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1 Resistências à acumulação primitiva: o caso do MST A civilização burguesa imperialista está num beco sem saída. Deste beco não temos que participar os bugres das baixas latitudes e adjacências. Mário Pedrosa, Discurso aos tupiniquins ou nambás, 1975 1. Rosa Luxemburgo e A acumulação do capital Como todos sabem A acumulação do capital (1913) [AKK] de Rosa Luxemburgo foi criticada por várias gerações de economistas. Mesmo os que simpatizam com suas ideias reconhecem que há erros na solução encontrada por ela para os problemas da teoria da acumulação de Marx. 1 Assim que veio a público, o livro foi alvo de uma saraivada de críticas de ordem técnica, teórica e pessoal de irritados marxólogos e não-marxólogos, 2 que não podiam admitir que uma marxista ousasse criticar Marx. Porém, deixando de lado questões econômicas técnicas em que não sou especialista, é importante ressaltar que o valor e a atualidade da obra, como reconhecem os comentadores, 3 está na sua parte histórica (7 capítulos em 32), dedicada à análise do imperialismo. Na verdade Rosa não tinha intenção de opor-se a Marx, mas simplesmente de completar sua teoria, que não considerava um dogma inquestionável. Vejamos brevemente do que trata o livro. No Prefácio à AKK, Rosa Luxemburgo diz que ao tentar concluir a Introdução à economia política “uma popularização da doutrina econômica de Marx” (redigida na prisão em 1915-16 a partir das notas dos cursos dados entre 1908 e 1914 na escola de quadros do SPD) , enfrentou “uma dificuldade inesperada. Não conseguia expor com clareza suficiente o processo global da produção capitalista em suas relações concretas, nem suas limitações históricas objetivas.” 1 Cf., entre outros, Michael Krätke, Rosa Luxemburg und die Analyse des gegenwärtigen Kapitalismus. In: Narihiko Ito, Annelies Laschitza, Ottokar Luban (org.), Rosa Luxemburg. Ökonomische und historisch-politische Aspekte ihres Werkes, Berlim, Dietz Verlag, 2010. 2 Cf. J. P. Nettl, La vie et l’oeuvre de Rosa Luxemburg, Paris, Maspero, 1972, p.516. Para um resumo das críticas ver p.826-28. Segundo Lênin, “A descrição dos sofrimentos infligidos aos negros na África do Sul é tocante, de cores gritantes e sem sentido. Sobretudo é ‘não-marxista’.” Mario Pedrosa considera “falso e injusto” esse juízo sobre o livro. Cf. A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1979, p.69. 3 Cf., entre outros, Paul Singer, A teoria da acumulação do capital em Rosa Luxemburg. In: Isabel Loureiro e Tullo Vigevani (org.), Rosa Luxemburg, a recusa da alienação, São Paulo, Editora UNESP, 1991; Paul Singer, Apresentação a A acumulação do capital, São Paulo, Abril Cultural, 1984.

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Resistências à acumulação primitiva: o caso do MST

A civilização burguesa imperialista está num beco sem saída. Deste beco não

temos que participar – os bugres das baixas latitudes e adjacências.

Mário Pedrosa, Discurso aos tupiniquins ou nambás, 1975

1. Rosa Luxemburgo e A acumulação do capital

Como todos sabem A acumulação do capital (1913) [AKK] de Rosa

Luxemburgo foi criticada por várias gerações de economistas. Mesmo os que

simpatizam com suas ideias reconhecem que há erros na solução encontrada por ela

para os problemas da teoria da acumulação de Marx.1 Assim que veio a público, o

livro foi alvo de uma saraivada de críticas de ordem técnica, teórica e pessoal de

irritados marxólogos e não-marxólogos,2 que não podiam admitir que uma marxista

ousasse criticar Marx. Porém, deixando de lado questões econômicas técnicas em que

não sou especialista, é importante ressaltar que o valor e a atualidade da obra, como

reconhecem os comentadores,3 está na sua parte histórica (7 capítulos em 32),

dedicada à análise do imperialismo. Na verdade Rosa não tinha intenção de opor-se a

Marx, mas simplesmente de completar sua teoria, que não considerava um dogma

inquestionável.

Vejamos brevemente do que trata o livro. No Prefácio à AKK, Rosa

Luxemburgo diz que ao tentar concluir a Introdução à economia política – “uma

popularização da doutrina econômica de Marx” (redigida na prisão em 1915-16 a

partir das notas dos cursos dados entre 1908 e 1914 na escola de quadros do SPD) –,

enfrentou “uma dificuldade inesperada. Não conseguia expor com clareza suficiente o

processo global da produção capitalista em suas relações concretas, nem suas

limitações históricas objetivas.”

1 Cf., entre outros, Michael Krätke, Rosa Luxemburg und die Analyse des gegenwärtigen Kapitalismus.

In: Narihiko Ito, Annelies Laschitza, Ottokar Luban (org.), Rosa Luxemburg. Ökonomische und

historisch-politische Aspekte ihres Werkes, Berlim, Dietz Verlag, 2010. 2 Cf. J. P. Nettl, La vie et l’oeuvre de Rosa Luxemburg, Paris, Maspero, 1972, p.516. Para um resumo

das críticas ver p.826-28. Segundo Lênin, “A descrição dos sofrimentos infligidos aos negros na África

do Sul é tocante, de cores gritantes e sem sentido. Sobretudo é ‘não-marxista’.” Mario Pedrosa

considera “falso e injusto” esse juízo sobre o livro. Cf. A crise mundial do imperialismo e Rosa

Luxemburgo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1979, p.69. 3 Cf., entre outros, Paul Singer, A teoria da acumulação do capital em Rosa Luxemburg. In: Isabel

Loureiro e Tullo Vigevani (org.), Rosa Luxemburg, a recusa da alienação, São Paulo, Editora UNESP,

1991; Paul Singer, Apresentação a A acumulação do capital, São Paulo, Abril Cultural, 1984.

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Essa dificuldade provinha de um problema teórico que no seu entender havia

sido mal resolvido por Marx no volume II de O capital. Rosa acreditava que se

tivesse sucesso na solução do problema, seu trabalho, como diz no final do Prefácio,

“além de apresentar um interesse puramente teórico, também adquire importância

para a luta prática na qual nos empenhamos contra o imperialismo.”

Na AKK Rosa critica os esquemas matemáticos no volume II de O capital,

que demonstram matematicamente a possibilidade de uma acumulação ilimitada do

capital. Segundo ela, o ponto fraco das considerações de Marx consistiria na análise

do processo de acumulação em um “sistema fechado”, composto apenas de

capitalistas e proletários, embora reconheça que essa hipótese teórica visava apenas a

simplificar o estudo dos problemas. E não deixa de assinalar que em várias passagens

d’ O capital Marx observa que a produção capitalista não é a única existente na face

da Terra.

