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326 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 326-345 Dossiê É É POSSÍVEL ENSINAR EDUCADORES A INCLUIR? COMO ENSINAR EDUCADORES A ENSINAR ALUNOS DE INCLUSÃO? Cintia Copit Freller muito frequente os professores reclama- rem que não aprenderam como ensinar alunos com problemas na infância. “Na faculdade não aprendemos a ensinar crianças especiais”, “Não aprendi nada sobre autis- mo e psicose, para poder trabalhar com estas crianças”, “Pre- cisamos de cursos que nos ensinem as características dos alu- nos de inclusão e para saber como lidar com eles ”; são algumas das frases escritas por professores quan- do questionados sobre o que esperavam do trabalho de formação proposto por uma equipe da Associa- ção Lugar de Vida 1 em parceria com o Núcleo de Educação Inclusiva de uma cidade próxima a São Paulo. Psicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro instituinte da Associação Lugar de Vida e membro do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito da Universidade de São Paulo. RESUMO Reflexão sobre limites e possi- bilidades de “ensinar” educado- res a incluir, a partir do traba- lho realizado por uma equipe da Associação Lugar de Vida em escolas de uma rede municipal, envolvendo todos os educadores (professores, direção, merendei- ra, inspetor de alunos etc.), de- senvolvido na própria institui- ção de ensino. Os grupos com todos os profissionais da escola propiciaram experiências com potencial transformador, que poderia ser desdobrado para outros contextos, contribuindo para envolver o professor e afe- tar seu olhar e sua prática, es- pecialmente no que diz respeito à educação inclusiva. Descritores: educação espe- cial; educação inclusiva; psica- nálise; formação de professores.

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Dossiê

É

É POSSÍVEL ENSINAREDUCADORES AINCLUIR? COMO

ENSINAREDUCADORES A

ENSINAR ALUNOS DEINCLUSÃO?

Cintia Copit Freller

muito frequente os professores reclama-rem que não aprenderam como ensinar alunos comproblemas na infância. “Na faculdade não aprendemos aensinar crianças especiais”, “Não aprendi nada sobre autis-mo e psicose, para poder trabalhar com estas crianças”, “Pre-cisamos de cursos que nos ensinem as características dos alu-nos de inclusão e para saber como lidar com eles”;são algumas das frases escritas por professores quan-do questionados sobre o que esperavam do trabalhode formação proposto por uma equipe da Associa-ção Lugar de Vida1 em parceria com o Núcleo deEducação Inclusiva de uma cidade próxima a SãoPaulo.

Psicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade de São

Paulo. Membro instituinte da Associação Lugar de Vida

e membro do Laboratório de Estudos sobre oPreconceito da Universidade de São Paulo.

RESUMO

Reflexão sobre limites e possi-bilidades de “ensinar” educado-res a incluir, a partir do traba-lho realizado por uma equipe daAssociação Lugar de Vida emescolas de uma rede municipal,envolvendo todos os educadores(professores, direção, merendei-ra, inspetor de alunos etc.), de-senvolvido na própria institui-ção de ensino. Os grupos comtodos os profissionais da escolapropiciaram experiências compotencial transformador, quepoderia ser desdobrado paraoutros contextos, contribuindopara envolver o professor e afe-tar seu olhar e sua prática, es-pecialmente no que diz respeitoà educação inclusiva.Descritores: educação espe-cial; educação inclusiva; psica-nálise; formação de professores.

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Neste artigo, pretendemos refle-tir sobre o trabalho que coube à au-tora deste artigo, realizado em quin-ze escolas, durante dois anos, comtoda a equipe de educadores, com oobjetivo de discutir a inclusão esco-lar. A intervenção foi desenvolvidanas próprias escolas, quinzenalmen-te, durante duas horas, com profes-sores, gestores, porteiros, inspetoresde alunos, merendeiras etc. Utiliza-mos o referencial teórico da psica-nálise e alguns conceitos da teoriacrítica, especialmente de Adorno,para sustentar e valorizar a experiên-cia vivida pelo grupo de professoresnas reuniões e seu possível desdo-bramento para outras experiências narelação dos professores com seusalunos.

Apontaremos as especificidadesdo manejo escolhido, repensando osobjetivos, o aporte teórico, o enqua-dre, bem como os resultados relata-dos pelo grupo de educadores emsuas avaliações finais. Procuraremosmarcar as diferenças com outros tra-balhos desenvolvidos com professo-res sobre este tema, como cursosrealizados fora do contexto de tra-balho.

O foco da intervenção foi possi-bilitar experiências formativas nosgrupos de educadores, que pudessemmovimentar o processo educativo eas relações escolares. Vários autoressustentam a importância de experiên-cias compartilhadas com um outroconfiável, que possuam continuidadeno tempo, façam sentido e propiciem

a reflexão. Trata-se de experiênciasformativas, das quais o novo e o inu-sitado possam emergir, movimentan-do crenças e práticas cristalizadas,fortalecendo o enfrentamento com odiferente, contribuindo para superaro medo e o preconceito. São situa-ções em que os educadores se surpre-endem falando, vivendo ou fazendoalgo diverso do cotidiano escolar, quelhes permite enxergar por um ângulodiferente as dificuldades, ousandonovas intervenções e percorrendocaminhos desconhecidos no proces-so educativo.

