vez que tal vínculo for rompido.

A encarnação, como caminho aberto para a salvação do homem, aparece desde logo,

segundo a intuição de Irineu, como uma restauração, a restauração da sua condição

original, na medida em que o homem foi criado por Deus à sua imagem, sendo,

assim, esta criação, a sua geração na autogeração da vida absoluta no seu Verbo – o

seu nascimento transcendental (HENRY, 2001, p. 264).

Conclusão

A reflexão instituída a partir de uma conversa leitora com a obra Encarnação

nada pretende; essa é apenas o empenho e desempenho de deixar-ser o cultivo de

uma possibilidade humana de compreensão. Nesse sentido, a reflexão suscitada pela

dimensão de um cultivo não se confunde com a discussão. Como se viu, no desafio

proposto por Michel Henry enquanto um pensar a vida, nada é acidental, porque

tudo é sabor, provocação de aprender a ser. Na discussão, ao invés, há o que é impor-

tante e o que não é importante. A discussão pretende atingir uma plataforma co-

mum, uma combinação, para superar certas dificuldades. É mais atenta ao combina-

do ponto de vista da situação que à sua experiência. Daí que na experiência do enca-

minhar-se, do tornar-se de novo capaz de escutar a palavra na profundidade de nos-

sa interioridade, ou seja, na experiência de sentir a palavra na carne de nossa carne,

enquanto única possibilidade de verdade e de vida que ainda é dada, não encontra

muito sentido a necessidade de concluir. Com efeito, os caminhos dessa investigação

não querem jamais constituir um corpo fechado, mas miram antes o testemunho de

uma relação criadora da vida, sendo o que sempre ainda pode se transformar.

Conclui-se dizendo que o único escopo dessas considerações foi aquele de perfa-

zer, a partir da obra Incarnation, a linha de fundo do pensamento do filósofo francês,

em sua busca fundamental de elaborar uma interpretação radical da verdade do

cristianismo, colocando no centro da questão os temas da vida e da encarnação, ou

seja, buscando interpretar com intensidade e rigor o Prólogo joanino, no qual se

reassume contemporaneamente a verdade profunda da vida e a verdade profunda

do cristianismo.

Referências

HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2009.

Page 115: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 115

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EDUSF, 2006.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.

HENRY, Michel. C’est moi la Vérité. Por une philosophie du christianisme. Paris: Seuil,

1996.

HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Trad. Florinda Leonilde Ferreira

Martins. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001.

HENRY, Michel. Incarnation. Une philosophie de la chair, Paris: Éditions du Seuil, 2000.

HENRY, Michel. La Barbarie. Paris: PUF, 2001.

HENRY, Michel. L’Essence de la manifestation. Paris: PUF, 1990.

HENRY, Michel. Paroles du Christ. Paris: PUF, 2004.

HENRY, Michel. Phénoménologie de la chair. Philosophie, théologie, exegese. Réponses,

In: CAPELLE, P. Phénoménologie et christianisme chez Michel Henry: Les derniers

écrits de Michel Henry en débat, Paris: CERF, 2003.

HENRY, Michel. Phénoménologie matérielle. Paris: PUF, 1990.

HENRY, Michel. Philosophie et Phénoménologie du corps. Paris: PUF, 1987.

KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia: Uma simples psicológica e prévia medita-

ção sobre o problema dogmático do pecado original, Lisboa: Edições 70, 1982.

KÜHN, R. “Le corps retrouvé. Une phénoménologie subjective radicale appliqué à une

investigation sur la corporéité”, In: Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques,

72 (1988) 557-568.

MARCEL, G. Être et Avoir. Paris: Éditions Montaigne, 1989.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.

RENAUD, R. “Corpo”, in: LOGOS – Enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Lisboa/São

Paulo: Editorial Verbo, v.1 (1997) 1176-1182.

TILLIETTE, X. “La christologie philosophique de Michel Henry”, In: Gregorianum (1998)

371.

arti

go

s-re

sum

o d

e m

on

og

rafi

a

Page 116: RFSB, v.3, n.1
Page 117: RFSB, v.3, n.1

TRADUÇÕES

Page 118: RFSB, v.3, n.1
Page 119: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 119-122, jan./jun. 2010 119

Heirich Rombach

Continua sendo incompreensível como até os dias

atuais a filosofia não descobriu a hermética como a for-

ma básica de todas as constituições do ser. O que pro-

curava o Heidegger, a “ontologia fundamental”, é na

verdade a hermética; e quando ele descobriu que o cri-

tério supremo do Dasein é a “autenticidade”

(Eigentlichkeit), deparou-se com uma das mais eleva-

das formas do hermético. Mas não a forma suprema,

pois esta é a unicidade.

