Revista +Soma #22

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Nesta edição: M. Takara, MV Bill, Guga Ferraz, Hypo, Pïlot, Pedro David, Joe Coleman, Bruno Dicolla, Guilherme Kramer, Vermelho, Vincent Moon, João Lelo, Han Bennink, Phil Minton, Cagebe, B.Box Original, Hugh Mundell, Flying Lotus, Negredo/Periferia Ativa, MZK, Nik Neves, Rafael Campos.

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+SOMA . #22

Uma busca no Google pelo nome de Joe Coleman em páginas

brasileiras ou de língua portuguesa retorna pouco mais de 700

resultados. A maioria deles leva a sites de compra, que listam San-

gue Ruim, versão nacional de um livro em quadrinhos do autor lançado em

2005, que segue sendo sua única obra publicada por aqui. Fora do Brasil,

a reputação de Coleman é bem outra. Além da relação com os quadrinhos,

que parou de produzir há alguns anos, o artista nova-iorquino tem uma

extensa carreira como pintor, que vive hoje o seu auge. Sob os cuidados da

respeitada Simon Dickinson Gallery, suas obras – um misto de arte religiosa,

quadrinhos de terror e um senso visceral de realismo – dividem espaço no

acervo com nomes como Botticelli, Picasso e Peter Blake (mais conhecido

como o criador da capa de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band). Já par-

ticipou de exposições ao lado de gigantes como Hieronymus Bosch, Pieter

Brugel e Hans Memling. Suas telas, que chegam a atingir mais de US$ 200

mil, são disputadas por um seleto grupo de colecionadores que inclui Jim

Jarmusch, Johnny Depp, Iggy Pop, Leonardo di Caprio e H R Giger. Cole-

man é também um dos únicos artistas contempoâneos que empolgam Ro-

bert Crumb a ponto de tirá-lo do isolamento para dar declarações públicas.

Nesta edição, a Soma apresenta uma seleção generosa de trabalhos e uma

entrevista inédita com um dos artistas mais impressionantes a emergirem

do underground estadunidense. Um visionário que retrata os lados mais en-

tranhados do ser humano como alguém que viveu inúmeras eras diferentes.

4DA SÉRIE GALDINO. GUGA FERRAZ.

Também tivemos o prazer de conversar com três visionários da mú-

sica: MV Bill, Han Bennink e Phil Minton. Bill nos deu uma entre-

vista extensa, repleta de opiniões francas e corajosas sobre política,

rap no Brasil, crime e televisão. Sem dúvida, uma das entrevistas de rap

mais importantes já publicadas nestas páginas. Bennink e Minton fa-

laram com a revista durante sua passagem no Brasil para o Festival

de Improvisação, ocorrido em São Paulo em dezembro de 2010. A con-

versa foi uma aula cheia de provocações e reflexões riquíssimas so-

bre improvisação, free jazz e o próprio conceito de música e arte.

A prova de que dois sexagenários podem colocar qualquer jovem no bolso

em matéria de vanguarda e ousadia artística.

Nos quadrinhos, MZK se junta a Rafael Campos e Nik Neves com a sé-

rie exclusiva de contos “Ezu Tales”, estrelando o sinistro Ezu. E mais: Guga Ferraz, Hÿpo/Pilot, João Lelo e Vincent Moon. Para ser visionário, pri-

meiro é preciso saber olhar.

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4DA SÉRIE GALDINO. GUGA FERRAZ.

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shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14

guga ferraz - 24hypo+pilot - 30

ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44

entre (outros) - 54vincent moon - 60

joão lelo - 66phil minton - 70

cagebê - 76seleta . boombox - 78

obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86

reviews - 92

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guga ferraz - 24hypo+pilot - 30

ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44

entre (outros) - 54vincent moon - 60

joão lelo - 66phil minton - 70

cagebê - 76seleta . boombox - 78

obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86

reviews - 92

shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14

guga ferraz - 24hypo+pilot - 30

ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44

entre (outros) - 54vincent moon - 60

joão lelo - 66phil minton - 70

cagebê - 76seleta . boombox - 78

obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86

reviews - 92

+CONTEÚDO

4MOTHER AND CHILD. JOE COLEMAN.

shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14

guga ferraz - 24hypo+pilot - 30

ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44

entre (outros) - 54vincent moon - 60

joão lelo - 66phil minton - 70

cagebê - 76seleta . boombox - 78

obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86

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4MOTHER AND CHILD. JOE COLEMAN.

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O PROJETO +SOMA É UMA INICIATIVA DA KULTUR, ESTÚDIO CRIATIVO COM SEDE EM SÃO PAULO.

PARA INFORMAÇÕES ACESSE: MAISSOMA.COM

KULTUR STUDIO . SOMA

Rua Fidalga, 98 . Pinheiros

05432 000 . São Paulo . SP

kulturstudio.com

REVISTA SOMA #22 . MARÇO 2011

Fundadores . KULTUR

ALEXANDRE CHARRO, FERNANDA MASINI, RODRIGO BRASIL e TIAGO MORAES

Editor . MATEUS POTUMATI

Editor Convidado . ALEXANDRE BOIDE

Fotografia . FERNANDO MARTINS FERREIRA

Projeto gráfico . FERNANDA MASINI

Arte . RODOLFO HERRERA e JONAS PACHECO

Conteúdo áudio-visual . ALEXANDRE CHARRO, FERNANDO STUTZ e

FERNANDO MARTINS FERREIRA

Colunistas . TIAGO NICOLAS, RICARDO “MENTALOZZZ” BRAGA, DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG,

PEDRO PINHEL, RAFAEL CAMPOS, MZK e NIK NEVES.

GOSTARÍAMOS DE AGRADECER A Whitney Ward, Holly Bawden e Simon Dickinson Gallery;

Pedro Potumati e Amauri Gonzo; Luciano Valério e Desmonta; Murinho Shiroma e Tati Ivanovici.

a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha,

anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram

apara que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Publicidade . CRISTIANA NAMUR MORAES . [email protected]

Para enviar sugestões e material para review, entre em contato

através do e-mail [email protected].

Periodicidade . Bimestral

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros

culturais, shows, eventos e casas noturnas.

Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Impressão . Prol Gráfica

Tiragem . 10.000 exemplares

2CAPA . CAPTAIN BEEFHEART . JOE COLEMAN

2AO LADO . FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Page 9: Revista +Soma #22

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2CAPA . CAPTAIN BEEFHEART . JOE COLEMAN

Page 10: Revista +Soma #22

Daniel Tamenpi

Jornalista, pesquisador musical

e DJ especializado em soul, funk

e hip-hop. Escreve o blog Só

Pedrada Musical, onde apresenta

lançamentos e clássicos da

música negra.

Raquel Setz

Jornalista musical apaixonada

por barulhos, experimentações

e esquisitices em geral - e por

melodias bonitas também, porque

não tenho coração de pedra.

Velot Wamba

Velot Wamba, 32, é a favor do

céu pelo clima e do inferno pelas

companhias. The Ex, João Antonio,

Tina Modotti, Robert Crumb e

Jackson Pollock - tudo junto e

misturado. Crê que as ideias são

imprescindíveis, os rostos não.

Marcos Diego Nogueira

É jornalista, gosta de som alto,

cerveja gelada e camisa xadrez.

+COLABORADORES

André Maleronka

1/2 Crass, 1/2 créu. Editor na

revista Vice.

Fotonauta

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

Marques, Daryan Dornelles e

Eduardo Monteiro.

Page 11: Revista +Soma #22

Michaël Patin

Tem 29 anos e é mestre em

sociologia das mídias. É também

crítico musical e realiza entrevistas

para a revista francesa Magic,

cuja especialidade é o pop

contemporâneo, desde 2003.

Amauri Stamboroski

Jornalista, cover do Jack Black e

orgulho de Ijuí. Durante o verão caça

insetos para a sua filha, Ramona.

Beatriz Lemos

Curadora independente e

articuladora de redes. Ama o Rio de

Janeiro, mas adora viajar por aí.

Se diverte entre residências e

projetos de intercâmbio com

artistas no Brasil e exterior.

Ana Ferreira Adão

Aos 28 anos, é mestranda em

literatura portuguesa na Sorbonne,

tradutora e professora de

português para estrangeiros

em Paris.

Lauro Mesquita

Jornalista, foi vocalista e guitarrista

do Space Invaders. Nas horas

vagas escuta um som e aproveita

a vida em Belo Horizonte, Pouso

Alegre e na idílica Heliodora.

Apesar de negar com veemência,

é roqueiro brasileiro nato.

Page 12: Revista +Soma #22

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Page 13: Revista +Soma #22

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DISCO QUE VOCÊ

TIROU INTEIRO NA

BATERA

Safari Hamburgers –

Good times. Comprei esse

logo que saiu. Um dos

meus discos preferidos do

hardcore nacional. Teve

um pequeno período em que eu toquei bateria

no Safari. Lembro do primeiro ensaio, eu na febre,

sabia todas as viradas de cor.

DISCO PRA OUVIR

NUM BARCO EM PLENA

NOVA YORK

Dorival Caymmi –

Caymmi e Seu Violão.

Poderia ser um Built

to Spill também. Mas

o Caymmi já vem com

uma caipirinha pra matar a saudade do meu,

do seu, do nosso Brasilzão.

DISCO QUE VOCÊ ACHA

MAIS LEGAL LER DO

QUE ESCUTAR

Chico Buarque –

Construção. Esse

disco é só ideia foda,

arranjo cabuloso, letras

sinistras... Mas faz muito

tempo que eu não ponho pra ouvir.

DISCO DODECAFÔNICO

Black Flag – The Process

of Weeding Out. Esse

entortou a cabeça de

muita gente. As guitarras

mais dodecafônicas do

punk. Conexão boa de

música com improvisação, atonalismo, levada

pra frente e criatividade.

UM DISCO PRA

MEDITAÇÕES

John Coltrane –

Meditations. Disco

que bombou no meu

walkman no busão

indo pra escola. Marcou

muito. O Coltrane começando a tocar mais com

formações diferentes depois do quarteto. Fora

que tem “meu parcel” Pharoah...

DISCO DO CLUBE DOS

PRODÍGIOS

Grachan Moncur III –

Some Other Stuff. Esse

tá bombando neste

momento pra mim. Com

umas composições

soltas, improvisos meio “minimalistas” e uma

banda cabulosa com o Tony Williams na

bateria. O danado devia ter uns 18 anos quando

gravou esse disco. Esse é do clube.

DISCO DE UM IRMÃO

(DE SANGUE)

Againe – Sem Açúcar.

Época bem doida do

Againe, com o Carlos

cantando mais, e o som,

um skatepunk estranhão.

E é o disco de onde saiu o clipe que pôs os

desengonçados pra correr. Cena linda.

DISCO DESSE

PEQUENO QUE EU

PAGUEI MAIS PAU

Conta.

DISCO DE UM JAPONÊS

CABELUDO

Trio de Dez – Juntando

as Letra. Disco mais

de improvisação do

Rubinho, que tocava

no Tube Screamers. Ele

tocou baixo, bateria, teclado, instrumentos

de sopro e gravou. Processo bem raro pra

esse tipo de música, e que resultou numa

sonoridade muito boa.

DISCO DA LOW END

THEORY

A Tribe Called Quest –

Low End Theory. O único

disco que eu conheço

desses caras é o do

Flying Lotus. Low End

Theory me lembra mesmo o do Tribe. Já começa

explodindo. Também bombou no walkman.

POR TIAGO NICOLAS

Maurício Sanches Takara é o “mi” da Família Dó-Ré-Mi e o nosso M. TAKARA,

um pequeno gênio da música de vanguarda e

de retaguarda. Caçula de uma promissora família

de Pinheiros, Maurício foi criado para criar – batidas,

ritmos e melodias –, aprendeu música a fundo

e transcendeu do hardcore para as composições mais bem elaboradas com moral e autoridade. Conheça uns

plays que contribuíram para a formação do nosso

garoto de ouro.

FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

2TIAGO NICOLAS É 1/3 DA ESPARRELA

COM M. TAKARA

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O MENSAGEIRO E SUAS VERDADES

POR DANIEL TAMENPI . RETRATOS POR FOTONAUTA

Page 15: Revista +Soma #22

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Page 16: Revista +Soma #22

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“EU FALAVA MUITO, DENTRO DA CIDADE DE

DEUS, QUE O HIP-HOP ERA A MÚSICA DA MENSAGEM,

QUE O HIP-HOP TINHA UMA VERDADE, E AS

PESSOAS COMEÇARAM A FALAR ‘OLHA O MENINO

DA VERDADE’ ( . . . ) E CHEGUEI AO MENSAGEIRO DA VERDADE. HOJE , COM

36 ANOS, VEJO QUE É UMA PARADA MUITO PRETENSIOSA . QUAL

VERDADE? QUE VERDADE É ESSA? HOJE O MV TÁ MAIS PRA ‘MINHA VIDA’ , ‘MINHA

VERDADE’.”

4FOTO POR OTAVIO LEITE

Page 17: Revista +Soma #22

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ALEX PEREIRA BARBOSA , mundialmente conhecido como MV BILL, construiu nos últimos dez anos um trabalho firme e concreto, não só no rap e na música brasileira, mas também na área social. Seus diversos e bem-sucedidos projetos o levaram a ser reconhecido pela UNESCO, em 2007, como uma das dez personalidades mais influentes do mundo naquela década. Isso sem falar em seus discos, que elevaram ainda mais o nível do rap brasileiro. Com a agenda sempre cheia, o rapper separou um tempo e nos recebeu em sua passagem por São Paulo, no início de dezembro, para falar sobre carreira, projetos, passado, presente e futuro. 1

A sua história na música começou com o samba.

Veio de família, isso?

Na verdade fui induzido. Meu pai meio que me

chantageou. Como estava se separando da mi-

nha mãe e já era compositor de samba-enredo,

ele meio que me obrigou a puxar samba pra ele.

Tive uma iniciação com o microfone por causa

disso, mas não foi a minha iniciação na música.

Eu já queria ouvir rap desde cedo, mas minha

mãe me obrigava a ouvir o que ela queria. Hoje

agradeço por isso ser parte da minha formação

musical, apesar de ter sido a contragosto.

Eu li que a alcunha MV foi dada pela comunida-

de evangélica da CDD (Cidade de Deus). Você

teve uma infância religiosa?

Nunca fui religioso, mas sempre vi o hip-hop

como uma coisa muito próxima de uma reli-

gião. Hoje o hip-hop começou a demonstrar

que poderia trazer um certo status. Mas tem-

pos atrás o sentido era outro. Não tinha essa

coisa de visibilidade artística no hip-hop, era

muito mais pela militância, pelo ativismo. Pra

mim o MC era como um pastor evangélico, por

não discriminar o lugar onde tem que chegar,

mesmo os mais perigosos. Eu falava muito,

dentro da Cidade de Deus, que o hip-hop era

a música da mensagem, que o hip-hop tinha

uma verdade, e as pessoas começaram a fa-

lar “olha o menino da verdade”. E, como no

Rio tem a cultura do funk carioca, quando eu

falava que era MC, as pessoas perguntavam:

“Vai cantar o quê? O funk do tênis? O funk da

cabeça?”. Daí eu vi que teria que criar algo

único pra mim, e cheguei ao Mensageiro da

Verdade, que era o que me identificava. Hoje,

com 36 anos, vejo que é uma parada muito

pretensiosa. Qual verdade? Que verdade é

essa? Hoje o MV tá mais pra “minha vida”,

“minha verdade”.

E voce faz questão de continuar morando lá,

né? A CDD é o seu refúgio do mundo artístico?

É uma questão de identificação. É lá onde eu me

sinto bem, onde percebo que ainda tem muita

coisa pra ser mudada, que ainda tem muito tra-

balho por fazer. Fico em hotéis legais, almoço

em restaurantes bacanas, viajo de avião, tudo

isso faz com que os pés deem uma flutuada,

mas quando chego na Cidade de Deus parece

que os pés se fincam de novo no chão e vejo

qual é a realidade.

Page 18: Revista +Soma #22

Como você disse, o Rio de Janeiro é uma ci-

dade que tem o funk como trilha principal do

povão. Qual foi seu primeiro contato com o

rap, e quando decidiu que era através do rap

que queria viver?

O Rio de Janeiro tem mesmo uma cultura de funk

muito forte. Mesmo antes do funk carioca em si, já

tinha o Miami Bass feito na Flórida, que dominava

o Rio. Talvez pela similaridade entre Miami e Rio.

Quando fui pra Miami pela primeira vez, enten-

di. Parece bastante, umas avenidas iguais às da

Barra. Cheguei em casa e comecei a revisitar uns

clássicos daquela época, e percebi que é um som

de clima de cidade praiana, e caiu muito bem no

Rio. E rolavam umas sessões nos bailes chamadas

de “rasteiros”, Gucci Crew, 2Live Crew, Tha Do-

ggs, de vez em quando vinha um Whodini. Pra

mim isso já era rap. Quando vi Colors – As Cores

da Violência, tive um esclarecimento do que era

o hip-hop. Isso foi em 88. Quando fui ver as coi-

sas que tinha, percebi: “Mas isso aqui é o rap”. Já

escutava LL Cool J, Mantronix, Ice T. Mas o gran-

de “plim” veio quando comprei os dois discos do

Public Enemy, o Yo! Bum Rush the Show e o It

Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, junto

com uma fita com vários videoclipes. Foi quando

vi que o hip-hop, além de ter um balanço maneiro,

uma música legal, um estilo de roupa que tam-

bém era fascinante, tinha ali uma coisa que eu po-

deria fazer, que poderia ser o grande diferencial

na minha vida e na minha comunidade. Quando

estive com o Chuck D na Cidade de Deus, disse

que sabia tudo que ele tava falando sem entender

uma palavra de inglês, só assistindo aos videocli-

pes. No encontro seguinte, em Washington, eu

mostrei uma fita com meus vídeos e ele disse a

mesma coisa. Essa linguagem do sentimento me

fez dizer “quero fazer isso da minha vida”.

No seu primeiro disco, Traficando Informação, ro-

lou aquele problema com o clipe do “Soldado do

Morro”. Você acha que, se esse clipe fosse lança-

do hoje, quando a mídia transmite ações violen-

tas ao vivo e na íntegra, teria o mesmo problema?

Acho que não. Até porque hoje a minha imagem

é quase globalizada, sou conhecido em muitos lu-

gares. Antes as pessoas não me conheciam, e nor-

malmente se tem um olhar de muita desconfiança

pra quem vem desses lugares. Até que se prove

o contrário, está se propagando o banditismo. E

eu tive que provar o contrário. Tive que recusar a

alcunha de bandido. A MTV foi proibida de passar

o clipe. Eu não aceitei isso. Se aceitasse, estaria

admitindo que de fato sou um bandido. Iria deixar

de fazer uma intervenção em uma discussão que

estava sendo levada pro lado errado. Apresentei o

vídeo pro [então ministro da Justiça] José Grego-

ri e perguntei se aquilo era crime. Ele disse que eu

só tava mostrando uma realidade que não pode

ser jogada pra debaixo do tapete. A partir de en-

tão, todos os jornalistas que estavam me acusan-

do voltaram atrás. E se o ministro não fosse um

cara compreensivo? Se fosse um cara reacionário,

fascista, e me acusasse de banditismo mesmo?

Eu ia ser condenado? Então comecei a questio-

nar qual era o critério utilizado pra determinar o

que é arte e o que é banditismo. Por exemplo, se

“Soldado do Morro” tivesse sido escrita por um

cara de classe média de pele clara, será que ia ser

considerada banditismo? E se o videoclipe fosse

com pessoas da mesma característica? O critério

tem uma dose grande de preconceito. Hoje eu

percebo que deu uma diminuída comigo por eu

ser uma pessoa famosa. No Brasil tem um racismo

velado, a pessoa se torna incolor, mas sei que pros

meus semelhantes que não têm a mesma fama

que eu a história continua parecida.

No disco Declaração de Guerra você apresentou

uma música mais trabalhada, com arranjos de

orquestra, naipe de metais, percussão e muitas

referências à música brasileira. Já era uma mani-

festação da intenção de fazer um rap mais gran-

dioso, que fugisse do lugar-comum?

As músicas do Traficando Informação são músi-

cas da minha vida inteira até aquele momento. Eu

gravei em 99, mas tinha versos de 89/90. Escre-

vendo em cima de base americana. Era a estrutu-

ra que a gente tinha pra começar. Hoje fico muito

feliz de ver a molecada começando com base

própria, uns arranjos bem feitos, algumas até me-

lhores que as gringas. É o processo de evolução

mesmo, e eu ia ficar triste se não estivesse assim.

Mas no nosso período era tudo muito limitado. No

Declaração de Guerra tive mais liberdade e condi-

“QUANDO VEIO A OPORTUNIDADE DE FICAR TRINTA MINUTOS NO AR (NO DOMINGÃO DO FAUSTÃO) , PRA FALAR DE TUDO QUE EU ESTAVA DESENVOLVENDO, VI QUE ESSA ERA A CHANCE. POR MAIS QUE TENHAMOS DISCORDÂNCIA COM A TV, A PERIFERIA TÁ VENDO. SE VOCÊ CONSEGUIR INSERIR ALGUMA COISA QUE FAÇA A POPULAÇÃO PENSAR DENTRO DE UMA PROGRAMAÇÃO QUE É RUIM, PRA MIM TÁ MUITO VÁLIDO . É UTILIZAR O QUE A GENTE CRITICA A NOSSO FAVOR.”