Adorno (1995) afirma que “oshomens não são mais aptos à expe-riência, mas interpõem entre si mes-mos e aquilo a ser experimentadoaquela camada estereotipada a queé preciso se opor” (p. 149). Ou seja,o autor ressalta a necessidade de re-animar a aptidão a realizar experiên-cias.

A quais experiências ele se refe-re? Podemos pensar nas experiênciasdos professores com os alunos, deforma geral, nas de professores comos alunos diferentes e principalmen-te nas experiências entre os próprioseducadores. Adorno (1995) se refereàs pessoas que odeiam o que é dife-renciado, o que não é moldado, pro-pondo que “a aptidão à experiênciaconsistiria essencialmente na cons-cientização e, desta forma, na disso-lução desses mecanismos de repres-são e dessas formações reativas quedeformam nas próprias pessoas suaaptidão à experiência” (p. 150).

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Afirma, ainda que o “sentido mais profundo de consciência oufaculdade de pensar não é apenas desenvolvimento lógico formal,mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiên-cias. Nesta medida, a educação para a experiência é idêntica à edu-cação para a emancipação” (p. 151).

Winnicott (1984), bem como seus estudiosos, tais como Safra(1995), também apontam para o potencial transformador da expe-riência, que abre para o novo e para a possibilidade de lidar com odiferente. “O homem pode ter uma posição reflexiva sobre as suasexperiências e pode vir a ter consciência delas. Essa posiçãoautorreflexiva oferta ao homem a possibilidade de ser tocado pelasexperiências, de poder sair delas para contemplá-las e sair de si e sepôr em direção ao mundo externo” (p. 37).

A possibilidade de atravessar a situação dá ao homem a opor-tunidade de sair do estado de agonia que parecia infinito para umaexperiência de passagem, portanto experiência suportável.

1. Educação inclusiva

Iniciaremos o texto problematizando alguns aspectos referen-tes à inclusão escolar, apresentando autores que discutem a questão.

A educação inclusiva ganhou força no Brasil após as delibera-ções da Conferência Mundial sobre Necessidades EducacionaisEspeciais: Acesso e Qualidade, ocorrida em Salamanca, em 1994.Diferentemente da proposta de integração da criança com pro-blemas na infância nas classes regulares, que se baseia na prepara-ção e adaptação destas ao processo educativo, a educação inclusi-va propõem mudanças estruturais das escolas que beneficiem todasas crianças.

Vamos partir da ideia de que é uma tarefa ética incluir o sujeito,como Voltolini (2008) bem esclarece, o que implica tratar a questãoda existência das diferenças sem que estas representem desigualda-de. Complementando com Kupfer (2000), “para as crianças psicóti-cas e autistas, ir à escola pode significar a volta à circulação social etambém a retomada de seu desenvolvimento intelectual. Mais queum exercício de cidadania, ir à escola tem valor terapêutico: a escolapode contribuir para a retomada ou para a reorganização da estru-turação perdida para a criança”. (p. 16)

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“Incluir é um movimento impos-sível, dado seu grau de infinitude”,afirma Voltolini (2008, p. 99). Embo-ra seja estrutural existirem semprepessoas excluídas, não podemos ficarresignados, e sim tentar manejar cadasituação singular, empurrando a linhados incluídos mais para fora. Para eli-minar a discriminação, precisaríamosmudar a estrutura da nossa socieda-de, como assinalou Adorno (1995).Seja pela estruturação da sociedade oudo ser humano, é impossível uma in-clusão completa, porém podemosmelhorar a realidade da educação noBrasil, para todos os alunos.

No Laboratório de Estudos so-bre o Preconceito, utilizamos o ter-mo alunos em situação de inclusão,apontando para o trabalho que noscabe, bem com aos educadores: o demovimentar a situação dos alunosexcluídos. Os alunos não são de in-clusão indefinidamente, como popu-larmente são denominados, mas es-tão em uma situação que demandatrabalho para se modificar, deve serum lugar de passagem.

Apesar do avanço da educaçãoinclusiva no nosso país, com maiscrianças com problemas graves no seudesenvolvimento frequentando esco-las regulares, os professores ainda re-latam dificuldades para ensiná-los.Acham que falta formação, apoioinstitucional, equipamentos e profis-sionais especialistas, entre outros.Sabemos, no entanto, que os impedi-mentos à educação inclusiva são mui-to mais complexos. Crochik (2003)

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analisa uma das características do en-sino tradicional que dificulta acolheralunos “diferentes”: “A pretensão dehomogeneizar os alunos segundo assuas capacidades, com o pretexto deotimização da aprendizagem. Essa pre-tensão não é proveniente diretamenteda escola, mas da exigência social queprivilegia os mais aptos, ou os maisadaptados. Numa sociedade compe-titiva, a aquisição de competências éfundamental para a sobrevivência,para a colocação dos indivíduos emmelhores postos de trabalho” (p. 25).