Unicidade (Einzigkeit) não é especificidade única

(Einzigartigkeit). Não se trata de algo destacar-se na

especialidade (Besonderheit), e muito menos se trata

de assegurar-se um lugar especial através de algumas

propriedades determinadas que pertencem apenas a ele.

Isso tudo é exterior e não resulta em nenhuma unicidade.

Essa significa, ao contrário, que algo surgiu em

autogênese, num caminho que se determina a partir de

si mesmo. Dito em imagens: só se alcança o cume da

montanha em sua unicidade quando a escalamos per-

correndo um “caminho”. Quem não trilhou o caminho

da apropriação interior não alcança o cume em sua

unicidade. Quem chega lá transportado por teleférico

ou de helicóptero pousa noutro cume, não no único.

A unicidade se constitui no caminho. Quanto mais

longo e mais difícil o caminho, tanto mais elevada a

unicidade. Mas já os caminhos bem cotidianos, inclusi-

Unicidade*

* Texto extraído deROMBACH, H. DerKommende Gott. Hermetik– eine neue Weltsicht.Freiburg: Rombach Verlag,1991, p. 142-145. Agrade-cemos à Rombach Verlagpor ceder os direitos paratraduzir esse texto. Tradu-ção de Enio P. Giachini.

trad

uçõ

es

Page 120: RFSB, v.3, n.1

ROMBACH, Heirich. Unicidade120

ve, que percorremos em nosso mundo da vida, produzem a unicidade tanto das

coisas que estão nele quanto do mundo da vida e também de nós mesmos. Sim, um

fenômeno tão simples quanto a concentração é um primeiro empuxo de unicidade. É

só assim que podemos nos concentrar nalguma coisa ou nalguma pessoa de tal

modo que a colocamos como ponto final de um caminho. A caminho, a coisa se

desenvolve; ela cresce para uma valoração cada vez mais elevada e nos carrega tam-

bém para dentro desse curso de elevação. No caminho, que se desenvolve “entre” a

coisa e nós, a coisa vai ganhando uma unicidade cada vez mais clara, na qual partici-

pamos também nós, que percorremos esse caminho.

A essência da unicidade consiste no fato de estender ao seu redor um campo que

cresce na medida em que se desdobra a univocidade da unicidade. Assim como só se

dá a unicidade para aquele que se aproxima dela a caminho, assim também só se dá

para aquele que se move no campo que pertence à unicidade.

Duas unicidades não têm um campo comum. É bem possível que uma e a mesma

região possa ser parte de diversos campos, mas se porta de modo muito diverso, está

pois na luz de unicidades distintas. Uma cidade postada no limite entre a montanha

e o vale porta-se cada vez distintamente, quando a visitamos a partir da montanha

ou a partir do vale. Não há essa cidade. Há apenas dois lugares, dependendo confor-

me se olhe do íntimo da montanha para dentro do aberto do vale ou da amplidão do

vale para dentro do íntimo da montanha. A cidade não é simplesmente o posto

intermédio; ela é cada vez uma outra cidade, definida a cada vez pela luz de uma

unicidade cada vez distinta. (Mas isso só se aplica a cidades que possuem algo de

“único”.)

Como se portam unicidades umas com as outras? Jamais como duas unicidades

“distintas”. A essência da unicidade consiste no fato de que não há diversas coisas

desse tipo. O único é cada vez o único único. Tudo o mais é comparabilidade

(Vergleichbarkeit). Pode-se falar sobre tudo o mais, mas sobre o único não. Este só

pode ser visto, sê-lo. “Sê-lo” (“seint”) não significa propriamente que se “é” o único,

mas que se “pertence” a ele. Pertencer ao único é um modo específico único da

identidade. Não equiparação (Gleichsetuzung), mas pertença, de tal modo que tanto

o único pertence a alguém como esse mesmo pertence ao único. Falar alguma coisa

sobre isso só pode alguém que saiba falar “pertinentemente” (gehörig). Portanto,

hermeticamente.

