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+SOMA . #22
Uma busca no Google pelo nome de Joe Coleman em páginas
brasileiras ou de língua portuguesa retorna pouco mais de 700
resultados. A maioria deles leva a sites de compra, que listam San-
gue Ruim, versão nacional de um livro em quadrinhos do autor lançado em
2005, que segue sendo sua única obra publicada por aqui. Fora do Brasil,
a reputação de Coleman é bem outra. Além da relação com os quadrinhos,
que parou de produzir há alguns anos, o artista nova-iorquino tem uma
extensa carreira como pintor, que vive hoje o seu auge. Sob os cuidados da
respeitada Simon Dickinson Gallery, suas obras – um misto de arte religiosa,
quadrinhos de terror e um senso visceral de realismo – dividem espaço no
acervo com nomes como Botticelli, Picasso e Peter Blake (mais conhecido
como o criador da capa de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band). Já par-
ticipou de exposições ao lado de gigantes como Hieronymus Bosch, Pieter
Brugel e Hans Memling. Suas telas, que chegam a atingir mais de US$ 200
mil, são disputadas por um seleto grupo de colecionadores que inclui Jim
Jarmusch, Johnny Depp, Iggy Pop, Leonardo di Caprio e H R Giger. Cole-
man é também um dos únicos artistas contempoâneos que empolgam Ro-
bert Crumb a ponto de tirá-lo do isolamento para dar declarações públicas.
Nesta edição, a Soma apresenta uma seleção generosa de trabalhos e uma
entrevista inédita com um dos artistas mais impressionantes a emergirem
do underground estadunidense. Um visionário que retrata os lados mais en-
tranhados do ser humano como alguém que viveu inúmeras eras diferentes.
4DA SÉRIE GALDINO. GUGA FERRAZ.
Também tivemos o prazer de conversar com três visionários da mú-
sica: MV Bill, Han Bennink e Phil Minton. Bill nos deu uma entre-
vista extensa, repleta de opiniões francas e corajosas sobre política,
rap no Brasil, crime e televisão. Sem dúvida, uma das entrevistas de rap
mais importantes já publicadas nestas páginas. Bennink e Minton fa-
laram com a revista durante sua passagem no Brasil para o Festival
de Improvisação, ocorrido em São Paulo em dezembro de 2010. A con-
versa foi uma aula cheia de provocações e reflexões riquíssimas so-
bre improvisação, free jazz e o próprio conceito de música e arte.
A prova de que dois sexagenários podem colocar qualquer jovem no bolso
em matéria de vanguarda e ousadia artística.
Nos quadrinhos, MZK se junta a Rafael Campos e Nik Neves com a sé-
rie exclusiva de contos “Ezu Tales”, estrelando o sinistro Ezu. E mais: Guga Ferraz, Hÿpo/Pilot, João Lelo e Vincent Moon. Para ser visionário, pri-
meiro é preciso saber olhar.
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4DA SÉRIE GALDINO. GUGA FERRAZ.
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shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14
guga ferraz - 24hypo+pilot - 30
ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44
entre (outros) - 54vincent moon - 60
joão lelo - 66phil minton - 70
cagebê - 76seleta . boombox - 78
obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86
reviews - 92
shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14
guga ferraz - 24hypo+pilot - 30
ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44
entre (outros) - 54vincent moon - 60
joão lelo - 66phil minton - 70
cagebê - 76seleta . boombox - 78
obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86
reviews - 92
shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14
guga ferraz - 24hypo+pilot - 30
ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44
entre (outros) - 54vincent moon - 60
joão lelo - 66phil minton - 70
cagebê - 76seleta . boombox - 78
obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86
reviews - 92
+CONTEÚDO
4MOTHER AND CHILD. JOE COLEMAN.
shuffle . maurício takara - 12mv bill - 14
guga ferraz - 24hypo+pilot - 30
ensaio de fotos . o jardim - 34joe coleman - 44
entre (outros) - 54vincent moon - 60
joão lelo - 66phil minton - 70
cagebê - 76seleta . boombox - 78
obras primas - 82quem soma - 84quadrinhos - 86
reviews - 92
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4MOTHER AND CHILD. JOE COLEMAN.
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O PROJETO +SOMA É UMA INICIATIVA DA KULTUR, ESTÚDIO CRIATIVO COM SEDE EM SÃO PAULO.
PARA INFORMAÇÕES ACESSE: MAISSOMA.COM
KULTUR STUDIO . SOMA
Rua Fidalga, 98 . Pinheiros
05432 000 . São Paulo . SP
kulturstudio.com
REVISTA SOMA #22 . MARÇO 2011
Fundadores . KULTUR
ALEXANDRE CHARRO, FERNANDA MASINI, RODRIGO BRASIL e TIAGO MORAES
Editor . MATEUS POTUMATI
Editor Convidado . ALEXANDRE BOIDE
Fotografia . FERNANDO MARTINS FERREIRA
Projeto gráfico . FERNANDA MASINI
Arte . RODOLFO HERRERA e JONAS PACHECO
Conteúdo áudio-visual . ALEXANDRE CHARRO, FERNANDO STUTZ e
FERNANDO MARTINS FERREIRA
Colunistas . TIAGO NICOLAS, RICARDO “MENTALOZZZ” BRAGA, DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG,
PEDRO PINHEL, RAFAEL CAMPOS, MZK e NIK NEVES.
GOSTARÍAMOS DE AGRADECER A Whitney Ward, Holly Bawden e Simon Dickinson Gallery;
Pedro Potumati e Amauri Gonzo; Luciano Valério e Desmonta; Murinho Shiroma e Tati Ivanovici.
a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha,
anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!
Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram
apara que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.
Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de
seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.
Publicidade . CRISTIANA NAMUR MORAES . [email protected]
Para enviar sugestões e material para review, entre em contato
através do e-mail [email protected].
Periodicidade . Bimestral
Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros
culturais, shows, eventos e casas noturnas.
Veja os endereços em: www.maissoma.com/info
Impressão . Prol Gráfica
Tiragem . 10.000 exemplares
2CAPA . CAPTAIN BEEFHEART . JOE COLEMAN
2AO LADO . FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
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2CAPA . CAPTAIN BEEFHEART . JOE COLEMAN
Daniel Tamenpi
Jornalista, pesquisador musical
e DJ especializado em soul, funk
e hip-hop. Escreve o blog Só
Pedrada Musical, onde apresenta
lançamentos e clássicos da
música negra.
Raquel Setz
Jornalista musical apaixonada
por barulhos, experimentações
e esquisitices em geral - e por
melodias bonitas também, porque
não tenho coração de pedra.
Velot Wamba
Velot Wamba, 32, é a favor do
céu pelo clima e do inferno pelas
companhias. The Ex, João Antonio,
Tina Modotti, Robert Crumb e
Jackson Pollock - tudo junto e
misturado. Crê que as ideias são
imprescindíveis, os rostos não.
Marcos Diego Nogueira
É jornalista, gosta de som alto,
cerveja gelada e camisa xadrez.
+COLABORADORES
André Maleronka
1/2 Crass, 1/2 créu. Editor na
revista Vice.
Fotonauta
O Coletivo Fotonauta é: Andrea
Marques, Daryan Dornelles e
Eduardo Monteiro.
Michaël Patin
Tem 29 anos e é mestre em
sociologia das mídias. É também
crítico musical e realiza entrevistas
para a revista francesa Magic,
cuja especialidade é o pop
contemporâneo, desde 2003.
Amauri Stamboroski
Jornalista, cover do Jack Black e
orgulho de Ijuí. Durante o verão caça
insetos para a sua filha, Ramona.
Beatriz Lemos
Curadora independente e
articuladora de redes. Ama o Rio de
Janeiro, mas adora viajar por aí.
Se diverte entre residências e
projetos de intercâmbio com
artistas no Brasil e exterior.
Ana Ferreira Adão
Aos 28 anos, é mestranda em
literatura portuguesa na Sorbonne,
tradutora e professora de
português para estrangeiros
em Paris.
Lauro Mesquita
Jornalista, foi vocalista e guitarrista
do Space Invaders. Nas horas
vagas escuta um som e aproveita
a vida em Belo Horizonte, Pouso
Alegre e na idílica Heliodora.
Apesar de negar com veemência,
é roqueiro brasileiro nato.
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DISCO QUE VOCÊ
TIROU INTEIRO NA
BATERA
Safari Hamburgers –
Good times. Comprei esse
logo que saiu. Um dos
meus discos preferidos do
hardcore nacional. Teve
um pequeno período em que eu toquei bateria
no Safari. Lembro do primeiro ensaio, eu na febre,
sabia todas as viradas de cor.
DISCO PRA OUVIR
NUM BARCO EM PLENA
NOVA YORK
Dorival Caymmi –
Caymmi e Seu Violão.
Poderia ser um Built
to Spill também. Mas
o Caymmi já vem com
uma caipirinha pra matar a saudade do meu,
do seu, do nosso Brasilzão.
DISCO QUE VOCÊ ACHA
MAIS LEGAL LER DO
QUE ESCUTAR
Chico Buarque –
Construção. Esse
disco é só ideia foda,
arranjo cabuloso, letras
sinistras... Mas faz muito
tempo que eu não ponho pra ouvir.
DISCO DODECAFÔNICO
Black Flag – The Process
of Weeding Out. Esse
entortou a cabeça de
muita gente. As guitarras
mais dodecafônicas do
punk. Conexão boa de
música com improvisação, atonalismo, levada
pra frente e criatividade.
UM DISCO PRA
MEDITAÇÕES
John Coltrane –
Meditations. Disco
que bombou no meu
walkman no busão
indo pra escola. Marcou
muito. O Coltrane começando a tocar mais com
formações diferentes depois do quarteto. Fora
que tem “meu parcel” Pharoah...
DISCO DO CLUBE DOS
PRODÍGIOS
Grachan Moncur III –
Some Other Stuff. Esse
tá bombando neste
momento pra mim. Com
umas composições
soltas, improvisos meio “minimalistas” e uma
banda cabulosa com o Tony Williams na
bateria. O danado devia ter uns 18 anos quando
gravou esse disco. Esse é do clube.
DISCO DE UM IRMÃO
(DE SANGUE)
Againe – Sem Açúcar.
Época bem doida do
Againe, com o Carlos
cantando mais, e o som,
um skatepunk estranhão.
E é o disco de onde saiu o clipe que pôs os
desengonçados pra correr. Cena linda.
DISCO DESSE
PEQUENO QUE EU
PAGUEI MAIS PAU
Conta.
DISCO DE UM JAPONÊS
CABELUDO
Trio de Dez – Juntando
as Letra. Disco mais
de improvisação do
Rubinho, que tocava
no Tube Screamers. Ele
tocou baixo, bateria, teclado, instrumentos
de sopro e gravou. Processo bem raro pra
esse tipo de música, e que resultou numa
sonoridade muito boa.
DISCO DA LOW END
THEORY
A Tribe Called Quest –
Low End Theory. O único
disco que eu conheço
desses caras é o do
Flying Lotus. Low End
Theory me lembra mesmo o do Tribe. Já começa
explodindo. Também bombou no walkman.
POR TIAGO NICOLAS
Maurício Sanches Takara é o “mi” da Família Dó-Ré-Mi e o nosso M. TAKARA,
um pequeno gênio da música de vanguarda e
de retaguarda. Caçula de uma promissora família
de Pinheiros, Maurício foi criado para criar – batidas,
ritmos e melodias –, aprendeu música a fundo
e transcendeu do hardcore para as composições mais bem elaboradas com moral e autoridade. Conheça uns
plays que contribuíram para a formação do nosso
garoto de ouro.
FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
2TIAGO NICOLAS É 1/3 DA ESPARRELA
COM M. TAKARA
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O MENSAGEIRO E SUAS VERDADES
POR DANIEL TAMENPI . RETRATOS POR FOTONAUTA
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“EU FALAVA MUITO, DENTRO DA CIDADE DE
DEUS, QUE O HIP-HOP ERA A MÚSICA DA MENSAGEM,
QUE O HIP-HOP TINHA UMA VERDADE, E AS
PESSOAS COMEÇARAM A FALAR ‘OLHA O MENINO
DA VERDADE’ ( . . . ) E CHEGUEI AO MENSAGEIRO DA VERDADE. HOJE , COM
36 ANOS, VEJO QUE É UMA PARADA MUITO PRETENSIOSA . QUAL
VERDADE? QUE VERDADE É ESSA? HOJE O MV TÁ MAIS PRA ‘MINHA VIDA’ , ‘MINHA
VERDADE’.”
4FOTO POR OTAVIO LEITE
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ALEX PEREIRA BARBOSA , mundialmente conhecido como MV BILL, construiu nos últimos dez anos um trabalho firme e concreto, não só no rap e na música brasileira, mas também na área social. Seus diversos e bem-sucedidos projetos o levaram a ser reconhecido pela UNESCO, em 2007, como uma das dez personalidades mais influentes do mundo naquela década. Isso sem falar em seus discos, que elevaram ainda mais o nível do rap brasileiro. Com a agenda sempre cheia, o rapper separou um tempo e nos recebeu em sua passagem por São Paulo, no início de dezembro, para falar sobre carreira, projetos, passado, presente e futuro. 1
A sua história na música começou com o samba.
Veio de família, isso?
Na verdade fui induzido. Meu pai meio que me
chantageou. Como estava se separando da mi-
nha mãe e já era compositor de samba-enredo,
ele meio que me obrigou a puxar samba pra ele.
Tive uma iniciação com o microfone por causa
disso, mas não foi a minha iniciação na música.
Eu já queria ouvir rap desde cedo, mas minha
mãe me obrigava a ouvir o que ela queria. Hoje
agradeço por isso ser parte da minha formação
musical, apesar de ter sido a contragosto.
Eu li que a alcunha MV foi dada pela comunida-
de evangélica da CDD (Cidade de Deus). Você
teve uma infância religiosa?
Nunca fui religioso, mas sempre vi o hip-hop
como uma coisa muito próxima de uma reli-
gião. Hoje o hip-hop começou a demonstrar
que poderia trazer um certo status. Mas tem-
pos atrás o sentido era outro. Não tinha essa
coisa de visibilidade artística no hip-hop, era
muito mais pela militância, pelo ativismo. Pra
mim o MC era como um pastor evangélico, por
não discriminar o lugar onde tem que chegar,
mesmo os mais perigosos. Eu falava muito,
dentro da Cidade de Deus, que o hip-hop era
a música da mensagem, que o hip-hop tinha
uma verdade, e as pessoas começaram a fa-
lar “olha o menino da verdade”. E, como no
Rio tem a cultura do funk carioca, quando eu
falava que era MC, as pessoas perguntavam:
“Vai cantar o quê? O funk do tênis? O funk da
cabeça?”. Daí eu vi que teria que criar algo
único pra mim, e cheguei ao Mensageiro da
Verdade, que era o que me identificava. Hoje,
com 36 anos, vejo que é uma parada muito
pretensiosa. Qual verdade? Que verdade é
essa? Hoje o MV tá mais pra “minha vida”,
“minha verdade”.
E voce faz questão de continuar morando lá,
né? A CDD é o seu refúgio do mundo artístico?
É uma questão de identificação. É lá onde eu me
sinto bem, onde percebo que ainda tem muita
coisa pra ser mudada, que ainda tem muito tra-
balho por fazer. Fico em hotéis legais, almoço
em restaurantes bacanas, viajo de avião, tudo
isso faz com que os pés deem uma flutuada,
mas quando chego na Cidade de Deus parece
que os pés se fincam de novo no chão e vejo
qual é a realidade.
Como você disse, o Rio de Janeiro é uma ci-
dade que tem o funk como trilha principal do
povão. Qual foi seu primeiro contato com o
rap, e quando decidiu que era através do rap
que queria viver?
O Rio de Janeiro tem mesmo uma cultura de funk
muito forte. Mesmo antes do funk carioca em si, já
tinha o Miami Bass feito na Flórida, que dominava
o Rio. Talvez pela similaridade entre Miami e Rio.
Quando fui pra Miami pela primeira vez, enten-
di. Parece bastante, umas avenidas iguais às da
Barra. Cheguei em casa e comecei a revisitar uns
clássicos daquela época, e percebi que é um som
de clima de cidade praiana, e caiu muito bem no
Rio. E rolavam umas sessões nos bailes chamadas
de “rasteiros”, Gucci Crew, 2Live Crew, Tha Do-
ggs, de vez em quando vinha um Whodini. Pra
mim isso já era rap. Quando vi Colors – As Cores
da Violência, tive um esclarecimento do que era
o hip-hop. Isso foi em 88. Quando fui ver as coi-
sas que tinha, percebi: “Mas isso aqui é o rap”. Já
escutava LL Cool J, Mantronix, Ice T. Mas o gran-
de “plim” veio quando comprei os dois discos do
Public Enemy, o Yo! Bum Rush the Show e o It
Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, junto
com uma fita com vários videoclipes. Foi quando
vi que o hip-hop, além de ter um balanço maneiro,
uma música legal, um estilo de roupa que tam-
bém era fascinante, tinha ali uma coisa que eu po-
deria fazer, que poderia ser o grande diferencial
na minha vida e na minha comunidade. Quando
estive com o Chuck D na Cidade de Deus, disse
que sabia tudo que ele tava falando sem entender
uma palavra de inglês, só assistindo aos videocli-
pes. No encontro seguinte, em Washington, eu
mostrei uma fita com meus vídeos e ele disse a
mesma coisa. Essa linguagem do sentimento me
fez dizer “quero fazer isso da minha vida”.
No seu primeiro disco, Traficando Informação, ro-
lou aquele problema com o clipe do “Soldado do
Morro”. Você acha que, se esse clipe fosse lança-
do hoje, quando a mídia transmite ações violen-
tas ao vivo e na íntegra, teria o mesmo problema?
Acho que não. Até porque hoje a minha imagem
é quase globalizada, sou conhecido em muitos lu-
gares. Antes as pessoas não me conheciam, e nor-
malmente se tem um olhar de muita desconfiança
pra quem vem desses lugares. Até que se prove
o contrário, está se propagando o banditismo. E
eu tive que provar o contrário. Tive que recusar a
alcunha de bandido. A MTV foi proibida de passar
o clipe. Eu não aceitei isso. Se aceitasse, estaria
admitindo que de fato sou um bandido. Iria deixar
de fazer uma intervenção em uma discussão que
estava sendo levada pro lado errado. Apresentei o
vídeo pro [então ministro da Justiça] José Grego-
ri e perguntei se aquilo era crime. Ele disse que eu
só tava mostrando uma realidade que não pode
ser jogada pra debaixo do tapete. A partir de en-
tão, todos os jornalistas que estavam me acusan-
do voltaram atrás. E se o ministro não fosse um
cara compreensivo? Se fosse um cara reacionário,
fascista, e me acusasse de banditismo mesmo?
Eu ia ser condenado? Então comecei a questio-
nar qual era o critério utilizado pra determinar o
que é arte e o que é banditismo. Por exemplo, se
“Soldado do Morro” tivesse sido escrita por um
cara de classe média de pele clara, será que ia ser
considerada banditismo? E se o videoclipe fosse
com pessoas da mesma característica? O critério
tem uma dose grande de preconceito. Hoje eu
percebo que deu uma diminuída comigo por eu
ser uma pessoa famosa. No Brasil tem um racismo
velado, a pessoa se torna incolor, mas sei que pros
meus semelhantes que não têm a mesma fama
que eu a história continua parecida.
No disco Declaração de Guerra você apresentou
uma música mais trabalhada, com arranjos de
orquestra, naipe de metais, percussão e muitas
referências à música brasileira. Já era uma mani-
festação da intenção de fazer um rap mais gran-
dioso, que fugisse do lugar-comum?
As músicas do Traficando Informação são músi-
cas da minha vida inteira até aquele momento. Eu
gravei em 99, mas tinha versos de 89/90. Escre-
vendo em cima de base americana. Era a estrutu-
ra que a gente tinha pra começar. Hoje fico muito
feliz de ver a molecada começando com base
própria, uns arranjos bem feitos, algumas até me-
lhores que as gringas. É o processo de evolução
mesmo, e eu ia ficar triste se não estivesse assim.
Mas no nosso período era tudo muito limitado. No
Declaração de Guerra tive mais liberdade e condi-
“QUANDO VEIO A OPORTUNIDADE DE FICAR TRINTA MINUTOS NO AR (NO DOMINGÃO DO FAUSTÃO) , PRA FALAR DE TUDO QUE EU ESTAVA DESENVOLVENDO, VI QUE ESSA ERA A CHANCE. POR MAIS QUE TENHAMOS DISCORDÂNCIA COM A TV, A PERIFERIA TÁ VENDO. SE VOCÊ CONSEGUIR INSERIR ALGUMA COISA QUE FAÇA A POPULAÇÃO PENSAR DENTRO DE UMA PROGRAMAÇÃO QUE É RUIM, PRA MIM TÁ MUITO VÁLIDO . É UTILIZAR O QUE A GENTE CRITICA A NOSSO FAVOR.”
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“AGORA MESMO EU ESTAVA NUMA ESCOLA AMERICANA DE MILIONÁRIO AQUI EM SÃO PAULO, ONDE OS PRÓPRIOS ALUNOS PEDIRAM À DIREÇÃO PRA ME CONVIDAR PRA UM BATE-PAPO. SE EU TIVESSE AQUELA CABEÇA PRECONCEITUOSA NÃO IA. MAS É AÍ QUE TÁ. LÁ TÁ O MOLEQUE QUE É FILHO DOS DONOS DE EMPRESAS MILIONÁRIAS E QUE VÃO HERDAR ISSO NO FUTURO. SE FOREM HERDEIROS COM MAIS CONSCIÊNCIA SOCIAL, MAIS CONSCIÊNCIA DA RELAÇÃO RACIAL, DAS DIFERENÇAS DO BRASIL, SERÃO GESTORES MAIS HUMANOS.”