Não pretendemos, neste texto,apresentar as pesquisas e experiênciasque indicam as vantagens do ensinovoltado para alunos heterogêneos,suficientemente relatadas, entre ou-tros, por Ainscow (1997) e Crochik(1998). Também não vamos discutirsobre os fatores que podem dificul-tar a sua prática, especialmente o pre-conceito e a ideologia, profundamen-te analisados por vários autores,apoiados na Teoria Crítica, especial-mente de Adorno, entre eles Crochik(2003).

Vamos pensar em como pode-mos trabalhar com os educadores otema da inclusão, sem obturar suasangústias e sem os culpar pelas difi-culdades que encontram, contribuin-do para desenvolver uma educaçãocrítica ou, nas palavras de Adorno(1995), “para romper com a educa-ção enquanto mera apropriação ins-trumental técnico e receituário paraeficiência, insistindo no aprendizadoaberto à elaboração da história e ao

contato com o outro não idêntico, odiferenciado” (p. 27).

Partimos sempre das críticas so-bre a interferência dos especialistas noprocesso educativo, elaboradas, entreoutros, por Patto (1990), Costa (1979)e Crochik (1998), procurando desen-volver uma intervenção que parta “deuma releitura da Psicanálise à luz deuma Sociologia e de uma FilosofiaPolítica críticas, tentando tirar o queela tem de melhor como teoria dapsique. Esta revitalização da Psicaná-lise vem não só repor a esperança deque o psicólogo possa engajar-se numprojeto humano-social movido porvalores humanistas... como tambémmostrar um caminho fértil de contri-buição do psicólogo à transformaçãoda Escola em um lugar social de má-xima resistência possível à aceitaçãoinquestionada do estabelecido, nascondições históricas atuais” (Patto,2001, p. 15).

Portanto, quando aceitamos oconvite para o trabalho com educado-res, tentamos despir a capa da inge-nuidade e da neutralidade para desen-volver intervenções comprometidascom a construção coletiva de umaeducação de qualidade e de uma so-ciedade mais justa.

2. O trabalho: queixas emal-entendidos

Entre o convite e o trabalho po-dem ocorrer alguns mal-entendidos.

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Quando os professores nos procuramespontaneamente porque estão an-gustiados e querem refletir sobre aprática, o mal-estar pode não apare-cer no início do trabalho e até per-manecer sem ser identificado. Porém,quando somos convidados pelos di-retores de escolas ou por gestores dapolítica pública educacional, precisa-mos nos preparar para lidar com ummal-estar que aparece no início doscursos ou palestras, geralmenteexplicitado sob a forma de queixa.

Fernandez (1994) diz que “recor-remos muitas vezes à queixa, esse la-mento impotente que confirma e re-produz um lugar de dependência. Ojuízo crítico, o pensar implicam, ne-cessariamente, uma transformação nomundo interno que, segundo comose operacionalize, pode gestar umatransformação maior ou menor nomundo externo. A queixa, pelo con-trário, imobiliza” (p. 107).

Mais do que queixa, nós, psicó-logos, ao trabalharmos com profes-sores sobre temas como a inclusãoescolar, entre outros, vivemos situa-ções de agressividade mais ou menosvelada por parte de porta-vozes daequipe de educadores. Não escutar elogo partir para a defesa, ou seguircom o programa e persistir com a aulaplanejada, justificando que o tempo élimitado, perdemos mais tempo.

Como manejar esta situação re-corrente?

Vamos refletir sobre a experiên-cia desenvolvida nas escolas de umarede municipal próxima a São Paulo,

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após alguns anos participando da formação dos educadores destarede, por meio de aulas e supervisões, em um auditório central, forado horário de trabalho dos professores. O convite para desenvolveroutro tipo de trabalho focando o tema da inclusão escolar surgiu apartir de uma nova situação: as classes especiais, antes centralizadasem uma escola especial da cidade, foram deslocadas para as escolasregulares.

Os objetivos desta política eram claros: aproximar as criançasdenominadas especiais das crianças denominadas normais, para queambas se beneficiassem de um contato. Também, aproximar os pro-fessores especialistas dos professores regulares, pois todos partici-pariam das mesmas reuniões e encontros da escola.

Tal movimento vinha no bojo do projeto político-pedagógicoda referida rede, “que almejava democratizar o acesso e permanên-cia do educando; qualidade de ensino; valorização dos profissionaisda educação e democratização da gestão” (Santos, Siqueira &Yamabuchi, 2008, p. 93).

O trabalho com os educadores foi desenvolvido em parceriacom o Núcleo de Educação Inclusiva do Departamento de Orien-tações Educacionais e Pedagógicas da região, constituído por equi-pe interdisciplinar. O desafio proposto para a equipe do Lugar deVida era “ajudar” neste processo, que, como toda novidade, espe-cialmente aquelas propostas por políticas educacionais externas àsescolas, era de difícil apreensão: complexo e intrigante para pais,alunos e educadores das escolas.

