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1 ECONOMIA SOLIDÁRIA NA CIDADE DE SÃO PAULO O CASO DAS COOPERATIVAS DE CONSUMO Mariah R. Salgado Universidade de São Paulo [email protected] Valéria de Marcos Universidade de São Paulo Resumo Esta pesquisa buscou resgatar as origens do cooperativismo para compreender o que é e o que significa o recente movimento da Economia Solidária no Brasil, bem como o papel que este exerce frente ao capitalismo. Na perspectiva de aprofundar nossa análise, acompanhamos as experiências da Cooperativa de Consumo Comerativamente, realizando o levantamento do seu histórico desde a sua criação em 2007 até os dias atuais. A partir dos estudos teóricos em conjunto com a observação das experiências práticas, buscamos entender, de forma crítica, quais são os potenciais formativos e o papel das cooperativas e grupos de consumo dentro do contexto sócio-econômico da cidade de São Paulo. No caso específico da Comerativamente, analisamos também a maneira como ela buscou construir uma nova forma de relação campo-cidade, através da sua parceria com o acampamento do MST Irmã Alberta, no distrito de Perus, São Paulo. Palavras-chave: Economia Solidária. cooperativas de consumo. MST. agricultura familiar. cooperação campo-cidade. Introducão A pesquisa que serviu de base para o presente trabalho buscou analisar a atuação do movimento de Economia Solidária no contexto da cidade de São Paulo 1 . Nossa intenção foi compreender o papel das cooperativas de consumo na construção de relações sociais de resistência ao atual modelo de produção e consumo, vigente nas relações capitalistas de produção. Para tanto, acompanhamos as experiências da Cooperativa de Consumo Comerativamente para compreender, na prática, o que significa esse modelo “alternativo” de economia e como (e se) ele afeta as vidas dos envolvidos nessas iniciativas. O estudo da Comerativamente nos possibilitou aprofundar a compreensão dos conflitos, limites e potencialidades do cooperativismo e da economia solidária. Enquanto cooperativa de consumo, ela propõe uma reflexão crítica acerca da necessidade mais básica e indispensável do ser humano, a alimentação. O principal objetivo deste grupo é promover o acesso a alimentos de qualidade, saudáveis e a baixo custo, buscando-os de forma crítica e consciente. Sua atuação apresenta uma nova

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ECONOMIA SOLIDÁRIA NA CIDADE DE SÃO PAULO O CASO DAS COOPERATIVAS DE CONSUMO

Mariah R. Salgado

Universidade de São Paulo [email protected]

Valéria de Marcos

Universidade de São Paulo Resumo Esta pesquisa buscou resgatar as origens do cooperativismo para compreender o que é e o que significa o recente movimento da Economia Solidária no Brasil, bem como o papel que este exerce frente ao capitalismo. Na perspectiva de aprofundar nossa análise, acompanhamos as experiências da Cooperativa de Consumo Comerativamente, realizando o levantamento do seu histórico desde a sua criação em 2007 até os dias atuais. A partir dos estudos teóricos em conjunto com a observação das experiências práticas, buscamos entender, de forma crítica, quais são os potenciais formativos e o papel das cooperativas e grupos de consumo dentro do contexto sócio-econômico da cidade de São Paulo. No caso específico da Comerativamente, analisamos também a maneira como ela buscou construir uma nova forma de relação campo-cidade, através da sua parceria com o acampamento do MST Irmã Alberta, no distrito de Perus, São Paulo. Palavras-chave: Economia Solidária. cooperativas de consumo. MST. agricultura familiar. cooperação campo-cidade.

Introducão

A pesquisa que serviu de base para o presente trabalho buscou analisar a atuação do

movimento de Economia Solidária no contexto da cidade de São Paulo1. Nossa intenção

foi compreender o papel das cooperativas de consumo na construção de relações sociais

de resistência ao atual modelo de produção e consumo, vigente nas relações capitalistas

de produção. Para tanto, acompanhamos as experiências da Cooperativa de Consumo

Comerativamente para compreender, na prática, o que significa esse modelo

“alternativo” de economia e como (e se) ele afeta as vidas dos envolvidos nessas

iniciativas.

