RESUMO DE UM MENINO DE SETE ANOS: REFLEXÕES...

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362 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 362-379 RESUMO Neste artigo, a partir de uma perspectiva psicanalítica, reali- za-se uma discussão acerca da evolução clínica do tratamento de um menino de sete anos que apresentava um quadro de ini- bição da escrita, com o objetivo de evidenciar como, no decorrer do processo de análise, ocorreu uma modificação no que diz res- peito ao agenciamento da angús- tia vivida pelo paciente. Conclui- se que, a partir de certas intervenções pontuais, a angús- tia inicialmente apresentada pelo paciente diante da falha da fun- ção paterna deu lugar à angús- tia frente ao processo de subjeti- vação da castração, culminando na assunção de uma tomada de posição na partilha sexual. Descritores: psicanálise; an- gústia; função paterna; inibição; sintoma. Artigo P SOBRE O TRATAMENTO DE UM MENINO DE SETE ANOS: REFLEXÕES SOBRE INIBIÇÃO E ANGÚSTIA 1 Ana Carolina Teixeira Pinto O caso Pedro edro foi levado ao Serviço de Psicologia Aplicada da universidade por sua mãe. Motivo? Ele não conseguia escrever. Embora fosse capaz de ler muito bem e apresentasse um amplo vocabulário para a sua idade, Pedro não conseguia escrever sequer uma única palavra até o final. Antes de buscar o SPA, sua mãe o levou a di- versos médicos na tentativa de encontrar uma justi- ficativa para aquilo que ela denominava de “dificul- dade de escrita” do filho. Chegou até mesmo a Psicanalista. Pós-Graduada em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade Estácio de Sà – Nova Friburgo (UNESA-NF). Psicóloga da Fundação Municipal de Saúde de Nova Friburgo-RJ. Coordenadora do Grupo de Acompanhamento Terapêutico PariPassu.

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RESUMO

Neste artigo, a partir de umaperspectiva psicanalítica, reali-za-se uma discussão acerca daevolução clínica do tratamentode um menino de sete anos queapresentava um quadro de ini-bição da escrita, com o objetivode evidenciar como, no decorrerdo processo de análise, ocorreuuma modificação no que diz res-peito ao agenciamento da angús-tia vivida pelo paciente. Conclui-se que, a partir de certasintervenções pontuais, a angús-tia inicialmente apresentada pelopaciente diante da falha da fun-ção paterna deu lugar à angús-tia frente ao processo de subjeti-vação da castração, culminandona assunção de uma tomada deposição na partilha sexual.Descritores: psicanálise; an-gústia; função paterna; inibição;sintoma.

Artigo

P

SOBRE O TRATAMENTODE UM MENINO DE

SETE ANOS:REFLEXÕES SOBRE

INIBIÇÃO E ANGÚSTIA1

Ana Carolina Teixeira Pinto

O caso Pedro

edro foi levado ao Serviço de PsicologiaAplicada da universidade por sua mãe. Motivo? Elenão conseguia escrever. Embora fosse capaz de lermuito bem e apresentasse um amplo vocabulário paraa sua idade, Pedro não conseguia escrever sequeruma única palavra até o final.

Antes de buscar o SPA, sua mãe o levou a di-versos médicos na tentativa de encontrar uma justi-ficativa para aquilo que ela denominava de “dificul-dade de escrita” do filho. Chegou até mesmo a

Psicanalista. Pós-Graduada em Teoria e Clínica Psicanalítica

pela Universidade Estácio de Sà – Nova Friburgo (UNESA-NF).

Psicóloga da Fundação Municipal deSaúde de Nova Friburgo-RJ. Coordenadora do Grupo

de Acompanhamento Terapêutico PariPassu.

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matriculá-lo em uma escola destinada a crianças portadoras de ne-cessidades especiais, mas devido ao fato de Pedro, após um anonesta escola, não ter conseguido “aprender” a escrever, optou pormatriculá-lo novamente em uma escola da rede regular de ensino.

Foi a orientadora pedagógica dessa escola que, após realizartoda uma série de esforços frustrados visando um meio de auxiliarPedro na ‘aprendizagem’ da escrita, o encaminhou ao SPA. Desdeentão, Pedro passou a ser atendido por mim semanalmente.

Pedro era filho único e residia com os pais. Seu pai possuía umtrabalho noturno. Durante o dia, quando não estava na escola, eracom ele que Pedro passava a maior parte do tempo, enquanto suamãe saía para trabalhar. Durante a noite, era com ela que ele ficava.Foi com a mãe de Pedro que tive um primeiro contato.

Nessa entrevista, ela apresentou o seguinte discurso: “Pedro jáestá com sete anos e ainda não consegue escrever, todos os colegui-nhas dele conseguem copiar a matéria do quadro e fazer os deveresde casa, ele não. Ele sempre foi muito fraquinho, muito pequenini-nho pra idade dele. Nasceu de sete meses, sempre foi uma criançamuito frágil, com muitas dificuldades, é estrábico, tem um pequenoproblema de coordenação motora no lado esquerdo do corpo e émuito magrinho pra a idade dele também. Pedro é muito fraquinhomesmo. Ele é muito hiperativo também...” Prosseguindo seu relato,ela diz: “Apesar disso tudo ele é uma criança de sorte. Eu e o meumarido sempre fomos pais muito observadores e nunca fechamos osolhos para as dificuldades dele. Por sorte dele, descobrimos todasmuito cedo, né? O problema de estrabismo, eu descobri quando eleainda tinha seis meses de idade! E o problema de coordenação motora,esse eu descobri quando ele ainda era bem novinho também”.