A premissa de que todos os alunos são alunos da escola servepara pensar que todos os personagens escolares são educadores eprecisam participar do processo de reflexão. O enquadre do traba-lho era quinzenal, desenvolvido por duas horas, com toda a equipe(merendeira, professor, diretor, inspetor etc), na própria escola, den-tro do horário de trabalho, durante um semestre. Nós, psicanalistasdo Lugar de Vida, éramos visitantes (a serem incluídos pela esco-la?), e incorporados no horário das reuniões já desenvolvidas peloseducadores. A partida seria dada pela instituição, equipe de educa-dores, projeto pedagógico e pelo trabalho em curso. O tema, oucaso, ou situação seria trazida por cada escola, de forma espontâneaou combinada a priori.

Quando chegávamos na escola, os educadores estavam todosreunidos e a proposta era refletir sobre os problemas, discutir casose situações, avaliar experiências, percalços e acertos relativos à in-

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a refletir sobre as suas práticas, po-dendo revê-las. Entendemos, talcomo Winnicott (1984), que eles vi-vem uma experiência que serve como“lição de objeto”, que os modifica nosentido de acreditarem mais em si enos outros, de forma que poderá serdesdobrada com seus alunos e emoutros momentos e situações. São ex-periências que abrem para o novo,contribuem para fortalecer o gesto doprofessor, que ficou paralisado emsituações cristalizadas, e ajudam-no aretomar a travessia.

Destacamos, também, a potên-cia do próprio narrar oferecida aoseducadores nas reuniões que coorde-namos. Ao narrar uma situação, com-partilhamos uma experiência de vida,tornando-a presente. O narrar ofertaà pessoa a possibilidade de se apro-priar das experiências que lhe visita-ram como um saber sobre a condi-ção humana. Como afirma Safra(2006, p. 31), “narrar é apresentar umaexperiência própria, tal como no jogodos rabiscos”. Permite que o pacien-te experimente a presença do outroque lhe dá acesso ao pertencer e à ex-periência de reconhecimento de si.Além de resgatar a esperança do pro-fessor de poder ser compreendido eajudado nas demais situações de suavida, e buscar ativamente novas situa-ções de encontros.

Nestes grupos, é fundamentaltrabalhar com o espontâneo e com oinesperado. Ouvir, ver e levar em con-ta o que ele comunica. Em geral, osgrupos com professores, como já re-

clusão escolar vividos por aquela ins-tituição.

Um ponto de partida no traba-lho com grupo de professores é apa-rentemente simples: escutar os pro-fessores de fato, entrar em contatocom as suas angústias através de umaatitude empática. Os professores, as-sim como as crianças, percebemquando a escuta é verdadeiramenteempática, quando estamos tranquilos,disponíveis para ouvir, entender, mu-dar de posição, mudar de planos etc.Testemunhar e compartilhar expe-riências e desconforto dos professo-res parece uma prática óbvia, mas éum grande passo!

Ausência de espaços de fala nãoé uma queixa imaginária dos profes-sores, alunos e pais, no universo esco-lar. De fato, a palavra pouco circula naescola. Frases previamente organiza-das e fixas são usadas, normalmenteem mão única. Mas a circulação dapalavra geralmente assusta. Em umaescola em que trabalhamos, a direto-ra, literalmente, trancava as portas desua sala para não ouvir queixas e proi-bia o encontro de educadores de tur-nos diferentes para evitar problemas.No entanto, ao se tentar dificultar aconversa, além de, no máximo, con-seguir abafá-la, sem se conseguir ex-tingui-la, fomenta-se as fofocas,barram-se as possibilidades de encon-tros, de projetos comuns e de parce-rias entre os educadores.

Quando conseguimos escutá-losverdadeiramente, os professores sen-tem-se acolhidos e mais permeáveis

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latamos, começam com queixas, rai-va tímida e reprimida. Nesta experiên-cia, a queixa não partia só dos educa-dores. Nós, equipe do Lugar de Vida,também podíamos nos queixar de dornas costas, sede, vontade de urinar etc.Nós não estávamos atrás do divã, ouno nosso espaço de trabalho, e o pro-fessor não estava atrás de sua mesa,escrevendo em uma lousa. O descon-forto que acompanha a quebra darotina e das práticas usuais era vividopor todos.

Os educadores, nos grupos, fa-lavam dos problemas causados pelascrianças que vieram da escola especi-al, contavam casos e situações, fala-vam de política. Porém, independen-temente do tema de partida, em todasas reuniões, o tema da inclusão eraabordado, de forma mais ou menosexplícita.

Nosso convite era para acompa-nhar os educadores numa busca con-junta de compreensão, a partir de umapostura reflexiva, de uma situação quelhes causasse sofrimento (Patto, 2001).Este acompanhamento mostrou-semais do que um exercício de cons-ciência para evitar a repetição de atosirrefletidos e determinados social-mente, mas impulsionou novas for-mas de agir. Nas reuniões, novas mo-dalidades de relação, possibilitadaspela atenção e escuta das necessida-des eram experimentadas.