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“AGORA MESMO EU ESTAVA NUMA ESCOLA AMERICANA DE MILIONÁRIO AQUI EM SÃO PAULO, ONDE OS PRÓPRIOS ALUNOS PEDIRAM À DIREÇÃO PRA ME CONVIDAR PRA UM BATE-PAPO. SE EU TIVESSE AQUELA CABEÇA PRECONCEITUOSA NÃO IA. MAS É AÍ QUE TÁ. LÁ TÁ O MOLEQUE QUE É FILHO DOS DONOS DE EMPRESAS MILIONÁRIAS E QUE VÃO HERDAR ISSO NO FUTURO. SE FOREM HERDEIROS COM MAIS CONSCIÊNCIA SOCIAL, MAIS CONSCIÊNCIA DA RELAÇÃO RACIAL, DAS DIFERENÇAS DO BRASIL, SERÃO GESTORES MAIS HUMANOS.”

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ETA

Page 20: Revista +Soma #22

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ções de grana pra trazer músicos pra tocar, já co-

nhecia outros produtores, não tive medo de ousar

e misturar. Uma das grandes sacadas desse disco

foi ter incorporado a música erudita através do

violino, que veio de uma sessão do filme O Último

Imperador. No momento em que entraram as cor-

das, um arranjo de um maestro chamado Saka-

moto, eu comentei com o Luciano (produtor).

Ele me mandou o beat com o sampler e sugeriu

uma orquestra pra acompanhar.

Hoje o rap já é uma música conhecida no Brasil,

em comparação com as décadas passadas. Mes-

mo com os altos e baixos, já temos prêmios dedi-

cados ao hip-hop, nomes na grande mídia, diver-

sas promessas. Como você vê essa evolução e o

que tem a dizer sobre o futuro do rap no Brasil?

Talvez tenhamos passado por um momento não

tão promissor pro hip-hop nacional. Por falta de

espaço. Às vezes também por falta de maturida-

de do próprio movimento. O rap achou que era

um movimento independente, esqueceu os ou-

tros elementos. Teve momento em que os DJs

só tocavam música gringa. Muitos dançarinos de

break foram dançar em grupos de axé, de funk.

Os grafiteiros começaram a frequentar galerias

de arte, fazer desenhos comerciais pra marcas,

lojas. Cada um foi pra um lado. Acho que esse

momento já tá ficando pra trás. Serviu pra uma

reciclagem do próprio movimento. Muita gente

parou pra rever seus conceitos. O Brasil mudou,

as periferias se modificaram. O governo Lula, com

todos os seus defeitos, trouxe mudança e trans-

formação pra periferia, e a nossa abordagem tem

que ser outra. Muitos daqueles moleques que

não tinham o que comer hoje estão com telefone

que tem câmera, sacou? Então a linguagem tem

que ser outra. Quem tá antenado nisso continua

se comunicando com a molecada de dentro e de

fora da favela. Estamos em um momento de reno-

vação, com muitos trabalhos de qualidade, mas

esses grupos ainda não têm visibilidade nacional.

4FOTO POR OTAVIO LEITE

Page 21: Revista +Soma #22

21

O rap brasileiro sempre teve uma identidade

meio americanizada, principalmente na produ-

ção musical. Você acha que isso está mudando?

Acho que sim. Eu nem culpo as pessoas no pas-

sado, até porque fiz parte disso também. Foi um

momento. Só viveu isso quem começou muito

tempo atrás. Melhor do que ficar pensando no

que poderia ter sido feito no passado é pensar

no que a gente tá fazendo agora e no que ainda

vai ser feito daqui pra frente. A música do Brasil

tem a mesma diversidade da raça brasileira. Se

cada grupo de cada região misturar o rap com

essas músicas regionais, teremos uma diversi-

dade imensa no rap brasileiro. Engana-se muito

quem acha que o rap legítimo do Brasil vai ser

o rap com samba. Até porque o samba tem vá-

rias ramificações. Tem um grupo no Rio Grande

do Sul chamado Rafuagi que mistura rap com

música gaudéria. Outro de que eu gosto muito

pela originalidade é o Rapadura, desde o nome

até as batidas cheias de referências nordestinas.

No Rio tem o Romeu R3, o Ramonzin, que estão

fazendo música de gente grande, só que ainda

não têm disco, nem gravadora.

Lembro da primeira vez que você apareceu

no Faustão. Foi um fato inédito e causou uma

certa apreensão no movimento. Afinal, o rap

nacional sempre teve um discurso anti-Globo,

e a sua participação ia contra tudo isso. Como

foi essa decisão?

A minha decisão aconteceu antes, quando eu

comecei a ir pra São Paulo interagir com os gru-

pos e percebi que tinha que tomar um rumo di-

ferente. Muitos grupos recusavam a mídia sem

um mínimo de convicção do motivo por que não

iriam pra TV. As explicações não convenciam. Eu

entendo que pro Racionais é uma bandeira, mas

só deu certo com eles. Eu sou do Rio de Janeiro,

natural de uma comunidade que não tem cultura

de hip-hop. Posso manter meu senso crítico e fa-

zer o que quiser, e ali posso amplificar minha voz

e meu discurso. E eu tenho o que dizer. Não vou

me calar diante de uma ideologia que não é a

minha. Ele já tinha me chamado pra ir antes, mas

eu não aceitei, porque era pra chegar lá e cantar

uma música que não tocava no rádio. Dificilmen-

te as pessoas assimilariam aquilo sem ouvir no-

vamente. Mas quando veio a oportunidade de fi-

car trinta minutos no ar, sem corte, sem intervalo,

e não só pra tocar, mas pra falar de tudo que eu

estava desenvolvendo, vi que essa era a chance,

a minha forma de colocar o Brasil pra pensar. Fi-

camos 45 minutos no ar. Por mais que tenhamos

discordância com a TV, a periferia tá vendo. A

população brasileira não almoça nem janta sem

a TV ligada, é quase como mais um elemento da

família. Se você conseguir inserir alguma coisa

que faça a população pensar dentro de uma pro-

gramação que é ruim, pra mim tá muito válido. É

utilizar o que a gente critica a nosso favor.

Você acha que essa atitude de se isolar da mí-

dia acabou isolando o rap também?

Eu concordo com os que não querem ir. Princi-

palmente com quem não tem o que dizer, por-

que já tivemos algumas situações desastrosas

de alguém querer falar na televisão sem ter se

preparado. Nunca vi a mídia como inimiga, sem-

pre achei que poderia utilizar parte dela a meu

favor, a favor do coletivo. A minha atitude de não

aceitar fazer entrevistas fora da Cidade de Deus

é pra mostrar coisas positivas dentro da comuni-

dade. São formas inteligentes de utilizar a mídia

a favor do próprio movimento. Mas quem não

tem o que dizer pode continuar calado.

Você fez bastante barulho com a série Falcão

(que engloba livro, documentário e disco).

Conseguiu usar metade do Fantástico para a

exibição do documentário e isso gerou muitos

debates sobre o assunto. Que balanço você

faz desse trabalho?

Só vejo aspectos positivos. A gente ajudou a

colocar na pauta discussões importantes com

outro olhar, um outro foco. Toda vez que se fa-

lava desse jovem do tráfico, ele estava algema-

do, de cabeça baixa, era sempre alguém falando

por ele. Por conta da nossa proximidade e da

nossa história, conseguimos fazer esse jovem

falar. E nas falas deles percebe-se nitidamente

que o que precisa não é de mais policiamento

ostensivo, e sim de mais investimento social.

Muitos moleques daqueles que estavam dando

entrevista não conheciam o pai, vinham de fa-

mília desestruturada, tinham pouca perspecti-

va, e a gente acha que foi super positivo ver as

pessoas discutindo aquela realidade. Mas o Bra-

sil tem um histórico de comoção momentânea,

com o passar do tempo aquilo cai no esqueci-

mento. Por isso eu venho caindo dentro desde

2006, rodando o Brasil de ponta a ponta com

todo tipo de gente discutindo essa realidade.

Agora mesmo eu estava numa escola americana

de milionário aqui em São Paulo, onde os pró-

prios alunos pediram à direção pra me convidar

pra um bate-papo. Se eu tivesse aquela cabeça

preconceituosa não ia. Mas é aí que tá. Lá tá o

moleque que é filho dos donos de empresas mi-

lionárias e que vai herdar isso no futuro. Se fo-

rem herdeiros com mais consciência social, mais

consciência da relação racial, das diferenças do

Brasil, serão gestores mais humanos.

O seu novo trabalho, Causa e Efeito, está com dis-

tribuíção própria, em um esquema independente.

Da forma como estão as coisas na indústria fono-

gráfica, você acha que esse caminho é o ideal?

Pra mim tem sido. Colocamos mais de dez mil

cópias do CD na rua. Em um período de muita

pirataria, downloads, isso é um número muito

bom. Além disso, tenho um controle de onde

está chegando, tenho vendido muito nos shows.

Fiz um preço promocional pra combater não a

pirataria, mas os preços abusivos das gravado-

ras, que colocam o seu trabalho a 25/30 reais.

Isso só ajuda a fomentar a pirataria. Quando des-

cobri que pra fazer o meu CD na fábrica custaria

menos de R$ 2,50, fiquei puto com as gravado-

ras, mandei todo mundo se foder em pensamen-

to e resolvi vender eu mesmo a 5 reais. Acho que,

se todos os artistas colocassem os CDs a 5 reais,

ia dar uma aquecida no mercado fonográfico no

Brasil e seríamos pioneiros no mundo.

E essa história de atuar, como começou? Você se

imaginava atuando em Malhação dez anos atrás?

Antes de Malhação, eu já atuava nos meus vi-

deoclipes e fazia uns exercícios na companhia

de teatro da CUFA, a Tumulto. Do nada, recebi

um convite da Sandra Werneck pra participar do

filme Sonhos Roubados, que foi uma experiên-

cia muito legal. E então veio o convite pra uma

reunião com os diretores e o autor da Malhação.

De primeira eu achei que eles estavam convi-

dando a pessoa errada. Até porque eu tenho

uma metralhadora verbal que várias vezes esta-

va apontada pra Malhação, por ser um programa

que fala direto com a juventude, porém não dá

representatividade a toda diversidade que tem

no Brasil. Então eles vieram com um papo de

“A MÚSICA DO BRASIL TEM A MESMA DIVERSIDADE DA RAÇA BRASILEIRA . SE CADA GRUPO DE CADA REGIÃO MISTURAR O RAP COM ESSAS MÚSICAS REGIONAIS, TEREMOS UMA DIVERSIDADE IMENSA . ENGANA-SE MUITO QUEM ACHA QUE O RAP LEGÍTIMO DO BRASIL VAI SER O RAP COM SAMBA . [POR EXEMPLO, ] TEM UM GRUPO NO RIO GRANDE DO SUL CHAMADO RAFUAGI QUE MISTURA RAP COM MÚSICA GAUDÉRIA . OUTRO DE QUE EU GOSTO MUITO PELA ORIGINALIDADE É O RAPADURA , DESDE O NOME ATÉ AS BATIDAS CHEIAS DE REFERÊNCIAS NORDESTINAS.”

Page 22: Revista +Soma #22

22

revisão dos conceitos da novela, fazer algo mais

real, que toque na questão social e racial, mas

eles não tinham credibilidade pra isso e acharam

que eu poderia trazer essa credibilidade. Fiquei

feliz quando ouvi isso. Que tinha credibilidade

pra alguma coisa (risos). Eles me apresenta-

ram uma série de coisas, e eu comecei a pensar

que aquilo poderia ser bom pra mim, pra minha

carreira, e também pro coletivo, pra discussão.

É uma serie que tá tocando em assuntos como

gravidez precoce, uso de preservativos, falan-

do sobre paternidade, relações inter-raciais, de

classes sociais diferentes O meu personagem

agora vai ser avô, e o epicentro da discussão é

essa criança, preta, afro-descendente, que na

maioria das vezes seria motivo de rejeição, as

famílias estão brigando pra ver quem vai ficar

com ela. Um programa como Malhação, de meia

hora diária, não vai mudar o histórico de dis-

tanciamento entre a mídia e a população afro-

-descendente, mas acho que pode ser o início

de alguma mudança.

Bem, vamos mudar um pouco de pauta. O que

você achou do governo Lula nesses oito anos, e o

que espera da Dilma nos próximos quatro anos?

A gestão do Lula modificou o Brasil. Muitas coisas

se tornaram possíveis através do governo dele,

mas também teve coisas que eu não esperava,

corrupção, lentidão em alguns setores. Ainda es-

pero mais investimento na educação, pois ela tem

que ser a bandeira de um governo que quer ver

uma transformação plena no país. Mas eu avalia-

ria como um governo que foi bom, que ajudou de

fato a transformar o Brasil, deu um passo muito

importante. Na gestão da Dilma espero que tenha

continuidade nas coisas que estão sendo feitas

e tenho grandes expectativas de que novas coi-

sas surjam também. Estou na torcida pra que dê

certo. Já deu pra perceber que ela é uma ótima

executiva, agora precisamos ver se será uma boa

presidenta. Torço pra que sim.

A carreira política é algo que te atrai para as

próximas décadas?

Hoje eu te diria que não tá na minha planilha.

Nem sei se é uma bandeira futura. Como sou mui-

to politizado, conheço muito do assunto, gosto

de ler sobre, me envolvo, debato, talvez seja um

caminho inevitável por conta desse envolvimen-

to. Mas hoje não vejo como um caminho.

Como anda a situação no Rio de Janeiro, com

toda essa política de combate ao tráfico com

a pacificação policial? O que você tem achado

das UPPs?

A gente não pode deixar que as UPPs se trans-

formem na única representação do Estado den-

tro da favela. Tem muitos outros problemas que

não são de ordem policial. Então precisa de uma

ocupação nas favelas que não seja somente rela-

cionada à área de segurança. Por exemplo, o que

aconteceu no Alemão? Teve a ocupação, mas

agora estou ansioso pra ver qual é a próxima

operação. Espero que seja na mesma proporção

da policial. Uma operação social. E que não che-

guem lá com a receita do bolo pronta. Tem que

consultar a comunidade, aproveitando as lide-

ranças locais, as ONGs que já estão trabalhando

lá dentro de forma séria. Devolver a comunidade

pra comunidade. Não deixar fazer politicagem lá

dentro. Espero que haja o mesmo investimento

pesado que tem na área de segurança, com tan-

ques de guerra gigantes, na área social.

As UPPs estão “limpando” as favelas das fac-

ções, mas não se vê uma política de reintegra-

ção desses soldados à sociedade. O que você

acha que deveria ser feito em relação a isso?

Tem gente que acha um absurdo, mas eu faço parte

de um grupo de pessoas que pensam que deveria

ter uma oportunidade pra quem quer largar o cri-

me, principalmente porque a gente não tem cadeia

que ressocialize ninguém. O nosso sistema penal é

completamente falido, as pessoas saem muito pior

do que entraram. Se tivessem chances de verda-

deiramente se ressocializar, muitos sairiam. Se não

existe essa chance de mudança, de busca por um

direcionamento positivo, é como se houvesse uma

obrigação de continuar na marginalidade. E, como

essas operações não têm prendido muitas pessoas,

elas estão migrando pra outros lugares.

Talvez você seja mais conhecido pela militân-

cia do que pela música em si. Qual o balanço

que você faz em relação a tudo isso e, princi-

palmente, em relação à CUFA?

Sou muito orgulhoso de ser conhecido por fei-

tos, por realizações. É lógico que, como músico,

quero mostrar minha música também, mas isso

não chega a ser uma frustração. Sou muito grato

à CUFA, porque foi onde tive a oportunidade de

colocar em prática aquilo tudo que eu tinha na

teoria, na música, no discurso. A CUFA me aju-

dou a fazer tudo isso virar realidade.

Além da carreira de ator, está com algum

projeto novo?

Tô fazendo músicas com a minha irmã, músicas

soltas, que o momento atual permite, que de

repente posso soltar na internet ou lançar num

EP com menos faixas. Estamos interagindo com

alguns DJs da cena, com versões diferentes das

músicas nas pistas. Tô com um projeto de livro

novo com o Celso Athayde, o CDD – Anos 80,

que traça um paralelo entre a minha infância e

adolescência até a transformação que a CDD

vem recebendo desde a chegada das Falanges,

dos armamentos mais pesados, até os dias de

hoje, com a pacificação da UPP. 3

“HOJE FICO MUITO FELIZ DE VER A MOLECADA COMEÇANDO COM BASE PRÓPRIA , UNS ARRANJOS BEM FEITOS, ALGUMAS ATÉ MELHORES QUE AS GRINGAS. É O PROCESSO DE EVOLUÇÃO MESMO, E EU IA FICAR TRISTE SE NÃO ESTIVESSE ASSIM.”

2SAIBA MAIS

mvbill.com.br

Page 23: Revista +Soma #22

23

Page 24: Revista +Soma #22

24

POR BEATRIZ LEMOS . RETRATOS POR FOTONAUTAA viagem começa na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Guga, ainda nos anos 1980, descobre o skate, se torna um dos

precursores do street carioca e faz da rua sua casa. Para os praticantes do esporte, o

espaço público é algo íntimo. A convivência direta com a cidade faz o skatista querer ser arquiteto: é a oportunidade de poder

construir prédios curvilíneos com rampas nas laterais e pistas longas.

Do curso de Arquitetura, Guga vai para a Escola de Belas

Artes da UFRJ, transformando-se em um dos protagonistas

de uma geração de artistas instigados pelos códigos e pelo

visual do Rio de Janeiro. Participa do coletivo Atrocidades

Maravilhosas e realiza, com outros artistas, os eventos Zona

Franca e Alfândega, ocorridos no início dos anos 2000 e

fundamentais para o entendimento da dinâmica coletiva de

trabalho de parte da cena carioca.

De lá para cá, GUGA FERRAZ vem produzindo uma obra

essencialmente pensada para o espaço público. Denúncias

visuais anônimas e ao mesmo tempo autorais, pertencentes

a uma memória urbana comum a qualquer cidade.

E abarrotadas de duras sinceridades. 1

Page 25: Revista +Soma #22

25

g u ga

f e r r a z

C i d a d ã o

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R i o

Page 26: Revista +Soma #22

26

Sua formação vem primeiro do skate, depois

passa pela Arquitetura e chega à Escola

de Belas Artes. Essas influências são muito

perceptíveis em suas obras. Como você

define essa intimidade com os códigos

e cotidiano da rua, os protagonistas e

coadjuvantes da cidade?

Acho que tem a ver com o jeito como eu andava

de skate, com a minha infância na Tijuca. Tem

a ver com o fato de tomar a rua um lugar seu.

No skate você se apropria do espaço urbano.

O skatista vê a calçada ou um corrimão de

forma diferente, de uma forma que um pedestre

normal não vê. Tudo está relacionado com o

skate e com a minha vida mesmo, não tem como

dissociar uma coisa da outra. Se falo de violência

é porque estou envolvido com ela. Se coloco

uma coisa na rua é porque a rua é realmente um

lugar em que eu me sinto à vontade.

O sarcasmo está muito presente em seu

trabalho, e isso já incomodou muita gente,

porque você lida bem com os códigos

visuais. Você é da opinião de que as pessoas

só atentam para um determinado fato

ou assunto quando são surpreendidas ou

incomodadas por eles?

Acho interessante a questão de ser

surpreendido pelo trabalho, que passa a fazer

parte do cotidiano daquela pessoa. Por isso

penso bem na mensagem, para que pareça

o mais institucional possível. Em No Caso

de Assalto, tentei fazer um texto simples,

usando os mesmos códigos usados pelas

empresas de ônibus. Tanto que tem gente

que vê o meu trabalho e acha que já viu em

algum outro lugar. Mas não, viu a imagem do

adesivo em um ônibus – a mensagem padrão,

sem a arma. Não tem outro jeito de falar

isso, entende? E reações das empresas são

naturais: a Fetranspor (Federação de Empresas

de Transportes Coletivos do Rio de Janeiro)

colocou uma nota no jornal dizendo que isso

não ajudava em nada a debelar o problema da

violência e ainda aumentava a insegurança dos

passageiros e de quem está ali trabalhando. Mas

o presidente da Fetranspor não anda de ônibus!

Nos ônibus em que experimentei colocar esse

trabalho e conversar com os motoristas, com os

trocadores e com os passageiros, eles falam o

mesmo: “Isso tem que ser assim, está certo. Que

campanha legal você está fazendo!” Porque

uma troca de tiro dentro de um ônibus é um

absurdo! Quando você fala de interferir no

cotidiano das pessoas, é isso aí. É o cara que

está indo pegar o ônibus, vê ali a imagem do

ônibus incendiado e para pra pensar.

Mas também acontece de reagirem

contra o trabalho?

Também acontece. No caso do Dormindo, as

pessoas se importam mais com o que aquilo

significa do que com o cara dormindo na rua.

Alguém vai lá e arranca o cartaz, que é apenas

a imagem daquilo, mas não tira o cara que está

dormindo na rua. Venho colando a imagem

de um índio armado em pontos de ônibus.

Quero ver alguém queimar um índio armado,

entendeu? Mas em Belém essa série Galdino

já tem outra história. Comecei lá o trabalho, e

no primeiro dia já tinham arrancado a cara de

alguns deles. Só a cara. Como se tivessem raiva

daquela identidade indígena da região.

“Eu tento chamar a

atenção para uma co isa que

não deve ser natura l . Não

é natura l uma pessoa dormi r

na rua ! A lgumas pessoas só vão

perceber i sso quando v i rem

um be l iche de o i to andares ,

no me io da rua , com pessoas

dormindo a l i . ” 4ACIMA, CIDADE DORMITÓRIO. AO LADO, RENDIDO.

Page 27: Revista +Soma #22

27

Page 28: Revista +Soma #22

28

“Fiz o desenho da antiga Praia de Santa Luzia,

aos pés da igreja que leva o mesmo

nome, com uma tonelada de sal

grosso. Era como se o mar t ivesse

acabado de recuar, deixando sua marca

de sal no asfalto. Gosto sempre de pensar na idade

das cidades por onde passo.

Nas camadas de arquitetura e

tempo.”

4ACIMA, ÔNIBUS INCENDIADO. AO LADO, ATÉ

ONDE O MAR VINHA. ATÉ ONDE O RIO IA.