E por aí ela seguiu relatando uma série de dificuldades do filhoe de como essas dificuldades foram descobertas precocemente porela, dando mostras de como ela era uma mãe extremamente dedica-da e presente quando se tratava de Pedro. Ela estava disposta a tudopara auxiliar o filho em suas “dificuldades”.

Em relação a Pedro, quando coloquei os olhos nele pela pri-meira vez, tive a impressão de uma fragilidade muito grande. Ele erauma criança muito magra, usava óculos “fundo de garrafa” e, alémdisso, tinha um andar um tanto desengonçado, quase que tropeçan-do nas próprias pernas.

Ao entrar no consultório pela primeira vez, o fez cabisbaixo e,praticamente, não olhou para mim. Todo encolhidinho, olhando

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para o chão, sentou na pontinha dosofá. Quando perguntei se ele sabiaque lugar era aquele e se tinha conhe-cimento do motivo pelo qual estavaali, com uma voz extremamente bai-xinha, quase que sussurrada, respon-deu: “Digamos que eu sou um meni-no que já tem sete anos e ainda nãosei escrever direito, não consigo mesair bem na escola, todo mundo sabeescrever e eu não, eu sou muitohiperativo também”. Após ficar qui-eto por um instante, conversou emvoz baixa consigo mesmo: “Hum...Deixa eu ver... Será que minha mãedisse para eu falar mais alguma coisa?Não, acho que não tô esquecendo denada”.

No momento em que digo a Pe-dro que ele pode me dizer algo queele próprio queira dizer, sua posturase modifica radicalmente. Ele levantaa cabeça, estufa o peito, me olha nosolhos e, com firmeza, diz que vai fa-zer uma coisa. Em seguida, se levan-ta do sofá e, de forma decidida, vaiem direção à mesa e, dentre uma sé-rie de materiais ali postos, pega umpincel e um pote de tinta preta.

Sua dificuldade em segurar o pin-cel era nítida, o segurava com tantaforça que mal conseguia enfiá-lo nopote de tinta. Mas, aos trancos e bar-rancos, jogando tinta para todo o ladoao tirar o pincel do pote, começou afazer um desenho, o qual, à primeiravista, não passava de um simples ris-co de tinta preta. Mas, a partir da suafala, esse simples ‘risco’ ganhou sen-tido: tratava-se de uma “floresta ne-

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gra super perigosa” que queria mor-dê-lo, engoli-lo e com a qual ele pre-cisava lutar muito para se salvar.

De imediato, algo me chamouparticular atenção enquanto Pedrofazia esse desenho. Curiosamente, namedida em que o fazia, ele o ia en-cobrindo com a tinta, de modo que,ao terminar de contar sua históriasobre a floresta negra, o que sobroufoi uma folha totalmente coberta detinta preta.

Com o decorrer das sessões, ofato se tornou mais significativo ain-da, pois ele encobria invariavelmentetodos, absolutamente todos os dese-nhos que fazia. Além disso, todos osdesenhos, assim como a história queme contava a respeito deles, apresen-tavam um conteúdo semelhante: eramsempre desenhos de conteúdo agres-sivo e ameaçador. Ora a floresta quetentava mordê-lo e engoli-lo; ora umfeiticeiro malvado que desejava jogaras crianças num caldeirão fervendo;ou um monstro mau, muito mau, quejogava uma corda nas pessoas e asprendia.

Ainda no que diz respeito aosdesenhos, Pedro os fazia sempre uti-lizando cores escuras, principalmen-te o preto. Ele dizia não gostar dascores claras, elas eram “feias”. Espe-cialmente em relação à cor amarela,quase sempre que a via, fazia um arde desprezo e a colocava num cantoisolado da mesa. Além disso, enquan-to desenhava, Pedro dava mostras deestar extremamente angustiado, o queparecia justificar, de certo modo, sua

dificuldade em segurar o pincel e afalta de destreza na hora de executaros desenhos.

No início do meu trabalho comPedro, a própria dinâmica das sessõesapresentava uma similaridade. Sem-pre que chegava ao consultório, Pe-dro ressaltava que tinha algo a me di-zer. Sempre que o fazia, iniciava seudiscurso com a mesma expressão: “di-gamos que”. Tal expressão era sem-pre sucedida de falas ditas por sua mãee que ele reproduzia. Em diversosmomentos, Pedro referia-se a si pró-prio, por exemplo, como um “meni-no fraquinho”.

Numa determinada sessão, Pe-dro pegou um pote de tinta e me en-tregou, pedindo que eu o abrisse. Pe-dro nem ao menos havia tentado abriro pote e, muito curiosamente, era elequem sempre abria os potes de tintaque utilizava. Recusei-me a abrir opote, dizendo a ele para que o fizes-se. Pedro insistiu em dizer que nãoconseguia, mas, diante da minha fir-me recusa, tentou abri-lo e conseguiu.Imediatamente levantou da cadeira e,demonstrando enorme surpresa porter conseguido abrir o pote, gritou:“Mas eu sou fraco!”.