Como?Propondo o encontro e a circu-

lação da palavra; escutando a queixa;trabalhando com a reflexão e impli-

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cação de cada uma das pessoas presentes; tentando identificar asnecessidades psíquicas de cada criança, de cada educador, de cadaescola e buscando ir ao encontro destas, não para obturá-las nempara acabar com os mal-estares próprios à educação, mas para cons-truir um espaço mínimo de confiança que permitisse olhar para aexclusão e simbolizá-la, oferecer contorno, espaço, lugar, nome. Lo-calizar os incômodos, as raivas, e direcioná-los para desafios e alvosadequados em busca de uma educação que inclua o estranhamentoe possa enfrentá-lo. Este trabalho pode ajudar a desonerar e tirar opeso de cima da criança especial e de todos os excluídos do proces-so educativo.

2.1 Exemplos de trabalho em três escolas

Desde a primeira reunião em uma das escolas, os professorespediam ajuda para trabalhar com os assim chamados alunos espe-ciais. Um professor pedia a palavra e falava sobre as dificuldadescom um aluno, relatando como estava trabalhando e sobre resulta-dos positivos e negativos das tentativas. O grupo de professores seposicionava e pensava coletivamente em alternativas para enfrentartal problema, sugerindo mudanças na rotina, experiências novas etc.A merendeira, o inspetor ou a secretária também lançavam suges-tões sobre como tratar o aluno fora da sala de aula, quando elecirculava pela escola. Invariavelmente, no meio da discussão e dasideias, que iam surgindo e sendo complementadas por cada educa-dor que falava, surgia alguém lembrando que tais tentativas não se-riam aceitas pela direção da escola. No primeiro momento, pensa-mos em resistência dos educadores ao trabalho. No segundomomento, foi ficando clara a dificuldade de relação entre os profes-sores e funcionários com a nova dirigente. A diretora começou atrabalhar naquela escola no início do ano, para substituir o antigodiretor, muito querido pela equipe, que se aposentara.

Ela começou modificando várias práticas que existiam na es-cola, como as festas com a participação dos pais, as reuniões entretodos os professores e a porta aberta da diretoria. A porta de suasala ficava fechada e ela não recebia os professores para conversar.Procurou, ainda, limitar o contato entre as turmas de professores,

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dos três turnos da escola. As reuni-ões passaram a ocorrer em horáriosdiferentes e, enquanto uma turma es-tivesse na sala dos professores, osdemais colegas de outro horário de-veriam ficar no pátio. Os encontroseram evitados e a maior parte dosprojetos propostos pelos professores,vetados.

A coordenadora e a vice-direto-ra participavam da nossa reunião semsaberem que posição tomar. Concor-davam com os professores, mas acha-vam que “não podiam ir contra a direto-ra”, “vivendo uma saia justa”, segundosuas próprias palavras. Tentavam evi-tar as nossas reuniões, mas não desis-timos de chamá-las, bem como deconvidar a diretora para participar. Noentanto, a diretora sempre tinha umcompromisso no horário, como ir aobanco ou preencher documentos.

No dia dos professores, assimque cheguei à escola, uma professoraentregou-me um vaso com flores, emnome das demais professoras. Quaseque simultaneamente, a diretora trou-xe outro vaso de flores para me pre-sentear. Uma olhou para a outra, asprofessoras sentadas em círculo seolharam e todos ficaram em silênciopor alguns minutos. A surpresa, bemcomo o mal-estar foram generaliza-dos. Após um tempo, que pareceuinfinito, uma professora começou arir, a diretora sorriu e as demais pro-fessoras também deram risada.

Depois da risada geral, a direto-ra conseguiu sentar-se ao lado dasprofessoras e pudemos conversar so-

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psicodiagnóstico porque o meninobateu nela e o psiquiatra disse para amãe que era um tipo de autismo. Suaúltima professora adoeceu e a substi-tuta não queria ficar com aquela clas-se. O menino batia nos colegas, nasprofessoras e fazia uma bagunça ge-neralizada. O que a escola já tinha ten-tado? A coordenadora já conversarainúmeras vezes a mãe, reclamando docomportamento do filho. A mãe con-cordava com a coordenadora e diziaque o menino era mesmo um demô-nio, praga lançada pela avó paterna,que não queria que ele nascesse. Apósa última conversa entre mãe e direto-ra, ele apanhou de cinto na frente doscolegas do transporte escolar.

Enquanto os educadores conta-vam as esquisitices e agressões domenino, imaginávamos um adoles-cente alto e forte. Qual não foi a nos-sa surpresa quando soubemos tratar-se de uma criança mirrada de apenassete anos. No decorrer da reunião,uma professora mais antiga e expe-riente propôs que o aluno fosse con-vidado a assistir aulas na sala dela, jáque, muitas vezes, entrava em sua clas-se. A professora substituta respiroualiviada. O problema estava resolvi-do? O que mais poderíamos fazer?

Surgiram várias ideias no senti-do de valorizar os raros momentosem que ele mostrava-se construtivo ecolaborador. “Que tal convidá-lo a serajudante de professor, tarefa para a qualjamais foi solicitado?” sugeriu uma pro-fessora. “Como fazer com que ele se res-ponsabilizasse por seus atos destrutivos?”,

bre este mal-estar e sobre outros mal-estares vividos naquela instituição.Vivemos a tensão e o conflito, a sur-presa, a risada, e depois falamos so-bre isso.