O que faz Rosa é desenvolver essa indicação, mostrando que, mesmo nos

países em que predomina a grande indústria – caso da Europa – continuam existindo

empresas artesanais, camponesas, havendo inclusive países em que estas prevalecem

(Rússia, Bálcãs, Espanha, Escandinávia); o mesmo se passa nos outros continentes

onde a coexistência entre a produção capitalista (minoritária) e as estruturas

econômicas que abarcam desde o comunismo primitivo até formas camponesas e

artesanais de produção é uma evidência empírica. Em resumo, ela mostra com grande

riqueza de detalhes, que coexistem várias formas de produção tanto na Europa quanto

nos países coloniais,4 que desde o início da era capitalista ocorrem trocas intensas

entre essas formas de produção não-capitalistas e o capital europeu, e que essas trocas

são sempre desiguais e violentas:

“A troca do capital com seu meio não-capitalista se choca em primeiro lugar com as

dificuldades da economia natural, com a segurança e a estabilidade das relações sociais, com

as necessidades limitadas da economia camponesa patriarcal assim como do artesanato. Aqui

o capital recorre aos ‘meios heróicos’, ao machado (zur Axt) da violência política. Na Europa,

seu primeiro gesto foi a superação revolucionária da economia natural feudal. Nos países

ultramarinos o capital marcou sua entrada na cena mundial submetendo e destruindo as

comunas tradicionais; desde então esses atos acompanham constantemente a acumulação. É

4 Segundo Paul Singer, a ideia da convivência de múltiplos modos de produção representa uma

contribuição teórica “absolutamente decisiva” para analisar a economia solidária. Cf. P. Singer, Uma

discípula de Marx que ousava criticar Marx, in I. Loureiro (Org.), Socialismo ou barbárie – Rosa

Luxemburgo no Brasil, São Paulo, Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2008.

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pelas ruínas das relações primitivas, da economia natural, camponesa e patriarcal desses

países que o capital europeu abre caminho à troca e à produção de mercadorias capitalistas e

acelera ao mesmo tempo sua própria acumulação, pilhando diretamente os tesouros e as

riquezas naturais armazenadas pelos povos subjugados.”5

Acrescente-se a isso, a partir do início do século XIX, a exportação do capital

acumulado e a exportação de investimentos para fora da Europa – ou seja, a troca

constante com camadas e países não-capitalistas, acumulando às suas custas e ao

mesmo tempo destruindo-os para pôr-se em seu lugar –, além dos gastos militares por

parte do Estado, e teremos um quadro historicamente real do desenvolvimento do

capitalismo. Porém, à medida que aumenta o número de países capitalistas em busca

de territórios para acumulação e à medida que estes diminuem, “tanto mais as

incursões do capital no cenário mundial se transformam numa cadeia de catástrofes

econômicas e políticas: crises mundiais, guerras, revoluções.”6

A grande originalidade de Rosa Luxemburgo, que não foi levada em conta

pelo marxismo ortodoxo no século XX, consiste em ter percebido que “a pilhagem

que ocorre nos países coloniais por parte do capital europeu”, que Marx restringia ao

período da “acumulação primitiva”, é uma característica dele “mesmo em sua plena

maturidade”.7 Mais adiante reforça essa ideia:

“(...) já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue

inclusive em nossos dias. (...) O capital não conhece outra solução senão a da violência, um

método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de

sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em

qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência; a resistência à agressão tem o caráter de uma

luta de vida ou morte levada até o total esgotamento ou aniquilação.”8

Assim, nas leis da acumulação do capital, Rosa Luxemburgo acredita ter

encontrado as raízes econômicas do imperialismo o qual, no seu entender, “não é

senão um método específico da acumulação.”9 Na boa formulação de Paul Singer para

quem a posição de RL é diferente da de Lênin: “para ela o imperialismo não é um

estágio do capitalismo, é uma característica central do próprio capitalismo desde

sempre. Desde o início, o capitalismo precisou capturar mercados externos para ter a

5 Rosa Luxemburg, Die Akkumulation des Kapitals oder Was die Epigonen aus der Marxschen Theorie

gemacht Haben – eine Antikritik, Gesammelte Werke 5, p.429-30. 6 Idem, p.430. 7 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, São Paulo, Nova Cultural, 1988, vol. II, p.28. 8 Idem, p.32, 33. 9 Rosa Luxemburg, Die Akkumulation des Kapitals oder Was die Epigonen aus der Marxschen

Theorie gemacht Haben – eine Antikritik, p.431.

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razão de ser da sua própria expansão. O capitalismo se expande via Estado, via

conquista, transforma economias naturais que não são mercantis em economias de

mercado. (...) Esse tipo de interpretação, a meu ver, é extremamente fecundo e

interessante para se aplicar a um país como o Brasil.”10

A posição de Rosa Luxemburgo – segundo Mario Pedrosa, “o espírito menos

europeu-centrista de todos”11

– a favor dos países periféricos, foi um dos fatores que

atraiu a simpatia dos socialistas latino-americanos para a sua obra. Enquanto para

Marx os lucros procedentes das colônias eram só um elemento entre outros similares

que explicavam a acumulação primitiva, para Rosa as regiões não-capitalistas

ocupavam uma função necessária para o desenvolvimento das metrópoles.12

Em

outras palavras, ela evidenciava a unidade dialética entre a acumulação do capital na

metrópole e o subdesenvolvimento na periferia.13

2. Acumulação primitiva no século XXI?

A partir desse pressuposto geral, tentemos construir um diálogo entre dois

marxistas distantes no tempo e no espaço, Mario Pedrosa e David Harvey, que,

lançando mão do livro para explicar a crise do capitalismo contemporâneo, nos

ajudam a compreender o que se passa hoje na América Latina em geral, e no Brasil

em particular.

Em A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo (1979), Mario

Pedrosa se inspira na obra de Rosa para explicar a “crise capitalista de âmbito, enfim,

mundial” (p.17) na década de 1970. Na Introdução, cita o parágrafo final do livro, que

dá o norte de toda a sua análise:

“O capitalismo é a primeira forma econômica capaz de propagar-se vigorosamente:

é uma forma que tende a estender-se por todo o globo terrestre e a eliminar todas as demais

10 Paul Singer, A teoria da acumulação do capital em Rosa Luxemburg. In: Isabel Loureiro e Tullo

Vigevani (org.), Rosa Luxemburg, a recusa da alienação, op. cit., p.85. Também Mario Pedrosa, para

quem a abordagem de RL tinha uma “profunda originalidade”, entende que para ela o imperialismo era

“o primeiro ato de nascimento do capitalismo” (p.69). 11 Op. cit, p.17. 12 Cf. Fritz Weber, Implicaciones políticas de la teoria del derrumbe de Rosa Luxemburg. In: J. Trías,

M. Monereo (org.), Rosa Luxemburg – actualidad y clasicismo, El Viejo Topo, s/d, p.54. 13 Segundo Armando Cordova, a teoria da dependência chegou 60 anos depois às conclusões da AKK.