4F
OT
OS
AR
QU
IVO
CH
APA
PR
ETA
20
ções de grana pra trazer músicos pra tocar, já co-
nhecia outros produtores, não tive medo de ousar
e misturar. Uma das grandes sacadas desse disco
foi ter incorporado a música erudita através do
violino, que veio de uma sessão do filme O Último
Imperador. No momento em que entraram as cor-
das, um arranjo de um maestro chamado Saka-
moto, eu comentei com o Luciano (produtor).
Ele me mandou o beat com o sampler e sugeriu
uma orquestra pra acompanhar.
Hoje o rap já é uma música conhecida no Brasil,
em comparação com as décadas passadas. Mes-
mo com os altos e baixos, já temos prêmios dedi-
cados ao hip-hop, nomes na grande mídia, diver-
sas promessas. Como você vê essa evolução e o
que tem a dizer sobre o futuro do rap no Brasil?
Talvez tenhamos passado por um momento não
tão promissor pro hip-hop nacional. Por falta de
espaço. Às vezes também por falta de maturida-
de do próprio movimento. O rap achou que era
um movimento independente, esqueceu os ou-
tros elementos. Teve momento em que os DJs
só tocavam música gringa. Muitos dançarinos de
break foram dançar em grupos de axé, de funk.
Os grafiteiros começaram a frequentar galerias
de arte, fazer desenhos comerciais pra marcas,
lojas. Cada um foi pra um lado. Acho que esse
momento já tá ficando pra trás. Serviu pra uma
reciclagem do próprio movimento. Muita gente
parou pra rever seus conceitos. O Brasil mudou,
as periferias se modificaram. O governo Lula, com
todos os seus defeitos, trouxe mudança e trans-
formação pra periferia, e a nossa abordagem tem
que ser outra. Muitos daqueles moleques que
não tinham o que comer hoje estão com telefone
que tem câmera, sacou? Então a linguagem tem
que ser outra. Quem tá antenado nisso continua
se comunicando com a molecada de dentro e de
fora da favela. Estamos em um momento de reno-
vação, com muitos trabalhos de qualidade, mas
esses grupos ainda não têm visibilidade nacional.
4FOTO POR OTAVIO LEITE
21
O rap brasileiro sempre teve uma identidade
meio americanizada, principalmente na produ-
ção musical. Você acha que isso está mudando?
Acho que sim. Eu nem culpo as pessoas no pas-
sado, até porque fiz parte disso também. Foi um
momento. Só viveu isso quem começou muito
tempo atrás. Melhor do que ficar pensando no
que poderia ter sido feito no passado é pensar
no que a gente tá fazendo agora e no que ainda
vai ser feito daqui pra frente. A música do Brasil
tem a mesma diversidade da raça brasileira. Se
cada grupo de cada região misturar o rap com
essas músicas regionais, teremos uma diversi-
dade imensa no rap brasileiro. Engana-se muito
quem acha que o rap legítimo do Brasil vai ser
o rap com samba. Até porque o samba tem vá-
rias ramificações. Tem um grupo no Rio Grande
do Sul chamado Rafuagi que mistura rap com
música gaudéria. Outro de que eu gosto muito
pela originalidade é o Rapadura, desde o nome
até as batidas cheias de referências nordestinas.
No Rio tem o Romeu R3, o Ramonzin, que estão
fazendo música de gente grande, só que ainda
não têm disco, nem gravadora.
Lembro da primeira vez que você apareceu
no Faustão. Foi um fato inédito e causou uma
certa apreensão no movimento. Afinal, o rap
nacional sempre teve um discurso anti-Globo,
e a sua participação ia contra tudo isso. Como
foi essa decisão?
A minha decisão aconteceu antes, quando eu
comecei a ir pra São Paulo interagir com os gru-
pos e percebi que tinha que tomar um rumo di-
ferente. Muitos grupos recusavam a mídia sem
um mínimo de convicção do motivo por que não
iriam pra TV. As explicações não convenciam. Eu
entendo que pro Racionais é uma bandeira, mas
só deu certo com eles. Eu sou do Rio de Janeiro,
natural de uma comunidade que não tem cultura
de hip-hop. Posso manter meu senso crítico e fa-
zer o que quiser, e ali posso amplificar minha voz
e meu discurso. E eu tenho o que dizer. Não vou
me calar diante de uma ideologia que não é a
minha. Ele já tinha me chamado pra ir antes, mas
eu não aceitei, porque era pra chegar lá e cantar
uma música que não tocava no rádio. Dificilmen-
te as pessoas assimilariam aquilo sem ouvir no-
vamente. Mas quando veio a oportunidade de fi-
car trinta minutos no ar, sem corte, sem intervalo,
e não só pra tocar, mas pra falar de tudo que eu
estava desenvolvendo, vi que essa era a chance,
a minha forma de colocar o Brasil pra pensar. Fi-
camos 45 minutos no ar. Por mais que tenhamos
discordância com a TV, a periferia tá vendo. A
população brasileira não almoça nem janta sem
a TV ligada, é quase como mais um elemento da
família. Se você conseguir inserir alguma coisa
que faça a população pensar dentro de uma pro-
gramação que é ruim, pra mim tá muito válido. É
utilizar o que a gente critica a nosso favor.
Você acha que essa atitude de se isolar da mí-
dia acabou isolando o rap também?
Eu concordo com os que não querem ir. Princi-
palmente com quem não tem o que dizer, por-
que já tivemos algumas situações desastrosas
de alguém querer falar na televisão sem ter se
preparado. Nunca vi a mídia como inimiga, sem-
pre achei que poderia utilizar parte dela a meu
favor, a favor do coletivo. A minha atitude de não
aceitar fazer entrevistas fora da Cidade de Deus
é pra mostrar coisas positivas dentro da comuni-
dade. São formas inteligentes de utilizar a mídia
a favor do próprio movimento. Mas quem não
tem o que dizer pode continuar calado.
Você fez bastante barulho com a série Falcão
(que engloba livro, documentário e disco).
Conseguiu usar metade do Fantástico para a
exibição do documentário e isso gerou muitos
debates sobre o assunto. Que balanço você
faz desse trabalho?
Só vejo aspectos positivos. A gente ajudou a
colocar na pauta discussões importantes com
outro olhar, um outro foco. Toda vez que se fa-
lava desse jovem do tráfico, ele estava algema-
do, de cabeça baixa, era sempre alguém falando
por ele. Por conta da nossa proximidade e da
nossa história, conseguimos fazer esse jovem
falar. E nas falas deles percebe-se nitidamente
que o que precisa não é de mais policiamento
ostensivo, e sim de mais investimento social.
Muitos moleques daqueles que estavam dando
entrevista não conheciam o pai, vinham de fa-
mília desestruturada, tinham pouca perspecti-
va, e a gente acha que foi super positivo ver as
pessoas discutindo aquela realidade. Mas o Bra-
sil tem um histórico de comoção momentânea,
com o passar do tempo aquilo cai no esqueci-
mento. Por isso eu venho caindo dentro desde
2006, rodando o Brasil de ponta a ponta com
todo tipo de gente discutindo essa realidade.
Agora mesmo eu estava numa escola americana
de milionário aqui em São Paulo, onde os pró-
prios alunos pediram à direção pra me convidar
pra um bate-papo. Se eu tivesse aquela cabeça
preconceituosa não ia. Mas é aí que tá. Lá tá o
moleque que é filho dos donos de empresas mi-
lionárias e que vai herdar isso no futuro. Se fo-
rem herdeiros com mais consciência social, mais
consciência da relação racial, das diferenças do
Brasil, serão gestores mais humanos.
O seu novo trabalho, Causa e Efeito, está com dis-
tribuíção própria, em um esquema independente.
Da forma como estão as coisas na indústria fono-
gráfica, você acha que esse caminho é o ideal?
Pra mim tem sido. Colocamos mais de dez mil
cópias do CD na rua. Em um período de muita
pirataria, downloads, isso é um número muito
bom. Além disso, tenho um controle de onde
está chegando, tenho vendido muito nos shows.
Fiz um preço promocional pra combater não a
pirataria, mas os preços abusivos das gravado-
ras, que colocam o seu trabalho a 25/30 reais.
Isso só ajuda a fomentar a pirataria. Quando des-
cobri que pra fazer o meu CD na fábrica custaria
menos de R$ 2,50, fiquei puto com as gravado-
ras, mandei todo mundo se foder em pensamen-
to e resolvi vender eu mesmo a 5 reais. Acho que,
se todos os artistas colocassem os CDs a 5 reais,
ia dar uma aquecida no mercado fonográfico no
Brasil e seríamos pioneiros no mundo.
E essa história de atuar, como começou? Você se
imaginava atuando em Malhação dez anos atrás?
Antes de Malhação, eu já atuava nos meus vi-
deoclipes e fazia uns exercícios na companhia
de teatro da CUFA, a Tumulto. Do nada, recebi
um convite da Sandra Werneck pra participar do
filme Sonhos Roubados, que foi uma experiên-
cia muito legal. E então veio o convite pra uma
reunião com os diretores e o autor da Malhação.
De primeira eu achei que eles estavam convi-
dando a pessoa errada. Até porque eu tenho
uma metralhadora verbal que várias vezes esta-
va apontada pra Malhação, por ser um programa
que fala direto com a juventude, porém não dá
representatividade a toda diversidade que tem
no Brasil. Então eles vieram com um papo de
“A MÚSICA DO BRASIL TEM A MESMA DIVERSIDADE DA RAÇA BRASILEIRA . SE CADA GRUPO DE CADA REGIÃO MISTURAR O RAP COM ESSAS MÚSICAS REGIONAIS, TEREMOS UMA DIVERSIDADE IMENSA . ENGANA-SE MUITO QUEM ACHA QUE O RAP LEGÍTIMO DO BRASIL VAI SER O RAP COM SAMBA . [POR EXEMPLO, ] TEM UM GRUPO NO RIO GRANDE DO SUL CHAMADO RAFUAGI QUE MISTURA RAP COM MÚSICA GAUDÉRIA . OUTRO DE QUE EU GOSTO MUITO PELA ORIGINALIDADE É O RAPADURA , DESDE O NOME ATÉ AS BATIDAS CHEIAS DE REFERÊNCIAS NORDESTINAS.”
22
revisão dos conceitos da novela, fazer algo mais
real, que toque na questão social e racial, mas
eles não tinham credibilidade pra isso e acharam
que eu poderia trazer essa credibilidade. Fiquei
feliz quando ouvi isso. Que tinha credibilidade
pra alguma coisa (risos). Eles me apresenta-
ram uma série de coisas, e eu comecei a pensar
que aquilo poderia ser bom pra mim, pra minha
carreira, e também pro coletivo, pra discussão.
É uma serie que tá tocando em assuntos como
gravidez precoce, uso de preservativos, falan-
do sobre paternidade, relações inter-raciais, de
classes sociais diferentes O meu personagem
agora vai ser avô, e o epicentro da discussão é
essa criança, preta, afro-descendente, que na
maioria das vezes seria motivo de rejeição, as
famílias estão brigando pra ver quem vai ficar
com ela. Um programa como Malhação, de meia
hora diária, não vai mudar o histórico de dis-
tanciamento entre a mídia e a população afro-
-descendente, mas acho que pode ser o início
de alguma mudança.
Bem, vamos mudar um pouco de pauta. O que
você achou do governo Lula nesses oito anos, e o
que espera da Dilma nos próximos quatro anos?
A gestão do Lula modificou o Brasil. Muitas coisas
se tornaram possíveis através do governo dele,
mas também teve coisas que eu não esperava,
corrupção, lentidão em alguns setores. Ainda es-
pero mais investimento na educação, pois ela tem
que ser a bandeira de um governo que quer ver
uma transformação plena no país. Mas eu avalia-
ria como um governo que foi bom, que ajudou de
fato a transformar o Brasil, deu um passo muito
importante. Na gestão da Dilma espero que tenha
continuidade nas coisas que estão sendo feitas
e tenho grandes expectativas de que novas coi-
sas surjam também. Estou na torcida pra que dê
certo. Já deu pra perceber que ela é uma ótima
executiva, agora precisamos ver se será uma boa
presidenta. Torço pra que sim.
A carreira política é algo que te atrai para as
próximas décadas?
Hoje eu te diria que não tá na minha planilha.
Nem sei se é uma bandeira futura. Como sou mui-
to politizado, conheço muito do assunto, gosto
de ler sobre, me envolvo, debato, talvez seja um
caminho inevitável por conta desse envolvimen-
to. Mas hoje não vejo como um caminho.
Como anda a situação no Rio de Janeiro, com
toda essa política de combate ao tráfico com
a pacificação policial? O que você tem achado
das UPPs?
A gente não pode deixar que as UPPs se trans-
formem na única representação do Estado den-
tro da favela. Tem muitos outros problemas que
não são de ordem policial. Então precisa de uma
ocupação nas favelas que não seja somente rela-
cionada à área de segurança. Por exemplo, o que
aconteceu no Alemão? Teve a ocupação, mas
agora estou ansioso pra ver qual é a próxima
operação. Espero que seja na mesma proporção
da policial. Uma operação social. E que não che-
guem lá com a receita do bolo pronta. Tem que
consultar a comunidade, aproveitando as lide-
ranças locais, as ONGs que já estão trabalhando
lá dentro de forma séria. Devolver a comunidade
pra comunidade. Não deixar fazer politicagem lá
dentro. Espero que haja o mesmo investimento
pesado que tem na área de segurança, com tan-
ques de guerra gigantes, na área social.
As UPPs estão “limpando” as favelas das fac-
ções, mas não se vê uma política de reintegra-
ção desses soldados à sociedade. O que você
acha que deveria ser feito em relação a isso?
Tem gente que acha um absurdo, mas eu faço parte
de um grupo de pessoas que pensam que deveria
ter uma oportunidade pra quem quer largar o cri-
me, principalmente porque a gente não tem cadeia
que ressocialize ninguém. O nosso sistema penal é
completamente falido, as pessoas saem muito pior
do que entraram. Se tivessem chances de verda-
deiramente se ressocializar, muitos sairiam. Se não
existe essa chance de mudança, de busca por um
direcionamento positivo, é como se houvesse uma
obrigação de continuar na marginalidade. E, como
essas operações não têm prendido muitas pessoas,
elas estão migrando pra outros lugares.
Talvez você seja mais conhecido pela militân-
cia do que pela música em si. Qual o balanço
que você faz em relação a tudo isso e, princi-
palmente, em relação à CUFA?
Sou muito orgulhoso de ser conhecido por fei-
tos, por realizações. É lógico que, como músico,
quero mostrar minha música também, mas isso
não chega a ser uma frustração. Sou muito grato
à CUFA, porque foi onde tive a oportunidade de
colocar em prática aquilo tudo que eu tinha na
teoria, na música, no discurso. A CUFA me aju-
dou a fazer tudo isso virar realidade.
Além da carreira de ator, está com algum
projeto novo?
Tô fazendo músicas com a minha irmã, músicas
soltas, que o momento atual permite, que de
repente posso soltar na internet ou lançar num
EP com menos faixas. Estamos interagindo com
alguns DJs da cena, com versões diferentes das
músicas nas pistas. Tô com um projeto de livro
novo com o Celso Athayde, o CDD – Anos 80,
que traça um paralelo entre a minha infância e
adolescência até a transformação que a CDD
vem recebendo desde a chegada das Falanges,
dos armamentos mais pesados, até os dias de
hoje, com a pacificação da UPP. 3
“HOJE FICO MUITO FELIZ DE VER A MOLECADA COMEÇANDO COM BASE PRÓPRIA , UNS ARRANJOS BEM FEITOS, ALGUMAS ATÉ MELHORES QUE AS GRINGAS. É O PROCESSO DE EVOLUÇÃO MESMO, E EU IA FICAR TRISTE SE NÃO ESTIVESSE ASSIM.”
2SAIBA MAIS
mvbill.com.br
23
24
POR BEATRIZ LEMOS . RETRATOS POR FOTONAUTAA viagem começa na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Guga, ainda nos anos 1980, descobre o skate, se torna um dos
precursores do street carioca e faz da rua sua casa. Para os praticantes do esporte, o
espaço público é algo íntimo. A convivência direta com a cidade faz o skatista querer ser arquiteto: é a oportunidade de poder
construir prédios curvilíneos com rampas nas laterais e pistas longas.
Do curso de Arquitetura, Guga vai para a Escola de Belas
Artes da UFRJ, transformando-se em um dos protagonistas
de uma geração de artistas instigados pelos códigos e pelo
visual do Rio de Janeiro. Participa do coletivo Atrocidades
Maravilhosas e realiza, com outros artistas, os eventos Zona
Franca e Alfândega, ocorridos no início dos anos 2000 e
fundamentais para o entendimento da dinâmica coletiva de
trabalho de parte da cena carioca.
De lá para cá, GUGA FERRAZ vem produzindo uma obra
essencialmente pensada para o espaço público. Denúncias
visuais anônimas e ao mesmo tempo autorais, pertencentes
a uma memória urbana comum a qualquer cidade.
E abarrotadas de duras sinceridades. 1
25
g u ga
f e r r a z
C i d a d ã o
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R i o
26
Sua formação vem primeiro do skate, depois
passa pela Arquitetura e chega à Escola
de Belas Artes. Essas influências são muito
perceptíveis em suas obras. Como você
define essa intimidade com os códigos
e cotidiano da rua, os protagonistas e
coadjuvantes da cidade?
Acho que tem a ver com o jeito como eu andava
de skate, com a minha infância na Tijuca. Tem
a ver com o fato de tomar a rua um lugar seu.
No skate você se apropria do espaço urbano.
O skatista vê a calçada ou um corrimão de
forma diferente, de uma forma que um pedestre
normal não vê. Tudo está relacionado com o
skate e com a minha vida mesmo, não tem como
dissociar uma coisa da outra. Se falo de violência
é porque estou envolvido com ela. Se coloco
uma coisa na rua é porque a rua é realmente um
lugar em que eu me sinto à vontade.
O sarcasmo está muito presente em seu
trabalho, e isso já incomodou muita gente,
porque você lida bem com os códigos
visuais. Você é da opinião de que as pessoas
só atentam para um determinado fato
ou assunto quando são surpreendidas ou
incomodadas por eles?
Acho interessante a questão de ser
surpreendido pelo trabalho, que passa a fazer
parte do cotidiano daquela pessoa. Por isso
penso bem na mensagem, para que pareça
o mais institucional possível. Em No Caso
de Assalto, tentei fazer um texto simples,
usando os mesmos códigos usados pelas
empresas de ônibus. Tanto que tem gente
que vê o meu trabalho e acha que já viu em
algum outro lugar. Mas não, viu a imagem do
adesivo em um ônibus – a mensagem padrão,
sem a arma. Não tem outro jeito de falar
isso, entende? E reações das empresas são
naturais: a Fetranspor (Federação de Empresas
de Transportes Coletivos do Rio de Janeiro)
colocou uma nota no jornal dizendo que isso
não ajudava em nada a debelar o problema da
violência e ainda aumentava a insegurança dos
passageiros e de quem está ali trabalhando. Mas
o presidente da Fetranspor não anda de ônibus!
Nos ônibus em que experimentei colocar esse
trabalho e conversar com os motoristas, com os
trocadores e com os passageiros, eles falam o
mesmo: “Isso tem que ser assim, está certo. Que
campanha legal você está fazendo!” Porque
uma troca de tiro dentro de um ônibus é um
absurdo! Quando você fala de interferir no
cotidiano das pessoas, é isso aí. É o cara que
está indo pegar o ônibus, vê ali a imagem do
ônibus incendiado e para pra pensar.
Mas também acontece de reagirem
contra o trabalho?
Também acontece. No caso do Dormindo, as
pessoas se importam mais com o que aquilo
significa do que com o cara dormindo na rua.
Alguém vai lá e arranca o cartaz, que é apenas
a imagem daquilo, mas não tira o cara que está
dormindo na rua. Venho colando a imagem
de um índio armado em pontos de ônibus.
Quero ver alguém queimar um índio armado,
entendeu? Mas em Belém essa série Galdino
já tem outra história. Comecei lá o trabalho, e
no primeiro dia já tinham arrancado a cara de
alguns deles. Só a cara. Como se tivessem raiva
daquela identidade indígena da região.
“Eu tento chamar a
atenção para uma co isa que
não deve ser natura l . Não
é natura l uma pessoa dormi r
na rua ! A lgumas pessoas só vão
perceber i sso quando v i rem
um be l iche de o i to andares ,
no me io da rua , com pessoas
dormindo a l i . ” 4ACIMA, CIDADE DORMITÓRIO. AO LADO, RENDIDO.
27
28
“Fiz o desenho da antiga Praia de Santa Luzia,
aos pés da igreja que leva o mesmo
nome, com uma tonelada de sal
grosso. Era como se o mar t ivesse
acabado de recuar, deixando sua marca
de sal no asfalto. Gosto sempre de pensar na idade
das cidades por onde passo.
Nas camadas de arquitetura e
tempo.”
4ACIMA, ÔNIBUS INCENDIADO. AO LADO, ATÉ
ONDE O MAR VINHA. ATÉ ONDE O RIO IA.
29
E as pessoas ainda acham que você faz apologia à violência...
Isso aconteceu com o trabalho do Ônibus Incendiado. O chefe de polícia
civil da época insinuou que eu poderia ter envolvimento com o crime.