Com os herméticos não é preciso que se fale sobre o hermético. Basta tocar no

assunto. O restante eles mesmos o dizem a si mesmos. Com não-herméticos não se

Page 121: RFSB, v.3, n.1

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 119-122, jan./jun. 2010 121

pode falar sobre o hermético. Toda e qualquer palavra é ambígua e é necessariamen-

te mal-entendida. Ali nada mais há que decepção. Mas o mais decepcionante é que

não se pode falar sobre essa decepção. Ali não se pode alcançar mais nada de claro.

Com herméticos alcança-se tudo claramente, eles se movem no medium da clarida-

de, eles se firmam na claridade e no fundo não precisam de qualquer palavra. Ali

basta um aceno. Hölderlin afirma que o filho dos Alpes (o hermético) caminha “des-

temido” sobre as “pontes construídas com leveza”; basta-lhe um aceno. O falar nada

acrescenta, antes, desgasta.

Não há “muitas” unicidades. Todo único é único, sem comparação, muito embo-

ra saiba que há “muitos” únicos. O único não está num horizonte da comparabilidade

(Vergleichbarkeit). Não há caminho que vá do único para o único. Há somente um

caminho de volta para o zero. E do zero, um novo caminho para um novo único; é

apenas medido nesse que o antigo único é alguma coisa. Esse caminho do zero é um

caminho do fundo do vale, sem o qual o alpinista não quer escalar a montanha. A

hermética é uma filosofia de alpinista. Isso, muito embora de há muito que nem todo

alpinista é hermético. Se ele não o é, então ele é um aficcionado por montanhas,

coisa que provavelmente ele jamais está em condições de saber.

Só se pode escalar outra montanha quando se esquece a antiga. Esse esquecer

sabe naturalmente dos passos passados da escalada da montanha. “Sabe” disso mas

já não os possui. Na medida em que apenas ainda “sabe” disso, já entregou o antigo.

Mas essa é a condição de possibilidade para que possa conquistar um novo. Se o

antigo não estiver perdido, o novo representa apenas um “ganho” – e de antemão

estará perdido. E novamente, só quem compreende isso é o hermético.

É só quem perde doloridamente que pode conquistar o novo. O novo e seu

prazer é a transformação da dor do antigo. Prazer (Lust) e desprazer da perda (Verlust)

é um único fenômeno.

Na perda da antiga unicidade, de modo dolorido, infindo, irrecuperável, nasce a

condição de possibilidade constitutiva de um novo prazer. O novo apaga o antigo.

Na verdade ele o repete. Nesse entremeio resta apenas dor. Quem não compreende

isso, seria bom que largasse essas páginas e passasse a ler algum outro texto mais

“compreensível”.

Não há nenhum horizonte no qual as unicidades se apresentem como unicidades

distintas e onde pudessem assim possibilitar uma comparação, mesmo que ao modo

da “incomparabilidade”. A unicidade só pode ser experimentada a caminho, de certo

modo a partir de baixo. Só se dá quando se constitui, e quiçá a caminho. O caminho

trad

uçõ

es

Page 122: RFSB, v.3, n.1

ROMBACH, Heirich. Unicidade122

é igualmente o “saindo” de uma unicidade antiga, que em si mesmo já é “rumo a”

uma nova unicidade. Cada unicidade dissolve toda outra unicidade. Só quem está

disposto a coatuar nisso está pronto para uma unicidade. Deve jogar fora a si mesmo

para ganhar a si mesmo de volta. Uma unicidade é só aquilo donde ganhamos de

novo a nós mesmos.

Essa notável relação de exclusão de unicidade para com unicidade tem seu fun-

damento ontológico no fato de que cada unicidade forma uma ontologia própria,

uma aberta (Hof) de autopossibilitação, um “campo” próprio de aproximação. Quem

não imita a configuração desse campo não se aproxima dessa unicidade. Quem imita

a configuração do campo já foi tomado pela unicidade. Quem já foi tomado pela

unicidade converte-se com ela num único, no mais elevado cimo. Não-dualidade.