“Apesar dos muitos erros e equívocos que seus críticos apontaram, ela [RL] elaborou uma teoria do

sistema capitalista global como totalidade, em que os países hoje designados como subdesenvolvidos

têm um lugar importante e encontram as razões para explicar sua condição.” (Armando Cordova, Rosa

Luxemburg und die dritte Welt. In: Claudio Pozzoli (org.), Rosa Luxemburg oder die Bestimmung des

Sozialismus, Frankfurt, Suhrkamp, 1974, p.86) O conceito de sistema-mundo (1979) de I. Wallerstein

também pode ser incluído neste esquema.

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formas econômicas, não tolerando nenhuma outra a seu lado. Mas é também a primeira que

não pode existir só, sem outras formas econômicas de que alimentar-se; que, tendendo a

impor-se como forma universal, sucumbe por sua própria incapacidade intrínseca de existir

como forma de produção universal. O capitalismo é, em si, uma contradição histórica viva;

seu movimento de acumulação expressa a contínua resolução e, simultaneamente, a

potencialização dessa contradição.”14

Mario Pedrosa extrai daqui duas ideias que considera fundamentais para

entender a crise dos anos 1970: 1. o capital se expande para o mundo inteiro e elimina

todas as outras formas econômicas não-capitalistas; 2. o capital não pode existir

sozinho, para acumular precisa se alimentar das outras formas econômicas. Isso posto,

pergunta o que ainda resta desse mundo não-capitalista e responde:

“Os confins tropicais da África, as florestas da Amazônia (as maiores reservas de

oxigênio que ainda restam à humanidade cada dia mais abafada), as sierras da América

Latina e seus pampas, os extremos longínquos da terra, a Ásia de povoamentos confusos,

perdidos no tempo e no espaço, os mares que envolvem os continentes, onde repousam as

últimas esperanças das potências em processo de perda de suas velhas riquezas coloniais (...)

as potências imperiais (...) procuram detectar matreiramente nos mares, nos desertos, nos

subsolos, para um futuro monopólio, tudo o que poderia fazer a riqueza desses povos

condenados à desgraça. E tem-se assim imediatamente diante dos olhos as tarefas que restam

por cumprir para as últimas dessas formações capitalistas, as multinacionais, cujas potentes

correias de transmissão envolvem o mundo em sua engrenagem.” (p.19)

Na década de 1970 Mario Pedrosa pensava num futuro dominado pelas

transnacionais. Hoje, o antigo futuro é o presente “desses povos condenados à

desgraça”. Além disso, Mario Pedrosa vê como essencial outra ideia já mencionada: a

pilhagem dos países coloniais pelo capital europeu é necessária à reprodução

ampliada do capital, não somente na fase da chamada acumulação primitiva, mas até

o presente. E comenta:

“Rosa Luxemburgo mostrou com exemplos ainda de seu tempo que a penetração

capitalista fora das regiões temperadas empregava os mesmos métodos de violência e de

brutalidade da época da ‘acumulação primitiva’. Se há uma diferença de método no alto

desenvolvimento do capitalismo, é que o uso da violência simples não pode ser considerado

tão oportuno quanto o dinheiro e a corrupção nos momentos em que é preciso vencer a

14 Aqui citado de acordo com Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, São Paulo, Nova Cultural,

1988, vol. II, p.98.

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concorrência ‘pacificamente’, segundo a filosofia muito civilizada das multinacionais, tais

como a Lockheed e a ITT.”15(p.62)

Esse mecanismo de “acumulação primitiva”, que associa antigas formas de

expropriação (privatização da terra e expulsão da população camponesa,

mercantilização da força de trabalho e supressão de formas de produção e consumo

autóctones, apropriação de recursos naturais, etc.) com novos mecanismos de

mercantilização em todos os domínios é o que David Harvey chama de “acumulação

por espoliação”.16

Para dar esse passo que atualiza a concepção de Rosa, Harvey cita a passagem

em que ela diz que a acumulação do capital apresenta dois aspectos distintos: um,

formalmente pacífico, que se realiza nos “locais produtores de mais-valia”; o outro,

que se realiza

“entre o capital e as formas de produção não-capitalistas. Seu palco é o cenário

mundial. Aqui reinam como métodos a política colonial, o sistema de empréstimos

internacional, a política das esferas de interesse, as guerras. Aqui a violência, a fraude, a

repressão, o saque se apresentam de maneira totalmente aberta e sem disfarces dificultando,

sob esse emaranhado de atos de violência política e demonstrações de força, a descoberta das

leis férreas do processo econômico.”17

E Rosa conclui (trecho que Harvey não cita) dizendo que economia e política

estão intrinsecamente ligadas: “Na realidade, a violência política é também aqui

somente o veículo do processo econômico; ambos os aspectos da acumulação do

capital estão organicamente ligados pelas condições de reprodução do capital, apenas

juntos fornecem a carreira histórica do capital.” (GW5, p. 398).

Deixando de lado a polêmica subconsumo X sobreacumulação,18

que não

interessa para o meu argumento, vale a pena reter da retomada da AKK por Harvey a

ideia de que o capitalismo precisa perpetuamente de “algo fora de si mesmo” para se

15 Lokheed Corporation, 1932-1995, companhia de aviação; International Telephone & Telegraph,

fundada em 1920, teve envolvimento com o nazismo e com Pinochet. 16 David Harvey, O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004. 17 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, op. cit., p.86-7. Tradução totalmente modificada

segundo Gesammelte Werke 5, p.397. 18 Segundo Harvey a crise provém de problemas de sobreacumulação e não de subconsumo: “O

crescimento a 3% para sempre está funcionando com sérias restrições. Existem restrições ambientais,

de mercado, de rentabilidade e espaciais (apenas zonas importantes da África, embora completamente

devastadas pela exploração de seus recursos naturais, bem como remotas regiões em geral no interior

da Ásia e da América Latina, ainda não foram totalmente colonizadas pela acumulação de capital).” (O

enigma do capital, p.33. Ver tb. p.92-98). “Obter crescimento composto para sempre não é possível, e

os problemas que assolaram o mundo nos últimos trinta anos sinalizam que estamos próximos do limite

para o contínuo acúmulo de capital, que não pode ser transcendido exceto criando-se ficções não

duradouras.” (p.184-5).

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estabilizar. O capitalismo tanto pode usar algo exterior preexistente (formações

sociais não-capitalistas ou algum setor ainda não mercantilizado, como educação,

etc.), como pode produzir ativamente esse exterior, p. ex., criando o desemprego por

meio das inovações tecnológicas ou fabricando crises e desvalorizações.

