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306 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 306-325 RESUMO No presente artigo propomo-nos levantar alguns impasses esco- lares de crianças adoecidas pelo câncer. Ao constatarmos seus impedimentos à vida escolar bus- camos trazer à discussão ques- tões inerentes às barreiras im- postas pelo adoecimento, laços sociais e pela própria institui- ção escola. Nossas intervenções, orientadas pela psicanálise, vêm indicando que a infância, quan- do inscrita no ambiente hospi- talar, sofre mudanças que ne- cessitam uma reorganizacão dos investimentos libidinais da criança, dos pais e dos profis- sionais envolvidos no processo. Mesmo que a legislação brasi- leira reconheça o direito de crian- ças e adolescentes hospitalizados ao atendimento pedagógico-edu- cacional, que escolhas têm esses sujeitos? O que pode um psica- nalista, desafiado em sua cida- de, responder a esses impasses sem abrir mão de sua ética no laço estabelecido com as áreas da saúde e da educação? Descritores: crianças com câncer; adoecimento; doença; psi- canálise; educação. Dossiê A ENTRE O HOSPITAL E A ESCOLA: O CANCER EM CRIANÇAS Ruth Helena Pinto Cohen Amanda Gonçalves da Silva Melo Crianças com câncer: introduzindo questões escolares o longo da participação no Projeto Brincante, que ocorre no ambulatório de Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), surgiu o interesse em investigar as consequências do adoecimento pelo câncer para a vida escolar na infância. A atividade do Projeto Brincante utiliza a via lúdica como forma de tratamento possível para o mal-estar imposto pelas doenças e pelo ambiente Professora Adjunta da Pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ Mestranda do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisadora do projeto Brincante/IP/EEFD/UFRJ, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a infância e a adolescência contemporâneas (NIPIAC)

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RESUMO

No presente artigo propomo-noslevantar alguns impasses esco-lares de crianças adoecidas pelocâncer. Ao constatarmos seusimpedimentos à vida escolar bus-camos trazer à discussão ques-tões inerentes às barreiras im-postas pelo adoecimento, laçossociais e pela própria institui-ção escola. Nossas intervenções,orientadas pela psicanálise, vêmindicando que a infância, quan-do inscrita no ambiente hospi-talar, sofre mudanças que ne-cessitam uma reorganizacão dosinvestimentos l ibidinais dacriança, dos pais e dos profis-sionais envolvidos no processo.Mesmo que a legislação brasi-leira reconheça o direito de crian-ças e adolescentes hospitalizadosao atendimento pedagógico-edu-cacional, que escolhas têm essessujeitos? O que pode um psica-nalista, desafiado em sua cida-de, responder a esses impassessem abrir mão de sua ética nolaço estabelecido com as áreasda saúde e da educação?Descritores: crianças comcâncer; adoecimento; doença; psi-canálise; educação.

Dossiê

A

ENTRE O HOSPITAL E AESCOLA: O CANCER

EM CRIANÇAS

Ruth Helena Pinto CohenAmanda Gonçalves da Silva Melo

Crianças com câncer: introduzindoquestões escolares

o longo da participação no ProjetoBrincante, que ocorre no ambulatório de Pediatriado Instituto de Puericultura e Pediatria MartagãoGesteira (IPPMG) da Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ), surgiu o interesse em investigaras consequências do adoecimento pelo câncer paraa vida escolar na infância.

A atividade do Projeto Brincante utiliza a vialúdica como forma de tratamento possível para omal-estar imposto pelas doenças e pelo ambiente

Professora Adjunta da Pós-graduação do Instituto

de Psicologia da UFRJ

Mestranda do Instituto de Psicologia da UFRJ, pesquisadora

do projeto Brincante/IP/EEFD/UFRJ, do Núcleo

Interdisciplinar de Pesquisa para a infância e a

adolescência contemporâneas (NIPIAC)

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hospitalar (Cohen, 2009). O brincarcomo expressão, na qual a criança tema possibilidade de ver facilitado o seuprocesso de elaboração do adoeci-mento, encontra meios de tratar a an-gústia ao ser, a criança, o agente daação (Cohen, Faria e Magnan, 2010).

Durante o período em que ascrianças participam das atividades doprojeto, é possível observar, por meiode diálogos e brincadeiras, as mudan-ças de rotina e, principalmente, as di-ficuldades escolares decorrentes doprocesso de tratamento.

Assim, no trabalho focado comcrianças no espaço hospitalar, o ce-nário é o hospital, a doença e suaspeculiaridades. Sujeitos marcados porum diagnóstico médico, pautado emuma patologia clínica, trazem consi-go uma série de consequências e mo-dificações em suas vidas, que inclu-em o afastamento da escola. Nestecaso, testemunhamos os dilemas es-colares e o fato de o fracasso escolarse encontrar como uma possibilida-de, ou dificuldades escolares apre-sentadas pelas crianças adoecidas.Nosso interesse se volta para os sig-nificados de estar fora da escola parauma criança e suas consequênciassubjetivas.

