Revista multitemas | n. 04 . janeiro a...

213
ISSN. 2447-0171 Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017 ÁREAS: DIREITO E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Transcript of Revista multitemas | n. 04 . janeiro a...

Page 1: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

ISSN. 2447-0171

C r i a ç ã o

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSAAlanna Correia Silva de Carvalho

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS Renata Sara Dantas Marques Soares

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAISJuliana Soraia dos Santos

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

BRASILEIRO

Marcela Ayres Britto Santos

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO CPC/15Jéssica Matos Correa

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADEJoana Angélica Carregosa Silva

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVOLizandra Gardênia dos Santos

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDECayo Rubens Castilhano Santos

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADEJosé Avelar Pereira Mattos Segundo

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADASRicelli Vieira de Oliveira

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIOSávio Roberto Amorim Aragão Silva

Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017

ÁREAS: DIREITO E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Revi

sta

mul

titem

as |

DIR

EITO

| n.

04.

jan-

abr/

2017

Page 2: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

PROJETO GRÁFICOAdilma Menezes

FOTOGRAFIA DA CAPA: © Roxana Gonzalez | Dreamstime.com

Olhar diverso Revista Multitemas da Criação Editora. n 04. Jan-

-Abr 2017. - Aracaju: Criação, 2017.ISSN. 2447-0171

1. Direito 2. Tecnologia da Informação e Comuni-cação. 3. Olhar Diverso (Periódico)

I. Título II. Revista Multitemas III. Assunto

CDU 340 (

O conteúdo dos artigos publicados são da responsabilidade exclu-siva dos seus autores.

Catalogação – Claudia Stocker – CRB 5/1202

Page 3: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

EDITORJosé Afonso do Nascimento

CONSELHO EDITORIALFábio Alves dos Santos

Universidade Federal de Sergipe

José Eduardo Franco Universidade de Lisboa/ CLEPUL

Luiz Eduardo MenezesUniversidade Federal de Sergipe

Luiz Carlos da Silveira FontesUniversidade Federal de Sergipe

Jorge Carvalho do NascimentoUniversidade Federal de Sergipe

José Afonso do NascimentoUniversidade Federal de Sergipe

José Rodorval RamalhoUniversidade Federal de Sergipe

Justino Alves LimaUniversidade Federal de Sergipe

Martin Hadsell do NascimentoUniversidade do Texas, Austin

Rita de Cácia Santos SouzaUniversidade Federal de Sergipe

CONSELHO CIENTÍFICOAcássia Araújo BarretoAna Maria de Menezes

Anderson Santos Ferreira da SilvaJosé Afonso do Nascimento

Lilian Cristina Monteiro FrançaRita de Cacia Santos Souza

Olhar diversoA revista Olhar diverso é um periódico da Criação Editora tem o intuito de incentivar a publicação de resultados de pesquisas nas diferentes áreas do conhecimento que usam o conceito de discurso como referencial de análise. Agrega artigos, resumos expandidos, resenhas, debates sobre temáticas variadas

que encorajem o diálogo interdisciplinar sobre as relações entre discurso e práticas sociais.

N . 4 | j a n e i r o - a b r i l / 2 0 1 7

Page 4: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 5: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

SUMÁRIO

7 APRESENTAÇÃO

9 INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA Alanna Correia Silva de Carvalho

23 UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

Renata Sara Dantas Marques Soares

45 ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS Juliana Soraia dos Santos

57 A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

Marcela Ayres Britto Santos

79 NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO CPC/15

Jéssica Matos Correa

93 A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

Joana Angélica Carregosa Silva

117 A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

Lizandra Gardênia dos Santos

Page 6: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

133 CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CON-TRATOS DE PLANO DE SAÚDE

Cayo Rubens Castilhano Santos

153 A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

José Avelar Pereira Mattos Segundo

171 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS Ricelli Vieira de Oliveira

193 AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

211 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Page 7: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

APRESENTAÇÃO

A Revista olhar diverso vinculada a Criação Editora traz nesse número, um diálogo interdisciplinar sobre as relações entre discurso e práti-cas sociais com temáticas variantes na área do Direito e da Tecnologia da Informação e Comunicação. Boa leitura!

Page 8: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 9: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 9-22

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

Alanna Correia Silva de Carvalho

RESUMO1

O presente artigo visa abordar como são comuns, apesar do ordenamento jurídico pátrio prevê dentre as garantias e direitos fundamentais a liberdade de consciência, de crença e de culto (art. 5º, inciso VI e VIII da Constituição Federal da República), os casos de vítimas de intolerância religiosa por meio do preconceito e da violência, das mais variadas formas ou, em outros casos, como tais pessoas que exercem sua crença são taxadas de preconceituosas e intolerantes em razão do outro exercitar a sua liberdade na escolha de outra religião. É uma via de mão dupla, na qual, o Es-tado Democrático de Direito deve intervir, punindo com rigor condutas de extrema violência ou exercitando a ponderação de interesses, através da aplicação, no caso concreto, dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.Palavras chave: Liberdade de consciência, de crença e de culto; Intolerância; Vio-lência.

Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Profes-sor Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected].

Page 10: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

10 Alanna Correia Silva de Carvalho

1. INTRODUÇÃO

A intolerância religiosa é conceituada pela doutrina como sendo uma conduta ou um crime de ódio contra a crença alheia que fere a liberdade e a dignidade da pessoa humana, seja através de violência física ou psíquica, podendo levar ao extermínio da própria vida.

A palavra intolerância, que vem do latim intolerantia, traduz a ideia de impaciência ou incapacidade de alguém suportar outrem. Ela ultrapassa a mera discordância de pensamentos comum na so-ciedade, revelando uma atitude hostil em relação ao modo de pen-sar alheio, que culmina em briga, racismo, desentendimento, crime e até morte.

Inúmeros casos de intolerância religiosa marcam a história mun-dial, dentre os quais, os crimes cometidos contra os Judeus, os protes-tantes, os afro-descendentes, os ateus, os católicos, etc. Nesse contexto, a própria bíblia relata a perseguição de Saulo de Tarso (posteriormente chamado de apóstolo Paulo) àqueles que se diziam seguidores de Je-sus (Atos dos Apóstolos, 9:21), culminando com o apedrejamento até a morte do Mártir Estevão (Atos dos Apóstolos, 7: 54-60).

O que se vê é que apesar da evolução científica, tecnológica e so-cial pela qual a humanidade passou e vem passando, os casos de into-lerância religiosa, paradoxalmente, só têm aumentado mundo a fora, tendo chegado ao ponto da Arábia Saudita, em 2016, ter decretado pena de morte, por meio da “Lei Charia”, para quem portasse a Bíblia em território nacional. Ou seja, nesse País, andar com a Escritura Sa-grada equivale a portar cocaína ou heroína, por exemplo.

Quando o direito constitucionalmente garantido, por meio da Liberdade de Expressão, de criticar dogmas ou religiões ultrapassar o limite do respeito, concretizando-se em agressões, ofensas ou trata-mento diferenciado de pessoa em razão da crença que professa ou pelo simples fato de não professar nenhuma, estamos diante de um crime contra o sentimento religioso, o qual deve ser punido pelo Estado.

Page 11: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

11

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

2. PANORAMA HISTÓRICO DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL E NO MUNDO

A religião, que no latim é religare ou religio, significando ligar o homem a Deus, sempre acompanhou o ser humano desde o início da civilização até assumir um papel ético-social.

Por vários séculos, o dever religioso confundiu-se com o dever político e o crime contra a religião era tratado como crime contra o próprio Estado, até o advento do império romano cristão, quando houve a separação entre o referido ente e a Igreja.

Em 313, os imperadores Constantino e Licínio aboliram a antiga religião e decretaram a liberdade de consciência, que vigorou apenas até o ano de 379, quando os imperadores Graciano e Valentiniano II, no Ocidente, e Teodósio I, no Oriente, proclamaram o Cristianismo como única religião verdadeira e oficial do Império.

Foi na Idade Média, todavia, que a intolerância religiosa atingiu seu ápice, sendo aplicadas penas severas a toda e qualquer ação que fosse ou parecesse contrária aos dogmas da Igreja Católica. Assim, tornaram-se cada vez mais abundantes os crimina violatae religionis, que, segundo Pierangeli (2007, p. 442), eram classificados como:

a) heresia (profanar doutrina contrária aos dogmas da religião ca-tólica);

b) apostasia (deixar o catolicismo para aderir a outra religião);c) cisma (abandono da religião cristã por um certo número de

pessoas);d) sacrilegium (violação de coisas sagradas ou de pessoas); e) turbacio sacrorum (perturbação de atos eclesiásticos); f) blasfêmia (injúria feita a Deus, à virgem e aos Santos);g) magia (realização de atos sobrenaturais, invocando os espíritos

malignos);h) sortilégio (uso de artes mágicas com o fim de adivinhação);i) simonia (comércio de coisas sagradas);

Page 12: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

12 Alanna Correia Silva de Carvalho

j) judaísmo (casamento de cristão com judia ou de cristão com judeu);

l) paganismo (adorar ídolos e professar o politeísmo);m) ateísmo (negar a existência de Deus) e;n) agnosticismo (duvidar da existência de Deus)

Mister destacar, que o sujeito passivo desses delitos, criados pelos concílios, era Deus e não o Estado e tais normas de direito penal e pro-cessual foram incorporadas, posteriormente, às legislações da época.

Somente nos séculos XVIII e XIX, com o iluminismo e suas ideias liberais, é que alguns Estados deixaram de incriminar os fatos que constituíssem apenas e tão somente uma violação da religião e pas-saram a repreender aqueles atentatórios à liberdade individual em matéria religiosa.

Passou-se, finalmente, a compreender que a intervenção da lei pe-nal somente se justificava, no tocante aos exercícios dos cultos, para proteger sua incolumidade, desde que não colidente com a paz social e à moralidade pública (PIERANGELI, 2007 apud HUNGRIA, 1979).

No Brasil, o Código Criminal do Império de 1830, na mesma linha de outras legislações da época, previa uma lista extensa de crimes contra a religião católica, atrelados a penas muito cruéis. O artigo 276, por exemplo, incriminava aquele que “celebrar em casa, ou edi-fício, que tenha alguma forma de templo, ou publicamente em qual-quer lugar, o culto de outra religião, que não seja a do Estado”.

A liberdade de consciência e de culto somente foi reconhecida no país com o advento do Código Penal Republicano de 1890, alta-mente influenciado pelo Código Penal Italiano de 1889, sendo tais princípios consagrados, posteriormente, pela Constituição de 1891, que previa, em seu art. 72, § 3º, que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associan-do-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”.

Page 13: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

13

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

Desde então, a liberdade de crença e de culto manteve-se como garantia individual nas Constituições que se seguiram: a de 1934 (art. 113, 5); a de 1937 (art.122,4); a de 1946 (art.141, §7º); a de 1967 (art. 150, § 5º) e, por fim; a atual Constituição de 1988 (art. 5º, VI).

3. DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA, CRENÇA E CULTO

Inicialmente, necessário detalhar o direito à liberdade de consci-ência, de crença e de culto, elencado pela Constituição federal (art. 5º, VI a VIII) dentre o rol dos direitos e garantias fundamentais:

Art. 5º- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos

termos seguintes:

[...]

VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo

assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,

na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

VII- é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência

religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

VIII- ninguém será privado de direitos por motivo de crença

religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as

invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e

recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei.

(grifos nossos)

Registre-se, que o direito à liberdade de crença engloba não ape-nas a liberdade de escolha da religião, mas também a liberdade de mudar de religião e a de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.

Page 14: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

14 Alanna Correia Silva de Carvalho

Em suma, a liberdade de consciência é o direito de acreditar ou não em algo superior, enquanto que a liberdade de crença é o direito de profetizar qualquer religião e, ambos, apresentam-se como ilustra-ção da laicidade do Estado.

Nesse trilhar, necessário destacar que, desde a Constituição de 1891, o Brasil é considerado um estado laico, admitindo e respeitan-do todas as vocações religiosas. Vejamos o que dispõe o art. 19, inciso I da Constituição Federal atual, in verbis:

Art. 19- É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos

Municípios:

I- Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los,

embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus

representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada,

na forma da lei, a colaboração de interesses públicos.

No intuito de evitar quaisquer embaraços pela via tributária, a Constituição Federal em seu art. 150, inciso VI, alínea b, estatuiu ain-da a imunidade dos templos de qualquer culto. Senão, vejamos:

Art. 150- Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao

contribuintes, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal

e aos Municípios:

[...]

VI- instituir impostos sobre:

[...]

b) templos de qualquer culto.

Ante o demonstrado, verifica-se que o Constituinte além de elencar a liberdade de crença entre os direitos e garantias fundamentais, em ou-tros dispositivos da Constituição pontuou que é vedado ao Estado emba-raçar o funcionamento das igrejas, criando mecanismos para tanto.

Page 15: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

15

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

Pois bem. Sendo o Brasil um Estado laico ou secular, sem exclusi-vismo religioso, aqui não se justifica conduta intolerante por motivo de crença ou descrença, podendo qualquer um acreditar, não acredi-tar ou deixar de acreditar no que quiser.

Todavia, necessário ressaltar que ser Estado laico não significa ser, ne-cessariamente, Estado ateu ou agnóstico. Tanto é assim que o Preâmbulo da Constituição de 1988 estabelece que ela foi elaborada sob a proteção de Deus, sem fazer acepção de pessoas, credos, ritos, seitas ou religiões.

No Brasil, todos devem receber tratamento igualitário, conforme preceitua o art. 5º, caput da Carta Magna, alhures transcrito, pouco importando sua crença ou ausência dela. Isso porque, o Estado brasi-leiro não é teocrático, como o é, por exemplo, o Vaticano, que possui como religião oficial o Catolicismo e, o Irã, que professa o Islamismo.

Aqui a variedade cultural e o sincretismo religioso são grandes. Portanto, crer ou deixar de crer, é algo personalíssimo. Afinal, “di-vergência de opinião não deve ser jamais motivo para hostilidade” (BULOS apud GANDHI).

4. LEGISLAÇÃO QUE COMBATE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Apesar do arcabouço normativo, a legislação brasileira não tem sido suficiente na prática, para o combate efetivo aos atos de intole-rância religiosa, se fazendo necessário um maior debate acerca do tema em todas as esferas da sociedade para sanar a problemática.

Vejamos o que estabelece o Código Penal Brasileiro (CPB), em seu artigo 208:

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de

crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia

ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou

objeto de culto religioso:

Pena — detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Page 16: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

16 Alanna Correia Silva de Carvalho

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada

em um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Pode-se perceber que existe no presente tipo penal retro trans-crito três condutas ilícitas distintas, com o fito de tutelar a ordem constitucional expressa no art. 5º, inciso VI, da Constituição Fede-ral a qual dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

O primeiro deles, qual seja, escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa, ou, como alguns doutri-nadores chamam, de ultrajar por motivo de religião, significa zom-bar, insultar, injuriar, afrontar, troçar ou ridicularizar alguém por sua crença ou função religiosa.

Necessário salientar que crença religiosa nada mais é do que a fé ou a convicção de alguém em relação ao sobrenatural, enquanto que função religiosa é a atividade desempenhada por determinada pessoa que exerce uma missão ligada à sua religião, como por exemplo, pa-dre, pastor, sacerdote, freira, rabino, etc.

[..] o delito só pode se concretizar quando ocorrer um juízo de

desvalor e de desconsideração social suficientemente grave,

que em razão de uma crença atinge alguém, mas também a paz

e a tranquilidade social. (PIERANGELI, 2007, p. 444)

No tocante à segunda conduta incriminada, qual seja, impedimen-to ou perturbação de cerimônia ou prática de culto religioso, dois são os verbos: impedir e perturbar. O primeiro é impossibilitar, obstar, paralisar, não permitir que o culto se inicie ou tenha prosseguimento. Já o segundo nada mais é do que atrapalhar, tumultuar, estorvar, fazer sair da normalidade um culto em andamento.

Page 17: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

17

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

Nesse caso, o simples desvio de atenção dos fiéis ou uma conver-sa não coloquial não caracteriza o delito na modalidade perturbação, sendo necessária uma alteração material sensível do curso normal do culto (HUNGRIA, 1979 apud PIERANGELI, 2007, p. 445). Ou seja, ocorrerá a perturbação ou até mesmo o impedimento da cerimônia ou do culto religioso quando houver atitudes como vias de fato, ameaças em voz alta, vaias, bater de pés, explosões, uso de parelhos de sons, etc. Para Mirabete, “basta o sobressalto do Ministro ou dos fiéis para que ocorra o crime na forma de perturbação” (apud PIERANGELI, 2007, p. 445).

A modalidade impedir, por sua vez, se dá pela colocação de obs-táculos á entrada do templo ou pelos mesmos meios que os da pertur-bação, como utilização de carro de som na frente da igreja.

Por fim, a terceira e última conduta incriminada, vilipendiar pu-blicamente ato ou objeto de culto religioso, significa julgar vil, no sentido de menosprezo, desprezo, ultraje, podendo a atitude consistir em palavras, atos ou escritos.

Tal como nas outras condutas, é indispensável que o fato seja praticado publicamente e, nesse caso, deve incidir diretamente sobre ou contra o objeto do culto, podendo ser estes, o livro litúrgico, cálice, óleo, água, imagem, altar, etc. Ressalte-se, que tais objetos devem es-tar consagrados ao culto, não havendo ofensa ao sentimento religioso quando os mesmos se encontrarem na fábrica, loja ou até mesmo em uma residência.

O referido crime, previsto no art. 208 do CP, é exclusivamente doloso, representando a vontade livre e consciente de alguém de pra-ticar as condutas retromencionadas e a ação penal é pública incondi-cionada, iniciando-se com o recebimento da denúncia pelo Ministé-rio Público.

Não sendo suficiente a punição prevista para o crime anterior, o legislador, através das Leis 9.459/1997 e 10.741/2003, alterou o art. 140, § 3º do CP para punir com pena de reclusão a prática de injúria

Page 18: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

18 Alanna Correia Silva de Carvalho

contra alguém consistente na utilização de elementos referentes, den-tre outros, à religião. Senão, vejamos:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o

decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

[...]

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes

a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa

ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741,

de 2003)

Pena - reclusão de um a três anos e multa.

A Lei nº 7.716/1989, alterada pela Lei nº 9.459/1997, considerou crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões, tipi-ficando os seguintes comportamentos: (i) Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Adminis-tração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos (art. 3º); (ii) Negar ou obstar emprego em empresa privada (art. 4º); (iii) Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador (art. 5º); (iv) Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em es-tabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau (art.6º); (v) Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, esta-lagem, ou qualquer estabelecimento similar (art.7º); (vi) Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público(art.8º); (vii) Impedir o aces-so ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público; (viii) Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades (art.10); (ix) Impedir o acesso às entradas sociais em edi-

Page 19: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

19

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

fícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos (art.11); (x) Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido (art.12); (xi) Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas (art.13); (xii) Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casa-mento ou convivência familiar e social (art.14); (xiii) Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art.20); e (xiv) Fabricar, comercializar, dis-tribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de di-vulgação do nazismo (art.20,§ 1º).

A Lei n. 11.635/2007, por sua vez, instituiu o dia 21 de janei-ro como o dia nacional de combate à Intolerância Religiosa, em ho-menagem a Sr.ª Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, do terreiro de Candomblé Axé Abassá de Ogum (Salvador – Bahia), que enfartou após ver sua foto estampada no jornal da cidade seguida com uma manchete caluniosa acerca da função religiosa que exercia.

Já em 2010, a Lei nº 12.288, que trata do “Estatuto da Igualda-de Racial”, conferiu especial atenção aos cultos de matriz africana, prescrevendo, condutas que compreendem o direito à liberdade de consciência e de crença e o livre exercício dos cultos religiosos dessa natureza.

Todavia, nenhuma das legislações citadas trouxe punições aptas a exterminar efetivamente um dos maiores problemas da humanida-de, a intolerância religiosa, persistindo no Brasil as agressões físicas, morais, ofensas pela internet, ameaças, depredação de casas e comu-nidades de pessoas que exercitam seu direito de liberdade de consci-ência e de crença.

Page 20: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

20 Alanna Correia Silva de Carvalho

5. CASOS DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL

A maior parte das denúncias de intolerância religiosa registradas no Brasil atualmente é de crimes praticados contra religiões de matriz africana, tanto que a Lei nº. 11.635/2007, que instituiu o dia 21 de ja-neiro como o dia nacional de combate à Intolerância Religiosa, se deu em homenagem a uma ex- mãe de santo, que, conforme já mencio-nado acima, enfartou após ver sua foto estampada no jornal seguida com uma manchete caluniosa acerca da função religiosa que exercia.

Todavia, tal crença não é o único alvo de violência.Em 12 de outubro de 1995, Sérgio Von Helder, pastor da Igreja

Universal do Reino de Deus, em rede nacional, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, no dia em que a padroeira é comemorada e criticou a idolatria, chamando a santa de ‘’boneca de barro’’.

Em uma entrevista para a Revista Congresso em Foco, em 26/08/2010, intitulada “Sofro preconceito por ser evangélica” por Ru-dolfo Lago, a então candidata do Partido Verde à Presidência da Re-pública, Marina Silva, garante que nenhuma das circunstâncias da sua vida a fez se sentir vítima de preconceito. Todavia, na disputada sucessão do presidente Lula, Marina afirmou sentir pela primeira vez a discriminação por sua opção religiosa, sendo taxada, muitas vezes, de excessivamente conservadora.

A desinformação sobre a religião é apontada por praticantes do islamismo como a principal causa de discriminação em seu meio. A empresária Zahrah Carolina Bravo, de 33 anos, por exemplo, passou a evitar o véu que deveria ser usado durante o dia, após uma caminhada por Nova Iguaçu, em janeiro de 2015, quando recebeu uma cusparada no rosto e acusações de práticas terroristas devido à vestimenta, asso-ciada erroneamente a ações de grupos extremistas do Oriente Médio.

Na véspera de seus 175 anos, o STF proferiu uma das decisões mais relevantes e emblemáticas de toda a história com relação aos direitos civis, tendo concluído, por oito votos contra três, que a pro-

Page 21: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

21

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

pagação de ideias discriminatórias ao povo judeu é crime de racismo, negando o pedido de habeas corpus e mantendo a condenação dada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao editor Siegfried Ellwanger por divulgar livros de conteúdo anti-semita.

Em Macaé, Maria Cristina Marques, professora de escola muni-cipal diz ter sido proibida de dar aulas na unidade, dirigida por dire-tora evangélica, em 2009, após ter utilizado, nas aulas de Literatura Brasileira, o livro ‘Lendas de Exu’, de Adilson Martins. A professora conta que a obra utilizada foi recomendada pelo próprio Ministério da Educação (MEC) e que após o ocorrido, entrou com notícia-crime no Ministério Público, por se sentir vítima de intolerância religiosa.

6. CONCLUSÃO

Conforme visto anteriormente, a luta pela liberdade religiosa não é nova e está muito longe de acabar, uma vez, que apesar dos grandes avanços da humanidade nas mais diversas áreas, dentre elas, a tec-nológica e a científica, o mesmo não se pode afirmar em matéria de moral, cujos conceitos, dentre os quais, o de respeito pelo próximo, vem retrocedendo, sendo cada vez mais relativizados ou até mesmo esquecidos pelo homem.

Viu-se também que o ordenamento jurídico pátrio é insuficiente para reprimir as condutas de ódio contra o sentimento e a liberdade religiosa e, por mais que haja projetos de lei grandiosos destinados ao combate da intolerância religiosa, imperioso ressaltar que somente o amor ao próximo, se exercitado, é que será capaz de extirpar tal violência.

Assim, além de se valer da tipificação de condutas, é dever de toda sociedade e de toda orientação religiosa, lutar, acima de tudo, inclusive da sua própria liberdade de professar sua crença, pela disse-minação do amor e do respeito ao próximo, independente de religião, raça ou cor, tal qual já sugerido há mais de dois mil anos.

Page 22: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

22 Alanna Correia Silva de Carvalho

REFERÊNCIAS

PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volu-me 2: parte Especial (arts. 121 a 361)/ José Henrique Pierangeli.- 2. ed. rev., atual., ampl. e compl.- São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007.

LÉPORE, Paulo. Direito constitucional para os concursos de técnico e analista. Coleção Tribunais e MPU. 3. ed. rev., ampl e atual.- Salva-dor: Editora Jus Podivm, 2015.

BULOS, Uadi Lammêgo. Intolerância religiosa no ordenamento brasi-leiro -2016. Disponível em: < http://www.anajure.org.br/intolerancia--religiosa-no-ordenamento-brasileiro/> Acesso em 08 de janeiro de 2017.

FIGUEIREDO, Renata da Silva. Disponível em: <https://semanaaca-demica.org.br/system/files/artigos/crimes_contra_o_sentimento_reli-gioso_6_0.pdf. > Acesso em 09 de janeiro de 2017.

PESTANA, Maurício. Intolerância religiosa e racismo crescem no ‘pa-cífico’ Brasil. Disponível em: < http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2016/02/03/intolerancia-religiosa-e-racismo-crescem-no-paci-fico-brasil.htm. > Acesso em 09 de janeiro de 2017.

SABÓIA, Gabriel. Mulçumanas são vítimas de agressões nas ruas do Rio. Disponível em: < http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janei-ro/2015-02-01/muculmanas-sao-vitimas-de-agressoes-nas-ruas-do--rio.html. > Acesso em 09 de janeiro de 2017.

Page 23: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 23-44

RESUMO

O artigo tem como objeto investigar a possibilidade do Estado utilizar símbolos re-ligiosos em instituições públicas levando-se em consideração o princípio do Esta-do laico e a liberdade religiosa. Identificou-se que o Estado laico traduz a ideia de separação entre Estado e Igreja, devendo o Estado ter uma posição de neutralidade em relação às diferentes crenças, não podendo privilegiar nenhuma religião em de-trimento das demais. Foi delimitada a garantia à liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa, sendo cada cidadão livre para seguir sua religião, bem como não aderir a nenhuma. Por fim, analisou-se a questão a partir de dois julgados, um defendendo a retirada dos símbolos religiosos das instituições públicas e outro de-fendendo a permanência destes. Os que defendem a permanência argumentam que eles refletem o costume e o aspecto cultural da sociedade brasileira. Em contrapar-tida, os que pugnam a sua retirada justificam que por o Brasil ser um Estado laico, não deverá ostentar qualquer símbolo que remeta a alguma religião, ademais deverá o Estado respeitar os princípios da legalidade e impessoalidade da administração pública nos quais afirmam que as crenças pessoais dos administradores públicos não podem suscitar qualquer dúvida em relação ao príncipio da laicidade Estado brasileiro. Conclui-se que cada indivíduo tem a liberdade de cultivar e demonstrar a sua religião através da utilização de símbolos religiosos na sua esfera privada, mas o contrário deve ser a postura do Estado em matéria religiosa, pois por ser um país lai-co, deve permanecer neutro quanto a manifestações religiosas relativas a exposição de símbolos de uma determinada religião nos órgãos públicos.Palavras chave: Estado Laico. Liberdade Religiosa. Símbolos Religiosos.

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

Renata Sara Dantas Marques Soares

Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Técnica do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected]

Page 24: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

24 Renata Sara Dantas Marques Soares

1. INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da civilização, as pessoas apresentam formas de pensar diversas, seja no sentido religioso, racial, político, étnico ou em qualquer outro sentido. Percebe-se que para a convivência harmô-nica entre estas diferentes formas de pensar e viver se faz necessário que se aprenda a respeitar uns aos outros, para que possa haver um convívio harmônico entre essas comunidades. Assim, é necessário que todos exerçam o princípio da tolerância, que é fundamental para o progresso e a paz entre os diferentes povos, nos diferentes locais, principalmente nos dias atuais, onde, no mundo globalizado que se vive, há uma busca constante de integração e desenvolvimento entre as comunidades, o que é realçado pelo fato da tolerância ser reconhe-cida por diversos Estados como o sustentáculo dos direitos humanos.

Nesse contexto, de desenvolvimento da tolerância, desde a pro-clamação da República, o Brasil passou a ser um Estado não confes-sional ou laico e a partir daí, todas as demais constituições não mais professaram uma fé, ficando permitida a liberdade de crença, ou, a ausência dela. Constando expressamente na Constituição Federal que nenhum dos entes federativos pode estabelecer cultos religiosos, sub-vencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalva-da, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Dessa forma, o princípio do Estado laico impõe a separação total entre a religião e o Estado.

Destarte, o Brasil assegurou, constitucionalmente, no rol dos di-reitos fundamentais, a liberdade religiosa, garantindo a todos os ci-dadãos a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa. Dessa forma, na medida em que o Brasil adotou ser um Estado laico, ou seja, com a separação entre o Estado e a Igre-ja, não mais poderá haver a imposição de uma religião oficial pelo Estado, nem será dado tratamento diferenciado a qualquer religião,

Page 25: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

25

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

podendo cada indivíduo professar a sua fé ou deixar de exercê-la. In-cumbindo ao Estado propiciar o meio para convivência das diferentes religiões, sem privilegiar nenhuma.

Diante deste contexto é que iremos abordar a temática da utiliza-ção de símbolos religiosos em instituições públicas, sob o enfoque da laicidade do Estado brasileiro, onde prega a garantia fundamental da liberdade religiosa em sua Constituição Federal.

Dessa forma, propõe-se, no presente artigo, analisar a legitimida-de da utilização de símbolos religiosos representativos de uma reli-gião específica em ambientes de utilização pública, em detrimento da laicidade do Estado.

2. A LIBERDADE DE CRENÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Desde cedo, documentos de declaração de direitos preocuparam--se em afirmar a liberdade religiosa. Podemos elencar a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, que proclamou a ampla liberdade de religião; a Declaração Francesa de Direitos, de 1789, a qual se re-portava mais a tolerância religiosa, do que a uma ampla e irrestrita liberdade; e, mais recentemente, a Declaração da ONU, de 1981, que aprovou o projeto adotando a Declaração sobre a Eliminação de Todas as formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção.1 Tal direito vem sendo consolidado no Brasil a partir das Constituições Republicanas, garantindo a proteção da liberdade de crença, de culto e de organização religiosa.

Enquanto princípio conformador da ordem jurídica, o direito à liberdade religiosa implica numa obrigação de tolerância, entendida como dever de respeito pela dignidade e pela personalidade dos ou-tros, bem como pelas suas diferentes crenças e opções de consciência.

1 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 629.

Page 26: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

26 Renata Sara Dantas Marques Soares

Quando se fala de tolerância tem-se em vista a atitude de respeito e boa-fé que os cidadãos e grupos devem ter uns pelos outros numa so-ciedade pluralista regulada por uma ordem constitucional de justiça, reciprocidade e igual liberdade.2 Nas palavras de Magalhães Collaço liberdade religiosa como direito fundamental, constitui “o conjunto de regras jurídicas que asseguram a todos os indivíduos não só a pos-sibilidade de conformar a sua atitude e acções com o seu pensamento sobre religião, mas ainda, e a despeito de diferenças neste, o gozo igual de todos os direitos civis e políticos”.3

O reconhecimento da liberdade religiosa contribui para prevenir tensões sociais, na medida em que, por ela, o pluralismo se instala e se neutralizam desavenças decorrentes do impedimento a crenças quaisquer. O fato da Constituição da República consagrar a liberdade religiosa fomenta o exercício da tolerância entre as pessoas.4 Já que, a liberdade religiosa juntamente com a adoção de um Estado laico polariza a política religiosa na ideia de deslocar a religião do espaço público para o espaço privado.

2.1 A liberdade religiosa

A garantia constitucional da liberdade religiosa demonstra a con-sagração da maturidade de uma sociedade, pois ela é o verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação. O pre-ceito constitucional da liberdade religiosa tem uma abrangência am-pla, pois sendo “a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por

2 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucio-nal inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Editora Coim-bra, 1996. p. 256.

3 COLLAÇO, M. In: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o estado. Coimbra: Alme-dina, 2002. p.409.

4 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Editora saraiva, 2011. p. 359-360.

Page 27: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

27

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”.5 Im-por à pessoa renunciar sua fé representa o desrespeito a diversidade democrática de ideias, filosofias e a própria diversidade cultural. Não deve ser imposto a ninguém adotar uma determinada religião, se esta for contrária a sua consciência. No entanto, deve ser asse-gurado aos que creêm em Deus a garantia ao livre exercício desta crença, não podendo ninguém ser discriminado por ter sua religião e a sua consciência.6

A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado não impor uma religião ou no fato de não impedir ninguém de professar uma fé. Impõe ao Estado permitir e propiciar aos que seguem determinada crença cumprir os deveres dela resultantes, desde que sejam razoá-veis e não sejam através de leis emanadas do próprio Estado. Se o Es-tado, apesar de conceder aos cidadãos o direito de terem uma religião, impuser condições que os impossibilitem de praticá-la, ou impor que os fiéis cumpram os deveres decorrentes de sua crença, não há que se falar em liberdade religiosa.7

A primeira Constituição brasileira, de 1824, estabelecia “a reli-gião católica como a religião do Império, sendo todas as outras religi-ões apenas toleradas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo”. Essa regra só foi modificada com a proclamação da República. Desde então “o Brasil passou a ser um país laico, que não possui qualquer religião oficial específica e, portanto, deve ser o mais neutro possível no que se refere às escolhas dessa natureza”.8

Em decorrência da laicidade, o constituinte estabeleceu, no artigo 5° da Carta Magna, a liberdade religiosa, “sendo assegurado o livre

5 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010. p. 46.6 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Conheça a constituição: comentários à constituição brasi-

leira. São Paulo: Manole, 2005. v. 1. p. 46.7 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000.

4 t. p. 409.8 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 98.

Page 28: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

28 Renata Sara Dantas Marques Soares

exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a prote-ção aos locais de culto e a suas liturgias” (incisos VI), de modo que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (inciso VIII).

Para José Afonso da Silva, a liberdade religiosa compreende três formas de expressão: a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa. Quanto a liberdade de crença, o autor considera tanto a liberdade de escolher uma religião como a liberdade de não aderir a nenhuma crença. Afastando, no entanto, a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, pois a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.9

Quanto a liberdade de culto, a Constituição Federal assegura tanto a liberdade de exercício dos cultos religiosos, sem condiciona-mentos, como também protege os locais de culto e suas liturgias, na forma da lei. Assim, cabe ao poder público não embaraçar o exercício dos cultos religiosos, além de protegê-los, impedindo que outros o fa-çam.10 O culto religioso é livre, desde que não seja contrário à ordem, tranquilidade e sossego públicos, bem como compatível com os bons costumes.

A terceira forma de expressão é a liberdade de organização reli-giosa, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organiza-ção das igrejas e suas relações com o Estado. Aqui três sistemas são observados: a confusão, a união e a separação. Na confusão, o Estado se confunde com a religião, como nos Estados islâmicos. Na união, verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada Igreja

9 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 249.

10 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 250.

Page 29: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

29

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

quanto à sua organização e funcionamento, como, por exemplo, a par-ticipação daquele na designação dos ministros religiosos e sua remu-neração. Foi o sistema do Brasil Império. Já a separação refere-se ao apartamento total entre Estado e religião, sendo o fundamento para o princípio do Estado laico.11

2.2 O Estado laico

O estado brasileiro tornou-se, desde o advento da República, lai-co ou não-confessional. Isto quer dizer que ele se mantém indiferente às diversas igrejas, que podem livremente constituir-se, para o que o direito presta a sua ajuda pelo conferimento do recurso à personali-dade jurídica. Portanto, o Estado deve manter-se neutro, não poden-do discriminar entre as diversas igrejas, quer para beneficiá-las, quer para prejudicá-las. Não é dado o direito para que as pessoas de direito público criem igrejas ou cultos religiosos, assim, elas não poderão ter qualquer papel nas suas estruturas administrativas.12 Nas palavras de Marcelo Ramos a laicidade significou uma das mais importantes con-quistas culturais da civilização ocidental, senão, vejamos:

A dissociação entre o direito e a religião foi o passo fundamental

para o desenvolvimento de uma cultura jurídica sem precedentes

e de cuja tradição somos herdeiros e continuadores. A separação

entre o temporal e o divino permitiu o surgimento de uma forma

de ordenação da vida social fundada não mais no sagrado, no

sobrenatural, mas na própria capacidade humana de estabelecer

as regras e de decidir os conflitos segundo seus próprios critérios.13

11 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 250-251.

12 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. p. 191-192.

13 RAMOS, Marcelo Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do conteúdo cultural das nor-mas jurídicas. Meritum: Revista de Direito da Universidade FUMEC, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p. 49-76, jan./jun. 2010. P. 50.

Page 30: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

30 Renata Sara Dantas Marques Soares

A Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 19, inciso I, garante o princípio do Estado laico, leigo ou não-confes-sional. Isso significa que no Brasil não há religião oficial, nem tam-pouco deve existir diferença no tratamento das religiões pelo Estado.14 Assim, este artigo impõe que nenhuma das entidades autônomas da federação estabeleça cultos religiosos ou igrejas ou os subvencione ou embarace o seu funcionamento ou com eles ou seus representantes mantenha relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

No Estado Laico, a fé tem caráter subjetivo, pertencendo apenas ao indivíduo. Vecchiatti define a laicidade como “[...] a doutrina filo-sófica que defende e promove a separação entre Estado e religião ao não aceitar que haja confusão entre o Estado e uma instituição religio-sa qualquer, assim como não aceitar que o Estado seja influenciado por determinada religião”.15 Estado laico em nada se assemelha ao Estado Ateu. Este, como era a China Comunista, nega a existência de Deus, pois acredita em uma alienação daqueles que crêem em Deus e desta maneira persegue tanto às instituições religiosas, como os fiéis. Outrossim, o Estado laico assegura, desde que não atente à ordem pú-blica e a liberdade religiosa de seus cidadãos, como direito garantido em sua Constituição Federal, bem como garante a não influência da Igreja no poder político.16

Para Fernando Capez, a expressão laico não é contrária, nem re-pudia, mas antes, coexiste pacificamente com as religiões, sem mo-lestá-las ou coibi-las. No Estado laico não há uma religião oficial, en-

14 AGOSTINHO, Luis Otávio Vincenzi de. Análise constitucional acerca da crise entre a liber-dade de crença e o estado laico. Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, Jacarezinho, n. 9, p. 133 – 146, jul./dez. 2008. p. 138.