Lembrando o que foi dito anteriormente da acumulação primitiva, Harvey

também constata que as práticas predatórias e violentas que ocorreram na Europa

entre os séculos XV e XVIII (remoção dos camponeses de suas terras,

mercantilização da força de trabalho, trabalho forçado, comércio de escravos, fim dos

commons, extração do ouro e da prata e aniquilamento dos povos indígenas na

América, apropriação violenta de ativos, inclusive de recursos naturais, sistema de

crédito), descritas por Marx, não são restritas a uma etapa original do capitalismo, que

inclusive não são exteriores ao capitalismo como sistema fechado, como supunha RL,

mas fazem parte desse processo em andamento.19

“Todas as características da

acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na

geografia histórica do capitalismo até os nossos dias.” (p.121) Os exemplos são

irrefutáveis: expulsão de camponeses e formação de um proletariado sem terra no

México e na Índia (podemos acrescentar o Brasil) desde os anos 1970; privatização de

recursos naturais, como água; privatização de indústrias nacionais; substituição da

agropecuária familiar pelo agronegócio; persistência da escravidão (sobretudo no

comércio sexual); o sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram “grandes

trampolins de predação, fraude e roubo.” (p.122)

Além disso, foram criados “mecanismos inteiramente novos de acumulação

por espoliação” (p.123), novas formas de privatização dos bens comuns da

humanidade: patentes de material genético e sementes; biopirataria em benefício de

empresas farmacêuticas; destruição e mercantilização da natureza; mercantilização da

cultura, educação, privatização da saúde e aposentadorias. Poderíamos acrescentar,

mais recentemente, a “economia verde” com seus mercados de carbono, entre outras

coisas.

Segundo Harvey, esses múltiplos processos de privatização foram uma forma

de criar campos a serem apropriados pelo capital sobreacumulado desde 1973. “O

colapso da União Soviética e depois a abertura da China envolveram uma imensa

liberação de ativos até então não disponíveis na corrente principal da acumulação do

19 Ver também O enigma do capital, p.47ss, 55, 93,

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capital. O que teria acontecido com o capital sobreacumulado nos últimos 30 anos

sem a abertura de novos terrenos de acumulação?” (p.124)

A perspectiva de Rosa Luxemburgo adquire assim nova atualidade na época

da globalização. A expansão imperialista, que requeria a apropriação de regiões

atrasadas do globo para serem transformadas em zonas capitalistas, foi um processo

que se completou na segunda metade do século XX. Hoje as novas fronteiras de

expansão capitalista não são mais territoriais (embora na América Latina ainda sejam)

e sim econômicas, com a mercantilização de tudo o que ficou fora da esfera da

valorização do valor. É contra esse processo de expropriação que os movimentos

sociais na América Latina, entre eles o MST, criaram, com enormes dificuldades, suas

formas de resistência.

Harvey assinala que diferentemente do desenvolvimentismo socialista

tradicional, que apoiava a modernização forçada, ainda que à custa de terríveis

sacrifícios (p. ex., coletivização forçada da agricultura na URSS, na China e no Leste

europeu), os movimentos de resistência à acumulação por espoliação valorizam

formas sociais tradicionais e muitos deles, como os movimentos indígenas na

América andina, não veem o desenvolvimento capitalista como progressista. Essas

resistências múltiplas, permeadas de contradições internas, traduzem-se em lutas

específicas contra alvos específicos: contra a construção de mega-represas na Índia e

na América Latina; contra OGMs; contra as madeireiras pela preservação das reservas

florestais para os povos indígenas; contra o agronegócio e o uso de agrotóxicos etc.

Harvey considera que a luta anti-capitalista só poderá ser bem sucedida se unir

as resistências progressistas locais e particulares contra a acumulação por espoliação

(equivocadamente consideradas irrelevantes pelos movimentos comunistas e

socialistas tradicionais)20

com as lutas contra a reprodução ampliada, típicas da

esquerda tradicional. No entanto, há que “reconhecer na acumulação por espoliação a

contradição primária a ser enfrentada”.21

20 Ver também O enigma do capital, p.114-16. 21 O novo imperialismo, p. 144. A luta contra as represas no vale de Narmada na Índia, descrita por

Arundati Roy, seria um bom exemplo (cf. O novo imperialismo, p.145).

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3. Resistências: o caso do MST

Ouvir as falas de líderes camponeses do MST no Brasil ou dos líderes do

movimento contra a tomada de terras por corporações na Índia é um

privilégio educacional. Nesse caso, a tarefa dos excluídos e descontentes

educados é ampliar a voz subalterna, para que se possa prestar atenção à

situação de exploração e repressão, assim como às respostas que podem

ser pensadas para um programa anticapitalista.

David Harvey, O enigma do capital, p.207

Para entendermos por que surge no Brasil, quase no final do século XX, um

movimento de trabalhadores rurais sem terra, devemos antes de mais nada ter em

mente que embora suas origens imediatas se encontrem na oposição ao modelo de

reforma agrária imposto pelo regime militar, suas causas remotas estão ligadas ao

modo de distribuição da terra ao longo da história, inseparável do processo de

desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no Brasil desde a sociedade

mercantil escravista até hoje.

Destaquemos alguns momentos cruciais. As sesmarias e a Lei de Terras de

1850 instauraram o regime de concentração fundiária que, aliado à concentração do

poder político, caracteriza o país desde a colônia. As oligarquias rurais instaladas em

todas as esferas do poder sempre criaram medidas legais para tornar o latifúndio

intocável. A função do latifúndio, explorador de mão de obra escrava, consistia em

fornecer matérias-primas para o mercado europeu, o que levou a caracterizar a

colonização nos trópicos como uma “vasta empresa comercial (...) destinada a

explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio

europeu.”22

Este traço estrutural na formação brasileira enraizou-se de modo profundo

na vida e no modo de ser do país com consequências visíveis até hoje.

Quando em 1850, pela pressão das grandes potências da época, é aprovada a

lei proibindo o tráfico de escravos, promulga-se ao mesmo tempo a primeira Lei de

Terras, que legaliza a grande propriedade e vende por preços relativamente altos as

terras do Estado. Isso impedia que os ex-escravos e os imigrantes europeus e asiáticos

pobres, importados para trabalhar nas fazendas, obtivessem a propriedade da terra.

Criava-se assim um artifício, num país onde existiam (e existem) enormes extensões

de terras sub-utilizadas, para dificultar o acesso do pequeno produtor à propriedade da

22 Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, São Paulo 1945/1959. In: M. Löwy (org.), O

marxismo na América Latina, São Paulo, 1999, p.236,37.

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terra e manter os privilégios do latifundiário, que tinha garantidas a propriedade e a

mão de obra barata.23

No decorrer do século XX, as elites brasileiras conseguiram promover a

passagem da economia agrário-exportadora à economia industrial-urbana sem fazer

reformas estruturais, num processo em que o crescimento econômico não levou à

democratização das relações sociais nem à universalização de direitos políticos.