Hoje, o endereço desse chefe de polícia é o Complexo Penitenciário de
Bangu! O Ônibus Incendiado nada mais é do que uma crônica. É uma
imagem forte porque significa algo que está acontecendo na realidade.
Não tem como se distanciar disso. Pegou fogo em um ônibus da linha
410, em 2003, e morreu uma senhora de sessenta e poucos anos. Foi em
Botafogo, em um ônibus que eu sempre pego. Poderia ser minha mãe
indo visitar minha irmã! O mesmo se dá no caso da Cidade Dormitório:
uma vez um crítico citou o trabalho como a participação da arte dentro do
que se entende como o problema da cidade. Eu tento chamar a atenção
para uma coisa que não deve ser natural. Não é natural uma pessoa dormir
na rua! Algumas pessoas só vão perceber isso quando virem um beliche
de oito andares, no meio da rua, com pessoas dormindo ali.
Suas ações são frequentemente divulgadas pela imprensa carioca. Essa
repercussão na mídia é tão potente para o trabalho que se torna parte dele,
ou você encara apenas como uma estratégia para a mensagem circular?
Para mim a coisa acontece no lance de reverberar a imagem. Em uma
tiragem do jornal Extra, por exemplo, a imagem sai milhões de vezes.
Quando um jornal como esse – que é muito popular – fala sobre a Cidade
Dormitório, que é um trabalho de arte contemporânea, com meia página
debatendo sobre a obra, é interessante perceber como se pode atingir
um número de pessoas que não estariam envolvidas naquela questão e o
que a abordagem de certos assuntos pode vir a reverberar.
É bem verdade que a polêmica surge por
tocar em assuntos delicados para a sociedade,
como a violência. Contudo, seu trabalho
também aborda outras questões sobre
cidades. Mais poéticas, poderíamos dizer? Até
Onde o Mar Vinha, Até Onde o Rio Ia foi uma
grande ação que se desdobrou em fotografias
e vídeo. Como foi realizar esse trabalho?
Esse é um projeto em que eu já venho
trabalhando há alguns anos, com pesquisa de
fotos e mapas antigos. A primeira vez que ele
foi realizado foi numa interferência sonora no
Morro da Conceição, na extinta enseada, onde
fica a Pedra do Sal. Foram instaladas caixas de
som trazendo de volta àquela região o ruído do
mar, que foi afastado por obras de remodelação
urbanística no centro da cidade. Depois, numa
segunda fase do projeto, fiz o desenho da antiga
Praia de Santa Luzia, aos pés da igreja que
leva o mesmo nome, com uma tonelada de sal
grosso. Era como se o mar tivesse acabado de
recuar, deixando sua marca de sal no asfalto.
Gosto sempre de pensar na idade das cidades
por onde passo. Nas camadas de arquitetura e
tempo. E esse projeto fala sobre isso. Porém, fala
também sobre a manipulação do homem sobre a
natureza dos lugares, sobre os desdobramentos.
Eu documento praticamente todas as minhas
ações em fotos e vídeos. Em alguns casos, o
registro se torna também uma obra.
E agora, a realização da Pipa Avuada, no
Arpoador. Verãozão carioca e 500 pipas
coloridas no ar! É um trabalho que traz beleza
(e leveza), e que depende da interação de
muitas pessoas para que aconteça. Coisas
novas para você?
Essa ação eu já realizei algumas vezes em
lugares como as barcas de Niterói, o Rio da
Prata, em Buenos Aires, e o morro do Pavão-
Pavãozinho, em Copacabana, mas nunca com
essa quantidade de pipas e pessoas envolvidas.
É um trabalho que depende das condições
climáticas e da participação do público, que
são as pessoas que estão na praia. Sempre
achei lindo o movimento da pipa sendo levada
pelo vento, quando a linha é cortada, e o
valor de uma pipa avuada para as crianças
que brincam nas ruas e se arriscam para
conseguir esse troféu de papel e bambu. São
coisas simples, mas que, se vistas com carinho,
rendem imagens preciosas! 3
4GUGA NA PRAIA DURANTE O PIPA AVUADA.
2SAIBA MAIS
gugaferraz.blogspot.com
30
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Como você descreveria a sua música pra uma
tia velha durante um almoço de família?
Eu diria que é pop. Pop eletrônico. Que passa
por coisas estranhas. Hoje em dia, a maior parte
das minhas músicas é cantada, mas esse forma-
to está começando a me cansar. Talvez eu vol-
te a fazer coisas mais instrumentais. A música
eletrônica dita “experimental” evoluiu, mas tam-
bém se exauriu de certa forma. O minimalismo, o
trabalho de freqüências, a estética do erro, tudo
isso está muito esgotado. Por outro lado, ouve-
-se muito pop eletrônico com canto. Eu adoraria
sair dessa, encontrar outros caminhos.
A impressão que se tem é a de que é impor-
tante pra você ter uma postura definida com
relação à produção musical atual.
Sim, mas é difícil, porque isso pode acabar sendo
visto como uma atitude reacionária. Ao mesmo
tempo, estamos em uma época em que se tem
direito a ser um pouco reacionário. Reclamar faz
bem, é saudável. Tento permanentemente man-
ter um equilíbrio entre o meu entusiasmo e meu
lado “velho ranzinza”.
Infelizmente, você continua pouco conhecido
na França.
Sim, é claro. Se eu fosse conhecido, venderia
mais discos! (Risos) Sou mais conhecido no Ja-
pão, na Alemanha e na Suécia do que na Fran-
ça. Pro Coco Douleur, só consegui distribuição
na França e no Japão, então os ventos não têm
sido muito bons pra mim.
Você nunca tentou compor um hit pra poder
financiar seus discos?
Me sinto incapaz de fazer isso. Essa coisa do
“exercício de estilo” me desestimula. Mas eu
adoraria que isso acontecesse.
Mas, ao mesmo tempo, você assumiu o partido
da gratuidade, disponibilizando o download da
maior parte dos seus discos no seu site…
Menos os últimos, porque não quero sabotar a mi-
nha gravadora [Tsunami Addiction], que luta pra
sobreviver. Mas tenho vontade de manter esse as-
pecto. No dia em que propuserem um formato di-
gital de boa qualidade, sem perdas, vou entender
que vendam música dessa forma. Ainda é o dis-
curso do velho ranzinza. (Risos) Quando compro
um disco, também o coloco em mp3 no meu com-
putador, é mais prático. Só acho estranho valoriza-
rem uma forma inferior às anteriores. Hoje em dia,
os sistemas de escuta e mastering são adaptados
pra compensar a mediocridade do mp3. Não é
algo que se possa chamar de progresso.
E você já pensou em soluções pra se posicionar
diante da crise do disco?
Acho que o desmoronamento da indústria do
disco foi merecido. Infelizmente, isso vem acom-
panhado de uma mudança no status do artista.
Hoje em dia, todo mundo pode fazer música e
HYPO
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A. 1
D ez anos de carreira e quase tantos discos
quanto anos nas costas: Antony Keyeux,
mais conhecido como HYPO, está longe
de ser um iniciante, mas ainda evolui nos recantos
mais sombrios do underground. Sua última cria-
ção, no entanto, Coco Douleur, foi a melhor coisa
que aconteceu à música eletrônica francesa em
2010. Nada de intelectualismo enfadonho ou de
hedonismo beato, mas uma música lúdica e peri-
gosa, que oscila entre pesadelo pop e melancolia
sintética. Um encontro com um laboratorista in-
tratável, que sabe o preço de sua liberdade.
Pra começar, como você se sente “represen-
tando” a França em uma revista brasileira?
Fico lisonjeado, claro. Você poderia ter pegado
qualquer um do Ed Banger no meu lugar… Mas,
enfim, estou pouco me lixando pra minha origem
francesa. Quando comecei, a música até podia
ser projetada em termos de polos geográficos,
mas agora, com a internet, houve uma explosão.
Me interessa saber de onde vêm as pessoas, mas
isso não chega a ser um critério. Em Coco Dou-
leur, tive a colaboração de australianos, america-
nos que moram no Japão, japoneses que moram
em Berlim… Da próxima vez, por que não fazer
alguma coisa com brasileiros?
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31
torná-la acessível, há uma renovação permanen-
te que torna as coisas cada vez mais descartá-
veis. Todos os critérios de avaliação são turvos.
Aos poucos, vai haver uma espécie de faxina.
Sempre vai existir gente pra comprar discos e
gravadoras pra defender estéticas diferenciadas.
Quais são suas técnicas de criação?
Principalmente programação, colagem e sam-
pling. Eu sequer tenho um estúdio pra gravar
as vozes das pessoas que participam dos meus
discos. As colaborações não se limitam ao canto.
Geralmente envio uma base aos convidados, eles
fazem propostas e depois eu faço uma seleção. É
mais um trabalho de agenciamento e de escolhas.
Como você concebe os seus shows?
Não tenho uma relação de paixão com apre-
sentações ao vivo, sou apaixonado pela mu-
sica de estúdio. Neste momento, tem acon-
tecido uma revalorização dos shows, de um
caráter rock’n’roll com o qual eu não me sin-
to muito à vontade. Mesmo assim, o fato de
ter integrado um baterista no palco me abriu
novas perspectivas. No final de 2009, fomos
convidados pra fazer três shows de música im-
provisada no Centre Pompidou, com diversos
convidados, e foi muito prazeroso para mim.
Quero desenvolver esse aspecto, mas sem cair
na paródia do “verdadeiro músico”. O proble-
ma, agora, é que a gente ouve muitos bons
músicos, mas poucas músicas boas.
A sua discografia já é notável, em especial seus
quatro álbuns solo. Você poderia nos falar um
pouco de cada um deles?
O primeiro, Kotva, surgiu com a microgravadora
inglesa Spymania, que lançou os primeiros EPs
do Squarepusher e o primeiro álbum do Jamie
Lidell. Eu tinha descoberto a cena Rephlex/
Warp, que me impressionou bastante, por vol-
ta de 1994. Depois, descobri a gravadora ale-
mã Tomlab e toda a escola do sampling: Stock,
Hausen And Walkman, People Like Us, V/Vm…
Misturei todas essas influências do meu jeito,
de maneira um pouco ingênua. Um disco tão
lo-fi não poderia ser lançado hoje. Mesmo as-
“Estou pouco me lixando pra minha origem francesa. Quando comecei, a música até podia ser
projetada em termos de polos geográficos, mas agora, com a internet, houve uma explosão.
Me interessa saber de onde vêm as pessoas, mas isso não chega a
ser um critério.”
32
sim, ele ainda está no Warpmart (loja de música
online), apesar de nós só termos vendido quatro
exemplares! (Risos) A partir do segundo álbum,
Karaoke A Capella, comecei a ter muitas cola-
borações. Eu dava um curso de iniciação à mu-
sica eletrônica a estudantes de artes plásticas,
estava numa de Barthes, na morte do autor, esse
tipo de teoria. Queria criar uma certa confusão,
multiplicar as direções e incluir elementos que
não eram de minha autoria. Minha gravadora
na época [Active Suspension] ainda era nova e
não defendeu muito o álbum. Como eu estava
contrariado, engatei em um disco mais difícil, o
Random Veneziano, que é pomposo e barato ao
mesmo tempo. As opiniões divergem: há quem
diga que esse é o meu melhor disco e os que
pensam que ele foi feito de sacanagem.
Durante algum tempo, tive dificuldade pra pen-
sar numa continuação. Meu álbum com o EDH
[The Correct Use of Pets] deu início à minha
volta aos trilhos. Precisei de um tempo até con-
seguir chegar com um disco coerente, que cele-
brasse sua época e a criticasse, que contivesse
ao mesmo tempo leveza e pathos. Coco Douleur
foi tido como uma espécie de best of do que
eu tinha feito de melhor, mas não consigo con-
cordar com isso. A crítica que mais me entris-
teceu foi a seguinte: “um excelente disco, que
nos faz ter vontade de ouvir os antigos”. Que
merda! Acho que esse disco abre novos horizon-
tes, mesmo que tenha uma dimensão nostálgica.
Quais são os seus projetos para um futuro
próximo?
Conheci recentemente um VJ com quem tenho
vontade de trabalhar. Normalmente eu detesto
os VJs, porque eles servem de paliativo: “vocês
vão entediar os seus ouvidos, então nós vamos
ocupar os seus olhos”. Esse VJ parece fazer as
coisas de outro jeito. Ele não usa um telão, mas
projeta cores diretamente nos músicos. E ele
improvisa tudo, o que nos permite dialogar. Fi-
zemos um show juntos em uma galeria de arte
e vamos reproduzir a experiência em breve em
um hospital psiquiátrico. Não faço ideia de como
o público vai reagir… É fácil fazer loucuras num
show, mas e quando você está entre loucos de
verdade, faz o quê?
33
PILÖTO RO C K E M T R A N S E
O PILÖT esperou quase um ano até que
uma gravadora enfim lançasse seu pri-
meiro álbum, apesar de dois EPs auto-
produzidos e shows cada vez mais devastado-
res. Foi o que aconteceu com Mother, em que
o quarteto parisiense revitaliza o noise rock
dos anos 90, com ajuda de melodias multico-
res, ritmos tribais e samples iluminados. Nós nos
encontramos com o instrumentista Antoine e a
vocalista Alex para falar da estreia do grupo na
corte dos grandes.
Uma das particularidades e forças do Pilöt é
a sua voz, Alex. Esse jeito de torturar o inglês
é proposital?
AL . Não, nada é calculado. Algumas pessoas
me entendem bem, outras não entendem nada.
Talvez isso esteja ligado às minhas origens, uma
mistura de Bretanha (região da França à beira
do Canal da Mancha), de Bélgica e de Grã-Bre-
tanha. No início, eu não queria me fazer enten-
der. Hoje em dia, trabalho mais na simplicidade,
ficaria feliz se ouvissem meus textos.
Existe esse clichê que diz que muitos grupos
franceses escolhem o inglês por facilidade,
porque assim se pode cantar qualquer coisa…
AL . Não é o nosso caso. Na verdade, isso só
incomoda aos franceses, os estrangeiros nem
se importam com isso. Eu adoraria cantar em
francês, mas não tenho certeza de que vão me
entender melhor. Desde pequenininha, sou apai-
xonada pelos sotaques, então criei a minha pró-
pria maneira de pronunciar as coisas. Lamento
se isso incomoda os puristas.
E esse é um pouco o paradoxo do Pilöt: vocês
querem fazer uma música complexa e acessí-
vel, perturbada e pop.
AL . É no palco que a gente consegue se doar
de verdade. Não ficamos prostrados diante dos
nossos amplificadores, nós tocamos com um
espírito de troca.
AN . Nós amamos o lado acessível do pop, mas
quando ouvimos um riff que parece já existir na
música de outra pessoa não nos interessamos.
No final das contas, é bom ficar em cima do
muro, tentar aliar pesquisa e belas melodias.
Por falar em show, vocês escreveram no Mys-
pace que gostariam de “morrer e renascer” pro
público. É uma expectativa ambiciosa.
AL . Eu nem sei direito de onde isso veio… Se
eu canto, é pra passar pro público uma certa
intensidade em nível emocional. Esse é o lado
místico do Pilöt. Nós queremos criar um transe,
uma forma de catarse.
AN . Às vezes a gente consegue, mas ainda há mui-
to trabalho a ser feito pra atingir nosso ideal. 3
“Eu adoraria cantar em francês, mas não tenho certeza de que vão me entender melhor. Desde pequenininha, sou apaixonada pelos sotaques, então criei a minha própria maneira de pronunciar as coisas. Lamento se isso incomoda os puristas.”alex
Como vocês formaram o Pilöt?
ANTOINE . Eu conheço o Victor (outro instru-
mentista da banda) há um bom tempo. Come-
çamos a trabalhar juntos e queríamos montar
um grupo com uma verdadeira voz rock femi-
nina. Colocamos um anúncio e Alex respondeu,
simples assim. Tocamos juntos algumas vezes,
depois nos separamos por um ano… Problemas
de personalidade forte, sem dúvida. Não sabía-
mos bem o que queríamos na época, procurá-
vamos uma Missy Elliot com a voz de uma Kim
Gordon, era um pouco demais!
ALEX . Eles não estavam prontos, nem eu. Eu
ainda tinha muitos problemas de ritmo.
Mas vocês acabaram se reencontrando. Bela
história…
AN . Um dia fizemos uma análise de todas as
vocalistas que tínhamos encontrado e perce-
bemos que Alex era a de personalidade mais
forte. E ela nos faz pagar por essa decisão des-
de então… (Risos)
AL . Da primeira vez, eles me demitiram por te-
lefone! Não sou a princesinha do grupo, sou um
menino que deu errado. Sou a mais insolente,
não tenho compromisso, ninguém mexe comigo!
AN . Você é a mais viril! (Risos)
Que artistas inspiram vocês?
AL . Sonic Youth, PJ Harvey, Sloy, Shellac…
AN . The Beastie Boys.
AL . Eu também ouvi muito Girls Against Boys
quando era menina. (Risos)
AN . Eu adoro as músicas que o Nino Rota com-
pôs pra Casanova, o filme do Fellini. Se colocar
um bumbo e uma caixa, elas viram excelentes
instrumentais de hip-hop.
AL . Nós também fomos muito influenciados por
filmes e livros. A minha heroína é a Tank Girl.
2SAIBA MAIS
hypomusic.net
myspace.com/00pilot
34
Um documentário imaginário sobre a relação do homem com o meio ambiente nos bairros Jardim Canadá e Vale do Sol, às margens da rodovia BR-040, subúrbio de Belo Horizonte.
Em duas pequenas porções de periferia, com toda a
diversidade que pode haver entre pequenas indústrias,
ateliês de artistas, restaurantes chiques, residências de
classe média, favelas, oficinas e até galerias de arte,
esses bairros aparecem em minha imaginação como um
resumo do avanço da ocupação humana no planeta, a
materialização do pequeno — mas poderoso — conto de
Jorge Luís Borges, “Do Rigor da Ciência”:
“... Naquele Império, a arte da cartografia atingiu uma tal
perfeição que o mapa duma só província ocupava toda
uma cidade, e o mapa do império, toda uma província. (...)
(...) menos apegadas ao estudo da cartografia, as
gerações seguintes entenderam que esse extenso
mapa era inútil e não sem impiedade o entregaram às
inclemências do Sol e dos invernos. Nos desertos do oeste
subsistem despedaçadas ruínas do mapa, habitadas por
animais e por mendigos. (...)”
Em dezembro de 2008, passei a residir na região
e identifiquei ali essa diversidade pulsante. Passei
a percorrer cada canto desses bairros para realizar
fotografias, através das quais procuro entender esta
"mistura" cultural.
O título “O Jardim” tem o intuito de levar o entendimento
sobre o trabalho para o lado metafórico da fotografia. Aqui
o que mais importa não é apenas a ocupação dos bairros,
mas o avanço da civilização sobre o que resta da natureza.
PEDRO DAVID
JARDIM
O
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2SAIBA MAIS
pedrodavid.com
44
JOE COLEMAN
fan
tasm
a d
a
velha Am
érica.
p OUCA COISA EM JOE COLEMAN atesta que ele é um homem dos dias de hoje. Seus valores,
gostos, jeito de vestir e técnica artística remetem a alguém ora da Alemanha renascentista, ora da Itália medieval, ora da Nova York do século XIX – em especial do grupo político Tammany Hall, que temperava seus trajes elegantes com doses desmedidas de bandidagem. 1
No passado, Coleman já se explodiu com
fogos de artifício e comeu ratos vivos em
performances públicas, releituras de shows de
horrores medievais. Tem uma coleção particular
de objetos perturbadores, o Odditorium,
que inclui fetos humanos em formol, sarcófagos,
bonecos sinistros de toda sorte e uma carta em
que Charles Manson o define como “um homem
das cavernas em uma nave espacial”.
Tudo isso faria de
Coleman apenas um
sujeito de gostos
exóticos, não fosse seu
talento assombroso para
a pintura.
Suas obras são
narrativas visuais e
textuais estonteantes,
ricas em detalhes tão
minuciosos que alguns
só podem ser vistos com
lentes de aumento.
Em seus 54 anos de
vida, Coleman já retratou
pessoas tão diversas
como George Grosz,
o assassino serial Carl
Panzram, Harry Houdini
e Captain Beefheart,
além de si mesmo. Pinta
telas de 2x1 m com um
pincel de cerda simples,
o que chega a consumir
seis dolorosos meses
de trabalho (o processo
causa dores fortes nas
mãos, que Coleman,
como um monge
beneditino, considera
essenciais para atingir o
resultado desejado).
Atualmente, o preço
de uma obra sua pode
chegar a mais de US$
200 mil, o que as
torna privilégio de um
seletíssimo grupo que
inclui gente como Jim
Jarmusch, Johnny Depp
e Iggy Pop. Jarmusch,
aliás, participa do ótimo
documentário Rest in
Pieces, de 1997, sobre
o artista. Coleman
falou com a Soma por
telefone, de sua casa
em Nova York, por
pouco mais de uma
hora. Uma conversa
pautada por um senso
raro de erudição e pela
franqueza dos que
estudam a alma humana
com obsessão.
POR MATEUS POTUMATI . FOTOS DIVULGAÇÃO
JOE COLEMAN
4ANOTHER CARPENTER WHO KNOWS WHAT NAILS ARE FOR.
46
Vou reformular então:
você acredita que
pintar serial killers
e outros foras-da-lei
tem algo a ensinar a
um artista?
Claro, porque os
perdedores não
escrevem a História.
Nos meus quadros,
eu permito que eles
tenham uma voz.