15 VECCHIATTI, Paulo Roberto Lotti. In: CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade esta-tal face a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012. p. 4.

16 CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade estatal face a presença de símbolos reli-giosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012. p. 4-5.

Page 31: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

31

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

tretanto, também, não há uma política oficial de repúdio à religião. O referido autor entende que o Estado não confessional significa não ser regrado por normas religiosas, sem implicar em intervenção estatal contra qualquer expressão de fé. Pelo contrário, o Estado deve buscar a tolerância mútua e a coexistência pacífica dos diferentes credos, ca-bendo ao Estado e a sociedade não suscitar movimentos de intolerância daqueles que se sintam ofendidos pela livre expressão da fé alheia.17

3. UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

Desde os primórdios da civilização o misticismo vem acompa-nhando o ser humano, e a presença dos símbolos, como os constantes nas inscrição rupestre, sempre demonstraram o modo como as pes-soas viviam, bem como desenvolviam a sua fé e o seu credo em algo superior. O termo “símbolo” possui origem grega e tem como escopo representar, caracterizar, identificar e, ao mesmo tempo, diferenciar algo ou alguém, na medida em que materializam o sentimento de determinada comunidade em uma época específica.18 O dicionário Houaiss conceitua como sendo símbolo: “Aquilo que por um princí-pio de analogia formal ou de outra natureza, substitui ou sugere algo. Aquilo que, num contexto cultural, possui valor evocativo, mágico ou místico. Aquilo que, por pura convenção, representa ou substitui ou-tra coisa. Representação convencional de algo, emblema, insígnia”.19

Pois bem, os símbolos possuem grande destaque nas religiões, servindo de diferenciação entre as instituições religiosas. O símbolo, além de tudo, possui essa função de identificar seu semelhante no

17 CAPEZ, Fernado. O estado laico e a retirada de símbolos religiosos de repartições públi-cas. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 34, out./dez. 2009. p. 49.

18 CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade estatal face a presença de símbolos reli-giosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012. p. 15.

19 DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009. p. 1745.

Page 32: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

32 Renata Sara Dantas Marques Soares

âmbito religioso com uma simples apreciação de sua figura. No Cris-tianismo-católico, a cruz é o símbolo mais conhecido e de maior im-portância, pois foi nela que Jesus Cristo foi morto. Representa, assim, o local da crucifixão.20

E esses crucifixos são amplamente utilizados em diversos locais, inclusive, carregados pelas pessoas, como pingentes. Entretanto, sua utilização são se restringiu aos ambientes privados, onde pela liberda-de religiosa, garantida constitucionalmente, é perfeitamente plausível. Vários órgãos públicos ostentam a cruz em seus mais diversos ambien-tes. É partir daí que surgiu uma grande discursão acerca da possibi-lidade da utilização de símbolos religiosos, mormente a cruz, em re-partições públicas, plenários do Tribunal do Júri ou colégios públicos, por exemplo. Já que, como explanado no presente artigo, o Brasil é um Estado Laico. E, sendo assim, “o faz ser um local onde todas as crenças e cultos são respeitados, onde qualquer aliança ou dependência, via de regra, com instituições religiosas são vedadas, e o poder é legitimado pelo povo e não pela vontade divina”.21 E diante desta situação é que o tema passou a ser debate constante na justiça brasileira.

No Brasil, várias ações, em vários Estados da Federação, estão tramitando, pleiteando a retirada de todos os símbolos religiosos, em especial a cruz, afixados nos plenários e salas dos Tribunais de Jus-tiça, tendo em vista que pessoas que frequentam tais locais podem se sentir ofendidas diante destes símbolos religiosos, já que o Brasil é um país laico. No Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça jul-gou um pedido desses, determinando a retirada de todos os símbolos religiosos existentes nos espaços destinados ao público nos prédios do Poder Judiciário do Estado, sob o fundamento de que a presença

20 CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade estatal face a presença de símbolos reli-giosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012. p. 16.

21 CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade estatal face a presença de símbolos reli-giosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012. p. 16.

Page 33: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

33

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

de crucifixos e demais símbolos religiosos nestes locais não coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na Administração Pública e com a laicidade do Estado brasileiro. A decisão quedou-se assim ementada:

EXPEDIENTE ADMINISTRATIVO. PLEITO DE RETIRADA DOS

CRUCIFIXOS E DEMAIS SÍMBOLOS RELIGIOSOS EXPOSTOS

NOS ESPAÇOS DO PODER JUDICIÁRIO DESTINADOS AO

PÚBLICO. ACOLHIMENTO.

A presença de crucifixos e demais símbolos religiosos nos

espaços do Poder Judiciário destinados ao público não se

coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na

Administração Pública e com a laicidade do Estado brasileiro,

de modo que é impositivo o acolhimento do pleito deduzido

por diversas entidades da sociedade civil no sentido de que seja

determinada a retirada de tais elementos de cunho religioso das

áreas em questão.22

Segundo este ponto de vista, a laicidade deve ser enfrentada como um princípio que não se opõe à liberdade religiosa e a sua ma-nifestação. Devendo ser garantida pelo Estado juntamente com a li-berdade religiosa, sem que seja dada prioridade a qualquer credo, ga-rantindo-se a ampla liberdade religiosa, inclusive, daqueles que não professam qualquer credo. Tal argumento é amparado pelo princípio da isonomia. De acordo com este princípio “todos hão de ter igual tratamento nas condições de igualdade de direitos e obrigações, sem que sua religião possa ser levada em conta”.23 Nesse sentido, é inegá-vel que a presença de símbolos religiosos privilegia uma determinada

22 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Proc. 0139-11/000348-0. Rel. Cláudio Baldino Maciel. Porto Alegre, 06 de março de 2012.

23 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 226.

Page 34: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

34 Renata Sara Dantas Marques Soares

religião em detrimento das demais. No caso em análise, a religião católica seria beneficiada.

Outrossim, alegou-se que a não retirada dos símbolos feriria o princípio da impessoalidade. Quedou-se fundamentado que tal prin-cípio está ligado ao princípio da isonomia, uma vez que os atos ad-ministrativos são direcionados a todos os cidadãos, inexistindo a pos-sibilidade jurídica de acepções filosóficas, políticas ou religiosas em sua atuação política e administrativa.

O princípio da impessoalidade aduz que a administração pública tem por escopo o interesse público, determinando aos administra-dores a atuação em nome do Estado, vedando-lhes, agir por interes-se pessoal, ou por algum credo, elegendo um dentre tantos símbolos possíveis (ou a ausência destes) para ostentar em prédios sob sua ad-ministração. Sendo assim, não é vedado aos administradores públi-cos expor suas crenças desde que não seja no exercício da função pública, pois nessa função eles estão atuando em nome do Estado, e este por preceito constitucional, se configura um Estado Laico. Já em relação a esfera privada, a própria constituição federal assegura a liberdade religiosa, sendo não apenas permitido, mas garantido pelo Estado a expressão da fé pelo indivíduo.

Como o Estado não tem religião, sendo, portanto, laico e não dependendo do credo ou da crença pessoal do administrador, todo espaço público de qualquer dos Poderes da República não pode ex-por símbolos religiosos, já que tais símbolos representam a crença de apenas parte da sociedade, o que vai de encontro aos princípios da impessoalidade e da isonomia, basilares da administração pública.

Por último, argumentou-se que outro princípio impõe acolhimen-to, qual seja, o princípio da legalidade. De acordo com este princípio “a administração deve obedecer à lei, proibindo-se qualquer ativida-de livre ou juridicamente desvinculada”. Assim, à administração pú-blica só é permitido fazer o que estiver disposto em lei e ao analisar o caso em tela, depreende-se na inexistência de qualquer legislação que

Page 35: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

35

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

preveja sobre a colocação de símbolos religiosos em órgãos estatais, pelo contrário, a Constituição Federal, ao estabelecer o Estado lai-co, implicitamente, veda tal postura. Ademais, “quaisquer actividade administrativa contra a lei viola o princípio da legalidade inerente a qualquer Estado de direito”.24

Dessa forma, tem-se que a retirada de símbolos religiosos de esta-belecimentos estatais é o caminho mais adequado para se reafirmar o caráter laico do Estado, uma vez que a retirada de tais símbolos pre-serva a liberdade religiosa de todos os cidadãos, na medida em que não privilegia nenhum credo específico.

Com entendimento diametralmente oposto, o Conselho Nacional de Justiça, diante de quatro pedidos de providência, os quais tiveram, basicamente, o mesmo objetivo, ou seja, a retirada de crucifixos afi-xados nos plenários e salas dos Tribunais de Justiça, decidiu pela não retirada dos referidos símbolos.

Em decisão, o Conselho Nacional de Justiça asseverou que o sim-ples fato de se manter um crucifixo em uma sala de audiências públi-cas não torna o Estado, representado no caso pelo Poder Judiciário, confessional, ou mesmo, clerical. Aduziu aquele Conselho de Justiça que a exposição de um crucifixo não ofenderia o interesse da socie-dade. Muito pelo contrário, estaria preservando-o, na medida em que garantiria interesses individuais culturalmente solidificados e ampa-rados na ordem constitucional. Argumentou-se que o crucifixo re-presentaria os costumes e as tradições do povo brasileiro. Por último, alegou que não há qualquer proibição expressa no ordenamento jurí-dico pátrio para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer am-biente de Órgão do Poder Judiciário. Senão vejamos parte da decisão:

Manter um crucifixo numa sala de audiências públicas de

Tribunal de Justiça não torna o Estado – ou o Poder Judiciário

24 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 65.

Page 36: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

36 Renata Sara Dantas Marques Soares

– clerical, nem viola o preceito constitucional invocado (CF,

art.19, inciso I), porque a exposição de tal símbolo não ofende o

interesse público primário (a sociedade), ao contrário, preserva-o,

garantindo interesses individuais culturalmente solidificados

e amparados na ordem constitucional, como é o caso deste

costume, que representa as tradições de nossa sociedade. Por

outro lado, não há, data vênia, no ordenamento jurídico pátrio,

qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso

em qualquer ambiente de Órgão do Poder Judiciário, sendo da

tradição brasileira a ostentação eventual, sem que, com isso,

se observe repúdio da sociedade, que consagra um costume ou

comportamento como aceitável”.25

Veja-se, portanto, que o Conselho Nacional de Justiça valorizou o costume e o aspecto cultural como forma de amparar a permanência de crucifixos em órgãos do Poder Judiciário. Sabe-se que a cultura é um elemento normativo a ser preservado e promovido. O patrimônio cultural é formado, dentre outros, pelos bens (inclusive imateriais) portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferen-tes grupos formadores da sociedade. A própria Constituição fomenta, em seu artigo 215, a proteção das manifestações das culturas popula-res, indígenas e afrodescendentes e das de outros grupos participan-tes do processo civilizatório nacional. André Ramos Tavares leciona que “a ideia de identidade é a chave da compreensão”. O referido autor aduz que existe uma nítida imbricação entre determinadas ma-nifestações religiosas no Brasil (e não apenas o catolicismo) com a formação nacional de uma identidade e de uma cultura própria. E arremata dizendo que “o Direito não se pode furtar a uma leitura cul-tural de suas normas”.26

25 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pedido de Providência 1344. Rel. Cons. Oscar Argollo. Brasília, 21 de junho de 2007.

26 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 639.

Page 37: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

37

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

Nesse sentido, Peter Häberle27 aduz que “o Estado constitucio-nal democrático vive também do consenso sobre o irracional, e não somente do discurso ou do consenso ou dissenso em relação ao ra-cional”. E continua dizendo que não se pode subestimar essas fontes de consenso emocionais, acrescentando que “o enfoque culturalista pode iluminar as possibilidades e limites dos dias festivos no Estado constitucional, já que o positivismo jurídico não sabe muito bem o que fazer com eles”. Na verdade, as festividades religiosas, bem como seus símbolos, justificam-se sob o amparo do Estado constitucional sempre que se refiram a símbolos que reacendam na memória cole-tiva as suas raízes culturais e histórias que lhe conferem identidade. E, nesse aspecto, não haveria como negar a marcante contribuição do catolicismo para a formação espiritual, moral e cultural do povo brasileiro.

Além disso, entendeu o Conselho Nacional de Justiça que a pre-sença de um símbolo religioso, no caso, a cruz, homenageia princí-pios éticos e representa, especialmente, a paz. Nesse sentido, vale lembrar que nossa cultura está impregnada de valores cristãos, de modo que muitas das nossas normas, atualmente positivadas em diversas leis, sofreram grande influência por parte do cristianismo. Princípios éticos, como da solidariedade, altruísmo, compaixão, fra-ternidade, estimulados pelo direito brasileiro, encontram raízes, sem dúvida, no cristianismo. Seria um disparate negar a existência dos princípios cristãos em nossa cultura. Acrescenta ainda que o Brasil é um país predominantemente cristão, sendo em grande parte católico, e, assim sendo, todos que aqui nascem sofrem influências cristãs, de modo que, de acordo com o entendimento do Conselho Nacional de Justiça a colocação de um símbolo religioso não violaria, nem agredi-ria, ou sequer perturbaria o direito dos outros.

27 HABERLE, Peter. El Estado constitucional. México: UNAM, 2001. In: MENDES, Gilmar Fer-reira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Editora saraiva, 2011. p. 360.

Page 38: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

38 Renata Sara Dantas Marques Soares

No entanto, apesar da cultura brasileira está permeada pelo va-lores cristãos, não podemos deixar de lado que em um Estado demo-crático de Direito devemos respeitar também a expressão cultural da minoria. Sendo assim, “relevante é o papel cultural das religiões, mas não ao ponto de ferir o pluralismo intrínseco à democracia”.28

A questão encontra polêmica, não só no Brasil, mas em diversos países do mundo, mormente, no ocidente, onde a maioria adota a laicidade em suas Constituições. O tema da liberdade religiosa tem causado grande debate nos tribunais de vários Estados. E é dentro deste contexto de liberdade religiosa e seus limites, que exsurge gran-de discussão acerca da utilização de símbolos religiosos em locais e órgãos públicos.

Na Itália, no dia 15 de março de 2011, o magistrado Luigi Tosti foi expulso da Magistratura do país por se recusar a fazer audiências enquanto todos os crucifixos não fossem retirados das paredes dos tribunais. Segundo noticiado, durante a carreira como magistrado, Tosti apontava que a expressão religiosa nos tribunais, órgãos públi-cos, violava a laicidade do Estado italiano. Se as cruzes não fossem retiradas da parede, Tosti pedia então que fossem expostos junto outros símbolos religiosos. A Corte de Cassação Italiana negou o pedido e afirmou que os crucifixos podiam continuar e outros sím-bolos, não.29

Já a Corte Constitucional Alemã decidiu que a colocação de cru-cifixo nas salas de aula de uma escola pública de ensino obrigatório feriria a Constituição alemã, especificamente no que fere a liberdade de crença, sob o fundamento de que o Estado não poderia impor, mui-to menos proibir, uma crença ou uma religião. Argumentou que faz parte da liberdade de crença, não somente a possibilidade de se ter

28 BORGES, Alexandre Walmott. Considerações sobre a vedação constitucional do artigo 19, I, CF/88: o estado laico. Revista Jurídica da Universidade de Franca, Franca, v. 8, n. 14, p. 10-15, jan./jun. 2005. p. 15.

29 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-mar-15/juiz-italiano-exonerado-por--protestar-contra-crucifixo>. Acesso em: 28 abril 2012. 18:26.

Page 39: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

39

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

uma crença, mas também a liberdade de viver e comportar-se segun-do a própria convicção religiosa.30

Entende-se que tal posição deve ser adotada pelo Estado brasilei-ro. Não se admite que num Estado laico, símbolos religiosos estejam permeando ambientes públicos. Se é verdade que tais símbolos re-presentam a cultura e os costumes da sociedade, também é verdade que a Carta Magna estabeleceu a separação total entre Estado e Igreja, seja ela qual for. Cultura e costume podem ser considerados fontes do direito, não há dúvidas. Mas a principal fonte é a lei, e a lei maior declarou a laicidade do Estado brasileiro. A utilização de símbolos religiosos afronta o princípio do Estado laico. O argumento de que a fixação da cruz, por exemplo, num ambiente público reflete valores cristãos, e, por isso, não afronta os valores da sociedade, ao contrário, os reafirma, apenas desvia o foco da discussão. Em nenhum momento se prega a relegação de tais valores, com a retirada de tais símbolos. O argumento principal é de que a presença símbolos religiosos reflete a preferência do Estado com relação a determinada religião, o que não pode acontecer no Estado laico.

A Constituição não impede, de forma nenhuma, que as pessoas portem símbolos ou os tenham em ambientes privados. Ao contrário, estimula. No entanto, o fato de estimular a liberdade religiosa, não quer dizer que o próprio Estado professe um credo, ou tenha prefe-rência a alguma religião. Estado e Igreja já estiveram juntos outrora. Contudo, nos dias atuais estão separados. Andam lado a lado, mas sem interferências recíprocas, de modo que a retirada dos símbolos religiosos, ao contrário de negar a religião, permitem que todas ca-minhem com independência, e que as pessoas possam decidir, livre-mente, qual querem seguir.

30 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 99-100.

Page 40: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

40 Renata Sara Dantas Marques Soares

4. CONCLUSÃO

O presente artigo buscou responder o problema que envolve a utilização de símbolos religiosos em espaços públicos dentro de um Estado laico.

Tem-se que a tolerância consistiu no meio pelo qual se consagrou a liberdade de crença, a qual é assegurada na Constituição Federal. Assim, no intuito de verificar como se dá tal liberdade no ordenamen-to jurídico brasileiro, abordamos como a liberdade de crença é tratada à luz da Constituição Federal. Sendo estudado a questão da liberdade religiosa, a qual é garantida como direito fundamental de todos os cidadãos. E, em seguida, o Estado laico, o qual pugna pela separação entre o Estado e a Igreja, não podendo o Estado expressar uma religião oficial, nem tampouco privilegiar uma em detrimento das demais, de-vendo propriciar um ambiente neutro onde todas as formas de crença ou a ausência de crença, coexistam pacificamente.

Nesse contexto, analisamos a utilização dos símbolos religiosos em intituições estatais, trazendo decisões judiciais a respeito, tanto no sentido favorável a retirada de tais símbolos, quanto no sentido inverso.

Primeiramente, avaliamos uma decisão favorável à retirada de todo e qualquer símbolo que represente qualquer religião em repar-tições públicas. De acordo com este posicionamento, por ser o Brasil um Estado laico, não deveria ostentar qualquer símbolo que reme-tesse a alguma religião. Arrimou-se nos princípios da legalidade e impessoalidade da administração pública, nos quais afirmam que as crenças pessoais dos administradores públicos não podem sus-citar qualquer dúvida em relação ao príncípio da laicidade Estado brasileiro.

Abordamos, também, a decisão dos que defendem a permanência dos símbolos religiosos nos orgãos estatais. Os que defedem este po-sicionamento afirmam que o costume e o aspecto cultural devem ser

Page 41: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

41

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

levados em consideração para a permanência dos crucifixos. Além disso, tais símbolos trariam valores éticos e morais que não podiam ser desprezados pelo Estado e que a presença da cruz em ambientes públicos que reacenderiam na memória coletiva as suas raízes cul-turais e histórias que lhe conferem identidade. E, nesse aspecto, não haveria como negar a marcante contribuição do catolicismo para a formação espiritual, moral e cultural do povo brasileiro.

Ao final, concluímos nosso posicionamento sendo favoráveis a re-tirada dos símbolos religiosos dos órgãos públicos, nos convencendo dos argumentos que espelham este entendimento, no sentido de ser maneira mais adequada para se reafirmar o caráter Laico do Estado, uma vez que a retirada de tais símbolos preserva a liberdade religiosa de todos os cidadãos, não privilegiando nenhum credo em especial, sendo o melhor caminho para o pleno exercício da tolerância.

No entanto, não coadunamos com a intervenção do Estado em cercear a utilização de tais símbolos no âmbito privado. Pois, cabe ao Estado respeitar o ordenamento jurídico pátrio, o qual preconiza a li-berdade religiosa e nesse sentido deve propiciar os meios necessários para que todos exerçam sua fé de forma livre e sem embaraço.

REFERÊNCIAS

ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o estado. Coimbra: Almedina, 2002.

AGOSTINHO, Luis Otávio Vincenzi de. Análise constitucional acer-ca da crise entre a liberdade de crença e o estado laico. Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, Jacarezinho, n. 9, p. 133 – 146, jul./dez. 2008.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997.

Page 42: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

42 Renata Sara Dantas Marques Soares

BORGES, Alexandre Walmott. Considerações sobre a vedação constitucional do artigo 19, I, CF/88: o estado laico. Revista Jurí-dica da Universidade de Franca, Franca, v. 8, n. 14, p. 10-15, jan./jun. 2005.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pedido de Providência 1344. Rel. Cons. Oscar Argollo. Brasília, 21 de junho de 2007.

_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2011.

_______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Proc. 0139-11/000348-0. Rel. Cláudio Baldino Maciel. Porto Alegre, 06 de março de 2012.

CALADO, Maria Amélia Giovannini. A laicidade estatal face a presen-ça de símbolos religiosos em órgãos públicos. Disponível em: <www.coad.com.br/busca/detalhe/2142/42>. Acesso em: 27 abril 2012.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e a teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CAPEZ, Fernado. O estado laico e a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 34, out./dez. 2009.

DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa co-munidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direi-tos dos cidadãos. Coimbra: Editora Coimbra, 1996.

Page 43: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

43

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Conheça a constituição: comentá-rios à constituição brasileira. São Paulo: Manole, 2005. v. 1.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora saraiva, 2011.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. 4 t.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Edi-tora Atlas, 2010.

RAMOS, Marcelo Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do con-teúdo cultural das normas jurídicas. Meritum: Revista de Direito da Universidade FUMEC, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p. 49-76, jan./jun. 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

Page 44: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 45: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 45-56

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

Juliana Soraia dos Santos

RESUMO1

O Estado de Coisas Inconstitucional verifica-se quando há uma grave violação dos direitos fundamentais de um grande número de pessoas ou de parte da sociedade, e é uma tese aplicável apenas de modo excepcional. Com a aplicação desse instituto, o Poder Judiciário passa a ter a função de retirar os demais poderes da inércia, os aglutinando, para que juntos cheguem a uma solução para o estado de crise em que se encontram alguns direitos humanos.Palavras chave: Estado de Coisas Inconstitucional. Grave violação dos direitos fun-damentais. Poder Judiciário. Inércia.

Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes, especialista em Processo Civil. Analista do Ministério Público com lotação na 2° Promotoria Criminal de Nossa Senhora do Socorro.

Page 46: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

46 Juliana Soraia dos Santos

1. O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Recentemente, por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n°347 do Distrito Federal, veio à tona o instituto do Estado das coisas inconstitucionais, até então, desconhecido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios. Trata-se de uma tese originária das decisões da Corte Constitucional da Colômbia, que a utilizou pela primeira vez no ano de 1997 com a Sentencia de Unifi-cación prolatada em uma ação promovida por professores, que tive-ram direitos previdenciários gravemente violados pelas autoridades públicas.

O estado de coisas inconstitucionais ocorre quando se verifica a existência de um quadro de violação massiva, generalizada e sistemá-tica dos direitos fundamentais de um grupo de pessoas vulneráveis, em razão da omissão reiterada de autoridades públicas responsáveis por alterar e implementar as políticas públicas.

Assim descreve Carlos Alexandre de Azevedo Campos1:

O ECI consiste em situação extrema de omissão estatal, configu-

rada como “falhas estruturais”. Essas falhas nada têm a ver com

dispositivos constitucionais específicos ou ordens expressas

de legislar ou de regulamentação, e sim com a omissão ou ine-

ficiência do aparato estatal que resulta na proteção deficiente

de direitos fundamentais. Portanto, antes de apresentar o ECI

como estágio avançadíssimo de omissão estatal, devo revisitar

as formulações tradicionais sobre a omissão inconstitucional.

Esse instituto é aplicável a situações excepcionais, quando res-ta constatada a grave violação de direitos humanos de um grupo de pessoas por parte dos Poderes Públicos omissos e inertes em cumprir

1 CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 1°ed. Salva-dor. Editora Juspodium. 2016.

Page 47: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

47

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

o seu papel social, delineado na Constituição Federal. Nesse sentido preconiza Carlos Alexandre de Azevedo Campos2:

O ECI é sempre o resultado de situações concretas de paralisia

parlamentar ou administrativa sobre determinadas matérias.

O ativismo judicial estrutural revela-se, assim, o único ins-

trumento, ainda que longe do ideal em uma democracia, para

superar esses bloqueios e fazer a máquina estatal funcionar. No

ECI, operam desacordos políticos e institucionais insuperáveis,

a falta de coordenação entre órgãos do Estado, pontos cegos

legislativos, temores de custos políticos e falta de interesse na

representação de certos grupos sociais minoritários ou margina-

lizados. Nesse cenário de falhas estruturais e omissões legisla-

tivas e administrativas, as objeções democrática e institucional

ao ativismo judicial estrutural possuem pouco sentido prático.

O objetivo primordial desse instituto é a criação de uma solução, de modo conjunto, pelos Poderes existentes na sociedade. Isso se dá em vir-tude da ineficácia ou mesmo omissão por parte de alguns entes estatais na implementação de políticas, cuja ausência acarreta resultados graves e violadores dos direitos fundamentais de grande parte da população.

Assim, em suas decisões a Corte Constitucional da Colômbia siste-matizou uma série de requisitos que devem estar presentes, a fim de que uma determinada situação seja declarada como estado de coisas incons-titucionais, a necessitar de uma atuação integrada por parte de todos os órgãos do estado. Desse modo, o ilustre professor de direito constitucio-nal George Marmelstein Lima3 os relaciona, aduzindo da seguinte forma:

2 CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Retirado em http://jota.info/artigos/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional-04052015

3 LIMA, George Marmelstein. O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão  constitucional? Disponível em https://direitosfundamentais.net/2015/10/02/o-estado-de-coisas-inconstitucional-eci-apenas-uma-nova-onda-do--verao-constitucional/

Page 48: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

48 Juliana Soraia dos Santos

A própria Corte Constitucional colombiana, na decisão T

025/2004, sistematizou seis fatores que costumam ser levados em

conta para estabelecer que uma determinada situação fática cons-

titui um estado de coisas inconstitucional: (1) violação massiva

e generalizada de vários direitos constitucionais, capaz de afetar

um número significativo de pessoas; (2) a prolongada omissão

das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garan-

tir os direitos; (3) a adoção de práticas inconstitucionais a gerar,

por exemplo, a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela

judicial para a obtenção do direito; (4) a não adoção de medidas

legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para

evitar a violação de direitos; (6) a existência de um problema

social cuja solução depende da intervenção de várias entidades,

da adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e

da disponibilização de recursos adicionais consideráveis; (7) a

possibilidade de um congestionamento do sistema judicial, caso

ocorra uma procura massiva pela proteção jurídica.

Após o caso dos professores, a Corte Constitucional Colombia-na já aplicou esse instituto em outras circunstâncias, a exemplo do Sistema Carcerário daquele país, onde havia grave violação dos di-reitos humanos da população. Em outra oportunidade, também, foi reconhecido o estado de coisas inconstitucional para a situação dos migrantes internos, ou seja, das pessoas que foram obrigadas a deixar o seu local de origem, por conta da violência dos conflitos armados, buscando outra localidade para viverem, dentro da própria Colômbia.

Atualmente, alguns países vem adotando tal tese, tais como a Ar-gentina, Estados Unidos, Canadá, dentre outros. No Brasil, o Estado de Coisas Inconstitucional foi reconhecido na seção plenária do Su-premo Tribunal Federal de 09/09/2015, em apreciação a Cautelar na ADPF nº 347/DF impetrada pelo PSOL face a crise do Sistema Peni-tenciário Brasileiro.

Page 49: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

49

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

Repisa-se que diante da violação generalizada aos direitos funda-mentais de um grande número de pessoas, faz-se necessário a inte-gração na atuação dos poderes, para agindo em conjunto, buscarem uma solução adequada e eficiente, de modo a extirpar da realidade social as referidas lesões. Assim, em razão da situação caótica em que se encontra certa parte da população, a atuação isolada de apenas um Poder mostra-se insuficiente, incapaz de solucionar os problemas através dos métodos tradicionais.

Nesse sentido, escreve o ilustre doutrinador Carlos Alexandre de Azevedo Campos4:

Não é possível alcançar esses objetivos, necessário para supera-

ção do quadro de inconstitucionalidades, por meio dos instru-

mentos tradicionais de jurisdição constitucional. Sem embargo,

são a dramaticidade e a complexidade da situação que justifi-

cam ou mesmo impõem a heterodoxia dos remédios judiciais.

No entanto, as cortes devem ser cientes das próprias limitações.

Devem saber que não podem resolver o quadro atuando isola-

damente, e que de nada adiantará proferirem decisões impossí-

veis de serem cumpridas. Cortes devem adotar ordens flexíveis

e monitorar a sua execução, em vez de adotar ordens rígidas e

se afastar da fase de implementação das medidas. Em vez de

supremacia judicial, as cortes devem abrir e manter o diálogo

com as demais instituições em torno das melhores soluções. O

ativismo judicial é estrutural, mas pode e deve ser dialógico.

O estado de coisas inconstitucional é um instituto sem previsão na Constituição nem em qualquer outra legislação, e confere uma po-sição ativista ao Poder Judiciário, atribuindo-lhe a responsabilidade

4 CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucio-nal  e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural.

Page 50: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

50 Juliana Soraia dos Santos

de retirar os demais poderes da inércia. Essa tese só poderá ser utiliza-da em situações excepcionais de grave violação aos direitos humanos.

Dessa forma preleciona Andrey Stephano Silva de Arruda5:

(...) mas o Estado de Coisas Inconstitucional é uma espécie do

gênero Ativismo Judicial, do qual o Poder Judiciário (STF) passa

através de uma decisão de sua lavra, a exigir um comportamento

positivo, uma ação, do Executivo ou Legislativo, no condão

de concretizar Direitos Fundamentais massivamente violados

por omissões reiteradas destes poderes supra, e com isso,

seja evitado um abarrotamento do Judiciário com demandas

individuais.

A finalidade primordial é buscar a implementação de tais políti-cas de forma conjunta e associada com os demais poderes, que sozi-nhos mostraram-se que não são capazes de superar a situação de crise em que se encontra certo setor social.

Assim, apenas transformações estruturais são capazes de superar o estado de inconstitucionalidade, e o Poder Judiciário é o órgão res-ponsável por efetivar essa coordenação, ao interferir na formulação de políticas públicas e na alocação de recursos orçamentários. Entre-tanto tal intervenção não deve ser feita a ponto de o Judiciário subs-tituir os Poderes Legislativo e Executivo, em respeito ao Princípio da Separação dos Poderes.

A atuação do Poder Judiciário objetivará, primordialmente, a pro-teção da Constituição e dos seus valores, especificamente no tocan-te a tutela dos direitos fundamentais inerentes aos seres humanos, visando trazer soluções e um melhor desenvolvimento das políticas para que os direitos sejam protegidos e garantidos.

5 ARRUDA, Andrey Stephano Silva de. Estado de Coisas Inconstitucional: uma nova fórmula de atuar do STF Retirado em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1681

Page 51: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

51

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

Alguns estudiosos ainda entendem que o estado de coisas incons-titucionais advém de uma omissão do Poder Legislativo em conferir efetividade as normas constitucionais, não as regulamentando. Nesse sentido afirma Nicolal Patel Filho6:

(...) o Estado de Coisas Inconstitucional nada mais é que uma

omissão parcial do dever de legislar. Contudo, é uma omissão

parcial qualificada, posto que gerada pela inércia deliberada

e sistêmica dos órgãos públicos em geral, resultando na grave

violação de direitos humanos e que requer uma atuação dialógi-

co-estruturante para sanar o estado de inconstitucionalidade. E

essa grave violação de direitos humanos decorre dos chamados

pontos cegos legislativos (legislative blind spots), mais precisa-

mente da falta de vontade política por parte dos poderes repre-

sentativos em atuar em prol de minorias estigmatizadas, ainda

mais quando presente o temor dos custos políticos ao favorecer

determinados grupos.

Entretanto, não é bem esse entendimento que tem a maioria dos estudiosos sobre o tema, os quais afirmam que não é a falta de legis-lação que gera a crise institucional de um campo social, mas a falta de formulação e implementação de políticas e a falta de vontade de agir, são os fatores mais contundentes a desencadearem as violações massivas aos direitos humanos.

Assim, agirá o Judiciário não como um órgão que adentrará inde-vidamente nas estruturas dos demais poderes, mas como um órgão aglutinador, que através do seu poder, irá retirar os demais entes da inação, com o objetivo de ceifar a violação massiva aos direitos fun-damentais da sociedade ou de um de um grande número de indivídu-os. Exercerá também uma função fiscalizatória da atuação do Legis-

6 PATEL. Nicolal Patel. Retirado em: http://emporiododireito.com.br/tag/estado-de-coisas-inconstitucional/.

Page 52: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

52 Juliana Soraia dos Santos

lativo e Executivo, quanto ao cumprimento dos ajustes previamente determinados e estabelecidos.

Assim prevê Carlos Alexandre de Azevedo Campos7, in verbis:

Esse quadro negativo pode tornar-se extremo, a legitimar medi-

das ativistas. Configurada uma realidade de massiva e sistemá-

tica violação de direitos fundamentais, decorrente da deficiência

institucional e estrutural do Estado ou de bloqueios políticos,

passa-se da inconstitucionalidade por omissão ao estado de coi-

sas inconstitucional (ECI).

No Brasil, conforme já mencionado, foi com a ADPF n° 347 do DF que pela primeira vez o estado de coisas inconstitucional foi reconhe-cido pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de cautelar, ante a crise do sistema carcerário. Foi declarado, nessa ação, que esse instituto encontra-se latente nos presídios brasileiros, onde ocorrem as mais diversas violações aos direitos fundamentais. Seja pela superlotação, seja pela ausência de condições dignas de sobrevivência, seja pelos altos índices de reincidência, o que se demostra é a existência de uma falha estrutural no sistema, que submete seres humanos a um ambiente que degrada os seus direitos mais basilares.

Segundo consta no artigo Estado de Coisas Inconstitucional: uma nova fórmula de atuar do STF, de autoria do professor Andrey Ste-phano Silva de Arruda8, algumas medidas foram adotadas em sede de liminar pelo STF, ao reconhecer essa violação sistémica dos direitos fundamentais da população carcerária, como:

7 CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 1°ed. Salva-dor. Editora Juspodium. 2016.

8 Arruda, Andrey Stephano Silva de. Estado de Coisas Inconstitucional: uma nova fórmula de atuar do STF Retirado em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1681

Page 53: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

53

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

I - proibição do Poder Executivo de contingenciar os valores

disponíveil no Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN. A

decisão determinou que a União libere o saldo acumulado

do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a

finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos

contingenciamentos;

II - determinação aos Juízes e Tribunais que passem a realizar

audiências de custódia para viabilizar o comparecimento do

preso perante a autoridade judiciária, num prazo de até 24

horas do momento da prisão.

Tais medidas tem por objetivo iniciar a implementação de ações com o fim de reduzir as reiteradas e até mesmo enraizadas violações a dignidade das pessoas submetidas ao cumprimento de pena em es-tabelecimentos prisionais.

Embora essa decisão tenha sido prolatada de modo cautelar, al-gumas correntes doutrinárias já vem se formando, tanto a favor como contra.

Os que se manifestam a favor do instituto argumentam no sen-tido de que consubstanciam um verdadeiro instituto capaz de efe-tivar inúmeros direitos e garantias que se encontram esquecidos diante da ausência de atuação ou mesmo de interesse dos poderes responsáveis.

Os que se manifestam contra, aduzem que o referido instituto leva o poder judiciário a se imiscuir na formulação e execução de políticas públicas, cujas atribuições pertencem aos demais poderes, atuando em clara violação ao Princípio da Separação dos Poderes. Argumentam ainda que ele apenas cria uma ilusão de que decisões dos tribunais seriam aptas a solucionar os problemas estruturais pre-sentes na sociedade, tendo em vista que a experiência da Colômbia, pioneira na aplicação dessa tese, demonstrou o não alcance dos re-sultados almejados.

Page 54: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

54 Juliana Soraia dos Santos

Entretanto, o objetivo da proposta do estado de coisas inconsti-tucionais não é uma intromissão do Judiciário nas competências dos outros poderes, mas uma atuação conjunta, dialogada, com o fim de superar a inconstitucionalidade presente. Vejamos como se posiciona George Marmelstein Lima9, verbis:

Esse processo de diálogo institucional é o que se pode extrair

de mais valioso do modelo colombiano. A declaração do Estado

de Coisas Inconstitucional é, antes de mais nada, uma forma de

chamar atenção para o problema de fundo, de reforçar o papel de

cada um dos poderes e de exigir a realização de ações concretas

para a solução do problema. Entendida nestes termos, o ECI não

implica, necessariamente, uma usurpação judicial dos poderes

administrativos ou legislativos. Pelo contrário. A ideia é fazer

com que os responsáveis assumam as rédeas de suas atribuições

e adotem as medidas, dentro de sua esfera de competência, para

solucionar o problema. Para isso, ao declarar o estado de coisas

inconstitucional e identificar uma grave e sistemática violação de

direitos provocada por falhas estruturais da atuação estatal, a pri-

meira medida adotada pelo órgão judicial é comunicar as autori-

dades relevantes o quadro geral da situação. Depois, convoca-se

os órgãos diretamente responsáveis para que elaborem um plano

de solução, fixando-se um prazo para a apresentação e conclusão

desse plano. Nesse processo, também são indicados órgãos de

monitoramento e fiscalização que devem relatar ao Judiciário as

medidas que estariam sendo adotadas”

9 LIMA,George Marmelstein. O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão  constitucional? Disponível em https://direitosfundamentais.net/2015/10/02/o-estado-de-coisas-inconstitucional-eci-apenas-uma-nova-onda-do--verao-constitucional/

Page 55: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

55

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAIS

No mesmo sentido manifesta-se Carlos Alexandre de Azevedo Campos10, vejamos:

A ideia de “litígio estrutural”, por sua vez, vincula o ECI à fixação

de structural remedeis [15] (remédios estruturais): o juiz deve

interferir nas escolhas orçamentárias e nos ciclos de formulação,

implementação e avaliação de políticas públicas, lançando mão

de ordens que, ao mesmo tempo, redimensionem esses ciclos e

permitam melhor coordenação estrutural. Importante destacar

que o juiz não chega a detalhar as políticas, e sim a formular

ordens flexíveis, cuja execução será objeto de monitoramento

contínuo [16], por exemplo, por meio de audiências públicas

periódicas, com a participação de setores da sociedade civil e

das autoridades públicas responsáveis.