O estudo da Comerativamente nos possibilitou aprofundar a compreensão dos

conflitos, limites e potencialidades do cooperativismo e da economia solidária.

Enquanto cooperativa de consumo, ela propõe uma reflexão crítica acerca da

necessidade mais básica e indispensável do ser humano, a alimentação. O principal

objetivo deste grupo é promover o acesso a alimentos de qualidade, saudáveis e a baixo

custo, buscando-os de forma crítica e consciente. Sua atuação apresenta uma nova

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estratégia para a retomada de controle e autonomia na (re)produção da vida dentro da

metrópole de São Paulo, através do estabelecimento de relações sociais mais profundas,

igualitárias e formativas. A atuação desta cooperativa de consumo traçou um caminho

singular em busca de estabelecer relações de cooperação entre agricultores familiares da

zona periurbana da cidade de São Paulo e os seus associados.

O fragmento de pesquisa aqui apresentado foi organizado em duas partes distintas, a

primeira de resgate histórico das origens da Economia Solidária buscando, através das

transformações promovidas pela revolução industrial e da história e influência dos

ideais de Robert Owen nesse período, compreender as transformações passadas por

esse movimento e, sobretudo, o seu papel no atual contexto brasileiro. A segunda parte

apresenta o estudo de caso da Cooperativa de Consumo Comerativamente, onde

analisamos sua trajetória histórica até a fase vivida pelo grupo ao longo de 2011, esta

resultado de um processo de autoanálise crítica e de reconstrução de princípios e

práticas que o levou a estabelecer, na época, uma parceria com os produtores familiares

do acampamento do MST Irmã Alberta2.

A metodologia utilizada na realização desse trabalho foi a pesquisa participativa, que

permitiu que as reflexões teóricas e práticas caminhassem juntas, complementando-se

mutuamente, o que teve suma importância, sobretudo, nos trabalhos de campo

realizados no acampamento do MST Irmã Alberta e no acompanhamento do cotidiano

da Comerativamente. Adotando um enfoque histórico-estrutural, trabalhamos para

apresentar uma reflexão crítica acerca das contradições que compõem a complexidade

das relações sociais tecidas dentro das iniciativas da economia solidária, procurando,

assim, compreender os princípios da autogestão, comércio justo e solidário,

agroecologia, cooperação e organização em redes ou em federações, assim como os

impactos e influências dessas práticas nas relações sociais entre os consumidores

organizados da Comerativamente e os produtores agrícolas do Irmã Alberta.

Por fim, o recorte feito para o presente trabalho, dará ênfase à segunda parte da pesquisa

original, isto é, às experiências da Comerativamente e sua parceria com as famílias

produtoras do acampamento do MST Irmã Alberta, que caracterizaram a última fase do

grupo por nós estudada. Este enfoque oferece a possibilidade de um diálogo interessante

com o eixo temático escolhido – Relações Campo-Cidade, multifuncionalidade e

pluriatividade – e com o tema central deste encontro, na medida que analisa alternativas

ao atual modelo de desenvolvimento econômico brasileiro na perspectiva das relações

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campo-cidade, e da relação produção agrícola familiar e consumo urbano.

Economia Solidária, um breve histórico

Economia Solidária (EcoSol) é o nome dado no Brasil a um movimento mundial de

resistência ao capitalismo e que, apesar das especificidades locais e regionais,

compartilha princípios, tais como: autogestão; igualdade nas relações sociais; apoio

mutuo e cooperação; auto-organização em redes e federalismo; comércio justo e

solidário; relações justas de trabalho; educação e formação dos trabalhadores;

distribuição das riquezas etc. Tais princípios são o resultado da influencia direta do

momento político e sócio-econômico das transformações do século XVIII e XIX,

sobretudo no que diz respeito à revolução industrial – berço das primeiras experiências

que inspiram e sustentam o atual movimento da EcoSol – e que se perpetuaram ao longo

do tempo.