Todas essas vozes
merecem ser ouvidas,
são importantes.
É mais importante
aprender com os
perdedores do que
com os vencedores.
Eles perderam todas
as batalhas contra o
mundo, e todos nós
lutamos contra o
mundo. É importante
para qualquer ser
humano entender esse
caminho e entender
que todos podemos
segui-lo a qualquer
momento. E no final
todos nós perdemos
tudo, somos todos
derrotados. Eles apenas
perderam um tempo
antes, e a voz deles
deve ser ouvida.
Você fica imerso
por meses nos
seus quadros e
personagens. Quando
pinta alguém como
Carl Panzram (serial
killer estadunidense
do começo do século
XX), sente alguma
idenfiticação maior,
como uma síndrome
de Estocolmo?
É por aí. Também é
como o método do
ator, porque, quando eu
pinto uma pessoa, me
torno um pouco dela.
Descubro aspectos dela com os quais eu
possa me identificar. A vontade de seguir
em frente de qualquer forma, por exemplo,
que qualquer ser humano tem. Pra encontrar
a alma do personagem, tenho que olhar
dentro de mim e acabo o incorporando à
medida que dou vida a ele. A única diferença
é que isso se dá por meio de pinceladas em
vez de atuação.
Como construir um personagem, mesmo.
Exatamente. Não posso julgar, tenho que ser
aberto ao que eles sentem, ao que acreditam.
Deixá-los falar sem fazer nenhum julgamento
moral ou ético.
O filme Stendhal Syndrome, do Dario
Argento, é baseado em uma doença
psicossomática que faz as pessoas se
sentirem parte de certas obras de arte,
a ponto de terem alucinações ou desmaiar.
Isso pode ser particularmente pertinente
em relação ao seu trabalho, que tem muita
narrativa e detalhes. Em que medida você
considera necessário a um espectador se
sentir parte de uma obra sua para apreciá-la?
Não conhecia essa síndrome até assistir ao
filme, e só fui conhecer bem depois, quando
a Asia [Argento, atriz e filha do cineasta] me
mostrou. Mas pensei muito nisso depois e sei
que algumas pessoas que veem meus quadros
dizem passar por experiências parecidas. Não
é necessariamente intencional, mas a sensação
de arrebatamento é essencial para se ter uma
experiência profunda, como com ayahuasca,
peiote ou algo do tipo.
Você disse uma vez que só pinta coisas que te incomodam,
porque isso te ajuda a encontrar um sentido nelas. Já refletiu
sobre os limites entre se sentir incomodado e atraído pelas visões
perturbadoras das suas obras?
Sim. Eu sempre penso que há um elemento de atração e repulsa
nessas coisas. Também é um modo de superar essas visões:
fazer amizade com elas, transformá-las. Elas se tornam algo que você
consegue ver claramente, mas pelo qual também cria certa afeição.
Acontece o mesmo com a minha coleção de objetos perturbadores.
Ter esses objetos nas mãos me permite fazer amizade com eles e,
assim, dominar seus aspectos perturbadores.
Pergunto isso porque certa vez você disse que, se não fosse artista,
provavelmente seria um serial killer.
(Risos) Isso é parecido com o “Keep On Truckin’” do Crumb.
Eu me arrependo um pouco dessa frase, foi algo que eu disse há
muitos anos e fica sendo repetido...
4BURLESQUE
47
“É m
ais
im
por
tan
te
apre
nder
com
os
perd
edor
es d
o qu
e co
m o
s ve
nced
ores
.
Eles perderam todas as batalhas contra o mundo, e todos nós lutamos contra o mundo.”
4MEMOIRS OF A SIDESHOW GEEK
48
É por isso que minhas pinturas têm muitos detalhes: para arrebatar o
espectador. Quando uma pessoa está deslumbrada, ela se torna mais
sensível. Além disso, em certo sentido, é preciso ser quase difícil de
olhar. Assim, o espectador entra na imagem e tem uma experiência mais
profunda. Meus originais proporcionam isso, as pessoas se perdem ali:
começam lendo um pequeno texto, olham pra imagem da esquerda, da
direita. Quanto mais você olha, mais elas te sugam. Nesse sentido, é [uma
experiência parecida com] a síndrome de Stendhal.
Ainda não tive a oportunidade de ver um quadro seu pessoalmente
(Coleman nunca expôs no Brasil), mas gosto muito do seu site.
A experiência de visualização das pinturas é bem legal, são reproduções
em tamanho grande. Sei que não dá pra ver tudo, porque você faz
muitas coisas com lente de aumento, invisíveis a olho nu, mas dá pra ver
muitos detalhes.
Com certeza não, mas existe uma tour em vídeo pelos quadros, que é uma
experiência bem aproximada. Você já fez?
Fiz, sim. Seu site dá um sentido bem atual à frase do Charles Manson
a seu respeito, de que você é um “homem das cavernas em uma nave
espacial”.
(Risos) É isso. O vídeo transporta o espectador pra bem perto das
obras. Foi feito em formato de animação, com lente de aumento, micro
planos. Com os originais é bem diferente, mas ali é possível ter uma
sensação mais próxima da real.
Como as pessoas enxergam esses detalhes numa exposição? As galerias
fornecem lentes de aumento?
Às vezes, mas muitas pessoas que já conhecem meu trabalho trazem
suas próprias lentes. Fica a cargo do espectador, embora eu já tenha feito
exposições em que havia lentes de aumento disponíveis. Também dá pra
usar o que eu uso: lentes de joalheiro, que são mais práticas. Você pode
levar uma e enxergar do mesmo modo que eu.
Li em um artigo sobre
você que o sofrimento
é inseparável do seu
desejo de fazer arte.
Você pinta em telas
imensas, com acrílico,
lente de aumento e
pincéis de uma cerda
só, e já disse que é um
processo doloroso.
O quanto a dor é
importante para o
resultado final?
Pelo menos pra mim,
é fundamental. Tenho
uma conexão com
pintores religiosos,
devido ao meu passado
católico: Mathias
Grünewald, Pieter
Bruegel, Hieronymus
Bosch etc. É algo
muito espiritual. Os
manuscritos com
iluminuras eram em
sua maioria feitos
por monges em
monastérios. São as
obras com as quais eu
tenho mais ligação.
A Paixão de Cristo é
chamada de “paixão”,
então há paixão…
No sofrimento.
Sim, no sofrimento.
Acredito que, ao
tentar transformar
metais grosseiros em
ouro, os alquimistas
queriam transformar
sofrimento em arte.
Eu tento transformar
emoções grosseiras
numa espécie de beleza
sombria.
Na arte cristã existe sempre essa dualidade
entre agonia física e êxtase espiritual.
Você já disse que considera a metáfora da
comunhão uma das principais contribuições
do cristianismo para o mundo, embora não
seja cristão.
No nível do canibalismo, é fascinante. No
canibalismo, se devora quem se ama ou
respeita, jamais quem se despreza. Mesmo
quando é um inimigo, tem que ser um
inimigo que mereça respeito. É um ato
muito passional, e para fazer meus quadros
eu também devoro a pessoa que estou
pintando, de certa forma. Em um ato de
canibalismo, a pessoa que é devorada se
incorpora ao ser que a devorou. É o mesmo
com meus quadros: neles, eu devoro meu
personagem, sua psique e sua alma. Levo
tudo deles.
Você falou em Bosch e Bruegel, e já
participou de exposições com obras deles.
Como se sentiu ao se ver lado a lado com
artistas que considera mestres?
Expus ao lado de Bosch e Bruegel no
Bojimans Museum, na Holanda. Também
expus com Memling em Nova York e com
vários outros… Eles são chamados de
primitivistas flamengos, mas o trabalho
deles não é nada primitivo. Foi uma
comparação interessante de fazer. [As
exposições] estão disponíveis no meu
site. A “Devotional Maternal”, na Dickinson
Gallery (com Hans Memling), foi há três
ou quatro anos. Eu me garanti, não fiz feio
(risos). Me senti bem e orgulhoso de trazê-
los comigo para os dias de hoje. E prefiro a
companhia deles à dos artistas do [bairro
descolado de Manhattan] Chelsea (risos).
49
Eu
tento
transform
ar em
oções grosseiras num
a espécie de b
eleza somb
ria.”
“A P
aix
ão
de
Cri
sto
é c
ham
ada
de ‘p
aixã
o’, e
ntão
há
paix
ão n
o so
frim
ento
.
Acredito que, ao tentar transformar metais grosseiros em ouro, os alquimistas queriam transformar sofrimento em arte.
4LIZ RENAY
50
Além dessa formação,
você também tem
bastante influência
de quadrinhos,
especialmente das
coisas de terror da EC
Comics dos anos 50.
Sim, eles foram uma
grande influência quando
eu era mais novo.
E você mantém uma
conexão importante
com esse mundo,
publica seus livros
pela Fantagraphics
etc. Mas a maioria
ainda vê os quadrinhos
como uma forma
menor de arte.
Você já considerou
a hipótese de que o
seu trabalho poderia
ajudar a mudar essa
percepção?
Não tenho nenhuma
missão, no sentido de
convencer pessoas
sobre o que elas devem
encarar com mais ou
menos seriedade.
Mas gosto de
quadrinhos, e eles
foram importantes na
minha vida, no meu
desenvolvimento
artístico.
A ideia de narrativa sempre me cativou.
Não faço mais quadrinhos, mas meus
quadros são narrativas, o que tem conexão
com quadrinhos, mas também com filmes e
livros. A diferença é que, nos meus quadros,
a narrativa aparece em sua totalidade, de
uma vez, na frente do espectador. Em um
quadrinho, você tem que virar a página
para construir a história. Nas minhas
pinturas, constroi tudo sozinho. Cada
indivíduo tem um percurso diferente
e único.
Sua mulher, Whitney Ward, definiu você
uma vez como “Parte Tammany Hall, parte
Velho Oeste: um belo e onisciente fantas-
ma da velha América”.
Exato, foi para uma matéria no The Wall
Street Journal.
Foi uma bela definição.
Eu também achei, não poderia ser mais
perfeita. (Risos)
Como é ser um fantasma da velha América
na nova América?
Está mais difícil… Vários lugares
maravilhosos em Nova York estão
desaparecendo. É triste, porque muitas
coisas do passado que eu valorizava estão
sumindo, mas é a vida, é o que
vai acontecer.
Você já pensou em se mudar do país?
Crumb, que é fã do seu trabalho, se de-
cepcionou com os EUA e foi para a França.
Já teve o mesmo desejo?
Sim, já pensei em me mudar para a Europa e
talvez o faça. Não tenho planos agora, mas
gostei do tempo que passei em Berlim.
Eu e Whitney já conversamos sobre morar lá, mas ainda não é nada concreto.
Não me surpreendo ao ver a ascensão do fascismo em períodos como hoje,
em que existe certa dose de liberdade e decadência. Aconteceu na Alemanha,
na Roma Antiga. Essas coisas ocorrem de modo quase orgânico, e é possível
identificar um padrão, embora as características não sejam sempre as mesmas.
Dá para perceber que o padrão vai se repetir em um determinado momento,
assim como sabemos que a água vai ferver a certa temperatura. Se você
colocar alguns ratos em uma gaiola, eles ficarão bem, mas se lotar a gaiola eles
vão se estraçalhar. É o que precisa acontecer no ponto em que estamos. É o
modo como a natureza lida com isso, está no nosso DNA.
Algumas das revoltas recentes em países árabes são atribuídas em parte à
baixa oferta de comida.
A comida também pode ser para o ego. Os poderosos têm gula. Nunca
estão satisfeitos, querem cada vez mais poder, é um vício. A ganância é algo
arrebatador. Assim como há gula por comida, há gula por poder.
Mudando de assunto, li que nos anos 1990 havia uma lista de espera para
comprar suas obras. Essa lista ainda existe?
Não, ela foi abolida. Os preços tiveram que ser reajustados para manter a
demanda. Quem cuidava dessa lista era a Whitney. Eu sempre tentei me
manter afastado e me preocupar somente com a pintura. Agora estou
trabalhando com a Dickinson Gallery, e é a primeira vez que me sinto
totalmente em casa. Eles expõem obras de todos os mestres e me deixam
muito à vontade. A Whitney não precisa mais lidar com essas coisas, porque
a galeria toma conta. Mas eu tento me manter afastado de qualquer forma.
Prefiro não saber o que acontece por lá.
Suas obras são colecionadas por pessoas como Iggy Pop, Johnny Depp, Jim
Jarmusch e Leonardo Di Caprio. Alguns deles se tornaram seus amigos.
Você acredita que o modo como pinta e os assuntos que escolhe o torna
mais próximo dos seus colecionadores do que a maioria dos artistas?
É o contrário: o modo como trabalho e os temas que escolho os trazem a mim.
Não estava procurando por eles, eles que vieram até mim. Talvez tenham os
mesmos interesses, identificaram um espírito semelhante e vieram até mim.
E eles podem ser de diferentes classes sociais, não apenas celebridades.
4PATHOLOGICAL FIRESTARTER
51
Qu
an
do u
ma
p
essoa
está deslum
brada, ela
se torna
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ais sensível.”
“A s
ensa
ção
de
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esse
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om
aya
hu
asc
a, p
eiot
e ou
alg
o d
o t
ipo
.
É por isso que minhas pinturas têm muitos detalhes: para arrebatar o espectador.
4A DOORWAY TO JOE
52
Você se define como uma pessoa tribal, que não acredita em humanida-
de, em minorias ou outros valores do tipo. Acredita apenas nas pessoas
da sua tribo. O que faz você e essas pessoas felizes?
Nos juntamos por razões que às vezes são estranhas, mas tenho uma
família formada por pessoas que são importantes pra mim, que eu
valorizo, defendo e de quem cuido. Não sou responsável pela humanidade,
pela Igreja Católica, pelos Estados Unidos ou coisa do tipo. Só me importo
realmente com a minha tribo, não posso ser responsável por nada além
disso. Tenho uma conexão imediata com elas, e isso é mútuo. Qualquer
coisa maior que isso é insensatez.
Sou uma pessoa espiritual [e estou] seguindo o meu caminho. Não quero
ser caracterizado como nada, nem como liberal, nem como um artista
marginal. Não gosto desse tipo de rótulos e não acredito neles, como
“anarquista”, “niilista”, “conservador”. Sou minha carne e meu sangue e
meus ossos. Vejo as coisas daqui e faço o melhor que posso com elas. Uso
minhas experiências, minhas habilidades e o corpo com o qual nasci e o
modo como fui educado… Essas são as cartas que tenho na mão, e tento
jogar o melhor que posso com elas.
Você já pintou muitas pessoas, de serial killers a artistas como Edgar
Allan Poe, e também amigos pessoais, como Indian Larry (bike builder
e dublê morto em 2004). Está trabalhando em algum retrato
novo atualmente?
No momento estou trabalhando em uma peça menor, para um livro
infantil, a convite do Tom Waits. São vários músicos, cada um escolhendo
seu artista favorito, e ele me chamou. O trabalho é colaborativo, e fiquei
honrado de ter sido chamado. Eu geralmente não faço coisas assim, mas
admiro muito ele e sua carreira como músico e ator. Ele também é uma
pessoa muito espiritual.
Só vai sair em livro?
Vai ser um livro mesmo, mas acho que haverá uma exposição junto. Vou
postar no meu site assim que souber de mais detalhes. Acabamos de
começar, deve demorar pelo menos um ano pra sair.
Falando em projetos
coletivos, você já fez
parte de um grupo que
criou capas para discos
da gravadora inglesa
Blast First Records.
Além de você, tinha
Gary Panter, Raymond
Pettibon e Robert
Williams, entre outros.
Gary e Raymond são
bem ligados ao rock
e ao punk. Qual a sua
relação com música?
Eu ouço e gosto de
muita coisa, e pintei
algumas pessoas cuja
música me inspira, do
compositor medieval
Gesualdo até Hank
Williams Sr. e Hasil
Adkins. Os três não
poderiam ser mais
distantes um do outro,
mas todos me dizem
algo. Recentemente, fiz
um quadro do Captain
Beefheart. Tenho uma
coleção grande de
música e ela me inspira.
Ouço discos enquanto
pinto e eles falam
comigo. Foi assim que
pintei Hank, Hasil, todos
eles. A música deles
acaba me dizendo o
que pintar.
Você produziu um
disco seu pra Blast
First, chamado Infernal
Machine, inspirado nas
performances medie-
vais que fazia nos anos
1990. Você chegou a
ser preso por causa de
uma delas, certo?
Fui preso várias vezes por causa das minhas
performances. Mandei emoldurar um
mandado de prisão que me acusa da “posse
de uma Máquina Infernal” (risos). Foi emitida
em nome de Joseph Coleman, vulgo Dr.
Momboozoo (nome que o artista usava nas
performances). (Risos gerais.)
Li que essa acusação não era usada desde
o século XVIII.
Sim, meu advogado me disse isso depois.
[Os policiais] chegaram depois do show,
olharam nos livros e tentaram achar uma
acusação. Foi o promotor que encontrou
essa. Seria mais difícil fazer algo parecido
hoje em dia, qualquer tiazinha pode ser
mulher-bomba (risos).
É, não seria uma boa ideia se explodir. As
pessoas estão com tanto medo que, se
você fizesse de novo, poderia levar um tiro.
Numa exposição recente, havia uma
série de miniaturas que acompanhavam
meu autorretrato gigante, A Doorway to
Joe. Uma delas, Pathological Firestarter
(“Incendiário Patológico”), é o retrato de
quando eu pus fogo no pátio da escola,
na infância. Foi ali que a minha Máquina
Infernal começou. Enquanto eu pintava essa
tela, refleti sobre o meu passado e vi que
poderia ter escolhido um caminho muito
mais sombrio, como qualquer um de nós.
Fiquei pensando no quanto fui sortudo e
abençoado por ter tido a vida que tive. Mas
eu queria mostrar, da forma mais honesta
possível, que essas coisas estavam dentro
de mim e, provavelmente, de todos nós.
Tentei confrontá-las, pintá-las e colocar
nesse tríptico que fiz, baseado em um ícone
cristão real. No meu caso, ao pintar sobre
esse ícone usando minha própria mitologia,
consegui redirecionar as forças da minha
educação católica.
2SAIBA MAIS
www.joecoleman.com
4A TOAST TO OLD CEMETERY
53
Essas são as cartas que tenho na mão, e tento jogar o melhor que posso com elas.”
“Não quero ser caracterizado como nada, nem como liberal, nem como artista marginal.
Nã
o go
sto
des
se
tip
o d
e ró
tulo
s e
não
acre
dito
nel
es.
Sou
min
ha c
arne
e
meu
sa
ngu
e e
meu
s os
sos.
..
4THE CHILD I NEVER HAD
entre (oUtros)ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO
QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE
CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
APOIO
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da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!
4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/CAVERA
BRUNO DICOLLA
O paulistano Bruno Dicolla chegou ao resultado que você vê abaixo estudando com
afinco artistas como Ida Ekblad, David Shrigley, Karel Appel e Shynola. Trabalha om vídeo
e ilustração comercial desde 2005.
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4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/GUILHERMEKRAMER
GUILHERME KRAMER
Guilherme Kramer mudou-se para um sobrado na cidade de São Paulo, onde pode
trabalhar em peças maiores. Sobrevive de arte, seja vendendo quadros ou ilustrando para
editoriais. Quando conheceu o nanquim, não o largou mais. Para ele, “desenhar é ordenar
o caos da vida”, algo que ele faz em companhias ilustres como Astor Piazzolla, The
National, Francis Bacon (“o cara é bruto”), Goya, Rimbaud, Jack Kerouac, Jack London,
Borges, Baudelaire e Van Gogh.
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4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/VERMELHOQUEIMADO
VERMELHO
O tímido garoto Cesar de Melo Ferreira encontrava refúgio nos animês de Katsuhiro
Otomo e nos quadrinhos de Dave McKean e Bill Sienkiewicz, entre os muitos nomes de
sua coleção. Na adolescência, conheceu OsGemeos e o universo da street art. Sua vida
mudou para sempre. Surgiu então, como nas histórias que lia na infância, seu alterego:
Vermelho. Desde então, dá seus pulos para viver só de arte. Seus temas principais são
os conflitos da mente humana, a religião, a sociedade de consumo e seus impactos no
planeta. Tem 35 anos, gosta de molduras antigas e vive com a esposa e três gatos.
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U m N ôma d e d o O l h a r
POR AMAURI STAMBOROSKI JR.
FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
De olhos arregalados, VINCENT MOON segura a câmera com firmeza enquanto passeia por uma chuva de verão em um quintal com piscina no Alto de Pinheiros, em São Paulo. A casa está lotada de con-vidados para a gravação do Take Away Show com o grupo paulistano Holger – a churrasqueira funciona sem parar, as me-sas estão cheias de garrafas de cacha-ça, vinho e latas de cerveja. De barba e boina, usando uma gravata meio torta sobre a camisa, Moon é um tipo franzi-no que não esconde a origem francesa. Seu sapato está furado e encharcado, então ele faz todo o trabalho descalço, acompanhado de uma minúscula equipe formada por alunos de uma oficina que ele deu na cidade. “Cara, isso está uma loucura, que bagunça”, ele desabafa em um inglês carregado. É o nosso terceiro encontro, depois de uma entrevista em uma lanchonete na região da Avenida Paulista e uma sessão de fotos na Casa do Mancha, na Vila Madalena, durante uma exibição de seus vídeos.