Operou-se uma simbiose entre as oligarquias rurais e a burguesia urbana nascente que

levou à contaminação desta com os métodos e a mentalidade conservadora e

truculenta das primeiras. “A violência praticada por escravocratas, por senhores de

engenho e pela oligarquia cafeeira repete-se hoje, com métodos mais sofisticados e

sutis, por meio do agronegócio e nas grandes fazendas de propriedade de grupos

industriais e financeiros.”24

Breve história do MST

Para muitos autores o MST se inscreve na longa trajetória das lutas

camponesas no Brasil. Entre as mais conhecidas estão o Quilombo de Palmares

(1580-1694), Canudos (1893-1897), a guerra do Contestado (fins de 1913 a dezembro

de 1914) e as Ligas Camponesas (1945-1964). No entanto, apesar dos vários

movimentos de resistência ao longo dos séculos, somente a partir da segunda metade

do século XX a reforma agrária entrou na agenda política do país, pela pressão das

lutas e dos movimentos camponeses na década de 1950: a revolta de Trombas e

Formoso em Goiás, os movimentos de posseiros em Porecatu e no Sudoeste do

Paraná, as Ligas Camponesas no Nordeste, o surgimento de sindicatos rurais liderados

pelo PCB. No início dos anos 1960, a luta adquiriu dimensão nacional e se unificou

em torno do lema “Reforma agrária na lei ou na marra”.

Com o golpe militar de 1964 foi criada a primeira lei de reforma agrária do

país, o Estatuto da Terra, que visava a alterar a estrutura fundiária no país, mas que

jamais foi implantado. Nessa época o Brasil passou por um rápido processo de

modernização econômica em todos os setores. No setor agrícola, os militares

implantaram um modelo econômico de desenvolvimento agropecuário para acelerar a

23 José de Souza Martins, A questão agrária e o papel do MST. In: J. P. Stédile (org.), A reforma

agrária e a luta do MST, Petrópolis, 1997, p.16; Manuel Correia de Andrade, O movimento dos Sem-

Terra e a sua significação, Mercator – Revista de Geografia da UFC, nº 2, 2002, p.14. 24 Neuri Rossetto, Outro mundo se faz com terra para todas as pessoas, Democracia viva, Rio de

Janeiro, jan./fev. 2005, p.5.

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modernização da agricultura baseada na grande propriedade, principalmente pela

criação de um sistema de créditos e subsídios, gerando profundas transformações no

campo: aumento das áreas de monocultura, intensificação da mecanização na

agricultura, aumento do número de trabalhadores assalariados.

A modernização técnica do campo promoveu ao mesmo tempo o crescimento

econômico da agricultura e uma concentração fundiária ainda maior, tendo como

resultado a expropriação e expulsão de milhares de pequenos agricultores familiares

de suas terras. Em apenas duas décadas, quase 30 milhões de pessoas deixaram o

meio rural.25

Parte desses agricultores deslocou-se para as periferias das grandes

cidades reforçando o contingente de pobres. Outra parte, que não foi absorvida pelas

fazendas tecnologicamente modernizadas, transformou-se em sem-terra.

Nessa situação altamente explosiva, o Estatuto da Terra foi utilizado para

tentar solucionar isoladamente os conflitos fundiários e, assim, desmobilizar os

trabalhadores rurais. Contra essa reforma agrária de fachada, voltada para os

interesses do latifúndio, começaram a ser organizadas, principalmente sob influência

da Igreja Católica que na década de 1970 se tornou a principal força de oposição à

ditadura,26

as primeiras ocupações de terras nos estados do sul. Nesse contexto

surgiu, em 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja

católica, que atuava nas paróquias das periferias urbanas e das comunidades rurais. A

CPT funcionou como articuladora dos movimentos dos trabalhadores rurais, junto

com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): criadas no começo dos anos 1960, se

espalharam por todo o país em meados dos anos 1970, no campo e na cidade.

Inspiradas na Teologia da Libertação, eram espaços de organização popular.

No contexto dessas mobilizações, em janeiro de 1984 é fundado o MST no

Primeiro Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Cascavel, PR). Três

vertentes contribuíram para a sua constituição: os integrantes da CPT, o nascente

sindicalismo rural de oposição e os militantes de esquerda que viam na luta pela

reforma agrária uma forma de combater a ditadura militar e de redemocratizar o

país.27

O MST, que do ponto de vista institucional nascia como um movimento

autônomo em relação a partidos e sindicatos, enfatizou neste primeiro encontro a

25 B. M. Fernandes, A formação do MST no Brasil, Petrópolis, 2000, p.49. 26 M. Löwy, The Socio-Religious Origins of Brazil’s Landless Rural Workers Movement, Monthly

Review, vol. 53, junho de 2001. 27 J. P. Stédile, A luta pela reforma agrária e o MST, in: J. P. Stédile (org.), A reforma agrária e a luta

do MST, Petrópolis 1997, p.102.

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necessidade da ocupação como método legítimo para a conquista de terras, adotando

o lema “Terra para quem nela trabalha”.

Não é possível entrar aqui nos detalhes da história do movimento sobre o qual

já existe extensa bibliografia. Basta assinalar que na Constituição de 1988 os

movimentos sociais obtiveram uma conquista importante: os artigos 184 e 186, que

fazem referência à função social da terra. Quando esta não for cumprida a terra será

desapropriada para fins de reforma agrária. Esses artigos dão ao MST o suporte

jurídico legitimador de suas reivindicações. Porém, em termos concretos, a

desapropriação das áreas pelo INCRA é feita de acordo com dados de produtividade

de 1975, totalmente defasados, o que dificulta classificar as fazendas como

improdutivas, embora a lei agrária determine que os índices sejam atualizados a cada

cinco anos (HTTP://www.mst.org.br/node/6752).

Desde sua fundação até hoje, o MST tem sido tratado de maneiras muito

diferentes pelos vários governos: sob Collor e FHC foi perseguido policial e

juridicamente, sob Lula e Dilma deixou de ser criminalizado no plano federal (tarefa

que ficou para as polícias estaduais), o que, em princípio, deveria contribuir para

fortalecer o MST. Porém, não é o que ocorre, como veremos adiante.

O que chama a atenção é que independentemente dos governos, nas duas

últimas décadas, num processo que se acentua a partir dos anos 2000, a economia

brasileira vem se colocando no cenário mundial principalmente como uma excelente

praça de valorização financeira (graças a taxas reais de juros entre as mais elevadas

do mundo), retroagindo, na esfera produtiva, ao papel que tinha quando colônia, qual

seja, o de exportadora de produtos primários e de baixo valor agregado, com o

agronegócio à frente.28

Donde a análise de um dos dirigentes do MST: no governo

Lula “An alliance has been sealed between the major capitalist farmers and ranchers

and the multinationals that control the international commodity trade, the seed trade,

pesticide production, and agri-industry.”29

Essa análise é confirmada pelos dados,30

apesar da ambivalência da política

agrária do governo Lula que em 2003 criou, junto com o Ministério da Agricultura,

28 Cf. Leda Paulani, Brasil Delivery, São Paulo, Boitempo, 2008; A inserção da economia brasileira no

cenário mundial: uma reflexão sobre a situação atual à luz da história, 2012, mimeo. De 2000 a 2007

são estes os dados do IPEA: R$ 1,268 trilhão para os portadores de títulos governamentais; 310,9

bilhões para a saúde; 149,9 bilhões para a educação (Janio de Freitas, Folha de S. Paulo, 13.11.2008). 29 J. P. Stédile, The Neoliberal Agrarian Model in Brazil, Monthly Review, fev. 2007, p.50. 30 No Plano Safra 2009/10 o agronegócio obteve R$ 93 bilhões, enquanto a agricultura camponesa

ficou com R$ 15 bilhões. Além disso, o agronegócio recebe crédito a uma taxa de juros negativa, suas

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voltado para o agronegócio, o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Este é

interlocutor da agricultura familiar e tem como objetivo fornecer microcrédito e

financiar atividades de formação e infraestrutura nos assentamentos. Contudo, durante

o governo Lula, o agronegócio obteve sete vezes mais recursos que a agricultura

familiar, responsável por 87% dos empregos no campo, e por 70% dos alimentos

consumidos pela população.