Após essa sessão na qual pelaprimeira vez identifiquei que o signi-ficante “fraco” se fez acompanhadode uma interrogação na sua fala – vis-to que “Eu sou fraco!” parecia equi-valer a “Se eu sou fraco, como conse-gui abrir o pote de tinta?” –, Pedropassou a me contar histórias angus-tiantes em relação aos desenhos que

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fazia. Nesses momentos, não iniciavasua fala com a expressão “digamosque” que, em outros momentos, sefazia tão significativamente presenteem seu discurso. Neste período daanálise, quando o final das sessões seaproximava, Pedro novamente mefalava que tinha algo a dizer. Mas, ago-ra, já não se tratavam de falas vazias.Com um ar de confissão, me falavasobre seu sentimento em relação aospais.

Uma fala em particular foi fre-quentemente repetida por ele: “Meupai não serve pra nada, sabia? E mi-nha mãe só atrapalha”. Quando in-dagado acerca dessa fala, Pedro, comum tom queixoso, me explicou: “Meupai não faz nada. Ele nunca faz nada.Eu falo... falo... falo... mas ele não faznada, poxa vida! Os meninos da es-cola me agridem porque eu sou ummenino fraquinho, eu já expliquei praele, mas ele não manda o tio (moto-rista do ônibus escolar) brigar comeles. Não adianta...”.

Certa vez, após repetir o mesmodiscurso, relatou uma situação quehavia presenciado em casa: “Ontemeu tava no quarto com eles e aí, derepente né, minha mãe, que é muitoirritada, começou a brigar pra caram-ba com meu pai. Ela começou a gri-tar com ele e saiu do quarto. Meu pailevantou rapidão da cama e foi cor-rendo atrás dela.” Neste ponto, Pe-dro interrompeu seu discurso. Per-guntei, então, o que aconteceu depoisdisso. Pedro, novamente com um tomde queixa, de reivindicação, falou:

“Ele não fez nada...” Que Pedro pen-sava que seu pai deveria ter feito algonesta situação parecia evidente. Per-guntei, então, a ele:

– E o que ele deveria ter feito?– Ele deveria ter dado vários tapas nabunda gorda dela!

Comumente, Pedro se referia aopai de forma queixosa. Somente umaúnica vez, durante todo o período emque trabalhei com Pedro, ele pareciaestar contente com o pai. Foi quandoeste lhe deu um “super videogame”de presente. Todavia, logo após elo-giar o presente recebido do pai, res-saltou: “Na verdade, meu pai só ébom para dar presente, mais nada”.Em seguida, pegou três cadeirinhasde brinquedo e colocou-as uma dolado da outra, de frente para umacaixinha de madeira que, segundo ele,era uma televisão. Após montar estacena, disse: “Nós estamos jogandovideogame. A gente joga sempre.Minha mãe tá nessa ponta aqui, eu tôno meio e o meu pai tá lá na outraponta, sabia?”.

Considerando a angústia quePedro parecia apresentar, somada àsconstantes queixas em relação ao paie, ainda, o fato de este sair à noite paratrabalhar, passei a suspeitar que Pe-dro dormia todas as noites na camados pais com a mãe, o que foi confir-mado pela mãe de Pedro quando,após quatro ou cinco sessões com ele,a recebi novamente. Destaco aindaoutro ponto importante da minha

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conversa com ela: um recado que elame deu, a pedido da orientadora pe-dagógica da escola do filho, a saber,que eu havia feito um “excelente tra-balho com o problema de escrita dePedro”, pois ele já estava conseguin-do escrever praticamente tudo.

Após me dar este recado de con-teúdo surpreendente, a mãe de Pedrodeclarou que o filho deveria continu-ar o tratamento no SPA, pois, segun-do entendia, ele ainda apresentava“algumas dificuldades”. Segundo per-cebia, Pedro tinha “dificuldade paracrescer” e era muito “manhoso e in-fantil para sua idade”. Nesse momen-to, intervi e disse a ela que enquantocontinuasse dormindo com ela, Pe-dro continuaria apresentando esta di-ficuldade que ela mesma destacou, ouseja, ele continuaria tendo dificulda-de para crescer. Disse a ela, então, quePedro não poderia mais continuardormindo com ela. Ela, por sua vez,acatou minha intervenção e se com-prometeu a colocar o filho para dor-mir em outro lugar.

Desde então, Pedro passou adormir sozinho. No dia seguinte emque o fez pela primeira vez, teve umanova sessão comigo. Nesta, Pedrochegou diferente. Quando chegou àclínica da Universidade, seus gritospodiam ser ouvidos de longe. Ao abrira porta do consultório, avistei Pedrono corredor. Gritando e correndo, eleveio em minha direção e, antes mes-mo de entrar no consultório, fez ques-tão de me dizer, ou melhor, de gritar:“Já to dormindo sozinho!”.

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Durante essa sessão, Pedro não parou quieto. Correu pela sala;pulou em cima do divã; abaixou sua calça a fim de me mostrar seuórgão genital; saiu da sala por alguns instantes e pôs-se a correr epular no corredor e, em seguida, a tentar abrir as portas dos outrosconsultórios; voltou para a sala e tirou os brinquedos de cima damesa, jogando-os contra a parede etc. Duas coisas me chamaramatenção nesse comportamento. Pedro aparentava estar com muitaraiva e querer também, a todo custo, chamar minha atenção, che-gando, inclusive, a segurar meu rosto para que eu não desviassemeu olhar dele.