A revolução industrial (meados do século XVIII), foi o resultado da expressiva evolução

das forças produtivas, cujo símbolos são o advento do motor a vapor e a organização

fabril da produção (Singer, 2002), marcos importantes no processo de transformação do

modo capitalista de produção que afetou profundamente a sociedade ocidental.

O significado da revolução industrial é visto de modo diverso pelos seus estudiosos.

Autores como Hobsbawn (1979) e Takahashi (1977) consideram que ela foi o ponto

culminante da transição entre dois sistemas econômicos, o feudalismo e o capitalismo.

Marx, por sua vez, considera que não houve transição entre esses dois sistemas, mas sim

uma ruptura violenta entre eles, iniciada com a acumulação primitiva do capital e o

desenvolvimento da divisão social do trabalho que, posta desde a acumulação primitiva,

fez desta sociedade a sociedade da troca, fazendo com que a mercadoria adquirisse cada

vez mais centralidade3. Para Marx (1983, p. 252),

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A relação-capital pressupõe a separação entre trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apóie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como 'primitivo' porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.

Em A era das revoluções, Hobsbawm aponta a revolução política ocorrida na Inglaterra

como fator decisivo para o estabelecimento do capitalismo como sistema econômico

hegemônico. Isto porque tais mudanças na política britânica prepararam o terreno

ideológico e jurídico para a consolidação do capitalismo, inclusive a respeito das

medidas que permitiram a acumulação primitiva do que seria a classe de capitalistas

ingleses do fim do século XVIII. Conforme Hobsbawm (1977, p. 54),

[…] as condições adequadas estavam visivelmente presentes na Grã-Bretanha, onde mais de um século se passara desde que o primeiro rei tinha sido formalmente julgado e executado pelo povo e desde que o lucro privado e o desenvolvimento econômico tinham sido aceitos como os supremos objetivos da política governamental. A solução britânica do problema agrário, singularmente revolucionária, já tinha sido encontrada na prática. Uma relativa quantidade de proprietários com espírito comercial já quase monopolizava a terra, que era cultivada por arrendatários empregando camponeses sem terra ou pequenos agricultores. Um bocado de resquícios, verdadeiras relíquias da antiga economia coletiva do interior, ainda estava para ser removido pelos Decretos das Cercas (Enclosure Acts) e as transações particulares, mas quase praticamente não se podia falar de um "campesinato britânico" da mesma maneira que um campesinato russo, alemão ou francês. As atividades agrícolas já estavam predominantemente dirigidas para o mercado; as manufaturas de há muito tinham-se disseminado por um interior não feudal. A agricultura já estava preparada para levar a termo suas três funções fundamentais numa era de industrialização: aumentar a produção e a produtividade de modo a alimentar uma população não agrícola em rápido crescimento; fornecer um grande e crescente excedente de recrutas em potencial para as cidades e as indústrias; e fornecer um mecanismo para o acúmulo de capital a ser usado nos setores mais modernos da economia.

Assim, a formação histórica do proletariado começa com a “liberação” de um enorme

contingente da população rural através da expropriação de suas terras pelos antigos

senhores feudais, processo que caracteriza o início da assim chamada acumulação

primitiva do capital e, consequentemente, a formação do exército industrial de reserva.

Afim de enquadrar esse contingente de trabalhadores na nova organização do trabalho

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foram feitas leis que puniam aquele que, válido, “sem possuir meios próprios de vida,

fosse encontrado sem emprego regular. O trabalho assalariado nasce, portanto, nos

albores do capitalismo como trabalho forçado, isto é, não-livre” (Singer, 1985, p. 22).

A formação cultural da classe operária acontecerá a longo prazo, através do

enquadramento do operário dentro de uma moral que, além de responsabilizá-lo pelo

sustento e bem-estar da família, lhe impõe as exigências e condições desse modo de

produção como naturais. Todavia, esta formação terá em cada país um processo

particular. A expropriação das terras camponesas é o ponta pé inicial da classe operária

na Inglaterra, mas essa terá um desenvolvimento distinto nos Estados Unidos e nas

colônias Sul Americanas, que receberão o capitalismo industrial já formado.