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Quando eu tinha 19 ou 20 anos,
comecei a ler os situacionistas. E
aquilo era uma filosofia de vida,
a arte como um processo do co-
tidiano. Adoro essa expressão, “a
revolução nos ombros da vida co-
tidiana”. Acordo todo dia e pen-
so: “Qual será a minha revolução
hoje?”. É como eu entendo o pro-
cesso criativo. Não ligo para pro-
jetos gigantes, “grandes filmes”,
quero trabalhar todo dia com algo
novo. Para mim, fazer filmes não é
mais importante do que tomar uma
cerveja com você. É algo peque-
no, simples, e todo mundo deveria
fazer. Não filmes, mas algo, criar
algo. Tenho amigos que fazem mú-
sica, outros filmam, outros tiram
fotos, e isso é ótimo. Não pelo re-
sultado, mas pelo processo. Mas eu
estou me desviando do assunto –
qual era a pergunta mesmo?
Quando você pegou numa câmera
pela primeira vez?
Foi complicado, comecei bem tar-
de, aos 20 anos – eu não sabia nada
até então. Comecei também a me
interessar por música, ia a muitos
shows, tive muita sorte por morar
em Paris. Então comecei a pesqui-
sar a relação entre cinema e música,
querendo descobrir quais foram os
documentários mais loucos sobre o tema. Pas-
sei a ter novas ideias, com uma forte crença no
cinema experimental. Comecei fazendo vídeos
bem lo-fi, para amigos, grupos pequenos como
o The National.
diferente entre um músico e um cineasta. Então o
criador do site Blogothéque estava com um pro-
jeto de criar vídeos de música na internet e me
chamou. Desde o início havia essa ideia de fazer
tudo com um take, uma câmera só, e foi assim,
começou há cinco anos.
A qualidade do som desses vídeos é incrível.
Como você faz para mantê-la?
Já fiz filmes suficientes para saber exatamente
do que preciso para conseguir um bom som.
Um som de boa qualidade é a espinha dorsal
do vídeo. Se você tem o som, pode fazer qual-
quer coisa com a câmera, pode girá-la em cima
do tripé, e sempre pode ficar interessante. Mas
se o som for ruim nada do que você fizer com
a câmera vai funcionar. Se alguém quiser saber
que equipamento eu uso pode entrar no meu
site, a lista está toda lá. É simples, às vezes eu
mesmo faço o som e cuido da câmera sozinho.
Você se reúne com os artistas que vai filmar,
cria roteiros?
Às vezes sim, mas muitas vezes tudo é improvi-
sado. Tinha que ser assim no começo em Paris,
porque as bandas ficavam na cidade apenas por
um dia, não havia tempo para nos reunirmos an-
tes. Hoje estou perdendo um pouco disso – os
artistas têm mais tempo para mim, antes não
tinham. Acabei de tomar um café com o Holger
para falar sobre o vídeo deles. Talvez eu já esteja
pensando demais. Não quero transformar isso
num clipe, quero manter essa improvisação. É
complexo manter esse equilíbrio entre planeja-
mento e improviso.
Qual foi a primeira banda que você filmou?
Acho que foi o National, tudo começou ali. Você conhece?
Sim, eu estava vendo A Skin, A Night (documentário dirigi-
do por Moon com as gravações do álbum Boxer, de 2007)
ontem, me preparando para a entrevista.
Isso é embaraçoso. Não consigo ver esse filme hoje – talvez
daqui a uns cinco anos. Acho horrível. Eu não estava pre-
parado para fazer um longa. Se fosse hoje nunca teria feito
daquele jeito. Mas enfim, tudo começou com o National. Eu
não me interessava muito por clipes. Conhecia outras coisas,
ouvia outras coisas, e achava que poderia haver uma relação
C om 31 anos, Mathieu Saura se tornou famoso na inter-
net a partir de seus Take Away Shows, vídeos grava-
dos em um take nas ruas de Paris com artistas como
Mojave 3, The Ex, Xiu Xiu, Vampire Weekend, Vic Ches-
nutt, Animal Collective, Stephen Malkmus e outra centena
de nomes. O sucesso rendeu convites para filmar longas
de grupos como R.E.M., Arcade Fire, Beirut e Efterklang,
além de viagens para os EUA, o Egito, o Sudeste Asiático,
a Argentina e, agora, o Brasil. Ele aportou em São Pau-
lo no final de novembro e seguiu viajando pelo país até
março, quando foi para a Colômbia. Passando por Porto
Alegre, Rio de Janeiro, Paraty, Ouro Preto, Salvador, Bra-
sília, Recife, São Luís e Belém, fez vídeos de funk carioca
e tecnobrega, filmou Dona Iná, Tom Zé, Elza Soares, Luli-
na, Jards Macalé, Naná Vasconcelos, Orquestra Imperial e
mais outra dezena de artistas.
Nas suas contas, apenas em 2010 ele visitou 16 países e
fez mais de 50 vídeos. Nômade por opção, já começa a
planejar uma viagem para a Indonésia. “Eu não recomendo
essa vida para os outros”, ele brinca durante a entrevista.
Falando sobre viver sem dinheiro, suas inspirações situa-
cionistas, tradições orais e o segredo para conseguir um
som perfeito, ele faz seu trabalho parecer fácil – mas é só
botar os olhos em um de seus vídeos para saber que nada
é assim tão simples. 1
Como começou o seu trabalho? Quando você pegou
pela primeira vez numa câmera?
Comecei a mexer com cinema depois de terminar a escola,
tinha uns 18 anos. Fui parar na Cinemascope, uma univer-
sidade de cinema, meio que por acidente. Não sabia nada
sobre cinema, nunca tinha encostado em uma câmera. Um
ano depois eu estava tirando fotos na rua, aprendendo a
olhar de outro jeito para as coisas – é como se estivessem
nos ensinando a viver. Tínhamos fotógrafos incríveis nos en-
sinando, e isso me influenciou muito. A filosofia que eu sigo
é “você faz e depois você cria” (“you make and then you
fake”). Você não escreve dezenas de páginas de roteiro e
fica tentando captar dinheiro, enrolando. Primeiro filme al-
guma coisa, e depois descubra o que você fez e como seu
filme pode crescer a partir daquilo.
“ Pa ra m i m , f a z e r f i l m e s n ã o é ma i s i m p o r t a n t e d o q u e t o ma r u ma c e r v e j a c o m v o c ê . É a l g o p e q u e n o, s i m p l e s, e t o d o m u n d o d e v e r i a f a z e r. N ã o f i l m e s, m a s a l g o, c r i a r a l g o. Te n h o am i g o s q u e f a z e m mú s i c a , o u t r o s f i l m a m , o u t r o s t i r a m f o t o s, e i s s o é ó t i m o. ”
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As bandas não se preocupam em ensaiar, deixar
tudo redondinho?
Não, o que importa é o momento. No começo eu
convidava as bandas para tocar na rua, e mui-
tas vezes era algo que elas nunca haviam feito.
Fiz um vídeo com os Shins uma vez, e foi ótimo,
eles eram bons pra caralho, todos em sintonia.
Tem uma diferença crucial entre as bandas ame-
ricanas e, sei lá, as francesas. Os americanos são
muito ensaiados, é sempre perfeito. Foi “1, 2, 3,
4, BAM!”, e eles destruíram. Depois fui conver-
sar com o James Mercer (líder do grupo) e falei:
“Nossa, foi ótimo. Vocês sempre fazem isso?”. E
ele: “Não, é a primeira vez. Ficou bom?” (risos).
Bons músicos sempre podem fazer isso.
Li no seu blog um post com um vídeo do [ar-
tista cambojano] Kong Nay, em que você dizia
que estava começando a repensar a forma de
filmar artistas tradicionais e que queria abrir
um selo. Qual é a diferença entre filmar uma
banda de rock e um músico tradicional?
A diferença é que o artista tradicional normal-
mente não fala a minha língua. E não sabe quem
eu sou. E não faz a mínima ideia de que eu que-
ro fazer um filme. E ele não se importa. Só se
importa em ganhar algum dinheiro. Existe essa
ideia totalmente ingênua – que eu descobri que
era besteira quando visitei o Egito pela primei-
ra vez – de que esses músicos ficam tocando
o tempo todo, que faz parte do cotidiano das
pessoas. Isso até é verdade, mas ganhar dinhei-
ro é mais importante ainda. Nunca encontrei na
Europa ou nos EUA algum músico que, no fim
de uma gravação, me perguntasse: “E então,
quanto eu vou receber?”. No Egito era impossí-
vel achar algum músico que concordasse em ser
filmado sem ser pago. É por isso que eu quero
criar um selo, para encontrar uma maneira de
pagar esses músicos tradicionais.
Tenho me interessado muito por gravações de
campo, todas aquelas coisas do Alan Lomax, e
também por cinema etnográfico, Jean Rouch,
sou um grande fã dele. Ele levantou a grande
pergunta logo no início disso tudo. A questão
é: qual é o tipo de relacionamentos que nós
criamos com nossos pesquisados quando os
filmamos? Ele estava vivendo na África na épo-
ca, e se via como parte da ação, não estava
lá documentando de uma maneira totalmente
objetiva. Isso é algo que eu defendo muito.
Acho que o século XX foi o século em que as
coisas foram arquivadas, foram criados arqui-
vos dessas culturas que estavam desaparecen-
do. O trabalho do Alan Lomax é incrível, mas
acho que chegamos a um novo paradigma. Já
arquivamos demais. Eu deveria arquivar essas
performances e colocá-las em uma porra de
museu ou tentar mexer com elas, fazer algo
novo? Então meu dilema agora é como filmar
de uma maneira objetiva colocando a minha
subjetividade nisso, tentando manter essas
culturas vivas sem respeitá-las, experimen-
tando com elas. Quando estive no Cairo não
consegui fazer isso, não tinha tempo suficiente.
Filmei momentos de música ritual, que é uma
música incrível, bizarra. E, mesmo sendo par-
te da cerimônia, afinal eles estavam dançando
para mim, acho que não consegui transformar
aquilo em algo novo. Quero fazer algo híbrido,
que é o que tento fazer também nos Take Away
Shows, algo que fica entre o cinema e a música.
Quero fugir dos gêneros. Assim que você colo-
ca as coisas em gêneros, você acaba com elas.
Talvez nós não precisemos arquivar tudo, “sal-
var” essas tradições orais. Antes da invenção do
fonógrafo muitas culturas nasceram e morreram
e ficaram sem registro. Por que não deixar essas
culturas contemporâneas seguirem seu rumo
natural, desaparecendo também?
Eu concordo com essa ideia de morte, de que as
coisas desaparecem. Vivemos numa cultura que
tenta manter tudo vivo, mas nada mais está vivo.
Nada mais desaparece, mas também nada mais
é criado. É um paradoxo terrível. Eu faço o meu
melhor para tentar superá-lo.
E o que te trouxe ao Brasil?
Eu vim para cá para dar essa oficina, e devo ficar
alguns meses. Quero explorar o país. Estou em
um ótimo momento da minha vida, tenho tem-
po, não tenho pressão nenhuma. Fico impressio-
nado com essa cultura extremamente diversa
que vocês têm, e o momento é ótimo, com mui-
tas coisas acontecendo. De certa forma estou
voltando às raízes daquilo que faço. Na minha
oficina eu estava falando para os alunos: filmes
não são nada, são inúteis. A arte é inútil. É um
pretexto para fazer outra coisa. Para mim é um
pretexto para viajar, conhecer outras pessoas.
Você se definiu como um nômade – quando
decidiu isso?
Como a maior parte das decisões da minha vida,
foi um acidente. Há cinco anos, quando comecei
a ver os novos equipamentos e os novos com-
putadores, eu pensei: “Meu Deus, talvez um dia
um cara possa viajar por todo o mundo fazendo
filmes. Isso vai ser maravilhoso, e eu vou querer
ver o que esse cara vai fazer!” (risos). Bom, eu
estava cada vez mais na estrada, sempre viajan-
do, e um dia pensei: “Bem que eu poderia viver
na estrada”. É cansativo, é difícil, mas é incrível.
E como você consegue captar dinheiro para os
seus projetos?
É uma questão interessante, porque eu não penso
muito nisso. Nós começamos os Take Away Shows
sem dinheiro algum. E foi uma ótima ideia. Não
havia nenhum dinheiro envolvido, então também
não havia nenhum contrato. Podíamos fazer o que
quiséssemos com os filmes. Às vezes um empre-
sário ligava: “Que porra é essa? Por que meu artis-
ta está nesse vídeo?”. E a gente respondia: “Bicho,
cala a boca. Quanto dinheiro você colocou nisso?”.
O projeto cresceu cada vez mais, e tive a chance
de fazer coisas maiores, mais longas – como os
filmes do Arcade Fire, do R.E.M. – ali havia dinhei-
ro envolvido. Algumas empresas começaram a me
convidar para projetos patrocinados. Eu aceitei
um e foi um desastre. Então só faço o que eu que-
ro agora, sem dinheiro, só pelo prazer. De onde eu
tiro dinheiro? Fazendo palestras, participando de
conferências, oficinas. E isso me dá uma liberdade
incrível. Quero experimentar o máximo possível,
um cinema faça-você-mesmo, lo-fi, feito na estra-
da. Gosto de ver a câmera apenas como uma fer-
ramenta, uma coisinha que fica entre mim e você.
Não tenho dinheiro, mas também não tenho mui-
tas despesas. Se estou com fome alguém acaba
marcando uma entrevista e paga o meu almoço
(risos). Mas eu tenho muita sorte, não recomendo
essa vida para os outros. 3
2SAIBA MAIS
vincentmoon.com
vimeo.com/channels/takeawayshows
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POR NATÁLIA LUCKI E MARINA MANTOVANINI . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
Com referências que vão de Mario
Bros. a Klimt, JOÃO LELO surge como uma lufada de ar fresco na cena carioca.
Iniciado no desenho por influência dos pais,
se envolveu posteriormente com telas e escultura, além das habituais paredes grafitadas pelo Rio de Janeiro.
Consciente de que o mercado oferece possibilidades de conduzir sua carreira
sem imposições, acaba de entrar no casting de
artistas da Choque Cultural. Por conta de sua formação como designer, a criatividade pictórica de João é baseada no universo vetorial, e suas pinceladas criam personagens pop em cores fortes como amarelo e vermelho. 1
O graffiti apareceu no Rio de Janeiro um bom tempo depois de
São Paulo, muito pela tradição que o pixo já tinha na cidade.
Fale um pouco sobre essa nova cena de street art no Rio.
São Paulo tem graffiti desde os anos 80. No Rio chegou
somente nos anos 90. Eu já sou da segunda geração, comecei
a pintar em 2000/2001. No final dos anos 80 teve uma
pequena cena de estêncil que morreu meio rápido, e no final
dos 90 começou o graffiti. O reconhecimento tem acontecido
faz uns dois anos, mas ainda tem preconceito, ainda não
aceitam o graffiti. O próprio pessoal que faz graffiti não se
posicionava como artista. Agora os caras já começam a pensar
numa produção de estúdio, sem ter que repetir o que se faz
na rua. Daqui a uns dois ou três anos vai ter uma cena bem
legal de artistas cariocas.
Tem lugar pra expor no Rio, galeria especializada, ou vocês é
que estão criando?
Está sendo criado. Não são os artistas, mas gente que está
no nosso meio, da nossa geração. Tem a La Cucaracha e a
Homegrown, que abrem espaço pra exposições e eventos
não só de graffiti, mas de tatuadores, lançamento de livros,
fotografias, calendários. É uma coisa bem DIY, ainda não está
virando muito, mas é feito de coração. E agora tem algumas
galerias que estão começando a abraçar isso.
Foi você quem chegou até os caras da Choque?
Foi uma coisa meio mútua. É um processo, você não
entra lá e faz uma exposição, eles fazem um trabalho
com você. No Rio ainda é um comércio, o curador
pega você, faz uma exposição, vendeu, acabou,
morreu. Na Choque, eles apoiam seus projetos. E eu
tenho muitas ideias de projetos pra realizar.
Pode contar?
A ideia é que em 2012, com a minha exposição,
eu faça a abertura com um bloco de carnaval. Vou
desenvolver tudo, carro alegórico, as vestimentas, os
detalhes todos. É uma ideia meio doida, mas os caras
sentam, escutam e ajudam a fazer. Isso é uma coisa
que não tive no Rio.
Você já tinha relação com o pessoal
de São Paulo?
Comecei a me interessar na parada de sticker
e de pôster, e por acaso vim pra São Paulo. Era
2000 ou 2001, e vi que aqui já tinha uma cena de
pôster, que eram os caras da SHN e Faca. Voltei
pro Rio, comecei a fazer pôsteres e adesivos e
conheci o pessoal da SHN. O Eduardo [Saretta]
ficou um tempo no Rio pra fazer uma pesquisa e
a gente ficou amigo. Foi ele que me falou de um
pessoal querendo fazer uma galeria, e era a Choque
Cultural. Na época, os caras não sabiam no que ia
dar. Eles já tinham algum conhecimento, porque
a Mariana é filha do Aldemir Martins, mas foram
descobrindo e criaram um modelo de galeria que
pra mim é um dos mais legais.
O lance da arte veio por causa dos seus pais, você
teve uma formação artística em casa. Quanto você
acha que isso influenciou seu trabalho?
Sou formado em Desenho Industrial, mas tenho
uma base de arte. Meus pais são arquitetos, mas
sempre pintaram. Sempre teve muito livro de arte
e quadrinhos em casa. Eu desenho desde sempre.
Desenhava com meu pai. Quando eu estava um
pouco mais velho, meu pai me colocava pra ajudar
ele a montar maquete. Quando fui fazer o básico
de desenho na faculdade, já tinha feito isso 18 anos
antes. Meu trabalho de arte é autodidata, a maneira
que eu uso o material muitas vezes não é a certa.
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Seu desenho é bem vetorial. Você acha que
a falta de um estudo técnico influencia na
sua produção?
Meu trabalho é muito chapado. São traços
muito definidos. Acho que o detalhe no meu
trabalho fica nessa parte de padrões. Eu não
trabalho com volumes. Meu primeiro curso de
modelo vivo foi na faculdade. Daí eu já tinha
meu estilo. Na verdade, sou um pouco contra
curso de desenho por isso, você acaba sendo
imposto a desenhar como o professor. Acho
legal o cara ter técnica, mas o legal é ter o
estilo dele, o que é mais difícil.
Na hora que você sai do 2D e vai pro
3D, precisa ter um pensamento espacial
completamente diferente. Como você está
trabalhando nisso?
Eu fazia uma exposição, e sempre gostava de
pintar a parede. Daí eu fiz uma em Belo Horizonte
em que pintei a parede e queria fazer umas
árvores, mas, em vez de pintar, montei com umas
caixas de madeira. Aí, na [exposição] Transfer, fiz
uma pintura e coloquei umas peças em volume,
uma brincadeira com as linhas no espaço.
Na verdade, eu ia a muita exposição e tinha
preconceito com instalação. Hoje em dia é o que
eu mais olho. Fui à Bienal e o que eu mais queria
ver eram as instalações, vou e fico olhando,
reparo até no material que o cara está usando.
Começou assim. E da instalação já parti pra
escultura. Mas não sei se chamaria de escultura, é
mais montar umas peças, voltando até um pouco
pro meu estudo básico de design de produto.
Você passou por linguagens completamente
diferentes. Saiu do desenho, passou pela área
acadêmica, o graffiti e agora as instalações.
Como vê a evolução do seu trabalho?
São linguagens diferentes, mas no final tudo
tem a ver. No começo, eu me ligava muito em
composição, diagramação. Isso me preocupava
muito no desenho, mas quando fui pra rua deixei
de lado. Fazia um desenho muito solto e agora
meio que estou voltando pra isso, meu trabalho
agora tem uma preocupação mais geométrica,
por mais que sejam personagens bem cartum.
Seus trabalhos têm uma paleta de amarelo
muito forte. Isso tem algum motivo?
Acho que tenho umas fases de cor. Montei
o meu site agora e, quando botei todos os
thumbnails dos trabalhos no portfólio, as
cores são amarelo, vermelho e marrom. Agora
tô começando a usar mais azul, é uma coisa
também do design, você pensa numa paleta de
cores. Quando fecho uma paleta de cor, tenho
uma enorme dificuldade de incluir outra.
Você era viciado em videogame, e seus
personagens são pura arte pop. Como você
desenvolveu esse trabalho?
Quando comecei a desenhar, as minhas
referências eram os quadrinhos. Eu não
fazia aula de desenho, mas jogava muito
videogame. E comecei copiando, lembro que
meus primeiros personagens do graffiti eram
umas coisas que eu fazia no colégio, uns caras
vestidos de coelho. Eu jogava Super Mario 3
e, quando as pessoas me perguntam minhas
referências, eu falo: Super Mario.
Mas você tem outras referências?
Sempre gostei muito do Schiling e do Klimt,
por causa dos livros de art nouveau que meu
pai tinha em casa. Quadrinhos dos anos 70,
as mulheres que os caras desenhavam. Meu
primeiro contato com o graffti foi com os caras
que faziam graffiti de letra, mais tradicional. Eu
experimentei, mas não foi uma coisa que bateu
em mim. Daí um amigo meu me trouxe um livro
do Futura (um dos principais nomes do graffiti
nova-iorquino). Quando vi aquilo, já sabia que
o cara fazia uns desenhos, mas não graffiti, foi
a primeira vez que bateu. Fiquei muito louco
com o trabalho dele.
Mas como pegou a lata pra pintar mesmo?
Quando você mergulhou nisso?
Tem um amigo meu, o Ipek, que faz um graffiti
mais de letra. Liguei pra ele e pedi pra me
chamar quando fosse pintar na rua. Ele fazia
as letras dele e eu ainda estava aprendendo,
fazendo uns personagens toscos. Com o
tempo fui pegando o jeito.