Como se ver, muitos doutrinadores vem preconizando que a apli-cação do estado de coisas inconstitucional pelo Poder Judiciário com a sua intervenção na formulação e execução de políticas é uma forma de afastar as violações massiva aos direitos fundamentais.

Ressalta-se mais uma vez que não é uma atuação isolada por par-te do Judiciário que vai modificar a conjectura atual dos estabeleci-mentos prisionais, que se encontram em estado de crise estrutural, mas uma atuação conjunta e harmônica entre todos os poderes que até o momento vem mostrando-se incapazes de solucionar sozinhos.

Sabe-se ainda que alguns problemas existentes no sistema prisio-nal demandam além de posições ativas, verbas orçamentárias e saben-do-se que muitas são as necessidades e poucos são os recursos, deve ser realizado um estudo técnico para verificar como será a melhor for-ma de agir, diante do quadro em que se encontra o sistema atual.

10 CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Retirado em: http://jota.info/artigos/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional-04052015

Page 56: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

56 Juliana Soraia dos Santos

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Andrey Stephano Silva de. Estado de Coisas Inconstitu-cional: uma nova fórmula de atuar do STF Retirado em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1681.

CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Incons-titucional e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-li-tigio-estrutural.

CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconsti-tucional. 1°ed. Salvador. Editora Juspodium. 2016.

CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Retirado em: http://jota.info/artigos/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional-04052015.

CAMPOS. Carlos Alexandre de Azevedo. Retirado em http://jota.info/artigos/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional-04052015.

LIMA,George Marmelstein. O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão constitucional? Disponível em https://direitosfundamentais.net/2015/10/02/o-estado-de-coisas in-constitucional-eci-apenas-uma-nova-onda-do-verao-constitucional/.

PATEL. Nicolal Patel. Retirado em: http://emporiododireito.com.br/tag/estado-de-coisas-inconstitucional/.

Page 57: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 57-78

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

Marcela Ayres Britto Santos

RESUMO1

O presente trabalho tem por objeto o estudo da técnica da modulação dos efeitos no con-trole de constitucionalidade. Para uma melhor compreensão do tema, analisa-se a eficácia temporal das decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma norma, discutindo-se sobre os efeitos advindos com a aplicação do princípio da nulidade. Discorre-se, em seguida, sobre os limites à aplicação dos efeitos ex tunc, tratando-se da possibilidade de restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade expressamente prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/99, a se realizar mediante votação de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social. Palavras chave: Modulação dos efeitos. Inconstitucionalidade. Supremo Tribunal Fede-ral. Princípio da nulidade. Segurança jurídica. Excepcional interesse social.

Pós-Graduanda em Direito Administrativo (Estácio de Sá/Cers). Graduada em Direito pela Uni-versidade Tiradentes (Unit). Técnica do Ministério Público do Estado de Sergipe.

Page 58: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

58 Marcela Ayres Britto Santos

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, sempre prevaleceu na doutrina e na jurisprudência, com chancela do Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que a lei inconstitucional é nula de pleno direito e que a decisão de in-constitucionalidade tem eficácia retroativa, restando inválidos todos os atos praticados com fundamento na lei impugnada.

Todavia, com a aprovação da Lei nº 9.868, em 10 de novembro de 2009, permitiu-se, pela primeira vez, de forma expressa, a mitiga-ção da teoria da nulidade do ato inconstitucional, admitindo-se, por exceção, que a declaração de inconstitucionalidade não retroagisse ao início da vigência da lei, preservando-se os seus efeitos em certo espaço temporal.

Nesse contexto, a previsão da modulação temporal dos efeitos no art. 27 da Lei 9.868/99, conferiu base legal ao Supremo Tribunal Federal para, por maioria de dois terços de seus membros, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou deci-dir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

O tema do presente trabalho justifica-se pela sua relevância para o Direito Constitucional Brasileiro, especificamente no campo do con-trole de constitucionalidade. Outrossim, o estudo em apreço teve como objetivo geral analisar se a modulação temporal dos efeitos, introduzi-da no Brasil pela supracitada lei, cumpre, efetivamente, o seu papel de conferir maior segurança jurídica às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade.

Em específico, pretendeu-se abordar a aplicação da teoria da nu-lidade dos efeitos da norma inconstitucional no Brasil e demonstrar as consequências advindas com a introdução da modulação dos efei-tos das decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, no Direito Constitucional Brasileiro.

Page 59: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

59

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

2. A EFICÁCIA TEMPORAL DAS DECISÕES PROFERIDAS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 A nulidade da norma inconstitucional

A nulidade do ato inconstitucional tem sua origem na Inglaterra, quando, no caso Bonham (1610), o Chief-Justice Coke afirmou que, se um ato do parlamento for contrário ao direito e à razão, a common law deverá controlá-lo e julgá-lo nulo1.

No direito brasileiro, a tese da nulidade da norma inconstitucional é predominante entre os juristas, a exemplo de Rui Barbosa que, fun-dados na antiga doutrina americana, segundo a qual the inconsitutio-nal statute is not law at all, defendem a essência nula de toda medida, legislativa ou executiva, que desrespeite os preceitos constitucionais.

Na mesma linha, o dogma da nulidade ressoa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento é de que o vício da inconstitucionalidade acarreta a nulidade da norma, conferindo-se eficácia ex tunc à decisão que a declara, o que importa no desfazimen-to de todos os efeitos que dela decorreram.

Em outras palavras, o reconhecimento da inconstitucionalidade possui o condão de retroagir à data da edição da norma invalidada, sendo considerados nulos todos os efeitos por ela produzidos. Sobre esse assunto, ressalta Dirley da Cunha Júnior:

A declaração de inconstitucionalidade proferida no controle

concentrado-principal, à semelhança do que ocorre em sede

de controle difuso-incidental, implica na pronúncia da nuli-

dade ab initio da lei ou do ato normativo atacado. A decisão,

1 CAPPELLETTI, Mauro apud ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a inter-pretação conforme a Constituição do art. 27 da Lei nº 9.868, de 1999. Livraria do Advo-gado Editora: Porto Alegre, 2009. p. 25.

Page 60: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

60 Marcela Ayres Britto Santos

segundo a doutrina corrente, é de natureza declaratória, pois

apenas reconhece um estado preexistente. Daí sustentar-se, per-

feitamente, que essa decisão produz efeitos ex tunc, retroagindo

para fulminar de nulidade a norma impugnada desde o seu nas-

cedouro, ferindo-a de morte no próprio berço2.

Conclui-se, assim, que o efeito retroativo decorre da natureza de-claratória da decisão que pronuncia a inconstitucionalidade da nor-ma, que, em vez de constituir ou desconstituir direitos, apenas afirma uma situação preexistente no ordenamento jurídico brasileiro. É di-zer, o ato inconstitucional carrega sua invalidade desde sua origem e, portanto, nunca esteve apto a produzir efeitos.

Com efeito, a adoção da teria da nulidade, no Direito Brasilei-ro, sustenta-se no postulado da supremacia da constituição, que não admite, no sistema jurídico, a vigência de leis e atos normativos em desconformidade com a Carta Magna. Nessa esteira, observa Daniel Sarmento:

(…) se a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma

norma fosse dotada apenas de eficácia ex nunc, isto importaria

no reconhecimento da validade dos efeitos da lei inconstitucio-

nal produzidos até o efeito da decisão. Tal sistemática se afigu-

raria contrária ao postulado da supremacia da lei Maior, pois

permitiria que, durante certo período, uma norma infraconsti-

tucional se sobrepusesse à Constituição, desacatando impune-

mente os seus mandamentos3.

Segundo os ensinamentos de Gilmar Ferreira Mendes, incons-titucionalidade de uma norma pode acarretar diferentes formas de

2 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de constitucionalidade: teoria e prática. 5.ed. Salva-dor: Editora JusPodivm, 2011, p. 234-235.

3 SARMENTO, Daniel apud ÁVILA, Ana Paula. op. cit, p. 38.

Page 61: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

61

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

nulidade, a saber: a declaração de nulidade total; a declaração de nulidade parcial; e a declaração de nulidade parcial sem redução de texto4.

Nos casos em que a totalidade da lei ou do ato normativo for declarada inválida pelo Tribunal, estar-se-á diante de uma nulidade total. Essa espécie de nulidade será verificada, normalmente, quando houver um vício formal na elaboração da lei, tal como a inobservân-cia do processo legislativo. Trata-se, portanto, de uma declaração de nulidade total como expressão de unidade técnico-legislativa5.

Também será total a nulidade que se dê em virtude da dependên-cia ou interdependência entre as partes constitucionais e inconstitu-cionais da lei. Outrossim, o Supremo Tribunal Federal pronunciará a inconstitucionalidade de toda a lei, quando sua disposição principal for considerada inconstitucional, exceto se algum dispositivo puder subsistir no ordenamento jurídico sem a parte considerada incons-titucional. Trata-se de uma declaração de inconstitucionalidade em virtude de dependência unilateral.

Caso a indivisibilidade da lei resulte de uma forte integração en-tre suas partes, ter-se-á a declaração de inconstitucionalidade decor-rente de dependência recíproca.

Ainda, a dependência ou interdependência entre os dispositivos de uma lei pode justificar a extensão da declaração de inconstitucio-nalidade a dispositivos constitucionais, mesmo que estes não tenham sido objeto do pedido inicial da ação. O Supremo Tribunal, nesse caso, proferirá o que a doutrina denomina de declaração de inconsti-tucionalidade consequente ou por arrastamento.

De outro viés, a doutrina e jurisprudência brasileiras também ad-mitem a teoria da divisibilidade da lei. É que, não obstante existam dispositivos inconstitucionais em uma determinada lei, nem sempre

4 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1419-1425.

5 Ibidem, op. cit. p.1420.

Page 62: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

62 Marcela Ayres Britto Santos

ocorrerá a chamada declaração de nulidade total, com a invalidação de todas os dispositivos.

Nesse toar, quando se verificar que uma mesma lei possui partes inconstitucionais e outras constitucionais, o Tribunal somente afastará os dispositivos que estiverem em desconformidade com a Constitui-ção, sem estender a invalidação para às outras partes da lei, salvo se elas não puderem existir de forma autônoma. Assim, ao declarar a nu-lidade parcial, a Corte Constitucional verificará se existem dispositivos capazes de subsistir autonomamente, bem como se a sua permanência no ordenamento jurídico corresponde à vontade do legislador6.

Por último, a declaração de nulidade poderá ser parcial sem redu-ção de texto. Essa técnica é utilizada pelo Supremo Tribunal Federal quando considera como inconstitucional apenas determinada hipóte-se de aplicação da lei, sem alterar o seu texto.

No mesmo raciocínio, a Corte Suprema do Brasil tem utilizado a técnica da nulidade parcial sem redução de texto quando declara a inconstitucionalidade da cobrança de um tributo sem a observância do princípio da anterioridade, consagrado no art.150, inciso III, b, da Constituição Federal. Apesar de o tributo não poder ser cobrado no mesmo exercício financeiro em que foi criado ou aumentado (Súmula 67, STF7), a lei que o cria ou aumenta não será necessariamente extir-pada do ordenamento jurídico, uma vez que poderá ser aplicada no exercício financeiro seguinte.

Diante de tais considerações, observa-se que, mesmo com a evo-lução do sistema judicial de controle de constitucionalidade, o dogma da nulidade da norma inconstitucional conservou a sua tradição no direito brasileiro.

6 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1419-1425.

7 STF. Súmula 67 - É inconstitucional a cobrança do tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro.

Page 63: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

63

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

Todavia, constata-se que a declaração de nulidade, por vezes, tor-na-se inadequada para superar algumas situações de inconstituciona-lidade, já plenamente consolidadas no plano concreto. Nesse sentido, incumbe, mais uma vez, destacar os ensinamentos de Ives Gandra e Gilmar Mendes acerca do assunto: “[…] muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a de-claração de sua nulidade, recomendando a adoção de alguma técnica alternativa com base no próprio princípio constitucional da seguran-ça jurídica8.

Como se verá adiante, essa regra tem sido excepcionada em al-guns casos, diante da possibilidade de manipulação dos efeitos tem-porais da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, que será objeto de estudo no próximo tópico.

3. LIMITAÇÃO AOS EFEITOS EX TUNC: MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS

3.1 Considerações Gerais

O efeito consistente da nulidade retroativa, conquanto já viesse sofrendo alguns temperamentos pela jurisprudência do Supremo Tri-bunal Federal, foi mitigado pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99, que per-mitiu ao Pretório Excelso a realização da manipulação temporal dos efeitos provenientes da inconstitucionalidade normativa, por motivo de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, desde que pronunciados dois terços de seus membros9.

8 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit. p. 548.9 Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista

razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tri-bunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Page 64: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

64 Marcela Ayres Britto Santos

Ao editar o dispositivo em referência, o legislador brasileiro ins-pirou-se no texto da Constituição de Portugal, que prevê, em seu art. 282, a possibilidade de limitar os efeitos da declaração de inconsti-tucionalidade estando-se diante de razões de segurança jurídica, de equidade ou interesse público de excepcional relevo10.

Pois bem, o art. 27 da Lei 9.868/99 exige que seja cumprido um requisito material e outro formal para a sua aplicação. A existência de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social é o re-quisito material que justifica a restrição dos efeitos da decisão. O requi-sito formal, por sua vez, é a exigência de que dois terços dos membros Supremo Tribunal Federal manifestem-se pela modulação dos efeitos.

Depreende-se da norma em evidência que, ao modular os efeitos da lei ou ato normativo declarado inconstitucional, a Suprema Corte pode decidir que a declaração tenha eficácia somente a partir de seu transito em julgado, ou de outro momento que venha a ser fixado.

Nesses termos, o Supremo Tribunal Federal poderá proferir uma das seguintes formas de decisão: a) declarar que inconstitucionali-dade somente produzirá efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão (efeitos ex nunc), com ou sem repristinação da lei anterior; b) declarar a inconstitucionalidade com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (efeitos pro futuro), com ou sem repristinação da lei anterior, conferindo uma sobrevida à norma inconstitucional; c) declarar a inconstitucionalidade dotada de efeito retroativo, com produção de efeitos a partir de um momento especí-fico no passado, como um marco inicial para a produção dos efeitos.

A propósito, o fundamento para a implementação da modulação temporal dos efeitos no controle de constitucionalidade brasileiro pode ser encontrado no texto da Exposição de Motivos do projeto

10 “Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n. 1. e 2”. (MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins; MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit., p.501-502).

Page 65: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

65

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

de lei nº 2.960/97 – que resultou na Lei nº 9.868/99 –, haja vista ter tocado explicitamente na necessidade de se acompanhar a evolução constatada no Direito Constitucional Comparado, para possibilitar ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo de ponderação entre a teoria da nulidade e os postulados da segurança jurídica e do interesse so-cial. Nesse toar, a Comissão Parlamentar entendeu que:

(...) ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reco-

nhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excep-

cionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços

dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de

inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com

eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos

em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g:

lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em

que a lacuna resultante de nulidade possa dar ensejo ao surgi-

mento de uma situação ainda mais afastada da vontade consti-

tucional (...)11.

Destarte, dessume-se do trecho em destaque que a introdução da mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, no sis-tema de controle de constitucionalidade brasileiro foi, indubitavel-mente, um passo em direção ao alcance da vontade do constituinte.

Muito embora a técnica da nulidade ainda constitua regra no controle judicial de constitucionalidade, com sua adequada aplica-ção para solver as violações das normas constitucionais de conteúdo negativo ou proibitivo (v.g., direitos fundamentais enquanto direitos negativos), na concepção de Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, essa técnica: “(...) mostra-se inepta para arrostar o

11 MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins; MENDES, Gilmar Ferreira. op.cit. p.492-493

Page 66: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

66 Marcela Ayres Britto Santos

quadro de imperfeição normativa, decorrente da omissão legislativa parcial ou da lesão ao princípio da isonomia12”.

Para o Ministro Teori Albino Zavascki, a doutrina que afirma a nulidade da norma inconstitucional e a natureza declaratória da sen-tença que a reconhece, não fica comprometida com a regra constante no art. 27 da Lei nº 9.868/99, eis que:

Tal dispositivo, na verdade, reafirma a tese, pois deixa implí-

cito que os atos praticados com base em lei inconstitucional são

atos nulos e que somente podem ser mantidos em virtude de

fatores extravagantes, ou seja, por “razões de segurança pública

ou de excepcional interesse social. Ao mantê-los, pelos funda-

mentos indicados, o Supremo não está declarando que foram

atos válidos, nem está assumindo a função de “legislador posi-

tivo”, criando uma norma – que só poderia ser de hierarquia

constitucional – para validar atos inconstitucionais. O que o

Supremo faz, ao preservar determinado status quo formado irre-

gularmente, é típica função de juiz13.

Embora tenha grande aceitação no mundo jurídico, o art. 27 da Lei nº 9.868/99 também sofre duras críticas por parte daqueles que não admitem, em hipótese alguma, a manutenção dos efeitos da nor-ma declarada inconstitucional. Nesse pensar, duas ações diretas de inconstitucionalidade foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade do aludido preceito legal: a ADI nº 2.154 e ADI nº 2.258, movidas, respectivamente, pela Confedera-ção Nacional dos Profissionais Liberais (CNPL) e pelo Conselho Fede-ral da Ordem dos Advogados do Brasil.

A ADI nº 2.258 foi apensada na ADI nº 2.154, e serão julgadas em conjunto pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que as duas

12 MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins; MENDES, Gilmar Ferreira. op.cit. p.525.13 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. op. cit p. 49-50.

Page 67: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

67

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

ações têm objeto de impugnação com identidade parcial, ou seja, as duas ações impugnam o art. 27 da Lei nº 9.868/99.

O relator, ex-Ministro Sepúlveda Pertence, votou pela procedên-cia dos pedidos, e declarou a inconstitucionalidade do art. 27, por entender que a nulidade da lei inconstitucional decorre da adoção dos sistemas de controle difuso e concentrado de constitucionalida-de. Além disso, a matéria relativa à atenuação dos efeitos da declara-ção de inconstitucionalidade somente poderia ser tratada por emenda constitucional14.

Após o voto do relator, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido vista dos autos da Min. Cármen Lúcia. Sendo assim, essas ações ainda encontram-se pendentes do julgamento final de mérito.

Não obstante as argumentações em contrário, a aceitação da dog-mática da nulidade das normas inconstitucionais não obstaculiza a possibilidade de se adotar a técnica da modulação dos efeitos, como forma de declaração de constitucionalidade alternativa. Pelo contrá-rio, o modelo de constitucionalidade, pensado de maneira ampla, compatibiliza a existência da tradicional declaração de nulidade ab-soluta da norma inconstitucional, com as decisões que não importem na eliminação direta e imediata da norma do ordenamento jurídico.

Defendendo a constitucionalidade do art. 27 da Lei nº 9.868/99, Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes elucidam que a decisão do Supremo Tribunal não decorre da referida disposição legislativa, mas da aplicação sistemática do texto constitucional15. Se-gundo ensinam os citados juristas:

Como a Constituição não contém qualquer decisão a respeito,

devem ser regulamentadas por lei as importantes questões rela-

14 MARCÍLIO, Carlos Flávio Venâncio. Constitucionalidade do art. 27 da lei nº 9.868/99. Dispo-nível em:< http://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/viewFile/218/179>. Acesso em 03 nov, 2014.

15 MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins; MENDES, Gilmar Ferreira. op.cit. p. 558.

Page 68: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

68 Marcela Ayres Britto Santos

cionadas com a superação desse estado de inconstitucionali-

dade. No interesse da segurança, da clareza e determinação

jurídicas, afigurava-se recomendável a edição de regra sobre

suspensão de aplicação apta a legitimar o Supremo Tribunal

Federal a, sob determinadas condições, autorizar a aplicação do

direito inconstitucional, nos casos constitucionalmente exigi-

dos. É o que admite expressamente o texto do art. 27 da Lei nº

9.868/99, ao autorizar que o Tribunal declare a inconstituciona-

lidade com eficácia a partir de um dado momento no futuro16.

Nesse raciocínio, o art. 27 da Lei nº 9.868/99 surgiu para regular o procedimento da restrição dos efeitos da decisão de inconstituciona-lidade, exigindo que sua aplicação somente se dê em situações excep-cionais, mediante aprovação pelo quórum qualificado de dois terços dos membros do STF. Contudo, a técnica da modulação dos efeitos não retira seu fundamento de citado dispositivo, mas sim do próprio texto constitucional, interpretado de forma sistemática.

Portanto, ao se deparar com fatos consumados e irreversíveis, ca-berá ao Supremo Tribunal Federal realizar um juízo de ponderação dos bens jurídicos em conflito e fazer a escolha menos gravosa ao sistema de direito, ainda que importe na manutenção da situação ori-ginada pela norma reconhecidamente inválida.

3.2 Possibilidade de aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99 no controle difuso de Constitucionalidade

Conquanto o permissivo legal trate da limitação dos efeitos no âmbito das ações diretas, a doutrina e jurisprudência pátrias têm ad-mitido a sua aplicação não só no controle abstrato de normas, mas também no controle concreto.

Assim, poderá o STF, em sede de controle difuso de constitucio-nalidade, declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, sen-

16 ibidem, mesma página.

Page 69: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

69

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

do que tal decisão afetará os demais processos com pedidos idênticos que estão pendentes de decisão nas diversas instâncias. A inconstitu-cionalidade da lei ou ato normativo será reconhecida a partir do trân-sito em julgado, e os casos concretos que ainda não possuem decisão definitiva terão o mesmo tratamento quando submetidos à apreciação do Supremo Tribunal17.

Entretanto, avulta salientar que, mesmo na via incidental, deverá ser respeitado o quórum de dois terços dos membros da Corte, de modo que sempre competirá ao Pleno do Supremo Tribunal Federal examinar a necessidade ou não de modular os efeitos da decisão18.

A possibilidade de aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99 já foi, inclusive, objeto de discussão no STF. Cita-se como exemplo o deno-minado “Caso Mira-Estrela”, analisado pela Suprema Corte no âmbi-to do Recurso Extraordinário nº 197.917/SP. A contenda tinha como objeto a análise da constitucionalidade do parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica n.222, de 31 de março de 1990, do Município de Mi-ra-Estrela/SP, que fixou em 11 (onze) o seu número de vereadores, em vez de 09 (nove), desobedecendo, assim, a proporção estabelecida no art. 29, IV, alínea “a”, da Constituição Federal19.

A Corte Suprema decidiu por declarar a inconstitucionalidade da norma impugnada, porém conferiu efeito pro futuro à decisão, fi-xando a legislatura seguinte como marco inicial, tendo em vista que a retroação dos efeitos provocaria enorme instabilidade jurídica, po-dendo implicar no desfazimento das decisões tomadas pela Câmara dos Vereadores nos períodos anteriores. Além disso, a declaração de

17 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1450.

18 ÁVILA, Ana Paula. op. cit. p. 6019 CF. Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o inters-

tício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Cons-tituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:(...) IV - para a composição das Câmaras Municipais, será observado o limite máximo de: a) 9 (nove) Vereadores, nos Municípios de até 15.000 (quinze mil) habitantes.

Page 70: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

70 Marcela Ayres Britto Santos

nulidade repercutiria no próprio processo eleitoral, com a redefinição dos eleitos no ultimo pleito, uma vez que a nova fixação do numero de vereadores implicaria no calculo de novos quoeficientes eleitoral e partidário.

Merece relevo, também, o julgamento do Habeas Corpus nº 82.959 – SP, no qual STF decidiu pela inconstitucionalidade do §1º, do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de regime nos crimes hediondos20. A Corte Suprema mitigou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fixando que a decisão teria eficácia ex nunc, para atingir apenas às situações que ainda estivessem suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão21.

3.3 Razões de Segurança Jurídica e Interesse Social: Conceitos Indeterminados

A aplicabilidade do art. 27 da Lei 9.868/99 requer, em primeiro lugar, a análise da existência dos seus requisitos autorizadores. Ocor-re que o mencionado permissivo legal faz referência a dois conceitos indeterminados, de cuja interpretação se faz necessária, quais sejam: razões de segurança jurídica e excepcional interesse social.

Como é cediço, o sistema jurídico não é um sistema fechado, her-mético, em que para todo e qualquer problema se encontre uma so-lução preexistente. Pelo contrário, existem situações que, tendo em vista a sua particularidade, reclamam uma adaptação normativa para solver a questão. Sendo assim, na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, o aplicador atua de forma a construir o sentido da norma, levando em consideração a situação concreta a ser decidida22,

20 Art. 2º, § 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado (BRASIL, 2014).

21 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 82.959-7 São Paulo. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Diário de Justiça 01.09.2009. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/ac%C3%B3rd%C3%A3o%283%29.pdf >. Acesso em: 20 out. 2014.

22 ÁVILA, Ana Paula. op. cit. p. 75.

Page 71: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

71

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

em busca da interpretação normativa que melhor se adapte ao pro-blema proposto.

Diante da impossibilidade de se prever todas as situações passí-veis de normatização, o legislador se utiliza de técnicas legislativas, como a introdução, no ordenamento jurídico, de princípios gerais de direito, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Tra-tando-se especificamente do art. 27 da lei nº 9.868/99, cuidou o le-gislador de introduzir o princípio da segurança jurídica, e o conceito jurídico indeterminado da expressão “interesse social”.

O princípio da segurança jurídica é concebido como um dos fun-damentos do Estado e do direito, ao lado do bem-estar social. Embora possua variadas dimensões, destacam-se duas principais acepções da segurança jurídica: uma formal/objetiva e outra material/subjetiva.

Na concepção de Luís Roberto Barroso, a segurança jurídica, em sua dimensão formal, relaciona-se com a garantia de que novas obri-gações somente podem ser exigidas dos cidadãos após a sua prévia e válida introdução na ordem jurídica. Esta proteção é complementa-da pelos princípios da legalidade e da irretroatividade, corolários do princípio da segurança jurídica. Já a dimensão material está ligada a possibilidade que as pessoas devem ter de prever razoavelmente as obrigações do sistema normativo23.

No que tange à atividade normativa, a segurança se manifesta, por exemplo, na exigência de publicação das normas, como pressuposto de sua vigência e validade, assim como a presunção de constituciona-lidade das normas, a coisa julgada e, como ora mencionada, a irretro-atividade das normas. Logo, pela segurança jurídica, busca-se garantir ao cidadão a certeza de sua situação jurídica, a certeza de seu direito.

23 BARROSO, Luís Roberto. Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária.Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judi-ciais. Parecer. Rio de Janeiro, 01 de abril de 2005. p.19. Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/parecer_mudanca_da_juris-prudencia_do_stf.pdf> Acesso em: 21. out. 2014.

Page 72: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

72 Marcela Ayres Britto Santos

Embora esteja expresso no art. 5º, caput, da Constituição Federal24, e decorra de outros dispositivos constitucionais, bem como já possua uma conceituação doutrinária e jurisprudencial, o princípio da segu-rança jurídica carece de definição na forma como utilizado na expres-são “razões de segurança jurídica”, no art. 27, da Lei 9.868/99, a ser pre-enchida diante de cada situação fática analisada pelo órgão julgador.

A expressão “excepcional interesse social” também possui uma indeterminação conceitual, cabendo ao aplicador da norma operar a sua composição da à luz de cada caso concreto.

Ressalte-se que o processo de preenchimento valorativo da nor-ma tomará como base o texto constitucional. Outrossim, o fundamen-to para a aplicação da técnica da modulação dos efeitos deverá ser extraído da Constituição, estando excluídos do processo decisório os demais interesses que não assumam estatura constitucional.

Para a aplicação e interpretação do art. 27, da Lei 9.868/99, será preciso a realização de um procedimento de ponderação que, segun-do Ana Paula Ávila, está estruturado em três fases distintas: primeiro, a identificação e análise dos princípios (valores, direitos, interesses, etc.) que estejam em conflito em face do caso concreto; segundo, a atribuição de peso e importância correspondente a cada princípio ob-jeto de ponderação; e, terceiro, a determinação da prevalência de um princípio sobre os demais25.

Na primeira fase, portanto, será preciso identificar o objeto da pon-deração, ou seja, quais os princípios26 que então em conflito em deter-minada situação fática. Ultrapassada esta fase, o aplicador, por meio de um criterioso processo, passa atribuir o peso ou valor de cada um dos

24 CF. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)

25 ÁVILA, Ana Paula. op. cit., p. 92.26 Segundo nos ensina Ana Paula Ávila, o objeto da ponderação pode envolver concei-

tos distintos como de princípio, valor, interesse, direito e bem jurídico. Entretanto, tais conceitos podem ser subsumidos pela noção de princípio, para fins de explicação da ponderação (op. cit. p. 94).

Page 73: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

73

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

elementos que constituem o objeto da ponderação, que culminará na justificação da prevalência de um princípio sobre os demais.

É importante salientar que o juízo de ponderação não será feito em detrimento do princípio da supremacia da Constituição. De fato, a supremacia da Constituição constitui fundamento da própria exis-tência do controle de constitucionalidade, não podendo ser afastado ou ponderado sem comprometer a ordem e unidade do sistema. Em verdade, o que o Supremo Tribunal poderá fazer é sopesar a norma violada com as demais normas constitucionais que justificam a per-manência dos efeitos produzidos pela lei inconstitucional, como, por exemplo: boa-fé, moralidade, coisa julgada, irredutibilidade dos ven-cimentos, razoabilidade27.

Portanto, o juízo de ponderação deverá ser realizado à luz do princípio da proporcionalidade, em seu sentido estrito, de modo a aferir se as consequências da declaração de inconstitucionalidade se-rão ou não gravosas, afetando o princípio da segurança jurídica ou relevantes interesses sociais.

4 CONCLUSÃO

Diante das considerações levadas a efeito no presente artigo, po-de-se afirmar que, embora a teoria da nulidade da norma inconsti-tucional seja tradição no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, sua aplicação nem sempre se mostra adequada para solver determinadas situações reguladas pela norma inconstitucional, cujo desfazimento causaria grande insegurança jurídica.

Nessa linha, espelhando-se nas experiências do Direito Compara-do, em especial do Direito Português, introduziu-se, no ordenamen-to jurídico brasileiro, a técnica da modulação dos efeitos temporais, expressamente prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/99, possibilitando

27 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 239-240.

Page 74: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

74 Marcela Ayres Britto Santos

a atenuação dos efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, por manifestação favorável de dois terços de seus membros, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Depreende-se do texto do art. 27 da Lei nº 9.868/99, que ao decla-rar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, a Suprema Corte poderá: a) declarar que inconstitucionalidade somente produzi-rá efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão (efeitos ex nunc), com ou sem repristinação da lei anterior; b) declarar a inconstitucio-nalidade com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (efeitos pro futuro), com ou sem repristinação da lei ante-rior, conferindo uma sobrevida à norma inconstitucional; ou c) decla-rar a inconstitucionalidade dotada de efeito retroativo, com produção de efeitos a partir de um momento específico no passado, como um marco inicial para a produção dos efeitos.

A modulação dos efeitos também tem aplicabilidade no con-trole difuso de constitucionalidade, que deverá ser apreciada pelo Plenário, haja vista a necessidade de atender ao requisito formal do quórum de dois terços dos membros do Tribunal. Aliás, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em diversos julgamentos, tal possibi-lidade, a exemplo das decisões proferidas no Recurso Extraordinário nº 197.917/SP e no Habeas Corpus nº 82.959/SP.

Como já se destacou, é necessário estar-se diante de razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social para justificar a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Todavia, tais requisitos revestem-se de indeterminação conceitual, devendo o aplicador realizar o preenchimento desses conceitos à luz de cada caso concreto.

Além disso, a utilização da técnica da manipulação dos efeitos demanda um severo juízo de ponderação, com fulcro no princípio da proporcionalidade, de modo que prevaleça a ideia de segurança jurídica ou de outro princípio constitucionalmente relevante, mani-

Page 75: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

75

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

festado na forma de excepcional interesse social.Ressalte-se que a ponderação não será feita em detrimento do

princípio da supremacia da Constituição, que constitui o fundamento da própria existência do controle de constitucionalidade, e que não pode ser afastado ou ponderado sem comprometer a ordem e unida-de do sistema. Na verdade, o Supremo Tribunal sopesará o preceito constitucional violado com as demais normas constitucionais que justificam o afastamento do princípio da nulidade.

Assim, não se pode deixar que reconhecer que a técnica da modu-lação dos efeitos temporais é um instrumento de que dispõe o Supre-mo Tribunal Federal para a salvaguarda dos valores constitucionais, utilizado de forma excepcional, com o fim de ajustar situações im-perfeitas que advieram de uma norma inconstitucional, que, todavia, não poderão ser desconstituídas sem comprometer a ordem jurídica e constitucional.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Ana Paula. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumenta-ção para a interpretação conforme a Constituição do art. 27 da Lei nº 9.868, de 1999. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado Editora, 2009.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6. ed. São Paulo/SP: Editora Saraiva, 2012.

____________,. Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária.Segurança jurídica e modulação dos efeitos tempo-rais das decisões judiciais. Parecer. Rio de Janeiro, 01 de abril de 2005. Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/parecer_mudanca_da_jurisprudencia_do_stf.pdf> Acesso em: 21. out. 2014.

Page 76: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

76 Marcela Ayres Britto Santos

BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 82.959-7 São Paulo. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Diário de Justiça 01.09.2009. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/ac%C3%B3rd%C3%A3o%283%29.pdf >. Acesso em: 20 out. 2014.

________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 197.917-8 São Paulo. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Diário de Justiça 07.05.2004. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847> . Acesso em: 20 out. 2014.

________. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 67. É inconstitucio-nal a cobrança do tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro. Disponível em: <http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0067.htm>. Acesso em: 28 out. 2014.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade: Teoria e Prática. 5. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011.

______. Curso de direito Constitucional. 8. ed. Salvador: Editora Jus-Podivm, 2014.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18. ed. São Pau-lo: Editora Saraiva, 2014.

MARCÍLIO, Carlos Flávio Venâncio. Constitucionalidade do art. 27 da lei nº 9.868/99. Disponível em:< http://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/viewFile/218/179>. Acesso em 03 nov, 2014.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade: Comentários à lei nº 9.868, de 10-11-1999. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

Page 77: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

77

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. /

ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição consti-tucional. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul. Porto Alegre, 2000. Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2521/000275909.pdf?sequence=1> Acesso em: 25 set. 2014.

Page 78: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 79: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO CPC/15

Jéssica Matos Correa

RESUMO1

O presente texto tem como objetivo a análise dos artigos 190 e 191 da Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015, os quais tratam sobre os negócios jurídicos processuais, um dos pontos mais progressistas do Código de Processo Civil de 2015. Destarte, o artigo em questão foi consubstanciado através da observância sistemática e formal da refe-rida lei e posicionamentos doutrinários acerca do tema. No primeiro momento, este artigo tratará acerca das novidades trazidas pela negociação processual, prevista no artigo 190 do CPC. Em seguida, a calendarização processual insculpida no artigo 191 do CPC, será objeto de fechamento deste trabalho.Palavras chave: Negociação Processual. Inovação. CPC/15.

Graduanda em Direito pela Faculdade de Sergipe (FASE). Técnica do Ministério Público.

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 79-92

Page 80: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

80 Jéssica Matos Correa

1. INTRODUÇÃO

O trabalho em questão foi redigido com a finalidade de expor pontos relevantes acerca dos negócios jurídicos processuais consis-tentes no Código de Processo Civil de 2015, mais especificamente, encontrados nos artigos 190 e 191 do citado código, através do texto literal da lei e de posições doutrinárias.

Considerando que vivemos em um Estado Democrático de Direito, com o advento da Lei 13.105, de 16 de Março de 2015, o Novo Código de Processo Civil, de acordo com seu artigo 1º, por exemplo, possui como novo fundamento, o Neoprocessualismo, derivado do Neocons-titucionalismo, o que significa dizer que o referido código será ordena-do, disciplinado e interpretado conforme as normas fundamentais e os valores presentes na Constituição Federal do Brasil de 1988.

Sendo assim, objetivando a prevalência da vontade das partes na solução do dissídio, a Lei 13.105 passou a admitir a autocomposição1, tornando possível a solução dos conflitos sem a interferência direta da jurisdição, diferentemente do que ocorre com a autotutela, onde é permitido o uso da força. A autocomposição, por ser um meio pacífi-co de resolução de problemas, onde inexiste imposição da jurisdição, valoriza a vontade das partes e propicia um resultado mais almejado por ambas as partes.

Através da autocomposição, é possível a realização de negocia-ção, na qual as partes chegam a uma transação sem a intervenção de um terceiro. Importante dizer que transação se trata da vontade bila-teral das partes, havendo privação recíproca de interesses, devendo as partes, abdicarem parcialmente da sua pretensão para que se atinja a solução da lide.