As origens da Economia Solidária

O processo de formação do proletariado foi marcado pelas longas jornadas de trabalho e

pela insalubridade das condições de vida e trabalho, impostas a uma população recém-

chegada às cidades, que sofreu um rápido empobrecimento e precarização da vida. O

mesmo processo de precarização devido à organização fabril da produção e à difusão

das máquinas-ferramentas e motores a vapor foi vivido pelos citadinos que trabalhavam

outrora como artesãos autônomos. Em resposta a este intenso empobrecimento vemos

surgir as primeiras tentativas de organização alternativa da produção no formato de

cooperativas. O precursor desse movimento, que surge na Inglaterra no início do século

XIX, foi Robert Owen, quem propôs os primeiros modelos de organizações populares

em cooperativas (Singer, 2002).

As reformas propostas por Owen eram bastante revolucionárias para a época. Pediam,

por exemplo, a redução da jornada de trabalho e melhorias no ambiente de trabalho e no

ambiente mais amplo de vida da classe operária. A educação representava a pedra

fundamental de suas propostas, pois acreditava que era possível (re)formar o caráter dos

indivíduos libertando-os de seus “vícios”4 através de uma educação apropriada e de um

ambiente de trabalho e de vida razoáveis. É por meio das críticas ao liberalismo

econômico e de suas propostas de reformas sociais que podemos situar Owen nas

origens do trade-unionismo e da teoria do socialismo de Estado (Choay, 1992), sendo

inclusive considerado por muitos como um dos precursores do socialismo utópico.

Este pensador entendia que a competição comercial era causadora de sentimentos vis

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entre os homens e que contrariavam os interesses e bem estar da sociedade. Segundo

Owen, a competição e a concorrência individuais e nacionais eram as formas de

produzir riquezas que, em conexão com outras partes desse “sistema miserável”,

causavam “desperdício de trabalho” e a existência de trabalhos desagradáveis e

insalubres. Ademais, motivava os indivíduos a aplicarem uma enorme quantidade de

capital e trabalho em seus estabelecimentos privados, dando um direcionamento errado

à produção industrial, o que resultava na produção de uma enorme quantidade de itens

inúteis à sociedade, tentando-a a consumi-los. Tal modelo de organização da sociedade

era visto por ele como irracional.

O período do fim da década de 1830 em diante foi marcado, de um lado, pelas inúmeras

tentativas fracassadas de Owen em criar novas comunidades e cooperativas e, por outro,

contraditoriamente, por uma ampla reprodução de experiências inspiradas nos ideais

deste pensador, sobretudo o movimento das cooperativas de consumo. Em meados da

década de 1830 o movimento das cooperativas deu um novo fôlego ao movimento

Oweniano, ocasião em que sistemas de troca de trabalho cooperado foram colocados em

prática e tentou-se, por algum tempo, realizar a troca dos produtos dessas instituições

por meio de “notas de trabalho”5.

O cooperativismo revolucionário de Owen surgiu como forma alternativa de

organização da produção, através da qual o proletariado tenta recuperar trabalho e

autonomia econômica (Singer, 2002). É a este momento histórico – e às ideias e ideais

de Owen que foram amplamente divulgadas, inspirando tantos outros experimentos

sociais – que os teóricos se referem como sendo as origens da Economia Solidária,

momento em que surgem as primeiras cooperativas de trabalhadores com o objetivo de

retomada da autonomia de (re)produção da própria vida. As cooperativas de consumo

foram as primeiras experiências de cooperativismo da época e buscaram libertar os

trabalhadores das condições precárias de vida que teciam sua realidade.