Page 29: Revista +Soma #22

29

E as pessoas ainda acham que você faz apologia à violência...

Isso aconteceu com o trabalho do Ônibus Incendiado. O chefe de polícia

civil da época insinuou que eu poderia ter envolvimento com o crime.

Hoje, o endereço desse chefe de polícia é o Complexo Penitenciário de

Bangu! O Ônibus Incendiado nada mais é do que uma crônica. É uma

imagem forte porque significa algo que está acontecendo na realidade.

Não tem como se distanciar disso. Pegou fogo em um ônibus da linha

410, em 2003, e morreu uma senhora de sessenta e poucos anos. Foi em

Botafogo, em um ônibus que eu sempre pego. Poderia ser minha mãe

indo visitar minha irmã! O mesmo se dá no caso da Cidade Dormitório:

uma vez um crítico citou o trabalho como a participação da arte dentro do

que se entende como o problema da cidade. Eu tento chamar a atenção

para uma coisa que não deve ser natural. Não é natural uma pessoa dormir

na rua! Algumas pessoas só vão perceber isso quando virem um beliche

de oito andares, no meio da rua, com pessoas dormindo ali.

Suas ações são frequentemente divulgadas pela imprensa carioca. Essa

repercussão na mídia é tão potente para o trabalho que se torna parte dele,

ou você encara apenas como uma estratégia para a mensagem circular?

Para mim a coisa acontece no lance de reverberar a imagem. Em uma

tiragem do jornal Extra, por exemplo, a imagem sai milhões de vezes.

Quando um jornal como esse – que é muito popular – fala sobre a Cidade

Dormitório, que é um trabalho de arte contemporânea, com meia página

debatendo sobre a obra, é interessante perceber como se pode atingir

um número de pessoas que não estariam envolvidas naquela questão e o

que a abordagem de certos assuntos pode vir a reverberar.

É bem verdade que a polêmica surge por

tocar em assuntos delicados para a sociedade,

como a violência. Contudo, seu trabalho

também aborda outras questões sobre

cidades. Mais poéticas, poderíamos dizer? Até

Onde o Mar Vinha, Até Onde o Rio Ia foi uma

grande ação que se desdobrou em fotografias

e vídeo. Como foi realizar esse trabalho?

Esse é um projeto em que eu já venho

trabalhando há alguns anos, com pesquisa de

fotos e mapas antigos. A primeira vez que ele

foi realizado foi numa interferência sonora no

Morro da Conceição, na extinta enseada, onde

fica a Pedra do Sal. Foram instaladas caixas de

som trazendo de volta àquela região o ruído do

mar, que foi afastado por obras de remodelação

urbanística no centro da cidade. Depois, numa

segunda fase do projeto, fiz o desenho da antiga

Praia de Santa Luzia, aos pés da igreja que

leva o mesmo nome, com uma tonelada de sal

grosso. Era como se o mar tivesse acabado de

recuar, deixando sua marca de sal no asfalto.

Gosto sempre de pensar na idade das cidades

por onde passo. Nas camadas de arquitetura e

tempo. E esse projeto fala sobre isso. Porém, fala

também sobre a manipulação do homem sobre a

natureza dos lugares, sobre os desdobramentos.

Eu documento praticamente todas as minhas

ações em fotos e vídeos. Em alguns casos, o

registro se torna também uma obra.

E agora, a realização da Pipa Avuada, no

Arpoador. Verãozão carioca e 500 pipas

coloridas no ar! É um trabalho que traz beleza

(e leveza), e que depende da interação de

muitas pessoas para que aconteça. Coisas

novas para você?

Essa ação eu já realizei algumas vezes em

lugares como as barcas de Niterói, o Rio da

Prata, em Buenos Aires, e o morro do Pavão-

Pavãozinho, em Copacabana, mas nunca com

essa quantidade de pipas e pessoas envolvidas.

É um trabalho que depende das condições

climáticas e da participação do público, que

são as pessoas que estão na praia. Sempre

achei lindo o movimento da pipa sendo levada

pelo vento, quando a linha é cortada, e o

valor de uma pipa avuada para as crianças

que brincam nas ruas e se arriscam para

conseguir esse troféu de papel e bambu. São

coisas simples, mas que, se vistas com carinho,

rendem imagens preciosas! 3

4GUGA NA PRAIA DURANTE O PIPA AVUADA.

2SAIBA MAIS

gugaferraz.blogspot.com

Page 30: Revista +Soma #22

30

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Como você descreveria a sua música pra uma

tia velha durante um almoço de família?

Eu diria que é pop. Pop eletrônico. Que passa

por coisas estranhas. Hoje em dia, a maior parte

das minhas músicas é cantada, mas esse forma-

to está começando a me cansar. Talvez eu vol-

te a fazer coisas mais instrumentais. A música

eletrônica dita “experimental” evoluiu, mas tam-

bém se exauriu de certa forma. O minimalismo, o

trabalho de freqüências, a estética do erro, tudo

isso está muito esgotado. Por outro lado, ouve-

-se muito pop eletrônico com canto. Eu adoraria

sair dessa, encontrar outros caminhos.

A impressão que se tem é a de que é impor-

tante pra você ter uma postura definida com

relação à produção musical atual.

Sim, mas é difícil, porque isso pode acabar sendo

visto como uma atitude reacionária. Ao mesmo

tempo, estamos em uma época em que se tem

direito a ser um pouco reacionário. Reclamar faz

bem, é saudável. Tento permanentemente man-

ter um equilíbrio entre o meu entusiasmo e meu

lado “velho ranzinza”.

Infelizmente, você continua pouco conhecido

na França.

Sim, é claro. Se eu fosse conhecido, venderia

mais discos! (Risos) Sou mais conhecido no Ja-

pão, na Alemanha e na Suécia do que na Fran-

ça. Pro Coco Douleur, só consegui distribuição

na França e no Japão, então os ventos não têm

sido muito bons pra mim.

Você nunca tentou compor um hit pra poder

financiar seus discos?

Me sinto incapaz de fazer isso. Essa coisa do

“exercício de estilo” me desestimula. Mas eu

adoraria que isso acontecesse.

Mas, ao mesmo tempo, você assumiu o partido

da gratuidade, disponibilizando o download da

maior parte dos seus discos no seu site…

Menos os últimos, porque não quero sabotar a mi-

nha gravadora [Tsunami Addiction], que luta pra

sobreviver. Mas tenho vontade de manter esse as-

pecto. No dia em que propuserem um formato di-

gital de boa qualidade, sem perdas, vou entender

que vendam música dessa forma. Ainda é o dis-

curso do velho ranzinza. (Risos) Quando compro

um disco, também o coloco em mp3 no meu com-

putador, é mais prático. Só acho estranho valoriza-

rem uma forma inferior às anteriores. Hoje em dia,

os sistemas de escuta e mastering são adaptados

pra compensar a mediocridade do mp3. Não é

algo que se possa chamar de progresso.

E você já pensou em soluções pra se posicionar

diante da crise do disco?

Acho que o desmoronamento da indústria do

disco foi merecido. Infelizmente, isso vem acom-

panhado de uma mudança no status do artista.

Hoje em dia, todo mundo pode fazer música e

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A. 1

D ez anos de carreira e quase tantos discos

quanto anos nas costas: Antony Keyeux,

mais conhecido como HYPO, está longe

de ser um iniciante, mas ainda evolui nos recantos

mais sombrios do underground. Sua última cria-

ção, no entanto, Coco Douleur, foi a melhor coisa

que aconteceu à música eletrônica francesa em

2010. Nada de intelectualismo enfadonho ou de

hedonismo beato, mas uma música lúdica e peri-

gosa, que oscila entre pesadelo pop e melancolia

sintética. Um encontro com um laboratorista in-

tratável, que sabe o preço de sua liberdade.

Pra começar, como você se sente “represen-

tando” a França em uma revista brasileira?

Fico lisonjeado, claro. Você poderia ter pegado

qualquer um do Ed Banger no meu lugar… Mas,

enfim, estou pouco me lixando pra minha origem

francesa. Quando comecei, a música até podia

ser projetada em termos de polos geográficos,

mas agora, com a internet, houve uma explosão.

Me interessa saber de onde vêm as pessoas, mas

isso não chega a ser um critério. Em Coco Dou-

leur, tive a colaboração de australianos, america-

nos que moram no Japão, japoneses que moram

em Berlim… Da próxima vez, por que não fazer

alguma coisa com brasileiros?

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Page 31: Revista +Soma #22

31

torná-la acessível, há uma renovação permanen-

te que torna as coisas cada vez mais descartá-

veis. Todos os critérios de avaliação são turvos.

Aos poucos, vai haver uma espécie de faxina.

Sempre vai existir gente pra comprar discos e

gravadoras pra defender estéticas diferenciadas.

Quais são suas técnicas de criação?

Principalmente programação, colagem e sam-

pling. Eu sequer tenho um estúdio pra gravar

as vozes das pessoas que participam dos meus

discos. As colaborações não se limitam ao canto.

Geralmente envio uma base aos convidados, eles

fazem propostas e depois eu faço uma seleção. É

mais um trabalho de agenciamento e de escolhas.

Como você concebe os seus shows?

Não tenho uma relação de paixão com apre-

sentações ao vivo, sou apaixonado pela mu-

sica de estúdio. Neste momento, tem acon-

tecido uma revalorização dos shows, de um

caráter rock’n’roll com o qual eu não me sin-

to muito à vontade. Mesmo assim, o fato de

ter integrado um baterista no palco me abriu

novas perspectivas. No final de 2009, fomos

convidados pra fazer três shows de música im-

provisada no Centre Pompidou, com diversos

convidados, e foi muito prazeroso para mim.

Quero desenvolver esse aspecto, mas sem cair

na paródia do “verdadeiro músico”. O proble-

ma, agora, é que a gente ouve muitos bons

músicos, mas poucas músicas boas.

A sua discografia já é notável, em especial seus

quatro álbuns solo. Você poderia nos falar um

pouco de cada um deles?

O primeiro, Kotva, surgiu com a microgravadora

inglesa Spymania, que lançou os primeiros EPs

do Squarepusher e o primeiro álbum do Jamie

Lidell. Eu tinha descoberto a cena Rephlex/

Warp, que me impressionou bastante, por vol-

ta de 1994. Depois, descobri a gravadora ale-

mã Tomlab e toda a escola do sampling: Stock,

Hausen And Walkman, People Like Us, V/Vm…

Misturei todas essas influências do meu jeito,

de maneira um pouco ingênua. Um disco tão

lo-fi não poderia ser lançado hoje. Mesmo as-

“Estou pouco me lixando pra minha origem francesa. Quando comecei, a música até podia ser

projetada em termos de polos geográficos, mas agora, com a internet, houve uma explosão.

Me interessa saber de onde vêm as pessoas, mas isso não chega a

ser um critério.”

Page 32: Revista +Soma #22

32

sim, ele ainda está no Warpmart (loja de música

online), apesar de nós só termos vendido quatro

exemplares! (Risos) A partir do segundo álbum,

Karaoke A Capella, comecei a ter muitas cola-

borações. Eu dava um curso de iniciação à mu-

sica eletrônica a estudantes de artes plásticas,

estava numa de Barthes, na morte do autor, esse

tipo de teoria. Queria criar uma certa confusão,

multiplicar as direções e incluir elementos que

não eram de minha autoria. Minha gravadora

na época [Active Suspension] ainda era nova e

não defendeu muito o álbum. Como eu estava

contrariado, engatei em um disco mais difícil, o

Random Veneziano, que é pomposo e barato ao

mesmo tempo. As opiniões divergem: há quem

diga que esse é o meu melhor disco e os que

pensam que ele foi feito de sacanagem.

Durante algum tempo, tive dificuldade pra pen-

sar numa continuação. Meu álbum com o EDH

[The Correct Use of Pets] deu início à minha

volta aos trilhos. Precisei de um tempo até con-

seguir chegar com um disco coerente, que cele-

brasse sua época e a criticasse, que contivesse

ao mesmo tempo leveza e pathos. Coco Douleur

foi tido como uma espécie de best of do que

eu tinha feito de melhor, mas não consigo con-

cordar com isso. A crítica que mais me entris-

teceu foi a seguinte: “um excelente disco, que

nos faz ter vontade de ouvir os antigos”. Que

merda! Acho que esse disco abre novos horizon-

tes, mesmo que tenha uma dimensão nostálgica.

Quais são os seus projetos para um futuro

próximo?

Conheci recentemente um VJ com quem tenho

vontade de trabalhar. Normalmente eu detesto

os VJs, porque eles servem de paliativo: “vocês

vão entediar os seus ouvidos, então nós vamos

ocupar os seus olhos”. Esse VJ parece fazer as

coisas de outro jeito. Ele não usa um telão, mas

projeta cores diretamente nos músicos. E ele

improvisa tudo, o que nos permite dialogar. Fi-

zemos um show juntos em uma galeria de arte

e vamos reproduzir a experiência em breve em

um hospital psiquiátrico. Não faço ideia de como

o público vai reagir… É fácil fazer loucuras num

show, mas e quando você está entre loucos de

verdade, faz o quê?

Page 33: Revista +Soma #22

33

PILÖTO RO C K E M T R A N S E

O PILÖT esperou quase um ano até que

uma gravadora enfim lançasse seu pri-

meiro álbum, apesar de dois EPs auto-

produzidos e shows cada vez mais devastado-

res. Foi o que aconteceu com Mother, em que

o quarteto parisiense revitaliza o noise rock

dos anos 90, com ajuda de melodias multico-

res, ritmos tribais e samples iluminados. Nós nos

encontramos com o instrumentista Antoine e a

vocalista Alex para falar da estreia do grupo na

corte dos grandes.

Uma das particularidades e forças do Pilöt é

a sua voz, Alex. Esse jeito de torturar o inglês

é proposital?

AL . Não, nada é calculado. Algumas pessoas

me entendem bem, outras não entendem nada.

Talvez isso esteja ligado às minhas origens, uma

mistura de Bretanha (região da França à beira

do Canal da Mancha), de Bélgica e de Grã-Bre-

tanha. No início, eu não queria me fazer enten-

der. Hoje em dia, trabalho mais na simplicidade,

ficaria feliz se ouvissem meus textos.

Existe esse clichê que diz que muitos grupos

franceses escolhem o inglês por facilidade,

porque assim se pode cantar qualquer coisa…

AL . Não é o nosso caso. Na verdade, isso só

incomoda aos franceses, os estrangeiros nem

se importam com isso. Eu adoraria cantar em

francês, mas não tenho certeza de que vão me

entender melhor. Desde pequenininha, sou apai-

xonada pelos sotaques, então criei a minha pró-

pria maneira de pronunciar as coisas. Lamento

se isso incomoda os puristas.

E esse é um pouco o paradoxo do Pilöt: vocês

querem fazer uma música complexa e acessí-

vel, perturbada e pop.

AL . É no palco que a gente consegue se doar

de verdade. Não ficamos prostrados diante dos

nossos amplificadores, nós tocamos com um

espírito de troca.

AN . Nós amamos o lado acessível do pop, mas

quando ouvimos um riff que parece já existir na

música de outra pessoa não nos interessamos.

No final das contas, é bom ficar em cima do

muro, tentar aliar pesquisa e belas melodias.

Por falar em show, vocês escreveram no Mys-

pace que gostariam de “morrer e renascer” pro

público. É uma expectativa ambiciosa.

AL . Eu nem sei direito de onde isso veio… Se

eu canto, é pra passar pro público uma certa

intensidade em nível emocional. Esse é o lado

místico do Pilöt. Nós queremos criar um transe,

uma forma de catarse.

AN . Às vezes a gente consegue, mas ainda há mui-

to trabalho a ser feito pra atingir nosso ideal. 3

“Eu adoraria cantar em francês, mas não tenho certeza de que vão me entender melhor. Desde pequenininha, sou apaixonada pelos sotaques, então criei a minha própria maneira de pronunciar as coisas. Lamento se isso incomoda os puristas.”alex

Como vocês formaram o Pilöt?

ANTOINE . Eu conheço o Victor (outro instru-

mentista da banda) há um bom tempo. Come-

çamos a trabalhar juntos e queríamos montar

um grupo com uma verdadeira voz rock femi-

nina. Colocamos um anúncio e Alex respondeu,

simples assim. Tocamos juntos algumas vezes,

depois nos separamos por um ano… Problemas

de personalidade forte, sem dúvida. Não sabía-

mos bem o que queríamos na época, procurá-

vamos uma Missy Elliot com a voz de uma Kim

Gordon, era um pouco demais!

ALEX . Eles não estavam prontos, nem eu. Eu

ainda tinha muitos problemas de ritmo.

Mas vocês acabaram se reencontrando. Bela

história…

AN . Um dia fizemos uma análise de todas as

vocalistas que tínhamos encontrado e perce-

bemos que Alex era a de personalidade mais

forte. E ela nos faz pagar por essa decisão des-

de então… (Risos)

AL . Da primeira vez, eles me demitiram por te-

lefone! Não sou a princesinha do grupo, sou um

menino que deu errado. Sou a mais insolente,

não tenho compromisso, ninguém mexe comigo!

AN . Você é a mais viril! (Risos)

Que artistas inspiram vocês?

AL . Sonic Youth, PJ Harvey, Sloy, Shellac…

AN . The Beastie Boys.

AL . Eu também ouvi muito Girls Against Boys

quando era menina. (Risos)

AN . Eu adoro as músicas que o Nino Rota com-

pôs pra Casanova, o filme do Fellini. Se colocar

um bumbo e uma caixa, elas viram excelentes

instrumentais de hip-hop.

AL . Nós também fomos muito influenciados por

filmes e livros. A minha heroína é a Tank Girl.

2SAIBA MAIS

hypomusic.net

myspace.com/00pilot

Page 34: Revista +Soma #22

34

Um documentário imaginário sobre a relação do homem com o meio ambiente nos bairros Jardim Canadá e Vale do Sol, às margens da rodovia BR-040, subúrbio de Belo Horizonte.

Em duas pequenas porções de periferia, com toda a

diversidade que pode haver entre pequenas indústrias,

ateliês de artistas, restaurantes chiques, residências de

classe média, favelas, oficinas e até galerias de arte,

esses bairros aparecem em minha imaginação como um

resumo do avanço da ocupação humana no planeta, a

materialização do pequeno — mas poderoso — conto de

Jorge Luís Borges, “Do Rigor da Ciência”:

“... Naquele Império, a arte da cartografia atingiu uma tal

perfeição que o mapa duma só província ocupava toda

uma cidade, e o mapa do império, toda uma província. (...)

(...) menos apegadas ao estudo da cartografia, as

gerações seguintes entenderam que esse extenso

mapa era inútil e não sem impiedade o entregaram às

inclemências do Sol e dos invernos. Nos desertos do oeste

subsistem despedaçadas ruínas do mapa, habitadas por

animais e por mendigos. (...)”

Em dezembro de 2008, passei a residir na região

e identifiquei ali essa diversidade pulsante. Passei

a percorrer cada canto desses bairros para realizar

fotografias, através das quais procuro entender esta

"mistura" cultural.

O título “O Jardim” tem o intuito de levar o entendimento

sobre o trabalho para o lado metafórico da fotografia. Aqui

o que mais importa não é apenas a ocupação dos bairros,

mas o avanço da civilização sobre o que resta da natureza.

PEDRO DAVID

JARDIM

O

Page 35: Revista +Soma #22

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Page 42: Revista +Soma #22

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Page 43: Revista +Soma #22

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2SAIBA MAIS

pedrodavid.com

Page 44: Revista +Soma #22

44

JOE COLEMAN

fan

tasm

a d

a

velha Am

érica.

p OUCA COISA EM JOE COLEMAN atesta que ele é um homem dos dias de hoje. Seus valores,

gostos, jeito de vestir e técnica artística remetem a alguém ora da Alemanha renascentista, ora da Itália medieval, ora da Nova York do século XIX – em especial do grupo político Tammany Hall, que temperava seus trajes elegantes com doses desmedidas de bandidagem. 1

No passado, Coleman já se explodiu com

fogos de artifício e comeu ratos vivos em

performances públicas, releituras de shows de

horrores medievais. Tem uma coleção particular

de objetos perturbadores, o Odditorium,

que inclui fetos humanos em formol, sarcófagos,

bonecos sinistros de toda sorte e uma carta em

que Charles Manson o define como “um homem

das cavernas em uma nave espacial”.

Tudo isso faria de

Coleman apenas um

sujeito de gostos

exóticos, não fosse seu

talento assombroso para

a pintura.

Suas obras são

narrativas visuais e

textuais estonteantes,

ricas em detalhes tão

minuciosos que alguns

só podem ser vistos com

lentes de aumento.

Em seus 54 anos de

vida, Coleman já retratou

pessoas tão diversas

como George Grosz,

o assassino serial Carl

Panzram, Harry Houdini

e Captain Beefheart,

além de si mesmo. Pinta

telas de 2x1 m com um

pincel de cerda simples,

o que chega a consumir

seis dolorosos meses

de trabalho (o processo

causa dores fortes nas

mãos, que Coleman,

como um monge

beneditino, considera

essenciais para atingir o

resultado desejado).

Atualmente, o preço

de uma obra sua pode

chegar a mais de US$

200 mil, o que as

torna privilégio de um

seletíssimo grupo que

inclui gente como Jim

Jarmusch, Johnny Depp

e Iggy Pop. Jarmusch,

aliás, participa do ótimo

documentário Rest in

Pieces, de 1997, sobre

o artista. Coleman

falou com a Soma por

telefone, de sua casa

em Nova York, por

pouco mais de uma

hora. Uma conversa

pautada por um senso

raro de erudição e pela

franqueza dos que

estudam a alma humana

com obsessão.

POR MATEUS POTUMATI . FOTOS DIVULGAÇÃO

Page 45: Revista +Soma #22

JOE COLEMAN

4ANOTHER CARPENTER WHO KNOWS WHAT NAILS ARE FOR.