Nosso objetivo é investigar a in-cidência de impasses escolares (falta,repetência, fracasso escolar) em crian-ças adoecidas pelo câncer. Analisare-mos os aspectos psíquicos envolvidosno adoecimento orgânico e sua rela-ção com a escola. Sabemos que dian-te do adoecimento, a criança vivencia

situações inerentes a esse enquadre.A classe hospitalar é um dos caminhospossíveis para encaminhar questõesque se apresentam neste contexto, aotrazer os conteúdos programáticospara o ambiente hospitalar, buscaminimizar as consequências do afas-tamento da escola e auxilia a criançano acesso à educação. Existem outroscaminhos para o enfrentamento doproblema: o recurso de professoresparticulares, a abertura da escola paraa realização de diferentes avaliaçõese, até mesmo, a interrupção tempo-rária das aulas regulares durante o tra-tamento. Tais caminhos dependem daimportância da educação para cadafamília e principalmente para o sujei-to adoecido. O que representa a es-cola/educação para cada sujeito, nomomento do adoecimento e ou aolongo do tratamento? Este aspecto doproblema é o que pretendemos tra-zer à luz do debate neste artigo.

Estamos interessados no estudoda psicanálise aplicada, pautado emdois eixos: Psicanálise aplicada à edu-cação e a Psicanálise aplicada à saú-de, em articulação com a educação,ou seja, pretendemos interrogar essarede.

Gonçalves e Valle (1999) estuda-ram o significado que o abandonoescolar tem para as crianças com cân-cer e concluíram que o absenteísmorepresenta muito mais que apenasprejuízos acadêmicos. Por meio de seuestudo, apresentaram como empeci-lhos à escolaridade questões ineren-tes ao adoecimento e tratamento (pro-

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blemas de saúde como febre, dor, fra-queza, sonolência), questões sociais(curiosidade despertada na escola pelaalopecia e pelo uso de máscaras deproteção) e, ainda, barreiras impos-tas pela própria escola (burocracia,inflexibilidades).

Segundo dados do Instituto Na-cional do Câncer INCA (Brasil, 2008),o câncer pediátrico tem um índice deaté 3% em relação a todas as neopla-sias na maioria da população brasilei-ra, e a previsão para esse ano é decerca de 351.720 casos novos de cân-cer; destes, cerca de 9890 casos no-vos acontecerão em crianças e ado-lescentes até 18 anos. Os tumorespediátricos têm características pecu-liares, são de crescimento rápido e, noentanto respondem melhor aos tra-tamentos e são considerados de bomprognóstico. Dos cânceres infantis, aLeucemia é o tipo mais frequente –particularmente a Leucemia LinfóideAguda (LLA) –, além do Linfomanão-Hodgkin, os tumores do sistemanervoso, tumores ósseos e o retino-blastoma.

Perina, Mastellaro e Nucci (2008)salientam que vinte anos atrás a curasignificava sucesso terapêutico; po-rém, atualmente, a verdadeira cura docâncer exige alcançar o potencial bio-lógico, intelectual, psíquico, emocio-nal e social que acompanha a criançaquando esta é acometida pelo câncere submetida ao tratamento. Assim faz-se necessário o acompanhamentomultiprofissional da criança em todasas fases, desde o diagnóstico, durante

e após o tratamento.

Psicanálise e Medicina: deque saber se ocupam?

A nova lógica de mercado glo-balizada amplia a rede de intercâm-bio entre diferentes saberes, mas, poroutro lado, acaba banalizando e pro-movendo informações superficiais,transformando todos em sabedoresde tudo um pouco. É comum pacien-tes chegarem aos consultórios dospsicanalistas trazendo seu própriodiagnóstico encontrado no site debusca google. Há uma espécie de ho-mogeneização dos saberes. Contudo,diante do cenário de nosso estudo,acreditamos que não existe um saberque sirva de medida comum, pois estesó é um bem se intercambiável.

Ao estudarmos a criança adoe-cida no cenário hospitalar, estamosdiante de diferentes abordagens e,dentre elas, destacamos a médica, apsicanalítica e a educativa. Nossa in-tervenção é orientada pela psicanáli-se com suas especificidades; entretan-to, não pretendemos psicanalisar osreferidos campos de saber. Nossodesafio em fazer laço de trabalho coma ciência médica e com a educaçãonos impôs a criação de dispositivosque viabilizassem esse intercâmbio.Supomos que, ao acolhermos o ine-ducável pulsional, que escapa a todatentativa de simbolização, podemosdar um tratamento possível ao que

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resta e insiste em se presentificar àrevelia de toda forma de controle, sejade ordem médica ou educativa. Apartir da psicanálise, acreditamos queo adoecer e o educar se fazem na sin-gularidade dos casos e é deste pontode ancoragem que operamos.