No Brasil, o movimento de Economia Solidária (EcoSol) é recente e ainda está

desenvolvendo suas práticas e teorias. De acordo com Singer, ele surge no início da

década de 1980, como reação à crise econômica de 1981/1983 que levou à falência um

grande número de empresas capitalistas, recuperadas na década seguinte por seus

trabalhadores, com ajuda dos sindicatos, no formato de empresas solidárias. A empresa

solidária é, essencialmente, aquela onde não há separação entre trabalho e os meios de

produção, isto é, onde trabalho e capital estão fundidos. Os trabalhadores são, ao mesmo

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tempo, operários e proprietários da empresa. Este tipo de empresa não tem por

finalidade a maximização dos lucros, mas sim a quantidade e qualidade do trabalho

(Singer, 2002).

As experiências de cooperativas de produção rural e comercialização promovidas pela

Cáritas6 e pelo MST, muitas vezes em conjunto, são a expressão desse movimento

(EcoSol) no campo. A década de 1990 é, por isso, considerada o grande marco da

EcoSol no Brasil, ocasião em que multiplicaram-se as empresas solidárias e

cooperativas de produção rural e o movimento começou a tomar corpo.

A recente preocupação do Estado brasileiro em promover e apoiar os empreendimentos

de economia solidária tem tido resultados positivos no que diz respeito, sobretudo, à

legislação necessária para regulamentar as empresas solidárias. Esse avanço é

representado pela criação da Secretaria de Economia Solidária, o marco inicial de

institucionalização desse novo paradigma, que tem ajudado na articulação do

movimento nacional de economia solidária.

A economia solidária é um movimento polifônico, isto é, os seus pensadores não têm

uma compreensão única do que ele representa ou de quais são as suas ações. De acordo

com Singer, por exemplo, ela se constitui como um modo de produção alternativo onde,

diferente do capitalista, aqueles que possuem os meios de produção são os mesmos que

trabalham no processo produtivo, motivo pelo qual essas organizações são em geral

cooperativas e associações autogestionadas e com regime de democracia direta sobre as

decisões a respeito do empreendimento, onde cada participante tem direito a voz e voto.

Todavia, entendemos que “modo de produção” é um conceito que engloba todas as

esferas da economia (a produção, a circulação, a comercialização e as relações social

envolvidas no processo de produção), fazendo com que estas aconteçam sob a mesma

lógica – a capitalista. Este é o caráter hegemônico do capitalismo ao qual as empresas e

empreendimentos da economia solidária estão submetidos, não conseguindo portanto

escapar das formas de circulação, das regras do mercado, da forma dinheiro como

equivalente geral, etc. Por isso, acreditamos que mesmo que a economia solidária

proponha novas relações sociais de produção, ela não constitui um modo de produção

diferente do capitalista, sendo esta sua maior contradição.

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A Economia Solidária e a Cooperativa de Consumo Comerativamente: reflexões

sobre uma parceria entre produtores familiares e consumidores na metrópole de

São Paulo

As cooperativas de consumo representam um dos modelos de empresa solidária que se

pode organizar dentro dos paradigmas da EcoSol. Organizam-se de forma

autogestionada, sem exploração de trabalho assalariado e não visam lucro, mas sim a

satisfação das necessidades de seus cooperados da melhor forma possível, segundo os

seus princípios coletivos.

No contexto atual, as cooperativas de consumo engajadas nos princípios da economia

solidária surgem como forma de resistência à sociedade do consumo de massas, do

consumo dirigido, do consumismo, das relações de superexploração do trabalho, dos

grandes monopólios, e tendem a se associar a outros empreendimentos da EcoSol, a

partir de relações de apoio mutuo e solidariedade com grupos de pequena produção

artesanal e familiar. Não devem, por sua vez, ser confundidas ou associadas com os

grupos virtuais de compras coletivas, como o “Grupon” e o “Peixe Urbano”, nos quais

as compras são “coletivas” mas realizadas de forma individual e alienada. Os

consumidores não têm participação na escolha dos produtos e serviços que são

oferecidos pelo site, não conhecem os outros consumidores e são motivados apenas

pelas vantagens de preço.