Você curte pintar com mais gente ou prefere
trabalhar sozinho?
Gosto de pintar com mais gente, mas são
poucas as pessoas com quem gosto de
trabalhar. As pessoas não sabem interagir,
tem muito mural de graffiti com trabalhos
separados. Isso pra mim sempre foi sem graça.
As pessoas com quem eu pinto mais, a gente
se encontra um dia antes, faz um rabisco juntos
ou às vezes nem rabisca, mas chega num lugar
e pensa no desenho juntos.
Você ainda faz bastante coisa na rua?
Nesses dois últimos anos tenho me dedicado
muito ao meu trabalho autoral. Pintei bastante
tela, fiz exposição em Washington, no Brasil.
Daí pintei menos na rua. Se você começa a
pintar muito, chega uma fase que nem pensa
mais no que está fazendo. Às vezes acho legal
parar. Não pinto, não desenho, fico só indo a
livrarias, sem pensar em nada. 3
“Gosto de pintar com mais gente, mas são poucas as pessoas com quem gosto de trabalhar. As pessoas não sabem interagir, tem muito mural de graffiti com trabalhos separados. Isso pra mim sempre foi sem graça.”
2SAIBA MAIS
flickr.com/photos/joaolelo
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“ S O M O S P A R T E D A A N T I G A T R A D I Ç Ã O D E f A Z E R M Ú S I C A”
Phil MintonHan Bennink&
POR RAQUEL SETZ . FOTOS FERNANDO MARTINS FERREIRA
Faltavam poucos minutos para que o baterista holandês Han Bennink e o cantor inglês Phil Minton subissem ao palco do Centro Cultural São Paulo, quando um segurança do local apareceu com Minton. “Este rapaz está dizendo que é músico, mas eu nunca ouvi falar nele”, disse ele, um tanto nervoso, pensando que o “ra-paz” de 70 anos de idade e mais de 50 de carreira estava querendo entrar clan-destinamente no recinto. A confusão foi resolvida, mas o segurança foi embora ainda com expressão de desconfiança no rosto, provavelmente achando estranho aquele senhor descabelado ser “artista”. A cena, ainda que absurda, representa bem a posição que Phil Minton e Han Bennink ocupam: ambos são revolucionários da música do século XX, mas você não irá vê-los na capa de revistas badaladas.
N ascidos durante a Segunda Guerra Mundial, começaram no jazz, mas desenvolveram uma lin-
guagem radical de improvisação que segue por um viés diferente daquilo que se costuma en-
tender por free jazz e chega a questionar os limites do próprio conceito de música. Assim como
os compositores eruditos contemporâneos, Han e Phil frequentemente não trabalham com melodia, har-
monia e ritmo. No show conjunto dos dois no CCSP, em 11 de dezembro de 2010, Minton passou longe dos
famigerados “daba daba da” dos improvisadores vocais do jazz. Durante os 30 minutos da apresentação,
produziu uma gama de sons nada convencionais, que incluíam gritos e grunhidos guturais. Han Bennink
tocou com apenas uma peça da bateria, a caixa – embora o chão, o banco e até as solas dos sapatos tenham
se convertido em instrumentos de percussão ao longo do show. Na manhã seguinte, eles conversaram com
a Soma no Parque do Trianon, de forma tão eloquente quanto a música que apresentaram no palco. 1
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Havia um elemento visual bem forte no show
de ontem: o jeito como Phil mexe o corpo e
as coisas divertidas que Han faz.
PHIL . Não tenho consciência da teatralidade.
Por coincidência, preciso fazer assim para pro-
duzir os ruídos. Não presto atenção no público.
HAN . Você senta e tenta ser o mais normal
possível. Eu reduzi meu kit
apenas à caixa, mas às vezes
não estou a fim de ficar sen-
tado atrás da caixa. E por que
não tocar a mesma coisa, só
que no chão? Posso deitar, to-
car um ritmo e depois me sen-
tar de novo. É outro material, e
eu prefiro isso a ter as coisas
comuns de um kit de bateria.
Acho que voz e caixa juntos é
o mais limitado que você pode
ter. E pra mim foi perfeito. Mui-
to obrigado, Phil.
PHIL . Obrigado, Han. São os
dois instrumentos básicos, com
os quais começamos. As Pesso-
as começaram a cantar antes
de construir pianos Steinway ou
grandes kits de bateria. As pes-
soas batucavam nas coisas e
cantavam há milhares de anos.
Somos apenas parte da antiga
tradição de fazer música.
Como vocês se interessaram
pela música improvisada?
PHIL . É difícil lembrar das coisas (risos). É uma
resposta engraçada, mas sincera: não gosto de
decorar o material [que vou tocar]. Eu faço
isso, mas prefiro ser meu próprio compositor.
Me interessei ainda garoto. Quando eu tinha 15
ou 16 anos, alguns amigos que estudavam Ar-
tes me mostraram quadros de Jackson Pollock.
Fiquei interessado e tentei, embora não sou-
besse como, fazer música que parecesse um
quadro do Jackson Pollock.
Nesse momento você percebeu que cantar do
modo tradicional não era o bastante?
PHIL . É, não era pra mim. É possível fazer tantas
coisas com a voz. É um instrumento definitivo, é
infinito. Me interesso por isso há 40 anos.
E você?
HAN . De certo modo, sou como o Phil. Quando
jovem, eu era baterista de jazz – o que ainda sou –
e toquei com vários músicos famosos. Mas quan-
do eu entrei na escola de artes em 1960, me in-
teressei muito por Marcel Duchamp, Picabia, Man
Ray, Kurt Schwitters. Eu trabalhava nessa direção
e passava cada vez menos tempo tocando. E hoje
eu improviso totalmente. Eu tenho que improvi-
sar, porque não sei ler partitura. Sou cego para
notação musical, pra mim é um monte de cocôs
voadores em uma folha de papel (risos). Houve
uma época na Holanda em que todos tínhamos
enormes kits de bateria. Aí eu disse para mim
mesmo: “Se você quer
mudar alguma coisa, deve
voltar pro básico”. Hoje eu
tento tocar apenas a caixa.
Mas o seu ponto de vista,
como espectadora, é com-
pletamente diferente. On-
tem uma garota veio até
mim e disse que o show a
fez lembrar de uma peça
de Samuel Beckett chama-
da Fim de Partida. Gostei
muito, achei um elogio. Mú-
sica improvisada é como o
trânsito de São Paulo. Você
tem que sobreviver e não é
possível atravessar a rua
exatamente do mesmo jei-
to todo dia. Mesmo que vá
de um mesmo lugar para o
outro, pela mesma rua, ain-
da assim você improvisa.
No campo da música im-
provisada existe o con-
ceito de “erro” ou tudo é
possível?
PHIL . Podemos cometer erros, erros estéti-
cos pessoais. Às vezes eu fico “não devia ter
feito isso”.
HAN . Claro, faz parte do jogo.
PHIL . Você disse “desculpa” na
noite passada! (risos)
HAN . Mas eu não estava falando
sério (risos). Usei esse “desculpa”
como material. As pessoas, até no
dia-a-dia, se copiam muito. É difícil
ver personalidades. E jazz e músi-
ca improvisada são isso. Jazz, para
mim, é a pessoa por trás da músi-
ca: Louis Armstrong é jazz, Sonny
Rollins é jazz. Você fala o nome e
já sabe o estilo. Há muitos instru-
mentistas que sabem tocar as escalas do Coltra-
ne, tocam até de ponta-cabeça. Não estou inte-
ressado nessa bobagem. É como arte. Por que
deveríamos ter um segundo Rembrandt ou um
segundo Van Gogh?
PHIL . Milhares de John Coltranes pelo mundo…
HAN . (exaltado) Milhares de John Contranes, mi-
lhões de Charlie Parkers! Não é culpa do Charlie
Parker, é nossa culpa. Você deve aprender com
eles, mas nunca copiar. Nunca vou tocar como o
velho Joe Johnson – embora eu quisesse – e como
Kenny Clarke, porque eu não nasci onde ele nas-
ceu. Gosto de tocar partindo da minha bagagem
cultural. Sei improvisar muito bem em música, mas
no dia-a-dia sou uma negação. Não sei mexer no
computador, sou nervoso, sou cego. Adoro este
ambiente, mas ter que fazer xixi num lugar como
aquele (se referindo ao banheiro do boteco na
Paulista onde paramos para uma cerveja antes da
entrevista), meu Deus! No primeiro dia, me tran-
quei no hotel para não ver tudo, é muita informa-
ção. Eu vejo demais. E eu falo demais, mas é por-
que eu fui muito gago durante 24 anos e tenho que
correr atrás do tempo perdido. Desculpe por isso.
PHIL . Você gaguejava? Hoje não há nem sinal disso.
HAN . Não, mas quando eu fico nervoso e em-
polgado, tenho de novo. Mas acho charmoso
agora que sou um senhor. Moças jovens vêm
ajudar. (risos)
Para algumas pessoas, jazz são os standards do
“real book”, mas esse é um ponto de vista com-
pletamente anacrônico.
HAN . Pra mim isso não é jazz, é uma cópia de
jazz. Hoje na Holanda há uma máquina de café,
mas aquilo não é café, é uma porra duma bebida
feita com café! Lembra vagamente café. Então
eles tocam o que já foi inventado por outra pes-
soa. É idiota, mas muitas pessoas tomam isso
como certo. Eu acho um absurdo. Na Europa,
há milhões de cópias de música brasileira, bossa
nova. Mas a verdadeira é difícil de achar. Prefiro
botar minha bateria em uma tempestade, com
microfones de contato pra que se possa ouvir,
a fazer o “pling ploing ploing” que a maioria faz.
“MÚSICA IMPROVISADA É COMO O TRÂNSITO
DE SÃO PAULO. Você tem que sobreviver e não é possível atravessar a rua exatamente do mesmo jeito todo dia. Mesmo que vá de um mesmo lugar para o outro, pela mesma rua, ainda assim você improvisa.”
HAN BENNINK
“QUANDO EU TINHA 15 OU 16 ANOS,
alguns amigos que estudavam Artes me mostraram quadros de Jackson Pollock. Fiquei interessado e tentei, embora não soubesse como, fazer música que parecesse um quadro do Jackson Pollock.”
PHIL MINTON
Às vezes, nesse tipo de música, parece que tudo
virou caos, que ritmo, harmonia e melodia desa-
pareceram. Mas aí todos da banda começam a
tocar uma mesma melodia ao mesmo tempo e
então você percebe “ah, não era tão caótico”.
Como isso funciona?
PHIL . Ouvimos um ao outro o tempo todo. Eu
me inspiro no Han e espero que ele se inspire em
mim. Trabalhamos juntos e criamos uma forma.
É quase impossível dizer… Na música erudita há
os ideais clássicos de sinfonia perfeita, sonata
perfeita, mas não viemos dessa tradição. Nós
dois viemos do jazz. Quando jovem, eu tocava
trompete e achava uma irresponsabilidade ten-
tar tocar como Miles Davis. Ouvindo o jazz desde
os anos 20 até o fim dos anos 50 – que foi quan-
do eu comecei a ouvir intensamente – dá pra ver
toda a evolução. Era a música do povo, em que
podíamos criar nossas próprias regras.
Sobre o Feral Choir (projeto de Phil Minton em
que ele dá uma série de workshops para can-
tores não-profissionais e no fim faz uma apre-
sentação com eles): você disse que qualquer um
que respire é capaz de produzir sons que deem
uma contribuição estética positiva. Você acredi-
ta que a vontade de se expressar é mais impor-
tante do que ter técnica ou ter um dom natural?
PHIL . As pessoas que se envolvem não são ob-
cecadas pela voz como eu sou. A maioria das
pessoas usa a voz para passar informações.
Você pode passar informações do jeito cha-
to, como estou fazendo agora, mas há outras
possibilidades. A palavra “não” pode significar
tantas coisas. (Começa a falar “no” com várias
intenções diferentes) Há todas essas emoções
em apenas um pequeno som, é possível achar
tantos significados diferentes. Acho que a lin-
guagem é um jeito inadequado de se comunicar,
acho que seríamos muito mais felizes se fizés-
semos… tipo, fui com o Han pedir leite hoje de
manhã e ele disse (diz a palavra “milk” do jeito
mais estranho possível). E ele conseguiu o leite,
todos ficaram felizes, nos comunicamos bem.
Li uma entrevista em que você usa a expressão
“sons positivos”. Pode me explicar o que é?
PHIL . Acredito que a maioria dos sons se encai-
xam na categoria de positivos. Há um som que
eu tento não usar, mas como eu fumo às vezes
acontece de... (tosse). Não acho que seja uma
bom som. É um som negativo. Também não gos-
to de sons de fúria (dá um berro de arrebentar
os tímpanos). Não gosto disso.
Mas você usa.
PHIL . Tento usar de um jeito musical. Nunca es-
tou furioso quando canto. É a pior coisa para a
voz, porque tensiona tudo.
Vocês dois tocaram com Peter Brötzmann. Há até
uma música pra você (“Music for Han Bennink”,
do clássico Machine Gun, de 1968). Ele é uma in-
fluência, aprenderam algo tocando com ele?
HAN . De jeito nenhum! Você tá brincando comi-
go?! Peter queria um baterista, era 1968, e Willem
Breuker (saxofonista do Peter Brötzmann Octet),
que morreu recentemente, disse para ele: “Você
deveria tocar com o Han Bennink”. Naquela épo-
ca, tocávamos com dois bateristas: Sven-Åke
Johansson e eu. O famoso disco do Brötzmann,
Machine Gun, foi feito e
todo mundo fala sobre isso.
Para mim, foram as piores
circunstâncias para tocar.
Começa que eu não con-
seguia ouvir ninguém. Uma
vez, fizemos um show em
Bremen em uma yurt. Você
sabe o que é uma yurt? É
uma tenda onde as pessoas
vivem na porra da Mongó-
lia, toda feita de cobertores.
Eu não ouvia nada! A cena
pop escolheu aquele disco
como algo bem Captain
Beefheart, mas o Peter é
muito diferente. Encontrei
com ele recentemente em
Melbourne, tocamos juntos
de vez em quando e eu gos-
to muito dos quadros dele,
ele é um ótimo pintor. Mas
aprender com ele? De jeito
nenhum, baby!
PHIL . Ele é um ótimo espírito, mas não apren-
di muita coisa com ele além de resistência. Ele
consegue tocar por um período bem longo.
HAN . Tínhamos [o saxofonista] Evan Parker, [o
trombonista] Paul Rutherford na banda. Eles to-
cavam solos bem longos, e se você é um dos ou
o único baterista, eles gostam de um estilo em
que você os sustenta o tempo todo e…
PHIL . (interrompendo) Free jazz.
HAN . (irônico) É, isso é free jazz. É o nome
mais errado que já existiu porque não há nada
“free” no mundo.
Por quê?
HAN . O que é “free jazz”? Significa que as pes-
soas não precisam pagar pelo show (em inglês,
“free” significa tanto “livre” como “grátis”)?
Ou que os músicos não recebem? O que sig-
nifica “liberdade” pra você? Acho que é um
nome errado. Nós improvisamos. O nome que
[o pianista] Misha Mengelberg inventou, “com-
posição instantânea”, é ótimo, muito melhor
que “free music”.
PHIL . Houve um período no free jazz em que
não havia limites, a banda toda tocava ao
mesmo tempo.
HAN . É meio bagunçado, pra mim.
PHIL . Mas evoluiu, você não ouve muito isso
atualmente. Peter Brötzmann continua fazendo…
HAN . A coisa boa sobre Peter é que ele não
está longe de ser um imitador do Coltrane, mas
basta ele tocar uma nota para você saber que é
o Brötzmann. É exatamente o que eu gosto: não
é jazz, não é free music, é música criada por uma
pessoa. É como caligrafia.
Me contaram que você
adorou as pixações de
São Paulo.
HAN . Muito, muito. Acho
que, se algo é novo, você de-
veria tentar mantê-lo o mais
claro possível. Na Holanda,
os graffitis são nonsense
psicodélico, pessoas explo-
dindo, cores horrorosas. O
daqui é um retorno à cali-
grafia, à caligrafia zen, ape-
sar de ser feito com spray.
Tem a ver com a coisa de
tocar só com a caixa.
HAN . Totalmente. Ouvi que
as coisas que vocês fazem
aqui são completamente di-
ferentes do que eles fazem
no Rio. É incrível! Dá pra ver
que vem de São Paulo. Jazz
também deveria ser assim e
já foi assim: havia a música de New Orleans, de-
pois todo mundo se mudou para Chicago.
Acho que é isso. Obrigada e obrigada pelo show
também, foi incrível.
HAN . Também fiquei muito satisfeito. Porque
nunca se sabe, há sempre um risco. Claro que
há ferramentas suficientes para fazer algo, mas
devemos realmente nos conectar. Sei quando
funciona: as pessoas estão quietas ao redor de
você. Você é o senhor de tudo. É incrível alcan-
çar esse ponto. 3
“QUANDO JOVEM, EU TOCAVA TROMPETE
e achava uma irresponsabilidade tentar tocar como Miles Davis. Ouvindo o jazz desde os anos 20 até o fim dos anos 50, dá pra ver toda a evolução. Era a música do povo, em que podíamos criar nossas próprias regras.”
PHIL MINTON
2SAIBA MAIS
philminton.co.uk
hanbennink.com
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cagebeA GENTE BRASILEIRA DO
Um dos grupos mais propositivos do rap brasileiro, o CAGEBE está com disco novo no forno, novamente pelo selo Equilíbrio, de KL Jay. Ao contrário do disco de estreia do Cada Gênio do Beco – agora um trio com Cezar Sotaque, Shirley Casa Verde e DJ Paulinho –, O Vilarejo tem batidas de uma série de produtores. 1
Ouvi no primeiro disco de vocês e acho que
nesse clipe novo, “Oba! Clareou”, também tem
isso: é um rap com música brasileira, mas não
do jeito que costuma ser, de misturar com sam-
ba ou usar sample de bossa nova.
Desde o primeiro disco a gente já falava bas-
tante nisso. Apesar de a gente saber que a
raiz do rap não nasce no Brasil, o Brasil incor-
pora muito isso, ele vem e começa a brotar
aqui. Acho que é preciso criar uma identida-
de, e a gente busca isso. Por mais que usemos
um sample gringo, temos essa preocupação
de fazer algo com a cara daqui. E gostaria de
explorar mais ainda a música brasileira. Falta
oportunidade, a dificuldade é por causa das
editoras. Não que não seja justo [pagar], ló-
gico que é, mas acho que o caminho deveria
ser mais aberto, pra podermos fazer uma re-
leitura da música brasileira e isso poder sair
do nosso país – em português mesmo. Nunca
diga nunca, mas acho que não faria uma mú-
sica em inglês pra tocar lá fora, porque não
vejo eles fazendo isso. Ninguém vem pra cá
e canta em português, mas sempre pegam os
samples brasileiros. Lógico, não dá pra com-
parar, a realidade deles é outra, vários são
milionários, a gente é trabalhador. Mas nossa
procura é a brasilidade.
Como tá de show?
O rap mudou muito. Muitos grupos não exis-
tem mais, outros surgiram, muitos produtores
de eventos não trabalham mais, outros estão aí.
Com essa entrada do funk, principalmente em
São Paulo, a gente percebe que perdeu espaço.
Não tô dizendo que o funk é culpado disso, ele
ocupa um espaço deixado pela gente. No inte-
rior ainda estão rolando umas coisas, e em ou-
tros estados também. São Paulo mudou muito.
Tem alguns eventos de rua, mas não tanto como
tinha por volta do ano 2000 – talvez com pouca
qualidade, mas acontecia.
Mas a saída não seria fazer eventos junto?
O diálogo precisa existir. O rap é música, inde-
pendente de estar junto com funk, com samba ou
sertanejo. Não sei o que impede, se a gente é tão
conservador que não quer interagir, ou os investi-
dores de outros estilos não querem o rap. Público
existe. A grande mídia nomeia um cara – no caso
o Marcelo D2. Mas tem muito mais gente. Quali-
dade tem. Reduziu o número de grupos, mas teve
um ganho de qualidade – tem muito grupo bom.
Você vai num baile de funk, o que rola? Funk
feito no Brasil. Num baile de rap, o que toca?
Rap gringo. Não que não tenha que tocar, mas a
gente desvaloriza o nosso, o que temos de bom.
Poucos tocam rap brasileiro. KL Jay, Cia, King, Mar-
co, eles tocam. Mas não temos uma casa onde toca
rap brasileiro. O Eminem acabou de tocar aqui,
imagina se ele quer conhecer o rap brasileiro. Tem
uma casa onde toca rap brasileiro, uma referência?
Não tem. Se ele for num baile, vai ouvir música
dele. Ficam com esse papo: fulano faz música pra
pista, fulano faz música pra periferia. Isso é boba-
gem, quem decide é o público. Só que, se ele não
escutar, como vai saber se é bom ou ruim? 3
Foi mais difícil fazer isso nesse disco novo,
por trabalharem com mais de um produtor em
vez de um só?
Quando tem mais gente trabalhando, tem mais
ideias. Mas procuramos ter esse cuidado – mes-
mo que o produtor mande algo criado por ele,
a gente tenta criar junto. Não pegamos uma ba-
tida e cantamos em cima. A música precisa ser
construída em conjunto.
Esse processo é sempre em conjunto?