Ante o exposto e em virtude das novas mudanças trazidas pela Lei 13.105, a pesquisa pretende demonstrar as possibilidades de ne-

1 AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES. Daniel. Manual de Direito Processual Civil. Vol único. 8ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 5

Page 81: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

81

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

gociação processual presentes nos artigos 190 e 191 do Código de Processo Civil de 2015.

2. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

2.1 Princípio da Cooperação

A concepção de negócios jurídicos processuais se harmoniza com o Princípio da Cooperação, presente no Código atual, que tem por ob-jetivo orientar a conduta dos sujeitos processuais necessários (partes e juiz), para que se alcance, mediante esforço comum, a solução do litígio, de maneira que se chegue a uma decisão justa.

Com o advento da Lei 13.105, de 16 de março de 2015, o Código de Processo Civil de 2015 adotou o princípio da Cooperação, previsto em seu artigo 6º, in verbis: Todos os sujeitos do processo devem coope-rar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

A decisão de mérito deve ser tratada como um objetivo das partes e do juízo. Todos os sujeitos devem cooperar entre si, tanto as partes entre si, como as partes com o juiz e o juiz com as partes. As partes têm o múnus de atuar com a máxima atividade na defesa de seus in-teresses, desde que se comportem de acordo com a boa fé, conforme preleciona o artigo 5º do CPC/15, tudo com vistas a colaborar com a decisão a ser tomada pelo juiz da lide processual.

Da mesma forma, o juiz deve ter uma participação efetiva, man-tendo contato com as partes, objetivando o resultado do processo que depende do resultado da atuação conjunta com as partes. Para firmar o seu convencimento, o juiz deve requerer esclarecimentos das alega-ções realizadas pelas partes sempre que necessário, deve também dá oportunidade para que as partes se manifestem antes de tomar uma decisão, além de prevenir os polos processuais acerca de eventuais erros, determinando um prazo para a correção dos vícios.

Page 82: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

82 Jéssica Matos Correa

Nota-se que a obtenção de uma decisão justa e efetiva depende da vultosa contribuição e colaboração das partes. O Princípio da Cooperação é a superação do protagonismo do juiz, visto que tal protagonismo não compatibiliza com o Estado Democrático de Direito. Agora, é dever do juiz, atuar em parceria com as partes, de forma que o processo seja ana-lisado de maneira ampla, para que se possa chegar ao melhor resultado possível, de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil.

Nesse seguimento, Leonardo Cunha2, ao se expressar acerca do novo código de processo civil e os mais recentes estudos acerca dos negócios processuais, explica:

Há, ainda, a ideia de um modelo cooperativo de processo, que,

em verdade, funciona como um modelo intermediário entre o

modelo social ou publicista e o modelo garantista. O juiz man-

tém seus poderes, mas é preciso atender aos deveres de coope-

ração, esclarecendo, prevenindo, auxiliando e consultando as

partes. O modelo cooperativo diminui o protagonismo do juiz,

mas também restringe sua passividade, evitando o resgaste da

ideia liberal do processo como uma “luta” ou “guerra” entre as

partes. O modelo cooperativo baseia-se na ideia de que o Estado

deve propiciar condições para a organização de uma sociedade

livre, justa e solidária, com vistas a atender à dignidade da pes-

soa humana, caracterizando-se pelas posições coordenadas do

indivíduo, da sociedade civil e do Estado.

2.2 Espécies de negócios jurídicos processuais

Nos negócios jurídicos unilaterais, apenas a vontade de uma das partes é necessária para que se gere consequências no processo. É o

2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasi-leiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coord.). Negócios Pro-cessuais. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 27-62.

Page 83: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

83

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

que ocorre, por exemplo, na renúncia ao prazo (art. 225 do CPC), na desistência do recurso (art. 998 do CPC) etc.

Para que se produzam efeitos, os negócios jurídicos bilaterais de-pendem de um acordo de vontade das partes, é o que acontece na hipótese do artigo 190 do CPC.

O negócio jurídico processual também pode ser classificado como plurilateral, quando a eficácia do negócio jurídico depende da vontade das partes e do órgão jurisdicional, como por exemplo, a ca-lendarização processual prevista no artigo 191 do CPC.

2.3 Cláusula geral de negociação processual

É bem verdade que no diploma processual revogado já existiam previsões acerca de negócios jurídicos processuais típicos, como por exemplo, a cláusula de eleição de foro (art. 111 do CPC/73). A novida-de que o Código de Processo Civil de 2015 traz não é, portanto, a cria-ção deste fenômeno jurídico já reconhecido, mas sim sua propagação.

A cláusula geral de negócios jurídicos processuais, prevista no art. 190, do CPC/15, assim transcrito: Art. 190 Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes apli-cação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em con-trato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta si-tuação de vulnerabilidade, visando a flexibilização do procedimento, passou a permitir, além dos casos cabíveis de negócios processuais típicos, a possibilidade de celebração de acordo entre as partes de forma geral, envolvendo tanto o procedimento como as suas situações processuais.

Page 84: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

84 Jéssica Matos Correa

A partir da leitura literal do artigo 190 do CPC/15 citado acima, observa-se que para que este tipo de negócio jurídico seja possível, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: a) Incidência da causa sobre direitos que admitam autocomposição, b) Partes plena-mente capazes e c) Convenção limitada ao ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes.

É importante não confundi direito indisponível com direito que não admita autocomposição, pois mesmo nos processos que incidam em direito indisponível é cabível a autocomposição. O objeto da au-tocomposição é a forma de exercício do direito, bem como o modo e o momento de cumprimento da obrigação. Posto isto, é plenamente possível a convenção processual no dissídio coletivo, mesmo que o autor da ação seja o Ministério Público e ainda que os direitos difusos e coletivos sejam indisponíveis

Como a cláusula geral de negócios jurídicos processuais é do tipo bilateral, nas palavras de Fredie Didier Jr, entende-se como negócio jurídico processual a declaração de vontade expressa, tácita ou implí-cita, a que são reconhecidos efeitos jurídicos, conferindo-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer certas situa-ções jurídicas processuais3.

O reconhecimento da cláusula geral de negócios jurídicos repre-senta o respeito à liberdade e ao autorregramento da vontade no pro-cesso. Nesse sentido, faz jus a proeminência feita por Fredie Didier Jr.: “O direito fundamental à liberdade possui conteúdo complexo. Há a liberdade de pensamento, de crença, de locomoção, de associação etc. No conteúdo eficacial do direito fundamental à liberdade está o direito ao autorregramento: o direito que todo sujeito tem de regular juridica-mente os seus interesses, de poder definir o que reputa melhor ou mais adequado para a sua existência; o direito de regular a própria existên-cia, de construir o próprio caminho e de fazer escolhas. Autonomia

3 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol I. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 376-377.

Page 85: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

85

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

privada ou autorregramento da vontade é um dos pilares da liberdade e dimensão inafastável da dignidade da pessoa humana”4.

2.4 Momento e controle de validade

No que tange ao momento, os negócios jurídicos processuais podem ser celebrados de maneira prévia ou incidental, ou seja, antes do ajui-zamento da causa, como é o caso do ajuste do foro de eleição, ou até mesmo durante o curso do processo, por exemplo, a alteração de prazos. Porém, para que seja válido, o acordo deve ser determinado e preciso.

Para que um negócio jurídico processual seja válido, é necessário que preencha os seguintes requisitos: a) manifestação livre e de boa--fé; b) agente capaz e legitimado; c) objeto lícito, possível, determina-do ou determinável; d) forma livre ou prevista em lei.

De acordo com o artigo 190, parágrafo único5 do CPC/15, o juiz, na função de gerenciador do processo, somente recusará a aplicação das convenções pactuadas, nos casos de nulidade ou inserção abusi-va em contrato de adesão ou no qual qualquer parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

O controle judicial só ocorre depois de finalizado o negócio jurídico, apenas para verificar a sua legalidade, portanto, não funcio-na como um requisito. Por isso, não é necessário que haja homologa-ção judicial para validade do negócio processual, salvo se expressa-mente previsto em lei. Posto isso, sendo o acordo válido, os efeitos são válidos desde a sua pactuação.

4 DIDIER JR., Fredie. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 57, jul./set. 2015, p. 1675 Art. 190 Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às

partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às espe-cificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das conven-ções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade

Page 86: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

86 Jéssica Matos Correa

Na esfera do Ministério Público, incumbe à Resolução n. 118 do CNMP, de dezembro de 2014, dispor sobre a sua Política Nacional de Autocomposição, com dispositivos próprios à negociação processual:

Art.15. As convenções processuais são recomendadas toda vez

que o procedimento deva ser adaptado ou flexibilizado para

permitir a adequada e efetiva tutela jurisdicional aos interes-

ses materiais subjacentes, bem assim para resguardar âmbito de

proteção dos direitos fundamentais processuais.

Art. 16. Segundo a lei processual, poderá o membro do Minis-

tério Público, em qualquer fase da investigação ou durante o

processo, celebrar acordos visando constituir, modificar ou

extinguir situações jurídicas processuais.

Art. 17. As convenções processuais devem ser celebradas de

maneira dialogal e colaborativa, com o objetivo de restaurar

o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos

por intermédio da harmonização entre os envolvidos, podendo

ser documentadas como cláusulas de termo de ajustamento de

conduta.

2.5 Limites à liberdade das partes

Os requisitos previstos no artigo 190, parágrafo único do CPC, são limitadores do poder das partes que efetuarem o negócio jurídico processual atípico.

Sem dúvidas, a liberdade das partes foi consideravelmente dila-tada, o que significa um grande passo dentro de um país democrático de direito, porém, é normal que existam tolerâncias.

Os limites também se encontram na exigência que a mudança procedimental esteja vinculada às especificidades da causa e na proi-bição de convenção sobre as posições jurídicas do juiz.

Page 87: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

87

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

2.6 Casuística

A negociação processual ainda é objeto de estudo, tendo em vista que se trata de um vasto campo jurídico a ser explorado, gerando vá-rias dúvidas a seu respeito.

Enxergando tal realidade, é importante se atentar aos Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e da Escola de Formação dos Magistrados (ENFAM) que analisando caso a caso, indicam as hipóteses que podem e que não podem ser objeto do ne-gócio jurídico em questão e que servirão para orientar a magistratura nacional na aplicação do novo Código de Processo Civil (CPC).

A seguir, por exemplo, encontram-se elencados os enunciados do fórum permanente de processualistas civis (FPPC), que serão indis-pensáveis até a consolidação da jurisprudência após a vigência do CPC/15:

• Enunciado n. 6 do FPPC: O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação.

• Enunciado n. 16 do FPPC: O controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo.

• Enunciado n. 17 do FPPC: As partes podem, no negócio pro-cessual, estabelecer outros deveres e sanções para o caso do descumprimento da convenção.

• Enunciado n. 18 do FPPC: Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistên-cia técnico-jurídica.

• Enunciado n. 19 do FPPC: São admissíveis os seguintes ne-gócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabili-dade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito

Page 88: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

88 Jéssica Matos Correa

suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória.

• Enunciado n. 20 do FPPC: Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da primeira instância.

• Enunciado n. 21 do FPPC: São admissíveis os seguintes ne-gócios, dentre outros: acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado do mérito convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais.

• Enunciado n. 115 do FPPC: O negócio jurídico celebrado nos termos do art. 190 obriga herdeiros e sucessores.

• Enunciado n. 132 do FPPC: Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à inva-lidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190.

• Enunciado n. 133 do FPPC: Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 não de-pendem de homologação judicial.

• Enunciado n. 134 do FPPC: Negócio jurídico processual pode ser invalidado parcialmente.

• Enunciado n. 135 do FPPC: A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurí-dico processual.

• Enunciado n. 252 do FPPC: O descumprimento de uma con-venção processual válida é matéria cujo conhecimento de-pende de requerimento.

• Enunciado n. 253 do FPPC: O Ministério Público pode cele-brar negócio processual quando atua como parte.

• Enunciado n. 254 do FPPC: É inválida a convenção para ex-cluir a intervenção do Ministério Público como fiscal da or-dem jurídica.

Page 89: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

89

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

• Enunciado n. 255 do FPPC: É admissível a celebração de con-venção processual coletiva.

• Enunciado n. 256 do FPPC: A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual.

• Enunciado n. 257 do FPPC: O art. 190 autoriza que as par-tes tanto estipulem mudanças do procedimento quanto con-vencionem sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais.

• Enunciado n. 258 do FPPC: As partes podem convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, ainda que essa convenção não importe ajustes às especifici-dades da causa.

• Enunciado n. 259 do FPPC: A decisão referida no parágrafo único do art. 190 depende de contraditório prévio.

• Enunciado n. 260 do FPPC: A homologação, pelo juiz, da convenção processual, quando prevista em lei, corresponde a uma condição de eficácia do negócio.

• Enunciado n. 261 do FPPC: O art. 200 aplica-se tanto aos ne-gócios unilaterais quanto aos bilaterais, incluindo as conven-ções processuais do art. 190.

• Enunciado n. 262 do FPPC: É admissível negócio processual para dispensar caução no cumprimento provisório de sentença.

• Os enunciados da Escola de Formação dos Magistrados (EN-FAM) podem ser visualizados através deste link: http://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS--VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf

Page 90: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

90 Jéssica Matos Correa

3. CALENDÁRIO PROCEDIMENTAL

O artigo 191 do CPC6 permite que as partes e o juiz, de comum acordo, fixem calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.

O grande benefício da calendarização é a dispensa de intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiên-cia cujas datas tiverem sido designadas no calendário. Com certeza, essa nova técnica processual garante maior celeridade ao processo.

Além do mais, considerando que o CPC/15 adotou como novo fundamento o Neoprocessualismo, tendo o seu ordenamento que está de acordo com a Constituição Federal de 1988, o calendário procedi-mental é um meio de implementação do princípio de duração razoá-vel do processo e de emprego de meios que acelerem sua conclusão (CF, art. 5º, LXXVIII).

3.1 Negócio jurídico plurilateral

O calendário processual é uma espécie de negócio jurídico proce-dimental plurilateral, visto que para fixação do calendário no proces-so, depende de um acordo entre as partes e o juiz.

Quando falamos no termo partes para fixação da calendarização, o mesmo há de ser observado de maneira ampla, ou seja, como par-te no processo, visto que qualquer sujeito processual que participe da relação processual será diretamente afetado pela calendarização procedimental, sendo indispensável a sua aceitação. Dessa forma, ha-vendo terceiro interveniente ou o Ministério Público como fiscal da

6 Art. 191  De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.

§ 1o O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.

§ 2o Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.

Page 91: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

91

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

ordem jurídica, também deverão anuir com a calendarização proce-dimental sob pena de inviabilizá-la, salvo se o acordo não lhes gerar prejuízo, quando sua anuência será dispensada e no caso do assis-tente simples, que não pode se opor à vontade do assistido, não pode impedir que ele celebre o negócio jurídico processual7.

3.2 Momento

O mais provável é que o calendário procedimental seja fixado no momento do saneamento e organização do processo, entretanto, não há um momento próprio para sua definição, visto que o mesmo pode ocorrer de diversas formas.

O que podemos afirmar é que a calendarização não pode ocorrer na audiência de conciliação e mediação, visto que essa audiência é realiza-da na presença de um conciliador ou de um mediador, e não de um juiz.

4. CONCLUSÃO

O presente estudo teve como objetivo a exposição dos principais pontos acerca dos Negócios Jurídicos Processuais trazidos pelo Códi-go de Processo Civil de 2015.

Com base no exposto neste artigo, é possível afirmar que as novi-dades apresentadas geram um grande avanço em um País democráti-co de direito, visto que as partes ganharam mais autonomia de vonta-de, podendo pactuar acerca da relação jurídica processual, auferindo respeito à liberdade e ao autorregramento da vontade no processo.

Por fim, tendo em vista que o assunto em questão só se conso-lidará ao longo do tempo, em virtude de sua amplitude, espero que essa pesquisa sirva como base para futuros posicionamentos acerca do tema.

7 AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES. Daniel. Manual de Direito Processual Civil. Vol único. 8ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 337

Page 92: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

92 Jéssica Matos Correa

REFERÊNCIAS

AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES. Daniel. Manual de Direito Proces-sual Civil. Vol único. 8ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 5

CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coord.). Negócios Processuais. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 27-62.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol I. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 376-377.

DIDIER JR., Fredie. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 57, jul./set. 2015, p. 167.

AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES. Daniel. Manual de Direito Proces-sual Civil. Vol único. 8ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 337.

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015: Código de Processo Ci-vil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 03/01/2017.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRA-SIL DE 1988. Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 03/01/2017.

ENFAM: ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS. Enunciados sobre a aplicação do novo CPC. Dispo-nível em: http://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUN-CIADOS-VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf. Acesso em: 03/01/2017.

Page 93: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

Joana Angélica Carregosa Silva

RESUMO1

O presente trabalho teve por objetivo o estudo da publicidade infantil e as conse-quências da abusividade da publicidade para os infantes, visto que a publicidade induz a criança à relação de consumo, desconsiderando valores e princípios éticos, legais e sociais. Demonstrou-se que, tendo em vista a condição de vulnerabilidade das crianças, são merecedoras de especial atenção do legislador e dos órgãos res-ponsáveis pela regulamentação da publicidade no Brasil. Por fim, demonstraram-se a legalidade e constitucionalidade da Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade, muito embora esteja sendo reiteradamente desres-peitada pelos profissionais envolvidos no ramo publicitário.Palavras chave: Publicidade infantil. Consequências da Publicidade infantil. Reso-lução nº 163/14 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda.

Especialista em Direito do Consumidor pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected].

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 93-116

Page 94: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

94 Joana Angélica Carregosa Silva

1. INTRODUÇÃO

A publicidade, pela ótica da economia, se manifesta como uma atividade para estimular o consumo, influenciando o consumidor a adquirir determinados produtos ou serviço que muitas vezes não de-sejava. Cada vez mais o mercado publicitário busca novas técnicas, meios e formas inusitadas para persuadir o consumidor a adquirir os produtos ofertados. Diante da natural desvantagem por conta da inocência, credulidade e ingenuidade, as crianças se tornam presas fáceis para os anúncios comerciais.

A publicidade dirigida à criança, conforme evidenciado por pe-diatras, sociólogos, educadores e psicólogos, tem efeitos devasta-dores sobre a formação cognitiva e moral dos infantes. É possível constatar que a influência da publicidade no consumismo infantil reflete numa ascensão da criança a um patamar de influenciadora e decisora no processo de compra da família.

Nessa conjuntura, o Conselho Nacional dos Direitos da Crian-ça e do Adolescente - CONANDA editou, em abril de 2014, a Re-solução 163, com o fito de cumprir sua competência de proteção ao direito das crianças. Referida resolução limita a veiculação de propaganda direcionada para as crianças, além de regulamentar outros aspectos relativos à publicidade infantil.

2. DA PUBLICIDADE ABUSIVA

A publicidade abusiva é tratada no § 2º do art. 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que dispõe:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

(...)

§ 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória

de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo

Page 95: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

95

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e

experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que

seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma

prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

Ressalte-se que o nosso Código não definiu juridicamente publi-cidade abusiva, apenas listou alguns exemplos de forma meramente enumerativa. Ao afirmar “dentre outras”, nos remete à interpretação casuística, que deverá atrelar-se tão só a um conceito abstrato de abu-so, cuja conclusão depende exclusivamente do interprete.

Igualmente, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publi-citária, instituído pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – CONAR, não traz uma definição de publicidade abusi-va, mas claramente a repudia na definição da ‘Respeitabilidade’ como princípio, senão vejamos:

CAPÍTULO II - PRINCÍPIOS GERAIS

SEÇÃO 1 - Respeitabilidade

Art. 19 - Toda atividade publicitária deve caracterizar-se

pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade,

ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às

autoridades constituídas e ao núcleo familiar.

Art. 20 - Nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer

espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política,

religiosa ou de nacionalidade.

Art. 21 - Os anúncios não devem conter nada que possa induzir

a atividades criminosas ou ilegais - ou que pareça favorecer,

enaltecer ou estimular tais atividades.

O caráter abusivo da publicidade, segundo Rizzatto Nunes, trans-cende o dano material. Isto porque para a caracterização da publicida-de abusiva não é necessário que esta venha a causar um dano efetivo

Page 96: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

96 Joana Angélica Carregosa Silva

ao consumidor, pois a doutrina entende ser suficiente a possibilidade de concretização do dano em virtude da exposição do consumidor à propaganda nociva. (NUNES, 2012).

Em harmonia com a Constituição Federal, a publicidade e os meios de comunicação devem ajustar-se a esses parâmetros superio-res, aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, nestes termos: “Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e tele-visão atenderão aos seguintes princípios: [...] IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”

Impende salientar os ensinamentos de Suzana Federighi:

Se aceitarmos que a publicidade pode induzir alguém a algo

além de consumir, isto já será nocivo de per si, porque estará

servindo de instrumento à criação de uma necessidade extra,

além daquela à qual está social e juridicamente autorizada. Não

fosse por este raciocínio, a publicidade, em si seria uma vio-

lência, por inverter o processo de necessidade no mercado de

consumo, e não somente por criá-la, mas por inserir um compor-

tamento padrão ainda não existente. (FEDERIGHI, 1999, p. 72).

Ao elencar as hipóteses de publicidade que estão classificadas como abusivas, o Código de Defesa do Consumidor está em conso-nância com outros diplomas legais, preservando o consumidor de prejuízos não especificamente financeiros, mas valores ainda maiores e muitas vezes irrecuperáveis.

3. PUBLICIDADE DIRIGIDA À CRIANÇA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

As grandes transformações no comportamento da criança não ocorreram por acaso. Certamente, é consequência das alterações no ambiente em que a família vive, pois elas vêm crescendo em um am-

Page 97: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

97

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

biente familiar em que acabam passando mais tempo em espaços fe-chados e com pouco contato com outras crianças, fazendo da TV e da internet seu principal contato com o mundo exterior.

Gradativamente, a criança passou a tornar-se influenciadora e de-cisora no processo de compra. A grande mídia não levou muito tempo para perceber que o canal direto com o consumidor infantil, através da TV como comunicação, gerava resultados rápidos e significativos. As crianças, então, começaram a receber mensagens dirigidas com conteúdo de fácil assimilação e com isso desenvolveram raciocínio lógico condicionado a decodificar essas mensagens e produzirem apelos e desejos de consumo.

Momberger expõe seu ponto de vista acerca da rentabilidade do mercado infantil e sobre as intenções das empresas de televisão, tra-zendo alguns valores como referência:

O objetivo maior das empresas de televisão é gerar lucros,

somente poucos programas de televisão atendem à finalidade

educativa, pois os programas são pagos por anunciantes que que-

rem vender seus produtos ou serviços. Uma pesquisa realizada

no Brasil indica que a venda de produtos destinados ao público

infantil e infanto-juvenil, até 14 anos, e que representa 32% da

população brasileira, movimentou R$ 52 bilhões em 1999. Só o

setor de produtos para higiene, cosméticos e perfumaria atingiu

R$ 165 milhões. A estimativa de venda de brinquedos em 2000

é de R$ 950 milhões. (MOMBERGER, 2002, p. 31).

Por conta dessa nova visão publicitária é possível perceber nos anúncios (em especial nos comerciais de televisão) uma mudança na abordagem, cujos apelos são direcionados muito mais às crianças do que aos pais.

Desta forma, houve uma socialização do consumidor infantil, as crianças são vistas tanto como consumidores primários, ou seja, que

Page 98: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

98 Joana Angélica Carregosa Silva

adquire produtos para si, como também influenciadoras na decisão de compra dos pais em diversos itens, do mais acessível ao bem de con-sumo mais caro, como um automóvel, por exemplo, e isso desperta o interesse do mercado publicitário em conquistá-las cada vez mais.

Diante dessa realidade é preciso destacar que a criança, enquanto consumidora, tem sua vulnerabilidade agravada. Na lição de Bruno Miragem:

Resta consagrado no sistema jurídico brasileiro o princípio da

absoluta prioridade do interesse da criança, espécie de princípio

de proteção do vulnerável, que indica deveres de efetivação deste

direito à família, a sociedade e ao Estado. Em que pese a eficácia

deste princípio protetivo diga muito às relações de família, não

é desconhecido de outras disciplinas jurídicas, e em especial ao

direito do consumidor. (MIRAGEM, 2014a, p. 125).

As crianças encontram-se num estágio da vida em que, além de se permitir que sejam convencidas com maior facilidade, pois ainda não tem sua formação intelectual completa, geralmente também não possuem o controle sobre aspectos práticos da contratação, como os valores financeiros envolvidos, os riscos e benefícios do negócio. (MI-RAGEM, 2014a).

A vulnerabilidade agravada da criança é reconhecida no âmbito da publicidade, sendo que o próprio Código de Defesa do Consumi-dor estabelece o caráter abusivo da publicidade que venha a aprovei-tar-se da deficiência de julgamento da criança (artigo 37, § 2º). Além disso, é considerada prática abusiva, qualquer conduta negocial do fornecedor que venha a prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, em vista, dentre outras condições, de sua idade e conhe-cimento (artigo 39, IV).

Como vimos, as crianças representam um grande nicho de mer-cado a ser explorado pelas peças publicitárias, que têm a seu favor o

Page 99: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

99

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

poder da criação e imaginação. Para isso, prevalece-se de utilizar per-sonagens infantis, animais que falam e muitos efeitos especiais. Por sua inocência, hipossuficiência e por não terem ainda desenvolvido raciocínio crítico, os infantes acreditam fielmente naquilo que é vei-culado pela publicidade, mesmo que se trate de algo absolutamente irreal e impossível de se realizar. Eis a razão pela qual o CDC classifi-ca como abusiva a publicidade que se aproveita desta inocência para um desejo incontrolável em consumir.

É notável que o público infantil seja especialmente vulnerá-vel ao marketing, pois, em razão de ainda estarem em processo de evolução cognitiva, as crianças possuem dificuldades em per-ceber as intenções persuasivas que motivam a propaganda e suas estratégias que, inclusive, muitas das vezes são voltadas para pais, responsáveis e cuidadores das crianças. (IGLESIAS et al., 2013).

Como as crianças não têm experiência e ainda estão em desenvol-vimento, elas acreditam com mais facilidade em tudo o que ouvem e veem. E por isso não entendem que algumas mensagens cheias de co-res, efeitos especiais ou personagens de desenhos só estão querendo convencê-las a comprar um produto. Assim, fica muito fácil vender qualquer coisa para elas, pois, não conseguem entender o caráter per-suasivo ou as conotações irônicas embutidas nas mensagens publici-tárias. E quando mais novas, sequer sabem distinguir publicidade de conteúdo midiático. Até aproximadamente os oito anos de idade, elas misturam fantasia e realidade. (INSTITUTO ALANA, 2014)

Segundo Karsaklian, não se pode responsabilizar somente a idade como fator de influência na relação da criança com a propaganda, ela diz que a maturidade e a personalidade da criança, bem como a intensidade de seu contato com a propaganda, participam desse pro-cesso. Ela relata em seu livro que quanto mais exposta à propaganda, mais a criança desenvolve uma maturidade e um espírito crítico com relação a ela. Para a autora o que a criança identifica na propaganda é o caráter informativo, porque o caráter persuasivo vem bem mais tar-

Page 100: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

100 Joana Angélica Carregosa Silva

de com o avanço da idade. Ela conclui que independente da questão consciente ou inconsciente da propaganda o que a criança gosta é do espetáculo oferecido por ela. São as cores, os movimentos, as musi-cas, as personagens, tudo o que chama a atenção das crianças. E que para elas as propagandas estão no mesmo nível que os programas de TV. (KARSAKLIAN, 2008).

O consumismo infantil é uma questão urgente, de extrema im-portância e interesse geral. As crianças ainda em desenvolvimento são mais vulneráveis que os adultos, não ficam fora dessa lógica e sofrem cada vez mais cedo com as graves consequências relacio-nadas aos excessos do consumismo. A publicidade na televisão é hoje uma ferramenta do mercado para a persuasão do público in-fantil, que cada vez mais cedo é chamado a participar do universo adulto mesmo não estando prontas para isso.

Não há duvidas de que esse fenômeno ocorre devido a uma forte manipulação externa, habitualmente chamada de técnicas mercado-lógicas, que, para facilitar a prosperidade econômica do cliente, conta com o incrível recurso da publicidade. (VALOIS, 2013).

Bauman explica essa construção do consumismo e suas necessi-dades inerentes:

Não é a criação de novas necessidades (alguns dizem “necessidade

artificiais”, mas de maneira errônea, já que “artificialidade” não

é uma característica singular das “novas” necessidades: embora

usem as predisposições humanas naturais como matéria-prima,

todas as necessidades em qualquer sociedade ganham forma tan-

gível e concreta é o artifício da “pressão” social)que constitui a

principal preocupação (e como diria Talccot Parsons, o “pré-requi-

sito funcional”) da sociedade de consumidores. É o desdém e o

desprezo pelas necessidades de ontem e a ridicularização e detur-

pação de sus objetos, agora passés, e mais ainda a difamação da

própria ideia de que a vida de consumo deveria ser guiada pela

Page 101: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

101

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

satisfação das necessidades que mantêm vivos o consumismo e a

economia de consumo. (BAUMAN, 2008, p. 127-128)

Dessa forma, os consumidores se sentem estimulados a comprar o novo ininterruptamente, é formado um mecanismo de frustrações, as coisas devem durar pouco para que se abrandem as expectativas e angústias, dando lugar às novas inquietudes e desejos.

As crianças são chamadas muito cedo para esse consumismo de-senfreado, assevera Bauman:

Tão logo aprendem a escrever, ou talvez mesmo antes disso,

a “dependência das lojas” se instala nas crianças. Bombardea-

das de todos os lados por sugestões de que precisam deste ou

daquele produto vendido em loja para ser o tipo certo de pes-

soa, ou alguém capaz de cumprir seu dever social e ser visto

fazendo precisamente isso, sentem-se inadequadas, deficientes

e abaixo do padrão se não puderem atender prontamente o cha-

mado. (BAUMAN, 2007, p. 146)

Lígia Cademartori também alerta que, antes mesmo das crianças serem alfabetizadas, elas já são levadas ao universo dos personagens, não apenas pela televisão, como também através do contato com pro-dutos comercializados que, de pronto, já expõe que o sistema a ser adotado é seguir o ‘padrão do momento’. Senão vejamos:

Muito antes de a criança ser alfabetizada e ter acesso a esses

meios de narrativa impressa, ela se familiariza – e o verbo é,

aqui, inocente – com as personagens do universo dos quadri-

nhos. Isso acontece a partir das referências no vestuário e nos

utensílios imediatos – elas são motivos temáticos de mochilas

escolares, camisetas, festas infantis – e o desenhi animado,

forma narrativa que os pequenos começam a desfrutar muito

Page 102: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

102 Joana Angélica Carregosa Silva

antes de iniciado qualquer processo de letramento. (CADE-

MARTORI, 2003, p. 45).

As marcas começaram a investir cada vez mais em meios para atingir o público infantil, tendo em vista a enorme influência das crianças nas decisões de compra das famílias, isso faz com que a cada ano o investimento das publicidades direcionadas a esse público au-mente, proporcionando, além de mais informações sobre os produtos, um desejo ainda maior de consumo nas crianças.

É cada vez maior o número de crianças em frente à televisão, ao computador e ao videogame. Como consequência, elas também são constantemente submetidas a diversos tipos de publicidade, não importando a hora, o lugar, ou se elas possuem discernimento entre o real e o imaginário. O discurso publicitário utiliza, inclusive, dos personagens preferidos desse público para incrementar suas mensagens e embalagens, fazendo com que haja identificação e projeção maiores entre produto e público.

Os grandes empresários do marketing não estão preocupados com as consequências desastrosas que os maus hábitos criados oca-sionarão no futuro. Com os olhos fixos somente nos lucros, estão con-tribuindo para a criação de um mundo insustentável. Nele, o conceito de felicidade está condicionado ao hábito de consumir por consumir e descartar logo em seguida, uma vez que os objetos não podem ofe-recer a satisfação genuína.

Portanto, as crianças, que vivenciam essa fase de peculiar desen-volvimento, são mais vulneráveis que os adultos e sofrem cada vez mais cedo com as graves consequências relacionadas aos excessos do consumismo: transtornos alimentares, erotização precoce, estresse familiar, entre outras.

Page 103: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

103

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

3.1 Transtornos alimentares e obesidade

O sobrepeso e a obesidade estão associados a uma série de danos à saúde e vêm ganhando destaque no cenário epidemiológico mun-dial. Estudos recentes mostram que a obesidade é o terceiro problema de saúde pública que mais demanda gastos da economia brasileira, estando à frente até do tabagismo. Estima-se que os gastos giram em torno de R$ 110 bilhões, o que equivale a 2,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. (CARDOSO, 2015)

Conforme preleciona Andréia Mendes dos Santos:

A obesidade infantil é uma doença de caráter crônico, multicau-

sal, onde o indivíduo estabelece uma relação de dependência em

relação à comida. As consequências da doença são de caráter

físico, emocional e social. Os sujeitos obesos sentem-se desajus-

tados e tendem a ser excluídos de grupos sociais, ora porque não

acompanham as atividades do grupo, ora porque “dão prejuízo

comendo demais”, ou porque não correspondem ao modelo esté-

tico e de beleza vigente. A exclusão pode ocorrer em casa, na

escola, no clube, no prédio onde mora, enfim, nos mais variados

lugares de convívio social da criança. (SANTOS, 2009, p. 163).

Diante dessas estatísticas, não há dúvidas de que um dos fatores que contribuem, e muito, para o avanço da obesidade infantil é a pu-blicidade que se valem do licenciamento de personagens ou mascotes e da venda casada para estimular o consumismo nesse público.

Susan Linn demonstra como a publicidade é uma referência im-portante na vida das crianças:

O problema não é só que as crianças são sedentárias e não saem

da frente da televisão. A sua vida é inundada pelo marketing

de alimentos. Juntamente com a publicidade de brinquedos, os

Page 104: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

104 Joana Angélica Carregosa Silva

anúncios de alimentos representam a maior parte do marketing

direcionado às crianças. Em 2002, o Burger King, o McDonald’s

e a Yum Brands gastaram, juntos, quase US$ 1,4 bilhão em

publicidade na televisão. A Nestlé, a Hershey e a Mars Inc.

representam outros US$ 708,2 milhões gastos. É possível que

parte dessa publicidade seja direcionada aos adultos, mas muito

está atingindo as crianças.(LINN, 2006, p.129)

Não há anúncios estimulando o consumo de frutas, vegetais e legumes. Além de trazer para a criança com uma série de realizações imaginárias, prometendo torná-la mais feliz, mais inteligente, mais bonita ou bem-sucedida, a publicidade a mantém prisioneira das mensagens, agravando ainda mais os riscos da obesidade.

No documentário “Muito além do peso” é abordada a questão da obesidade infantil e feito um alerta para as diversas doenças advindas desse mal moderno, doenças que antes eram incomuns em crianças: problemas do coração, depressão, diabetes tipo 2, dentre outras do-enças. Referido documentário destaca que crianças com sobrepeso aumentam o consumo de alimentos tipo fast food em 134% quando estão expostas à publicidade.

O outro lado da moeda da obesidade é a busca do corpo excessi-vamente magro. A publicidade que ajuda as crianças a engordar é a mesma que contribui para desqualificar e diminuir o valor das pessoas acima do peso. Por isso, muitas se submetem a verdadeiros flagelos físi-cos a fim de emagrecer, certas de que desse modo serão aceitas. Assim, desenvolvem a anorexia, que é a recusa reiterada de ingerir alimentos. Ou comem e rejeitam o alimento em seguida, caracterizando a bulimia.

Importante alerta feito na publicação “Por que a publicidade faz mal para as crianças” do projeto Criança e Consumo:

O bombardeio das publicidades é ambíguo: tanto incentiva a

comer quanto condena quem não é magro e esbelto ao enalte-

Page 105: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

105

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

cer essas características nos personagens das publicidades. Isso

confunde a criança, porque a infância e a adolescência são fases

de construção da personalidade e, portanto, de muitos questio-

namentos. Nesse período da vida, as crianças e os adolescentes

tendem a seguir o padrão de comportamento de seus grupos

ou daqueles dos quais gostariam de fazer parte. (INSTITUTO

ALANA, 2014)

O assédio consumista implanta nas crianças e adolescentes um sentimento de insatisfação contínua, ora induzindo-as a ingerir ilimi-tadamente produtos calóricos, ora apresentando a magreza como pa-drão de beleza. As indústrias de alimentos focam nas crianças e nos adolescentes porque são pessoas que estão formando seus padrões de consumo, seus estilos de vida e seus hábitos alimentares. Eles são extremamente influenciáveis, também devido ao processo de forma-ção da individualidade. A publicidade não tem qualquer interesse em ensinar os pequenos a apreciar os alimentos naturais e saudáveis.

3.2 Erotização precoce

A base para uma vida adulta saudável é uma infância preservada e cuidada. A criança aprende e exercita sua criatividade através das brincadeiras, é de forma lúdica que vai constituindo sua personalida-de.. Ocorre que, atualmente, as crianças querem deixar de ser reco-nhecida como criança cada vez mais cedo.

Um fator propulsor desse encurtamento da infância é a publici-dade. Vejamos as palavras de Ivone Maria dos Santos acerca da influ-ência da publicidade nesse fenômeno de erotização precoce:

Algumas campanhas publicitárias estimulam de forma precoce

a erotização infantil; programas de televisão exploram a sexua-

lidade das crianças através de concursos de danças com músi-

Page 106: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

106 Joana Angélica Carregosa Silva

cas e coreografias insinuantes, apresentadoras de programas

posam nuas para revistas, maquiagens para crianças estão cada

vez mais sofisticadas, bonecas com corpos magros, seios gran-

des e muitas trocas de roupas são vendidas para qualquer faixa

etária, revistas exploram os corpos das crianças com roupas e

acessórios que se adequariam ao público adulto, entre outras

inúmeras situações. (SANTOS, 2010)

Ao ingressar prematuramente no mundo adulto, com o corpo e a mente ainda em formação, a criança, ou mesmo o pré-adolescente, não tem estrutura física e psicológica formada para defender seus di-reitos, controlar seus impulsos, reivindicar respeito e, muito menos, identificar em si um desejo genuíno de relacionar-se sexualmente. Portanto, ao induzir as crianças a desejarem o que nem sabem se de-sejariam e a adotarem valores distorcidos e artificiais, a publicidade atropela a infância, contribuindo para mudanças no curso natural do desenvolvimento infantil.