Ainda no que concerne a essa sessão, o desenho que fez – as-sim como a maneira com que estava se apresentando a mim – diver-giu das sessões que haviam ocorrido até ali. Pedro desenhou umamenina e a cobriu com tinta de cor amarela. A menina, segundo ele,estava com raiva, mas não sabia de que. Pergunto se ela não estariacom raiva porque não a deixavam mais dormir na cama da mãe dela.Nesse momento, Pedro levantou da cadeira e começou novamentea jogar os brinquedos contra a parede.

Na sessão seguinte, além de não se apresentar como o haviafeito na sessão anterior, Pedro parecia diferente em relação às pri-meiras sessões. Ele estava sem os óculos e vestido com uma roupaque parecia menos infantil do que as que ele costumava usar. Osassuntos introduzidos por ele também eram novos. Pela primeiravez, me falou do seu interesse por meninas, em especial, por umamenina que, segundo ele, era a mais bonita da escola. Naquela se-mana, ele havia pedido esta menina em namoro, mas ela havia recu-sado o pedido.

Passadas, aproximadamente, quatro ou cinco semanas desdeque começou a dormir sozinho, sua mãe o deixou – como era co-mum, antes da minha intervenção – dormir com ela numa determi-nada noite, por conta de algumas visitas que estiveram em sua casa.No dia seguinte ao ocorrido, a primeira coisa que Pedro me disse aoentrar no consultório foi que estava “desmaiado de sono”, pois nãohavia dormido bem à noite. Embora tenha justificado o ocorridoalegando que jogou videogame até tarde, um desenho que fez ser-viu para melhor esclarecer o que havia se passado: ele desenhouuma “serpente de mil centímetros” e um “tico-tico”. Este consistianuma “maquininha de furar madeira”, parecida com a que seu paitinha, e que “ia furar a serpente”. Ainda segundo Pedro, “as crian-ças precisam ter muito cuidado com o tico-tico, porque se ele furar

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o dedo delas, não tem volta, o dedofica pendurado e cai”.

Além dessa fantasia de castração,que pela primeira vez era trazida porele, outra mudança significativa ocor-reu em sua análise, a saber, também,pela primeira vez, Pedro fez um de-senho e não o encobriu, como sem-pre fizera até então. Baseado num fil-me que havia assistido com seu paino fim de semana, desenhou umanave espacial “cheia de alienígenas”que queriam transformar as pessoasem alienígenas também. Além de nãoter encoberto o desenho, ele o fezjustamente com a cor amarela.

Esse foi o último desenho feitopor ele, já que, daí em diante, passoua se interessar basicamente por jogos.Diferentemente do que vinha acon-tecendo nas sessões anteriores, nasquais pintava ou criava certas histó-rias sozinho (embora as compartilhas-se comigo), Pedro passou a me con-vidar para jogar alguns jogos com ele.Enquanto jogávamos, fazia questãode ir somando os pontos para verquem estava ganhando as disputas.Segundo sua mãe, Pedro passou tam-bém a incluir coleguinhas da escolaem suas brincadeiras, convidando-os,inclusive, para ir à sua casa jogar vi-deogame.

Sobre a inibição da escrita

O quadro apresentado por Pedrofoi classificado, a partir de avaliação

realizada por profissionais da institui-ção que frequentou antes de ser en-caminhado ao SPA, como Transtor-no da Expressão Escrita. No ManualDiagnóstico e Estatístico de Transtor-nos Mentais (DSM-IV, 2002), essetranstorno é encontrado na seção dosTranstornos Diagnosticados pela Pri-meira Vez na Infância ou na Adoles-cência e compõe, juntamente com osTranstornos da Leitura e da Matemá-tica, os Transtornos da Aprendiza-gem. Caracteriza-se, essencialmente,pelas habilidades de escrita se situa-rem acentuadamente abaixo do nívelesperado, considerando-se a inteligên-cia medida e o nível escolar própriosdo indivíduo. Essa perturbação daescrita interfere significativamente norendimento escolar ou em atividadesda vida cotidiana que exigem habili-dades de escrita.

Como psicanalista, entretanto,interessa-me menos o conjunto desintomas que, reunidos, compõemuma doença propriamente dita – oTranstorno da Expressão Escrita – doque os fatores psíquicos que, confor-me o tratamento de Pedro revelou,resultaram na sua impossibilidade deescrever. Passemos a investigá-los.

Podemos deduzir que Pedro jásabia escrever quando iniciou o trata-mento. Se não o soubesse, ou se ti-vesse algum problema neurológicoque o impedisse de fazê-lo, não tería-mos obtido os efeitos terapêuticosque conseguimos logo no princípiodo tratamento – já a partir das pri-meiras sessões esse sintoma foi dis-

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solvido. Considerando, pois, que o entendimento da evolução clíni-ca do caso de Pedro não deve passar e nem se restringir a umadiscussão referente ao fato se ele sabia ou não sabia escrever háépoca em que iniciou o tratamento, faz-se relevante levantar as se-guintes questões: o que impedia Pedro de escrever? A que se deveusua resposta tão rápida ao tratamento?