Campos (2003) estabelece distin-ções entre a ciência geral e a psicaná-lise. Defende a ideia de que a ciênciageral, e nela inclui a medicina e a pró-pria psicologia, tem como característi-ca o determinismo e a especialização;já a psicanálise se preocupa com o sin-gular, com o real que escapa a todocontrole simbólico. O saber constituí-do pela medicina é estabelecido e pre-so a mecanismos de compreensão enormas extraídas de seus manuais(guidelines). A psicanálise quando apli-cada é desespecializada, ou melhor, sehá alguma especialização é quando visaao sujeito em sua singularidade. Issotraz consequências à pesquisa psica-nalítica já que: “a pesquisa psicanalí-tica marca sua diferença em relaçãoàs demais abordagens pelo menos emdois pontos fundamentais: primeiro,porque ela não inclui em seus objeti-vos a necessidade de uma inferênciageneralizadora, seja para a amostra oupara a população, pois seus resulta-dos modificam a maneira como ospesquisadores da comunidade psica-nalítica irão demarcar sua posição emrelação aos novos sentidos produzi-dos pelo texto que torna a pesquisapública” (Iribarry, 2003, p. 117).

A psicanálise, quando aplicada àmedicina, não opera no campo mé-

dico, tampouco no campo paramédi-co. A psicanálise se aplica em seu pró-prio campo, já que o inconsciente “ex-siste” ao campo médico. São áreas desaber distintas: enquanto a medicinavisa primordialmente, na criança, suapatologia, a psicanálise busca escutaro sujeito do inconsciente e seus dese-jos. Não estamos com isso privilegian-do saberes, apenas apontamos queexistem especificidades que devem serrespeitadas, quando se trabalha emredes interdisciplinares.

Miller (2001) retrata que a exem-plo do discurso científico, Lacan exi-ge em psicanálise, a certeza, sim – eleliga certeza ao real, mas distingue doisreais: existe o real para a ciência (mé-dica) e existe um outro real para apsicanálise, que é o real do incons-ciente. É justamente esse real, essaverdade disjunta do saber, que irrom-pe na cadeia lógica do sentido cau-sando o fora de sentido, que a psica-nálise se debruça.

Cabe ressaltar que, em toda dis-cussão que se pretende metodológi-ca e epistemológica séria sobre a re-lação da Psicanálise com a ciência, épreciso saber qual concepção de ciên-cia norteia os diferentes argumentos.

Mas o que é ciência? Para enten-dermos a conceituação de ciência nosvalemos de Alberti e Elia (2008), quedefendem a Ciência como o modo deprodução de conhecimento seguindopadrões estabelecidos por Galileu einterpretados pela arquitetura discur-siva de Descartes. Galileu criou ométodo hipotético-dedutivo, caracte-

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rizado pela obediência ao princípio dacontingência e da universalidade, ca-bendo a ciência esclarecer o objeto.Freud se insere nessa linhagem. A Psi-canálise, neste sentido, é derivada dométodo inaugural da ciência moder-na, e se não permanece no campo daciência, é porque opera uma subver-são radical e introduz, o que o discur-so da ciência exclui: o sujeito. “A psi-canálise opera com o sujeito, o mesmoda ciência, que no entanto sobre elenada opera” (2008, p. 784).

Descartes afirma a certeza docogito – Penso, logo sou. O homem,no primeiro momento do cogito ga-nha estatuto do ser porque pensa, pas-sa assim a existir, porque é passívelde inscrição no simbólico. Descartesdistiguiu um mundo em que as coisasexistem através da representação con-ceitual deixando de fora, onde as coi-sas não são conceituadas. Cria assim,o discurso da Ciência (Alberti & Elia,2008, p. 787). Depois de Descartes, odiscurso da ciência propõe que seucampo de estudo é composto de re-presentações, que estão submetidas àsleis específicas de cada ciência e nãopodem ser transportadas para outroscampos. Contudo, de acordo comAlberti e Elia, a Psicanálise não cabeinteiramente do campo das represen-tações. Assim, podemos dizer que “apsicanálise é filha da ciência na medi-da em que se atém as determinaçõescriadas por Descartes, segundo asquais há um pensável e um impensá-vel, um conceituável e um impossívela conceituar” (2008, p. 788)

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Se a grande preocupação freudiana era verificar o vínculo dapsicanálise com a Ciência, foi com Lacan que o alcance de Freudsobre esta relação pode ser explicitada ao introduzir três registrosfundamentais – real, simbólico e imaginário –, registros nos quais oser falante transita. A psicanálise se distingue da ciência na medidaem que não se restringe a estudar o pensável, o dizível, mas tambémse ocupa do impensável, do indizível e do impossível de conceituar.