A publicidade que explora a erotização na infância pode resultar em diversos males, tais como: exploração sexual infantil, gravidez precoce, violência, mercantilismo sexual e a perda da autoestima.

Esse adiantamento da fase adulta desvaloriza a infância, mas é uma realidade. O que se observa são crianças pulando etapas do seu crescimento e muitas vezes esse processo é incentivado e reforçado, de forma inconsciente ou não, pela família, pela escola e pela so-ciedade. Quando um adulto aplaude um comportamento precoce, a criança entende que o desejo dele é vê-la adulta o quanto antes.

3.3 Estresse familiar

A publicidade tem como grande artifício veicular mensagens em que pais ou responsáveis demonstram seu amor pelos filhos por meio da compra de bens materiais, distorcendo os valores da sociedade e

Page 107: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

107

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

levando uma situação de estresse para o ambiente familiar. Além dos danos psicológicos, trazidos por comerciais que exibem a falsa ideia de famílias sempre perfeitas, quando na realidade todas as famílias enfrentam problemas em vários momentos.

Os pais se sentem pressionados pela chantagem dos filhos a com-prar os produtos anunciados durante a programação infantil. A pu-blicidade incentiva as crianças a manipularem seus pais, a insistirem para conseguir o que querem e rejeitar o “não”.

De modo antiético, a publicidade rivaliza com os pais na educa-ção de seus filhos, pois instiga a criança a suplicar pelos produtos, colocando os pais ou responsáveis na situação espinhosa de ter que lhes dizer “não” inúmeras vezes. Oportuno destacar a visão do publi-citário Mc Neal em relação ao tema:

Como consequência, podem produzir-se conflitos entre proge-

nitor e filho, que adotam diferentes formas. Fazem rabugices nos

locais de venda, ficam rígidos, prendem a respiração, choram,

ameaçam e atiram coisas; tudo pode acontecer, humilhar os

pais e ‘fazê-los envelhecer mais rápido’. Os pais que não podem

gastar para satisfazer a maior parte dos pedidos das crianças ou

aqueles que acreditam firmemente que são eles e não o filho ou

o vendedor quem decide o que se vai comprar, podem chegar

a pagar um preço alto em confusão, frustração ou enjoo. [...] é

possível que as relações entre pais e filhos fiquem lesionadas.

(MCNEAL apud VALOIS, 2013, p.63)

Dessa forma, os pais, temendo ser considerados insensíveis, se intimidam em impor limites aos seus filhos. Por isso, eles acabam se sentindo culpados por privarem os filhos de tantos desejos disfarça-dos de necessidades e muitas vezes acabam cedendo aos apelos das crianças.

Page 108: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

108 Joana Angélica Carregosa Silva

4. RESOLUÇÃO Nº 163/14 DO CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CONANDA

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) é um órgão colegiado permanente de caráter deliberativo e composição paritária, previsto no artigo 88 da lei no 8.069/90 – Es-tatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e integra a estrutura bási-ca da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). É atuante na criação e fiscalização de políticas públicas para menores, também controlando o cumprimento dos dispositivos presentes no ECA.

Em 13 de março de 2014, o Conanda aprovou a Resolução nº 163, sendo esta publicada no Diário Oficial da União em 04 de Abril de 2014. A aludida resolução dispõe “sobre a abusividade do direciona-mento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente”.

Vejamos as técnicas consideradas práticas abusivas pela mencio-nada Resolução:

Art. 2º Considera-se abusiva, em razão da política nacional

de atendimento da criança e do adolescente, a prática do

direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica

à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de

qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos

seguintes aspectos:

I - linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;

II - trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes

de criança;

III - representação de criança;

IV - pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;

V - personagens ou apresentadores infantis;

VI - desenho animado ou de animação;

Page 109: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

109

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

VII - bonecos ou similares;

VIII - promoção com distribuição de prêmios ou de brindes

colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e

IX - promoção com competições ou jogos com apelo ao público

infantil.

Não obstante a regulamentação, alguns consideram que a resolução 163/14 não é obrigatória, pois afirmam que a norma é apenas uma recomendação e o Conanda não tem a competência para regulamentar a publicidade, visto que esta competência não lhe foi confiada pela Constituição Federal de 1988. Vejamos a opinião de Nelson Nery Júnior:

A Resolução n.º 163/2014 editada pelo CONANDA impõe sérias

restrições à publicidade voltada ao público infantil que, na

prática, torna abusiva e, portanto, proibida qualquer comunicação

comercial voltada para crianças, independentemente do horário

de divulgação e do veículo de comunicação, inclusive espaços

públicos, eventos e internet. Sob o pretexto de regulamentação

destinada à proteção do público infantil, o CONANDA apresenta

normatização completamente contrária ao ordenamento jurídico

brasileiro. Em primeiro lugar, o Conselho ofende ao princípio da

legalidade, tendo em vista que a Constituição Federal determina

que qualquer regulamentação sobre publicidade deve ser

realizada por lei federal e não por resolução. Em segundo lugar,

a proibição, em abstrato, da publicidade infantil caracteriza

violação aos direitos constitucionais fundamentais de livre

iniciativa, de liberdade de expressão e de criação e o direito à

informação, ou seja, o direito de todos, - inclusive das crianças

como previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente -, de

prestar informações e de ser informado sobre qualquer fato ou

assunto. (NERY JÚNIOR, 2014).

Page 110: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

110 Joana Angélica Carregosa Silva

Por consequência, está em trâmite na Câmara dos Deputados Pro-jeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, de autoria do deputado Milton Monti (PR-SP), que tenta tornar sem efeito a Resolução do Conselho, sob o argumento de que seria inconstitucional, pois afrontaria o artigo 22 da CF, que aponta a União como competente para legislar sobre o assunto.

No entanto, vários juristas defendem a constitucionalidade da Resolução nº 163/14 do Conanda, a exemplo do Prof. Bruno Miragem, que emitiu parecer acerca do assunto:

Percebe-se, a meu ver, que não se tem demonstrado que a Reso-

lução n. 163, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e

do Adolescente – CONANDA – tendo sido editada por órgão

competente, regulamentando limites à atividade publicitá-

ria e negocial definidos em lei, extravasa a exigência de pro-

porcionalidade que se exige da norma limitadora. Ademais,

considerando que os critérios que pronuncia conformam o

sentido que a lei confere à liberdade de iniciativa econômica

e de expressão publicitária, cuja conciliação com a defesa do

consumidor e dos direitos da criança e do adolescente é impo-

sitivo constitucional.

Desse modo, respondendo objetivamente à questão oferecida

pelo Instituto ALANA, entendo que é constitucional a Reso-

lução n. 163, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança

e do Adolescente, que definem critérios para a interpretação

e aplicação dos arts. 37, §2º e 39, IV, do Código de Defesa do

Consumidor, em vista da proteção do interesse da criança e

do adolescente, a serem assegurados com absoluta prioridade,

nos termos do art. 227, da Constituição de 1988. (MIRAGEM,

2014b, p.47)

No mesmo sentido, a opinião de Dalmo Dallari:

Page 111: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

111

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

O controle da publicidade dirigida à criança vincula-se à questão

da liberdade de comércio e não à liberdade de expressão, que

é um direito fundamental da pessoa humana. Essa distinção é

essencial, pois retira a base jurídica dos que, interessados priori-

tariamente no comércio, tentam sustentar a alegação de incons-

titucionalidade das normas legais e regulamentares que fixam

diretrizes para a publicidade dirigida à criança. (DALLARI, 2014).

Assim, ressaltamos que é majoritário o entendimento pela força vinculativa da Resolução, principalmente por não ser de hoje as ten-tativas de regularização da publicidade e propaganda infanto-juvenil.

Segundo a própria lei que o criou, o Conanda possui competên-cia e legitimidade para “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução” e, assim sendo, as Resoluções editadas pelo Conselho possuem, de acordo com publicação veiculada pelo Projeto Criança e Consumo, “(...) força normativa e vinculante. Assim, seu cumprimento integral é obrigatório”. (INSTITUTO ALANA, 2014)

5. CONCLUSÃO

A publicidade, ponto especial de estudo desse trabalho, é um tipo de comunicação que se propõe a vender uma imagem, um serviço ou um produto, com o fito de obter lucro. Como ela é um meio de persuasão, que cria necessidades, muitas vezes, que antes não existiam, e ainda in-cute valores sociais e morais, tem grande relevância para o Direito.

Além da massiva publicidade de brinquedos, materiais escolares, guloseimas e outros atrativos infantis, os publicitários também estão se dedicando em colocar elementos do mundo infantil em anúncios de produtos voltados exclusivamente para adultos, pois pesquisas de-monstram que as crianças tem grande poder de decisão nas compras dos pais.

Page 112: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

112 Joana Angélica Carregosa Silva

Neste contexto, foi corroborada a ideia da forte influência que a publicidade exerce nas crianças. No afã de formar novos consumido-res, a publicidade reduz a infância sem medir as consequências deste ato. Desta influência que a publicidade opera nas crianças, surgem as trágicas consequências: obesidade e transtornos alimentares, eroti-zação precoce, estresse familiar, dentre outras.

Por conseguinte, buscou-se demarcar a legalidade e constitucio-nalidade da Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente, editada em março de 2014. Restou de-monstrado que, referida resolução, além de essencial para a efetiva-ção dos direitos das crianças e adolescentes, é deveras importante para garantir que estes não sofrerão abusos que possam vir a influen-ciar diretamente no seu discernimento.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

______. Vida para consumo. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 07 de dezembro de 2016.

______. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L8069Compilado.htm >. Acesso em 07 de dezembro de 2016.

Page 113: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

113

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

______. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planal-to.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em 07 de dezembro de 2016.

CADEMARTORI, Lígia. Criança e quadrinhos. In: Magalhães, Cláu-dio. A Criança e a Produção Cultural – Do brinquedo à literatura. Por-to Alegre: Mercado Aberto, 2003.

CARDOSO, Letícia de Oliveira. Sobrepeso e obesidade atingem crianças cada vez mais cedo. Disponível em: <http://epoca.globo.com/ vida/no-ticia/2015/01/ bsobrepeso-e-obesidadeb-atingem-criancas-e-adolescen-tes- cada-vez-mais-cedo.html>. Acesso em 09 de dezembro de 2016.

CONANDA. Resolução 163, de 13 de março de 2014. Dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Disponível em < http://dh.sdh.gov.br/download/resolucoes-conanda/res-163.pdf>. Acesso em 07 de dezembro de 2016.

CONAR. Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Dis-ponível em <.http://www.conar.org.br/codigo/codigo.php>. Acesso em 07 de dezembro de 2016.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Publicidade danosa à criança. Disponí-vel em < http://www.jb.com.br/dalmo-dallari/noticias/2014/04/26/ publicidade-danosa-a-crianca/>. Acesso em 09 de dezembro de 2016.

FEDERIGHI, Suzana Maria Pimenta Catta Preta. Publicidade abusiva – Incitação à violência. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.

IGLESIAS, Fabio et al. Publicidade infantil: uma análise de táticas persuasivas na TV aberta. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 25, n. 1,

Page 114: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

114 Joana Angélica Carregosa Silva

2013 . Disponível em:<http://www.scielo.br/ scielo.php?script= sci_arttext&pid=S010271822013000100015&lng=en&nrm=iso>. Aces-so em 07 de dezembro de 2016.

INSTITUTO ALANA. Entenda a resolução que define a abusividade da publicidade infantil. Disponível em < http://criancaeconsumo.org.br/noticias/entenda-a-resolucao-que-define-a-abusividade-da-publi-cidade-infantil/>. Acesso em 07 de dezembro de 2016.

______. Por que a publicidade faz mal para as crianças. Disponível em:< http://criancaeconsumo.org.br /wp-content/uploads/2014/02/ por-que-a-publicidade-faz-mal-para-as-criancas.pdf> Acesso em 07 de dezembro de 2016.

KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do consumidor. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

LINN, Susan. Crianças do Consumo: a infância roubada. São Paulo: Instituto Alana, 2006.

MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor: fundamentos do direi-to do consumidor; direito material e processual do consumido; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consu-midor. 5. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos tribu-nais, 2014a.

______. A Constitucionalidade da Resolução 163 do Conselho Nacio-nal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Parecer. São Paulo: Alana, 2014b.

MUITO ALÉM DO PESO. Direção: Estela Renner. Produção: Marcos Nisti. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2012. (84 min)

Page 115: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

115

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADE

NERY JÚNIOR, Nelson. A inconstitucionalidade da resolução Conan-da n.º 163/2014 que dispõe sobre publicidade infantil. Disponível em <http://neryadvogados.com.br/a-inconstitucionalidade- da-resolu-cao-conanda-n-o-1632014-que-dispoe-sobre -publicidade-infantil/. Acesso em 09 de dezembro de 2016

NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

SANTOS, Andréia Mendes dos. Sociedade do consumo: criança e pro-paganda, uma relação que dá peso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.

SANTOS, Ivone Maria dos. A cultura do consumo e a erotização na infância. Revista Extraprensa, América do Norte, 2, ago. 2010. Dis-ponível em: http://www.usp.br/celacc/ojs/ index.php/extraprensa/arti-cle/view/epx4-a2. Acesso em: 07 de dezembro de 2016.

VALOIS, Bertha Lilia e Silva. Publicidade dirigida à criança: neces-sidade de uma regulamentação específica. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Católica de Pernambuco, 2013.

Page 116: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 117: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

Lizandra Gardênia dos Santos

RESUMO1

O artigo trata de tema relevante no Direito Eleitoral brasileiro qual seja matéria que pode restringir direitos políticos do cidadão. A discussão a respeito da inelegibili-dade reflexa por condenação em captação ilícita de sufrágio é muito importante por tratar de dispositivo legal que não esclarece se o agente que apenas se beneficiou do ato ilícito, deve ou não sofrer além das sanções previstas no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997, a inelegibilidade prescrita no art. 1º, I, “j”, da Lei nº64/1990, com a re-dação que lhe fora dada pela lei nº 135/2010, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, tendo em vista a unidade da chapa, o que traz a necessidade do litis-consórcio passivo quando do ajuizamento da AIJE, mesmo não tendo concorrendo ativamente para o cometimento da infração eleitoral.Palavras chave: Inelegibilidade Reflexa, Lei da Ficha que Limpa, Eleições, Captação Ilícita de Sufrágio, Ação de Investigação Judicial Eleitoral, Poder Executivo, Direito Eleitoral.

Técnica do Ministério Público do Estado de Sergipe, bacharelanda do Curso de Direito na Faculdade Estácio de Sá (FaSe), formada no Curso Técnico em Segurança do Trabalho pelo IFS-SE, Graduada em Gestão em Turismo pela Universidade Tiradentes - Sergipe.

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 117-132

Page 118: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

118 Lizandra Gardênia dos Santos

1. INTRODUÇÃO

Este artigo aborda tema relevante no Direito Eleitoral brasileiro por se tratar de matéria que pode restringir direitos políticos do ci-dadão, direitos estes que afetam a vida da pessoa nas mais diversas áreas. A inelegibilidade reflexa por condenação em captação ilícita de sufrágio é bastante discutida entre a doutrina e divergente na juris-prudência, por tratar de dispositivo legal que não esclarece se o agen-te que apenas se beneficiou do ato de ilícito, tendo em visa a unidade da chapa, o que traz a necessidade do litisconsórcio passivo quando do ajuizamento da AIJE, mesmo não tendo concorrendo ativamente para o cometimento da infração eleitoral, deve ou não sofrer além das sanções previstas no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997, a inelegibilidade prescrita no art. 1º, I, “j”, da Lei nº64/1990, com a redação que lhe fora dada pela lei nº 135/2010, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa.

O objetivo deste escrito é esclarecer em que se consiste a inelegi-bilidade, a captação ilícita de votos e, em que hipóteses a condenação pelo ato de captação ilícita de sufrágio deve acarretar a inelegibilida-de. A Constituição Federal de 1988 aborda as condições de inelegibi-lidade, porém a partir do rol ali elencado deve-se fazer uma análise dos casos em que a mesma deve se apresentar como uma consequên-cia de ordem objetiva ou subjetiva, bem como se a mesma se apresen-ta como uma sanção ou não.

2. INELEGIBILIDADE

Inicialmente é importante que se conceitue inelegibilidade por se tratar de matéria de grande divergência doutrinária. Sobre o conteúdo deste instituto do direito eleitoral não há consenso, nem sobre a sua natureza jurídica, o que faz com que a discussão sobre a Lei Comple-mentar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) seja ainda mais acirrada.

Page 119: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

119

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

Preleciona Rodrigo López Zilio que:

Conceituar inelegibilidade e mensurar seus efeitos jurídicos

na seara eleitoral, sem dúvida, constitui-se em um dos maiores

desafios para os aplicadores do direito. Com efeito, por con-

sistir em severa restrição a exercício de direito fundamental, a conceituação de inelegibilidade - afastando-a de institutos simi-

lares por seus efeitos, mas distintos ontologicamente – implica

dificuldade diuturna, verificando-se tratamentos contraditórios

por parte da doutrina e jurisprudência especializada. (ZILIO

2012, p.142)

A inelegibilidade decorre de situações previstas em lei que, uma vez incidentes, restringem os direitos políticos. A capacidade eleito-ral passiva é um dos principais dentre os direitos políticos tendo em vista que dela decorre a aptidão para receber votos. Não basta con-ceituar a inelegibilidade ou ilegibilidade como um fator que impede a elegibilidade, pois ela está condicionada a determinados fatos pre-vistos na Constituição Federal ou em Lei Complementar. O inelegível, embora possa votar, não poderá gozar do direito subjetivo público de disputar cargo eletivo, sendo que diante de tal fenômeno podemos constatar que o ponto principal da inelegibilidade é o impedimento ao exercício da capacidade eleitoral passiva, o que não minimiza os outros elementos igualmente necessários para a caracterização fiel da inelegibilidade segundo os pilares do Direito Eleitoral Brasileiro.

Faz-se importante diferenciar as condições de elegibilidade das hipóteses de inelegibilidade já que estas são notadamente diferen-ciadas pela doutrina e jurisprudência. A primeira, as condições de elegibilidade, apesar de previstas na Constituição Federal, pode ser regulamentada em lei ordinária, já a segunda, as condições de ine-legibilidade, são previstas apenas na Carta Magna e por lei comple-mentar. As condições de inelegibilidade trazem consigo a existência

Page 120: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

120 Lizandra Gardênia dos Santos

de proibição que impossibilita o pleito ao mandato eletivo. Já as con-dições de elegibilidade têm como característica inerente a implemen-tação dos requisitos que fazem surgir o direito subjetivo de se pleitear um cargo eletivo.

A Lei Complementar 135/2010 trouxe a edição de ato normativo que disciplinou algumas situações em que o cidadão não pode pos-tular mandato eletivo em razão de determinados fatores da sua vida pregressa. Há ainda muita discordância quanto à constitucionalidade de dispositivos trazidos por essa lei, eis que a mesma seguiu uma linha de entendimento firmada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que a presunção da inocência deve estar restrita ao campo penal, admitindo então que os impedimentos abranjam situações pro-cessuais ainda não consolidadas, ou seja, que ainda não transitaram em julgada.

A disciplina das inelegibilidades no direito eleitoral brasi-

leiro sofreu profundas alterações com a edição da Lei comple-

mentar nº 135, de 4 de Junho de 2010. O Diploma é fruto da

proposição de Iniciativa Popular Apelidada de Ficha Limpa,

a qual estimulou o Congresso Nacional e purgar mora que

durava mais de quinze anos, desde quando editada a Emenda

de Revisão nº 4/1994, responsável por alterar a redação do

art. 14, § 9º da Constituição Federal, nele fazendo incluir os

valores da probidade administrativa e da moralidade para o

exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candi-

dato como aptos a fundamentar a criação de impedimentos à

disputa de cargos públicos eletivos. (OLIVEIRA, et al., 2010,

p.197-198)

Como já afirmado acima, algumas inovações foram trazidas com a edição da Lei de Ficha Lima, sendo que uma das principais está pre-vista na alínea “j”, do art. 1º, inciso I da Lei Complementar nº64/1990:

Page 121: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

121

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

Art. 1º São inelegíveis:

I – Para qualquer cargo:

j) Os que forem condenados, em decisão transitada em julgado

ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por

corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação,

captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por

conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais

que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo

de 8 (oito) anos a contar da eleição. (LC nº 64/90)

Nestes casos ao impedir as candidaturas, a lei não tem a intenção de afirmar culpa ou impor punição antecipada, mas sim tem o cuida-do de resguardar a moralidade para o exercício do mandato, fazendo--se importante observar que o dispositivo não fala em impedir candi-daturas somente com a instauração de processos. Pelo contrário, ele deixa claro que é necessária uma condenação transita em julgado, ou uma decisão condenatória prolatada por órgãos judiciais colegiados.

É importante ressaltar que nem toda inelegibilidade advém de um ato ilícito, sendo um exemplo de inelegibilidade que não se con-figura como sanção aquela prevista no art. 14, § 7º da Constituição Federal, a qual trata das pessoas afetadas devido a vínculos pessoais com o mandatário.

Diz o dispositivo:

§7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o

cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo

grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador

de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de

quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores

ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à

reeleição. (Art. 14, §7º, CF/88)

Page 122: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

122 Lizandra Gardênia dos Santos

3. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO

No ordenamento jurídico brasileiro a captação ilícita de sufrágio é proibida desde de 1932, quando o decreto nº 21.076 daquele ano atribuiu pena de seis meses a dois anos para quem oferecesse, prome-tesse, solicitasse, exigisse ou recebesse dinheiro, dádiva ou qualquer vantagem para obter ou dar voto, para conseguir abstenção, ou para abster-se de voto. O art. 41-A da Lei nº 9.504 de 1997 mantém o en-tendimento pela ilicitude de tal prática, conforme se pode observar:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos,

constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato

doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim

de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer

natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro

da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de

multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do

diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei

Complementar no 64, de 18 de maio de 1990. (Incluído pela Lei

nº 9.840, de 1999)

§ 1o Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário

o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo,

consistente no especial fim de agir. (Incluído pela Lei nº 12.034,

de 2009)

§ 2o As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem

praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim

de obter-lhe o voto.

(Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 3o A representação contra as condutas vedadas no caput

poderá ser ajuizada até a data da diplomação. (Incluído pela Lei

nº 12.034, de 2009)

§ 4o O prazo de recurso contra decisões proferidas com base

Page 123: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

123

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação

do julgamento no Diário Oficial. (Incluído pela Lei nº 12.034,

de 2009)

O legislador tenta com este dispositivo evitar que o convenci-mento do eleitorado seja feito por meio de técnicas e formas que venham a desnivelar o equilíbrio da disputa entre os candidatos, ou seja, o ordenamento jurídico não admite o uso abusivo do poder econômico ou político, o uso indevido dos meios de comunicação social, entre outras condutas consideradas ilícitas com vistas à ob-tenção do voto.

A vedação da captação ilícita de sufrágio é ponto importante na consolidação da democracia brasileira, eis que é um dos institutos que garantem o exercício livre do voto. Tal instituto foi acrescenta-do à Lei nº 9.504/1997 pela Lei nº 9.840/99, sendo este último um diploma cuja iniciativa foi popular, tendo sido colhidas mais de um milhão de assinaturas de eleitores de todo o país, tendo o Congresso Nacional aprovado o projeto em 28 de setembro de 1999, daí surgin-do a Lei nº 9.840.

O texto do art.41-A da Lei 9.504/97 deixa bem claro o conceito de captação ilícita de sufrágio que também é definida por Rodrigo López Zilio como: “umas das facetas da corrupção eleitoral e pode ser resu-mida como ato de compra de votos. Tratando-se de ato de corrupção necessariamente se caracteriza como uma relação bilateral e persona-lizada entre o corruptor e o corrompido”. (ZILIO 2012, p. 490)

Faz-se relevante frisar que o autor dessa prática deve ser o candi-dato, ainda que de forma não direta, isto é, de forma presumida, o que se dá nos casos em que o postulante não age, mas tem conhecimento e aprova a prática realizada por outrem com o mesmo objetivo.

A vantagem a ser oferecida ao eleitor deve ser específica, logo as promessas genéricas, frequentes nas campanhas eleitorais e que beneficiam um coletivo de pessoas enquanto uma comunidade em

Page 124: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

124 Lizandra Gardênia dos Santos

geral não são consideradas ilícitas. Com isso se entende que para a efetivação da captação ilícita de sufrágio a vantagem oferecida não pode ser coletiva. Em que pese hajam doações coletivas feitas por candidatos durante as campanhas, estas não devem ser consideradas ilícitas, conforme o acordão nº 19.176 do TSE do relator Min. Sepúl-veda deixa isso bem esclarecido:

II – Captação ilícita de sufrágios (Lei no 9.504/97, art. 41-A):

não-caracterização. Não configura a captação ilícita de sufrá-

gios, objeto do art. 41-A da Lei no 9.504/97, o fato, documen-

tado no protocolo de intenções questionado no caso, firmado

entre os representantes de diversas igrejas de determinado

município travestidos de membros do conselho ético de um

partido político e certos candidatos a prefeito e vice-prefeito

que formalmente se comprometem, se eleitos, ao atendimento

de reivindicações imputadas à comunidade evangélica e expli-

citadas no instrumento, entre elas, a doação de um imóvel do

patrimônio municipal, se não voltadas as promessas a satisfazer

interesses patrimoniais privados. (TSE, acordão 19.176 – Rel.

Min. Sepúlveda, 16.10.2001)

É possível que em uma primeira leitura se confundam os artigos 41-A da Lei nº 9.504/97 e o art.299 da Lei nº 4737/65 (Código Eleito-ra), que versa sobre a corrupção eleitoral, prescrevendo este último dispositivo a conduta criminosa consistente em: “dar, oferecer, solici-tar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.”. Ambos dispositivos tutelam o direito à liberdade de voto, o que pode fazer com que eles se confundam.

Porém o art. 299 do Código Eleitoral pune também aquele que aceita as vantagens oferecidas pelo candidato em troca de voto. Logo

Page 125: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

125

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

a corrupção eleitoral decorre de comunhão entre duas partes, no in-tuito de que uma delas vote no candidato, podendo este ou não figu-rar no outro polo da negociação. Uma dessemelhança importante de ressaltar é que a captação ilícita de sufrágio pune nos âmbitos civil e eleitoral, já a corrupção eleitoral se dá na esfera criminal.

A captação ilícita de sufrágio conforme já ressaltado tem previsão no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997, trazendo como sanções imediatas a multa e a cassação do registro ou diploma, conforme a época em que a demanda seja julgada; sendo que a condenação em tal dispositivo traz como consequência a incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “j” da lei complementar nº 64/1990, devendo tal espécie de ilícito ser apurado mediante o procedimento previsto no art. 22 da Lei de Inelegibilidades, conforme prescrito no caput do art. 41-A da Lei de Eleições.

4. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL POR CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO NOS CASOS DE CAR-GOS PARA O EXECUTIVO

O rito da Ação de Investigação Judicial Eleitoral é usado para: a) apurar condutas de abuso das mais diversas formas de poder

(político, econômico, etc), com fundamento no art. 1º, I, “d” e “h”, bem como nos arts. 19 e 22, todos da Lei Complementar nº 64/1990;

b) a captação e gastos ilícitos de recursos para fins eleitorais, com fundamento no art. 30-A da Lei nº 9.504/1997 e art.1º, I, “j” da Lei Complementar 64/1990;

c) a captação ilícita de sufrágio, com fundamento no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997 e art. 1º, I, “j” da Lei Complementar 64/1990;

d) as práticas de condutas vedadas, com fundamento nos arts. 73, 74, 75 e 77 da Lei nº 9.504/1997 e art. 1º, I, “j” da Lei Comple-mentar 64/1990.

Page 126: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

126 Lizandra Gardênia dos Santos

Esclarece José Jairo Gomes:

Por certo, a identidade de rito – ou o uso literal da terminologia

legal – tem ensejado certa confusão linguística na identidade

dessas ações. Alguns empregam a expressão Ação de Investiga-

ção Judicial Eleitoral (AIJE) somente para a demanda que tenha

por objeto abuso de poder previsto na Lei de Inelegibilidades,

reservando o termo representação para as demais ações pre-

vistas na Lei nº 9504/97. Outros usam aquela expressão indi-

ferentemente para todas essas ações, já que por ela apenas é

identificado o tipo de procedimento a ser observado e sua loca-

lização no sistema jurídico eleitoral. Por questão de método e

padronização de linguagem, esta obra segue a última orienta-

ção. Assim, Ação de Investigação Judicial (AIJE), aqui, identi-

fica o rito da aludidas ações. (GOMES, 2011)

Sendo que o foco do presente estudo são as consequências em termos de inelegibilidades em razão da AIJE fundamentadas no art. 41-A da Lei nº 9.504/1997. Antes tratada apenas pelo art. 237 do Códi-go Eleitoral, a inelegibilidade ganhou força com a Lei complementar 64/90 tratando sobre a “interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto”. O art. 19 da mesma Lei Complementar diz: “As transgressões perti-nentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas me-diante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.”

Portanto caso haja o uso indevido, desvio ou abuso do poder eco-nômico ou político, bem como a prática de alguns ilícitos eleitorais pre-vistos na Lei Geral de Eleições, a Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) é o instrumento proficiente à apuração da conduta e aplicação das san-ções previstas na Lei Complementar nº 64/90 e na Lei nº 9.504/97.

Page 127: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

127

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

Apesar de ser intitulada de investigação, imprime-se de natureza jurisdicional, pois em seu trâmite se verifica o exercício do contra-ditório e da ampla defesa, devendo ser ressaltado que o TSE já se posicionou neste sentido afirmando que a AIJE é “verdadeira ação”, com caráter sancionatório desconstitutivo. Partindo deste princípio, a representação (petição inicial) a ser dirigida ao Corregedor ou ao Juiz Eleitoral, nestas ações eleitorais, subsidiariamente terá de atender aos requisitos da lei processual civil quanto aos requisitos da petição inicial (art. 319), bem como deverá ser protocolada por advogado re-gularmente constituído, ou por Membro do Ministério Público com funções eleitorais.

Versa Zilio sobre a AIJE:

Tendo por base o princípio nuclear da normalidade e legitimi-

dade do pleito, por força de opção do legislador constituinte (art.

14, §9º, da CF), veio a lume, a partir da edição da LC nº 64/90,

a ação de investigação judicial eleitoral. Neste diapasão, o art.

22 da LC nº64/90 prevê ação de cunho material e processual

que visa, basicamente combater a todo e qualquer ato de abuso

de poder na esfera eleitoral, ao estabelecer que “qualquer par-

tido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleito-

ral poderá representar à Justiça Eleitoral” e “pedir abertura de

Investigação Judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso

de poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização

indevida de veículos ou meios de comunicação social, em bene-

fício de candidato ou de partido político”. (ZILIO 2012, p. 439)

Apesar da obscura redação do art. 19 da LC nº 64/90 é importante ressaltar que a autoridade julgadora não pode ex officio iniciar a AIJE, sendo que tal norma tem a intenção apenas de confirmar a regra con-tida no art. 22 da mesma lei, evidenciando que a referida ação será direcionada ao Corregedor-Geral e Corregedor Regional Eleitoral.

Page 128: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

128 Lizandra Gardênia dos Santos

São ativamente legitimados para ajuizar a AIJE por Captação Ilí-cita de Sufrágio os partidos políticos, coligação, candidato ou Minis-tério Público Eleitoral.

Já os legitimados passivos para responder à AIJE são os candida-tos e terceiros, inclusive pessoa jurídica, tendo em vista que a lei pre-vê o aforamento em face de todos “quantos hajam contribuído para a pratica do ato” (art. 22, XIV, da LC nº 64/90).

O TSE assentou que o art. 22 da LC nº 64/90 não exige a formação

de litisconsórcio passivo necessário entre o representado e

aqueles que contribuíram para o abuso (Recurso Especial

Eleitoral nº 35.980 – Rel. Marcelo Ribeiro – j.23.02.2010) e nem

entre o representado e o partido ao qual ele é filiado (Agravo

Regimental no Recurso Ordinário nº 2.365 – Rel. Arnaldo

Versiani – j. 01.12.2009). In casu, a intervenção do partido

ou coligação pode ocorrer na forma de assistência simples.

No entanto, face ao princípio da indivisibilidade de chapa,

“o vice deve figurar no polo passivo das demandas em que se

postula a cassação do registro, diploma ou mandato, uma vez

que há litisconsórcio necessário entre os integrantes da chapa

majoritária, considerada a possibilidade de o vice ser afetado

pela eficácia da decisão” (TSE – Recurso Especial Eleitoral nº

35.831 – Rel. Arnaldo Versiani – j. 03.12.2009).

Ainda no que tange à legitimidade passiva, é de se observar que os candidatos ao Poder Executivo formam uma chapa única, motivo por que a doutrina controverte acerca da necessidade ou no não da formação do litisconsórcio entre os componentes da chapa.

No polo passivo da relação processual pode figurar qualquer

pessoa, física ou jurídica, ainda que não seja candidata. É que

o art. 41- A prevê a multa como sanção autônoma, cuja aplica-

Page 129: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

129

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

ção independe de o requerido ser candidato. Quanto à pessoa

jurídica, não é difícil imaginar situação em que partido político,

por seu diretório, participe da ação ilícita levada a efeito pelo

candidato. Nesse caso haverá solidariedade na responsabiliza-

ção. Conforme salientado anteriormente, nas eleições majori-

tárias, impõe-se a formação de litisconsórcio entre o titular e o

vice. Trata-se de litisconsórcio unitário necessário.

Note-se, porém, que só há razoabilidade em se exigir a formação

de litisconsórcio passivo necessário na ação em apreço quando

houver pedido de cassação de registro de candidatura ou de

diploma dos integrantes da chapa, eis que o abuso de poder a

todos aproveita (ou seja, beneficia a chapa), não, porém, quanto

ao pedido de multa, pois essa sanção tem caráter pessoal; quanto

a ela, o litisconsórcio é simples e facultativo. (GOMES, 2011)

No sentido da necessidade de formação do litisconsórcio, vem se posicionando o TSE, conforme se pode depreender dos seguintes julgados:

Ação de investigação judicial eleitoral julgada parcialmente

procedente. Captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei n.

9.504/97). Cassação dos diplomas do Prefeito e da Vice-Prefeita

e aplicação de multa. Recurso especial não admitido. Embargos

de declaração opostos contra decisão monocrática em agravo de

instrumento. Pedido de reforma da decisão. Recebimento como

agravo regimental. Preliminar de existência de litisconsórcio

passivo necessário entre o autor da conduta e o beneficiário.

Rejeição. Precedentes. A formação do litisconsórcio passivo

necessário se dá quando houver previsão legal expressa ou, em

razão da natureza jurídica da ação, cada pessoa puder ser atin-

gida diretamente pela decisão judicial. O art. 22 da Lei Comple-

mentar n. 64/90 não exige a formação de litisconsórcio passivo

Page 130: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

130 Lizandra Gardênia dos Santos

necessário entre o beneficiado e aqueles que contribuíram para

a realização da conduta abusiva.

Mérito. Cassação com base no acervo fático-probatório

analisado pelas instâncias ordinárias. Impossibilidade de

rever essa conclusão em recurso especial (Súmula n. 279 do

Supremo Tribunal Federal). Precedentes. Agravo regimental

ao qual se nega provimento. (Agravo Regimental no Agravo de

Instrumento nº 11.834/MT

Relatora: Ministra Carmem Lúcia, Ementa: ELEIÇÕES 2008-

Informativo TSE - Ano XII – Nº 29)

Uma vez estabelecida a exigência de formação do litisconsórcio, é de se indagar se a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “j”, da Lei Complementar nº 64/90 incide pelo simples fato da condenação, ou se quanto à incidência desta inelegibilidade se faz necessária a com-provação da efetiva participação, ou ao menos ciência do candidato, da prática ilícita.

Tal indagação se justifica pelo fato de que, como se está diante de uma hipótese de litisconsórcio necessário, depreende-se que é pos-sível a ocorrência de situações em que a presença de um dos com-ponentes da chapa na ação seja obrigatória sem que o mesmo tenha participado da conduta ilícita na esfera do direito material. Ou seja, podemos cogitar de situações em que o candidato resta condenado por Captação Ilícita de Sufrágio sem que o mesmo tenha concorrido para a prática irregular.

Nesses casos, vê-se que mesmo sem o candidato ter concorrido para a prática do ato, o mesmo está sujeito às sanções de cassação do registro ou do diploma, eis que tais sanções se apresentam como de natureza objetiva, haja vista que em razão da unicidade da chapa o voto aproveita a todos os candidatos, ainda que não tenham praticado qualquer ilegalidade.

Page 131: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

131

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVO

5. CONCLUSÃO

Tendo em vista que a inelegibilidade cerceia o direito de receber votos, deve ser visto de maneira subjetiva, já que o litisconsórcio é formado por um mero rito processual. A inelegibilidade pode ter na-tureza inata ou de sanção então deve-se ter em mente que as deriva-das de sanções devem ter natureza subjetiva, e por esse motivo é que deve ser comprovada a prática do ato. Com isso a conduta descrita na Lei de Ficha Limpa deve ser vista de maneira restritiva. Partindo deste princípio o litisconsórcio não deve ser necessário.