A cooperativa de consumo Comerativamente

A Comerativamente foi fundada em Setembro de 2007 como um grupo informal de

compras coletivas, inspirado nos princípios do cooperativismo e da economia solidária,

fruto da iniciativa de estudantes da Universidade de São Paulo, em parceria com a

Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP USP)7. No início, as

iniciativas do grupo eram orientadas pelo interesse em conhecer o “caminho que o

alimento fazia para chegar até o consumidor” e em estabelecer relações diretas com os

agricultores (Gonçalves, 2010). Seguindo as bases da autogestão, outros quatro

princípios orientaram as ações do grupo: a transparência financeira; a transparência na

gestão; a manutenção de um fundo comum; e a convivência entre os associados.

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No caso da Comerativamente, a experiência de autogestão é por si só um processo

formativo de ganho de consciência sobre o ato do consumo e suas consequências, esta

noção foi adquirida ao longo dos anos através das práticas do grupo e reafirmada na

carta de princípios da cooperativa escrita em 2011. Em relação ao consumo, por

exemplo, esta carta enfatiza o consumo ativo, isto é, “aquele em que o consumidor

busca conhecer quem produz, de que forma produz, e a partir de quais relações”8

produz. Este princípio é complementado pela compreensão de que o consumo é um ato

de investimento e, como tal, está sujeito à decisão do consumidor que, quando age

consciente do seu poder, pode escolher investir em grupos ou indivíduos a partir de

critérios próprios e definidos. O consumo da produção local tem por objetivo

fortalecer a economia local, reaplicando os recursos por ela gerados. Nesse sentido o

grupo busca fortalecer as comunidades parceiras e criar vínculos que permitam realizar

outro importante princípio, o controle social, que por sua vez permite a criação de

Sistemas Participativos de Garantia onde consumidores, transportadores, distribuidores,

comercializadores e armazenadores possam certificar produtos orgânicos e

agroecológicos sem que seja necessária a certificação por auditoria.

No âmbito mais geral, a autogestão é um princípio fundamental da EcoSol, responsável

pelo caráter democrático e formativo dos empreendimentos solidários. É formativa na

medida em que cria nos associados e trabalhadores a necessidade de pensar nos seus

próprios desejos e motivações e na maneira como esses serão alcançados. Porém, para

que ela funcione, é necessário que estes desejos e formas de realizá-los representem um

interesse comum a todos, o que, no cotidiano, implica no aprendizado do diálogo e da

cooperação mutua.

A consciência de que a cooperação entre os empreendimentos de economia solidária

(EES) é uma importante estratégia de sobrevivência dentro do capitalismo faz com que

a organização em rede ou em federações ganhe peso significativo para o sucesso dessas

iniciativas. Isso serve a compensar a situação de “desvantagem” em que se encontram

em relação às demais empresas capitalistas, devido às relações de produção, trabalho,

circulação e consumo distintas que buscam estabelecer.

Compreendendo a importância da criação e fortalecimento de redes da economia

solidária, em 2008 a Comerativamente se torna parceira do EES Sementes de Paz, este

por sua vez resultado da articulação de uma Rede de Cooperação Econômica Campo-

Cidade (Gonçalves, 2010). O objetivo do EES Sementes de Paz era criar um canal de

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escoamento para os produtos da agricultura familiar através da construção de uma Rede

de Compras Coletivas na cidade de São Paulo. Na pratica, visava facilitar e ampliar a

logística, atuação e articulação entre grupos de consumo e agricultores da Região

Metropolitana de São Paulo (RMSP). A ideia de uma rede de comercialização solidária

foi aprimorada e desenvolveu-se um modelo da logística integrada, no qual o contato

com os agricultores, as compras e a distribuição dos alimentos de cada grupo de

consumo seriam centralizadas pelo EES e realizadas em conjunto com o objetivo de

baratear os custos dessas atividades.