O decisivo reside na ontologia distinta. Só quem admite que certos fenômenos

desenvolvem uma ontologia própria, isto é, um campo próprio de aproximação e um

modo próprio de aparição, encontra um acesso ao fenômeno da unicidade. Não há

muitas unicidades, mas sempre apenas uma única – muito embora “tudo” possa

ganhar o caráter de unicidade. Mas em hipótese alguma isso significa que o caráter

da unicidade é um algo geral aplicável a muitos ou até a tudo.

Unicidade pode acontecer a homens e coisas. Ela é imune à diferença de pessoa

e coisa. A “pátria” é tão única quanto um companheiro de vida, sim, até como um

barco. Pode ser que para alguém o bote seja sua vida, muito embora não seja nada

“especial”. É possível estar “casado” também com uma velha casa. Mas será bem

desejável não estar casado com uma pessoa que não compreende que a gente pode

estar casado também com uma casa velha. Pode-se estar casado muito bem com

uma pessoa como com uma casa velha. Uma coisa não contradiz a outra. Inclusive,

não se dão “no mesmo tempo”. Cada único possui seu próprio tempo. No tempo de

um único ocorre também o outro único, não porém como um único, mas talvez

apenas como timoneiro. No tempo do outro único se dá também o outro único, mas

talvez apenas como casa de férias. De modo bem imperceptível se dá que escorrega-

mos de um tempo para o outro, e o outro único ainda fala como o único, enquanto

que ele é ouvido ainda apenas como o timoneiro. O não perceber que se está trans-

pondo as barreiras provém da incomparabilidade dos dois únicos.

“Tudo tem seu tempo”, porque cada coisa pode tornar-se um único. Também no

mundo comum do compreender há naturalmente um tempo comum, “no” qual “tudo”

ocorre e é contido, enquanto justamente “é”. Mas isso é um equívoco. “Ser e tempo”

é um corredor, mas não na direção reta.

Page 123: RFSB, v.3, n.1

Normas para publicação

Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, eencaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa.

A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ounão. Os artigos não publicados não serão devolvidos, sendo que os autores serão informadosda decisão.

Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em que tiver sido publicado seuartigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos.

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidircom o pensamento da Faculdade.

O idioma de publicação é o português, não estando excluída e publicação ocasional de textosou artigos em outras línguas. Sugere-se que contenham entre 10 e 20 laudas (1 lauda = 2.100toques) e que venham acompanhados de um resumo de no mínimo 8 e no máximo dozelinhas.

Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s) nome(s) do(s) autor(es) e brevecurrículo, relatando experiência profissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalhaatualmente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.

É livre a transcrição das matérias aqui publicadas, obedecendo-se à citação das fontes.

O processo de aprovação e apreciação (pareceres) dos artigos deve primar pela lisura e objeti-vidade, ficando desvinculado de nomes, personalidades outras influências de ordemparticularizante. Os pareceres devem ficar arquivados.

Justo por não se exigir que as opiniões dos articulistas coincidam com as da organizaçãoresponsável pela revista, a responsabilidade pelo conteúdo das publicações é inteiramentedevida aos articulistas.

Os artigos a serem publicados serão encomendados ou solicitados pelo conselho editorial, soba orientação do(s) editor(es) da revista. Uma vez recebidos, são encaminhados à comissãoeditorial e ao conselho editorial para parecer. Sendo aprovados por estes, pelo diretor e peloeditor da revista, os artigos serão encaminhados para o processo de produção. Havendo ne-cessidade de reformulações, os artigos serão devolvidos aos autores de direito para as devidasemendas, estabelecendo-se para cada uma dessas etapas prazos compatíveis com o cumpri-mento das datas de confecção e publicação da revista.

Deste modo, a editoria da revista se reserva o direito de recusa, sugestão de reformulação, e/ou reserva de 2 anos a contar de seu recebimento para publicação dos artigos.

Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos e contribuições para endereçoabaixo:

Revista filosófica São BoaventuraBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso83607-000 Campo Largo – PROu: [email protected]

A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demànde l’èchange.

Page 124: RFSB, v.3, n.1
Page 125: RFSB, v.3, n.1

Pedidos e assinaturas

Assinatura anual (2 por ano - semestral):R$ 25,00; Número avulso R$ 15,00

PÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS

Nome: ____________________________________________________________________

Endereço: _________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

Telefone: __________________________________________________________________

E-mail: ____________________________________________________________________

Outras informações _________________________________________________________

Page 126: RFSB, v.3, n.1