Page 46: Revista +Soma #22

46

Vou reformular então:

você acredita que

pintar serial killers

e outros foras-da-lei

tem algo a ensinar a

um artista?

Claro, porque os

perdedores não

escrevem a História.

Nos meus quadros,

eu permito que eles

tenham uma voz.

Todas essas vozes

merecem ser ouvidas,

são importantes.

É mais importante

aprender com os

perdedores do que

com os vencedores.

Eles perderam todas

as batalhas contra o

mundo, e todos nós

lutamos contra o

mundo. É importante

para qualquer ser

humano entender esse

caminho e entender

que todos podemos

segui-lo a qualquer

momento. E no final

todos nós perdemos

tudo, somos todos

derrotados. Eles apenas

perderam um tempo

antes, e a voz deles

deve ser ouvida.

Você fica imerso

por meses nos

seus quadros e

personagens. Quando

pinta alguém como

Carl Panzram (serial

killer estadunidense

do começo do século

XX), sente alguma

idenfiticação maior,

como uma síndrome

de Estocolmo?

É por aí. Também é

como o método do

ator, porque, quando eu

pinto uma pessoa, me

torno um pouco dela.

Descubro aspectos dela com os quais eu

possa me identificar. A vontade de seguir

em frente de qualquer forma, por exemplo,

que qualquer ser humano tem. Pra encontrar

a alma do personagem, tenho que olhar

dentro de mim e acabo o incorporando à

medida que dou vida a ele. A única diferença

é que isso se dá por meio de pinceladas em

vez de atuação.

Como construir um personagem, mesmo.

Exatamente. Não posso julgar, tenho que ser

aberto ao que eles sentem, ao que acreditam.

Deixá-los falar sem fazer nenhum julgamento

moral ou ético.

O filme Stendhal Syndrome, do Dario

Argento, é baseado em uma doença

psicossomática que faz as pessoas se

sentirem parte de certas obras de arte,

a ponto de terem alucinações ou desmaiar.

Isso pode ser particularmente pertinente

em relação ao seu trabalho, que tem muita

narrativa e detalhes. Em que medida você

considera necessário a um espectador se

sentir parte de uma obra sua para apreciá-la?

Não conhecia essa síndrome até assistir ao

filme, e só fui conhecer bem depois, quando

a Asia [Argento, atriz e filha do cineasta] me

mostrou. Mas pensei muito nisso depois e sei

que algumas pessoas que veem meus quadros

dizem passar por experiências parecidas. Não

é necessariamente intencional, mas a sensação

de arrebatamento é essencial para se ter uma

experiência profunda, como com ayahuasca,

peiote ou algo do tipo.

Você disse uma vez que só pinta coisas que te incomodam,

porque isso te ajuda a encontrar um sentido nelas. Já refletiu

sobre os limites entre se sentir incomodado e atraído pelas visões

perturbadoras das suas obras?

Sim. Eu sempre penso que há um elemento de atração e repulsa

nessas coisas. Também é um modo de superar essas visões:

fazer amizade com elas, transformá-las. Elas se tornam algo que você

consegue ver claramente, mas pelo qual também cria certa afeição.

Acontece o mesmo com a minha coleção de objetos perturbadores.

Ter esses objetos nas mãos me permite fazer amizade com eles e,

assim, dominar seus aspectos perturbadores.

Pergunto isso porque certa vez você disse que, se não fosse artista,

provavelmente seria um serial killer.

(Risos) Isso é parecido com o “Keep On Truckin’” do Crumb.

Eu me arrependo um pouco dessa frase, foi algo que eu disse há

muitos anos e fica sendo repetido...

4BURLESQUE

Page 47: Revista +Soma #22

47

“É m

ais

im

por

tan

te

apre

nder

com

os

perd

edor

es d

o qu

e co

m o

s ve

nced

ores

.

Eles perderam todas as batalhas contra o mundo, e todos nós lutamos contra o mundo.”

4MEMOIRS OF A SIDESHOW GEEK

Page 48: Revista +Soma #22

48

É por isso que minhas pinturas têm muitos detalhes: para arrebatar o

espectador. Quando uma pessoa está deslumbrada, ela se torna mais

sensível. Além disso, em certo sentido, é preciso ser quase difícil de

olhar. Assim, o espectador entra na imagem e tem uma experiência mais

profunda. Meus originais proporcionam isso, as pessoas se perdem ali:

começam lendo um pequeno texto, olham pra imagem da esquerda, da

direita. Quanto mais você olha, mais elas te sugam. Nesse sentido, é [uma

experiência parecida com] a síndrome de Stendhal.

Ainda não tive a oportunidade de ver um quadro seu pessoalmente

(Coleman nunca expôs no Brasil), mas gosto muito do seu site.

A experiência de visualização das pinturas é bem legal, são reproduções

em tamanho grande. Sei que não dá pra ver tudo, porque você faz

muitas coisas com lente de aumento, invisíveis a olho nu, mas dá pra ver

muitos detalhes.

Com certeza não, mas existe uma tour em vídeo pelos quadros, que é uma

experiência bem aproximada. Você já fez?

Fiz, sim. Seu site dá um sentido bem atual à frase do Charles Manson

a seu respeito, de que você é um “homem das cavernas em uma nave

espacial”.

(Risos) É isso. O vídeo transporta o espectador pra bem perto das

obras. Foi feito em formato de animação, com lente de aumento, micro

planos. Com os originais é bem diferente, mas ali é possível ter uma

sensação mais próxima da real.

Como as pessoas enxergam esses detalhes numa exposição? As galerias

fornecem lentes de aumento?

Às vezes, mas muitas pessoas que já conhecem meu trabalho trazem

suas próprias lentes. Fica a cargo do espectador, embora eu já tenha feito

exposições em que havia lentes de aumento disponíveis. Também dá pra

usar o que eu uso: lentes de joalheiro, que são mais práticas. Você pode

levar uma e enxergar do mesmo modo que eu.

Li em um artigo sobre

você que o sofrimento

é inseparável do seu

desejo de fazer arte.

Você pinta em telas

imensas, com acrílico,

lente de aumento e

pincéis de uma cerda

só, e já disse que é um

processo doloroso.

O quanto a dor é

importante para o

resultado final?

Pelo menos pra mim,

é fundamental. Tenho

uma conexão com

pintores religiosos,

devido ao meu passado

católico: Mathias

Grünewald, Pieter

Bruegel, Hieronymus

Bosch etc. É algo

muito espiritual. Os

manuscritos com

iluminuras eram em

sua maioria feitos

por monges em

monastérios. São as

obras com as quais eu

tenho mais ligação.

A Paixão de Cristo é

chamada de “paixão”,

então há paixão…

No sofrimento.

Sim, no sofrimento.

Acredito que, ao

tentar transformar

metais grosseiros em

ouro, os alquimistas

queriam transformar

sofrimento em arte.

Eu tento transformar

emoções grosseiras

numa espécie de beleza

sombria.

Na arte cristã existe sempre essa dualidade

entre agonia física e êxtase espiritual.

Você já disse que considera a metáfora da

comunhão uma das principais contribuições

do cristianismo para o mundo, embora não

seja cristão.

No nível do canibalismo, é fascinante. No

canibalismo, se devora quem se ama ou

respeita, jamais quem se despreza. Mesmo

quando é um inimigo, tem que ser um

inimigo que mereça respeito. É um ato

muito passional, e para fazer meus quadros

eu também devoro a pessoa que estou

pintando, de certa forma. Em um ato de

canibalismo, a pessoa que é devorada se

incorpora ao ser que a devorou. É o mesmo

com meus quadros: neles, eu devoro meu

personagem, sua psique e sua alma. Levo

tudo deles.

Você falou em Bosch e Bruegel, e já

participou de exposições com obras deles.

Como se sentiu ao se ver lado a lado com

artistas que considera mestres?

Expus ao lado de Bosch e Bruegel no

Bojimans Museum, na Holanda. Também

expus com Memling em Nova York e com

vários outros… Eles são chamados de

primitivistas flamengos, mas o trabalho

deles não é nada primitivo. Foi uma

comparação interessante de fazer. [As

exposições] estão disponíveis no meu

site. A “Devotional Maternal”, na Dickinson

Gallery (com Hans Memling), foi há três

ou quatro anos. Eu me garanti, não fiz feio

(risos). Me senti bem e orgulhoso de trazê-

los comigo para os dias de hoje. E prefiro a

companhia deles à dos artistas do [bairro

descolado de Manhattan] Chelsea (risos).

Page 49: Revista +Soma #22

49

Eu

tento

transform

ar em

oções grosseiras num

a espécie de b

eleza somb

ria.”

“A P

aix

ão

de

Cri

sto

é c

ham

ada

de ‘p

aixã

o’, e

ntão

paix

ão n

o so

frim

ento

.

Acredito que, ao tentar transformar metais grosseiros em ouro, os alquimistas queriam transformar sofrimento em arte.

4LIZ RENAY

Page 50: Revista +Soma #22

50

Além dessa formação,

você também tem

bastante influência

de quadrinhos,

especialmente das

coisas de terror da EC

Comics dos anos 50.

Sim, eles foram uma

grande influência quando

eu era mais novo.

E você mantém uma

conexão importante

com esse mundo,

publica seus livros

pela Fantagraphics

etc. Mas a maioria

ainda vê os quadrinhos

como uma forma

menor de arte.

Você já considerou

a hipótese de que o

seu trabalho poderia

ajudar a mudar essa

percepção?

Não tenho nenhuma

missão, no sentido de

convencer pessoas

sobre o que elas devem

encarar com mais ou

menos seriedade.

Mas gosto de

quadrinhos, e eles

foram importantes na

minha vida, no meu

desenvolvimento

artístico.

A ideia de narrativa sempre me cativou.

Não faço mais quadrinhos, mas meus

quadros são narrativas, o que tem conexão

com quadrinhos, mas também com filmes e

livros. A diferença é que, nos meus quadros,

a narrativa aparece em sua totalidade, de

uma vez, na frente do espectador. Em um

quadrinho, você tem que virar a página

para construir a história. Nas minhas

pinturas, constroi tudo sozinho. Cada

indivíduo tem um percurso diferente

e único.

Sua mulher, Whitney Ward, definiu você

uma vez como “Parte Tammany Hall, parte

Velho Oeste: um belo e onisciente fantas-

ma da velha América”.

Exato, foi para uma matéria no The Wall

Street Journal.

Foi uma bela definição.

Eu também achei, não poderia ser mais

perfeita. (Risos)

Como é ser um fantasma da velha América

na nova América?

Está mais difícil… Vários lugares

maravilhosos em Nova York estão

desaparecendo. É triste, porque muitas

coisas do passado que eu valorizava estão

sumindo, mas é a vida, é o que

vai acontecer.

Você já pensou em se mudar do país?

Crumb, que é fã do seu trabalho, se de-

cepcionou com os EUA e foi para a França.

Já teve o mesmo desejo?

Sim, já pensei em me mudar para a Europa e

talvez o faça. Não tenho planos agora, mas

gostei do tempo que passei em Berlim.

Eu e Whitney já conversamos sobre morar lá, mas ainda não é nada concreto.

Não me surpreendo ao ver a ascensão do fascismo em períodos como hoje,

em que existe certa dose de liberdade e decadência. Aconteceu na Alemanha,

na Roma Antiga. Essas coisas ocorrem de modo quase orgânico, e é possível

identificar um padrão, embora as características não sejam sempre as mesmas.

Dá para perceber que o padrão vai se repetir em um determinado momento,

assim como sabemos que a água vai ferver a certa temperatura. Se você

colocar alguns ratos em uma gaiola, eles ficarão bem, mas se lotar a gaiola eles

vão se estraçalhar. É o que precisa acontecer no ponto em que estamos. É o

modo como a natureza lida com isso, está no nosso DNA.

Algumas das revoltas recentes em países árabes são atribuídas em parte à

baixa oferta de comida.

A comida também pode ser para o ego. Os poderosos têm gula. Nunca

estão satisfeitos, querem cada vez mais poder, é um vício. A ganância é algo

arrebatador. Assim como há gula por comida, há gula por poder.

Mudando de assunto, li que nos anos 1990 havia uma lista de espera para

comprar suas obras. Essa lista ainda existe?

Não, ela foi abolida. Os preços tiveram que ser reajustados para manter a

demanda. Quem cuidava dessa lista era a Whitney. Eu sempre tentei me

manter afastado e me preocupar somente com a pintura. Agora estou

trabalhando com a Dickinson Gallery, e é a primeira vez que me sinto

totalmente em casa. Eles expõem obras de todos os mestres e me deixam

muito à vontade. A Whitney não precisa mais lidar com essas coisas, porque

a galeria toma conta. Mas eu tento me manter afastado de qualquer forma.

Prefiro não saber o que acontece por lá.

Suas obras são colecionadas por pessoas como Iggy Pop, Johnny Depp, Jim

Jarmusch e Leonardo Di Caprio. Alguns deles se tornaram seus amigos.

Você acredita que o modo como pinta e os assuntos que escolhe o torna

mais próximo dos seus colecionadores do que a maioria dos artistas?

É o contrário: o modo como trabalho e os temas que escolho os trazem a mim.

Não estava procurando por eles, eles que vieram até mim. Talvez tenham os

mesmos interesses, identificaram um espírito semelhante e vieram até mim.

E eles podem ser de diferentes classes sociais, não apenas celebridades.

4PATHOLOGICAL FIRESTARTER

Page 51: Revista +Soma #22

51

Qu

an

do u

ma

p

essoa

está deslum

brada, ela

se torna

m

ais sensível.”

“A s

ensa

ção

de

arr

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tam

ento

é

esse

ncia

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a se

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cia

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om

aya

hu

asc

a, p

eiot

e ou

alg

o d

o t

ipo

.

É por isso que minhas pinturas têm muitos detalhes: para arrebatar o espectador.

4A DOORWAY TO JOE

Page 52: Revista +Soma #22

52

Você se define como uma pessoa tribal, que não acredita em humanida-

de, em minorias ou outros valores do tipo. Acredita apenas nas pessoas

da sua tribo. O que faz você e essas pessoas felizes?

Nos juntamos por razões que às vezes são estranhas, mas tenho uma

família formada por pessoas que são importantes pra mim, que eu

valorizo, defendo e de quem cuido. Não sou responsável pela humanidade,

pela Igreja Católica, pelos Estados Unidos ou coisa do tipo. Só me importo

realmente com a minha tribo, não posso ser responsável por nada além

disso. Tenho uma conexão imediata com elas, e isso é mútuo. Qualquer

coisa maior que isso é insensatez.

Sou uma pessoa espiritual [e estou] seguindo o meu caminho. Não quero

ser caracterizado como nada, nem como liberal, nem como um artista

marginal. Não gosto desse tipo de rótulos e não acredito neles, como

“anarquista”, “niilista”, “conservador”. Sou minha carne e meu sangue e

meus ossos. Vejo as coisas daqui e faço o melhor que posso com elas. Uso

minhas experiências, minhas habilidades e o corpo com o qual nasci e o

modo como fui educado… Essas são as cartas que tenho na mão, e tento

jogar o melhor que posso com elas.

Você já pintou muitas pessoas, de serial killers a artistas como Edgar

Allan Poe, e também amigos pessoais, como Indian Larry (bike builder

e dublê morto em 2004). Está trabalhando em algum retrato

novo atualmente?

No momento estou trabalhando em uma peça menor, para um livro

infantil, a convite do Tom Waits. São vários músicos, cada um escolhendo

seu artista favorito, e ele me chamou. O trabalho é colaborativo, e fiquei

honrado de ter sido chamado. Eu geralmente não faço coisas assim, mas

admiro muito ele e sua carreira como músico e ator. Ele também é uma

pessoa muito espiritual.

Só vai sair em livro?

Vai ser um livro mesmo, mas acho que haverá uma exposição junto. Vou

postar no meu site assim que souber de mais detalhes. Acabamos de

começar, deve demorar pelo menos um ano pra sair.

Falando em projetos

coletivos, você já fez

parte de um grupo que

criou capas para discos

da gravadora inglesa

Blast First Records.

Além de você, tinha

Gary Panter, Raymond

Pettibon e Robert

Williams, entre outros.

Gary e Raymond são

bem ligados ao rock

e ao punk. Qual a sua

relação com música?

Eu ouço e gosto de

muita coisa, e pintei

algumas pessoas cuja

música me inspira, do

compositor medieval

Gesualdo até Hank

Williams Sr. e Hasil

Adkins. Os três não

poderiam ser mais

distantes um do outro,

mas todos me dizem

algo. Recentemente, fiz

um quadro do Captain

Beefheart. Tenho uma

coleção grande de

música e ela me inspira.

Ouço discos enquanto

pinto e eles falam

comigo. Foi assim que

pintei Hank, Hasil, todos

eles. A música deles

acaba me dizendo o

que pintar.

Você produziu um

disco seu pra Blast

First, chamado Infernal

Machine, inspirado nas

performances medie-

vais que fazia nos anos

1990. Você chegou a

ser preso por causa de

uma delas, certo?

Fui preso várias vezes por causa das minhas

performances. Mandei emoldurar um

mandado de prisão que me acusa da “posse

de uma Máquina Infernal” (risos). Foi emitida

em nome de Joseph Coleman, vulgo Dr.

Momboozoo (nome que o artista usava nas

performances). (Risos gerais.)

Li que essa acusação não era usada desde

o século XVIII.

Sim, meu advogado me disse isso depois.

[Os policiais] chegaram depois do show,

olharam nos livros e tentaram achar uma

acusação. Foi o promotor que encontrou

essa. Seria mais difícil fazer algo parecido

hoje em dia, qualquer tiazinha pode ser

mulher-bomba (risos).

É, não seria uma boa ideia se explodir. As

pessoas estão com tanto medo que, se

você fizesse de novo, poderia levar um tiro.

Numa exposição recente, havia uma

série de miniaturas que acompanhavam

meu autorretrato gigante, A Doorway to

Joe. Uma delas, Pathological Firestarter

(“Incendiário Patológico”), é o retrato de

quando eu pus fogo no pátio da escola,

na infância. Foi ali que a minha Máquina

Infernal começou. Enquanto eu pintava essa

tela, refleti sobre o meu passado e vi que

poderia ter escolhido um caminho muito

mais sombrio, como qualquer um de nós.

Fiquei pensando no quanto fui sortudo e

abençoado por ter tido a vida que tive. Mas

eu queria mostrar, da forma mais honesta

possível, que essas coisas estavam dentro

de mim e, provavelmente, de todos nós.

Tentei confrontá-las, pintá-las e colocar

nesse tríptico que fiz, baseado em um ícone

cristão real. No meu caso, ao pintar sobre

esse ícone usando minha própria mitologia,

consegui redirecionar as forças da minha

educação católica.

2SAIBA MAIS

www.joecoleman.com

4A TOAST TO OLD CEMETERY

Page 53: Revista +Soma #22

53

Essas são as cartas que tenho na mão, e tento jogar o melhor que posso com elas.”

“Não quero ser caracterizado como nada, nem como liberal, nem como artista marginal.

o go

sto

des

se

tip

o d

e ró

tulo

s e

não

acre

dito

nel

es.

Sou

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arne

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sa

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meu

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sos.

..

4THE CHILD I NEVER HAD

Page 54: Revista +Soma #22

entre (oUtros)ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO

QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE

CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.

APOIO

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço?

Mande um email para [email protected] com amostras

da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

Page 55: Revista +Soma #22

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/CAVERA

BRUNO DICOLLA

O paulistano Bruno Dicolla chegou ao resultado que você vê abaixo estudando com

afinco artistas como Ida Ekblad, David Shrigley, Karel Appel e Shynola. Trabalha om vídeo

e ilustração comercial desde 2005.

Page 56: Revista +Soma #22

56

Page 57: Revista +Soma #22

57

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/GUILHERMEKRAMER

GUILHERME KRAMER

Guilherme Kramer mudou-se para um sobrado na cidade de São Paulo, onde pode

trabalhar em peças maiores. Sobrevive de arte, seja vendendo quadros ou ilustrando para

editoriais. Quando conheceu o nanquim, não o largou mais. Para ele, “desenhar é ordenar

o caos da vida”, algo que ele faz em companhias ilustres como Astor Piazzolla, The

National, Francis Bacon (“o cara é bruto”), Goya, Rimbaud, Jack Kerouac, Jack London,

Borges, Baudelaire e Van Gogh.

Page 58: Revista +Soma #22

58

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/VERMELHOQUEIMADO

VERMELHO

O tímido garoto Cesar de Melo Ferreira encontrava refúgio nos animês de Katsuhiro

Otomo e nos quadrinhos de Dave McKean e Bill Sienkiewicz, entre os muitos nomes de

sua coleção. Na adolescência, conheceu OsGemeos e o universo da street art. Sua vida

mudou para sempre. Surgiu então, como nas histórias que lia na infância, seu alterego:

Vermelho. Desde então, dá seus pulos para viver só de arte. Seus temas principais são

os conflitos da mente humana, a religião, a sociedade de consumo e seus impactos no

planeta. Tem 35 anos, gosta de molduras antigas e vive com a esposa e três gatos.

Page 59: Revista +Soma #22

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Page 60: Revista +Soma #22

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U m N ôma d e d o O l h a r

POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

De olhos arregalados, VINCENT MOON segura a câmera com firmeza enquanto passeia por uma chuva de verão em um quintal com piscina no Alto de Pinheiros, em São Paulo. A casa está lotada de con-vidados para a gravação do Take Away Show com o grupo paulistano Holger – a churrasqueira funciona sem parar, as me-sas estão cheias de garrafas de cacha-ça, vinho e latas de cerveja. De barba e boina, usando uma gravata meio torta sobre a camisa, Moon é um tipo franzi-no que não esconde a origem francesa. Seu sapato está furado e encharcado, então ele faz todo o trabalho descalço, acompanhado de uma minúscula equipe formada por alunos de uma oficina que ele deu na cidade. “Cara, isso está uma loucura, que bagunça”, ele desabafa em um inglês carregado. É o nosso terceiro encontro, depois de uma entrevista em uma lanchonete na região da Avenida Paulista e uma sessão de fotos na Casa do Mancha, na Vila Madalena, durante uma exibição de seus vídeos.