Desafios

O mais bem sucedido e duradouro movimento social da América Latina

sempre enfrentou dificuldades de todos os tipos, de assassinatos a campanhas

difamatórias por parte da mídia, que procura desmoralizá-lo sempre que pode.

Informações desencontradas, simplificações grosseiras e preconceituosas impedem

que o público em geral forme uma imagem coerente do MST. Mas o estudioso do

tema também enfrenta grandes dificuldades, embora de origem diferente. Por um

lado, dados frequentemente pouco confiáveis,31

interpretações unilaterais/oficiais de

exaltação, ou de depreciação, além do caráter dinâmico e flexível do MST, dificultam

a análise objetiva e abrangente de um movimento que tem sido campo fértil para

pesquisas acadêmicas em quase todas as áreas das ciências humanas.

Os problemas que o pesquisador enfrenta são de várias naturezas, começando

pelo debate atual sobre a reforma agrária no Brasil, dividido em dois campos opostos:

os oponentes/céticos, e os favoráveis.

Os primeiros argumentam que a reforma agrária se tornou irrelevante para o

desenvolvimento rural, dada a modernização tecnológica da agricultura nas fazendas

do agronegócio e a diminuição do volume de terras não produtivas (que podem ser

redistribuídas), sobretudo no Sul e Sudeste. Isso decorreria do fato de os antigos

latifúndios se terem convertido em empresas de agronegócio, responsáveis por 2/3 da

produção agrícola do país e uma das principais fontes de rendimentos em moeda

dívidas são renovadas e as grandes dívidas anistiadas. Cf. Maria Luísa Mendonça, Monopólio da terra e

produção de agrocombustíveis.In: Direitos Humanos no Brasil 2010 – Relatório da Rede Social de

Justiça e Direitos Humanos, São Paulo, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2010, p.62. 31 Um exemplo de como os dados são manipulados está no editorial da Folha de S. Paulo, Marcha a ré

do MST, de 07.08.2011, que fala em 3.500 famílias acampadas enquanto o INCRA se refere a 170 mil

famílias! Uma feliz exceção a esse fla-flu é o livro organizado por Miguel Carter, Combatendo a

desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, Centre for

Brazilian Studies, Universidade de Oxford, NEAD, MDA, 2010, 563 p. Para o que segue, ver p. 67-71.

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estrangeira. Por isso o governo deve impedir qualquer ameaça à propriedade rural,

independentemente de seu tamanho, e restringir as expropriações de terras.32

Outro argumento é que o Brasil se tornou majoritariamente urbano, que

portanto já passou a época da reforma agrária e que os camponeses são uma classe

social em extinção. Em função disso o governo deveria gastar os limitados recursos

públicos em programas de bem-estar social e na criação de empregos urbanos para os

migrantes do campo. Ademais, o aumento do preço da terra nos anos 2000 teria

inviabilizado a reforma agrária.33

Outro empecilho, segundo os críticos, é que o pequeno agricultor precisa ter

conhecimento especializado, acesso a tecnologias modernas e ser bom administrador

para poder competir num mercado dominado pelo agronegócio. Além disso, dizem

que os assentamentos são “favelas rurais” que redundam em “fracasso econômico”34

e

que a demanda de terras no Brasil é muito menor do que fazem crer as estatísticas

oficiais de concentração fundiária.35

Finalmente, os críticos voltam-se contra o MST caracterizado por eles como

uma “organização violenta, autoritária e manipuladora, movida por intenções

revolucionárias ocultas”. No seu entender, os defensores da reforma agrária têm

motivação “ideológica”, apoiada em ideias “obsoletas” que ameaçam as instituições

democráticas do país. Um exemplo é o editorial da Folha de S. Paulo, de 07.08.2011:

“Em marcha inexorável, o movimento encolhe. Reverte ao núcleo do que nunca

deixou de ser: um grupo de cristãos de esquerda adepto de ações criminosas, como invasão e

destruição de propriedades, e hábil na mobilização de excluídos para exercer pressão sobre o

Estado e extorquir-lhe os recursos – desapropriações e verbas – que mantêm o movimento

artificialmente vivo.”

32 Ver dados da reforma agrária em Bernardo M. Fernandes, Da “clonagem” à “autofagia”: o dilema da

reforma agrária no Brasil, 03/03/2006. In: www.mst.org.br Em 2007 foram assentadas 140 mil

famílias, em 2011, 22 mil e para 2012 o INCRA fala em 35 mil. Cf. Celso Lacerda, Meta de

assentamentos será menor. Entrevista em Carta Capital, 11.3.2012. 33 Dilma Rousseff decidiu não pagar mais de 100 mil reais para assentar cada família, o que na prática

inviabiliza a reforma agrária no centro-sul do país. Cf. Gilmar Mauro, Entrevista ao Correio da

Cidadania, 23.03.2012. 34 Um contra-argumento encontra-se em Luiz Maklouf Carvalho, O modelo Vitória, sobre a

Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (COPAVI), a 100 Km de Maringá, PR, considerado um

assentamento modelo pelo MST (Revista Piauí, junho de 2008). Ver também Maíra Kubik Mano,

Desafios dos assentamentos, Le Monde Diplomatique Brasil, junho de 2008. 35 Os dados do IBGE desmentem essa suposição. Segundo o coeficiente de Gini, a concentração de

0,840 em 1950 subiu para 0,854 em 2006. Hoje, 1% dos grandes proprietários possuem 40% das terras,

sendo que dos 217,4 milhões de ha registrados pelo INCRA como grandes propriedades, 136,8 milhões

são caracterizados como improdutivos. E isso de acordo com os índices defasados do Censo

Agropecuário de 1975. Entre os maiores latifundiários do país estão o Bradesco e o Banco do Brasil.

Cf. Lúcia Rodrigues, Governo abandona de vez a reforma agrária, Caros Amigos, nov. 2011, p.13.