Em minha ótica, o impedimento de escrever que Pedro apre-sentava consistia no que Freud (1926/2004) denominou, em Inibi-ção, sintoma e angústia, como inibição, ou seja, uma restrição de umafunção do ego. Por vezes, Freud chega a estabelecer, nesse texto,aproximações entre os conceitos de inibição e sintoma, apontandoque certas inibições podem ser também consideradas como um sin-toma. Do mesmo modo, afirma que certos sintomas podem assu-mir características de uma inibição.

Todavia, cabe destacar que, se por um lado Freud aproximainibição e sintoma, por outro, esforça-se por distinguir os concei-tos2. A esse respeito, o que nos interessa ressaltar é que a caracterís-tica fundamental da inibição, que a distingue do sintoma, no textomencionado, consiste no fato da inibição – diferentemente do sin-toma, que consiste numa formação substitutiva de um impulso pul-sional recalcado – ser um processo que ocorre no ego ou que atuasobre o ego.

Encontramos no texto de Freud uma distinção entre o que elechama de inibições específicas e inibições generalizadas. As específicas po-dem servir tanto à finalidade de evitar que o ego entre em conflitocom o id, como também à de evitar que o ego entre em conflitocom o superego. As inibições generalizadas, por sua vez, decorremde uma grande perda de energia por parte do ego, quando este seacha engajado em uma dispendiosa tarefa psíquica, tal como ocorreno processo de luto.

No caso de Pedro, parece tratar-se de uma inibição específicareferida à função da escrita. No que se refere a esta função, Freudaponta que a mesma se torna inibida a partir do momento em que ofluir da tinta para o papel assume uma conotação sexual. Assimcomo pode ocorrer com diversas outras funções específicas, a es-crita torna-se prejudicada quando sua significação sexual é aumen-tada. Tal coisa é identificável no caso de Pedro, o qual, conformemencionado em outro momento, jamais utilizava cores claras nassuas pinturas, principalmente a cor amarela que, segundo seu dis-curso, era uma cor “feia”. Não podemos desprezar o fato de o

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amarelo ser a cor predominante dosexcrementos que saem do órgãogenital.

Outro ponto importante chamaatenção nesse caso. A partir do dis-curso inicial apresentado pela mãe dePedro, tornou-se claro que ela oalocava no lugar de “fraco”, o que, ali-ás, parecia estar intimamente relacio-nado ao fato de Pedro, também se-gundo a mãe, sempre ter tido “muitasdificuldades”. Assim, enunciado comofraco no discurso da mãe, era justa-mente daí que ele parecia responder.Desse modo, sua impossibilidade deescrever apresentada por estava rela-cionada também ao lugar do qual eleera chamado a responder em sua re-lação com a mãe. Resumindo, sua mãeo alocava no lugar de fraco e de quemtinha muitas dificuldades; ele, por suavez, respondia desse lugar, fosse apre-sentando muita dificuldade e até mes-mo incapacidade de escrever, fossenão podendo lidar com os meninosque o agrediam na escola, ou até mes-mo alegando que era fraquinho de-mais para abrir o pote de tinta no con-sultório.

Na sessão em que Pedro me pe-diu para abrir o pote de tinta e eu in-sisti que ele próprio abrisse sozinho,quando conseguiu fazê-lo, sua reaçãofoi imediata: “Mas eu sou fraco!”. Defato, ele vinha ocupando este lugar.Quando realizei essa intervenção,meu intuito foi o de questionar isso.Esse foi um momento fundamentalda análise de Pedro. Talvez tenha sidoessa intervenção clínica a que mais

contribuiu para que ele começasse aescrever, o que passou a acontecerpouco tempo depois de realizada amesma.

O efeito terapêutico produzidopor essa intervenção deve ser pensa-do levando-se em consideração a pri-meira fala que Pedro dirigiu a mim.Quando Pedro se apresentou a mimcomo um menino de sete anos queainda não sabia escrever, ele o fez uti-lizando uma expressão que lançava talincapacidade numa lógica hipotética.Dizer “Digamos que eu sou um meninode sete anos que ainda não sei escrever”,não é a mesma coisa que dizer “Eusou um menino de sete anos que ainda nãosei escrever”.

O “digamos” presente no discur-so de Pedro indicava que exercer afunção da escrita o introduzia numadimensão conflitante. Mais do queisso: ao dizer “Digamos que eu souum menino de sete anos que aindanão sei escrever”, Pedro denunciava,através dessa expressão com a qualiniciava sua fala, que ser um meninode sete anos que ainda não sabia es-crever dizia respeito à forma comoele era falado por um Outro – nessecaso, um Outro encarnado pela figu-ra materna. Embora a mãe de Pedrotenha demandado, desde o início dotratamento, uma solução para aquiloque denominava de “dificuldade deescrita” do filho, ela o alocava, comojá destacamos, no lugar de fraco, deum menino que possuía muitas difi-culdades e que, portanto, precisava desua dedicação.

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Na medida em que, respaldada pelo referencial psicanalítico,não procuro a qualquer custo ‘curar’ Pedro do seu sintoma, na me-dida em que não atendo a demanda que me foi feita por sua mãe,Pedro passou a poder escrever, e isso já no princípio do tratamento.Sobre esse ponto, concernente aos efeitos terapêuticos no trata-mento de crianças com inibições, Fráguas e Berlinck (2001) desta-cam que é frequente a ocorrência de resultados espetaculares.