Page 61: Revista +Soma #22

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Page 62: Revista +Soma #22

Quando eu tinha 19 ou 20 anos,

comecei a ler os situacionistas. E

aquilo era uma filosofia de vida,

a arte como um processo do co-

tidiano. Adoro essa expressão, “a

revolução nos ombros da vida co-

tidiana”. Acordo todo dia e pen-

so: “Qual será a minha revolução

hoje?”. É como eu entendo o pro-

cesso criativo. Não ligo para pro-

jetos gigantes, “grandes filmes”,

quero trabalhar todo dia com algo

novo. Para mim, fazer filmes não é

mais importante do que tomar uma

cerveja com você. É algo peque-

no, simples, e todo mundo deveria

fazer. Não filmes, mas algo, criar

algo. Tenho amigos que fazem mú-

sica, outros filmam, outros tiram

fotos, e isso é ótimo. Não pelo re-

sultado, mas pelo processo. Mas eu

estou me desviando do assunto –

qual era a pergunta mesmo?

Quando você pegou numa câmera

pela primeira vez?

Foi complicado, comecei bem tar-

de, aos 20 anos – eu não sabia nada

até então. Comecei também a me

interessar por música, ia a muitos

shows, tive muita sorte por morar

em Paris. Então comecei a pesqui-

sar a relação entre cinema e música,

querendo descobrir quais foram os

documentários mais loucos sobre o tema. Pas-

sei a ter novas ideias, com uma forte crença no

cinema experimental. Comecei fazendo vídeos

bem lo-fi, para amigos, grupos pequenos como

o The National.

diferente entre um músico e um cineasta. Então o

criador do site Blogothéque estava com um pro-

jeto de criar vídeos de música na internet e me

chamou. Desde o início havia essa ideia de fazer

tudo com um take, uma câmera só, e foi assim,

começou há cinco anos.

A qualidade do som desses vídeos é incrível.

Como você faz para mantê-la?

Já fiz filmes suficientes para saber exatamente

do que preciso para conseguir um bom som.

Um som de boa qualidade é a espinha dorsal

do vídeo. Se você tem o som, pode fazer qual-

quer coisa com a câmera, pode girá-la em cima

do tripé, e sempre pode ficar interessante. Mas

se o som for ruim nada do que você fizer com

a câmera vai funcionar. Se alguém quiser saber

que equipamento eu uso pode entrar no meu

site, a lista está toda lá. É simples, às vezes eu

mesmo faço o som e cuido da câmera sozinho.

Você se reúne com os artistas que vai filmar,

cria roteiros?

Às vezes sim, mas muitas vezes tudo é improvi-

sado. Tinha que ser assim no começo em Paris,

porque as bandas ficavam na cidade apenas por

um dia, não havia tempo para nos reunirmos an-

tes. Hoje estou perdendo um pouco disso – os

artistas têm mais tempo para mim, antes não

tinham. Acabei de tomar um café com o Holger

para falar sobre o vídeo deles. Talvez eu já esteja

pensando demais. Não quero transformar isso

num clipe, quero manter essa improvisação. É

complexo manter esse equilíbrio entre planeja-

mento e improviso.

Qual foi a primeira banda que você filmou?

Acho que foi o National, tudo começou ali. Você conhece?

Sim, eu estava vendo A Skin, A Night (documentário dirigi-

do por Moon com as gravações do álbum Boxer, de 2007)

ontem, me preparando para a entrevista.

Isso é embaraçoso. Não consigo ver esse filme hoje – talvez

daqui a uns cinco anos. Acho horrível. Eu não estava pre-

parado para fazer um longa. Se fosse hoje nunca teria feito

daquele jeito. Mas enfim, tudo começou com o National. Eu

não me interessava muito por clipes. Conhecia outras coisas,

ouvia outras coisas, e achava que poderia haver uma relação

C om 31 anos, Mathieu Saura se tornou famoso na inter-

net a partir de seus Take Away Shows, vídeos grava-

dos em um take nas ruas de Paris com artistas como

Mojave 3, The Ex, Xiu Xiu, Vampire Weekend, Vic Ches-

nutt, Animal Collective, Stephen Malkmus e outra centena

de nomes. O sucesso rendeu convites para filmar longas

de grupos como R.E.M., Arcade Fire, Beirut e Efterklang,

além de viagens para os EUA, o Egito, o Sudeste Asiático,

a Argentina e, agora, o Brasil. Ele aportou em São Pau-

lo no final de novembro e seguiu viajando pelo país até

março, quando foi para a Colômbia. Passando por Porto

Alegre, Rio de Janeiro, Paraty, Ouro Preto, Salvador, Bra-

sília, Recife, São Luís e Belém, fez vídeos de funk carioca

e tecnobrega, filmou Dona Iná, Tom Zé, Elza Soares, Luli-

na, Jards Macalé, Naná Vasconcelos, Orquestra Imperial e

mais outra dezena de artistas.

Nas suas contas, apenas em 2010 ele visitou 16 países e

fez mais de 50 vídeos. Nômade por opção, já começa a

planejar uma viagem para a Indonésia. “Eu não recomendo

essa vida para os outros”, ele brinca durante a entrevista.

Falando sobre viver sem dinheiro, suas inspirações situa-

cionistas, tradições orais e o segredo para conseguir um

som perfeito, ele faz seu trabalho parecer fácil – mas é só

botar os olhos em um de seus vídeos para saber que nada

é assim tão simples. 1

Como começou o seu trabalho? Quando você pegou

pela primeira vez numa câmera?

Comecei a mexer com cinema depois de terminar a escola,

tinha uns 18 anos. Fui parar na Cinemascope, uma univer-

sidade de cinema, meio que por acidente. Não sabia nada

sobre cinema, nunca tinha encostado em uma câmera. Um

ano depois eu estava tirando fotos na rua, aprendendo a

olhar de outro jeito para as coisas – é como se estivessem

nos ensinando a viver. Tínhamos fotógrafos incríveis nos en-

sinando, e isso me influenciou muito. A filosofia que eu sigo

é “você faz e depois você cria” (“you make and then you

fake”). Você não escreve dezenas de páginas de roteiro e

fica tentando captar dinheiro, enrolando. Primeiro filme al-

guma coisa, e depois descubra o que você fez e como seu

filme pode crescer a partir daquilo.

“ Pa ra m i m , f a z e r f i l m e s n ã o é ma i s i m p o r t a n t e d o q u e t o ma r u ma c e r v e j a c o m v o c ê . É a l g o p e q u e n o, s i m p l e s, e t o d o m u n d o d e v e r i a f a z e r. N ã o f i l m e s, m a s a l g o, c r i a r a l g o. Te n h o am i g o s q u e f a z e m mú s i c a , o u t r o s f i l m a m , o u t r o s t i r a m f o t o s, e i s s o é ó t i m o. ”

62

Page 63: Revista +Soma #22

63

Page 64: Revista +Soma #22

64

As bandas não se preocupam em ensaiar, deixar

tudo redondinho?

Não, o que importa é o momento. No começo eu

convidava as bandas para tocar na rua, e mui-

tas vezes era algo que elas nunca haviam feito.

Fiz um vídeo com os Shins uma vez, e foi ótimo,

eles eram bons pra caralho, todos em sintonia.

Tem uma diferença crucial entre as bandas ame-

ricanas e, sei lá, as francesas. Os americanos são

muito ensaiados, é sempre perfeito. Foi “1, 2, 3,

4, BAM!”, e eles destruíram. Depois fui conver-

sar com o James Mercer (líder do grupo) e falei:

“Nossa, foi ótimo. Vocês sempre fazem isso?”. E

ele: “Não, é a primeira vez. Ficou bom?” (risos).

Bons músicos sempre podem fazer isso.

Li no seu blog um post com um vídeo do [ar-

tista cambojano] Kong Nay, em que você dizia

que estava começando a repensar a forma de

filmar artistas tradicionais e que queria abrir

um selo. Qual é a diferença entre filmar uma

banda de rock e um músico tradicional?

A diferença é que o artista tradicional normal-

mente não fala a minha língua. E não sabe quem

eu sou. E não faz a mínima ideia de que eu que-

ro fazer um filme. E ele não se importa. Só se

importa em ganhar algum dinheiro. Existe essa

ideia totalmente ingênua – que eu descobri que

era besteira quando visitei o Egito pela primei-

ra vez – de que esses músicos ficam tocando

o tempo todo, que faz parte do cotidiano das

pessoas. Isso até é verdade, mas ganhar dinhei-

ro é mais importante ainda. Nunca encontrei na

Europa ou nos EUA algum músico que, no fim

de uma gravação, me perguntasse: “E então,

quanto eu vou receber?”. No Egito era impossí-

vel achar algum músico que concordasse em ser

filmado sem ser pago. É por isso que eu quero

criar um selo, para encontrar uma maneira de

pagar esses músicos tradicionais.

Tenho me interessado muito por gravações de

campo, todas aquelas coisas do Alan Lomax, e

também por cinema etnográfico, Jean Rouch,

sou um grande fã dele. Ele levantou a grande

pergunta logo no início disso tudo. A questão

é: qual é o tipo de relacionamentos que nós

criamos com nossos pesquisados quando os

filmamos? Ele estava vivendo na África na épo-

ca, e se via como parte da ação, não estava

lá documentando de uma maneira totalmente

objetiva. Isso é algo que eu defendo muito.

Acho que o século XX foi o século em que as

coisas foram arquivadas, foram criados arqui-

vos dessas culturas que estavam desaparecen-

do. O trabalho do Alan Lomax é incrível, mas

acho que chegamos a um novo paradigma. Já

arquivamos demais. Eu deveria arquivar essas

performances e colocá-las em uma porra de

museu ou tentar mexer com elas, fazer algo

novo? Então meu dilema agora é como filmar

de uma maneira objetiva colocando a minha

subjetividade nisso, tentando manter essas

culturas vivas sem respeitá-las, experimen-

tando com elas. Quando estive no Cairo não

consegui fazer isso, não tinha tempo suficiente.

Filmei momentos de música ritual, que é uma

música incrível, bizarra. E, mesmo sendo par-

te da cerimônia, afinal eles estavam dançando

para mim, acho que não consegui transformar

aquilo em algo novo. Quero fazer algo híbrido,

que é o que tento fazer também nos Take Away

Shows, algo que fica entre o cinema e a música.

Quero fugir dos gêneros. Assim que você colo-

ca as coisas em gêneros, você acaba com elas.

Talvez nós não precisemos arquivar tudo, “sal-

var” essas tradições orais. Antes da invenção do

fonógrafo muitas culturas nasceram e morreram

e ficaram sem registro. Por que não deixar essas

culturas contemporâneas seguirem seu rumo

natural, desaparecendo também?

Eu concordo com essa ideia de morte, de que as

coisas desaparecem. Vivemos numa cultura que

tenta manter tudo vivo, mas nada mais está vivo.

Nada mais desaparece, mas também nada mais

é criado. É um paradoxo terrível. Eu faço o meu

melhor para tentar superá-lo.

E o que te trouxe ao Brasil?

Eu vim para cá para dar essa oficina, e devo ficar

alguns meses. Quero explorar o país. Estou em

um ótimo momento da minha vida, tenho tem-

po, não tenho pressão nenhuma. Fico impressio-

nado com essa cultura extremamente diversa

que vocês têm, e o momento é ótimo, com mui-

tas coisas acontecendo. De certa forma estou

voltando às raízes daquilo que faço. Na minha

oficina eu estava falando para os alunos: filmes

não são nada, são inúteis. A arte é inútil. É um

pretexto para fazer outra coisa. Para mim é um

pretexto para viajar, conhecer outras pessoas.

Você se definiu como um nômade – quando

decidiu isso?

Como a maior parte das decisões da minha vida,

foi um acidente. Há cinco anos, quando comecei

a ver os novos equipamentos e os novos com-

putadores, eu pensei: “Meu Deus, talvez um dia

um cara possa viajar por todo o mundo fazendo

filmes. Isso vai ser maravilhoso, e eu vou querer

ver o que esse cara vai fazer!” (risos). Bom, eu

estava cada vez mais na estrada, sempre viajan-

do, e um dia pensei: “Bem que eu poderia viver

na estrada”. É cansativo, é difícil, mas é incrível.

E como você consegue captar dinheiro para os

seus projetos?

É uma questão interessante, porque eu não penso

muito nisso. Nós começamos os Take Away Shows

sem dinheiro algum. E foi uma ótima ideia. Não

havia nenhum dinheiro envolvido, então também

não havia nenhum contrato. Podíamos fazer o que

quiséssemos com os filmes. Às vezes um empre-

sário ligava: “Que porra é essa? Por que meu artis-

ta está nesse vídeo?”. E a gente respondia: “Bicho,

cala a boca. Quanto dinheiro você colocou nisso?”.

O projeto cresceu cada vez mais, e tive a chance

de fazer coisas maiores, mais longas – como os

filmes do Arcade Fire, do R.E.M. – ali havia dinhei-

ro envolvido. Algumas empresas começaram a me

convidar para projetos patrocinados. Eu aceitei

um e foi um desastre. Então só faço o que eu que-

ro agora, sem dinheiro, só pelo prazer. De onde eu

tiro dinheiro? Fazendo palestras, participando de

conferências, oficinas. E isso me dá uma liberdade

incrível. Quero experimentar o máximo possível,

um cinema faça-você-mesmo, lo-fi, feito na estra-

da. Gosto de ver a câmera apenas como uma fer-

ramenta, uma coisinha que fica entre mim e você.

Não tenho dinheiro, mas também não tenho mui-

tas despesas. Se estou com fome alguém acaba

marcando uma entrevista e paga o meu almoço

(risos). Mas eu tenho muita sorte, não recomendo

essa vida para os outros. 3

2SAIBA MAIS

vincentmoon.com

vimeo.com/channels/takeawayshows

Page 65: Revista +Soma #22

65

Page 66: Revista +Soma #22

66

POR NATÁLIA LUCKI E MARINA MANTOVANINI . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Com referências que vão de Mario

Bros. a Klimt, JOÃO LELO surge como uma lufada de ar fresco na cena carioca.

Iniciado no desenho por influência dos pais,

se envolveu posteriormente com telas e escultura, além das habituais paredes grafitadas pelo Rio de Janeiro.

Consciente de que o mercado oferece possibilidades de conduzir sua carreira

sem imposições, acaba de entrar no casting de

artistas da Choque Cultural. Por conta de sua formação como designer, a criatividade pictórica de João é baseada no universo vetorial, e suas pinceladas criam personagens pop em cores fortes como amarelo e vermelho. 1

O graffiti apareceu no Rio de Janeiro um bom tempo depois de

São Paulo, muito pela tradição que o pixo já tinha na cidade.

Fale um pouco sobre essa nova cena de street art no Rio.

São Paulo tem graffiti desde os anos 80. No Rio chegou

somente nos anos 90. Eu já sou da segunda geração, comecei

a pintar em 2000/2001. No final dos anos 80 teve uma

pequena cena de estêncil que morreu meio rápido, e no final

dos 90 começou o graffiti. O reconhecimento tem acontecido

faz uns dois anos, mas ainda tem preconceito, ainda não

aceitam o graffiti. O próprio pessoal que faz graffiti não se

posicionava como artista. Agora os caras já começam a pensar

numa produção de estúdio, sem ter que repetir o que se faz

na rua. Daqui a uns dois ou três anos vai ter uma cena bem

legal de artistas cariocas.

Tem lugar pra expor no Rio, galeria especializada, ou vocês é

que estão criando?

Está sendo criado. Não são os artistas, mas gente que está

no nosso meio, da nossa geração. Tem a La Cucaracha e a

Homegrown, que abrem espaço pra exposições e eventos

não só de graffiti, mas de tatuadores, lançamento de livros,

fotografias, calendários. É uma coisa bem DIY, ainda não está

virando muito, mas é feito de coração. E agora tem algumas

galerias que estão começando a abraçar isso.

Foi você quem chegou até os caras da Choque?

Foi uma coisa meio mútua. É um processo, você não

entra lá e faz uma exposição, eles fazem um trabalho

com você. No Rio ainda é um comércio, o curador

pega você, faz uma exposição, vendeu, acabou,

morreu. Na Choque, eles apoiam seus projetos. E eu

tenho muitas ideias de projetos pra realizar.

Pode contar?

A ideia é que em 2012, com a minha exposição,

eu faça a abertura com um bloco de carnaval. Vou

desenvolver tudo, carro alegórico, as vestimentas, os

detalhes todos. É uma ideia meio doida, mas os caras

sentam, escutam e ajudam a fazer. Isso é uma coisa

que não tive no Rio.

Você já tinha relação com o pessoal

de São Paulo?

Comecei a me interessar na parada de sticker

e de pôster, e por acaso vim pra São Paulo. Era

2000 ou 2001, e vi que aqui já tinha uma cena de

pôster, que eram os caras da SHN e Faca. Voltei

pro Rio, comecei a fazer pôsteres e adesivos e

conheci o pessoal da SHN. O Eduardo [Saretta]

ficou um tempo no Rio pra fazer uma pesquisa e

a gente ficou amigo. Foi ele que me falou de um

pessoal querendo fazer uma galeria, e era a Choque

Cultural. Na época, os caras não sabiam no que ia

dar. Eles já tinham algum conhecimento, porque

a Mariana é filha do Aldemir Martins, mas foram

descobrindo e criaram um modelo de galeria que

pra mim é um dos mais legais.

O lance da arte veio por causa dos seus pais, você

teve uma formação artística em casa. Quanto você

acha que isso influenciou seu trabalho?

Sou formado em Desenho Industrial, mas tenho

uma base de arte. Meus pais são arquitetos, mas

sempre pintaram. Sempre teve muito livro de arte

e quadrinhos em casa. Eu desenho desde sempre.

Desenhava com meu pai. Quando eu estava um

pouco mais velho, meu pai me colocava pra ajudar

ele a montar maquete. Quando fui fazer o básico

de desenho na faculdade, já tinha feito isso 18 anos

antes. Meu trabalho de arte é autodidata, a maneira

que eu uso o material muitas vezes não é a certa.

Page 67: Revista +Soma #22

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Page 68: Revista +Soma #22

68

Page 69: Revista +Soma #22

69

Seu desenho é bem vetorial. Você acha que

a falta de um estudo técnico influencia na

sua produção?

Meu trabalho é muito chapado. São traços

muito definidos. Acho que o detalhe no meu

trabalho fica nessa parte de padrões. Eu não

trabalho com volumes. Meu primeiro curso de

modelo vivo foi na faculdade. Daí eu já tinha

meu estilo. Na verdade, sou um pouco contra

curso de desenho por isso, você acaba sendo

imposto a desenhar como o professor. Acho

legal o cara ter técnica, mas o legal é ter o

estilo dele, o que é mais difícil.

Na hora que você sai do 2D e vai pro

3D, precisa ter um pensamento espacial

completamente diferente. Como você está

trabalhando nisso?

Eu fazia uma exposição, e sempre gostava de

pintar a parede. Daí eu fiz uma em Belo Horizonte

em que pintei a parede e queria fazer umas

árvores, mas, em vez de pintar, montei com umas

caixas de madeira. Aí, na [exposição] Transfer, fiz

uma pintura e coloquei umas peças em volume,

uma brincadeira com as linhas no espaço.

Na verdade, eu ia a muita exposição e tinha

preconceito com instalação. Hoje em dia é o que

eu mais olho. Fui à Bienal e o que eu mais queria

ver eram as instalações, vou e fico olhando,

reparo até no material que o cara está usando.

Começou assim. E da instalação já parti pra

escultura. Mas não sei se chamaria de escultura, é

mais montar umas peças, voltando até um pouco

pro meu estudo básico de design de produto.

Você passou por linguagens completamente

diferentes. Saiu do desenho, passou pela área

acadêmica, o graffiti e agora as instalações.

Como vê a evolução do seu trabalho?

São linguagens diferentes, mas no final tudo

tem a ver. No começo, eu me ligava muito em

composição, diagramação. Isso me preocupava

muito no desenho, mas quando fui pra rua deixei

de lado. Fazia um desenho muito solto e agora

meio que estou voltando pra isso, meu trabalho

agora tem uma preocupação mais geométrica,

por mais que sejam personagens bem cartum.

Seus trabalhos têm uma paleta de amarelo

muito forte. Isso tem algum motivo?

Acho que tenho umas fases de cor. Montei

o meu site agora e, quando botei todos os

thumbnails dos trabalhos no portfólio, as

cores são amarelo, vermelho e marrom. Agora

tô começando a usar mais azul, é uma coisa

também do design, você pensa numa paleta de

cores. Quando fecho uma paleta de cor, tenho

uma enorme dificuldade de incluir outra.

Você era viciado em videogame, e seus

personagens são pura arte pop. Como você

desenvolveu esse trabalho?

Quando comecei a desenhar, as minhas

referências eram os quadrinhos. Eu não

fazia aula de desenho, mas jogava muito

videogame. E comecei copiando, lembro que

meus primeiros personagens do graffiti eram

umas coisas que eu fazia no colégio, uns caras

vestidos de coelho. Eu jogava Super Mario 3

e, quando as pessoas me perguntam minhas

referências, eu falo: Super Mario.

Mas você tem outras referências?

Sempre gostei muito do Schiling e do Klimt,

por causa dos livros de art nouveau que meu

pai tinha em casa. Quadrinhos dos anos 70,

as mulheres que os caras desenhavam. Meu

primeiro contato com o graffti foi com os caras

que faziam graffiti de letra, mais tradicional. Eu

experimentei, mas não foi uma coisa que bateu

em mim. Daí um amigo meu me trouxe um livro

do Futura (um dos principais nomes do graffiti

nova-iorquino). Quando vi aquilo, já sabia que

o cara fazia uns desenhos, mas não graffiti, foi

a primeira vez que bateu. Fiquei muito louco

com o trabalho dele.