Lacan (1998), em “Ciência e verdade” não define o psicanalistacomo um cientista entre outros e estabelece uma interessante equiva-lência entre os sujeitos do inconsciente e da ciência. Um axiomaretrata essa articulação: “o sujeito sobre o qual a psicanálise operanão pode ser senão o sujeito da ciência” Para ele, “o homem daciência não existe, mas apenas seu sujeito” (Lacan, 1998, p. 873).

A ciência moderna determina um modo de constituição dosujeito, fazendo uso da mesma lógica da matemática, como um su-jeito sem qualidades. Para Lacan, neste momento de seu ensino, osujeito da ciência é tão somente uma dedução do pensamento. Se oinconsciente é estruturado como uma linguagem, o sujeito não estárepresentado nessa estrutura senão como causa.

De acordo com Campos (2003) há os que semeiam a psicaná-lise sem sair e aqueles que saem para semear. Estamos do lado dosque saem para semear, semeiam a psicanálise fora de seu território,aplicada à terapêutica nas instituições não-psicanalíticas como nohospital e nas escolas e, em nosso caso com a criança adoecida queestá entre o hospital e a escola.

Assim, a pergunta que vem se impondo desde o início de nos-so trabalho é: como as políticas de educação pública vêm tratando aescolaridade das crianças adoecidas em nossa cidade, e sob que ló-gica se alicerçam os projetos que visam minimizar esse afastamentoescolar?

Propomos trabalhar com a suposição de que, neste contexto, ascrianças adoecidas sofrem tensões diante das demandas dos três gran-des “Outros institucionais” com os quais se vê imersa: a família, aescola e o hospital. Supomos que essas demandas são vivenciadas deforma diferenciada por elas, podendo promover impasses escolares.

A partir dessa hipótese, nos interrogamos sobre qual a funçãodo psicanalista diante desses impasses? Faz parte de seu campo par-ticipar da dimensão política de um estado democrático capitalista?Qual sua inserção na cidade? Para refletirmos sobre qual a relaçãopossível entre um psicanalista e a dimensão política de problemas

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que ocorrem em sua cidade, busca-mos alguns subsídios na obra deLacan e outros autores contemporâ-neos.

Psicanálise e as PolíticasPúblicas em Educação

Retomando Cohen (2006), afir-ma-se que a política é um processode articulação de três elementos – opovo, as organizações políticas e so-ciais, e o Estado. De acordo comBadiou (1994) a política “é a repre-sentação por organização do conflitodos interesses e das ideologias” (1982,p. 54). Contudo, assim como a auto-ra, interessa-nos o “abandono da ideiade representação, visto que uma polí-tica não representa ninguém, e ela sóse autoriza por si mesma” (p. 54).

Ao consideramos que a políticase autoriza por si mesma permite re-pensar o campo das políticas em edu-cação e a função desempenhada pelapsicanálise. Podemos refletir sobreuma política de uma determinada co-munidade ou grupo, e em específicode uma prática educativa ligada àscrianças adoecidas pelo câncer. Deacordo com Miller e Laurent (1998),o poder local e cirscunscrito se ins-creveria na lógica dos “comitês de éti-ca”, ou seja, tomaria como base desua ação a lógica local ou contingen-te. De acordo com Cohen (2006):“uma política educativa que se inscre-ve em uma comunidade e se organiza

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de maneira contingente consegue ajustar seus programas educacio-nais à lógica de seu próprio funcionamento nessa comunidade, ouseja, particularizar o universal e retraduzir o poder dos impossíveisfreudianos: analisar, educar e governar” (p. 48).

A psicanálise inserida na temática da política e da ética ofere-ce possibilidades de trabalhar os problemas que se inserem no cole-tivo, na pólis. Laurent propõe que a psicanálise deve ser desafiada.Segundo este autor: “é preciso passar do analista fechado em suareserva, crítico, a um analista que participa, um analista sensível àsformas de segregação, um analista capaz de entender qual foi a suafunção e qual lhe corresponde agora” (2002, p. 209).

A partir destas indagações pensamos como o psicanalista podetrabalhar com as políticas educativas das crianças adoecidas pelocâncer, principalmente nos períodos de internação para o tratamentoe após a alta hospitalar. Quais políticas educativas auxiliam essascrianças nos dias de hoje?