Percebendo-se que na AIJE foi estabelecida a necessidade de forma-ção de litisconsórcio entre os candidatos da chapa do poder executivo, restando a possibilidade de uma condenação por exigência de ordem processual, e ainda levando em consideração a incidência do princípio da proporcionalidade é razoável o entendimento de que o dispositivo do art. 1º, inciso I, alínea “j” da Lei 64/1990, deve sofrer uma leitura restritiva no sentido de que não basta apenas a condenação para que se incida tal inelegibilidade, sendo que para a incidência da inelegibi-lidade além da sanção na AIJE deve restar comprovado naquela ação a participação do indivíduo na prática do ilícito eleitoral.

A proibição de concorrer a mandato eletivo pela compra deve ser fundada em provas robustas e incontestes, de acordo com entendimen-to jurisprudencial do TSE, dispensando-se exame da gravidade da con-duta ou mesmo da sua repercussão no resultado das eleições, bastan-do, para a cassação do mandato, que haja a compra de um único voto.

A inelegibilidade nos casos de condenação por captação ilícita de votos deve se limitar ao agente ativo no cometimento do crime, po-rém resguardando-se as demais punições, tendo em vista que os votos são direcionados à chapa e não ao candidato. A captação ilícita prevê penas de multa de mil a cinquenta mil UFIR, e cassação do registro ou do diploma, e estas sim devem ser aplicadas reflexamente ao can-didato que apenas se beneficiou com o crime praticado.

Page 132: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

132 Lizandra Gardênia dos Santos

REFERÊNCIAS

BARREIROS NETO, Jaime. Direito Eleitoral. 4. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.

CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p.440, p. 497 -498.

OLIVEIRA, Marcelo Roseno de. Ficha Limpa. 1. ed. Bauru: Editora Edipro, 2010, p. 197-198.

ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 3. ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2012, p. 142, p. 439.

SITEShttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp135.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htmhttp://www.tse.jus.br/http://boletimjuridico.publicacoesonline.com.br/wp-content/uplo-ads/2015/03/Quadro-comparativo-CPC-1973-x-CPC-2015.pdf.

Page 133: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

Cayo Rubens Castilhano Santos

RESUMO1

A saúde está inserida na órbita dos direitos sociais constitucionalmente garantidos, que consiste em um direito de todos e dever do Estado, devendo esse prover as condi-ções indispensáveis ao seu pleno exercício. Todavia, tal preceito não se enquadra na realidade presenciada pelos brasileiros, uma vez que o Estado não cumpre peremp-toriamente com sua atribuição, em virtude disso, as pessoas que possuem melhores condições econômicas aderem aos serviços de assistência médica oferecidos pelas operadoras de planos de saúde, com o intuito de obterem uma melhor qualidade de vida. Porém muitos consumidores aderem ao contrato de plano de saúde, que é uma espécie de contrato de adesão, sem conhecer as suas cláusulas, confiando nas empre-sas que as previamente elaboram, mas nem sempre essa confiança é correspondida, na medida em que, estipulam condições que oneram demasiadamente o consumidor, sendo essas consideradas abusivas. Para evitar o surgimento das cláusulas abusi-vas foi criado em 11 de setembro de 1990 o Código de Defesa do Consumidor, que consiste em um dos meios mais importantes de proteção contratual do consumidor e traz em sua composição normas de ordem pública, na qual, consideram nulas as cláusulas contratuais abusivas. Assim, o presente trabalho abordará sobre o contrato de adesão e suas especificidades, bem como as principais cláusulas abusivas encon-tradas nos contratos de planos de saúde.Palavras chave: Cláusulas abusivas. Consumidor. Contrato de adesão. Saúde.

Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes. Técnico do Ministério Público do Estado de Sergipe. Email:[email protected]

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 133-152

Page 134: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

134 Cayo Rubens Castilhano Santos

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 consagra a saúde como um direi-to fundamental e social, que deve ser garantido pelo Estado, a toda população. No entanto, a atuação do Estado visando garantir este di-reito para todos os cidadãos é ineficiente, o que faz com que as pes-soas busquem alternativas na pretensão de conquistar uma melhor qualidade de vida.

Todavia, muitos cidadãos aderem aos contratos de planos de saúde sem ao menos ter conhecimento de todas as suas cláusulas, confiando nas operadoras que previamente elaboram o instrumento contratual, porém nem sempre essa confiança é correspondida, visto que por possuir cláusulas constituídas por apenas uma das partes, na maior parte dos casos, as empresas estipulam cláusulas para seu benefício próprio, fato que fere a boa-fé e a equidade, sendo essas cláusulas consideradas abusivas.

Para controlar esses abusos, tem-se o Código de Defesa do Consu-midor, que consiste em um conjunto de normas que visam à proteção dos direitos dos consumidores, configurando-se assim como um ins-trumento importante na concretização da cidadania, a Lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde e o Código Civil de 2002.

Dessa maneira, este presente trabalho tem como enfoque principal as cláusulas abusivas que mais se encontram presentes nos contratos de planos de saúde, tidas como abusivas pela jurisprudência e doutrina.

2. CONTRATO DE ADESÃO

2.1 Breve Histórico

Primeiramente insta discorrer acerca da origem desse instituto que surgiu como um meio para tornar as negociações mais céleres,

Page 135: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

135

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

sem burocracia, para que dessa forma pudesse reduzir parte dos cus-tos. Diante da tradicional concepção de contrato, a relação contratual era basicamente formada entre o acordo de duas ou mais vontades, em posição igualitária, na conformidade da ordem jurídica, com obje-tivo de adquirir, modificar ou extinguir as relações jurídicas.

Com a Revolução Industrial e a massificação do consumo, surgiu à necessidade de o direito criar um instituto para promover a ade-quação à realidade. Daí o surgimento do contrato de adesão, como instrumento que tornasse as contratações mais rápidas para serem eficientes, atendendo um grande número de consumidores.

A nomenclatura contrato de adesão foi, primeiramente, assim de-nominada por Raymond Saleilles, jurista francês, no ano de 1901, quando adveio a chamada massificação das relações contratuais, con-siderando-se uma das maiores repercussões no mundo jurídico.

Sendo assim, pode-se concluir que, para a sociedade atual, o sur-gimento do contrato de adesão foi indispensável para o fomento das relações comerciais, sobretudo a de consumo.

2.2 Conceito e Requisitos do Contrato de Adesão

Ao contrário do contrato paritário em que as partes negociam mi-nuciosamente as cláusulas que serão inseridas no instrumento con-tratual, o contrato de adesão é aquele na qual uma das partes estipula todas as cláusulas a que a outra parte adere sem poder discuti-las ou modificá-las substancialmente. Tal técnica de contratação é muito uti-lizada nas relações de consumo, porque garante a agilidade e execução dos negócios, bem como a previsibilidade do custo empresarial.

Destarte, Maria Helena Diniz define o contrato de adesão:

[...] é aquele em que a manifestação da vontade de uma das par-

tes se reduz a mera anuência a uma proposta da outra, como nos

ensina R. Limongi França. Opõe-se a ideia de contrato paritário,

Page 136: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

136 Cayo Rubens Castilhano Santos

por inexistir a liberdade de convenção, visto que exclui qual-

quer possibilidade de debate e transigência entre as partes, pois

um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições

previamente redigidas e impressas pelo outro [...], aderindo a

uma situação contratual já definida em todos os seus termos.

Nota-se que as condições contratuais ficam exclusivamente à dis-posição de apenas uma das partes, que é o lado mais forte da relação, dado que o aderente apenas anui ou não com as condições já estabe-lecidas, ficando impedida de discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato.

Essa modalidade de contrato está definida no Artigo 54, caput, da Lei n° 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor:

O contrato de adesão é aquele que cujas cláusulas tenham sido

aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilate-

ralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o con-

sumidor possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo.

Haja vista a sociedade capitalista crescente e o surgimento da produção em massa, o contrato de adesão é muito utilizado, princi-palmente pelas grandes empresas, de direito público ou privado, em virtude da celeridade, pois caso as partes fossem negociar todas as cláusulas contratuais haveria um grande entravamento na escoação da produção em larga escala, representando isso prejuízos aos forne-cedores, que demorariam mais a dar vazão à produção.

Portanto, em uma breve análise é possível definir que essa moda-lidade contratual é efeito visível da rapidez com que as relações de consumo se estabelecem e que a manifestação da vontade do aceitan-te, evidencia-se na adesão as condições firmadas e impostas pelo con-tratante. Logo o contrato é firmado pela adesão do aderente, cria-se o vínculo jurídico e obrigacional, unindo-os.

Page 137: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

137

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

3. CONTRATO DE ADESÃO À LUZ DA LEGISLAÇÃO

Os contratos de adesão, apresentam-se, atualmente, como o mais frequente meio de celebração dos negócios jurídicos na sociedade brasileira, em virtude disso, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, com o objetivo de diminuir desigualdades que possam vir a existir entre fornecedor e consumidor, passaram a se preocupar com essa matéria.

Essa modalidade contratual é caracterizada pela mitigação da manifestação da vontade do aderente, fato que na maioria das vezes acaba prejudicando este, por não ter conhecimento do alcance das cláusulas que está aceitando.

Em razão dessa iminente ocorrência de desigualdade entre as partes o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu a regra de interpretação contratual, em seu artigo 47, ao dispor que “As cláu-sulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Da mesma forma consagra o Código Civil de 2002, em seu artigo 424, ao dispor que “nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultando da natureza do negócio”.

Nesse sentido, afirma Ruy Rosado de Aguiar:

Há dois artigos para os contratos de adesão: havendo cláusu-

las ambíguas ou contraditórias, a interpretação será a mais

favorável ao aderente (art. 423). É nula a cláusula de renún-

cia antecipada do direito que resultar do contrato (art. 424). A

experiência tem mostrado que o contrato de adesão, com as suas

condições gerais, tem servido para muitos abusos, e se impunha

regramento mais específico para excluir ou diminuir o impacto

de estipulações sobre multa e outros acréscimos devidos pela

mora, eleição de foro quando significa negativa de acesso à

defesa em juízo, perda das prestações pagas, dificuldades para

Page 138: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

138 Cayo Rubens Castilhano Santos

purgar a mora ou para as providências tendentes à conservação

do negócio, direito de prévia interpelação, limitação de respon-

sabilidade, imposição de mais deveres a um do que ao outro etc.

Embora seja mais comum a aplicação da interpretação do con-trato mais favorável no contrato de adesão, ela incide em qualquer espécie de contrato firmado com o consumidor, inclusive nos acordos verbais e dela conclui-se que deve ser adotada a interpretação mais favorável ao consumidor.

Portanto, compreende-se que o fornecedor deve cuidar para que o consumidor compreenda adequadamente seus direitos e obrigações decorrentes do vínculo contratual que será estabelecido a partir da assinatura do contrato de adesão, em virtude disso, não se admitem contratos com letras miúdas, palavras e expressões complexas ou difícil compreensão para o leigo, devendo, o contrato de adesão ser objetivo, claro, não gerar dúvidas e nem ambiguidades.

4. CLÁUSULAS ABUSIVAS

O contrato de adesão é um reflexo da necessidade econômico--social, da realidade de mundo globalizado e possui consideráveis vantagens, principalmente para o fornecedor, em razão da redução de custos e da agilidade na execução dos negócios.

Entretanto, nessa modalidade contratual, as cláusulas não são dis-cutidas por ambas as partes, sendo preestabelecidas pelo fornecedor que utiliza um contrato padrão direcionado a um número indetermina-do de pessoas, procurando englobar o máximo de situações possíveis.

Desta forma, por possuir cláusulas constituídas por apenas uma das partes, na maior parte dos casos, o fornecedor estipula cláusu-las para seu benefício próprio, ultrajando os direitos e interesses dos consumidores. Com isso, surgem as chamadas cláusulas abusivas, as quais acabam prejudicando o consumidor na relação contratual.

Page 139: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

139

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

4.1 Conceito

A legislação consumerista, apesar de não ter conceituado juridi-camente as cláusulas abusivas, traz em seu artigo 51 um rol mera-mente exemplificativo de situações de abusividade, que dispõe:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas con-

tratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...];

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,

que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou

sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Logo, as cláusulas abusivas são aquelas que prejudicam notada-mente a parte mais fraca, uma vez que o fornecedor se aproveita da po-sição de superioridade e impõe em seu benefício vantagens excessivas, fato que desequilibra a relação contratual e fere a boa-fé e a equidade.

Nesse sentido, aí que se concentra a atuação do Código de Defesa do Consumidor, no qual, protege aqueles que estão em desvantagem quando da celebração de um contrato que está em desacordo com os princípios ou pressupostos da boa-fé.

Assim sendo, aduz Bagatini:

[...] proporcionar a igualdade real na desigualdade pré-contra-

tual, contratual e pós-contratual existente entre fornecedor e o

consumidor. A parte fraca da relação – o consumidor – deve ter

instrumentos que lhe proporcionem igualdade na relação con-

tratual. O CDC de forma alguma está a privilegiar o consumidor,

colocando-o no mesmo patamar do fornecedor.

Por outro lado, segundo Bagatini, a legislação consumerista não privilegia o fornecedor e nem o consumidor, apenas coloca os indiví-

Page 140: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

140 Cayo Rubens Castilhano Santos

duos em condições de igualdade, prevalecendo assim no estabeleci-mento das relações de consumo a boa-fé.

Para manter o equilíbrio nas relações contratuais é fundamen-tal a intervenção do Estado, na defesa do consumidor, a fim de coi-bir as cláusulas abusivas. O Estado realiza o controle das cláusulas abusivas por meio de três formas: administrativamente, judicial-mente e legislativamente. Por meio dessa atuação o Estado pode controlar o poder econômico e evitar o desequilíbrio nas relações de consumo.

Importante ressaltar que se em um contrato de natureza consu-merista possuir cláusula abusiva, ela deverá ser considerada nula de pleno direito, portanto não sendo aplicado ao consumidor e em fun-ção disso, este não está obrigado a cumprir qualquer imposição de-corrente de cláusula abusiva.

Portanto, verifica-se que as cláusulas abusivas representam um manifesto desrespeito aos direitos do consumidor e aos princípios contratuais, uma vez que o fornecedor estipula as cláusulas visando tão somente o seu lucro, sem primar pelos direitos da outra parte.

5. PLANO DE SAÚDE

O direito à saúde está inserido na órbita dos direitos sociais constitucionalmente garantidos, sendo obrigação do Estado para com a sociedade, com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua o artigo 196 da Constituição Federal, in verbis:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução

do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

Page 141: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

141

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

A saúde é um direito de todos, vez que sem ela não há condições de uma vida digna e o Estado deve assegurar aos cidadãos esse direi-to, por meio de políticas públicas e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

Visando garantir esse direito, o Estado criou o SUS (Sistema Úni-co de Saúde), regido pela lei 8.080/90, que dispõe sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o fun-cionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, compreendendo em seu artigo 2°, a saúde como “um direito funda-mental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indis-pensáveis ao seu pleno exercício.”

Infelizmente a realidade da saúde no Brasil comprova que a teoria está muito distante da realidade, devido a diversos problemas como: ausência de médicos e enfermeiros nos hospitais e postos de saúde, superlotação, pacientes com dificuldades na marcação de consultas, falta de estrutura, falta de medicamentos, entre outros.

Em razão dessa precariedade que se encontra a saúde no Brasil, as pessoas recorrem aos planos de saúde no intuito de obter uma melhor qualidade de vida, todavia, algumas operadoras não tem res-peitado os direitos dos consumidores na relação contratual, vez que introduzem cláusulas abusivas que são incompatíveis com a legisla-ção consumerista.

6. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AOS CONTRATOS DE PLANOS DE SAÚDE

Havia uma grande divergência sobre qual legislação seria aplicá-vel aos contratos de plano de saúde. A primeira divergência surgiu com a vigência do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de qual legislação seria aplicável aos contratos celebrados antes do CDC.

Em resposta, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimen-to através da súmula 469, in verbis: “a operadora de serviços de assistên-

Page 142: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

142 Cayo Rubens Castilhano Santos

cia à saúde que presta serviços remunerados à população tem sua ativi-dade regida pelo Código de Defesa do Consumidor, pouco importando o nome ou a natureza jurídica que adota”. Segundo entendimento do STJ, o Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado aos contratos cele-brados antes da sua vigência, por serem os contratos de plano de saúde contratos de trato sucessivo, ou seja, se renovam a cada mensalidade.

A segunda divergência verifica-se com o surgimento da Lei 9.656/98, que trata dos planos e seguros privados de assistência à saúde, em relação a qual legislação aplicar aos contratos celebrados após a vigência dessa lei. No que tange a esses contratos, é possível a aplicação tanto da Lei de Planos de Saúde, quanto o Código de Defesa do Consumidor, em razão da complementariedade existente entre os dois diplomas jurídicos.

Assim, aduz Trettel:

A Lei dos Planos de Saúde mantém com o Código de Defesa do

Consumidor uma relação de complementariedade, descendo a

minúcias do setor que não precisam e não devem estar no código,

que se propõe uma lei que traga “perspectiva e diretrizes”. Não

existe conflito de leis no tempo. Lei 9656/98 e CDC são aplicados

concomitantemente aos planos de saúde. E havendo silêncio da lei

específica, ou sendo esta inaplicável, aplica-se somente o Código,

que trata indistintamente de todas as relações de consumo.

Sendo assim, deverá ser aplicada a Teoria do Diálogo das Fontes, que foi idealizada pelo jurista germano Erik Jayme e importado para o Brasil pela Profª Cláudia Lima Marques, que consiste na aplicação da norma mais favorável ao consumidor, quando da existência de duas fontes normativas.

Por fim, é válido ressaltar ainda, que tais contratos também so-frem a normatização, controle e fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Page 143: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

143

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

7. DAS PRINCIPAIS CLÁUSULAS ABUSIVAS

Depois de discorrer sobre o contrato de adesão, conceito de cláu-sulas abusivas, os planos de saúde, a legislação aplicável sobre ao as-sunto, dentre outros tópicos necessários à orientação teórica, passa-se a tratar das principais condutas abusivas.

Diversas são as praticas abusivas encontradas nos contratos de planos de saúde, não havendo como enumerá-las em sua totalidade, razão pela qual serão evidenciadas as mais corriqueiras, tidas como abusivas pela jurisprudência e doutrina.

7.1 Limitação ao Tempo de Internamento

Uma das ocorrências mais comuns de cláusulas abusivas nos contratos de plano de saúde é a limitação do tempo de internamento hospitalar do segurado e em razão de haver tanta demanda reiterada, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 302, que diz: “É abu-siva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”.

Essa limitação ao tempo de internamento hospitalar é uma afron-ta à boa-fé e ao equilíbrio contratual, vez que não é razoável pensar que o consumidor que adere a um plano de saúde, pagando todo mês, com o objetivo de ter uma melhor qualidade de vida, na hora que precisar ficar sujeito a uma limitação temporal.

Nesse sentido, visando preservar os consumidores do desequilí-brio contratual entre seus direitos e deveres, o Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 51, inciso I e IV, e mais precisamente na Lei 9.656/1998, no artigo 12, inciso II, letras “a” e b”, dispôs da ilega-lidade de tal cláusula:

Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos pro-

dutos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas seg-

Page 144: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

144 Cayo Rubens Castilhano Santos

mentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as

respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência

de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:

II - quando incluir internação hospitalar:

a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de

prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e espe-

cializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina,

admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos;

b) cobertura de internações hospitalares em centro de tera-

pia intensiva, ou similar, vedada a limitação de prazo, valor

máximo e quantidade, a critério do médico assistente.

Portanto, a legislação não admite que as operadoras de planos de saúde estipulem em seus contratos limitação temporal ao tempo de internamento. Entretanto, mesmo com expressa vedação, as operado-ras praticam essa abusividade reiteradas vezes.

O paciente que se encontra internado, principalmente em Unida-de de Terapia Intensiva (UTI), só poderá ter sua internação interrom-pida por decisão do médico, a depender da evolução da saúde deste e durante esse período as operadoras de planos de saúde ficam proi-bidas por lei de suspender ou rescindir o contrato, bem como excluir os exames que são necessários fazer.

A limitação ao tempo de internamento hospitalar também é veda-da pelo Código Civil, através do artigo 424, visto que prevê a nulidade absoluta, nos contratos de adesão, das cláusulas que determinem a renúncia prévia do aderente a direito resultante da natureza do negó-cio. Logo, o contrato de plano de saúde que possuir referida imposi-ção, limitará o uso do serviço pelo consumidor, sendo essa a principal finalidade do contrato pactuado entre as partes.

Vale a pena ressaltar, que limitar o tempo de internamento pode ser uma afronta à vida e a integridade física do paciente, dado que a sua saúde pode agravar-se em decorrência disso.

Page 145: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

145

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

7.2 Reajuste por Mudança de Faixa Etária

Nos contratos de planos de saúde existem três modalidades de reajuste: o anual, por sinistralidade e por mudança de faixa etária. O primeiro tem o objetivo de atualizar as mensalidades com base no aumento dos custos da operadora, devido à inflação. O segundo tam-bém visa à atualização das mensalidades, mas pela mudança de per-fil de utilização do plano, gerando alterações no risco transferido as operadoras. O terceiro e último reajuste, também se associa ao risco, porquanto é evidente que quanto maior a idade, maior a probabili-dade da utilização dos serviços médicos, logo, sendo maior o risco assumido pelas operadoras.

Contudo a finalidade aqui é verificar as circunstâncias desse último reajuste, que a priori é válido, uma vez que atende a natureza do con-trato e está previsto no artigo 15 da Lei 9.656/98. Assim, com base nos requisitos dos artigos 15 e 16, inciso IV da Lei 9.656/98 e os princípios do Código de Defesa do Consumidor, pode-se concluir que o reajuste por faixa etária é valido quando: houver previsão expressa no contrato inicial, com indicação dos percentuais de reajuste para cada faixa etária; que seja dada a ciência prévia ao usuário do plano, sendo ônus da opera-dora comprová-la; que a cláusula esteja em destaque a fim de facilitar a visualização pelo consumidor e que os percentuais fixados atendam aos critérios de razoabilidade, evitando que a prestação do consumidor seja desproporcional, colocando o fornecedor em vantagem excessiva.

Outro aspecto importante é que com o advento do Estatuto do Idoso, no ano de 2004, ficou estabelecido em seu art. 15, § 3º, que: “é vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”, ou seja, fica proibido o reajuste dos preços dos planos de saúde por faixa etária entre 60 a 70 anos de idade.

Sendo assim, visando adequar os contratos a nova realidade, a Agência Nacional de Saúde Suplementar estipulou 10 (dez) faixas

Page 146: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

146 Cayo Rubens Castilhano Santos

etárias, sendo a última aos 59 anos de idade e determinou ainda que a distribuição do reajuste entre as faixas etárias ficou a critério das operadoras, sendo o limite de variação entre a primeira e a última fai-xa de 500 % e que o reajuste aplicável as 4ª últimas faixas não podem somar mais do que os aplicáveis da 1ª a 7ª faixas.

7.3 Necessidade ou não de Realização de Exame Prévio em Re-lação à Doença Preexistente

A lei 9656/98 estabelece que as operadoras podem negar, em caso de doenças preexistentes, a cobertura de atendimento durante os 24 (vinte e quatro) meses, de acordo com o artigo in verbis:

Art. 11. É vedada a exclusão de cobertura às doenças pree-

xistentes à data de contratação dos produtos de que tratam o

inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei após vinte e quatro meses de

vigência do aludido instrumento contratual, cabendo à respec-

tiva operadora o ônus da prova e da demonstração do conheci-

mento prévio do consumidor ou beneficiário. Parágrafo único.

È vedada a suspensão da assistência à saúde do consumidor ou

beneficiário, titular ou dependente, até a prova de que trata o

caput, na forma da regulamentação a ser editada pela ANS.

Logo como está previsto em lei, as operadoras de planos de saúde poderão negar o fornecimento da cobertura, em caso de doença pree-xistente, nos primeiros 24 meses de vigência do contrato.

Entretanto o questionamento a ser feito é se a operadora pode ne-gar a cobertura, sob a alegação de doença preexistente, sem ao menos ter feito um exame prévio no usuário, no momento da celebração do contrato.

Para alguns doutrinadores é imprescindível a realização prévia do exame, uma vez que não seria razoável com o aderente, que firma

Page 147: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

147

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

o contrato de plano de saúde, pagando corretamente e quando ne-cessita usufruir deste obtém uma negativa. Para esses doutrinadores, é necessário que a doença preexistente esteja prevista no contrato quando da celebração, evitando com que o consumidor seja pego de surpresa.

Em contrapartida, os que sustentam não ser necessário a realiza-ção do exame, alegam que o consumidor que sabe da doença ou lesão preexistente e não comunica as operadoras age de má-fé.

Destarte, afirma Trettel:

É antiga a jurisprudência do STJ em que se sustenta que não

cabe à operadora de plano de saúde alegar doença para a qual se

busca tratamento é pré-existente e negar atendimento ao usuá-

rio de plano de saúde se não realizou exames no usuário antes

da contratação.

Apesar da discussão doutrinária, o Superior Tribunal de Justiça já expôs seu entendimento no sentido de que é obrigatório a realização prévia do exame, contudo, entende-se que essa posição não deve ser adotada em todos os casos, sob pena de cometer alguma injustiça.

7.4 Suspensão ou Rescisão Contratual Arbitrária

Similarmente, é considerada abusiva a suspensão ou rescisão do atendimento pelo inadimplemento de apenas uma única parcela, vez que já há previsão de juros e multa sobre o atraso, nesse sentido, es-tabelece a Lei 9656/98, em seu artigo 13:

Art. 13. Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e

o § 1º do art. 1º desta Lei têm renovação automática a partir

do vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a

cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação.

Page 148: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

148 Cayo Rubens Castilhano Santos

Parágrafo único. Os produtos de que trata o caput , contrata-

dos individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo

vedadas:

I - a recontagem de carências

II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por

fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior

a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de

vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprova-

damente notificado até o qüinquagésimo dia de inadimplência;

III- a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, em qual-

quer hipótese, durante a ocorrência de internação do titular.

Destarte, verifica-se que é ilegal a suspensão do fornecimento da cobertura em caso de atraso no pagamento inferior a sessenta dias, seguidos ou não durante 12 (doze) meses. Ademais, só é lícita a sus-pensão do fornecimento do serviço, se houver notificação prévia do usuário no quinquagésimo dia de inadimplência.

Outro ponto importante, é que caso o consumidor encontre-se in-ternado, mesmo estando inadimplente por mais de sessenta, as opera-doras ficam impossibilitadas de retirá-lo do internamento.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O surgimento do contrato remota aos primórdios da humanidade, na qual por meio de um progresso, o homem deixou de usar a vio-lência para alcançar seus objetivos e passou a recorrer as formas de contratação, daí surge o contrato como instrumento por excelência de circulação de riquezas, garantindo assim mais segurança às relações jurídicas pactuadas.

Nesse contexto, o contrato fomentou as relações comerciais, atra-vés da circulação de bens e riquezas, fazendo com que as sociedades tivessem suas necessidades alcançadas.

Page 149: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

149

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

Com o passar dos tempos o contrato se tornou um negócio jurí-dico, em que há uma grande liberdade entre as partes, uma vez que o contrato exige um consenso, ou seja, um acordo de vontades, pois fará leis entre as partes. Essa liberdade é chamada de autonomia privada. Entretanto, com a globalização e o surgimento da produção industrial em escala, surgiu a necessidade da criação de uma mo-dalidade contratual que trouxesse mais agilidade e previsibilidade de custos.

Desta forma, o contrato paritário é substituído pelo contrato de adesão, uma modalidade contratual da nova economia, utilizado por muitas empresas, em que há um instrumento contratual impresso e unilateralmente elaborado, para a aceitação da outra parte, a qual simplesmente adere às condições estabelecidas.

Em razão dessa impossibilidade do aderente de influenciar na formação do contrato, muitas empresas estipulam condições que mais lhe convém ou interessa, desrespeitando os interesses do con-sumidor.

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor surgiu para proteger o consumidor dos abusos cometidos pelas empresas, asse-gurando que prevaleça nas cláusulas contratuais a boa fé, tornando assim o instrumento contratual justo e equilibrado.

REFERÊNCIAS

______. Código Civil. Lei n/ 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Dispo-nível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 30/10/2016.

_______. Lei 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e se-guros privados de assistência à saúde. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9656.htm>. Acesso em: 30/10/2016.

Page 150: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

150 Cayo Rubens Castilhano Santos

_______. Código de Defesa do Consumidor. Lei n° 8.078 de 11 de se-tembro de 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 30/10/2016.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado. htm>. Acesso em: 30/10/2016.

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do código civil: as obriga-ções e os contratos. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v.775, mai. 2000, p. 18-3.

BAGATINI, Idemir Luiz. Consumidor brasileiro e o acesso à cidadania. 5. ed. Ijuí:Ed. UNIJUÍ, 2001.

BOTTESINI, Maury Ângelo. MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2005.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14ª ed. Rev. E atual. São Pau-lo: Saraiva, 2009, p.367.

GOMES, Orlando Contratos, 18º edição, atualizada e anotada por Humberto Theodoro Júnior, Rio de Janeiro Forense, 1998, p. 109,119.

MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo Diálogo das Fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, Aracaju, SE, v. 7, p. 15-54, 2004.

NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A Teoria Contratual e o Código de Defe-sa do Consumidor. São Paulo: RT, 2001, p.98.

Page 151: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

151

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

PASSOS, Anderson Santos dos. Problema e teoria dos contratos de adesão. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003.

TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos, a boa-fé objetiva e as recentes súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1049, 16 maio 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8384>. Acesso em: 30 out. 2016.

TRETTEL, Daniela Batalha. Planos de Saúde na Visão do STJ e do STF. São Paulo: Editora Verbatim, 2010.

Page 152: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 153: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

José Avelar Pereira Mattos Segundo

RESUMO1

O presente artigo científico trata da teoria da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. Após a constatação de que reformas legislativas e jurispruden-ciais aproximaram as características dos controles difuso e concentrado de constitu-cionalidade, a corrente doutrinária ora examinada desenvolveu-se a fim de conferir eficácia erga omnes às decisões proferidas em sede de controle exercido em concreto, sob a justificativa de zelar pelos princípios da celeridade e da força normativa da constituição. Entretanto, conforme será demonstrado, o Supremo Tribunal Federal rechaçou a tese em apreço no julgamento da Reclamação n. 4.335.Palavras chave: controle; constitucionalidade; difuso; abstrativização.

Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Tiradentes. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected].

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 153-170

Page 154: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

154 José Avelar Pereira Mattos Segundo

1. INTRODUÇÃO

No hodierno sistema jurídico brasileiro percebe-se uma tendên-cia de abstrativizar o controle difuso de constitucionalidade, a qual pode ser entendida como um movimento intencionado a conferir ao controle incidental características e efeitos típicos do controle abstra-to (NOVELINO, 2016, p. 180).

Sabe-se que as decisões prolatadas em sede de controle difuso de constitucionalidade irradiam efeitos apenas entre as partes que compõem a lide, pois, na qualidade de processo subjetivo, não possui como objetivo o reconhecimento de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese.

As decisões de (in) constitucionalidade emanadas no controle difuso são enfrentadas de forma prejudicial ao mérito da demanda levada a juízo, no decorrer da fundamentação do ato processual. Não são, pois, acobertadas pelo manto da coisa julgada, atributo exclusivo da parte dispositiva.

Neste sentido, afirma-se que o objetivo de “abstrativizar” o con-trole difuso seria dotá-lo de efeitos erga omnes e não somente inter partes, como nos dias atuais é estabelecido pela própria Carta Magna, a qual expressamente atribui ao Senado Federal a possibilidade de concessão de efeitos gerais às decisões definitivas da Suprema Corte.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 A objetivação do recurso extraordinário: aspectos constitu-cionais e processuais

Ab initio, convém explicitar que a expressão “objetivação do recurso extraordinário” pode ser tida como umas das nuances da “abstrativização do controle difuso”. Leva-se em conta apenas as decisões do Supremo Tribunal Federal exaradas em sede de Recurso

Page 155: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

155

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Extraordinário, um dos meios que esta Corte detém para estar no exercício do controle difuso de constitucionalidade. Saliente-se ser possível a existência de outros, v.g., o Supremo Tribunal Federal diante do julgamento de um remédio constitucional originário, don-de foi arguida, incidentalmente, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo.

Sabe-se que o Recurso Extraordinário é classificado como de fun-damentação vinculada, em razão de o seu cabimento estar limitado às hipóteses ventiladas na Carta Constitucional, in verbis:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente,

a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...]

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas

em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

Contrariar dispositivo desta Constituição;

Declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

Julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face

desta Constituição;

Julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

[...]

O texto do inciso III do citado artigo, ao referir a expressão “única ou última” instância, tem como finalidade investir como requisito para a sua proposição o exaurimento de instâncias, permitindo-se apenas a análise da matéria pela Suprema Corte quando todas as ou-tras possíveis cortes já o tenham feito previamente, assim como toda a totalidade de recursos permitidos tenha se exaurido, o que denota um verdadeiro caráter residual desta espécie recursal, típico das ins-tâncias extraordinárias (DIDIER JR. e CUNHA, 2011. p. 266).

Demais disso, exige-se ainda o prequestionamento, definido pe-los precitados autores como:

Page 156: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

156 José Avelar Pereira Mattos Segundo

O prequestionamento é a exigência antiga para a

admissibilidade dos recursos extraordinários, segundo o

qual se impõe que a questão federal/constitucional objeto

do recurso excepcional tenha sido suscitada/analisada na

instância inferior (2011, p. 260).

Deste modo, faz-se necessário que o tribunal recorrido já tenha se manifestado acerca da questão federal/constitucional objeto do re-curso.

Pois bem, a Emenda Constitucional de nº. 45/2004 indexou ao ordenamento constitucional o parágrafo 3º no artigo 103, veja-se:

Art. 102...

[...]

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar

a repercussão geral das questões constitucionais discutidas

no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine

a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela

manifestação de dois terços de seus membros.

[...]

O artigo 1.035 do Código de Processo Civil de 2015 dispôs da se-guinte forma sobre o instituto da Repercussão Geral:

Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível,

não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão

constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos

termos deste artigo.

§ 1o Para efeito de repercussão geral, será considerada a

existência ou não de questões relevantes do ponto de vista

econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os

interesses subjetivos do processo.

Page 157: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

157

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

§ 2o O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão

geral para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal.

[...]

Ressalte-se o disposto no parágrafo 1º do artigo em exame, no sentido de se considerar a existência de quesitos relevantes seja em relação ao ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos da lide. Isto é, a relevância da matéria a ser encaminhada à análise da Corte Constitucional deve trespassar os interesses dos componentes daquela relação jurídica processual específica.

Decorre desta assertiva a interpretação lógica da intenção do le-gislador ao reformar o preceito ora referido, pois tende a aplicar a decisão proferida no recurso extraordinário não apenas às partes da demanda, mas sim a todos nela interessados.

É que a Corte Constitucional pode apenas analisar o caso concre-to nas hipóteses em que a discussão levada a juízo interesse a toda a sociedade, o que torna inapropriada a limitação da eficácia da decisão aos integrantes do processo subjetivo.

Ato contínuo de estudo, importante anotar que a repercussão ge-ral poderá ser implementada por amostragem quando houver multi-plicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, nos ditames do artigo 1.036 do referido diploma legal.

Em apertada síntese, este dispositivo impõe que ao tribunal de origem caberá selecionar dois ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados à Suprema Corte para julga-mento. Em seguida, os recursos sobrestados serão apreciados pelos tribunais inferiores, que poderão se retratar ou julgá-los prejudicados.

Veja-se que a decisão proferida pelo Pretório Excelso, quando do julgamento do recurso paradigma, poderá gerar interferência em ca-sos diversos, a saber: nos recursos sobrestados.

Em igual sentido, anota Gilmar Mendes:

Page 158: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

158 José Avelar Pereira Mattos Segundo

Registre-se que a sistemática da repercussão geral faz com que

as decisões proferidas nos processos-paradigmas espraiem seus

efeitos para uma série de demandas sobre igual tema, antes

mesmo da conversão do entendimento em súmula vinculante.

É mais uma fase do fenômeno de “objetivação” do recurso

extraordinário (2012, p. 1192) (grifou-se).

Por outra via, aspecto importante que denota a semelhança entre ambas as modalidades de controle de constitucionalidade, e que conse-quentemente é capaz de denotar a objetivação do controle de constitu-cionalidade incidental, é a participação do amicus curiae, do Ministério Público e de outros interessados no incidente de inconstitucionalidade.

O artigo 950, §3º, do CPC/2015 trata de forma específica acerca da previsão de manifestação de terceiros no incidente de inconstitu-cionalidade, de modo semântico ao que ocorre no processo objetivo de (in) constitucionalidade.

Neste sentido, Gilmar Ferreira Mendes conclui afirmando que:

Tem-se, assim, oportunidade para uma efetiva abertura do pro-

cesso de controle de constitucionalidade incidental, que passa,

nesse ponto, a ter uma estrutura semelhante à dos processos

de índole estritamente objetiva (ação direta de inconstitucio-

nalidade, ação declaratória de constitucionalidade e arguição

de descumprimento de preceito fundamental) (2012, p. 1180).

Ademais, convém mencionar o anotado pelo referido doutrina-dor no que concerne à objetivação do Recurso Extraordinário, assim como ao amicus curiae,

[...] esse novo modelo traduz, sem dúvida, um avanço na con-

cepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre

nós. Aludido instrumento deixar de ter caráter marcadamente

Page 159: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

159

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir,

de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional

objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de

Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao

recurso constitucional. Nesse sentido, destaca-se a observação

de Härbele, segundo a qual ‘a função da Constituição na prote-

ção dos direitos individuais (subjetivos) é apenas uma faceta do

recurso de amparo’, dotado de uma ‘dupla função’, subjetiva e

objetiva, ‘consistindo esta última em assegurar o Direito Cons-

titucional objetivo [...] (apud LENZA, 2012, p. 284) (grifou-se).

2.2 A teoria da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso

Para que se consagre a abstrativização do controle difuso de cons-titucionalidade é necessário o reconhecimento da teoria da transcen-dência dos motivos determinantes também nesta espécie de controle.