Mas como pegou a lata pra pintar mesmo?

Quando você mergulhou nisso?

Tem um amigo meu, o Ipek, que faz um graffiti

mais de letra. Liguei pra ele e pedi pra me

chamar quando fosse pintar na rua. Ele fazia

as letras dele e eu ainda estava aprendendo,

fazendo uns personagens toscos. Com o

tempo fui pegando o jeito.

Você curte pintar com mais gente ou prefere

trabalhar sozinho?

Gosto de pintar com mais gente, mas são

poucas as pessoas com quem gosto de

trabalhar. As pessoas não sabem interagir,

tem muito mural de graffiti com trabalhos

separados. Isso pra mim sempre foi sem graça.

As pessoas com quem eu pinto mais, a gente

se encontra um dia antes, faz um rabisco juntos

ou às vezes nem rabisca, mas chega num lugar

e pensa no desenho juntos.

Você ainda faz bastante coisa na rua?

Nesses dois últimos anos tenho me dedicado

muito ao meu trabalho autoral. Pintei bastante

tela, fiz exposição em Washington, no Brasil.

Daí pintei menos na rua. Se você começa a

pintar muito, chega uma fase que nem pensa

mais no que está fazendo. Às vezes acho legal

parar. Não pinto, não desenho, fico só indo a

livrarias, sem pensar em nada. 3

“Gosto de pintar com mais gente, mas são poucas as pessoas com quem gosto de trabalhar. As pessoas não sabem interagir, tem muito mural de graffiti com trabalhos separados. Isso pra mim sempre foi sem graça.”

2SAIBA MAIS

flickr.com/photos/joaolelo

Page 70: Revista +Soma #22

70

“ S O M O S P A R T E D A A N T I G A T R A D I Ç Ã O D E f A Z E R M Ú S I C A”

Phil MintonHan Bennink&

POR RAQUEL SETZ . FOTOS FERNANDO MARTINS FERREIRA

Faltavam poucos minutos para que o baterista holandês Han Bennink e o cantor inglês Phil Minton subissem ao palco do Centro Cultural São Paulo, quando um segurança do local apareceu com Minton. “Este rapaz está dizendo que é músico, mas eu nunca ouvi falar nele”, disse ele, um tanto nervoso, pensando que o “ra-paz” de 70 anos de idade e mais de 50 de carreira estava querendo entrar clan-destinamente no recinto. A confusão foi resolvida, mas o segurança foi embora ainda com expressão de desconfiança no rosto, provavelmente achando estranho aquele senhor descabelado ser “artista”. A cena, ainda que absurda, representa bem a posição que Phil Minton e Han Bennink ocupam: ambos são revolucionários da música do século XX, mas você não irá vê-los na capa de revistas badaladas.

N ascidos durante a Segunda Guerra Mundial, começaram no jazz, mas desenvolveram uma lin-

guagem radical de improvisação que segue por um viés diferente daquilo que se costuma en-

tender por free jazz e chega a questionar os limites do próprio conceito de música. Assim como

os compositores eruditos contemporâneos, Han e Phil frequentemente não trabalham com melodia, har-

monia e ritmo. No show conjunto dos dois no CCSP, em 11 de dezembro de 2010, Minton passou longe dos

famigerados “daba daba da” dos improvisadores vocais do jazz. Durante os 30 minutos da apresentação,

produziu uma gama de sons nada convencionais, que incluíam gritos e grunhidos guturais. Han Bennink

tocou com apenas uma peça da bateria, a caixa – embora o chão, o banco e até as solas dos sapatos tenham

se convertido em instrumentos de percussão ao longo do show. Na manhã seguinte, eles conversaram com

a Soma no Parque do Trianon, de forma tão eloquente quanto a música que apresentaram no palco. 1

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Havia um elemento visual bem forte no show

de ontem: o jeito como Phil mexe o corpo e

as coisas divertidas que Han faz.

PHIL . Não tenho consciência da teatralidade.

Por coincidência, preciso fazer assim para pro-

duzir os ruídos. Não presto atenção no público.

HAN . Você senta e tenta ser o mais normal

possível. Eu reduzi meu kit

apenas à caixa, mas às vezes

não estou a fim de ficar sen-

tado atrás da caixa. E por que

não tocar a mesma coisa, só

que no chão? Posso deitar, to-

car um ritmo e depois me sen-

tar de novo. É outro material, e

eu prefiro isso a ter as coisas

comuns de um kit de bateria.

Acho que voz e caixa juntos é

o mais limitado que você pode

ter. E pra mim foi perfeito. Mui-

to obrigado, Phil.

PHIL . Obrigado, Han. São os

dois instrumentos básicos, com

os quais começamos. As Pesso-

as começaram a cantar antes

de construir pianos Steinway ou

grandes kits de bateria. As pes-

soas batucavam nas coisas e

cantavam há milhares de anos.

Somos apenas parte da antiga

tradição de fazer música.

Como vocês se interessaram

pela música improvisada?

PHIL . É difícil lembrar das coisas (risos). É uma

resposta engraçada, mas sincera: não gosto de

decorar o material [que vou tocar]. Eu faço

isso, mas prefiro ser meu próprio compositor.

Me interessei ainda garoto. Quando eu tinha 15

ou 16 anos, alguns amigos que estudavam Ar-

tes me mostraram quadros de Jackson Pollock.

Fiquei interessado e tentei, embora não sou-

besse como, fazer música que parecesse um

quadro do Jackson Pollock.

Nesse momento você percebeu que cantar do

modo tradicional não era o bastante?

PHIL . É, não era pra mim. É possível fazer tantas

coisas com a voz. É um instrumento definitivo, é

infinito. Me interesso por isso há 40 anos.

E você?

HAN . De certo modo, sou como o Phil. Quando

jovem, eu era baterista de jazz – o que ainda sou –

e toquei com vários músicos famosos. Mas quan-

do eu entrei na escola de artes em 1960, me in-

teressei muito por Marcel Duchamp, Picabia, Man

Ray, Kurt Schwitters. Eu trabalhava nessa direção

e passava cada vez menos tempo tocando. E hoje

eu improviso totalmente. Eu tenho que improvi-

sar, porque não sei ler partitura. Sou cego para

notação musical, pra mim é um monte de cocôs

voadores em uma folha de papel (risos). Houve

uma época na Holanda em que todos tínhamos

enormes kits de bateria. Aí eu disse para mim

mesmo: “Se você quer

mudar alguma coisa, deve

voltar pro básico”. Hoje eu

tento tocar apenas a caixa.

Mas o seu ponto de vista,

como espectadora, é com-

pletamente diferente. On-

tem uma garota veio até

mim e disse que o show a

fez lembrar de uma peça

de Samuel Beckett chama-

da Fim de Partida. Gostei

muito, achei um elogio. Mú-

sica improvisada é como o

trânsito de São Paulo. Você

tem que sobreviver e não é

possível atravessar a rua

exatamente do mesmo jei-

to todo dia. Mesmo que vá

de um mesmo lugar para o

outro, pela mesma rua, ain-

da assim você improvisa.

No campo da música im-

provisada existe o con-

ceito de “erro” ou tudo é

possível?

PHIL . Podemos cometer erros, erros estéti-

cos pessoais. Às vezes eu fico “não devia ter

feito isso”.

HAN . Claro, faz parte do jogo.

PHIL . Você disse “desculpa” na

noite passada! (risos)

HAN . Mas eu não estava falando

sério (risos). Usei esse “desculpa”

como material. As pessoas, até no

dia-a-dia, se copiam muito. É difícil

ver personalidades. E jazz e músi-

ca improvisada são isso. Jazz, para

mim, é a pessoa por trás da músi-

ca: Louis Armstrong é jazz, Sonny

Rollins é jazz. Você fala o nome e

já sabe o estilo. Há muitos instru-

mentistas que sabem tocar as escalas do Coltra-

ne, tocam até de ponta-cabeça. Não estou inte-

ressado nessa bobagem. É como arte. Por que

deveríamos ter um segundo Rembrandt ou um

segundo Van Gogh?

PHIL . Milhares de John Coltranes pelo mundo…

HAN . (exaltado) Milhares de John Contranes, mi-

lhões de Charlie Parkers! Não é culpa do Charlie

Parker, é nossa culpa. Você deve aprender com

eles, mas nunca copiar. Nunca vou tocar como o

velho Joe Johnson – embora eu quisesse – e como

Kenny Clarke, porque eu não nasci onde ele nas-

ceu. Gosto de tocar partindo da minha bagagem

cultural. Sei improvisar muito bem em música, mas

no dia-a-dia sou uma negação. Não sei mexer no

computador, sou nervoso, sou cego. Adoro este

ambiente, mas ter que fazer xixi num lugar como

aquele (se referindo ao banheiro do boteco na

Paulista onde paramos para uma cerveja antes da

entrevista), meu Deus! No primeiro dia, me tran-

quei no hotel para não ver tudo, é muita informa-

ção. Eu vejo demais. E eu falo demais, mas é por-

que eu fui muito gago durante 24 anos e tenho que

correr atrás do tempo perdido. Desculpe por isso.

PHIL . Você gaguejava? Hoje não há nem sinal disso.

HAN . Não, mas quando eu fico nervoso e em-

polgado, tenho de novo. Mas acho charmoso

agora que sou um senhor. Moças jovens vêm

ajudar. (risos)

Para algumas pessoas, jazz são os standards do

“real book”, mas esse é um ponto de vista com-

pletamente anacrônico.

HAN . Pra mim isso não é jazz, é uma cópia de

jazz. Hoje na Holanda há uma máquina de café,

mas aquilo não é café, é uma porra duma bebida

feita com café! Lembra vagamente café. Então

eles tocam o que já foi inventado por outra pes-

soa. É idiota, mas muitas pessoas tomam isso

como certo. Eu acho um absurdo. Na Europa,

há milhões de cópias de música brasileira, bossa

nova. Mas a verdadeira é difícil de achar. Prefiro

botar minha bateria em uma tempestade, com

microfones de contato pra que se possa ouvir,

a fazer o “pling ploing ploing” que a maioria faz.

“MÚSICA IMPROVISADA É COMO O TRÂNSITO

DE SÃO PAULO. Você tem que sobreviver e não é possível atravessar a rua exatamente do mesmo jeito todo dia. Mesmo que vá de um mesmo lugar para o outro, pela mesma rua, ainda assim você improvisa.”

HAN BENNINK

“QUANDO EU TINHA 15 OU 16 ANOS,

alguns amigos que estudavam Artes me mostraram quadros de Jackson Pollock. Fiquei interessado e tentei, embora não soubesse como, fazer música que parecesse um quadro do Jackson Pollock.”

PHIL MINTON

Page 74: Revista +Soma #22

Às vezes, nesse tipo de música, parece que tudo

virou caos, que ritmo, harmonia e melodia desa-

pareceram. Mas aí todos da banda começam a

tocar uma mesma melodia ao mesmo tempo e

então você percebe “ah, não era tão caótico”.

Como isso funciona?

PHIL . Ouvimos um ao outro o tempo todo. Eu

me inspiro no Han e espero que ele se inspire em

mim. Trabalhamos juntos e criamos uma forma.

É quase impossível dizer… Na música erudita há

os ideais clássicos de sinfonia perfeita, sonata

perfeita, mas não viemos dessa tradição. Nós

dois viemos do jazz. Quando jovem, eu tocava

trompete e achava uma irresponsabilidade ten-

tar tocar como Miles Davis. Ouvindo o jazz desde

os anos 20 até o fim dos anos 50 – que foi quan-

do eu comecei a ouvir intensamente – dá pra ver

toda a evolução. Era a música do povo, em que

podíamos criar nossas próprias regras.

Sobre o Feral Choir (projeto de Phil Minton em

que ele dá uma série de workshops para can-

tores não-profissionais e no fim faz uma apre-

sentação com eles): você disse que qualquer um

que respire é capaz de produzir sons que deem

uma contribuição estética positiva. Você acredi-

ta que a vontade de se expressar é mais impor-

tante do que ter técnica ou ter um dom natural?

PHIL . As pessoas que se envolvem não são ob-

cecadas pela voz como eu sou. A maioria das

pessoas usa a voz para passar informações.

Você pode passar informações do jeito cha-

to, como estou fazendo agora, mas há outras

possibilidades. A palavra “não” pode significar

tantas coisas. (Começa a falar “no” com várias

intenções diferentes) Há todas essas emoções

em apenas um pequeno som, é possível achar

tantos significados diferentes. Acho que a lin-

guagem é um jeito inadequado de se comunicar,

acho que seríamos muito mais felizes se fizés-

semos… tipo, fui com o Han pedir leite hoje de

manhã e ele disse (diz a palavra “milk” do jeito

mais estranho possível). E ele conseguiu o leite,

todos ficaram felizes, nos comunicamos bem.

Li uma entrevista em que você usa a expressão

“sons positivos”. Pode me explicar o que é?

PHIL . Acredito que a maioria dos sons se encai-

xam na categoria de positivos. Há um som que

eu tento não usar, mas como eu fumo às vezes

acontece de... (tosse). Não acho que seja uma

bom som. É um som negativo. Também não gos-

to de sons de fúria (dá um berro de arrebentar

os tímpanos). Não gosto disso.

Mas você usa.

PHIL . Tento usar de um jeito musical. Nunca es-

tou furioso quando canto. É a pior coisa para a

voz, porque tensiona tudo.

Vocês dois tocaram com Peter Brötzmann. Há até

uma música pra você (“Music for Han Bennink”,

do clássico Machine Gun, de 1968). Ele é uma in-

fluência, aprenderam algo tocando com ele?

HAN . De jeito nenhum! Você tá brincando comi-

go?! Peter queria um baterista, era 1968, e Willem

Breuker (saxofonista do Peter Brötzmann Octet),

que morreu recentemente, disse para ele: “Você

deveria tocar com o Han Bennink”. Naquela épo-

ca, tocávamos com dois bateristas: Sven-Åke

Johansson e eu. O famoso disco do Brötzmann,

Machine Gun, foi feito e

todo mundo fala sobre isso.

Para mim, foram as piores

circunstâncias para tocar.

Começa que eu não con-

seguia ouvir ninguém. Uma

vez, fizemos um show em

Bremen em uma yurt. Você

sabe o que é uma yurt? É

uma tenda onde as pessoas

vivem na porra da Mongó-

lia, toda feita de cobertores.

Eu não ouvia nada! A cena

pop escolheu aquele disco

como algo bem Captain

Beefheart, mas o Peter é

muito diferente. Encontrei

com ele recentemente em

Melbourne, tocamos juntos

de vez em quando e eu gos-

to muito dos quadros dele,

ele é um ótimo pintor. Mas

aprender com ele? De jeito

nenhum, baby!

PHIL . Ele é um ótimo espírito, mas não apren-

di muita coisa com ele além de resistência. Ele

consegue tocar por um período bem longo.

HAN . Tínhamos [o saxofonista] Evan Parker, [o

trombonista] Paul Rutherford na banda. Eles to-

cavam solos bem longos, e se você é um dos ou

o único baterista, eles gostam de um estilo em

que você os sustenta o tempo todo e…

PHIL . (interrompendo) Free jazz.

HAN . (irônico) É, isso é free jazz. É o nome

mais errado que já existiu porque não há nada

“free” no mundo.

Por quê?

HAN . O que é “free jazz”? Significa que as pes-

soas não precisam pagar pelo show (em inglês,

“free” significa tanto “livre” como “grátis”)?

Ou que os músicos não recebem? O que sig-

nifica “liberdade” pra você? Acho que é um

nome errado. Nós improvisamos. O nome que

[o pianista] Misha Mengelberg inventou, “com-

posição instantânea”, é ótimo, muito melhor

que “free music”.

PHIL . Houve um período no free jazz em que

não havia limites, a banda toda tocava ao

mesmo tempo.

HAN . É meio bagunçado, pra mim.

PHIL . Mas evoluiu, você não ouve muito isso

atualmente. Peter Brötzmann continua fazendo…

HAN . A coisa boa sobre Peter é que ele não

está longe de ser um imitador do Coltrane, mas

basta ele tocar uma nota para você saber que é

o Brötzmann. É exatamente o que eu gosto: não

é jazz, não é free music, é música criada por uma

pessoa. É como caligrafia.

Me contaram que você

adorou as pixações de

São Paulo.

HAN . Muito, muito. Acho

que, se algo é novo, você de-

veria tentar mantê-lo o mais

claro possível. Na Holanda,

os graffitis são nonsense

psicodélico, pessoas explo-

dindo, cores horrorosas. O

daqui é um retorno à cali-

grafia, à caligrafia zen, ape-

sar de ser feito com spray.

Tem a ver com a coisa de

tocar só com a caixa.

HAN . Totalmente. Ouvi que

as coisas que vocês fazem

aqui são completamente di-

ferentes do que eles fazem

no Rio. É incrível! Dá pra ver

que vem de São Paulo. Jazz

também deveria ser assim e

já foi assim: havia a música de New Orleans, de-

pois todo mundo se mudou para Chicago.

Acho que é isso. Obrigada e obrigada pelo show

também, foi incrível.

HAN . Também fiquei muito satisfeito. Porque

nunca se sabe, há sempre um risco. Claro que

há ferramentas suficientes para fazer algo, mas

devemos realmente nos conectar. Sei quando

funciona: as pessoas estão quietas ao redor de

você. Você é o senhor de tudo. É incrível alcan-

çar esse ponto. 3

“QUANDO JOVEM, EU TOCAVA TROMPETE

e achava uma irresponsabilidade tentar tocar como Miles Davis. Ouvindo o jazz desde os anos 20 até o fim dos anos 50, dá pra ver toda a evolução. Era a música do povo, em que podíamos criar nossas próprias regras.”

PHIL MINTON

2SAIBA MAIS

philminton.co.uk

hanbennink.com

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cagebeA GENTE BRASILEIRA DO

Um dos grupos mais propositivos do rap brasileiro, o CAGEBE está com disco novo no forno, novamente pelo selo Equilíbrio, de KL Jay. Ao contrário do disco de estreia do Cada Gênio do Beco – agora um trio com Cezar Sotaque, Shirley Casa Verde e DJ Paulinho –, O Vilarejo tem batidas de uma série de produtores. 1

Ouvi no primeiro disco de vocês e acho que

nesse clipe novo, “Oba! Clareou”, também tem

isso: é um rap com música brasileira, mas não

do jeito que costuma ser, de misturar com sam-

ba ou usar sample de bossa nova.

Desde o primeiro disco a gente já falava bas-

tante nisso. Apesar de a gente saber que a

raiz do rap não nasce no Brasil, o Brasil incor-

pora muito isso, ele vem e começa a brotar

aqui. Acho que é preciso criar uma identida-

de, e a gente busca isso. Por mais que usemos

um sample gringo, temos essa preocupação

de fazer algo com a cara daqui. E gostaria de

explorar mais ainda a música brasileira. Falta

oportunidade, a dificuldade é por causa das

editoras. Não que não seja justo [pagar], ló-

gico que é, mas acho que o caminho deveria

ser mais aberto, pra podermos fazer uma re-

leitura da música brasileira e isso poder sair

do nosso país – em português mesmo. Nunca

diga nunca, mas acho que não faria uma mú-

sica em inglês pra tocar lá fora, porque não

vejo eles fazendo isso. Ninguém vem pra cá

e canta em português, mas sempre pegam os

samples brasileiros. Lógico, não dá pra com-

parar, a realidade deles é outra, vários são

milionários, a gente é trabalhador. Mas nossa

procura é a brasilidade.

Como tá de show?

O rap mudou muito. Muitos grupos não exis-

tem mais, outros surgiram, muitos produtores

de eventos não trabalham mais, outros estão aí.

Com essa entrada do funk, principalmente em

São Paulo, a gente percebe que perdeu espaço.

Não tô dizendo que o funk é culpado disso, ele

ocupa um espaço deixado pela gente. No inte-

rior ainda estão rolando umas coisas, e em ou-

tros estados também. São Paulo mudou muito.

Tem alguns eventos de rua, mas não tanto como

tinha por volta do ano 2000 – talvez com pouca

qualidade, mas acontecia.

Mas a saída não seria fazer eventos junto?

O diálogo precisa existir. O rap é música, inde-

pendente de estar junto com funk, com samba ou

sertanejo. Não sei o que impede, se a gente é tão

conservador que não quer interagir, ou os investi-

dores de outros estilos não querem o rap. Público

existe. A grande mídia nomeia um cara – no caso

o Marcelo D2. Mas tem muito mais gente. Quali-

dade tem. Reduziu o número de grupos, mas teve

um ganho de qualidade – tem muito grupo bom.

Você vai num baile de funk, o que rola? Funk

feito no Brasil. Num baile de rap, o que toca?

Rap gringo. Não que não tenha que tocar, mas a

gente desvaloriza o nosso, o que temos de bom.

Poucos tocam rap brasileiro. KL Jay, Cia, King, Mar-

co, eles tocam. Mas não temos uma casa onde toca

rap brasileiro. O Eminem acabou de tocar aqui,

imagina se ele quer conhecer o rap brasileiro. Tem

uma casa onde toca rap brasileiro, uma referência?

Não tem. Se ele for num baile, vai ouvir música

dele. Ficam com esse papo: fulano faz música pra

pista, fulano faz música pra periferia. Isso é boba-

gem, quem decide é o público. Só que, se ele não

escutar, como vai saber se é bom ou ruim? 3

Foi mais difícil fazer isso nesse disco novo,

por trabalharem com mais de um produtor em

vez de um só?

Quando tem mais gente trabalhando, tem mais

ideias. Mas procuramos ter esse cuidado – mes-

mo que o produtor mande algo criado por ele,

a gente tenta criar junto. Não pegamos uma ba-

tida e cantamos em cima. A música precisa ser

construída em conjunto.