A criança adoecida e a escola: a classehospitalar

Diante de situações de adoecimento por câncer, o tratamentolongo e agressivo inviabiliza a manutenção da rotina da criança,repercutindo na vida escolar. Os principais pontos conflitantes nocenário social, em específico na escola perpassam: desempenho aca-dêmico comprometido por faltas; assistência inadequada da escoladiante do não saber como lidar com a doença; barreiras impostaspela própria escola (inflexibilidade, burocracia); e no cenário subje-tivo são as limitações físicas impostas pelo tratamento, as mudançascorporais, a angústia de espera pelos procedimentos médicosinvasivos (quimioterapia, radioterapia etc.) e as restrições sociais.

A escolaridade das crianças com câncer se insere na mentalida-de inclusiva, difundida no mundo ocidental, voltada não só paracrianças com algum tipo de deficiência orgânica ou mental, mastambém para grupos excluídos do processo formal de aprendiza-gem. Os movimentos inclusivos remetem ao cumprimento da De-claração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Segundo Amiralian (2005), para as escolas realizarem seu papelde inclusão de alunos com dificuldades ou deficiência é preciso que

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haja uma verdadeira compreensão arespeito desse aluno, suas limitações,potencialidades e capacidades.

A legislação brasileira reconhe-ce o direito de crianças e adolescen-tes hospitalizados ao atendimentopedagógico-educacional. A esse res-peito, merece destaque a formulaçãoda Política Nacional de EducaçãoEspecial (Brasil /MEC, 1994; 1995).Essa propõe que a educação em hos-pital seja realizada por meio da orga-nização de classes hospitalares. OConselho Nacional de Educação su-gere a denominação “classe hospita-lar” para o atendimento educacionalespecializado a alunos impossibilita-dos de frequentar as aulas em razãode tratamento de saúde que impliqueinternação hospitalar, atendimentoambulatorial ou permanência prolon-gada em domicílio. (Diretrizes Nacio-nais para Educação Especial na Edu-cação Básica/Resolução de 2001).

Em caso de internações, as crian-ças contam com a classe hospitalarpara auxiliá-las a manterem o contatocom o ensino. Nesta modalidade deensino, o professor procura adequar aprogramação da classe hospitalar àprogramação em andamento nas clas-ses originais dos alunos. As criançasinternadas passam a ser alunos tem-porários da educação especial por es-tarem afastados do universo escolar.

Segundo Ortiz e Freitas (2001),a intervenção educacional assume orisco de insinuar a existência do mun-do extra-hospitalar. Torna-se neces-sário dar um novo significado a con-

cepção do hospital como um cenárioasséptico para vislumbrar um espaçoonde a vida acontece, onde é aceitotudo o que faz parte da vida.

A participação da criança hospi-talizada, mesmo no regime domiciliarde estudos, como na classe escolar,faz com que se perceba ainda mem-bro de uma classe, fortalece o desejode pertencimento social; o afastamen-to prolongado ou ausências esporá-dicas da escola não produzirão tan-tos prejuízos acadêmicos.

Segundo Ortiz e Freitas, a assis-tência escolar deixa de ser vista comouma “ocupação do enfermo” e passaa ser essencial ao tratamento terapêu-tico. Acreditamos, com esse autor, quea ação da classe hospitalar tem a in-tenção de não recuar frente à doen-ça, não se propõe agir com o arsenalcurativo da medicina, mas, antes comuma atenção dada a um fator impor-tante na vida da criança, seu direito àescolarização. Assim, consideramosque a educação pode assumir umaproposta recriadora resgatando a pos-sibilidade de a criança “brincar” como conhecimento e fazê-lo um instru-mento de autonomia e reconstruçãode vida. (2001, p. 72).

Ceccim (1999, p. 43) compreen-dem a proposta educativo-escolarcomo uma vertente que apresenta re-gularidade e responsabilidade com asaprendizagens formais da criança.Trabalham através da “formulação deum diagnóstico de atendimento e daformulação de um prognóstico” à altahospitalar.

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Os professores da classe hospi-talar contam com especificidades emsua interação com as crianças, umavez que devem ter predisposição paraas trocas afetivas e a sensibilidade àscondutas físicas e emocionais dasmesmas. Atribuem um olhar especialao aluno, garantindo-lhe um papel dearticulador ativo nas relações deaprendizagem e superação do adoe-cimento. Ceccim e Ramalho (1997)retratam que a escuta diferenciadapelos professores implica: “apreen-são/compreensão de expectativas esentidos, ouvindo através das palavrasas lacunas do que é dito e os silênci-os, ouvindo expressões e gestos, con-dutas e posturas.… busca perscrutaros mundos interpessoais para carto-grafar o movimento das forças de vidaque engendram nossa singularidade”(p. 31).