Tal teoria é originariamente aplicada ao controle abstrato, ou con-centrado, e tem como finalidade a concessão de eficácia vinculante não apenas ao dispositivo da decisão, mas também aos fundamentos que a embasaram. Neste sentido preleciona Luís Roberto Barroso:

Por essa linha de entendimento, tem sido reconhecida eficácia

vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas

também aos próprios fundamentos que embasaram a decisão.

Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento não

apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de

decidir (2006, p. 184).

Ressalte-se que apenas os motivos determinantes (ratio deciden-di) da decisão é que terão efeitos vinculantes e não todo e qualquer argumento indireto apresentado no transcurso da fundamentação.

Page 160: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

160 José Avelar Pereira Mattos Segundo

Pois bem, consoante ressalta Grinover,

[...] se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidental-

mente, pela acolhida da questão prejudicial que é fundamento

do pedido ou da defesa, a decisão não tem autoridade de coisa

julgada, nem se projeta, mesmo inter partes – fora do processo

no qual foi proferida [...] (apud LENZA, 2012, p. 279).

Deste modo, a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso dá-se de forma incidental, através da acolhida da prejudicial de inconstitucionalidade, não constituindo assim o objeto principal da demanda, e consequentemente não sendo, em regra, acobertada pelo manto da coisa julgada.

A teoria encampada pelo Ministro Gilmar Mendes prevê a aplica-ção da transcendência dos motivos determinantes ao controle difuso de constitucionalidade. Assim, a decisão sobre a inconstitucionalida-de, presente na fundamentação do julgado, seria alcançável pela coi-sa julgada, possibilitando-se a irradiação de seus efeitos vinculantes a outros processos, o que autorizaria o ajuizamento de Reclamação em caso de afronta, conforme sucedeu com a Rcl 4.335/AC, adiante estudada.

Por fim, importante citar o explanado por Gilmar Mendes, no sen-tido de já haver precedente do Supremo Tribunal Federal conferindo efeito vinculante não só à parte dispositiva da decisão de inconstitu-cionalidade, mas também aos próprios fundamentos determinantes em sede de controle difuso:

Observe-se, ainda, que nas hipóteses de inconstitucionalidade

de leis municipais, o STF tem adotado postura significativa-

mente ousada, conferindo efeito vinculante não só à parte

dispositiva da decisão de inconstitucionalidade, mas também

aos próprios fundamentos determinantes. É que são numerica-

Page 161: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

161

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

mente expressivos os casos em que o STF tem estendido, com

base no art. 557, caput e §1º - A, do CPC, a decisão do Plenário

que declara a inconstitucionalidade de norma municipal a

outras situações idênticas, oriundas de Municípios diversos.

Em suma, tem-se considerado dispensável, no caso de modelos

legais idênticos, a submissão da questão ao Plenário (2012,

p.1206) (grifou-se).

2.3 A possível mutação constitucional do artigo 52, inciso X da CRFB/88 e as consequências advindas da criação do instituto da súmula vinculante

Dispõe o artigo 52, inciso X, da Carta Magna acerca da possibilida-de de suspensão pelo Senado Federal da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em decisão definitiva, no decorrer do exercício do controle difuso de constitucionalidade, visto que a prola-tada no controle abstrato já possui em sua essência a decorrência de efeitos erga omnes, prescindindo da resolução do Senado.

Em relação à interpretação do precitado inciso, cabe tecer breves comentários doutrinários. Primeiramente, afirma-se que não obstante o dispositivo mencionar apenas a palavra “lei”, pode-se entender esta menção em sentido amplo, a abranger, inclusive, qualquer ato normati-vo, conforme salienta Dirley da Cunha Junior “Aliás, esse entendimen-to vem desde a Constituição de 1934, que previa essa competência do Senado para suspender a execução de lei, ato, deliberação ou regula-mento declarado inconstitucional pelo Judiciário” (2012, p. 335).

Por conseguinte, ressalta-se que a atribuição do Senado esten-de-se aos atos estaduais, distritais e municipais. Em igual sentido, o citado autor leciona:

Em quarto, indaga-se se a competência do Senado também se

projeta aos atos estaduais e municipais. Como órgão da Fede-

Page 162: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

162 José Avelar Pereira Mattos Segundo

ração, o Senado pode suspender a execução de qualquer ato

normativo declarado inconstitucional pelo STF, seja ele federal,

estadual, distrital ou municipal (2012, p.335).

Importante também trazer à colação o fato de não se obrigar o Se-nado Federal a expedir o ato de suspensão, assim como esta Casa não pode nem restringir nem ampliar os termos da decisão proferida pela Suprema Corte, neste sentido afirma Gilmar Mendes que,

[...] cuida-se de ato político que empresta eficácia erga omnes

à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em caso

concreto. Não se obriga o Senado Federal a expedir o ato de

suspensão, não configurando eventual omissão qualquer

infração a princípio de ordem constitucional. Não pode a Alta

Casa do Congresso, todavia, restringir ou ampliar a extensão do

julgado proferido pela Excelsa Corte [...] (2012, p. 1198).

Ainda em relação à obrigação do Senado de editar a resolução, aduz Alexandre de Moraes no sentido de ser entendimento pacifica-do tanto pela Suprema Corte como pelo Senado Federal, que se trata de competência discricionária, veja-se:

Ocorre que tanto o Supremo Tribunal Federal, quanto o Senado

Federal, entendem que esse não está obrigado a proceder à

edição da resolução suspensiva do ato estatal cuja inconstitu-

cionalidade, em caráter irrecorrível, foi declarada in concreto

pelo Supremo Tribunal; sendo pois ato discricionário do Poder

Legislativo, classificado como deliberação essencialmente polí-

tica de alcance normativo [...] (2009, p. 714).

Pois bem, para Gilmar Mendes, as já demonstradas alterações le-gislativas e jurisprudenciais tiveram como consequência a proximi-

Page 163: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

163

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

dade de características entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade. Além disso, a ampliação desta espécie de con-trole, no qual as decisões gozam de efeitos erga omnes, fizeram com que se mitigasse a justificativa do controle difuso.

Assim, sustenta o referido autor não haver lógica a interpretação de que o Supremo Tribunal Federal pode em sede de controle abstrato suspender a eficácia de leis, atos normativos ou até mesmo de emen-das constitucionais com eficácia geral, ao passo que as declarações de inconstitucionalidade proferidas no controle incidental produzam efeito somente para as partes da demanda. Neste sentido:

A exigência de que a eficácia geral da declaração de incons-

titucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal

em casos concretos dependa de decisão do Senado Federal,

introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preser-

vada na Constituição de 1988 (art. 52, X), perdeu parte do

seu significado com a ampliação do controle abstrato de

normas, sofrendo mesmo um processo de obsolescência. A

amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possi-

bilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis

ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certa-

mente, para que se mitigasse a crença na própria justificativa

desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção

de separação de Poderes – hoje necessária e inevitavelmente

ultrapassada. Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de

inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia

de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que

haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no

controle incidental, valer tão somente para as partes? (2012,

p. 1198) (grifou-se).

Idêntica indagação realiza Dirley da Cunha Júnior:

Page 164: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

164 José Avelar Pereira Mattos Segundo

Ora, se o Supremo Tribunal Federal pode, em sede de controle

concentrado-principal, suspender, liminarmente e em caráter

geral, a eficácia de uma lei e até mesmo de uma Emenda

Constitucional, qual a razão hoje de limitar a declaração de

inconstitucionalidade pronunciada pela Corte no controle

incidental às partes do processo e condicionar a sua eficácia geral

à intervenção do Senado […] Portanto, e concluindo o exame

da jurisdição constitucional no controle difuso-incidental à luz

do direito constitucional positivo brasileiro, somos de opinião

de que se deva eliminar do sistema a intervenção do Senado

nas questões constitucionais discutidas incidentalmente, para

transformar o Supremo Tribunal Federal em verdadeira Corte

com competência para decidir, ainda que nos casos concretos,

com eficácia geral e vinculante, à semelhança do stare decisis

da Supreme Court Estados Unidos da América (2012, p. 339).

Ademais, no que toca às súmulas vinculantes, insta ressaltar que estas são elaboradas após reiteradas decisões proferidas em casos concretos, tendo como objetivo conferir eficácia erga omnes aos en-tendimentos pacificados pelo Supremo Tribunal Federal, visto que o teor do seu enunciado vincula os demais órgãos do Poder judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal sem qualquer interferência do Senado Federal. Anote-se o afirmado por Gilmar Mendes:

Outra situação decorre de adoção de súmula vinculante (art.

103-A da CF, introduzido pela EC n. 45/2004) [...] a súmula aca-

bará por dotar a declaração de inconstitucionalidade proferida

em sede incidental de efeito vinculante. A súmula vinculante,

ao contrário do que ocorre no processo objetivo, decorre de

decisões tomadas em casos concretos, no modelo incidental,

no qual também existe, não raras vezes, reclamo por solução

Page 165: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

165

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

geral. Ela só pode ser editada depois de decisão do Plenário do

Supremo Tribunal Federal ou de decisões repetidas das Turmas

[…] Não resta dúvida de que a adoção de súmula vinculante

em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade

de lei ou ato normativo enfraquecerá ainda mais o já debilitado

instituto da suspensão de execução Senado [...] (2012, p. 1208).

Por todas as razões já expostas, sustenta-se a tese da mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da CRFB/88, como decorrência da interpretação sistemática do atual ordenamento jurídico.

Destarte, conforme anota Gilmar Mendes “parece legítimo enten-der que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Sena-do Federal há de ter simples efeito de publicidade” (2012, p. 1208).

Ademais, ressalte-se que esta posição acerca da mutação consti-tucional do artigo 52, inciso X, da CRFB/88 é criticada pela doutrina. Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, em artigo, dentre outros argumentos, afirmam que estar-se-ia reduzindo o papel do Senado Federal ao de uma secretaria de divulgação infra-legislativa das decisões do Supre-mo Tribunal Federal. Alegam ainda que assim procedendo haveria usurpação da atividade própria do Poder Legislativo, visto que, sob a alegação de mutação constitucional, o texto da Constituição seria modificado. Nestes termos:

Mas o modelo de participação democrática no controle difuso

também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional

deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado

Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público

o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa redu-

zir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de

divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribu-

nal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle

Page 166: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

166 José Avelar Pereira Mattos Segundo

difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do

povo deste referido processo, o que não parece ser sequer suge-

rido pela Constituição da República de 1988. […] A atividade

jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legis-

lativa, muito menos constituinte [...] (grifou-se)

Considera-se, como já afirmado, que a intenção de acolher a tese da mutação constitucional do artigo 52, inciso X da CRFB/88 está interligada à interpretação contextual do atual ordenamento jurídi-co, pois as recentes alterações legislativas fizeram com que houves-se aproximação das características dos dois modelos de controle de constitucionalidade.

2.4 A abstrativização do controle difuso à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A Suprema Corte concluiu recentemente o julgamento de uma Reclamação Constitucional fundamentada na tese da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. Trata-se da Rcl. 4.335, ajuizada pela Defensoria Pública da União em face de ato de Juiz de Direito do Estado do Acre, que indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de inúmeros réus que cumpriam penas em regime integralmente fechado, em razão da prática de crimes hediondos.

A reclamante alegou o descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 82.959, julgado pelo plenário desta corte em 23/02/2006, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, quando foi afas-tada a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, ao considerar inconstitucional o art. 2º, §1º da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).

O relator da Rcl. 4.335, Ministro Gilmar Mendes, idealizador da teoria em análise, utilizou em seu voto todos os argumentos doutri-nários aqui já mencionados. Além dele, apenas o Ministro Eros Grau,

Page 167: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

167

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

ao julgar procedente a reclamação, afirmou expressamente que as de-cisões proferidas pelo Plenário do STF em controle difuso de cons-titucionalidade possuem efeitos erga omnes e que o atual papel do Senado Federal é somente conferir publicidade ao que foi decidido, ante a mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88.

Ocorre que, antes do julgamento da reclamação em exame, a Su-prema Corte editou a Súmula Vinculante n. 26, com o seguinte enun-ciado: “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisi-tos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

Por essa razão, os Ministros Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello juntaram-se ao grupo dos favoráveis à reclamação, no entanto utilizaram como argumento a ofensa ao novel enunciado vinculante. Desconsideraram, pois, a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 82.959, da qual se buscava extrair a abstrati-vização.

Percebe-se, portanto, que a Suprema Corte não acolheu a tese da abstrativização, persistindo os efeitos inter partes das decisões prola-tadas em sede de controle difuso de constitucionalidade.

A despeito disso, conforme leciona Márcio André Lopes Caval-cante em estudo sobre o tema, o voto do Ministro Teori Zavascki es-clareceu que, conquanto inexista eficácia erga omnes nas referidas decisões, o direito brasileiro tem seguido em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais emanados dos tribunais supe-riores, aos quais se atribui força persuasiva e expansiva em relação aos demais processos análogos. Segue-se o movimento semelhante adotado em diversos outros países regidos pelo civil law, que se apro-ximam paulatinamente da cultura do stare decisis, própria do com-mon law. Assim, algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal

Page 168: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

168 José Avelar Pereira Mattos Segundo

Federal possuem força expansiva, isto é, irradiam efeitos além das partes que compõem a lide, embora persista válida a competência do Senado Federal outorgada pelo artigo 52, inciso X, da CRFB/88.

Por oportuno, veja-se a ementa do julgado em apreço:

Reclamação. 2. Progressão de regime. Crimes hediondos. 3.

Decisão reclamada aplicou o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90,

declarado inconstitucional pelo Plenário do STF no HC 82.959/

SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 1.9.2006. 4. Superveniência da

Súmula Vinculante n. 26. 5. Efeito ultra partes da declaração

de inconstitucionalidade em controle difuso. Caráter expan-

sivo da decisão. 6. Reclamação julgada procedente. (Rcl 4335,

Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em

20/03/2014, DJe-208 DIVULG 21-10-2014 PUBLIC 22-10-2014

EMENT VOL-02752-01 PP-00001)

3. CONCLUSÃO

A evidente objetivação do Recurso Extraordinário afastou-o do vetusto caráter precipuamente subjetivo, tornando-o verdadeiro de-fensor da ordem objetiva, o que denota a necessidade de o seu julga-mento não produzir apenas efeitos “inter partes”.

Além disso, a analisada teoria da transcendência dos motivos determinados, em conjunto com a mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da CRFB/88, demonstra a necessidade de abstrativizar o controle difuso de constitucionalidade. Entretanto, essa aplicação não pode ser utilizada como pretexto para desafogar o Poder Judici-ário do acúmulo de processos, visto que desta maneira haverá séria afronta a princípios fundamentais, dentre eles o devido processo le-gal, o contraditório e a ampla defesa.

A despeito disso, no julgamento da Reclamação 4.335 o Supremo Tribunal Federal afastou a aplicação da teoria em estudo.

Page 169: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

169

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da juris-prudência. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Dispo-nível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_13.07.2010/index.shtm>. Acessado em 03 de janeiro de 2017.

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.pla-nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acessa-do em 03 de janeiro de 2017.

CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo; DIDIER JR., Fredie. Curso de di-reito processual civil. 9. ed. Vol. 3. Salvador: Jus Podivm, 2011.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. STF não admite a teoria da abstrativização do controle difuso e o art. 52, X, da CF/88 não sofreu mutação constitucional: entendendo a Rcl 4335/AC. Disponível em: <http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/stf-nao-admite-teoria-da.html>. Acesso em: 03 de janeiro de 2017.

DA CUNHA JR., Dirley. Curso de direito constitucional. 6. ed. Salva-dor: Jus Podivm, 2012.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Page 170: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

170 José Avelar Pereira Mattos Segundo

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional, 11. ed. Salva-dor: Juspodivm, 2016.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

STF. RECLAMAÇÃO 4.335. Rel. Min Gilmar Mendes, julgada em 20/03/2014. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa-ginador.jsp?docTP=AC&docID=630101>. Acessado em: 03 de janei-ro de 2017.

STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A nova perspectiva do Supremo Tri-bunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limi-tes da legitimidade da jurisdição constitucional. Jus Navigandi, Tere-sina, ano 12, n. 1498, 8 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10253>. Acesso em: 03 de janeiro de 2017.

Page 171: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Ricelli Vieira de Oliveira

RESUMO1

Os direitos fundamentais são assegurados constitucionalmente aos indivíduos, destina-dos a garantirem uma convivência digna, livre e igual de todos. Dentre as principais características de citados direitos, destaque-se a limitabilidade, segundo a qual os direi-tos fundamentais não possuem caráter absoluto e havendo colisão entre direitos desta espécie, tal confronto será solucionado através da ponderação destes por meio do juízo de proporcionalidade, por possuírem o mesmo status constitucional. Os direitos da per-sonalidade e as liberdades de expressão e informação são direitos que, frequentemente, entram em confronto por resguardarem valores constitucionais distintos. As biografias não autorizadas trazem em seu bojo o confronto dos citados direitos. Discute-se muito acerca da validade das biografias, independentemente de prévia autorização dos biogra-fados ou de seus herdeiros. O Código Civil ao disciplinar a matéria em seu art. 20, con-diciona a utilização da imagem de uma pessoa ou a divulgação de fatos sobre alguém, se lhe atingirem à honra, à boa fama ou à respeitabilidade, inclusive para fins jornalísticos, à autorização do interessado. Contudo, tal dispositivo afronta a Constituição Federal, ofendendo a liberdade de expressão. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu a Ação Direita de Inconstitucionalidade 4815, dando aos artigos 20 e 21, do Código Civil, interpretação conforme a Constituição, declarando a prescindibilidade do consentimen-to da pessoa biografada para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais. Assim, defende-se a ampla liberdade dos autores na divulgação das biografias, independentemente de autorização, resguardado o direito à indenização na hipótese de danos morais e materiais causados ao biografado. Palavras chave: Direitos Fundamentais. Direitos da Personalidade. Liberdade de Ex-pressão. Liberdade de Informação. Colisão. Ponderação. Biografias não autorizadas.

Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes. Técnica do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected].

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 171-192

Page 172: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

172 Ricelli Vieira de Oliveira

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como tema as biografias não autorizadas e a liberdade de expressão. Estudo de significativa importância na atualidade, em decorrência da grande discussão que envolve a maté-ria. A publicação de biografias sem prévia autorização do biografado ou de seus herdeiros coloca em rota de colisão os direitos da persona-lidade e a liberdade de expressão, direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.

Os direitos fundamentais são essenciais para o reconhecimento de uma sociedade democrática, dotados de alta carga valorativa e ca-ráter vinculativo para as normas infraconstitucionais, não sendo ad-mitidas disposições legislativas contrárias a estes direitos.

Da análise da evolução histórica dos direitos fundamentais, des-taque-se que estes, concebidos como princípios jurídico-constitu-cionais especiais que materializam o respeito à dignidade da pessoa humana, têm sua origem com a criação do Estado Constitucional, no final do século XVIII, com o reconhecimento das primeiras normas constitucionais.

Os direitos fundamentais possuem características próprias, den-tre elas a limitabilidade, da qual se depreende que não há direito fundamental absoluto. Não cabendo a limitação de um direito fun-damental em detrimento de outro no plano abstrato. Vislumbra-se, dessa forma, que os direitos fundamentais possuem mesmo nível hierárquico, não havendo relação de subordinação ou superioridade entre eles.

Atualmente, é comum se deparar com direitos fundamentais em conflito, principalmente entre os direitos à vida privada, à intimida-de, à honra e à imagem e a liberdade de expressão. Diante da colisão de dois princípios de grande importância para a sociedade brasileira, o Poder Judiciário, em cada caso concreto, faz uso do instrumento do juízo de ponderação para solucionar referido conflito. Tal juízo é

Page 173: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

173

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

composto pelo princípio da proporcionalidade, o qual operacionaliza a ponderação de cada direito fundamental colidente, em cada caso concreto.

Nesse contexto se encontra o tema central deste estudo, qual seja, a validade das biografias não autorizadas em observância às liberda-des de expressão e informação, analisando a disciplina da matéria pelo Código Civil e os meios de reação à criticada tutela do diploma cível, em busca de uma interpretação conforme a Constituição.

2. VALIDADE DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Cumpre, inicialmente, trazer um conceito doutrinário de direitos fundamentais:

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjeti-

vos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva.

Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outor-

gam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses

em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento

fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fun-

damentais – tanto aqueles que não asseguram, primariamente,

um direito subjetivo quanto aqueloutros, concebidos como

garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico

de um Estado de Direito democrático1.

Considerando a importância dos direitos fundamentais para o or-denamento jurídico pátrio, insta salientar as possibilidades de con-fronto entre direitos desta espécie. A colisão entre os direitos funda-mentais das liberdades de expressão e informação com os direitos da personalidade é frequente na sociedade contemporânea, em decor-

1 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 2.

Page 174: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

174 Ricelli Vieira de Oliveira

rência da informação exercer papel fundamental na atualidade. Como bem observam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior2:

Isso quer dizer que, por vezes, dois direitos fundamentais podem

chocar-se, hipótese em que o exercício de um implicará a invasão

do âmbito de proteção do outro. É o que, vezes a fio, ocorre entre

o direito de informação e o de privacidade, ou entre o direito de

opinião e o direito à honra. Nestes casos, a convivência dos direi-

tos em colisão exige um regime de cedência recíproca.

Como se sabe não há democracia sem liberdade de expressão, a democracia pressupõe o amplo acesso a informações e o livre debate de ideias. A partir dessa premissa e dos constantes confrontos dos direitos fundamentais em tela, o presente estudo visa analisar um tema bastante discutido, hodiernamente, acerca da possibilidade ou não das publicações de obras de caráter biográfico sem a autorização do biografado ou de seus herdeiros.

Importante esclarecer em que consiste a biografia, mais do que gênero literário, a biografia é gênero jornalístico. Todavia, não é sinô-nimo de notícia, é a história de uma vida que exige de seu autor vasta pesquisa e análises minuciosas de arquivos, registros históricos, en-trevistas, dentre outras. Biografia é a descrição da vida de uma pessoa e dos aspectos de sua obra, frequentemente dos pontos de vista histo-riográfico e crítico. A importância das biografias se traduz no fato que os eventos históricos são explicados também por meio da biografia de grandes homens, de personagens marcantes, em vidas concretas, capazes de captar fatos e acontecimentos.

Ressalte-se que nem sempre na nossa história a liberdade de ex-pressão foi garantida ao indivíduo. Durante o regime ditatorial no Brasil, entre os anos de 1964 a 1985, só era permitida a manifesta-

2 ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucio-nal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 83.

Page 175: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

175

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

ção de pensamentos, opiniões e críticas àqueles que expusessem suas ideias em conformidade com o que estabelecia o regime autocrático. Não se podia expressar para divergir do governo, sob pena de tortura, extradição ou até mesmo execuções. Não havia imprensa livre.

Dessa maneira, a Constituição Federal de 1988 tem papel de suma importância na história da liberdade de expressão no país, ao romper com o ordenamento jurídico autoritário determinado pelos militares, assegurou a liberdade de manifestação do pensamento, independen-temente de qualquer censura.

Nesse toar, a Carta Magna visa impedir que a lei contenha dispo-sitivo que tenha o condão de constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação so-cial (art. 220, § 1º, da Constituição Federal), desde que o comunicador não se utilize do anonimato (art. 5º, IV, da Constituição Federal) e seja assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da in-denização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da Cons-tituição Federal), respeitando a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, da Constituição Federal). É garantido constitucionalmente, ainda, o acesso a todos à informação, resguar-dado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional, conforme o art. 5º, XV, da Constituição Federal.

Fazendo uma análise da publicação de biografias não autorizadas, verifica-se o confronto entre os direitos fundamentais das liberdades de expressão e informação com os direitos da personalidade, sen-do estes conceituados por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona3 como: “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais.”. Como se sabe, o exercício da liberdade de expressão e o acesso à informação constituem direi-tos essenciais ao regime democrático. Entretanto, isso não acarreta na prevalência abstrata sobre o direito à privacidade.

3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 1: parte geral. 14. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 184.

Page 176: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

176 Ricelli Vieira de Oliveira

2.1 A Disciplina do Código Civil

A controvérsia que envolve a matéria das biografias não autori-zadas fica ainda mais acentuada com o advento do Código Civil de 2002, ao disciplinar o direito à imagem do indivíduo, através do seu art. 20:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração

da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de

escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição

ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas,

a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber,

se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se

se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são

partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os

ascendentes ou os descendentes.

Fazendo uma interpretação literal do dispositivo em tela, ob-serva-se que é possível a proibição, a pedido do interessado, da uti-lização da imagem de uma pessoa ou da divulgação de fatos sobre alguém, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, inclusive para fins jornalísticos. O preceito normativo traz como exceções: a autorização do envolvido, a condição da exibição ser imprescindível para a administração da justiça ou a manutenção da ordem pública.

Destaque-se que o artigo faz uso de dois conceitos, administra-ção da justiça e manutenção da ordem pública, imprecisos e não constantes na Constituição Federal de 1988. A fragilidade constitu-cional de citados conceitos é percebida através de um simples exercí-cio: o teste de sua incidência em inúmeras hipóteses é apta a produzir resultados completamente incompatíveis com a Constituição.

Page 177: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

177

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Com efeito, o Código Civil adotou critérios que não possuem am-paro constitucional, fazendo uso da arcaica cláusula do interesse pú-blico que tanto serviu de fundamento para regimes autocráticos. Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho4 também critica o art. 20:

O artigo 20 do novo Código Civil, que representa uma ponde-

ração de interesses por parte do legislador, é desarrazoado,

porque valora bens constitucionais de modo contrário aos

valores subjacentes à Constituição. A opção do legislador,

tomada de modo apriorístico e desconsiderando o bem consti-

tucional da liberdade de informação, pode e deve ser afastada

pela interpretação constitucional. [sem o grifo no original].

Outro ponto que merece destaque é que a Constituição Federal garante tanto o direito à privacidade como as liberdades de expressão e informação. Assim, fundada no princípio democrático, a Constitui-ção de 1988 protegeu da mesma maneira a liberdade de manifestação do pensamento, bem como os direitos da personalidade.

De acordo com o Código Civil, são resguardados a vida priva-da, os escritos, as palavras e também a imagem da pessoa, através da proibição da respectiva divulgação e da fixação da indenização cabível. Dessa forma, conforme o artigo 21, do Código Civil: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do in-teressado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Analisando-se a conformidade do artigo 20 do Código Civil com o princípio da proporcionalidade, vislumbra-se que o referido dispo-sitivo visa evitar a ofensa à honra, boa fama e respeitabilidade do in-divíduo, bem como impedir a comercialização, por terceiros, de obras

4 CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti. Direito à informação x direito à privacidade. O conflito de direitos fundamentais. Fórum: Debates sobre a Justiça e Cidadania. Revista da AMAERJ, n. 5, 2002.

Page 178: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

178 Ricelli Vieira de Oliveira

que sejam capazes de ofender tais atributos da pessoa sem a autoriza-ção da mesma. A proibição da publicação foi o meio utilizado para se atingir os fins perseguidos que são a proteção da honra da pessoa e a vedação da comercialização da obra não autorizada. Dessa maneira, o meio até que se mostra adequado para promover o fim perseguido, já que a proibição da publicação se mostra capaz de proteger a honra do biografado e a impedir a comercialização do livro. O meio utilizado, além disso, mostra-se necessário à consecução de citados objetivos, pois demonstra ser o menos oneroso para os destinatários da norma. Todavia, ao desconsiderar a liberdade de expressão do biógrafo e o direito à informação de todos a respeito da trajetória de um relevante personagem da história cultural, artística ou política do Brasil, a in-terpretação da lei civil que ignora esses valores causa desvantagens superiores aos benefícios que proporciona. Não sendo, portanto, pro-porcional.

Dessa forma, visando impedir ofensa ao texto constitucional, o dispositivo sob estudo deve ser interpretado em conformidade com a Constituição Federal. Este também é o entendimento do ilustre dou-trinador José Afonso da Silva5:

As chamadas biografias autorizadas não raro são escritas por

encomenda, mediante pagamento. Personalidades que se acham

importantes contratam com algum escriba a elaboração de sua

biografia, que é submetida à sua apreciação, de sorte que, se for

por ele aprovada, será publicada, se não, não o será. São sempre

panegíricas, e é para ser elogiado que o biografado contrata a

biografia.

(...)

A biografia é uma atividade intelectual, inequivocamente, é

manifestação do pensamento, é criação e até informação, além

5 SILVA, José Afonso da. O problema das biografias não autorizadas. São Paulo, 27 de abril de 2014.

Page 179: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

179

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

de sua dimensão histórica. Logo, é uma atividade livre que não

pode sofrer censura nem restrição nem precisa de licença para

ser publicada.

Demais, o invocado direito à privacidade para exigir-se a

autorização não ocorre no caso, primeiro tendo em vista aquela

liberdade garantida nos dispositivos constitucionais, segundo

pessoa notória, que se torna de interesse público pela fama ou

significação intelectual, artística ou política e não poderá alegar

ofensa a seu direito à imagem se a divulgação estiver ligada à

ciência, às letras, à moral, à arte e à política.

No que tange à interpretação conforme a Constituição, Luís Ro-berto Barroso6:

A interpretação conforme a Constituição compreende sutilezas

que se escondem por trás da definição truística do princípio.

Cuida-se, por certo, da escolha de uma linha de interpretação

de uma norma legal, em meio a outras que o Texto comportaria.

Mas, se fosse somente isso, ela não se distinguiria de mera pre-

sunção de constitucionalidade dos atos legislativos, que tam-

bém impõe o aproveitamento da norma sempre que possível. O

conceito sugere ainda mais: a necessidade de buscar uma inter-

pretação que não seja a que decorre da leitura mais óbvia do

dispositivo. É, ainda, da sua natureza excluir a interpretação ou

as interpretações que contravenham a Constituição.

2.2 Reações à disciplina do Código Civil

Além das críticas doutrinárias, foram adotadas medidas concre-tas com o objetivo de rever os dispositivos 20 e 21 do Código Civil. No

6 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 185.

Page 180: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

180 Ricelli Vieira de Oliveira

âmbito legislativo, há o Projeto de Lei 393/2011, que prevê a valida-de das biografias não autorizadas para personalidades públicas vivas ou mortas, independentemente de autorização prévia, do Deputado Newton Lima, que foi aprovado pela Câmara de Deputados e encami-nhado ao Senado Federal. O texto visa acrescentar um parágrafo ao referido art. 20, que terá a seguinte redação:

A mera ausência de autorização não impede a divulgação de

imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de

pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha

dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de

interesse da coletividade.

Referido Projeto de Lei, contudo, resguarda os direitos à indeni-zação, ao ajuizamento de ação penal cabível e ao pedido de exclusão de trecho que lhe é ofensivo em edição futura da obra à pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade.

Diante da grande discussão acerca da constitucionalidade dos ar-tigos 20 e 21 do Código Civil, a questão das biografias não autorizadas também foi objeto de controle concentrado de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. A Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), em julho de 2012, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4815, sob a alegação de incompatibilidade dos artigos 20 e 21 com a Constituição Federal. O objetivo dos autores com a respectiva ação foi a obtenção de provimento jurisdicional da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto dos citados dispositivos, com o intuito de proibir sua interpretação no sentido de condicionar a publicação e/ou a veiculação de obras biográficas à autorização prévia de biografados, de pessoas nelas retratadas como coadjuvantes e, em ambos os casos, de familiares, em se tratando de pessoas falecidas.

Destaque-se a manifestação favorável da Procuradoria-Geral da República pela declaração de inconstitucionalidade dos artigos sob

Page 181: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

181

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

comento, através de seu Parecer, demonstrando que a condição im-posta pelo art. 20 do Código Civil possui caráter restritivo da liber-dade de expressão e do direito à informação, mesmo que justificada na defesa dos direitos da personalidade dos indivíduos. Sustentando, ainda, não se tratar de caráter absoluto do direito fundamental da li-berdade de expressão, mas apenas do reconhecimento de uma grande proteção que a liberdade de expressão tem no Brasil. Ressaltando que tamanha proteção decorre do elemento histórico, baseado no fato de que a Constituição Federal de 1988 foi elaborada em um momento de redemocratização.

No que concerne às pessoas públicas, são reduzidas as esferas de proteção de sua intimidade e privacidade. Nesse sentido, o professor Gustavo Tepedino no Parecer anexado à ADI 48157:

(...) homens públicos, que por assim dizer, protagonizam

a história, ao assumirem posição de visibilidade, inserem

voluntariamente a sua vida pessoal e o controle de seus dados

pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato

histórico e a biografias.

Em 10 de junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou pro-cedente a ação direta de inconstitucionalidade, por unanimidade, e declarou que não é necessária autorização prévia para a publicação de biografias. Decisão que possui a seguinte ementa:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.

ARTS. 20 E 21 DA LEI N. 10.406/2002 (CÓDIGO CIVIL).

PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA REJEITADA.

REQUISITOS LEGAIS OBSERVADOS. MÉRITO: APARENTE

CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS:

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 01/02/2016.

Page 182: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

182 Ricelli Vieira de Oliveira

LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DE INFORMAÇÃO,

ARTÍSTICA E CULTURAL, INDEPENDENTE DE CENSURA

OU AUTORIZAÇÃO PRÉVIA (ART. 5º INCS. IV, IX, XIV; 220,

§§ 1º E 2º) E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, VIDA

PRIVADA, HONRA E IMAGEM DAS PESSOAS (ART. 5º,

INC. X). ADOÇÃO DE CRITÉRIO DA PONDERAÇÃO PARA

INTERPRETAÇÃO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.

PROIBIÇÃO DE CENSURA (ESTATAL OU PARTICULAR).

GARANTIA CONSTITUCIONAL DE INDENIZAÇÃO E

DE DIREITO DE RESPOSTA. AÇÃO DIRETA JULGADA

PROCEDENTE PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME À

CONSTITUIÇÃO AOS ARTS. 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL, SEM

REDUÇÃO DE TEXTO. 1. A Associação Nacional dos Editores

de Livros - Anel congrega a classe dos editores, considerados,

para fins estatutários, a pessoa natural ou jurídica à qual se

atribui o direito de reprodução de obra literária, artística ou

científica, podendo publicá-la e divulgá-la. A correlação entre

o conteúdo da norma impugnada e os objetivos da Autora

preenche o requisito de pertinência temática e a presença de

seus associados em nove Estados da Federação comprova sua

representação nacional, nos termos da jurisprudência deste

Supremo Tribunal. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.

2. O objeto da presente ação restringe-se à interpretação dos

arts. 20 e 21 do Código Civil relativas à divulgação de escritos,

à transmissão da palavra, à produção, publicação, exposição ou

utilização da imagem de pessoa biografada. 3. A Constituição

do Brasil proíbe qualquer censura. O exercício do direito à

liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou

por particular. 4. O direito de informação, constitucionalmente

garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e

de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião

pública, considerado cada qual dos cidadãos que pode receber

Page 183: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

183

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

livremente dados sobre assuntos de interesse da coletividade

e sobre as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-

sociais, interferem em sua esfera do acervo do direito de saber, de

aprender sobre temas relacionados a suas legítimas cogitações.

5. Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir

da soleira da porta de casa. 6. Autorização prévia para biografia

constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é

censura judicial, a substituir a administrativa. O risco é próprio

do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se coartando

liberdades conquistadas. A reparação de danos e o direito de

resposta devem ser exercidos nos termos da lei. 7. A liberdade

é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por

outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda

por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o

argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito

constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade

do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem. 8.

Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX

e X do art. 5º, há de se acolher o balanceamento de direitos,

conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da

intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa

biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias. 9.

Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme

à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução

de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais

à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação

artística, produção científica, declarar inexigível autorização

de pessoa biografada relativamente a obras biográficas

literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária

autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de

seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).

(STF - ADI 4815, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal

Page 184: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

184 Ricelli Vieira de Oliveira

Pleno, julgado em 10/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-

018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016).

De acordo com a Relatora Min. Cármen Lúcia, a redação do art. 20 do Código Civil é questionável, uma vez que a Constituição assegura a liberdade do direito de expressão, garante a liberdade e o dever de informar e ser informado, e a norma do Código Civil dispõe que pode se informar, pode se transmitir a palavra por escrito, audiovisual, des-de que o interessado autorize, ou, na hipótese de ausência de autori-zação, poderá seu requerimento impedir a circulação da expressão do pensamento.

Destaque-se a conclusão do voto da Relatora, in verbis:

Por isso, considerando que:

a) a Constituição da República assegura como direitos

fundamentais a liberdade de pensamento e de sua expressão, a

liberdade de atividade intelectual, artística, literária, científica,

cultural;

b) a Constituição da República garante o direito de acesso à

informação, no qual se compreende o direito de informar, de se

informar e de ser informado, a liberdade de pesquisa acadêmica,

para o que a biografia compõe fonte inarredável e fecunda;

c) a Constituição brasileira proíbe censura de qualquer natureza,

não se podendo concebê-la de forma subliminar pelo Estado ou

por particular sobre o direito de outrem;

d) a Constituição vigente garante a inviolabilidade da

intimidade, da privacidade, da honra e da dignidade da pessoa,

estabelecendo a consequência do descumprimento dessa

norma pela definição da reparação de contrariedade a ela por

indenização a ser definida; e

e) norma infraconstitucional não pode cercear ou restringir

direitos fundamentais constitucionais, ainda que sob

Page 185: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

185

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

o pretexto de estabelecer formas de proteção, impondo

condições ao exercício das liberdades de forma diversa daquela

constitucionalmente permitida, o que impõe se busque a

interpretação que compatibilize a regra civil com a sua norma

fundante, sob pena de não poder persistir no sistema jurídico;

Voto no sentido de julgar procedente a presente ação direta

de inconstitucionalidade, para dar interpretação conforme à

Constituição da República aos arts. 20 e 21 do Código Civil,

sem redução de texto, para, a) em consonância com os direitos

fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão,

de criação artística e produção científica, declarar inexigível

o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras

biográficas, literárias ou audiovisuais, fixada genericamente

na regra civil, sendo por igual desnecessária autorização de

pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares,

em caso de pessoas falecidas); e b) reafirmar o direito à

inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra

e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5º da

Constituição da República. (sem o grifo no original)

Não obstante a decisão da Suprema Corte conferir interpretação conforme a Constituição dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que seja vedada a necessidade de prévia autorização do biografado ou de seus herdeiros para publicação de biografia, não se está a admitir ofensa aos direitos da personalidade.