No primeiro disco, quando o André tava no gru-
po ainda, a gente fazia junto. Ele rabiscava o que
queria fazer, trazia pra mim, e eu fazia a mesma
coisa com ele. No segundo disco, com a saída
dele, isso é comigo e a Shirley – e o Paulinho
vem com batidas e samples.2SAIBA MAIS
myspace.com/cagebe
POR ANDRÉ MALERONKA . FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
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Coisas que Gostamos de
guardar
POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG
FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
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Tem algum critério para entrar na coleção? Por
exemplo, toca CD entra?
Foley . Sim, o Rico comprou um toca CD
porque era quadradão, estilo boombox.
Rico . Esse é o critério: quadradão.
Foley . E não pode ser mono.
Onde vocês guardam tantos rádios ?
Fooley . Se entrar lá em casa, qualquer lugar
que você abrir vai encontrar um rádio.
Danone . Cada um guarda o que consegue. E
não tem essa de cada um guardar o seu.
Rico . Quando alguém tem saudade de um
rádio, pede para ficar uma temporada com
determinado modelo em casa.
O que diferencia a coleção de vocês das dos
demais colecionadores de rádios?
Danone . Nós gostamos de levar o rádio para a
rua. Não é uma coisa egoísta, a ideia é manter
a essência do boombox. Muitas vezes acontece
de perder botão, bater, ralar. Já aconteceu até
de cair no chão e quebrar um rádio, mas eles
têm que estar nas ruas.
Foley . É colocar o rádio no
seu devido lugar, na rua,
ao lado do b-boy, como
símbolo de uma crew.
Fooley . Para nós o hip-
hop não é formado só
pelos quatro elementos
– DJ, b-boy, grafiteiro
e MC. Ele tem mais
um elemento, que é o
boombox.
Ero . O pessoal já
acostumou: em evento
onde a B.Box Original
está presente, sempre
tem um boombox para
tocar e a festa continua
depois, na rua.
Foley . Fazemos questão
de fazer o pessoal pirar.
Somos os DJs da rua!
Ero . Tocamos na ida e na volta do evento,
até dentro do trem, e todo mundo gosta. As
pessoas querem tirar fotos segurando os rádios.
Danone . E muitos falam: “Caramba, como
é pesado”... Mal sabem que já estamos
segurando eles há mais de uma hora e meia no
ombro por pura dedicação.
Como vocês começaram a colecionar
boomboxes?
Rico . Na época da São Bento era sonho de
qualquer b-boy ter um boombox.
Danone . Em 2006 eu quis comprar um rádio
que estava com o Rico, e ele quis comprar um
que eu tinha achado na feira do rolo.
Rico . O amor pelo rádio foi maior, então
começamos a montar um catálogo, aprendemos
a restaurar e montamos a B.Box Original. Para
nós cada rádio da coleção tem uma história
pessoal, é como se fossem personalidades.
Danone . Quando restauramos e ele volta
a tocar, é como se o coração do paciente
voltasse a bater.
Foley . Quando vi a coleção dos caras fiquei
a fim de ter um rádio, e fiz vários contatos
até chegar a um cara que tinha um National
japonês. Fui até ele e no dia seguinte liguei para
o Rico e avisei que já tinha meu primeiro rádio.
Ero . Meu irmão, o Foley, tem uma foto ao lado
de um boombox aos 3 anos de idade. Acho que
já era um aviso.
Danone . As pessoas que
hoje integram a B.Box
Original estão aqui por
merecimento. Cada um
contribuiu de alguma
forma. A Marcia é a mais
nova integrante.
Marcia . Entrei para o grupo
porque apresentei um
modelo de boombox da
Conion que eles não tinham.
Rico . Falar que está
garimpando é fácil, mas
achar um modelo como
a Marcia achou exige
muita dedicação. Eu e
o Danone já passamos
fins de semana inteiros
garimpando e não
achamos nada.
Qual o modelo mais difícil de achar?
Danone . Quanto maior o box, mais cobiçado,
mais difícil. Existem lendas sobre rádios
gigantescos, mas eu nunca vi.
Qual a maior loucura que vocês fizeram para
ter um boombox?
Rico . O Danone é o mais louco, quase quebrou
a empresa dele por causa de três rádios.
Danone . Todos já brigaram com namoradas e
família para manter os rádios.
Foley . Estamos indo para a Argentina buscar
dois rádios que estão comprados e guardados,
e ainda vamos garimpar por lá.
E as pilhas? Vocês devem gastar muito...
Danone . Usamos baterias adaptadas porque é
mais econômico, e também usamos iPods para
poupar os toca-fitas.
Alguém já disse que o artista tem a
antena voltada para o universo. Os
rapazes da B.Box Original não são
meramente divulgadores da cultura do
boombox, não estão apenas fazendo
uma performance quando expõem seus
rádios. Eles estão conectados com a
referência do passado, que é o rádio,
mas inserindo esse elemento no presente
e o projetando no futuro. É uma maneira
de se identificar, de se caracterizar, de se
singularizar, e essa singularização é que
empresta dignidade ao colecionador.
No mundo da Seleta, existe um ramo que sempre teve muitos adeptos apaixonados: o colecionismo de rádios. Não são poucos os que mantêm às duras penas seus antigos rádios valvulados, que sintonizavam os jogos de futebol quando a TV não existia, faziam sonhar com as vozes de cantores e atores em suas novelas ao vivo e traziam as notícias da guerra. Com o tempo, o rádio ganhou um novo tipo de colecionador, e a Seleta tem o prazer de trazer para vocês MARCIA, RICO, DANONE, FOLEY, ERO e ROONEY, guardadores de rádios que juntos formam a primeira crew de colecionadores de boomboxes do Brasil. A B.Box Original tem cerca de 170 rádios boombox em seu acervo, o que garante o recorde mundial, segundo o site The Universal Record Database.
O boombox sobre os ombros, que aparece em
filmes como Faça a Coisa Certa, é a forma mais
comum de emissão de música para as danças
dos b-boys. Os boxes começaram a povoar as
ruas na década de 1980 e, como a tendência da
tecnologia da época não era nada minimalista,
quanto mais luzes, botões, entradas e saídas,
melhor. O fato de possuir entrada auxiliar torna
esses rádios, mesmo apresentando defeitos no
toca-fitas, uma ótima opção para ligar iPods, o
que ajudou o preço deles a bombar. Mas nossos
entrevistados não estão nessa pelo hype.
2SAIBA MAIS
nossacrew.weebly.com/bbox-original.html
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Hugh Mundell . AFRICA MUST BE FREE BY 1983 . GREENSLEEVES
Em 1975, quando o então pré-adolescente Hugh Mundell foi escalado pelo
maroto produtor Augustus Pablo para interpretar as produções do que viria
a ser o clássico Africa Must Be Free By 1983, ninguém poderia imaginar que o
moleque seria tristemente morto a tiros no ano de... 1983. A fatalidade ocorreu
enquanto HM conversava animadamente com o amigo Junior Reid em seu
Cadillac. A música jamaicana perdia então uma de suas mais promissoras
vozes. Mundell gravou Africa com apenas 13 anos, e o gogó perceptivelmente
destreinado evidencia lampejos de genialidade aqui e ali. Confira as faixas
“My Mind” e “Run Revolution A Come”, além da clássica faixa-título, e tire suas
próprias conclusões. O fato é que a relativa inexperiência e as variações dos
timbres do garoto são as peças-chave para o sucesso do LP. Não existem muitos
registros sobre a conduta extracampo de Hugh Mundell (todo mundo sabe que
a coisa era bastante gangsta na Jamaica nos anos 70), que ainda conseguiu
gravar outros discos antes de Jah o levar para o paraíso rasta, com destaque
para Time & Place (1980), Jah Fire (1980, em parceria com Lacksley Castell) e
Mundell (1982). A mensagem presente em todas as faixas é de paz, unidade para
a África, parceria entre os negros e, acima de tudo, liberdade e independência.
O artista se foi, e a mensagem ficou. A reedição do disco em CD apresenta
ainda versões dub que o malandrão Augustus Pablo fez para cada uma das nove
faixas originais. Coisa finíssima. O futuro é agora!
Apesar do nome, nenhum dos álbuns apresentados aqui foi de
fato gravado em 1983. O ano em questão, no entanto, é uma
referência temporal fundamental para ambos os artistas em
seus respectivos LPs. No caso do jamaicano Hugh Mundell, que em 1975, aos 13 anos (!),
concebeu a obra-prima Africa Must Be Free by 1983, o ano de 83 é visto e interpretado como o futuro esperançoso — ainda que relativamente próximo — para um continente que ainda
tinha características coloniais e escravistas bastante evidentes
no final da década de 70 (e que infelizmente jamais deixou de ter).
Por outro lado, para o produtor norte-americano Flying Lotus,
sobrinho de Alice Coltrane e um dos expoentes da geração de beat
konductas, que fundiu o free jazz
OB
RA
S P
RIM
AS
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Flying Lotus . 1983 . PLUG RESEARCH
De volta para o futuro! Exatos trinta anos após o lançamento de Africa Must
Be Free by 1983, o ano de 83 parecia tão distante quanto o século XIX. Este é
justamente o ponto de partida para a concepção de 1983 (2005), álbum de estreia
do celebrado produtor de L.A. Flying Lotus. Sobrinho de Alice Coltrane e um
dos mais prolíficos produtores e beat makers da geração liderada por Madlib e
J-Dilla (R.I.P.), o rapaz não perdeu tempo e criou um LP a partir da desconstrução
de ritmos como o jazz, a música brasileira e o soul, somando a tudo isso loops
inovadores, grooves hipnóticos e beats ligeira e propositalmente fora de cadência.
O fato de a grande maioria das faixas em 1983 ser de curta duração evita que o
disco pareça cansativo ou essencialmente experimental, e a base de todo o LP
é justamente a estética dos sintetizadores e barulhinhos digitais característicos
da primeira metade da década de 80. O timing de Flying Lotus para os beats é
perfeito, e as faixas que fazem referência a São Paulo e ao Brasil não são gratuitas:
em passagem pelo pais, FL gastou algum tempo e muito dinheiro em LPs que
possivelmente resultaram em inspiração para as faixas “Orbit Brazil” e “São Paulo”.
A ausência de elementos orgânicos praticamente atesta 1983 como um produto
da década de 80, embora a visão e o instinto musical de Flying Lotus pareçam
apontar sempre em direção ao futuro, algo tão contraditório quanto a essência da
música feita por ele. FL é hoje a vanguarda do jazz e do hip-hop, assim como o
Atari foi a vanguarda dos games em 83.
e o hip-hop experimental de forma absolutamente irreversível e cabeçuda, a referência explícita ao ano em 1983 é saudosista e cheia de reverência, remetendo à estética Atari e aos sintetizadores que fizeram estrago ao longo da década. O artista mostra devoção e conhecimento de causa ao misturar elementos do passado com as mais complexas tecnologias utilizadas na arte de construir música desconstruída.
Dois artistas diferentes em seus estilos e propostas, observando o relógio em direções opostas para criar discos atemporais e cheios de experiências pessoais. E você aí, que mal consegue se lembrar do Flamengo campeão brasileiro e de Pitfall em 83, hein malandragem?
2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE.
PO
R P
ED
RO
PIN
HE
L
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+QUEM SOMA . NEGREDO / PERIFERIA ATIVA . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira
“ Já tentamos emplacar coisas em Leis de
Incentivo, PAC, VAI (programa da prefei-
tura de São Paulo). Mas vai e volta (risos).
Quando os investidores sabem que o projeto é
dentro de uma favela, desistem.” Wilson Lopes
diz isso com a serenidade de quem já aprendeu
a se esquivar das cabeçadas da vida e um sorri-
so quase condescendente, de alguém mais preo-
cupado com seu trabalho do que em incorporar
revoltas típicas de certa classe média. Wilson
talvez seja mais conhecido como MC Ylsão, que,
ao lado do MC Tó (ou Antônio Lopes, seu irmão),
do MC Arnaldo e do DJ Alê (Alexandre Rocha),
compõem o grupo de rap Negredo.
Nascido na Favela do Godoy, no Capão Redondo,
o Negredo esteve sempre fadado a ser mais do
que um grupo de rap. A história de engajamen-
to comunitário começou a se desenrolar no co-
meço do ano 2000. “Muita coisa aconteceu aqui
quando falaram que o mundo ia acabar (risos)”,
conta Ylsão. Naquele ano, a casa onde hoje é a
sede do Periferia Ativa ainda era usada por tra-
ficantes para esconder drogas. “O [Mano] Brown
tinha vontade de fazer uma rádio comunitária, a
Vida Loka. Aí surgiu a ideia de usar este espaço.
Foi uma coisa em comum acordo com os próprios
caras [do tráfico].” O espaço foi desocupado, mas
a ideia da rádio não vingou. No lugar, começaram
a organizar uma biblioteca, com discos e livros
doados por Brown e Ferréz. No ano seguinte, o
Negredo promoveu a primeira festa 100% Favela,
realizada na rua em frente à Godoy. Além de tra-
zer shows de vários grupos de rap de São Paulo,
o evento tinha um espírito inédito de mobilização.
“Na época, como ainda não existia o Periferia,
cobramos um quilo de alimento na entrada e do-
amos tudo à Igreja N. Sª dos Passos”, conta Tó.
Com o tempo, a festa cresceu e se tornou uma
forma de financiar as atividades do projeto.
Em 2002, o Periferia Ativa começou a tomar
corpo. “O Brown começou a construir aqui
sozinho, por conta própria”, lembra Ylsão.
“Primeiro fizemos embaixo, depois fechamos
a laje em cima.” O uso da primeira pessoa não
é meramente retórico: quem ergueu a laje foi
Arnaldo, em uma versão mais radical do “ar-
tista igual pedreiro”. A parte de baixo virou
o Espaço Brincar, uma brinquedoteca para
crianças de 4 a 10 anos. A de cima divide-se
entre a Biblioteca Exodus e o Espaço Nego
Du (em homenagem ao irmão de Ylsão e Tó,
já morto), que recebe aulas de break, gra-
ffiti, capoeira e DJ. Três anos depois, a festa
100% Favela teve seu auge, com a presença
de Z´África Brasil, Rosana Bronx, GOG, TR3F
(grupo de Ferréz) e outros nove grupos. O
DVD gravado na ocasião é um documento
único, com cenas raras de conversas grava-
das entre a elite artística do Capão. Foi um
sucesso, inclusive no Youtube. “Já perdemos a
conta do quanto vendeu, mas foram mais de
10 mil. Sem contar os piratas”, avalia Tó. Além
das festas, o Negredo promove bingos, feijo-
adas, bazares e toca a loja Cúpula Negredo.
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2SAIBA MAIS
negredo.com.br
gruponegredo.blogspot.com
No ano passado, o Periferia Ativa conseguiu se
expandir ainda mais. Com a compra de um imó-
vel anexo, nasceu o Periferia Digital. Após uma
parceria com a Nike, eles compraram computa-
dores novos e criaram uma sala de aula onde os
alunos aprendem a usar programas de edição de
imagem, ferramentas de blog, internet e outros.
Em uma sala contígua, espremida entre as pare-
des estreitas da favela, há ainda um estúdio de
gravação bem equipado. “Quem tá contando a
nossa história somos nós mesmos”, define Alê,
que cuida do Periferia Digital. “A ideia não é virar
uma CUFA. O lugar é pequeno, e fazemos ques-
tão de mantê-lo dentro da favela. Vivem falando
pra gente mudar pra um prédio fora, como outras
ONGs. Mas do que adianta ter um lugar longe,
onde o povo precisa ir de ônibus? Melhor mudar
pouco a pouco do que ter um prédio bonito, mas
com oficinas vazias.” Ylsão complementa: “As
crianças são acostumadas a acharem muito ruim
o lugar onde moram. Com a sede aqui, veem de
perto que dá pra fazer coisas legais”.
Atualmente, o Periferia Ativa tem 200 vagas para
crianças e adolescentes, das quais 160 estão pre-
enchidas e ativas. Para participar, os interessados
precisam estar na escola, ter a carteira de vaci-
nas em dia e apresentar uma identidade. “Se a
criança não tá estudando, vamos até a casa ver
por que e tentamos colocar na escola”, diz Tó.
Claro, nem sempre é fácil. “Tem moleque que dá
trabalho, tem moleque do tráfico, tem precon-
ceito contra homossexual.” “Não tem como tirar
[do tráfico] na marra”, complementa Alê. “Tem
que dar opção, fazer o que o Estado deveria fa-
zer. Se ele vai ser do tráfico, da capoeira ou do
rap, a escolha é dele. Nós quatro viemos nessa
direção por Deus, mesmo. Mas eles têm alguém
aqui dentro pra mostrar outros caminhos.” Ainda
assim, várias crianças mudaram de vida. “Alguns
saíram do tráfico e dão aula aqui. Outros arruma-
ram empregos na cidade”, diz Tó. “Mudou tudo,
hoje você pode andar pelos becos tranquilamen-
te”, analisa Ylsão. “Antes era bem perigoso entrar
aqui onde você está.” O Capão, e em especial o
conjunto de favelas onde fica a Godoy, é um dos
lugares onde fica mais evidente o apartheid ve-
lado que impera em SP. Ali, sem alarde e com o
amparo de poucos além deles mesmos, o Peri-
feria Ativa está conseguindo virar um jogo que
para muitos já nasceu perdido.
“O LUGAR É PEQUENO, E FAZEMOS QUESTÃO DE MANTÊ-LO DENTRO DA FAVELA. MELHOR MUDAR POUCO A POUCO DO QUE TER UM PRÉDIO BONITO, MAS COM OFICINAS VAZIAS.”
86
+QUADRINHOS
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Existe um tipo mais perigoso e danoso de injusti-
ça artística do que não reconhecer os grandes gê-
nios perdidos – reconhecer o talento, mas traduzir
sua influência com as intenções menos virtuosas
possíveis. Vendo as coisas por esse ângulo, pode-
ríamos colocar os escoceses do Mogwai entre os
artistas mais injustiçados da história. Apesar de
uma carreira de mais de dez anos no pós-rock,
apresentando diferentes tonalidades, soluções
e propostas no nebuloso estilo, o quinteto aca-
ba sendo repetidamente citado como principal
referência por um longo corolário de bandas de
metal ruim – Steve Vai encontra Iron Maiden para
fazer música de elevador seria uma boa definição
para esse séquito –, que insistem em afirmar que,
por não contarem com um vocalista, na verdade
fazem pós-rock. Enquanto seus seguidores de
menos talento chafurdam em pastiches de “Like
Herod” (faixa do disco de estreia do Mogwai,
Young Team, de 1997), o Mogwai cria um álbum
econômico e diverso, quase pop em alguns mo-
mentos. “Mexican Grand Prix” combina vocoder
nos vocais com base krautrock, e a climática “Let-
ters To The Metro” lembra os bons tempos do
álbum Come On Die Young. O grupo mostra até
que sabe fazer rock (quase) convencional, como
em “San Pedro” e na moderninha “George Square
Death Party”. Na ótima “You’re Lionel Richie”, o
Mogwai se disfarça de Godspeed You! Black Em-
peror para mostrar com quantos minutos se faz
um épico. Um dos discos mais acessíveis da car-
reira do grupo, Hardcore Will Never Die, But You
Will já tem pelo menos um feito que o garantirá
na memória dos fãs: é desde já o melhor título
de álbum de 2011. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.
+REVIEWS
Parece fácil, mas não é. Em um cenário onde a maioria das bandas de rock
ousa pouco, se contentando em reproduzir ídolos mainstream da adoles-
cência ou imitar o hype anglofônico de oito anos atrás, o Walverdes é dos
poucos que conseguem soar autênticos ao mesmo tempo em que não
zombam da inteligência do ouvinte – que, no caso deles, já é bem grandi-
nho. E tudo isso fazendo um rock simples, de trio, cantado em português,
devedor sim de Rocket From The Crypt, Sonics, Replicantes, Mudhoney e
blablablá, mas que em 18 anos já pagou seus débitos e goza dos prazeres
da vida adulta. Em Breakdance, sexto álbum dos gaúchos, isso fica mais
evidente do que nunca. As duas primeiras, “Função” e “Spray”, já circula-
vam pela internet há algum tempo e dão o tom do disco: secas e agressivas,
alternam densidade sonora com riffs curtos de baixo e guitarra, que acom-
panham um vocal quase falado, por vezes próximo de Shellac (ou seria
uma referência mais explícita ao tema hip-hop da capa?). As letras punk-
-nonsense-budista de Gustavo Mini chegam ao auge em frases como “Meu
minimalismo comprou um furgão” e o refrão “Pouca saída/ Muito espaço”
(“Spray”), mas também falam habilmente de trabalho (“Minha missão/ Re-
petição/ Função/ A sua integração/ Não deixe a ingratidão fazer...”, em
“Função”). Em “Não é Difícil”, a levada abertamente Nirvana/MC5 é pura
tiração de sarro, escancarada nos versos “Criar não é difícil/ Pensar não é
difícil/ É só olhar e copiar”, um primor de humor punk aliado aos clichês
que Mini certamente encontra em sua carreira publicitária. “Diagonal” man-
tém o baixão distocido de Patrick Magalhães, mas se abre em um vocal
pra sair cantando, com refrão grudento e talvez a melhor letra do álbum.
Como aquele amigo hábil em resolver desavenças, primeiro Mini sugere a
compreensão (“Diagonal/ Natural cometer erros/ Enfrentamentos”) para
em seguida dissolver o conflito em nonsense e festa (“No Carnaval/ Tem
samba-enredo”). O mérito do disco deve ser dividido com o produtor Julio
Porto, que abusou do seu background dub para dar profundidade inédita
às camadas de distorção do trio, especialmente ao baixo. O disco soa mo-
derno, mas nunca limpo e estéril, transportando as composições para um
outro nível, sem perda da assinatura da banda. Sim, há vida inteligente no
rock brasileiro. 3POR MATEUS POTUMATI.