Valle e Ramalho (2008) desenvol-vem um programa denominado Pro-grama de Reinserção escolar de crianças comcâncer, no momento em que a criançacom câncer pode voltar à escola re-gular. Esse programa possibilita aabertura de canais de comunicaçãoentre o hospital e a escola, e tem comoobjetivo ajudar a criança durante eapós o adoecimento pelo câncer porequipes de saúde. Não aprofundare-mos a discussão sobre essas políticas,mas apenas apontamos a necessida-de de se criar, cada vez mais, disposi-tivos de inclusão da criança adoecida,por câncer, ao espaço escolar.

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Escola hospitalar: a não escola

Marchesan, Bock, Petrilli, Covic & Kanemoto (2009) definema escola hospitalar como uma não-escola. Baseiam essa definiçãoem Campos (1980), quando este publica seu ensaio “Serafim: umGrande Não-livro” acerca da obra de Serafim Ponte Grande, doescritor Oswald de Andrade. Campos se dirigia a essa obra singularcaracterizando-a como um não-livro, uma vez que o texto de Oswaldnão era um livro padrão, não trazia as características costumeirasdos livros daquela época. Produzia no leitor o seguinte efeito: reco-nhecimento do livro mesmo que não via nele marcas típicas doslivros. Havia uma especificidade na obra que a diferenciava, porémhavia algo que a aproximava, que permitia que o público a reconhe-cesse. O próprio Campos afirma que temos assim, um não-livro.

Marchesan et al. mostra “a escola no hospital como uma não-escola, porque ela está despida de elementos fundamentais que ga-rantem o fato de a instituição escolar ser vista como tal pelos alu-nos-pacientes (amigos, ambiente físico próprio e o recreio, dentreoutros). Ao mesmo tempo, ela carrega especificidades quanto a suaatuação e se afirma enquanto espaço escolar através da ação doprofessor hospitalar, do vínculo com a escola de origem do aluno epelo papel representado pelo saber.” (2009, p. 478). Acreditamos narelevância do estudo da experiência da educação hospitalar na suadimensão subjetiva a partir dos sentidos que o sujeito constrói, “namedida em que dá voz àquele que é o alvo desse tipo de atuação: oaluno-paciente” (p. 479), garantindo assim, a possibilidade de reali-zação de um trabalho alinhado às necessidades desses indivíduos.

O professor hospitalar passa a ter uma proximidade em rela-ção ao aluno-paciente e acompanha a nova rotina do aluno permeadapela doença e o tratamento. Marchesan evidencia: “o aluno estudaenquanto se trata, e se reveste de um caráter que não é apenas peda-gógico: a aula permite ao aluno esquecer por alguns momentos asua doença e faz com que ele acredite na possibilidade de continuarnas suas atividades. Dessa forma, a ação docente age potencializan-do o sujeito, na medida em que oferece alternativas de atividade econtinuidade escolar que vão além da doença” (2009, p. 489).

Marchesan et al. (2009) tratam o aluno no hospital como alu-no-paciente e não como paciente-aluno, uma vez que mesmo quetenhamos inicialmente a percepção do sujeito como alguém que

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está no hospital para se tratar, sendono primeiro momento paciente, en-tendemos que realização da aula ésingular e diferenciada. A aula apa-rece como um espaço no qual o in-divíduo sai da posição de paciente,submetidos aos diversos olhares den-tro do hospital e passa a ser ativo,atuante.

Para garantir o caráter escolar noespaço hospitalar, faz-se necessárionão apenas a figura do professor, mastambém a relação entre a vivência es-colar e o que seria a função da escolade origem na percepção dos sujeitos-crianças. Vale ressaltar que a escolahospitalar apresenta uma forte liga-ção com a escola de origem, atravésdos contatos regulares, dos programasenviados para ser trabalhado com oaluno, e dos relatórios enviados àescola de origem, que servem comouma avaliação. Na ausência dessa li-gação, a escola hospitalar teria seusentido esvaziado porque não garan-tiria a continuidade escolar, e o pas-sar de ano dos alunos. Esta ideia decontinuidade e de futuro é a questãocentral na vida dos pacientes com cân-cer. Parece que o vínculo de futuroque a escola herda da escola de ori-gem ganha novas significações noespaço hospitalar (Marchesan et al.,2009, p. 490). Tal ideia de futuro pas-sa a ser de grande relevância uma vezque o câncer a rapta e tem no imagi-nário social sua relação com a morte,como afirma Sontag (1984).

A escola auxilia a promover umresgate do mundo da criança anterior

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à doença, cuja perda é sentida, comodiz Valle (1997), com vivências dadoença e da hospitalização. “Há umatensão entre a necessidade de darsignificado à possibilidade da mortee aos sofrimentos da doença e do res-gate e da vivência do mundo fora dohospital, representado pela aula e peloconhecimento” (2009, p. 491). A es-cola hospitalar se apresenta comouma possibilidade de o sujeito se man-ter vinculado a sua escolarização e assuas perspectivas de futuro.