Podemos perceber que outrasformas de relação são possibilitadasdepois de determinadas experiênciase encontros capazes de potencializaraberturas para o intercâmbio e para odiálogo, facilitando a comunicação,viabilizando iniciativas e promoven-do um círculo benigno.

Sekkel (2003, p. 32), ao discutirinclusão escolar, afirma a “necessida-de de um ambiente inclusivo, que ex-trapola a ideia de um ambiente em quecrianças deficientes e não deficientesconvivam e aprendam em um mes-mo espaço. No sentido proposto pelaautora, ambiente inclusivo é aqueleque tem uma articulação coletiva euma ação comprometida com o re-conhecimento e a busca da satisfaçãodas necessidades de cada um, a qualse inscreve no âmbito da construçãode uma sociedade mais humana, emque as pessoas possam se diferenciare se desenvolver... Para isso, é precisocriar condições para garantir que di-ferentes falas, provenientes dos dife-rentes lugares que cada um ocupa nainstituição sejam compartilhadas erespeitadas”.

Em outra escola, o problema eraum menino para quem ninguém con-seguia dar aula. Diziam que era autis-ta, mas não tinha nenhum laudo con-clusivo. As educadoras contavam quea psicóloga não conseguiu concluir o

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perguntei. O inspetor de alunos sugeriu que ele consertasse as ca-deiras e materiais que quebrava, Outra educadora falou que era pre-ciso investir no processo de ensino-aprendizagem, já que todos es-tavam tão preocupados com as suas atitudes agressivas e nematentavam para o fato de ele não conseguir ler e escrever como osdemais colegas de classe. O professor de Educação Física propôsque ele fosse o capitão da equipe, pois jogava bem futebol, e sempreera proibido de jogar e de fazer as atividades da disciplina, poisficava de castigo nestas aulas e no recreio pelos seus atos inadequa-dos em sala de aula. Ainda sugeriram trabalhar com o livro de histó-rias da joaninha que não foi reconhecida pela mãe porque sumiramas bolinhas do seu corpo. Quem sabe J. não podia ficar sem as boli-nhas de demônio agressivo, pois não seria reconhecido por sua fa-mília e por seus colegas? Como acrescentar outros tipos de “boli-nhas” sem descaracterizá-lo e mudar sua identidade?

Como ajudá-lo a explorar atividades agressivas, reconhecê-lase integrá-las com os seus impulsos amorosos, sem destruir pessoase objeto valorizados?

Os indivíduos precisam experimentar a agressividade para sen-tir-se vivo e real. Não basta que a agressividade seja experimentadano brincar e através de substitutos simbólicos, mas é importanteque possa se manifestar abertamente sem que o ambiente revide,impedindo a ação. Winnicott (1987) mostra que a “criança valorizaa constatação de que o ódio e os impulsos agressivos podem semanifestar em ambiente já conhecido, sem que haja uma respostade ódio ou violência por parte deste ambiente. A criança se benefi-ciará de um ambiente capaz de tolerar os sentimentos agressivos seestes forem expressos de forma razoavelmente aceitável” (p. 121).

A busca de objeto e de oposição também são necessidades in-dividuais. Winnicott (1987) afirma que utilizamos o termo agressãoquando queremos dizer espontaneidade. “O gesto impulsivo se es-tende para fora e se torna agressivo quando é atingida a oposição”(p. 373). Logo, a ação é espontânea e se torna agressiva não por suascaracterísticas, mas pela reação do ambiente, que se opõe, consti-tuindo-se em obstáculo para a sua realização completa.

A agressão é parte originária das relações de objeto, pois a suaraiz faz parte do instinto que busca relacionamento. A agressão éuma das fontes da energia da vida e está intimamente relacionada aoprocesso criativo, à espontaneidade e à motilidade. É evidência devida. O ambiente contribui ao reconhecer a agressividade como fonte

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de energia, aceitando-a e sobreviven-do, ainda que se opondo a ela.

Como propõem Kupfer e Bas-tos (2010), a troca de experiência e ainterlocução possibilitam aos profes-sores se interrogarem a respeito dasdiferentes significações atribuídas aossintomas das crianças, e refletir sobreo mal-estar inerente ao campo da edu-cação. Este trabalho propicia deslo-camentos do discurso pedagógico tra-dicional e permite que se apropriemde outras estruturas discursivas. Ogrupo de escuta, apresentado por elase realizado no Lugar de Vida, partedo desdobramento das queixas dosprofessores para produzir novas sig-nificações.

Em uma terceira escola, a pro-fessora da classe especial adoeceu eprecisou ser substituída. Não havianenhuma especialista na equipe. Adiretora pediu nossa ajuda para a es-colha da professora, bem como paraorientar o seu trabalho. Na reunião,apenas uma professora se propôs aassumir tal classe, com o apoio dasdemais colegas. Nas reuniões seguin-tes, momentos de silêncio eram fre-quentes e as professoras expressavamincômodo com a situação. Elas pediamaulas expositivas e objetivas, apostila-das, sobre temas relativos à inclusão.