Esse processo é sempre em conjunto?

No primeiro disco, quando o André tava no gru-

po ainda, a gente fazia junto. Ele rabiscava o que

queria fazer, trazia pra mim, e eu fazia a mesma

coisa com ele. No segundo disco, com a saída

dele, isso é comigo e a Shirley – e o Paulinho

vem com batidas e samples.2SAIBA MAIS

myspace.com/cagebe

POR ANDRÉ MALERONKA . FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Page 78: Revista +Soma #22

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Coisas que Gostamos de

guardar

POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG

FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Page 79: Revista +Soma #22

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Page 80: Revista +Soma #22

Tem algum critério para entrar na coleção? Por

exemplo, toca CD entra?

Foley . Sim, o Rico comprou um toca CD

porque era quadradão, estilo boombox.

Rico . Esse é o critério: quadradão.

Foley . E não pode ser mono.

Onde vocês guardam tantos rádios ?

Fooley . Se entrar lá em casa, qualquer lugar

que você abrir vai encontrar um rádio.

Danone . Cada um guarda o que consegue. E

não tem essa de cada um guardar o seu.

Rico . Quando alguém tem saudade de um

rádio, pede para ficar uma temporada com

determinado modelo em casa.

O que diferencia a coleção de vocês das dos

demais colecionadores de rádios?

Danone . Nós gostamos de levar o rádio para a

rua. Não é uma coisa egoísta, a ideia é manter

a essência do boombox. Muitas vezes acontece

de perder botão, bater, ralar. Já aconteceu até

de cair no chão e quebrar um rádio, mas eles

têm que estar nas ruas.

Foley . É colocar o rádio no

seu devido lugar, na rua,

ao lado do b-boy, como

símbolo de uma crew.

Fooley . Para nós o hip-

hop não é formado só

pelos quatro elementos

– DJ, b-boy, grafiteiro

e MC. Ele tem mais

um elemento, que é o

boombox.

Ero . O pessoal já

acostumou: em evento

onde a B.Box Original

está presente, sempre

tem um boombox para

tocar e a festa continua

depois, na rua.

Foley . Fazemos questão

de fazer o pessoal pirar.

Somos os DJs da rua!

Ero . Tocamos na ida e na volta do evento,

até dentro do trem, e todo mundo gosta. As

pessoas querem tirar fotos segurando os rádios.

Danone . E muitos falam: “Caramba, como

é pesado”... Mal sabem que já estamos

segurando eles há mais de uma hora e meia no

ombro por pura dedicação.

Como vocês começaram a colecionar

boomboxes?

Rico . Na época da São Bento era sonho de

qualquer b-boy ter um boombox.

Danone . Em 2006 eu quis comprar um rádio

que estava com o Rico, e ele quis comprar um

que eu tinha achado na feira do rolo.

Rico . O amor pelo rádio foi maior, então

começamos a montar um catálogo, aprendemos

a restaurar e montamos a B.Box Original. Para

nós cada rádio da coleção tem uma história

pessoal, é como se fossem personalidades.

Danone . Quando restauramos e ele volta

a tocar, é como se o coração do paciente

voltasse a bater.

Foley . Quando vi a coleção dos caras fiquei

a fim de ter um rádio, e fiz vários contatos

até chegar a um cara que tinha um National

japonês. Fui até ele e no dia seguinte liguei para

o Rico e avisei que já tinha meu primeiro rádio.

Ero . Meu irmão, o Foley, tem uma foto ao lado

de um boombox aos 3 anos de idade. Acho que

já era um aviso.

Danone . As pessoas que

hoje integram a B.Box

Original estão aqui por

merecimento. Cada um

contribuiu de alguma

forma. A Marcia é a mais

nova integrante.

Marcia . Entrei para o grupo

porque apresentei um

modelo de boombox da

Conion que eles não tinham.

Rico . Falar que está

garimpando é fácil, mas

achar um modelo como

a Marcia achou exige

muita dedicação. Eu e

o Danone já passamos

fins de semana inteiros

garimpando e não

achamos nada.

Qual o modelo mais difícil de achar?

Danone . Quanto maior o box, mais cobiçado,

mais difícil. Existem lendas sobre rádios

gigantescos, mas eu nunca vi.

Qual a maior loucura que vocês fizeram para

ter um boombox?

Rico . O Danone é o mais louco, quase quebrou

a empresa dele por causa de três rádios.

Danone . Todos já brigaram com namoradas e

família para manter os rádios.

Foley . Estamos indo para a Argentina buscar

dois rádios que estão comprados e guardados,

e ainda vamos garimpar por lá.

E as pilhas? Vocês devem gastar muito...

Danone . Usamos baterias adaptadas porque é

mais econômico, e também usamos iPods para

poupar os toca-fitas.

Alguém já disse que o artista tem a

antena voltada para o universo. Os

rapazes da B.Box Original não são

meramente divulgadores da cultura do

boombox, não estão apenas fazendo

uma performance quando expõem seus

rádios. Eles estão conectados com a

referência do passado, que é o rádio,

mas inserindo esse elemento no presente

e o projetando no futuro. É uma maneira

de se identificar, de se caracterizar, de se

singularizar, e essa singularização é que

empresta dignidade ao colecionador.

No mundo da Seleta, existe um ramo que sempre teve muitos adeptos apaixonados: o colecionismo de rádios. Não são poucos os que mantêm às duras penas seus antigos rádios valvulados, que sintonizavam os jogos de futebol quando a TV não existia, faziam sonhar com as vozes de cantores e atores em suas novelas ao vivo e traziam as notícias da guerra. Com o tempo, o rádio ganhou um novo tipo de colecionador, e a Seleta tem o prazer de trazer para vocês MARCIA, RICO, DANONE, FOLEY, ERO e ROONEY, guardadores de rádios que juntos formam a primeira crew de colecionadores de boomboxes do Brasil. A B.Box Original tem cerca de 170 rádios boombox em seu acervo, o que garante o recorde mundial, segundo o site The Universal Record Database.

O boombox sobre os ombros, que aparece em

filmes como Faça a Coisa Certa, é a forma mais

comum de emissão de música para as danças

dos b-boys. Os boxes começaram a povoar as

ruas na década de 1980 e, como a tendência da

tecnologia da época não era nada minimalista,

quanto mais luzes, botões, entradas e saídas,

melhor. O fato de possuir entrada auxiliar torna

esses rádios, mesmo apresentando defeitos no

toca-fitas, uma ótima opção para ligar iPods, o

que ajudou o preço deles a bombar. Mas nossos

entrevistados não estão nessa pelo hype.

2SAIBA MAIS

nossacrew.weebly.com/bbox-original.html

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Page 81: Revista +Soma #22

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Hugh Mundell . AFRICA MUST BE FREE BY 1983 . GREENSLEEVES

Em 1975, quando o então pré-adolescente Hugh Mundell foi escalado pelo

maroto produtor Augustus Pablo para interpretar as produções do que viria

a ser o clássico Africa Must Be Free By 1983, ninguém poderia imaginar que o

moleque seria tristemente morto a tiros no ano de... 1983. A fatalidade ocorreu

enquanto HM conversava animadamente com o amigo Junior Reid em seu

Cadillac. A música jamaicana perdia então uma de suas mais promissoras

vozes. Mundell gravou Africa com apenas 13 anos, e o gogó perceptivelmente

destreinado evidencia lampejos de genialidade aqui e ali. Confira as faixas

“My Mind” e “Run Revolution A Come”, além da clássica faixa-título, e tire suas

próprias conclusões. O fato é que a relativa inexperiência e as variações dos

timbres do garoto são as peças-chave para o sucesso do LP. Não existem muitos

registros sobre a conduta extracampo de Hugh Mundell (todo mundo sabe que

a coisa era bastante gangsta na Jamaica nos anos 70), que ainda conseguiu

gravar outros discos antes de Jah o levar para o paraíso rasta, com destaque

para Time & Place (1980), Jah Fire (1980, em parceria com Lacksley Castell) e

Mundell (1982). A mensagem presente em todas as faixas é de paz, unidade para

a África, parceria entre os negros e, acima de tudo, liberdade e independência.

O artista se foi, e a mensagem ficou. A reedição do disco em CD apresenta

ainda versões dub que o malandrão Augustus Pablo fez para cada uma das nove

faixas originais. Coisa finíssima. O futuro é agora!

Apesar do nome, nenhum dos álbuns apresentados aqui foi de

fato gravado em 1983. O ano em questão, no entanto, é uma

referência temporal fundamental para ambos os artistas em

seus respectivos LPs. No caso do jamaicano Hugh Mundell, que em 1975, aos 13 anos (!),

concebeu a obra-prima Africa Must Be Free by 1983, o ano de 83 é visto e interpretado como o futuro esperançoso — ainda que relativamente próximo — para um continente que ainda

tinha características coloniais e escravistas bastante evidentes

no final da década de 70 (e que infelizmente jamais deixou de ter).

Por outro lado, para o produtor norte-americano Flying Lotus,

sobrinho de Alice Coltrane e um dos expoentes da geração de beat

konductas, que fundiu o free jazz

OB

RA

S P

RIM

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Page 83: Revista +Soma #22

83

Flying Lotus . 1983 . PLUG RESEARCH

De volta para o futuro! Exatos trinta anos após o lançamento de Africa Must

Be Free by 1983, o ano de 83 parecia tão distante quanto o século XIX. Este é

justamente o ponto de partida para a concepção de 1983 (2005), álbum de estreia

do celebrado produtor de L.A. Flying Lotus. Sobrinho de Alice Coltrane e um

dos mais prolíficos produtores e beat makers da geração liderada por Madlib e

J-Dilla (R.I.P.), o rapaz não perdeu tempo e criou um LP a partir da desconstrução

de ritmos como o jazz, a música brasileira e o soul, somando a tudo isso loops

inovadores, grooves hipnóticos e beats ligeira e propositalmente fora de cadência.

O fato de a grande maioria das faixas em 1983 ser de curta duração evita que o

disco pareça cansativo ou essencialmente experimental, e a base de todo o LP

é justamente a estética dos sintetizadores e barulhinhos digitais característicos

da primeira metade da década de 80. O timing de Flying Lotus para os beats é

perfeito, e as faixas que fazem referência a São Paulo e ao Brasil não são gratuitas:

em passagem pelo pais, FL gastou algum tempo e muito dinheiro em LPs que

possivelmente resultaram em inspiração para as faixas “Orbit Brazil” e “São Paulo”.

A ausência de elementos orgânicos praticamente atesta 1983 como um produto

da década de 80, embora a visão e o instinto musical de Flying Lotus pareçam

apontar sempre em direção ao futuro, algo tão contraditório quanto a essência da

música feita por ele. FL é hoje a vanguarda do jazz e do hip-hop, assim como o

Atari foi a vanguarda dos games em 83.

e o hip-hop experimental de forma absolutamente irreversível e cabeçuda, a referência explícita ao ano em 1983 é saudosista e cheia de reverência, remetendo à estética Atari e aos sintetizadores que fizeram estrago ao longo da década. O artista mostra devoção e conhecimento de causa ao misturar elementos do passado com as mais complexas tecnologias utilizadas na arte de construir música desconstruída.

Dois artistas diferentes em seus estilos e propostas, observando o relógio em direções opostas para criar discos atemporais e cheios de experiências pessoais. E você aí, que mal consegue se lembrar do Flamengo campeão brasileiro e de Pitfall em 83, hein malandragem?

2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE.

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Page 84: Revista +Soma #22

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+QUEM SOMA . NEGREDO / PERIFERIA ATIVA . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira

“ Já tentamos emplacar coisas em Leis de

Incentivo, PAC, VAI (programa da prefei-

tura de São Paulo). Mas vai e volta (risos).

Quando os investidores sabem que o projeto é

dentro de uma favela, desistem.” Wilson Lopes

diz isso com a serenidade de quem já aprendeu

a se esquivar das cabeçadas da vida e um sorri-

so quase condescendente, de alguém mais preo-

cupado com seu trabalho do que em incorporar

revoltas típicas de certa classe média. Wilson

talvez seja mais conhecido como MC Ylsão, que,

ao lado do MC Tó (ou Antônio Lopes, seu irmão),

do MC Arnaldo e do DJ Alê (Alexandre Rocha),

compõem o grupo de rap Negredo.

Nascido na Favela do Godoy, no Capão Redondo,

o Negredo esteve sempre fadado a ser mais do

que um grupo de rap. A história de engajamen-

to comunitário começou a se desenrolar no co-

meço do ano 2000. “Muita coisa aconteceu aqui

quando falaram que o mundo ia acabar (risos)”,

conta Ylsão. Naquele ano, a casa onde hoje é a

sede do Periferia Ativa ainda era usada por tra-

ficantes para esconder drogas. “O [Mano] Brown

tinha vontade de fazer uma rádio comunitária, a

Vida Loka. Aí surgiu a ideia de usar este espaço.

Foi uma coisa em comum acordo com os próprios

caras [do tráfico].” O espaço foi desocupado, mas

a ideia da rádio não vingou. No lugar, começaram

a organizar uma biblioteca, com discos e livros

doados por Brown e Ferréz. No ano seguinte, o

Negredo promoveu a primeira festa 100% Favela,

realizada na rua em frente à Godoy. Além de tra-

zer shows de vários grupos de rap de São Paulo,

o evento tinha um espírito inédito de mobilização.

“Na época, como ainda não existia o Periferia,

cobramos um quilo de alimento na entrada e do-

amos tudo à Igreja N. Sª dos Passos”, conta Tó.

Com o tempo, a festa cresceu e se tornou uma

forma de financiar as atividades do projeto.

Em 2002, o Periferia Ativa começou a tomar

corpo. “O Brown começou a construir aqui

sozinho, por conta própria”, lembra Ylsão.

“Primeiro fizemos embaixo, depois fechamos

a laje em cima.” O uso da primeira pessoa não

é meramente retórico: quem ergueu a laje foi

Arnaldo, em uma versão mais radical do “ar-

tista igual pedreiro”. A parte de baixo virou

o Espaço Brincar, uma brinquedoteca para

crianças de 4 a 10 anos. A de cima divide-se

entre a Biblioteca Exodus e o Espaço Nego

Du (em homenagem ao irmão de Ylsão e Tó,

já morto), que recebe aulas de break, gra-

ffiti, capoeira e DJ. Três anos depois, a festa

100% Favela teve seu auge, com a presença

de Z´África Brasil, Rosana Bronx, GOG, TR3F

(grupo de Ferréz) e outros nove grupos. O

DVD gravado na ocasião é um documento

único, com cenas raras de conversas grava-

das entre a elite artística do Capão. Foi um

sucesso, inclusive no Youtube. “Já perdemos a

conta do quanto vendeu, mas foram mais de

10 mil. Sem contar os piratas”, avalia Tó. Além

das festas, o Negredo promove bingos, feijo-

adas, bazares e toca a loja Cúpula Negredo.

Page 85: Revista +Soma #22

85

2SAIBA MAIS

negredo.com.br

gruponegredo.blogspot.com

No ano passado, o Periferia Ativa conseguiu se

expandir ainda mais. Com a compra de um imó-

vel anexo, nasceu o Periferia Digital. Após uma

parceria com a Nike, eles compraram computa-

dores novos e criaram uma sala de aula onde os

alunos aprendem a usar programas de edição de

imagem, ferramentas de blog, internet e outros.

Em uma sala contígua, espremida entre as pare-

des estreitas da favela, há ainda um estúdio de

gravação bem equipado. “Quem tá contando a

nossa história somos nós mesmos”, define Alê,

que cuida do Periferia Digital. “A ideia não é virar

uma CUFA. O lugar é pequeno, e fazemos ques-

tão de mantê-lo dentro da favela. Vivem falando

pra gente mudar pra um prédio fora, como outras

ONGs. Mas do que adianta ter um lugar longe,

onde o povo precisa ir de ônibus? Melhor mudar

pouco a pouco do que ter um prédio bonito, mas

com oficinas vazias.” Ylsão complementa: “As

crianças são acostumadas a acharem muito ruim

o lugar onde moram. Com a sede aqui, veem de

perto que dá pra fazer coisas legais”.

Atualmente, o Periferia Ativa tem 200 vagas para

crianças e adolescentes, das quais 160 estão pre-

enchidas e ativas. Para participar, os interessados

precisam estar na escola, ter a carteira de vaci-

nas em dia e apresentar uma identidade. “Se a

criança não tá estudando, vamos até a casa ver

por que e tentamos colocar na escola”, diz Tó.

Claro, nem sempre é fácil. “Tem moleque que dá

trabalho, tem moleque do tráfico, tem precon-

ceito contra homossexual.” “Não tem como tirar

[do tráfico] na marra”, complementa Alê. “Tem

que dar opção, fazer o que o Estado deveria fa-

zer. Se ele vai ser do tráfico, da capoeira ou do

rap, a escolha é dele. Nós quatro viemos nessa

direção por Deus, mesmo. Mas eles têm alguém

aqui dentro pra mostrar outros caminhos.” Ainda

assim, várias crianças mudaram de vida. “Alguns

saíram do tráfico e dão aula aqui. Outros arruma-

ram empregos na cidade”, diz Tó. “Mudou tudo,

hoje você pode andar pelos becos tranquilamen-

te”, analisa Ylsão. “Antes era bem perigoso entrar

aqui onde você está.” O Capão, e em especial o

conjunto de favelas onde fica a Godoy, é um dos

lugares onde fica mais evidente o apartheid ve-

lado que impera em SP. Ali, sem alarde e com o

amparo de poucos além deles mesmos, o Peri-

feria Ativa está conseguindo virar um jogo que

para muitos já nasceu perdido.

“O LUGAR É PEQUENO, E FAZEMOS QUESTÃO DE MANTÊ-LO DENTRO DA FAVELA. MELHOR MUDAR POUCO A POUCO DO QUE TER UM PRÉDIO BONITO, MAS COM OFICINAS VAZIAS.”

Page 86: Revista +Soma #22

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Page 92: Revista +Soma #22

92

Existe um tipo mais perigoso e danoso de injusti-

ça artística do que não reconhecer os grandes gê-

nios perdidos – reconhecer o talento, mas traduzir

sua influência com as intenções menos virtuosas

possíveis. Vendo as coisas por esse ângulo, pode-

ríamos colocar os escoceses do Mogwai entre os

artistas mais injustiçados da história. Apesar de

uma carreira de mais de dez anos no pós-rock,

apresentando diferentes tonalidades, soluções

e propostas no nebuloso estilo, o quinteto aca-

ba sendo repetidamente citado como principal

referência por um longo corolário de bandas de

metal ruim – Steve Vai encontra Iron Maiden para

fazer música de elevador seria uma boa definição

para esse séquito –, que insistem em afirmar que,

por não contarem com um vocalista, na verdade

fazem pós-rock. Enquanto seus seguidores de

menos talento chafurdam em pastiches de “Like

Herod” (faixa do disco de estreia do Mogwai,

Young Team, de 1997), o Mogwai cria um álbum

econômico e diverso, quase pop em alguns mo-

mentos. “Mexican Grand Prix” combina vocoder

nos vocais com base krautrock, e a climática “Let-

ters To The Metro” lembra os bons tempos do

álbum Come On Die Young. O grupo mostra até

que sabe fazer rock (quase) convencional, como

em “San Pedro” e na moderninha “George Square

Death Party”. Na ótima “You’re Lionel Richie”, o

Mogwai se disfarça de Godspeed You! Black Em-

peror para mostrar com quantos minutos se faz

um épico. Um dos discos mais acessíveis da car-

reira do grupo, Hardcore Will Never Die, But You

Will já tem pelo menos um feito que o garantirá

na memória dos fãs: é desde já o melhor título

de álbum de 2011. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

+REVIEWS

Parece fácil, mas não é. Em um cenário onde a maioria das bandas de rock

ousa pouco, se contentando em reproduzir ídolos mainstream da adoles-

cência ou imitar o hype anglofônico de oito anos atrás, o Walverdes é dos

poucos que conseguem soar autênticos ao mesmo tempo em que não

zombam da inteligência do ouvinte – que, no caso deles, já é bem grandi-

nho. E tudo isso fazendo um rock simples, de trio, cantado em português,

devedor sim de Rocket From The Crypt, Sonics, Replicantes, Mudhoney e

blablablá, mas que em 18 anos já pagou seus débitos e goza dos prazeres

da vida adulta. Em Breakdance, sexto álbum dos gaúchos, isso fica mais

evidente do que nunca. As duas primeiras, “Função” e “Spray”, já circula-

vam pela internet há algum tempo e dão o tom do disco: secas e agressivas,

alternam densidade sonora com riffs curtos de baixo e guitarra, que acom-

panham um vocal quase falado, por vezes próximo de Shellac (ou seria

uma referência mais explícita ao tema hip-hop da capa?). As letras punk-

-nonsense-budista de Gustavo Mini chegam ao auge em frases como “Meu

minimalismo comprou um furgão” e o refrão “Pouca saída/ Muito espaço”

(“Spray”), mas também falam habilmente de trabalho (“Minha missão/ Re-

petição/ Função/ A sua integração/ Não deixe a ingratidão fazer...”, em

“Função”). Em “Não é Difícil”, a levada abertamente Nirvana/MC5 é pura

tiração de sarro, escancarada nos versos “Criar não é difícil/ Pensar não é

difícil/ É só olhar e copiar”, um primor de humor punk aliado aos clichês

que Mini certamente encontra em sua carreira publicitária. “Diagonal” man-

tém o baixão distocido de Patrick Magalhães, mas se abre em um vocal

pra sair cantando, com refrão grudento e talvez a melhor letra do álbum.