A escola pré-ocupa o sujeito,como sugere Cortella (1998), e trazelementos para que ela preencha es-paços antes ocupados apenas pelohospital, pela doença e pela morte?

Vemos que no contexto hospi-talar se inserem diversas aprendiza-gens: a aprendizagem ofertada peloprofessor da classe escolar, a apren-dizagem da medicina sobre a doen-ça e seu tratamento, a aprendizagemda família que deve lidar com as li-mitações da doença da criança. Des-ses encontros contingentes, cabe aoanalista oferecer um espaço ondecada um possa construir, em cadacaso, um “saber fazer com isso”, pos-sibilitando, por meio da sua prática,a emergência do desejo e a aberturapara a palavra da criança. Espaçosque levam em conta a história decada um e suas possibilidades de sub-jetivação.

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A criança e a doença: investimentos libidinais

A criança adoecida se depara com o seu diagnóstico e comouma consequente mudança de vida. Dependendo da doença e dodiagnóstico, enfrenta períodos de frequência constante nos ambu-latórios e de longas internações. O seu universo, que antes era com-posto pela família, amigos e escola, ganha dois novos componen-tes: o hospital e a doença. Diante desta grande mudança, seusinvestimentos libidinais necessitam ser reorganizados, reestruturadosde acordo com a nova lógica de funcionamento na qual está inserida.

Encontramos em Sobre o narcisismo: uma introdução (Freud, 1980a/1914), uma importante contribuição freudiana sobre os investimen-tos libidinais, texto no qual Freud dá ênfase à teoria da libido eacrescenta alguns pontos a sua teorização. Segundo ele, temos uminvestimento libidinal original do eu, que é posteriormente transmi-tido aos objetos, os investimentos objetais. Indica-nos que estespodem ser transmitidos e retirados, como uma espécie de balançaenergética, de acordo com o investimento empregado ao objeto.Nesse texto, Freud avalia a influência da doença orgânica sobre adistribuição da libido. Diz: “uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo,na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento... o homemenfermo retira suas catexias libidinais de volta para o seu ego, e aspõe para fora novamente quando se recupera” (1980a/1914, p. 89).

Freud (1980b/1914) nos auxilia a pensar que as crianças adoe-cidas retiram seus investimentos libidinais dos objetos voltando-ospara o seu próprio eu, só reinvestindo neles novamente, quando serecuperam. Indica que existem alterações na distribuição da libidoresultantes de modificações do eu. Logo, como crianças com cân-cer vão se interessar por assuntos escolares? Seguindo essa ideiafreudiana a libido esta canalizada para o “eu-corpo” com sua doen-ça, seus sintomas, traduzidos também em dor psíquica, entretantotestemunhamos em nossa prática um caminho para o tratamentonão só do corpo, mas das angústias decorrentes de sua nova con-dição de vida no hospital. As crianças viram grandes especialistasde suas patologias, medicações e exames. Se inserem nos “dialetosmédicos”, como se estivessem estabelecendo uma nova lingua-gem e novas formas de aprendizagens que se somam ao processoformal.

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O psicanalista desafiado pelacriança adoecida por câncer deve es-tar atento a lógica do ideal e do “paratodos” da educação e da saúde, quepodem produzir a segregação do su-jeito. O profissional orientado pelapsicanálise ao presentificar o seu não-saber sobre a doença e o doente, criaum espaço de escuta não só para ascrianças, mas para a equipe escolar (es-cola de origem e classe escolar do hos-pital). A partir de sua presença dese-jante deve acolher o trabalho de cadaum e criar um espaço de circulação dafala, possibilidade de se evitar a obje-tificação do sujeito (Di Ciaccia, 2003).

Considerações finais

Privilegiamos neste texto apon-tar algumas reflexões sobre os impas-ses escolares vividos por criançasadoecidas por câncer e as formas deenfrentamento que as políticas edu-cacionais vêm desenvolvendo. Nos-so interesse, entretanto, versa sobreos aspectos psíquicos envolvidos noadoecimento orgânico e sua relaçãocom a escola. Vemos que diante doadoecimento a criança vivencia situa-ções inerentes a esse enquadre e sur-gem possíveis impedimentos à vidaescolar com toda carga psíquica queessa exclusão implica: a dor psíquicainerente ao adoecimento, os novoslaços sociais estabelecidos, além debarreiras impostas pela própria insti-tuição escola.