Os Ministros ressaltaram a proteção aos direitos do biografado. A biografia poderá ser lançada mesmo sem autorização do biografado, mas se se ficar constatado que houve abuso da liberdade de expres-são e violação à honra do indivíduo retratado, este poderá pedir: a reparação dos danos morais e materiais que sofreu; a retificação das informações veiculadas; o direito de resposta; e até mesmo, em últi-mo caso, a responsabilização penal do autor da obra.

Page 186: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

186 Ricelli Vieira de Oliveira

Conclui-se, assim, pela validade das biografias não autorizadas em observância às liberdades de expressão e informação, não devendo ser exigida autorização prévia do biografado ou de seus herdeiros para a divulgação da obra. Sendo resguardado, entretanto, o direito à indeni-zação na hipótese de danos morais e materiais causados ao biografado.

3. CONCLUSÃO

No âmbito desse estudo, restou demonstrada a importância da teoria geral dos direitos fundamentais dentro de um Estado Democrá-tico de Direito. Destacando que em um Estado de Direito, a Consti-tuição contempla várias ideologias diferentes que, por diversas vezes, entram em confronto.

Diante das significativas diferenças existentes entre os valores resguardados pelos direitos da liberdade de expressão e à vida priva-da, em muitas oportunidades eles entram em conflito. De acordo com o princípio da unidade da Constituição, inexiste hierarquia jurídica entre as normas constitucionais. Os direitos fundamentais possuem o mesmo status jurídico, no ordenamento jurídico pátrio, sendo a única forma de solucionar tal conflito a ponderação de valores constitucio-nais que se opera por meio de um juízo de proporcionalidade, evitan-do o sacrifício definitivo de algum deles.

Foi apresentado que as biografias não autorizadas traduzem o confronto entre os direitos da personalidade e a liberdade de expres-são. Sendo tal matéria disciplinada pelo Código Civil em seu art. 20, observou-se que através da interpretação literal do dispositivo é pos-sível a proibição, a pedido do interessado, da utilização da imagem de uma pessoa ou da divulgação de fatos sobre alguém, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, inclusive para fins jorna-lísticos. Sendo possível a divulgação apenas com a autorização do envolvido ou na hipótese da condição da exibição ser imprescindível para a administração da justiça ou a manutenção da ordem pública.

Page 187: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

187

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Todavia, mostrou-se necessário interpretar o dispositivo do Có-digo Civil em conformidade com a Constituição Federal, assim, a publicação de informações verídicas e obtidas por meios admitidos em direito se presume necessária ao bom funcionamento da ordem pública.

Diante da criticada disciplina do diploma cível sobre o tema, além das reações doutrinárias, há em trâmite um projeto de lei que visa emendar o art. 20, deixando claro que a ausência de prévia au-torização do interessado não impede a divulgação de imagens, escri-tos e informações com finalidade biográfica de pessoa de trajetória artística ou profissional de dimensão pública ou que participou de acontecimentos de interesse público. Sedimentando tal entendimen-to, a Suprema Corte decidiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4815, dando interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21, do Código Civil, declarando a prescindibilidade do consenti-mento da pessoa biografada para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais.

Assim, é possível concluir pela validade das biografias não auto-rizadas em observância às liberdades de expressão e informação. De-vendo ser resguardada a ampla liberdade de expressão dos escritores, independentemente de autorização dos biografados, em respeito ao texto constitucional. No entanto, não se defendeu a liberdade irres-ponsável, devendo a mesma ser exercida com prudência, sob pena de escritor e editora responderem pelos danos morais e materiais causa-dos ao biografado, decorrentes de publicação de inverdades ou ofen-sas à honra deste.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais. Palestra proferida no Rio de

Page 188: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

188 Ricelli Vieira de Oliveira

Janeiro, na Fundação Casa de Rui Barbosa, em outubro de 1988. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, 1998.

AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional da Própria Imagem – Pessoa Física, Pessoa Jurídica e Produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

______; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucio-nal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo, n. 36, 2001. Dispo-nível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-01.htm>. Acesso em: 17 de janeiro de 2014.

______. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: Revista da Asso-ciação dos Juízes Federais do Brasil. Brasília, ano 23, n. 82, 4º trimes-tre, pp. 109-157, 2005, p. 141.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4ª ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. rev. atual. amp. São Paulo: Malheiros, 2000.

Page 189: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

189

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

BRASIL. Código Civil, Lei 10. 406, de 10 de janeiro de 2002. Dispo-nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 25 de novembro de 2016.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 25 de novembro de 2016.

______. Projeto de Lei 393/2011, de 15 de fevereiro de 2011. Altera o art. 20 da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, para ga-rantir a liberdade de expressão, informação e o acesso à cultura. Dispo-nível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramita-cao?idProposicao=491955>. Acesso em: 25 de novembro de 2016.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstituciona-lidade nº. 4.815. Requerente: Associação Nacional dos Editores de Livros - ANEL. Requeridos: Presidente da República e Presidente do Congresso Nacional. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4271057. Acesso em: 25 de novembro de 2016.

______. Supremo Tribunal Federal. Audiência Pública da Ação Di-reta de Inconstitucionalidade nº. 4.815. STF na mídia, Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 22 de novembro de 2013. Disponí-vel em: <http://sumula.linearclipping.com.br/STF/2013/Novem-bro/22112013/MinistroGilmarMendes-22112013.pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2014.

CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito à infor-mação x direito à privacidade. O conflito de direitos fundamentais. Fórum: Debates sobre a Justiça e Cidadania. Revista da AMAERJ, n. 5, 2002.

Page 190: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

190 Ricelli Vieira de Oliveira

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Controle de Constitucionalidade e Demo-cracia. In: MAUÉS, Antonio G. Moreira (org.). Constituição e Demo-cracia. São Paulo: Max Limond, 2001.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 2. ed. São Pau-lo: Saraiva, 1983.

FARIAS, Edilsom de Pereira. Colisão de direitos - a honra, a intimi-dade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e de informação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.

______. Liberdade de expressão e comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 1: parte geral. 14. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os Direitos Fundamentais como limites ao Poder de Legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Frabis, 2001.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de Direitos Fundamentais: Li-berdade de Expressão e de Comunicação e Direito à Honra e à Imagem. In: Revista de Informação Legislativa, v. 31, n. 122, p. 297-301, abr./jun. 1994. Disponível em: <http://www.gilmarmen-des.org.br/index.php?option=com_phocadownload&view=cate-

Page 191: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

191

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

gory&id=9:direitos-fundamentais&Itemid=74>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2014.

______, et al. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

______. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed. São Paulo: Saraiva: 2004.

______; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucio-nal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fun-damentais na Constituição Federal de 1988. 2ª ed., Porto Alegre: Li-vraria do Advogado, 2002.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2002.

______. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Ed., 2006.

______. O problema das biografias não autorizadas. São Paulo, 27 de abril de 2014. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/04/1446101-jose-afonso-da-silva-o-problema--dasbiografias-autorizadas.shtml>. Acesso em 24 de maio de 2014.

Page 192: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra
Page 193: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

RESUMO1

A disponibilidade de diversas tecnologias de redes sem fio proporciona uma maior gama de opções aos usuários móveis. O handover entre redes heterogêneas cons-titui-se em um importante aspecto a ser analisado no provimento de qualidade de serviço em aplicações de áudio e vídeo. Neste sentido, o presente trabalho realiza uma avaliação de desempenho na transição entre as redes Wi-Fi e WiMAX utilizando como métricas o atraso fim-a-fim, vazão e jitter, verificando o impacto advindo do aumento da quantidade de estações móveis em processo de handover. Foi utilizado o módulo baseado no padrão IEEE 802.21, para o simulador de redes NS-2. Os resulta-dos de simulação mostraram que o aumento da carga na rede mediante o acréscimo de terminais móveis acarretou em uma diminuição na vazão, contudo, a qualidade de serviço mediante o processo de handover atendeu aos requisitos necessários para o fornecimento de serviços de aplicações multimídia.Palavras chave: Redes Heterogêneas, Handover Vertical, IEEE 802.21

Mestre em Ciência da Computação, Pós-Graduando em Segurança da Informação. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe lotado na Diretoria de Tecnologia da Informação. Endereço eletrônico: [email protected]

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017 | p. 193-210

Page 194: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

194 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

1. INTRODUÇÃO

Estamos vivendo a era da informação. A quantidade de informa-ção multimídia com conteúdo de áudio e vídeo presente na Inter-net é enorme. O crescimento vertiginoso das aplicações multimídia é resultado do aumento da penetração do acesso residencial à banda larga e do acesso sem fio de alta velocidade – Wi-Fi (KUROSE, 2010).

Atualmente, há uma intensa utilização de dispositivos móveis inteligentes (celulares, smartphones, tablets, entre outros), que são responsáveis por altos volumes de tráfego de dados (GIL, 2011). Os provedores de TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) po-dem agregar valor aos seus serviços, através da diminuição de custos na oferta de novos serviços que aproveitem a infraestrutura já dis-ponível, também por meio do aumento do valor de estima, fazendo uso da variedade de tecnologias já disponíveis nos equipamentos dos usuários e ainda aumentando o ganho dos usuários com serviços efi-cientes que atendam parâmetros pré-estabelecidos de qualidade de serviço - QoS (Quality of Service). A avaliação de desempenho desses sistemas é uma ferramenta imprescindível para a escolha e tomada de decisão sobre quais tecnologias aumentam o valor agregado dos serviços de TIC.

Devido à mobilidade e possível migração entre tecnologias, o dispositivo móvel deve antes se desassociar de uma rede para co-nectar-se a outra. Esse fenômeno é conhecido como handover ou handoff. Um dos maiores desafios no gerenciamento de handover nestes ambientes heterogêneos é a de fazer com que o handover seja realizado de forma imperceptível ao usuário. O padrão IEEE 802.21 (Media Independent Handover - MIH) propõe mecanismos para ge-renciar o processo de handover, de tal forma que estes sejam im-perceptíveis aos usuários, mantendo as aplicações que estavam em execução correntemente e liberando os usuários de qualquer confi-guração de interface de rede.

Page 195: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

195

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

O artigo está organizado da seguinte forma: na próxima seção é definido o objetivo do presente trabalho; na seção 3 são descritas as principais características do gerenciamento de handover em redes heterogêneas, bem como uma visão geral do padrão IEEE 802.21; na seção 4 são discutidos trabalhos encontrados na literatura que ex-ploram cenários de handover em redes heterogêneas; na seção 5 é apresentada a metodologia de avaliação de desempenho; na seção 6 é realizada a avaliação de desempenho. Após isso, na seção 7 são apresentadas as conclusões advindas com a realização deste trabalho, bem como uma perspectiva para trabalhos futuros.

2. DEFINIÇÃO DO OBJETIVO A fim de verificar o ganho com a implementação de serviços de

handover torna-se necessário avaliar o impacto da implementação desse serviço em aplicações multimídia. O objetivo deste artigo, for-malizado utilizando o modelo GQM (Goal, Question, Metric) proposto por Basili (Basili et al., 1994) é, portanto, analisar o handover em re-des sem fio, com a finalidade de avaliar aplicações multimídia, com respeito à qualidade de serviço, do ponto de vista do provedor de serviço para redes sem fio, no contexto das redes Wi-Fi e WiMAX.

Portanto, a finalidade é a avaliar se é possível obter qualidade de serviço desejada para aplicações multimídia em redes sem fio, mes-mo em situações de handover. As redes analisadas no processo de handover são a WiMAX e Wi-Fi.

3. HANDOVER EM REDES HETEROGÊNEAS

Um dos objetivos das redes sem fio é liberar os seus usuários das limitações decorrentes das redes cabeadas, fornecendo-lhes o recurso da mobilidade. O crescimento das tecnologias de redes sem fio em combinação com a evolução de dispositivos móveis com múltiplas

Page 196: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

196 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

interfaces de rede tem permitido aos usuários obter acesso à Internet a partir de qualquer tecnologia de rede de acesso. O gerenciamento de handover é um aspecto indispensável na elaboração de soluções nas quais envolvam essa mudança de tecnologias de forma automatizada e imperceptível para o usuário.

O processo de gerenciamento de handover é definido em três fa-ses (KASSAR et al., 2008):

Obtenção de Informações Decisão de Handover Execução de Handover

Na Fase 1, também conhecida como Fase Inicial de Handover ou Descoberta de Sistema, são coletadas todas as informações requeri-das para identificar a necessidade de troca de conexão entre redes. Segundo (SILVA et al., 2010), nessa fase são obtidas algumas infor-mações como parâmetros de QoS (Quality of Service – Qualidade de Serviço), custo monetário, pontos de acesso alcançáveis e potência de sinal das redes candidatas, sendo que a obtenção de tais dados advém dos critérios definidos pelos usuários, baseados na satisfação de suas necessidades.

A Fase 2 é a responsável pela tomada de decisão da realização ou não handover. Caso haja esta necessidade, será selecionada a rede mais adequada levando em consideração as informações provenien-tes da fase anterior. Esta fase também é chamada de Fase de Seleção de Sistema ou Fase de Seleção de Rede.

Na Fase 3 é realizada a mudança para a rede de acesso escolhida na fase anterior. Essa fase é responsável pela manutenção das sessões do usuário iniciadas no período anterior ao handover.

Existem duas modalidades de handover: horizontal e vertical. O handover horizontal é aquele que envolve as mesmas tecnolo-gias de rede, enquanto que o handover vertical abrange diferentes tecnologias. Neste artigo, o handover vertical é considerado para a

Page 197: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

197

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

avaliação de desempenho por causa do cenário composto por redes heterogêneas.

Na literatura são encontradas diversas classes e subclasses de processos de handover vertical. De um modo geral o handover verti-cal pode ser classificado: quanto ao número de conexões existentes no momento de sua execução e quanto à localização do controle ou a decisão para realização do mesmo.

Quanto ao número de conexões existentes no momento de sua execução, o handover pode ser classificado em hard ou soft. O primei-ro ocorre quando o nó móvel está conectado a apenas uma rede no momento da execução, sendo referenciado como um handover break before make, isto é, interrompa antes de realizar. No segundo tipo, o terminal móvel permanece conectado à rede antiga antes de associar--se à rede alvo, sendo referenciado como make before break, ou seja, realiza o handover antes de interromper a conexão antiga.

Em cenários de handover vertical um aspecto bastante relevante é que o processo de transição para uma nova rede de acesso seja se-amless, ou seja, imperceptível ao usuário, de modo que não ocorra uma degradação do serviço oferecido ao mesmo e haja a preservação das aplicações que estavam em execução. Dessa forma, o handover deve ser rápido, ou seja, com mínimo atraso, e suave, para que se tenha mínima perda de pacotes.

Quanto à localização do controle ou a decisão para realização do handover, o processo de decisão pode estar situado na própria rede ou no terminal móvel. Quando somente a rede detém o controle de execução do handover, temos um handover controlado pela rede (Ne-twork-Controlled Handover – NCHO). Já no caso em que tal controle é realizado pelo nó móvel, temos o chamado handover controlado pelo nó móvel (Mobile-Controlled Handover – MCHO). Quando as in-formações e medições são providas pelo terminal móvel e o controle de decisão está localizado na rede, o handover é referenciado como assistido pelo terminal móvel (Mobile-Assisted Handover – MAHO).

Page 198: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

198 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

Quando a rede fornece as informações e a decisão reside no terminal móvel, temos o chamado handover assistido pela rede (Network-Assis-ted Handover – NAHO) (KASSAR et al., 2008).

3.1 Padrão Ieee 802.21 - Handover

O Padrão IEEE 802.21 (IEEE 802.21, 2008), denominado de Media Independent Handover (MIH), define um framework que tem como objetivo melhorar significativamente o handover entre tecnologias de redes heterogêneas. Ele contém as ferramentas necessárias para faci-litar o início e a preparação do handover (TANIUCHI et al., 2009). O padrão 802.21 suporta sistemas IEEE 802 (IEEE 802.11, 802.16e) e sis-temas que não pertencem a este grupo, como, por exemplo, as redes de celulares. O propósito básico do IEEE 802.21 é facilitar o handover entre redes de diferentes tecnologias para proporcionar uma mobili-dade que seja imperceptível ao usuário, mantendo as aplicações cor-rentemente em execução.

A Figura 1 adaptada de (OLIVA et al., 2008) dá uma visão geral sobre a arquitetura interna de diferentes elementos em redes que dão suporte ao padrão IEEE 802.21: o nó móvel, a rede IEEE 802, a rede 3GPP (rede celular 3G) e o seu núcleo de rede. O nó móvel possui duas interfaces de rede, uma com tecnologia baseada em um dos pa-drões 802 e outra 3GPP, e encontra-se conectado a rede por meio da sua interface 802.

Nesta figura pode-se observar que todos os elementos possuem uma estrutura semelhante em volta de uma entidade central chamada de Função MIH (MIH Function – MIHF). A MIHF funciona como uma camada intermediária entre a camada de enlace e física, e as camadas superiores, que é responsável por coordenar a troca de informações entre os diversos dispositivos envolvidos na decisão de handover, bem como executar o handover. A Função MIH engloba os três tipos de serviços: Serviço de Eventos, de Comandos e de Informação.

Page 199: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

199

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

Figura 1 – Arquitetura do Padrão IEEE 802.21.

O Serviço de Eventos (Media Independent Event Service – MIES) detecta mudanças nas propriedades da camada de enlace e relata eventos apropriados provenientes das interfaces locais e remotas. O Serviço de Comandos (Media Independent Command Service – MICS) fornece um conjunto de comandos para usuários MIH locais e remo-tos a fim de controlar o estado do enlace. Já o Serviço de Informação (Media Independent Information Service – MIIS) provê informações sobre redes vizinhas incluindo sua localização, propriedades e servi-ços relacionados.

O Serviço de Eventos define eventos que podem indicar mudan-ças no comportamento do estado e da transmissão das camadas física, de enlace e lógica, ou predizer mudanças de estado destas camadas. Existem duas categorias principais de eventos: eventos de enlace que se originam de camadas inferiores e propagam-se de forma ascen-dente e eventos MIH oriundos da MIHF. Dentre os principais eventos existentes estão:

Page 200: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

200 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

• Link detected: é gerado quando a interface de um nó móvel de-tecta a presença de uma rede de acesso para poder associar-se a ela.

• Link up: ocorre quando um terminal móvel se associa a um determinado ponto de acesso

• Link going down: evento que indica que a iminência da perda de conexão da interface de rede corrente. A geração deste even-to é feita utilizando o nível de potência dos pacotes recebidos.

• Link down: evento que sucede o link going down. Indica que o sinal foi perdido, ou seja, que o nó móvel saiu da área de cobertura da rede à qual estava conectado.

O Serviço de comandos fornece comandos para controlar o estado do enlace. Comandos podem ser invocados localmente ou remotamen-te por usuários MIH ou pela própria função MIH. Por exemplo, um usuário MIH pode controlar a reconfiguração ou seleção de um enlace apropriado. Comandos locais propagam de usuários MIH para a fun-ção MIH e desta para as camadas inferiores. Comandos remotos são transportados por mensagens de protocolo MIH e podem se propagar da função MIH na pilha local de protocolo para a função MIH remota.

Serviço de Informação define um conjunto de elementos de infor-mações (Information Elements – IEs), sua estrutura e representação da informação, e um mecanismo baseado em pergunta-resposta para trans-ferência de informação. O MIIS provê um arcabouço para que entidades MIH possam descobrir informações úteis para realizar decisões de han-dover. Por exemplo, ele pode ser utilizada para descobrir informações sobre as redes dentro de uma área geográfica específica para permitir uma decisão mais eficaz de realização e execução de handover.

Os Usuários MIH (MIH Users) são abstrações das entidades fun-cionais que empregam serviços MIH, isto é, aplicações que fazem uso de serviços MIH. Um típico usuário de tais serviços pode ser uma

Page 201: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

201

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

aplicação de gerenciamento de mobilidade que utilizará estes servi-ços para otimizar handovers, como implementações de algoritmos de decisão para selecionar uma rede candidata entre várias alternativas.

Os Pontos de Acesso de Serviço (Service Access Points – SAPs) mostrados na Figura 1 oferecem uma interface comum entre os Usuá-rios MIH e a MIHF, entre a camada de enlace e a MIHF e entre MIHFs remotas. Essas interfaces oferecem abstrações das funções da camada de enlace para tornar a MIHF independente das especificidades das tecnologias. Os MIH SAPs são definidos em termos de primitivas na especificação IEEE 802.21 que oferece informações sobre suas funcio-nalidades e parâmetros.

4. TRABALHOS RELACIONADOS

O Wi-Fi e o WiMAX são exemplos de redes sem - o bastante di-fundidas atualmente. Neste artigo o handover entre as redes Wi-Fi e WiMAX utiliza o padrão IEEE 802.21 que possui a vantagem de for-necer a comunicação entre as camadas inferiores e superiores através de uma interface independente ao meio.

O Wi-Fi destaca-se pela sua tecnologia bastante consolidada, sen-do o principal padrão para redes locais sem - o e presente na maioria dos dispositivos móveis. O WiMAX é uma tecnologia que visa ofe-recer acesso em banda larga sem - o na última milha, que oferece concorrência às tecnologias como DSL, redes 3G e Cable Modem. Em Matos et al. (2009) foi avaliado o impacto do aumento de estações assinantes, para o tráfego streaming de vídeo e Voz sobre IP (VoIP – Voice over IP), em redes WiMAX. Em tal trabalho, atestou-se a capa-cidade do WiMAX de garantir a qualidade de classes (esta tecnologia emprega o conceito de classes de serviço) de maior prioridade em concorrência com classes de menor prioridade.

Na literatura há diversos trabalhos que abordam handovers en-tre as redes Wi-Fi e WiMAX, como pode ser observado em Zhang et

Page 202: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

202 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

al. (2008), Yang et al. (2008) e Pontes et al. (2008). Em Marques et al. (2010) há uma abordagem do processo de sinalização utilizado no pa-drão IEEE 802.21 em relação ao handover entre WiMAX e Wi-Fi. Os autores propõem um modo de determinar o número de handovers es-perados em uma simulação na ferramenta NS-2 (NS-2 2001) (Network Simulator), além de avaliar a confiabilidade e escalabilidade do NS-2 ao se utilizar cenários 802.21 com múltiplos dispositivos móveis. Para avaliar o NS-2 como uma plataforma de simulação de handovers em cenários 802.21 são medidos a perda de pacotes do sistema, o atraso de handover e o impacto do aumento da taxa de bits no sistema.

Em Silva A. et al. (2011), é proposto um framework de testes para algoritmos de decisão de handover em redes heterogêneas, que combina recursos de simulação e emulação de redes. O trabalho re-ferido utiliza o NS-2 e o Dummynet como simulador e emulador de redes, respectivamente, realizando o handover entre as redes Wi-Fi e WiMAX. Para avaliar o framework foi utilizado como algoritmo de de-cisão o Processo Hierárquico e Analítico [Saaty 1994] (Analytic Hie-rarchy Process - AHP) e a análise do atraso de propagação e perda de pacotes para ambas as redes envolvidas.

Em Silva S. et al. (2012a), é realizada uma análise de desempenho de handover vertical fazendo uso do padrão IEEE 802.21 e do NS-2, utilizando um algoritmo de decisão de handover que avalia a potên-cia de sinal das redes Wi-Fi e WiMAX, por meio de simulação no NS-2. A análise de desempenho utiliza como métricas a perda de pacotes gerada pelo tráfego CBR e o atraso de handover para ambas as redes. Em Silva S. et al. (2012b), é avaliado o desempenho de aplicações de voz submetidas a handover entre as redes Wi-Fi e WiMAX. As métri-cas utilizadas foram a perda de pacotes e o tempo de handover, ou seja, o tempo gasto para um dispositivo móvel se desassociar da rede atual e se conectar à rede alvo. Os resultados de simulação mostraram que atraso de handover para ambas as redes e a perda de pacotes não ultrapassaram o limite aceitável para aplicações VoIP.

Page 203: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

203

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

5. METODOLOGIA

As métricas de desempenho utilizadas no presente artigo foram atraso de propagação fim-a-fim, vazão (throughput) e jitter, uma vez que correspondem a métricas comumente abordadas em Qualidade de Serviço (ANDREWS et al., 2007).

A lista de parâmetros que afeta o desempenho do sistema é dada na tabela 1, a seguir:

Tabela 1 – Parâmetros de simulação

Parâmetro Valor

Número de nós móveis De 1 a 10

Número de replicações 20

Velocidade dos nós 50 Km/h

Tráfego trace de vídeo com resolução 352x288fps, formato MPEG-4

Cobertura WiMAX 500 m

Cobertura Wi-Fi 100 m

Estes são os principais parâmetros de entrada utilizados para a si-mulação. São utilizados até 10 nós móveis com movimento retilíneo à velocidade constante de 50 Km/h. O número de replicações referente à simulação foi de 20 para atingir um nível de confiança de 95%. Para simular as aplicações foi utilizada uma carga de trabalho real que corresponde a um trace de vídeo no formato MPEG-4 com resolução 352x288 fps, a partir de traces disponíveis em (TRACES, 2010). A cobertura das redes utilizadas no cenário de simulação foi de 500 metros para a rede WiMAX e 100 metros para a rede Wi-Fi, baseado em (SILVA et al., 2012).

Os fatores utilizados para estudo foi quantidade de nós móveis, com níveis de 1 a 10. Cada dispositivo móvel possui as coordenadas de origem e destino já pré-definidas no cenário de rede em estudo. A técnica de avaliação utilizada foi a de simulação, sendo escolhido o simulador NS-2 (Network Simulator versão 2), por se tratar de uma

Page 204: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

204 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

ferramenta de código aberto, popular e bastante utilizada para fins de pesquisa. Devido a tal fato, há um contínuo desenvolvimento de inú-meros módulos e extensões para o NS-2. Dentre estes módulos, existe um pacote de mobilidade que foi utilizado neste trabalho, baseado no padrão IEEE 802.21 desenvolvido pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST – National Institute of Standards and Technology) que oferece suporte a cenários de handover vertical, desenvolvido para a versão 2.29 do NS-2, mas que não se encontra disponível na versão padrão do NS-2.

6. AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO

Esta seção apresenta o cenário de simulação utilizado para avaliar o desempenho de um sistema que implementa o padrão IEEE 802.21, bem como a análise dos resultados da simulação.

6.1 Cenário de Simulação

Este trabalho considera o handover entre as redes Wi-Fi e WiMAX. O algoritmo de decisão de handover utilizado leva em consideração a força do sinal recebido no terminal móvel, e atribui preferência maior a interface Wi-Fi, devido ao fato desta consumir menos energia que a interface WiMAX e de hotspots Wi-Fi oferecerem acesso gratuito. O handover realizado é controlado pelo terminal móvel, além de ser feito antes de ser interrompida a conexão, ou seja, mantêm as duas conexões ativas, a antiga e a nova, para só posteriormente se desassociar à antiga.

A topologia de rede utilizada, baseada em (SILVA et al., 2012), consiste em três pontos de acesso (AP1, AP2 e AP3), uma estação base (BS) e um nó correspondente (CN) conectados a um roteador via enlaces cabeados Ethernet de 1 Gbps, como representado na Figura 2. Como observado na mesma, os nós móveis iniciam na rede WiMAX e percorrem as células Wi-Fi em movimento retilíneo com velocidade

Page 205: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

205

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

de 50 Km/h. Um dispositivo móvel pode ser um celular no interior de um carro, por exemplo, através do qual está sendo executada uma aplicação de vídeo, como explanado na Figura 3.

Figura 2 – Topologia da rede simulada

Figura 3 – Trajetória de um dispositivo móvel

Page 206: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

206 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

6.2 Análise dos Resultados

Em todos os resultados obtidos, foi utilizado um intervalo de confiança de 95%. A Figura 4 apresenta o resultado de atraso médio fim-a-fim em função do número de nós móveis. Pelo gráfico, obser-va-se um crescimento linear do atraso em função do número de nós móveis, ficando muito abaixo do limite aceitável em aplicações sen-síveis ao atraso, que corresponde a valores abaixo de 150 ms (CHEN et al., 2004).

Figura 4 – Atraso fim-a-fim

Na Figura 5 podemos observar a vazão média ao longo da simu-lação. Percebemos que a vazão foi apresentando um declínio, o que é natural, pois é dada uma maior sobrecarga na rede. Entretanto, o va-lor mínimo observado no gráfico – aproximadamente 1400 Kbps – foi superior ao valor desejável para aplicações de vídeo, que corresponde a valores acima de 256 Kbps (KUROSE, 2010).

Page 207: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

207

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

Figura 5 – Vazão (throughput)

Na Figura 6 é apresentada a média do jitter ao longo do acréscimo de dispositivos móveis no sistema. O gráfico apresenta valores de jitter muito baixos, não ultrapassando o valor de 0,018 segundos. Segundo (ANDREWS et al., 2007), para fluxo de multimídia em redes sem fio os valores de jitter desejáveis devem ser inferiores a 2 segundos.

Figura 6 – Jitter

Page 208: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

208 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

Tais resultados mostraram que a qualidade de serviço mediante o processo de handover atendeu aos requisitos necessários para o for-necimento de serviços de aplicações multimídia, no que se refere ao atraso, vazão e jitter.

7. CONCLUSÃO E TRABALHOS FUTUROS

Com a disponibilidade de várias tecnologias de rede sem fio em um mesmo ambiente, e tendo em vista a grande quantidade de infor-mações multimídia trafegando pela Internet, uma avaliação de de-sempenho de aplicações de áudio e vídeo com vistas à qualidade de serviço no contexto de redes sem fio heterogêneas, constitui-se em um importante estudo.

O presente trabalho realizou uma avaliação de desempenho de aplicações multimídia submetidas a handover entre as redes Wi-Fi e WiMAX. Para tal fim, foram consideradas três métricas: atraso fim--a-fim, vazão e jitter. O aumento da carga na rede mediante o acrés-cimo de terminais móveis acarretou em uma diminuição na vazão, porém não comprometeu nos requisitos de qualidade de serviço ne-cessários para o fornecimento de serviços de aplicações multimídia. Como projeto futuro serão realizados experimentos considerando como fator a velocidade dos nós móveis, mediante o processo de handover.

REFERÊNCIAS

ANDREWS, J., GHOSH, A., MUHAMED, R. Fundamentals of WiMAX. [S.l.]: Prentice Hall. 2007.

BASILI, V., CALDIERA, G., ROMBACH, H. The Goal Question Metric Approach. 1994.

Page 209: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

209

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

CHEN, Y.; FARLEY, T.; YE, N. Qos Requirements of Network Applica-tions on The Internet. Inf. Knowl. Syst. Manag., IOS Press, Amster-dam, The Netherlands, The Netherlands, v. 4, n. 1, p. 55–76, 2004.

GIL, A. A Importância da TI para a Copa 2014 e Olimpíadas 2016. Site da Added Soluções em Tecnologia da Informação, agosto, 2011. Dispo-nível em: <http://www.added.com.br/noticia/a-importancia-da-ti-para--a-copa-2014-e-olimpiadas-2016.html>. Acesso em: 03 fev. 2016.

IEEE 802.21. IEEE Standard for Local and Metropolitan Area Networks – Part 21: Media Independent Handover Services. 2008. Disponível em: <http://standards.ieee.org/getieee802/download/802.21-2008.pdf>. Acesso em 17 de nov. 2016.

KASSAR, M., KERVELLA, B., PUJOLLE, G. An overview of vertical handover decision strategies in heterogeneous wireless networks. Com-puter Communications, Elsevier, 2008.KUROSE, J., ROSS, K. Redes de computadores e a internet: uma abor-dagem top-down. 5. ed. São Paulo: Pearson, 2010. xxiii, 614 p. ISBN 9788588639973.

MARQUES, H., RIBEIRO, J., MARQUES, P., RODRIGUEZ, J. Simula-tion of 802.21 Handovers Using NS-2. Journal of Computer Systems, Networks, and Communications, 2010.

MATOS, R., FREIRE, T., SILVA, A., OLIVEIRA, D., SALGUEIRO, R., SALGUEIRO, E. Avaliacão de Desempenho de Tráfego de Vídeo em Redes WiMAX. 8th International Information and Telecommunication Technologies Symposium (I2TS 2009), 2009.

NS-2. The Network Simulator – NS-2. Página oficial do projeto, 2001. Dis-ponível em: <http://www.isi.edu/nsnam/ns>. Acesso em: 10 dez. 2016.

Page 210: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

210 Sávio Roberto Amorim Aragão Silva

PONTES, A., DOS PASSOS SILVA, D., JAILTON, J., RODRIGUES, O., DIAS, K. Handover Management in Integrated WLAN And Mobile Wi-MAX Networks. Wireless Communications, IEEE, v. 15, n. 5, p. 86–95, 2008.

SAATY, T. How to Make a Decision: The Analytic Hierarchy Process. Interfaces 24, p. 19-43, 1994.

SILVA, A., SALGUEIRO, R., SALGUEIRO, E. Framework de Testes para Algoritmos de Decisão de Handover Vertical em Redes Heterogêneas. III Congresso Internacional de Computación y Telecomunicaciones (COMTEL 2011), 2011.

SILVA, S. R. A. A.; SILVA, A. S. F.; SALGUEIRO, R. J. P. B. Análise de Desempenho de Handover em Redes Heterogêneas Utilizando o Padrão IEEE 802.21. In: XII ERBASE - Escola Regional de Computação Bahia, Alagoas e Sergipe, 2012a, Juazeiro. XII WTICGBASE - Workshop de Trabalhos de Graduação e Iniciação Científica Bahia, 2012a.

SILVA, S. R. A. A.; SILVA, A. S. F.; SALGUEIRO, R. J. P. B.; SALGUEI-RO, E. M. Avaliação de Desempenho de Aplicações de Voz submetidas a Handover entre Redes Wi-Fi e WiMAX. Revista de Sistemas e Com-putação, v. 2, p. 2, 2012b.

TANIUCHI, K., OHBA, Y., FAJARDO, V., DAS, S., TAUIL, M., CHENG, Y., DUTTA, A., BAKER, D., YAJNIK, M., FAMOLARI, D. IEEE 802.21: Media Independent Handover: Features, Applicability, and Realiza-tion. Communications Magazine, IEEE, v. 47, n. 1, p. 112–120, 2009.

TRACES. Video traces for network performance evaluation. 2010. Dis-

ponível em: <http://trace.eas.asu.edu/tracemain.html>. Acesso em: 06 jun.

2016.

Page 211: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

211

As contribuições deverão ser enviadas à Comissão Editorial, por email ([email protected]), com a indicação, no assunto, do periódico para o qual deverá ser submetido. No corpo do e-mail informar dados para contato.

Somente material inédito será analisado pela Comissão Editorial que, eventualmente, poderá devolver o trabalho ao autor com suges-tões de adequações.

A publicação em nossa Revista implica na aceitação das condi-ções da cessão de direitos autorais de colaboração autoral inédita e termo de responsabilidade, assim como, colaboração financeira do autor para a publicação.

Será analisado artigos, pareceres, resenhas que obdeçam as se-guintes normas:

1. Formatação exigida para os artigos, resenhas e afins:(a) Tamanho do arquivo: mínimo de 10 e máximo de 20 páginas,

incluindo notas de rodapé e bibliografia;(b) Alinhamento: justificado;(c) Fonte: Times New Roman, normal, tamanho 12 - título, corpo

de texto, citações;(d) Espaçamento entre linhas: 1,5;(e) Destaques em itálico;(f) Citações: entre aspas e sem recuo;(g) Nome, mini currículo atualizado e endereço eletrônico do autor;(h) Título e resumo do artigo em português e em inglês de, no

máximo, 10 linhas.(i) Um autor por trabalho.2. Formatação exigida para os comentários jurisprudenciais e le-

gislativos:

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Page 212: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

212

(a) Tamanho do arquivo: mínimo de 8 e máximo de 15 páginas, incluindo notas de rodapé e bibliografia;

(b) Alinhamento: justificado;(c) Fonte: Times New Roman, normal, tamanho 12 - título, corpo

de texto, citações e sumário; tamanho;(d) Um autor por artigo.

O editor

Page 213: Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhardiversonume... · Revista Multitemas III. Assunto ... os crimes cometidos contra

213

olhar diverso | n. 4 | jan-abr./2017

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIO

ISSN. 2447-0171

C r i a ç ã o

INTOLERÂNCIA CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSAAlanna Correia Silva de Carvalho

UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS Renata Sara Dantas Marques Soares

ESTADO DAS COISAS INCONSTITUCIONAISJuliana Soraia dos Santos

A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

BRASILEIRO

Marcela Ayres Britto Santos

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO CPC/15Jéssica Matos Correa

A RESOLUÇÃO 163/14 DO CONANDA COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS CONTRA AS ABUSIVIDADES DA PUBLICIDADEJoana Angélica Carregosa Silva

A INELEGIBILIDADE REFLEXA POR CONDENAÇÃO EM CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO PARA CARGOS DE ELEIÇÕES PARA O PODER EXECUTIVOLizandra Gardênia dos Santos

CONTRATO DE ADESÃO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDECayo Rubens Castilhano Santos

A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADEJosé Avelar Pereira Mattos Segundo

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E AS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADASRicelli Vieira de Oliveira

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DE APLICAÇÕES MULTIMÍDIA SUBMETIDAS A HANDOVER ENTRE REDES SEM FIOSávio Roberto Amorim Aragão Silva

Revista multitemas | n. 04 . janeiro a abril/2017

ÁREAS: DIREITO E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Revi

sta

mul

titem

as |

DIR

EITO

| n.

04.

jan-

abr/

2017