Assim, a velocidade com que Pedro respondeu ao tratamento,no sentido de sua inibição ter sido dissolvida, está de acordo com oesperado no caso do tratamento de crianças inibidas. Todavia, con-forme pôde ser observado a partir do relato do caso, o tratamentode Pedro não chegou ao seu término após a obtenção desse resulta-do. Isso porque, embora a “dificuldade de escrita” que Pedro apre-sentava tenha sido eliminada já no princípio do tratamento, no quediz respeito à angústia o mesmo não ocorreu. Muito pelo contrário,principalmente a partir do momento em que a inibição desapare-ceu, o que eu observava era que a angústia de Pedro se tornava maisevidente ainda. Nesse sentido, surge a questão de saber de que an-gústia se tratava no caso de Pedro.

Da angústia em torno do pai à angústia diante dopai

Como vimos, Pedro foi encaminhado ao SPA principalmenteem função de sua incapacidade de escrever, à qual, segundo os di-versos especialistas por quais passou, não possuía uma justificativaneurológica. Quando iniciou o tratamento, Pedro dava mostras tam-bém de estar muito angustiado, o que ficava muito evidente en-quanto desenhava. Enquanto fazia seus desenhos, Pedro demons-trava sinais claros de angústia relacionados, a princípio, ao seu temorde ser capturado, engolido e devorado.

Em Inibição, sintoma e angústia, Freud afirma que a relação exis-tente entre inibição e angústia é evidente. Com o intuito de adentrarmais diretamente na questão da angústia, o autor se propõe a abor-dar uma série de exemplos de formação de sintomas, iniciando seupercurso pela fobia do pequeno Hans. No que se refere a este caso,Freud destaca que, frente à situação de experimentar um amor e umódio dirigidos à figura paterna, ou seja, frente um conflito de ambi-

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valência, Hans construiu uma fobia acavalos. A fobia, pois, consistia numatentativa de solução do conflito.

O medo apresentado por Hansde ser mordido por um cavalo reve-lava, ainda de acordo com o autor,duas mudanças fundamentais em re-lação àquele conflito de ambivalênciainicial: uma transformação do afeto,na medida em que o impulso hostilcontra o pai, que até então alavancavaa angústia de castração, deu lugar à an-gústia de ser mordido por um cavalo;e uma substituição do objeto, já que,no lugar do pai, surgiu o cavalo. Ali-ás, Freud faz questão de destacar queé exatamente essa substituição do paipelo cavalo o que permite designar oquadro apresentado por Hans comouma fobia, equivalente, em sua ótica,a uma neurose.

A angústia frente à ideia de sermordido por um cavalo acabava porimpossibilitar Hans de sair à rua, namedida em que, ao fazê-lo, o meninose encontraria exposto ao objeto fó-bico. Desse modo, a fobia, enquantoformação substitutiva, tanto permiteevitar um conflito devido à ambiva-lência quanto evitar a angústia, já quepara isto basta que o sujeito evite en-trar em contato com o objeto que lhedá medo. Conclui-se então que, a par-tir da construção da fobia, a angústia,agora dirigida para um outro objeto,passa a ser evitada mediante o meca-nismo de inibição. Freud (1926/2004,p. 97) distingue, pois, no caso de Hans,aquilo que é da ordem de um sinto-ma daquilo que, por sua vez, consiste

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numa inibição. Nas palavras do autor:“A incompreensível angústia frente ocavalo é um sintoma; a incapacidadepara andar pela rua, um fenômeno deinibição, uma limitação que o ego seimpõe para não provocar angústia”.

Ainda no que diz respeito ao casoHans, Freud aponta que, com a cons-trução da fobia, além da angústia sedirigir a um objeto substituto, o cava-lo e não mais o pai, ela passa a se ex-pressar de forma distorcida: a angús-tia de castração dá lugar à angústia deser mordido pelo cavalo.

No Seminário sobre a relação deobjeto, Lacan (1995a) se detém longa-mente no caso Hans, destacandoduas ordens de angústia que, segun-do afirma, podem ser encontradasnesse texto de Freud, a saber, a an-gústia diante do pai, vor dem Vater; ea angústia em torno do pai, um denVater (p. 355). A primeira diz respei-to ao pai enquanto elemento castra-dor, ao passo que a segunda, justa-mente à falha do pai no exercíciodessa função. Considerando a distin-ção entre essas duas ordens da angús-tia, Lacan faz uma releitura do casoHans publicado por Freud.

De acordo com Lacan (1995a),o pai enquanto um terceiro que se in-troduz na relação entabulada entre amãe e a criança assume, aos olhosdesta, um caráter ameaçador, mas nãosó. Isso porque o pai enquanto cas-trador é também aquele que protege acriança das malhas fechadas do dese-jo materno. Na ausência dessa fun-ção interditora, a criança experimen-

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ta a angústia em torno do pai, já quese encontra desamparada, desprote-gida diante do desejo da mãe. Tal eraa situação em que se encontrava oPequeno Hans quando começou, porintermédio do pai, a ser analisado porFreud e também a de Pedro quandodo início de sua análise.