2WALVERDES
BREAKDANCE
Monstro Discos
2010
2MOGWAI
HARDCORE WILL
NEVER DIE, BUT
YOU WILL
Sub Pop
2011
1DISCOS
93
Música instrumental com influências de afrobe-
at e rock psicodélico. Assim é possível definir
o som deste segundo disco do Burro Morto,
grupo formado em 2007 na Paraíba. Gravado
em 2009 no estúdio da banda, foi contemplado
com o edital Pixinguinha e vem sendo distribu-
ído gratuitamente por seus próprios integran-
tes. Vem ainda acompanhado por um DVD com
a história de Baptista, um trabalhador que há
cinquenta anos desempenha a mesma função
e parou de questionar as coisas, até que uma
reviravolta muda a sua vida. Escutando o dis-
co, é possível identificar essa guinada. Como
em uma história, ele começa tímido, devagar,
sem revelar o jogo logo de cara. Aos poucos, as
músicas vão ganhando molho e, por consequ-
ência, o ouvinte. Talvez pelo descompromisso
comercial, o quinteto conseguiu inovar no som,
com referências à Nigéria de Fela Kuti e Tony
Allen. O rock também está presente, na bate-
ria dura, em colagens espertas e guitarras bem
colocadas – em “Cataclisma”, os méritos das
cordas ficam por conta de Fernando Catatau.
E assim, do nome da banda à sonoridade do
disco, o Burro Morto causa aquela estranheza
inicial que dá mais sabor ao deleite posterior.
3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA.
Orelha Negra é a mais nova sensação da música
urbana portuguesa. A banda foi selecionada a
dedo pelo rapper Sam The Kid para acompanhá-
-lo na turnê de seu último disco, Pratica(mente),
lançado em 2006. Para quem não sabe, Sam The
Kid é Samuel Mira, o maior nome do rap portu-
guês e um produtor de mão cheia, considerado
por muitos um dos tops no mundo. Para tocar
em seus shows, o rapper chamou gente como o
DJ Cruzfader (carioca radicado em Lisboa e um
dos grandes nomes do turntablism português),
Fred Ferreira (baterista do Buraka Som Siste-
ma), João Gomes e Francisco Rebelo (ambos da
banda Cool Hipnoise). De ensaios e jam sessions
surgiu o projeto Orelha Negra, no qual os cinco
criam temas instrumentais com pegada cinema-
tográfica e entupidos de colagens e samples,
muitos samples. Claramente influenciado por no-
mes como DJ Shadow e selos como Ninja Tune,
o grupo lançou seu debut homônino em 2010 e
conquistou a crítica portuguesa e europeia com
uma mistura de hip-hop, soul, funk, jazz, rock e
eletrônico, entrando na lista dos 10 álbuns mais
vendidos do país e sendo indicado a prêmios
como o MTV Europe Music Awards. Apesar de ter
base em ritmos americanos, o grupo fez questão
de criar uma identidade local, usando colagens
de novelas e nomes populares como Júlio Isidro
e Henrique Mendes (apresentadores da TV local)
ou Fernando Tordo e António Victorino d’Almeida
(compositores lendários da música portuguesa).
Qualidade que transborda, colocando o Orelha
Negra na linha de frente da música instrumental
urbana europeia. 3POR DANIEL TAMENPI.
“Everybody sing”, convida com sua voz leve e
insidiosamente nipônica a vocalista do Deerhoof,
Satomi Matsuzaki, em diferentes momentos do
disco novo do grupo, Deerhoof Vs. Evil. O pinball
sonoro que é característico do quarteto – que
completa 16 anos de carreira – pode dificultar um
pouco o trabalho da plateia, mas a principal fun-
ção aqui é lembrar que, por mais que pareça um
improvável candidato às ondas do rádio, a música
da banda é mais acessível do que pode parecer à
primeira orelhada. O aspecto caleidoscópico do
som do Deerhoof vem da estratégia usada pelo
grupo na hora de compor cada disco – todos tra-
zem as suas próprias ideias de canções, que são
então remodeladas, criticadas e expandidas pe-
los outros membros “até você não saber mais se
aquela música existe”, como explicou o baterista
e fundador da banda Greg Saunier em uma entre-
vista recente. O resultado é um mosaico que reú-
ne sob o mesmo teto polirritmos à Konono No 1,
samba de gringo, folk adocicado, efeitos de dub,
riffs de hard rock, lounge sessentista de mentira
e mais outras camadas de idiossincrasias sônicas.
Apesar de o panorama parecer confuso em uma
limitada descrição verbal, a voz de Matsuzaki e
as melodias fácies unem tudo com uma insus-
peita simplicidade e – surpresa! – o disco chega
a ter momentos dançantes, como “Super Duper
Rescue Heads!” e “Hey I Can”. Mas no final tudo
parece um grande Katamari musical, cheio de ele-
mentos brilhantes sobrepostos – nada que um jo-
gador/ouvinte não possa capturar com um pouco
de perspicácia. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.
2BURRO MORTO
BAPTISTA VIROU
MÁQUINA
Independente
2011
2ORELHA NEGRA
ORELHA NEGRA
Valentim de
Carvalho
2010
2DEERHOOF
DEERHOOF VS. EVIL
Polyvynil
2010
94
Para John Cage, aprender a ouvir é um dos pila-
res da criação musical. Em uma entrevista, Cage
explica que, ao longo de seu aprendizado, o
músico embute um silêncio falso, esforço men-
tal para ignorar todos os sons ao seu redor. O
silêncio total seria um engano, e a performance
musical deve absorver o que para muitos é ruído
ou imperceptível. Um bom exemplo disso é este
disco de Rob Mazurek. Sem dúvida nenhuma, é o
trabalho mais livre do compositor e trompetista
de Chicago. Não se trata de um disco de música
improvisada, pelo contrário: é bastante rigoroso
em termos de composição, e as nove peças re-
gistradas ao longo do CD têm coerência narrati-
va. Os compassos iniciais de “Mula sem Cabeça”,
com pratos, sinos e pandeiros se misturando às
melodias de poucas notas do trompete de Ma-
zurek e da rabeca de Thomas Roher dão uma
ideia precisa dessa criação que se apropria do
som do ambiente sem se desapegar da com-
posição. Na mesma linha estão a belíssima “The
Passion of Yang Kwei-Fe”, na qual a presença do
aparentemente aleatório se combina com uma
melodia lindíssima da flauta de Nicole Mitchell.
Esse apego às melodias parece outra caracterís-
tica marcante do trabalho de Mazurek. Mesmo
em “Car Chase” e “Three Reasons Not to Blow
Up the World”, elas são regra. “Purple Sunrise”
faz aproximação curiosa do baião e do maxixe,
que de maneira involuntária soa como os traba-
lhos do guitarrista Fred Frith – não por acaso,
outro admirador da música brasileira. Mazurek
trabalha em uma chave de liberdade e abertura,
dele mesmo e de quem o escuta. Nada pode ser
mais importante. 3POR LAURO MESQUITA.
+REVIEWS
Quando Live in Daytron ? 6º apareceu em pré-venda no site oficial de Robert
Pollard, a empolgação foi enorme. Após ter encerrado as atividades do grupo
na passagem de ano entre 2004/2005, ele usou 2010 para excursionar com
a formação clássica do Guided By Voices, debandada em 1996 por incom-
patibilidade musical. Seria um registro dessa nova turnê? Infelizmente, ainda
não. Mas não se preocupe: a infelicidade passa logo. O novo álbum ao vivo da
banda (cujo título remete a um som clássico dos caras, “Dayton, Ohio: 19 So-
mething and 5”) é de 2001 e registra o grupo de Pollard já reformado, tocando
em sua cidade natal após o lançamento de Isolation Drills, um de seus álbuns
mais cuidadosos e trabalhados. À época, Pollard e sua trupe haviam largado a
Matador para assinar com a major TVT Records e provar que eram muito mais
do que uma banda de garagem. E conseguiram, apesar de as vendagens não
expressarem isso na época. Se ainda houver alguma dúvida, Live in Daytron?
chega para eliminá-la de uma vez por todas. Entre pérolas como “Skills Like
This” e “The Enemy”, que tal a dobradinha “Glad Girls” e “Run Wild”? E o
que pensar da melódica “Twilight Campfire”? Já os fãs que torcem o nariz
para essa fase da banda são brindados com clássicos como “The Goldheart
Mountaintop Queen Directory”, ‘Tractor Rape Chain”, “Smothered in Hughs”
e “Don’t Stop Now” – essa, em uma versão hilária, com as letras improvisadas
pelo vocalista. Seu carisma, aliás, sempre foi outro diferencial da banda. Só ele
poderia apresentar “Shocker in Gloomtown” como uma música do Breeders,
sendo que, na realidade, é do próprio GBV – a banda de Kim Deal gravou uma
cover e costuma tocar uma versão da música em seus shows. Outro destaque
fica por conta do guitarrista Doug Gillard, que recheia a apresentação com
melodias e solos espertos. De repente, após a primeira música do segundo
disco, Pollard avisa ao público: “Essa seria uma boa hora pra parar. Mas com a
gente é diferente, gostamos de tocar até vomitar”. Após 43 músicas, o vômito
não vem, mas público e banda saem satisfeitos. E, agora, o ouvinte em casa
também. 3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA.
2GUIDED BY VOICES
LIVE IN DAYTRON? 6º
Rockathon
2010
2ROB MAZUREK
CALMA GENTE
Submarine Records
2011
95
O primeiro grande disco de 2011 acabou de sair,
e dificilmente estará fora das listas dos melhores
deste ano que apenas começou. Trata-se do de-
but homônimo do cantor, compositor e produtor
inglês James Blake. Com apenas 22 anos de ida-
de, Blake despontou em 2010 lançando três óti-
mos EPs: The Bells Sketch, CMYK e Klavierwerke.
Nessas pequenas amostras, o produtor já apre-
sentava uma forma toda própria de mexer com
o dubstep, criando sonoridades minimalistas
com batidas instáveis, muitos fragmentos vo-
cais e usando o silêncio misturado a frequências
baixíssimas que fazem tremer a caixa torácica
como forma de composição. Toda essa originali-
dade o colocou no topo das promessas da nova
música europeia, ganhando da BBC o status de
“O Som de 2011”. Em seu álbum de estreia, no
entanto, Blake criou um som ainda mais pesso-
al e indefinido, além de revelar-se um grande
cantor. O primeiro single é uma versão de “Li-
mit To Your Love”, da cantora canadense Feist,
que não só superou a original como está sendo
tratada como uma das melhores gravações do
século XXI. Seu novo single, “Wilhelms Scream”,
traz a mesma proposta e o mesmo choque nas
audições. Mas essas talvez sejam as músicas
mais fáceis de digerir do álbum. Nas restantes,
o experimentalismo, a simplicidade e o silêncio
tornam-se ainda mais presentes. Destaque ain-
da para as incríveis “To Care (Like You)”, “I Never
Learnt To Share”, “Measurements” e “Unluck”.
3POR DANIEL TAMENPI.
Harvey Pekar foi um desses gênios ofuscados por suas diatribes e seus
companheiros de percurso. E não era pra menos: quem o “descobriu” e o
lançou no mercado de quadrinhos foi ninguém menos que Robert Crumb
– o maior artista vivo das HQs no planeta. Reconhecido muito mais por
sua excentricidade do que pelo seu vibrante talento para constituir narra-
tivas baseadas em experiências pessoais sem cair no piegas, na autocomi-
seração e na autoadulação egoica, Pekar construiu uma obra que o coloca
como um dos maiores contadores de histórias de nosso tempo. Histórias
prosaicas, mundanas – o retrato fiel de um trabalhador ordinário no Oci-
dente –, que saíam do comum graças a seus comentários afiados. Assim,
não soa nada estranho que Pekar, aliado com Paul Buhle (uma eminência
parda quando o assunto é radicalidade estadunidense no século XX), que
editou a obra, viesse a escrever sobre os beatniks. O livro se divide em três
grandes histórias sobre Kerouac, Ginsberg e Burroughs e outras menores
sobre os demais nomes da literatura beat (Ferlinghetti, Corso, Lamantia
etc.), além de aspectos ligados ao meio, como os antecedentes na litera-
tura americana, os aspectos filosóficos que deram consistência ao movi-
mento, a (não) participação feminina, a música da época etc. Em grande
parte do álbum, a arte é de Ed Piskor, um dos maiores parceiros de Pekar e
amplamente desconhecido por aqui. E, graças a uma outra deficiência do
mercado editorial nacional, ainda é possível conhecer algo novo sobre essa
turma, fatos ainda não tão divulgados e explorados no Brasil. Em destaque,
os questionamentos um tanto quanto “travados” e típicos de Pekar sobre a
misoginia e homossexualidade de Kerouac, que manteve diversas relações
com homens, ou a HQ de Joyce Brabner (a esposa feminista de Pekar) so-
bre as mulheres no mundo beat, apresentando um lado mais barra-pesada
e menos heroico dessa geração, amplamente jogado pra debaixo do tapete
por seus biógrafos. Em Os Beats não há muito malabarismo textual ou ex-
plosão visual. Neste livro realizado por pessoas que acima de tudo nutrem
um fascínio saudável sobre o assunto, texto e arte operam as premissas
mais elementares dos quadrinhos, se valendo em parte do didatismo típi-
co dos livros biográficos para “ensinar” como é possível contar uma ótima
história se atendo ao essencial da linguagem das HQs. 3POR VELOT WAMBA.
2VÁRIOS AUTORES
OS BEATS
Editora Benvirá
2010
2JAMES BLAKE
JAMES BLAKE
R&S Records
2011
1LIVROS
96
“Até hoje quando olho para essa foto, nunca me
vejo. Vejo nós dois.” A foto em questão é o retra-
to de Patti Smith para uma das capas mais lindas
da história do rock, a do disco Horses. A imagem
foi clicada pelo artista e fotógrafo Robert Mapple-
thorpe – primeiro amor e grande amigo de Patti.
Para ele, antes de morrer, ela prometeu contar a
história dos dois. Uma história de amor fraterno
e intenso, sem a visão maquineísta e dualística
desse sentimento comumente dividido entre cer-
to ou errado, bom ou ruim. Assim, Patti conseguiu
ficar anos-luz de clichês e pieguices recorrentes
em muitos romances autobiográficos, mesmo de-
talhando todo o seu relacionamento até a morte
de Mapplethorpe, em 1989. O diferencial também
fica por conta da narrativa leve e pela ambienta-
ção minuciosa da Nova York dos anos 60 e 70.
Ao usar sua veia poética para contar suas histórias
com Andy Warhol e sua Factory, o tempo em que
morou no Hotel Chelsea, a amizade com William
Borroughs e Janis Joplin, shows memoráveis e as-
pectos políticos e culturais das duas décadas, ela
mostra os dotes literários cultivados desde a ado-
lescência, época em que não almejava ser uma es-
trela do rock, mas sim escritora. As referências de
autores da geração beatnik como Jack Kerouac e
Allen Gingersberg e clássicos como William Blake,
Baudelaire e Nietzsche a ajudaram a construir
uma relação íntima com a escrita. Poucos livros
me fizeram chorar por sentir a emoção do escri-
tor e a franqueza daquelas linhas. Patti conseguiu,
ao imortalizar por meio de letras o que Robert já
havia imortalizado através de suas fotos: o amor
incondicional. 3POR MARINA MANTOVANINI.
2PATTI SMITH
SÓ GAROTOS
Cia das Letras
2010
Eu quase desisti de escrever este review ao ler a
apresentação que Fábio Zimbres assina ao final
de Ordinário. Sério, que cara egoísta: achou todas
as palavras mais cabulosas, frutos de insights tão
brilhantes, que não sobrou nada pra ninguém. Se
você quer entender mesmo porque o Sica é um
artista tão único, é só comprar o livro e ler aquele
texto (só não fiz um CTRL C + CTRL V aqui porque
ficaria feio e eu poderia acabar comprando briga
com a editora). Claro, talvez antes de ler a apre-
sentação e de comprar o livro você queira saber o
que se passa ali dentro. E é só por isso que eu vou
me atrever a dizer algo além do que o Zimbres
já disse. Rafael Sica é um quadrinista gaúcho – o
melhor da nova geração no Brasil na minha opi-
nião –, que tem um traço ao mesmo tempo sujo e
delicado, à base apenas de lápis preto e nanquim,
e faz quadrinhos mudos. E é assim, nessa carên-
cia auto-imposta de meios, que ele conta histórias
sobre a vida das pessoas. Histórias, como o nome
do livro sugere, ordinárias. Tão ordinárias que, se
você tentar lê-las sentado no banheiro, vai passar
batido, sem entender nada. Essa é a mágica do
Sica: pra sacar o extraordinário ali, só se o leitor
fizer como ele. É preciso se despir de um olhar
viciado e podar a ansiedade para entrar em um
ritmo mais lento, no qual cada pequeno quadro
surge como se fosse uma história em si, à espe-
ra talvez de um quadro seguinte, que traria uma
legenda, como nos filmes mudos. Mas esse qua-
dro-legenda nunca vem, e você fica ali, criando
epifanias em completo desamparo enquanto se
dá conta de que Ordinário, pequeno no tamanho,
diminuto em recursos, é um livro de ambições
magníficas. 3POR MATEUS POTUMATI.
Há cerca de um ano, Hervé Bourhis era um com-
pleto desconhecido no Brasil. Aí a Conrad resol-
veu lançar por aqui seu Pequeno Livro do Rock,
relato em quadrinhos abertamente subjetivo da
história do gênero musical mais highlander de
todos. As tiradas bem humoradas e o traço punk-
-realista de Bourhis caíram nas graças dos brasi-
leiros, que fizeram do quadrinho um hit. É nessa
maré extremamente favorável que chega às lojas
O Pequeno Livro dos Beatles. Se você gostou do
primeiro, vá com fé: este é ainda melhor. Além da
timeline pela carreira do grupo e dos integrantes
(até 2009), marca registrada do autor, Bourhis
vai mais fundo nas análises, dando notas para
cada álbum, single, EP e disco solo de John, Paul,
George e Ringo (mas esqueceu de Shaved Fish).
Isso traz momentos ainda mais engraçados, po-
lêmicos e apaixonados, em que fã, crítico e artis-
ta se misturam num equilíbrio empolgante. Como
no review do Álbum Branco: “É a única obra-
-prima que tem 25% das músicas dispensáveis,
sendo uma inaudível, e da qual gostamos mes-
mo assim!” Ou no do Sgt Pepper’s: “Ao fim e ao
cabo, um álbum apaixonante (...), que a falta de
espontaneidade torna, porém, um tanto gélido e
intimidante.” Outro atrativo é a capacidade gráfi-
ca que Bourhis tem de mesclar assuntos maiores
com notas curiosas, como as prisões de Paul por
porte de maconha ou um desenho do túmulo de
Eleanor Rigby. Bourhis tem uma memória privi-
legiada e tenta ao máximo ser sincero consigo
mesmo e com o legado da banda. Com isso, nos
deu um livro que, se não é genial, supre com lou-
vor a necessidade de se ler algo sobre os Beatles
de tempos em tempos. 3POR MATEUS POTUMATI.
2RAFAEL SICA
ORDINÁRIO
Quadrinhos na Cia
2011
2HERVÉ BOURHIS
O PEQUENO LIVRO
DOS BEATLES
Conrad
2011
+REVIEWS
97
Thomas Pynchon é um desses heróis da literatura
que unem descontração, desvario e rigor formal
e narrativo de uma maneira tão peculiar e inex-
tricável que se tornou referência e paradigma. O
tal do “diálogo com a cultura pop”, que serve de
muleta para muitos, é apenas um ponto de parti-
da para o escritor americano responsável por um
dos grandes clássicos psicodélicos em qualquer
forma de arte, o monumental Arco-íris da Gra-
vidade. Voltando ao cenário de alguns de seus
romances/esfinges anteriores, a Califórnia dos
anos 1970, em Vício Inerente ele trata do declínio
da curva do verão do amor hippie e, numa es-
colha provavelmente nem um pouco ocasional,
lança mão do gênero policial para tanto, criando
um detetive doidão, Doc Sportello, misto de Sam
Spade e Hunter Thompson. O detetive da vez se
mete em encrenca por causa de uma ex-namo-
rada e termina por lidar com uma conspiração
na qual se misturam especuladores judeus e seus
seguranças nazis, hippies de diversas matizes,
surfistas, traficantes, contrabandistas, bandas de
rock, prostitutas e as mais variadas drogas. Ao
contrário de muitos escritores com pretensões
pop, Pynchon não é preguiçoso nem condes-
cendente com seus leitores, com suas afinidades
eletivas e nem com seus personagens, de forma
que ninguém passa impune por seus livros. Óti-
ma leitura introdutória para as obras mais densas
do autor. 3POR VELOT WAMBA.
2THOMAS PYNCHON
VÍCIO INERENTE
Cia das Letras
2010
+ENDEREÇOS
Centro Cultural São Paulo .
centrocultural.sp.gov.br
Choque Cultural .
choquecultural.com.br
Converse .
converseallstar.com.br
CUFA .
cufa.org.br
Cúpula Negredo / Periferia Ativa .
gruponegredo.blogspot.com
Museum Boijmans Van Beuningen .
boijmans.nl
Nike Sportswear .
nikesportswear.com.br
Simon Dickinson Gallery .
simondickinson.com
Soma .
maissoma.com
Volcom .
volcom.com
98
99