A professora que assumiu a clas-se especial estava muito reticente paracontar sobre o seu trabalho e dizia queestava tudo bem. Ótimo. Começamospor algo que está bom. “Por favor, con-te sua nova experiência para destacarmosum tema para a aula”, pedi. Ela, então,

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relatou que a sua experiência estava sendo mais positiva do queesperava, com os alunos receptivos e tentando trabalhar, cada umno seu projeto e ao seu ritmo. Uma dificuldade apontada era a pre-sença de uma mãe, que ficava emburrada na classe, sem saber o quefazer, adiantando-se às iniciativas da filha, e fazendo todo o trabalhopor ela. Pelo relato da professora, a filha ficava envergonhada e osdemais alunos se sentiam invadidos com a presença daquela mãe.

Qual a necessidade da presença da mãe na sala de aula? Nin-guém sabia responder. A atual professora preferia que ela ficassefora da classe, ou em casa. Da mesma forma, achava que a TV daclasse, ligada o tempo todo, atrapalhava a concentração dos alunos,em vez de ajudar.

Como fazer? Se a professora substituta mudasse tudo e a anti-ga professora voltasse e não aprovasse as mudanças?

Os educadores começaram a falar timidamente do estranha-mento que lhes causava uma mãe dentro da classe, televisão ligada,a não circulação das crianças especiais pela escola e o horário dife-rente de recreio. Por que ninguém pôde falar disso antes? Os alunosespeciais eram, até então, de responsabilidade apenas da professoraespecialista.

Foram aparecendo outros assuntos “proibidos”, não ditos. Con-tavam que a equipe da Secretaria de Educação nunca avisava a esco-la da entrada de alunos especiais ou de novos professores. Por suavez, os professores saíam da escola e eram substituídos por outrossem conversar com os alunos sobre o assunto. De um dia para ooutro, “sumia” um professor que havia trabalhado com as criançaspor meses e entrava outro, tentando prosseguir com a matéria, comose nada tivesse ocorrido, sem explicar os motivos da saída nem daentrada. Esta escola, assim como outras da rede, estava sofrendocom a substituição constante de professores, pois foram abertosconcursos e admissões em outras redes de cidades próximas, maisvantajosas aos professores.

Assuntos considerados tabus ou pouco relevantes puderam serarejados, produzindo um enorme alívio nas crianças e educadores.Professores passaram a conversar com a classe sobre a sua saída daescola, podendo falar da tristeza que sentiam ao romper o vínculo eo trabalho no meio do ano; as crianças choravam, falando de seudesapontamento, desenhando e fazendo presentes para eles.

Nas instituições educativas, a falta de conversa dos professorescom os alunos é uma constante, seja pela falta de tempo dos profes-

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sores – os conteúdos curriculares sãoprivilegiados –, seja por não conside-rarem importante, ou por pensaremque os alunos não vão entender. Eeste mecanismo de ocultar se repetenas relações institucionais entre oseducadores e entre os dirigentes darede de ensino e os educadores. Écomo se as relações não fizessem par-te do trabalho, bem como se as deci-sões burocrático-administrativas oucurriculares devessem ser prescritase ingeridas como medicamentos, semtempo para a digestão ou possibilida-de de questionamento.

Patto (1990) encontra no psicó-logo um interlocutor qualificado quepode auxiliar o professor a operar ra-chaduras na mineralização que carac-teriza as instituições educativas. Elaidentifica uma maioria de vozes nainstituição que trabalha para a “mes-mice” e uma parcela pequena de vo-zes dissonantes, contraditórias, queprecisam ser resgatadas e encontrarespaço de manifestação.

Não há dúvida de que a lingua-gem é um recurso fundamental notrabalho com professores, pois em seucotidiano, imperam o medo e a inca-pacidade de falar. Questionar e criti-car o que tinham como verdadesabsolutas funciona como motor paramudanças na prática do professor.Precisamos investir para que as refle-xões e discussões possam repercutir,de fato, na prática do educador e nãoficar apenas no nível do discurso. Oseducadores necessitam constituir umgrupo, confiar no seu interlocutor e

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experimentar, eles próprios, situações de destrutividade, contenção,oposição, exclusão e inclusão.

No nosso trabalho, foram fundamentais os momentos em quepuderam agir de forma distinta no espaço grupal. Vivenciar novasmaneiras de ocupar o espaço de reunião viciado, ritualizado, crista-lizado e rotineiro. Então, alguns deles puderam falar e pensar asquestões sobre inclusão a partir de prismas insuspeitos, e, principal-mente, colocar-se de forma diferente em relação ao seu aluno e àtarefa de educar.

Como analisou Safra (1995), trata-se de experiências que po-dem reorganizar a maneira de o indivíduo se ver, se colocar e serelacionar com os outros e possibilitar determinados gestos. Movi-mentos de exclusão são experimentados nas reuniões e precisamser reconhecidos, sustentados e simbolizados para poderem se des-dobrar em movimentos mais inclusivos entre os próprios educado-res e em relação aos alunos.