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Por sua vez, os defensores e simpatizantes da reforma agrária têm uma

preocupação com a profunda injustiça social do país, vendo na reforma agrária uma

política para diminuir a pobreza, promover a inclusão social e reduzir a desigualdade

social. “Trata-se de uma ‘dívida histórica’ para com a população pobre do campo,

incluindo as comunidades quilombolas.” (p.68-9) Argumentam que apesar da

urbanização, grande parte da população brasileira poderia se beneficiar com uma

reforma fundiária (há muita terra para redistribuir), o que mantém a questão agrária na

pauta do dia. Questionam o sucesso do agronegócio, beneficiado por “generosos

subsídios públicos” e altamente inflado pela mídia. Senão como explicar que os

índices de produtividade, baseados no censo agropecuário de 1975, não sejam

revistos?

A reforma agrária, se fosse apoiada pelo governo, poderia aumentar a

produtividade rural, sobretudo para o consumo interno. Aliás, como já foi dito, a

maior parte (70%) dos alimentos consumidos no Brasil é produzida pela agricultura

familiar, que gera 87% dos empregos no campo. A criação de mais empregos rurais

reduziria o êxodo dos pobres para as favelas urbanas, diminuindo os índices de

criminalidade e a violência, além de proporcionar a revitalização dos pequenos

municípios rurais. Contra a caracterização dos assentamentos como “favelas rurais”,

afirmam que 91% das famílias assentadas dizem ter melhorado de vida, o que

mostraria o “grande potencial no sentido de fortalecer os direitos sociais dos pobres.”

(p.70)

E por fim, muitos dos defensores da reforma agrária enfatizam as “vantagens

ecológicas” ligadas à agricultura familiar. De um lado, o agronegócio baseado na

monocultura e na criação de gado em larga escala, uso intensivo de adubos químicos e

agrotóxicos que implica a destruição da natureza, de outro a agricultura familiar,

menos predadora, e com capacidade de produzir alimentos mais saudáveis. Um bom

resumo da contraposição entre esses dois modelos pode ser visto na seguinte

declaração de um dos dirigentes do MST:

“O Brasil vive hoje a disputa entre dois grandes projetos de agricultura. De um lado a

agricultura voltada para o mercado externo, produtora apenas de matéria-prima, sem nenhum

valor agregado. Produzida na forma de monocultivo, que destrói o equilíbrio do meio

ambiente, com alto uso de agrotóxicos. O Brasil se transformou no maior consumidor

mundial de venenos agrícolas. Que expulsa a mão de obra do campo, pois prefere usar

máquinas agrícolas de forma intensiva. E agride o meio ambiente, em todos os sentidos. Além

de usar sementes transgênicas, que não dão nenhuma segurança para a saúde pública, e

causam desequilíbrio ambiental, pois os transgênicos não podem conviver com os produtos

naturais, eles contaminam a todos. E esse modelo está aliado com as empresas transnacionais,

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que fornecem os venenos, as máquinas, os insumos, e controlam o mercado mundial e os

preços. Esse é o modelo do agronegócio.

E de outro lado temos o modelo da agricultura familiar e/ou camponesa. Nesse

modelo, priorizamos uma agricultura diversificada, que produz diversos produtos numa

mesma área. Em pequenas e médias escalas. Combinando com agroindústria cooperativa e

produzindo para o mercado interno. Esse tipo de agricultura usa muita mão de obra, fixa o

homem no campo, defende nossos hábitos alimentares e cultura. E desenvolve o país. Quando

um pequeno e médio agricultor ganha dinheiro ele aplica no seu município. Quando um

fazendeiro ganha dinheiro ele aplica em apartamento na grande cidade. Muito sintomático

que Goiânia, capital dos fazendeiros do centro-oeste, tenha sido indicada pela ONU como a

cidade de maior desigualdade de renda do Brasil. A agricultura familiar em pequena e média

escala é a única capaz de produzir alimentos sadios. Portanto, é uma questão de sobrevivência

da sociedade brasileira. A cidade é que tem que decidir, se vai continuar comendo porcarias,

que vão virar câncer, apenas para dar lucro aos fazendeiros e à Bunge, Cargill, Nestlé etc., ou

vai querer uma agricultura mais justa socialmente e equilibrada ambientalmente?”36

Como reconhece Miguel Carter, esse debate toca em assuntos que

“ultrapassam a questão fundiária e o desenvolvimento rural. Os assuntos em pauta

levantam problemas mais profundos da sociedade brasileira. Na alvorada do século

XXI, a reforma agrária continua sendo parte de uma conversação complexa e

contenciosa sobre o futuro do Brasil – suas promessas e necessidades, seus temores e

sonhos.”

O livro organizado por Carter, uma das pesquisas mais bem elaboradas e

atuais sobre o MST, mostra que o movimento, como associação de pessoas pobres,

adota uma prática racional de enfrentamento da questão agrária e contribui, por várias

razões, para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate as enormes

disparidades sociais; organiza e incorpora setores marginalizados da população;

desenvolve o exercício da cidadania entre os pobres nas três dimensões

contemporâneas dessa ideia: direitos civis, políticos e sociais; exerce o “ativismo

público”, isto é, utiliza a pressão popular para negociar com o governo; defende ideais

utópicos, em aberto, que fazem avançar a democracia.37

Na situação de extrema desigualdade que caracteriza o Brasil, em que a

paralisia patrimonialista e oligárquica contamina todas as forças, inclusive as

progressistas, só com pressão social um movimento de pessoas pobres pode chamar a

atenção da sociedade e ter acesso aos fundos públicos, já que não tem representação

no Congresso, nem influência na grande mídia. Segundo Carter, o que explica a força

e a originalidade do MST é sua “capacidade de sustentar e equilibrar a firmeza de

seus ideais com a busca de soluções práticas para atender seus problemas

36 Entrevista com J. P. Stédile, Página 64, Brasília, Fundação João Goulart, 05.05.2010. 37 Miguel Carter, op. cit., p.199-231.

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quotidianos.”38

Ou na formulação concisa de Michael Löwy, sua capacidade de juntar

“utopia e realismo”. 39

Independentemente do futuro e dos sérios problemas enfrentados nos

assentamentos (dificuldades na obtenção de crédito, localização em regiões

inacessíveis, longe dos mercados e serviços públicos), os dados mostram que a luta do

MST teve até agora um saldo positivo: graças aos assentamentos, entre 1985-2006,

mais de 5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza obtiveram moradia,

renda e alimentação; o êxodo rural diminuiu; o aumento do poder aquisitivo dos

assentados contribuiu para fortalecer o comércio local; a mobilização pela terra criou

novas demandas: educação, saúde, cultura; as novas lideranças criadas introduziram

mudanças políticas nos municípios; e, por fim, um argumento pragmático: a criação

de um posto de trabalho gerado pela reforma agrária é muito mais barata que na

indústria, comércio ou serviços.40

Porém, apesar de todos esses benefícios amplamente reconhecidos, o MST

vem enfrentando uma série de problemas decorrentes do atual modelo de

desenvolvimento apoiado na demanda externa por commodities agrícolas e minerais,

que valorizou as terras; em financiamento público (sobretudo do BNDES)

patrocinando fusões de grandes empresas que se transformam em transnacionais; nos

investimentos do Estado em obras de infra-estrutura, megaeventos, PAC; no

endividamento das famílias mediante crédito para consumo. Nesse cenário

macroeconômico, a reforma agrária saiu da pauta do governo e do PT,41

adeptos de

“uma concepção de desenvolvimento do capitalismo de que quanto maior o tipo de

atividade agrícola, melhor”.42

Em função disso, o movimento mudou de tática.