Como aquele amigo hábil em resolver desavenças, primeiro Mini sugere a

compreensão (“Diagonal/ Natural cometer erros/ Enfrentamentos”) para

em seguida dissolver o conflito em nonsense e festa (“No Carnaval/ Tem

samba-enredo”). O mérito do disco deve ser dividido com o produtor Julio

Porto, que abusou do seu background dub para dar profundidade inédita

às camadas de distorção do trio, especialmente ao baixo. O disco soa mo-

derno, mas nunca limpo e estéril, transportando as composições para um

outro nível, sem perda da assinatura da banda. Sim, há vida inteligente no

rock brasileiro. 3POR MATEUS POTUMATI.

2WALVERDES

BREAKDANCE

Monstro Discos

2010

2MOGWAI

HARDCORE WILL

NEVER DIE, BUT

YOU WILL

Sub Pop

2011

1DISCOS

Page 93: Revista +Soma #22

93

Música instrumental com influências de afrobe-

at e rock psicodélico. Assim é possível definir

o som deste segundo disco do Burro Morto,

grupo formado em 2007 na Paraíba. Gravado

em 2009 no estúdio da banda, foi contemplado

com o edital Pixinguinha e vem sendo distribu-

ído gratuitamente por seus próprios integran-

tes. Vem ainda acompanhado por um DVD com

a história de Baptista, um trabalhador que há

cinquenta anos desempenha a mesma função

e parou de questionar as coisas, até que uma

reviravolta muda a sua vida. Escutando o dis-

co, é possível identificar essa guinada. Como

em uma história, ele começa tímido, devagar,

sem revelar o jogo logo de cara. Aos poucos, as

músicas vão ganhando molho e, por consequ-

ência, o ouvinte. Talvez pelo descompromisso

comercial, o quinteto conseguiu inovar no som,

com referências à Nigéria de Fela Kuti e Tony

Allen. O rock também está presente, na bate-

ria dura, em colagens espertas e guitarras bem

colocadas – em “Cataclisma”, os méritos das

cordas ficam por conta de Fernando Catatau.

E assim, do nome da banda à sonoridade do

disco, o Burro Morto causa aquela estranheza

inicial que dá mais sabor ao deleite posterior.

3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA.

Orelha Negra é a mais nova sensação da música

urbana portuguesa. A banda foi selecionada a

dedo pelo rapper Sam The Kid para acompanhá-

-lo na turnê de seu último disco, Pratica(mente),

lançado em 2006. Para quem não sabe, Sam The

Kid é Samuel Mira, o maior nome do rap portu-

guês e um produtor de mão cheia, considerado

por muitos um dos tops no mundo. Para tocar

em seus shows, o rapper chamou gente como o

DJ Cruzfader (carioca radicado em Lisboa e um

dos grandes nomes do turntablism português),

Fred Ferreira (baterista do Buraka Som Siste-

ma), João Gomes e Francisco Rebelo (ambos da

banda Cool Hipnoise). De ensaios e jam sessions

surgiu o projeto Orelha Negra, no qual os cinco

criam temas instrumentais com pegada cinema-

tográfica e entupidos de colagens e samples,

muitos samples. Claramente influenciado por no-

mes como DJ Shadow e selos como Ninja Tune,

o grupo lançou seu debut homônino em 2010 e

conquistou a crítica portuguesa e europeia com

uma mistura de hip-hop, soul, funk, jazz, rock e

eletrônico, entrando na lista dos 10 álbuns mais

vendidos do país e sendo indicado a prêmios

como o MTV Europe Music Awards. Apesar de ter

base em ritmos americanos, o grupo fez questão

de criar uma identidade local, usando colagens

de novelas e nomes populares como Júlio Isidro

e Henrique Mendes (apresentadores da TV local)

ou Fernando Tordo e António Victorino d’Almeida

(compositores lendários da música portuguesa).

Qualidade que transborda, colocando o Orelha

Negra na linha de frente da música instrumental

urbana europeia. 3POR DANIEL TAMENPI.

“Everybody sing”, convida com sua voz leve e

insidiosamente nipônica a vocalista do Deerhoof,

Satomi Matsuzaki, em diferentes momentos do

disco novo do grupo, Deerhoof Vs. Evil. O pinball

sonoro que é característico do quarteto – que

completa 16 anos de carreira – pode dificultar um

pouco o trabalho da plateia, mas a principal fun-

ção aqui é lembrar que, por mais que pareça um

improvável candidato às ondas do rádio, a música

da banda é mais acessível do que pode parecer à

primeira orelhada. O aspecto caleidoscópico do

som do Deerhoof vem da estratégia usada pelo

grupo na hora de compor cada disco – todos tra-

zem as suas próprias ideias de canções, que são

então remodeladas, criticadas e expandidas pe-

los outros membros “até você não saber mais se

aquela música existe”, como explicou o baterista

e fundador da banda Greg Saunier em uma entre-

vista recente. O resultado é um mosaico que reú-

ne sob o mesmo teto polirritmos à Konono No 1,

samba de gringo, folk adocicado, efeitos de dub,

riffs de hard rock, lounge sessentista de mentira

e mais outras camadas de idiossincrasias sônicas.

Apesar de o panorama parecer confuso em uma

limitada descrição verbal, a voz de Matsuzaki e

as melodias fácies unem tudo com uma insus-

peita simplicidade e – surpresa! – o disco chega

a ter momentos dançantes, como “Super Duper

Rescue Heads!” e “Hey I Can”. Mas no final tudo

parece um grande Katamari musical, cheio de ele-

mentos brilhantes sobrepostos – nada que um jo-

gador/ouvinte não possa capturar com um pouco

de perspicácia. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

2BURRO MORTO

BAPTISTA VIROU

MÁQUINA

Independente

2011

2ORELHA NEGRA

ORELHA NEGRA

Valentim de

Carvalho

2010

2DEERHOOF

DEERHOOF VS. EVIL

Polyvynil

2010

Page 94: Revista +Soma #22

94

Para John Cage, aprender a ouvir é um dos pila-

res da criação musical. Em uma entrevista, Cage

explica que, ao longo de seu aprendizado, o

músico embute um silêncio falso, esforço men-

tal para ignorar todos os sons ao seu redor. O

silêncio total seria um engano, e a performance

musical deve absorver o que para muitos é ruído

ou imperceptível. Um bom exemplo disso é este

disco de Rob Mazurek. Sem dúvida nenhuma, é o

trabalho mais livre do compositor e trompetista

de Chicago. Não se trata de um disco de música

improvisada, pelo contrário: é bastante rigoroso

em termos de composição, e as nove peças re-

gistradas ao longo do CD têm coerência narrati-

va. Os compassos iniciais de “Mula sem Cabeça”,

com pratos, sinos e pandeiros se misturando às

melodias de poucas notas do trompete de Ma-

zurek e da rabeca de Thomas Roher dão uma

ideia precisa dessa criação que se apropria do

som do ambiente sem se desapegar da com-

posição. Na mesma linha estão a belíssima “The

Passion of Yang Kwei-Fe”, na qual a presença do

aparentemente aleatório se combina com uma

melodia lindíssima da flauta de Nicole Mitchell.

Esse apego às melodias parece outra caracterís-

tica marcante do trabalho de Mazurek. Mesmo

em “Car Chase” e “Three Reasons Not to Blow

Up the World”, elas são regra. “Purple Sunrise”

faz aproximação curiosa do baião e do maxixe,

que de maneira involuntária soa como os traba-

lhos do guitarrista Fred Frith – não por acaso,

outro admirador da música brasileira. Mazurek

trabalha em uma chave de liberdade e abertura,

dele mesmo e de quem o escuta. Nada pode ser

mais importante. 3POR LAURO MESQUITA.

+REVIEWS

Quando Live in Daytron ? 6º apareceu em pré-venda no site oficial de Robert

Pollard, a empolgação foi enorme. Após ter encerrado as atividades do grupo

na passagem de ano entre 2004/2005, ele usou 2010 para excursionar com

a formação clássica do Guided By Voices, debandada em 1996 por incom-

patibilidade musical. Seria um registro dessa nova turnê? Infelizmente, ainda

não. Mas não se preocupe: a infelicidade passa logo. O novo álbum ao vivo da

banda (cujo título remete a um som clássico dos caras, “Dayton, Ohio: 19 So-

mething and 5”) é de 2001 e registra o grupo de Pollard já reformado, tocando

em sua cidade natal após o lançamento de Isolation Drills, um de seus álbuns

mais cuidadosos e trabalhados. À época, Pollard e sua trupe haviam largado a

Matador para assinar com a major TVT Records e provar que eram muito mais

do que uma banda de garagem. E conseguiram, apesar de as vendagens não

expressarem isso na época. Se ainda houver alguma dúvida, Live in Daytron?

chega para eliminá-la de uma vez por todas. Entre pérolas como “Skills Like

This” e “The Enemy”, que tal a dobradinha “Glad Girls” e “Run Wild”? E o

que pensar da melódica “Twilight Campfire”? Já os fãs que torcem o nariz

para essa fase da banda são brindados com clássicos como “The Goldheart

Mountaintop Queen Directory”, ‘Tractor Rape Chain”, “Smothered in Hughs”

e “Don’t Stop Now” – essa, em uma versão hilária, com as letras improvisadas

pelo vocalista. Seu carisma, aliás, sempre foi outro diferencial da banda. Só ele

poderia apresentar “Shocker in Gloomtown” como uma música do Breeders,

sendo que, na realidade, é do próprio GBV – a banda de Kim Deal gravou uma

cover e costuma tocar uma versão da música em seus shows. Outro destaque

fica por conta do guitarrista Doug Gillard, que recheia a apresentação com

melodias e solos espertos. De repente, após a primeira música do segundo

disco, Pollard avisa ao público: “Essa seria uma boa hora pra parar. Mas com a

gente é diferente, gostamos de tocar até vomitar”. Após 43 músicas, o vômito

não vem, mas público e banda saem satisfeitos. E, agora, o ouvinte em casa

também. 3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA.

2GUIDED BY VOICES

LIVE IN DAYTRON? 6º

Rockathon

2010

2ROB MAZUREK

CALMA GENTE

Submarine Records

2011

Page 95: Revista +Soma #22

95

O primeiro grande disco de 2011 acabou de sair,

e dificilmente estará fora das listas dos melhores

deste ano que apenas começou. Trata-se do de-

but homônimo do cantor, compositor e produtor

inglês James Blake. Com apenas 22 anos de ida-

de, Blake despontou em 2010 lançando três óti-

mos EPs: The Bells Sketch, CMYK e Klavierwerke.

Nessas pequenas amostras, o produtor já apre-

sentava uma forma toda própria de mexer com

o dubstep, criando sonoridades minimalistas

com batidas instáveis, muitos fragmentos vo-

cais e usando o silêncio misturado a frequências

baixíssimas que fazem tremer a caixa torácica

como forma de composição. Toda essa originali-

dade o colocou no topo das promessas da nova

música europeia, ganhando da BBC o status de

“O Som de 2011”. Em seu álbum de estreia, no

entanto, Blake criou um som ainda mais pesso-

al e indefinido, além de revelar-se um grande

cantor. O primeiro single é uma versão de “Li-

mit To Your Love”, da cantora canadense Feist,

que não só superou a original como está sendo

tratada como uma das melhores gravações do

século XXI. Seu novo single, “Wilhelms Scream”,

traz a mesma proposta e o mesmo choque nas

audições. Mas essas talvez sejam as músicas

mais fáceis de digerir do álbum. Nas restantes,

o experimentalismo, a simplicidade e o silêncio

tornam-se ainda mais presentes. Destaque ain-

da para as incríveis “To Care (Like You)”, “I Never

Learnt To Share”, “Measurements” e “Unluck”.

3POR DANIEL TAMENPI.

Harvey Pekar foi um desses gênios ofuscados por suas diatribes e seus

companheiros de percurso. E não era pra menos: quem o “descobriu” e o

lançou no mercado de quadrinhos foi ninguém menos que Robert Crumb

– o maior artista vivo das HQs no planeta. Reconhecido muito mais por

sua excentricidade do que pelo seu vibrante talento para constituir narra-

tivas baseadas em experiências pessoais sem cair no piegas, na autocomi-

seração e na autoadulação egoica, Pekar construiu uma obra que o coloca

como um dos maiores contadores de histórias de nosso tempo. Histórias

prosaicas, mundanas – o retrato fiel de um trabalhador ordinário no Oci-

dente –, que saíam do comum graças a seus comentários afiados. Assim,

não soa nada estranho que Pekar, aliado com Paul Buhle (uma eminência

parda quando o assunto é radicalidade estadunidense no século XX), que

editou a obra, viesse a escrever sobre os beatniks. O livro se divide em três

grandes histórias sobre Kerouac, Ginsberg e Burroughs e outras menores

sobre os demais nomes da literatura beat (Ferlinghetti, Corso, Lamantia

etc.), além de aspectos ligados ao meio, como os antecedentes na litera-

tura americana, os aspectos filosóficos que deram consistência ao movi-

mento, a (não) participação feminina, a música da época etc. Em grande

parte do álbum, a arte é de Ed Piskor, um dos maiores parceiros de Pekar e

amplamente desconhecido por aqui. E, graças a uma outra deficiência do

mercado editorial nacional, ainda é possível conhecer algo novo sobre essa

turma, fatos ainda não tão divulgados e explorados no Brasil. Em destaque,

os questionamentos um tanto quanto “travados” e típicos de Pekar sobre a

misoginia e homossexualidade de Kerouac, que manteve diversas relações

com homens, ou a HQ de Joyce Brabner (a esposa feminista de Pekar) so-

bre as mulheres no mundo beat, apresentando um lado mais barra-pesada

e menos heroico dessa geração, amplamente jogado pra debaixo do tapete

por seus biógrafos. Em Os Beats não há muito malabarismo textual ou ex-

plosão visual. Neste livro realizado por pessoas que acima de tudo nutrem

um fascínio saudável sobre o assunto, texto e arte operam as premissas

mais elementares dos quadrinhos, se valendo em parte do didatismo típi-

co dos livros biográficos para “ensinar” como é possível contar uma ótima

história se atendo ao essencial da linguagem das HQs. 3POR VELOT WAMBA.

2VÁRIOS AUTORES

OS BEATS

Editora Benvirá

2010

2JAMES BLAKE

JAMES BLAKE

R&S Records

2011

1LIVROS

Page 96: Revista +Soma #22

96

“Até hoje quando olho para essa foto, nunca me

vejo. Vejo nós dois.” A foto em questão é o retra-

to de Patti Smith para uma das capas mais lindas

da história do rock, a do disco Horses. A imagem

foi clicada pelo artista e fotógrafo Robert Mapple-

thorpe – primeiro amor e grande amigo de Patti.

Para ele, antes de morrer, ela prometeu contar a

história dos dois. Uma história de amor fraterno

e intenso, sem a visão maquineísta e dualística

desse sentimento comumente dividido entre cer-

to ou errado, bom ou ruim. Assim, Patti conseguiu

ficar anos-luz de clichês e pieguices recorrentes

em muitos romances autobiográficos, mesmo de-

talhando todo o seu relacionamento até a morte

de Mapplethorpe, em 1989. O diferencial também

fica por conta da narrativa leve e pela ambienta-

ção minuciosa da Nova York dos anos 60 e 70.

Ao usar sua veia poética para contar suas histórias

com Andy Warhol e sua Factory, o tempo em que

morou no Hotel Chelsea, a amizade com William

Borroughs e Janis Joplin, shows memoráveis e as-

pectos políticos e culturais das duas décadas, ela

mostra os dotes literários cultivados desde a ado-

lescência, época em que não almejava ser uma es-

trela do rock, mas sim escritora. As referências de

autores da geração beatnik como Jack Kerouac e

Allen Gingersberg e clássicos como William Blake,

Baudelaire e Nietzsche a ajudaram a construir

uma relação íntima com a escrita. Poucos livros

me fizeram chorar por sentir a emoção do escri-

tor e a franqueza daquelas linhas. Patti conseguiu,

ao imortalizar por meio de letras o que Robert já

havia imortalizado através de suas fotos: o amor

incondicional. 3POR MARINA MANTOVANINI.

2PATTI SMITH

SÓ GAROTOS

Cia das Letras

2010

Eu quase desisti de escrever este review ao ler a

apresentação que Fábio Zimbres assina ao final

de Ordinário. Sério, que cara egoísta: achou todas

as palavras mais cabulosas, frutos de insights tão

brilhantes, que não sobrou nada pra ninguém. Se

você quer entender mesmo porque o Sica é um

artista tão único, é só comprar o livro e ler aquele

texto (só não fiz um CTRL C + CTRL V aqui porque

ficaria feio e eu poderia acabar comprando briga

com a editora). Claro, talvez antes de ler a apre-

sentação e de comprar o livro você queira saber o

que se passa ali dentro. E é só por isso que eu vou

me atrever a dizer algo além do que o Zimbres

já disse. Rafael Sica é um quadrinista gaúcho – o

melhor da nova geração no Brasil na minha opi-

nião –, que tem um traço ao mesmo tempo sujo e

delicado, à base apenas de lápis preto e nanquim,

e faz quadrinhos mudos. E é assim, nessa carên-

cia auto-imposta de meios, que ele conta histórias

sobre a vida das pessoas. Histórias, como o nome

do livro sugere, ordinárias. Tão ordinárias que, se

você tentar lê-las sentado no banheiro, vai passar

batido, sem entender nada. Essa é a mágica do

Sica: pra sacar o extraordinário ali, só se o leitor

fizer como ele. É preciso se despir de um olhar

viciado e podar a ansiedade para entrar em um

ritmo mais lento, no qual cada pequeno quadro

surge como se fosse uma história em si, à espe-

ra talvez de um quadro seguinte, que traria uma

legenda, como nos filmes mudos. Mas esse qua-

dro-legenda nunca vem, e você fica ali, criando

epifanias em completo desamparo enquanto se

dá conta de que Ordinário, pequeno no tamanho,

diminuto em recursos, é um livro de ambições

magníficas. 3POR MATEUS POTUMATI.

Há cerca de um ano, Hervé Bourhis era um com-

pleto desconhecido no Brasil. Aí a Conrad resol-

veu lançar por aqui seu Pequeno Livro do Rock,

relato em quadrinhos abertamente subjetivo da

história do gênero musical mais highlander de

todos. As tiradas bem humoradas e o traço punk-

-realista de Bourhis caíram nas graças dos brasi-

leiros, que fizeram do quadrinho um hit. É nessa

maré extremamente favorável que chega às lojas

O Pequeno Livro dos Beatles. Se você gostou do

primeiro, vá com fé: este é ainda melhor. Além da

timeline pela carreira do grupo e dos integrantes

(até 2009), marca registrada do autor, Bourhis

vai mais fundo nas análises, dando notas para

cada álbum, single, EP e disco solo de John, Paul,

George e Ringo (mas esqueceu de Shaved Fish).

Isso traz momentos ainda mais engraçados, po-

lêmicos e apaixonados, em que fã, crítico e artis-

ta se misturam num equilíbrio empolgante. Como

no review do Álbum Branco: “É a única obra-

-prima que tem 25% das músicas dispensáveis,

sendo uma inaudível, e da qual gostamos mes-

mo assim!” Ou no do Sgt Pepper’s: “Ao fim e ao

cabo, um álbum apaixonante (...), que a falta de

espontaneidade torna, porém, um tanto gélido e

intimidante.” Outro atrativo é a capacidade gráfi-

ca que Bourhis tem de mesclar assuntos maiores

com notas curiosas, como as prisões de Paul por

porte de maconha ou um desenho do túmulo de

Eleanor Rigby. Bourhis tem uma memória privi-

legiada e tenta ao máximo ser sincero consigo

mesmo e com o legado da banda. Com isso, nos

deu um livro que, se não é genial, supre com lou-

vor a necessidade de se ler algo sobre os Beatles

de tempos em tempos. 3POR MATEUS POTUMATI.

2RAFAEL SICA

ORDINÁRIO

Quadrinhos na Cia

2011

2HERVÉ BOURHIS

O PEQUENO LIVRO

DOS BEATLES

Conrad

2011

+REVIEWS

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Thomas Pynchon é um desses heróis da literatura

que unem descontração, desvario e rigor formal

e narrativo de uma maneira tão peculiar e inex-

tricável que se tornou referência e paradigma. O

tal do “diálogo com a cultura pop”, que serve de

muleta para muitos, é apenas um ponto de parti-

da para o escritor americano responsável por um

dos grandes clássicos psicodélicos em qualquer

forma de arte, o monumental Arco-íris da Gra-

vidade. Voltando ao cenário de alguns de seus

romances/esfinges anteriores, a Califórnia dos

anos 1970, em Vício Inerente ele trata do declínio

da curva do verão do amor hippie e, numa es-

colha provavelmente nem um pouco ocasional,

lança mão do gênero policial para tanto, criando

um detetive doidão, Doc Sportello, misto de Sam

Spade e Hunter Thompson. O detetive da vez se

mete em encrenca por causa de uma ex-namo-

rada e termina por lidar com uma conspiração

na qual se misturam especuladores judeus e seus

seguranças nazis, hippies de diversas matizes,

surfistas, traficantes, contrabandistas, bandas de

rock, prostitutas e as mais variadas drogas. Ao

contrário de muitos escritores com pretensões

pop, Pynchon não é preguiçoso nem condes-

cendente com seus leitores, com suas afinidades

eletivas e nem com seus personagens, de forma

que ninguém passa impune por seus livros. Óti-

ma leitura introdutória para as obras mais densas

do autor. 3POR VELOT WAMBA.

2THOMAS PYNCHON

VÍCIO INERENTE

Cia das Letras

2010

+ENDEREÇOS

Centro Cultural São Paulo .

centrocultural.sp.gov.br

Choque Cultural .

choquecultural.com.br

Converse .

converseallstar.com.br

CUFA .

cufa.org.br

Cúpula Negredo / Periferia Ativa .

gruponegredo.blogspot.com

Museum Boijmans Van Beuningen .

boijmans.nl

Nike Sportswear .

nikesportswear.com.br

Simon Dickinson Gallery .

simondickinson.com

Soma .

maissoma.com

Volcom .

volcom.com

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