Os professores, em sua avaliação escrita sobre o trabalho, afir-mam: “fomos escutados como profissionais e ouvimos como educadores, poden-do transportar esta experiência de respeito às diferenças para os alunos”; “Ain-da continuo com dificuldades de aprendizagem em minha classe, mas procurorespeitar o tempo da criança e o momento da aprendizagem. A dificuldade nãoé só do aluno, é minha também”.

J., professora, escreveu na avaliação: “Percebi que estou agindo dife-rente com o W. Antes, tinha pena, deixava ele [sic] fazer tudo que quisesse,protegia dos colegas, mesmo quando ele batia primeiro falava que a classe tinhaque deixar. Agora, sei que ele é diferente, mas não sinto mais pena. Cada umtem suas diferenças. Lógico que ele é mais diferente. Mas ponho ele [sic] parafazer tudo que ele consegue. E quando bate, a classe pode se defender”.

“Esperava mais dicas e teoria, e no começo não gostei, principalmente dossilêncios. Esperava do Lugar de Vida as soluções, mas me surpreendi com assugestões das colegas. Elas contaram práticas e maneiras de lidar com os alunosque eu não conhecia. Foi novo para mim, apesar de trabalhar com elas tantosanos”.

“Sou nova na escola e achava que me deixavam um pouco de fora. Faziaalgumas coisas diferentes das outras professoras e tinha medo do que achariam.Meu jeito de trabalhar é deixar a classe mais bagunçada, não fazer fila, pôrpouca coisa na lousa. Me escondia, [sic] deixava sempre a minha sala fechadae ficava quieta nas reuniões. Nos encontros, falei como eu trabalho e os outrosprofessores não reclamaram. Acho que o K. se sente assim na classe, diferente,com medo de fazer errado. Então ele não faz nada, fica paradão. Entendo ele

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[sic] melhor. Acho que vou conseguir aju-dar a destravar e a trabalhar com a classepara ele entrar”.

“Acredito mais que é fundamental in-vestir nos meus alunos, proporcionando mo-mentos significativos, ricos em informações.Estou comprometida com o meu trabalho ejá observei grandes avanços, cada um na suaproporção, fazendo com que eu me sintamuito contente, realizada, mas com a con-vicção de que ainda há muito que fazer”.

“...é relevante ressaltar que a forma-ção em ambiente de trabalho é bastante pro-dutiva, pois oportuniza um espaço de refle-xão do próprio cotidiano escolar, e permitetomar decisões coletivas”.

“Eu almejava algo diferente, mais teó-rico, apostilado, porém, percebo que o objeti-vo era que nós, docentes, percebêssemos quetínhamos ‘as respostas’ dentro de nós e quepodemos tentar trabalhar com certos casos,para contribuir com a inclusão”.

“A partir dos encontros pude perceberque, no que tange a mim, fiquei desestabili-zada em algumas situações. Mas me identi-fiquei com uma fala que surgiu a respeitodas apostas que fazemos nos alunos, quefaz a diferença, independente do método queusemos”.

E tentando responder a perguntatítulo do texto: não se ensina a incluirnem a ensinar crianças em situação deinclusão, porém é possível incluir osprofessores no processo de tornar aspráticas educativas mais inclusivas,bem como permitir experiências e re-flexões em que os professores sejamincluídos e possam desdobrá-las paraoutras situações.

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¿SE PUEDE ENSEÑAR A LOS EDUCA-DORES A INCLUIR?

RESUMEN

Reflexionar sobre los límites y posibilidades de la“enseñanza” para incluir a los educadores de laexperiencia desarrollada por un equipo de laAsociación de Vida Lugar en una escuela munici-pal. La labor de todos los educadores (profesores,dirección, caja de almuerzo, inspector de estudianteetc.). Y se desarrolló en su propia institucióneducativa, con el objetivo de discutir los temas relati-vos a la inscripción escolar. Los grupos con todo elpersonal de la escuela siempre con la transformaciónde las experiencias posibles, que pueden servir a otroscontextos, ayudando a liderar el profesor y afectan asu aspecto y ser práctico, especialmente con respecto ala educación inclusiva.

Palabras clave: educación especial; educación in-clusiva; psicoanálisis; formación de professores.

CAN YOU TEACH EDUCATORS TOINCLUDE? HOW TO TEACHEDUCATORS TO TEACH EXCLUDEDSTUDENTS?

ABSTRACT

Reflect on the limits and possibilities of teachingeducators to include, from an experience developed bya team from the Lugar de Vida Association inpartnership with a network of public schools. Thework involved all educators in each school (teachers,management team, cooks, Inspector of students etc.)and was developed in the educational institution, withthe aim of discussing problems related to schoolinclusion. Groups with all school personnel providedexperience with transformative potential, it could bedeployed to other contexts, helping to involve theteacher and affect their practice and their looking,especially with regard to inclusive education.

Index terms: special education; inclusive educationpsychoanalysis; work with teachers.

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NOTA

1 O trabalho foi proposto pelo Grupo Pon-te de Acompanhamento Escolar e realizadopor Fernando Colli, Camille Gavioli e CíntiaFreller.

[email protected]

Recebido em julho/2010Aceito em dezembro/2010