Lacan enfatiza, então, que o de-sencadeamento da fobia de Hansocorreu justamente a partir do mo-mento em que o menino se encon-trou à mercê do desejo da mãe, e nãoa partir de uma ameaça de castração.A mesma causa subjacente à constru-ção da fobia no caso de Hans, segun-do nossa ótica, assemelha-se àquelaque deixava Pedro tão angustiado.Pedro achava-se, principalmentequando do início do tratamento, for-temente aderido, ou conforme umaexpressão lacaniana (1964), alienadoao significante “fraco”. Diante desseinvestimento libidinal materno que oalocava no lugar de fraco, Pedro en-contrava-se numa posição apassivada,objetalizada. Daí a angústia, que se-gundo ressalta Lacan (1995a, p. 232),é correlativa do momento em que acriança é “a vítima, o elemento apas-sivado de um jogo onde vira presa dassignificações do Outro”.

Portanto, a angústia apresentadapor Pedro quando iniciou o processode análise, refletia a precariedade dafunção paterna enquanto aquela ca-paz de interditar sua relação com amãe. Aliás, assim como fazia diversasvezes o analisando de Freud, tambémPedro denunciava isso explicitamen-

te. Hans praticamente implorava a seupai que interditasse sua relação coma mãe. Pedro, por sua vez, queixava-se a mim do fato de seu pai não “ser-vir para nada”, de não servir paraimpedir que sua mãe “atrapalhasse”tanto sua vida.

Frente à desproteção diante dodesejo materno, Hans construiu a fo-bia a cavalos. Sobre isto, Lacan (1995a,p. 211) ressalta que “o objeto fóbicovem preencher sua função sobre ofundo da angústia”, o que equivale adizer que a fobia vem em socorro daangústia. Embora Pedro não tivesse,concretamente, construído uma fobia,o temor de ser engolido, tão intensa-mente presente nas histórias que elecontava durante as sessões, equivaleao tema postulado por Lacan (1995a,p. 233) como sempre presente na es-trutura da fobia, qual seja, o “tema dadevoração”.

No princípio da análise, a angús-tia apresentada por Pedro parecia re-fletir, não a ausência absoluta, masuma falha da função paterna, que odeixava desprotegido diante do dese-jo ameaçador da mãe. Por diversasvezes no princípio de sua análise, Pe-dro fazia desenhos de conteúdo amea-çador. Durante sua execução, falavada ameaça de ser capturado, engoli-do e preso pelos monstros ou figu-ras bizarras que pintava, ressaltando-se que ele se colocava, claramente,como o personagem principal, quedeveria lutar para escapar de situaçõesextremamente ameaçadoras dessashistórias.

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Parecia evidente que ele estavaàs voltas com o desejo materno, queo ameaçava profundamente, já queseu pai, conforme o próprio Pedrodenunciava, “não servia para nada”.Ele “não servia”, por exemplo, paradizer não à esposa quando esta colo-cava Pedro para dormir com ela, ocu-pando justamente o lugar que deve-ria ser do marido. Foi justamente aíque eu entrei, enquanto um terceiroque – com a autoridade a mim outor-gada pela mãe de Pedro – disse não aela; disse a ela que não mais poderiacontinuar a colocar o filho para dor-mir com ela.

Quando realizei tal intervenção,o que fiz foi dar uma consistência tan-to imaginária, aos olhos de Pedro, àlei paterna, quanto uma consistênciasimbólica a mesma, na medida em queconsegui fazer com que a mãe de Pe-dro fosse portadora dessa lei. No mo-mento em que a mãe acata minha in-tervenção, dizendo ao filho que, apartir de então, ele passaria a dormirsozinho em sua própria cama, foi jus-tamente a intervenção da fala de umterceiro o que se fez presente em seudiscurso. A intervenção deste no dis-curso da mãe, de acordo com o queLacan aponta em O seminário, livro 5:as formações do inconsciente 1957-58, abrepara a criança uma possibilidade di-ferente daquela concernente ao ser ounão ser o falo da mãe. Mas, quando, apartir de minha intervenção, tal pos-sibilidade se colocou para Pedro, suareação serviu para nos mostrar oquanto ele apresentava uma fixação

nessa etapa da constituição do sujei-to, na qual o que está em jogo para acriança é justamente ser o que a mãedeseja. Pedro estava com dificuldadede renunciar a esta posição, o que fi-cou evidente na medida em que, apósser desalojado do lugar privilegiadoque ocupava na cama da mãe, ele pro-curou durante toda a sessão posteriorao ocorrido, se fazer ver por mim.Pedro queria ser visto o tempo intei-ro e de corpo inteiro, queria ser o cen-tro dos meus olhares, assim como oera em relação ao olhar da mãe.

Ao frustrar Pedro nesse sentido,produziu-se como efeito uma mudan-ça em sua posição, ao menos no quediz respeito ao modo como passou ase apresentar nas sessões posteriores.Numa das sessões seguintes a essa,além de Pedro não buscar a todo cus-to os meus olhares, ele construiu umafantasia de castração. Essa fantasiaapontava, dentre outras coisas, parao fato de que o simbólico passou a ope-rar na relação de Pedro com o falo. Adiferença entre os sexos, represen-tada pela presença ou ausência dofalo, pois, havia, segundo indicava talfantasia, começado a ser subjetivadapor ele.