Abandonou a reivindicação de uma reforma agrária clássica, no estilo da realizada nos

países que democratizaram a propriedade da terra, passando a defender, além da velha

bandeira da desapropriação dos latifúndios improdutivos, a reorganização da

38 Idem, p.231. 39 2001, op. cit, p.39. 40 Carter, op. cit., p.302. Mesmo um crítico do MST como Zander Navarro reconhece que o movimento

contribuiu “para a melhor distribuição fundiária em várias regiões rurais do país, criando oportunidades

de ocupação e de acesso à terra para milhares de famílias, além de instaurar dinâmicas econômicas

novas.” (“Mobilização sem emancipação” – as lutas sociais dos sem-terra no Brasil. In: B. S. Santos

(org.). Produzir para viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Acesso pelo site

http://www.iisg.nl/labouragain/documents/navarro.pdf , p.8.) 41 Gilmar Mauro, Entrevista ao Correio da Cidadania, 23.03.2012; B. M. Fernandes, in Lúcia

Rodrigues, Governo abandona de vez a reforma agrária, Caros Amigos, nov. 2011, p.13; 42 Opinião do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, especialista em reforma agrária, em Caros

Amigos, op. cit., p.13.

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produção agrícola mediante a implantação de “uma nova matriz tecnológica baseada

nas técnicas agrícolas da agroecologia. E ainda a ampla democratização da educação,

com a instalação de escolas em todos os níveis, em todo o meio rural.”43

Contudo, além dos desafios relacionados à agroecologia, o movimento

enfrenta também outro tipo de problemas internos e externos. Os últimos referem-se à

dificuldade de recrutar novos militantes para suas bases, sobretudo a partir do sucesso

das políticas compensatórias e do crescimento do nível do emprego nos governos

Lula e Dilma.44

Há porém quem diga que o MST desistiu das ocupações, que “deixou

de fazer pressão política (...). Arriaram a bandeira. Isso não significa abandono, pode

reacender a luta novamente.”45

Na mesma direção vai Plínio de Arruda Sampaio, ex-

presidente da ABRA, coordenador do projeto de reforma agrária do governo Lula

(que não foi implantado) e simpatizante do MST. Ele julga que o governo, ao centrar

recursos em assistência técnica e crédito “transformou o MST numa ONG, o que em

si modifica a relação do movimento com o camponês. Em vez de ativista, o militante

torna-se um técnico do estado.”46

Esta tem sido a crítica mais frequente endereçada nos últimos tempos aos

movimentos sociais no Brasil, não só ao MST: deixaram de combater o capitalismo e

limitaram-se à conquista de espaços institucionais, tornando-se dependentes do capital

e do Estado. “Agora o que as organizações necessitam é de administradores, técnicos

e burocratas; e não de militantes que exponham as contradições e impulsionem a

luta.” Nessa perspectiva, as organizações (dos movimentos sociais) adotaram uma

estratégia que não leva ao socialismo, transformando-se em “colaboradoras da

expansão e acumulação do capital.”47

43 Entrevista de J. P. Stédile, 01.08.2011, http://www.cartacapital.com.br/politica/o-mst-muda-o-foco/

Na contramão do mais estrito bom-senso o governador do Paraná, Beto Richa, acabou de vetar o

projeto de lei estadual 403/11, aprovado por unanimidade pela Assembléia Legislativa, cujo objetivo é

fortalecer a agricultura familiar por meio da agroecologia, alegando que é “inconstitucional e contrário

ao interesse público” e defendendo o agronegócio como “um dos principais alicerces da economia do

estado”. Claro que sem fazer qualquer alusão às externalidades negativas do agronegócio! 44 Segundo B. M. Fernandes, um dos maiores estudiosos do MST, Caros Amigos, p.12. Ver também a

mencionada entrevista de J. P. Stédile na Carta Capital. 45 Cf. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Caros Amigos, p.12-13. 46 Extrema-unção, Carta Capital, 03.08.2011, p.28. 47 Carta de saída das nossas organizações (MST, MTD, Consulta Popular e Via Campesina) e do

projeto estratégico defendido por elas, primavera de 2011. http://cspconlutas.org.br/2011/11/militantes-

do-mst-mtd-consulta-popular-e-via-campesina-divulgam-carta-de-saida-de-suas-organizacoes/

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Esse julgamento é contestado pela direção do MST, que insiste em dizer que

tem sido mantido o mesmo número de ocupações que no governo FHC, entre 80 e 90

mil famílias acampadas em todo o país.48

Mas reconhecendo que

“Continuamos fazendo ocupação, luta, sem ilusão de que vão resolver o problema da

reforma agrária (...) Em tempos de crise [é preciso] manter as bandeiras em pé e resistir a esse

tempo histórico (...) é preciso fazer um amplo debate na classe trabalhadora sobre o que é o

modelo econômico. No nosso caso (...) é preciso pensar um novo modelo agrícola (...) com

novos paradigmas tecnológicos e produtivos. Para fazer isso, não tenho ilusões, é preciso

outro Estado. É preciso outro governo, e isso não depende só de nós. (...) Enfim, nesse tempo

de resistência, é preciso continuar investindo na formação político-ideológica e (...) fortalecer

as organizações sociais. (...) uma organização que não responde às necessidades de sua

categoria perde o sentido e razão de ser para a sua categoria. Portanto, o MST vai ter que

conjugar a necessidade da sua base, a luta pela terra, a lona, a cesta básica, o crédito, mas,

concomitantemente, terá de investir na formação político-ideológica, fazendo todas as lutas.

Esse é o grande desafio de ser um dirigente do MST no atual momento histórico (...) Na

verdade, para ser honesto, tenho que dizer que os movimentos sociais, os partidos de

esquerda, todos, estamos a reboque – a reboque – do grande capital e do Estado brasileiro. E

estamos agindo retroativamente, esse é o nosso problema, e não é só do MST. Estamos

sempre correndo atrás das iniciativas que eles tomam. E normalmente perdendo.”49

Lembremos para terminar o que disse há tempos um dos maiores estudiosos da

questão agrária no Brasil, que está longe de ser um radical de esquerda: “já não há

como fazer para que a luta pela terra não seja uma luta contra o capital, contra a

expropriação e a exploração que estão na sua essência”.50

48 Stédile fala em 60 mil famílias {http://www.cartacapital.com.br/politica/o-mst-muda-o-foco/}. 49 Entrevista com Gilmar Mauro, Correio da Cidadania, 23.03.2012. 50 J. S. Martins, Os camponeses e a política no Brasil, Petrópolis, 1995, p.177.