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Ao estudarmos a criança adoecida, no cenário hospitalar, esta-mos inscritos em uma rede tecida pela área médica: a psicanálise e aeducação. Retomando Miller (2001) ao retratar que a exemplo dodiscurso científico, Lacan indica que na psicanálise há certezas, masque estão ligadas ao real, distinguindo dois reais: o real para a ciên-cia (médica) e um outro real para a psicanálise, próprio ao incons-ciente, tentamos extrair consequências em nossas intervenções nodispositivo implantado pelo Projeto Brincante, a partir deste últi-mo. Não trouxemos o cotidiano da prática deste projeto, pois dese-jamos refletir sobre as ações realizadas pelas políticas públicas eseus saberes em rede com o saber inconsciente.

Na busca de demarcarmos o saber da psicanálise, a situamoscomo derivada do método inaugural da ciência moderna, e se nãopermanece no campo da ciência é porque opera uma subversãoradical introduzindo o que o discurso da ciência exclui: o sujeito.Assim vemos que são campos de saberes distintos, mas que podemdialogar entre si. Enquanto a medicina visa tratar a patologia dacriança, a psicanálise visa escutar o sujeito e seus desejos. Dandovoz ao sujeito observamos que a infância, quando inscrita no am-biente hospitalar, sofre mudanças que necessitam uma reorganiza-ção dos investimentos libidinais principalmente da criança. Indicaque existem alterações na distribuição da libido resultantes de mo-dificações no “eu-corpo”. Levantamos as dificuldades dessas crian-ças ao se interessarem por assuntos escolares em consequencia des-sa contingência e como a doença, seus sintomas e a sua dor psíquicatomam o ser do sujeito. Esses pequenos sujeitos transformam-seem grandes especialistas de suas patologias, medicações e exames,se inserindo nos “dialetos médicos”, estabelecendo uma nova lin-guagem e novas formas de aprendizagens.

Verificamos que a legislação brasileira reconhece o direito decrianças e adolescentes hospitalizados ao atendimento pedagógico-educacional. A classe hospitalar, como uma estratégia pedagógica, éum dos caminhos possíveis para encaminhar questões que se apre-sentam neste contexto. Ao trazer os conteúdos programáticos parao ambiente hospitalar, essas iniciativas, buscam minimizar as conse-quências do afastamento da escola auxiliando a criança no acesso àeducação. Funcionam como uma não-escola e possuem caracterís-ticas que as afastam da escola de origem, ao mesmo tempo em queas aproximam de um espaço escolar. Essa “nova escola” pode servivida como agenciadora de processos de aprendizagem, de desen-

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volvimento intelectual e de interaçãoentre pares. Parece compor um novoquadro de qualidade de vida, e auxiliaa construir sentidos para ressignificaro adoecimento. Mas e quanto ao oatendimento psíquico? Este deve serofertado, não vem a priori e precisaser construído caso a caso. A psica-nálise, nesse contexto, não resiste, in-siste em fazer de sua prática uma par-ticipação que não saia do campo desua ação, mas que com ela possaaprender e recriar seu campo de in-tervenção.

ENTRE EL HOSPITAL Y LA ESCUELA:EL CÁNCER EN NIÑOS

RESUMEN

En el presente artículo nos proponemos a investigarlas difíciles situaciones de niños enfermos por cáncer.Al percibimos sus obstáculos a la vida escolar, bus-camos discutir cuestiones inherentes a las barrerasimpuestas por la enfermedad, a los lazos sociales y lapropia institución escolar. Nuestras intervenciones,basadas por el psicoanálisis, vienen apuntando quela infancia, cuando inscrita en un ambientehospitalario, sufre cambios, que necesitan unareorganización de las inversiones libidinales del niño,de los padres y de los profesionales envueltos en elproceso. Aunque la legislación brasileña reconozcalos derechos de los niños y adolescentes hospitaliza-dos al atendimiento pedagógico-educativa, en estepanorama, ¿qué elecciones tienen esos niños? ¿Quépuede un psicoanalista, provocado en su ciudad, con-testar a esos obstáculos sin renunciar de su ética, enel enlace establecido entre las áreas de la salud y dela educación.

Palavras clave: niños con cáncer; la enfermedad;el psicoanálisis; la educación.

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BETWEEN THE HOSPITAL AND SCHOOL: CANCER IN CHILDREN

ABSTRACT

In this paper we propose to raise some dilemmas of school children fell ill with cancer. When werealize their impediments to school we seek to bring into discussion issues related to barriersimposed by illness, social ties and the school institution itself. Our guided interventions bypsychoanalysis have indicated that childhood, when entered in the hospital, undergoes changesthat require a reorganization of libidinal investment of the child, parents and professionalsinvolved in the process. Even though Brazilian law recognizes the right of children and adolescentsadmitted to the pedagogical-educational service, which choices are the subject child? What can apsychoanalyst, challenged in his city, to respond to these dilemmas without sacrificing their ethicsin the bond established with the areas of health and education?

Index terms: Children with cancer; illness; psychoanalysis; education.

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Recebido em outubro/2010Aceito em dezembro/2010