Cabe destacar então que, no quese refere à angústia, esta sofreu umatransformação importante ao longodo processo de análise de Pedro. Dei-xou de sinalizar sua desproteção fren-te ao desejo da mãe e passou a refle-tir o temor da castração. A angústia,daí em diante, passou a ser aquela queLacan denominou como a angústia

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diante do pai castrador – a angústiadiante do pai, vor dem Vater.

A partir do momento em que seabriu para Pedro a possibilidade deocupar outro lugar que não o de “fra-co”, que era um lugar sintomático, elepôde ensaiar uma identificação viril,o que se evidenciou quando, pela pri-meira vez, ele falou durante a sessãoda menina que gostaria de namorar.Desse modo, pode-se pensar que Pe-dro finalmente começou a assumiruma posição na partilha dos sexos.

Considerações finais

Assim como Freud, em Inibição,sintoma e angústia (1926/2004), no Se-minário sobre a relação de objeto (1956-57), Lacan aloca a fobia no campo dasneuroses. Tempos depois, no Semi-nário De um Outro ao outro (1968-69),afirma que a fobia infantil não con-siste numa estrutura clínica, mas simnuma placa giratória, que pode girartanto para uma das duas grandes neu-roses, histeria e neurose obsessiva,quanto para a perversão3.

Isso nos leva a pensar que, dian-te das fobias infantis, a atuação doanalista pode ser preventiva. O casode Pedro nos mostra que isso podeser estendido àqueles quadros de an-gústias infantis, nos quais, embora acriança não tenha construído concre-tamente uma fobia, o analista identi-fica que a angústia de que se trata está

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sendo alavancada por um determinado lugar que ela ocupa junto àmãe. Com a diferença, neste caso, de que a evitação da angústia nãose dá mediante a eleição de um objeto que faça às vezes do pai real.

A inibição exige do eu uma operação menos complexa do quea fobia e os demais sintomas de um modo geral, refletindo, confor-me Henckel e Berlink (2003) apontam, um Ego mais frágil. Alémdisso, quando estabelecemos uma comparação entre o sintoma fó-bico de Hans e a inibição da escrita apresentada por Pedro, somoslevados a pensar que o primeiro consistiu numa solução mais eficazdo que o segundo frente à angústia, pois como ficou claro nestetrabalho, a inibição da escrita em Pedro de modo algum consistiunuma medida suficiente para protegê-lo da angústia. Já no caso dafobia, como o próprio Freud (1926/2004) deixa claro, a angústiapode ser evitada simplesmente a partir de um afastamento do obje-to fóbico. Todavia, isso revela, por sua vez, que a construção dafobia, por si só, não é suficiente para proteger o sujeito da angústia,devendo somar-se a ela a imposição de uma inibição. Nesse sentido,talvez valha a pena considerar esta inibição, que consiste numaevitação do objeto fóbico, como secundária e aquela apresentadapor Pedro como primária.

SOBRE EL TRATAMIENTO DE UN NIÑO DE SIETE AÑOS:REFLEXIONES SOBRE INHIBICIÓN Y ANGUSTIA

RESUMEN

En este artículo, a partir de una perspectiva psicoanalítica, se realiza una discusión acerca de laevolución clínica del tratamiento de un niño de siete años que presentaba un cuadro de inhibiciónde la escrita, con el objetivo de evidenciar como, en el transcurso del proceso de análisis, ocurrióuna modificación con relación a la gestión de la angustia vivida por el paciente .Se Concluye que,a partir de ciertas intervenciones puntuales, la angustia inicialmente presentada por el pacientedelante de la falla de la función paterna dio lugar a la angustia frente al proceso de subjetividadde la castración, culminando en la asunción de una toma de posición en el reparto sexual.

Palabras-clave: psicoanálisis; angustia; función paterna; inhibición; síntoma.

ABOUT THE TREATMENT OF A CHILD WHO IS SEVEN YEARS OLD:REFLECTIONS ON INHIBITION AND ANXIETY 

ABSTRACT

In this article, from a psychoanalytic perspective, conducts a discussion about the clinical treatmentof a boy who is seven that presented a case of inhibition of writing, aiming to show how, duringthe review process, a change has occurred with respect to the assemblage of distress experienced

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by the patient. We conclude that, from certain specificinterventions, the anguish initially presented by thepatient before the failure of the paternal role gaveway to anguish and subjectivity process of castration,culminating in taking a position on shared sexual. 

Index terms: psycho-analysis; anxiety; paternalfunction; inhibition; symptom. 

REFERÊNCIAS

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______ (1968-69) Seminaire D’ un Autre a 1’autre (Vol. 3). Document de travail.

NOTAS

1 Este trabalho é fruto de apresentação decaso clínico em evento da “Semana da Psico-logia”, em Agosto de 2007.

2 A este respeito, ver, especialmente,Henckel e Berlinck (2003).

3 No original em francês “au niveau de laphobie que nous pouvons voir non pas dutout quelque chose qui soit une entité clinique,mais en quelque sorte une plaque tournante,quelque chose dont, à l’ élucider dans sesrapports avec ce vers quoi elle vire plus quecommunément, à savoir les deux grandsordres de la névrose: hystérie et névroseobsessionnelle, mais aussi bien par la jonctionqu’ elle réalise avec la s tructure de lapervesion”. (Lacan, 1968-69, p. 320)

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Recebido em fevereiro/2010Aceito em maio/2010