Depois de quase dois anos e meio de parceria com o EES Sementes de Paz, a

Comerativamente decide desvincular-se do empreendimento, o que marcará uma

importante mudança nos rumos desta cooperativa. A princípio foi o excessivo aumento

nos preços dos produtos vendidos pelo EES, em especial das cestas de alimentos

orgânicos, e o fim do fundo de fomento dos núcleos9 que motivou as discussões sobre a

parceria com o Sementes de Paz. Posteriormente, o grupo compreendeu que o formato

de parceria com este empreendimento havia transformado a Comerativamente em um

entreposto e o próprio Sementes de Paz em um atravessador. De acordo com Gonçalves,

o foco do empreendimento passou a ser o seu próprio fortalecimento e viabilidade

econômica ao invés do fortalecimento da Rede como um todo.

A interrupção da parceria com o EES Sementes de Paz deu início a um processo

coletivo de recuperação da memória e dos princípios norteadores da Comerativamente,

o que culminou num processo de reconstrução de suas práticas, visando restabelecer

coerência entre os princípios e práticas do grupo e fortalecendo a sua identidade. O

processo de reconstrução durou de agosto de 2010 a abril de 2011 e resultou na parceria

com os agricultores do acampamento do MST Irmã Alberta, situado em Perus, distrito

no extremo Noroeste da cidade de São Paulo.

A alimentação é vista pelos membros da cooperativa como uma forma de garantir, na

medida do possível, a manutenção da saúde dos moradores da cidade. É por isso que o

consumo de alimentos saudáveis, “isentos de contaminantes intencionais”, é uma das

motivações do grupo. Uma das prioridades do grupo é elaborar formas de consumo

alternativo através da construção de parcerias de co-responsabilidade com pequenos

agricultores que possibilitem a permanência do agricultor na terra através do ganho de

autonomia na (re)produção da vida. Para isso, o grupo visa a eliminação da figura do

intermediário, tornando, dessa forma, “mais consciente e transparente o direcionamento

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dos recursos das pessoas dentro dessa relação”10 de compra e venda. É um princípio da

cooperativa fortalecer e apoiar, através de tais parcerias, os produtores que realizam

agricultura familiar bem como os movimentos sociais que agem baseados nos

princípios da Economia Solidária e da Agroecologia.

O Irmã Alberta e a parceria com a Comerativamente

Os primeiros contatos com o Irmã Alberta coincidiram com o momento de

reestruturação da cooperativa e resultaram na construção conjunta da parceria que

buscou construir uma forma de consumo mais autônomo e coerente. Esta parceria,

iniciada em abril de 2011, consistiu na compra quinzenal das cestas de hortaliças e

frutas e na ajuda mútua entre os parceiros. No que tange à ajuda mútua, a

Comerativamente, visando fortalecer a produção dos parceiros do acampamento11 e,

possivelmente, aumentá-la de modo que as cestas pudessem ser semanais, organizou

diversas experiências de compartilhamento de técnicas agroecológicas, sobretudo na

forma de mutirões de ajuda aos produtores, oficinas e cursos. Estas iniciativas também

representam uma estratégia para incentivar e viabilizar o contato entre os produtores e

os consumidores associados, visando criar um vínculo de cooperação e amizade entre

esses sujeitos12.

O modelo das cestas foi adotado pela cooperativa desde o seu início, no entanto, ele se

transformou ao longo da trajetória do grupo, variando em composição, tamanho, preço,

quantidades, qualidades e variedades dos alimentos o que dependia das parcerias com os

produtores dos alimentos. As cestas constituem-se na oferta fechada de alimentos

escolhidos através de um acordo estabelecido entre produtores e consumidores, tendo

como objetivo respeitar as escolhas de cultivo de cada agricultor bem como a

sazonalidade dos alimentos, priorizando o consumo de alimentos da época, o que

facilita a produção. Do ponto de vista da produção, a cesta é um instrumento facilitador

para o planejamento do cultivo, uma vez que o agricultor conhece as quantidades

aproximadas de cada produto que será vendido quinzenalmente, o que lhe permite

prever e planejar os cultivos futuros, suas quantidades e variedades. A tabela 1 ilustra o

modelo de cesta construído pela cooperativa em conjunto com os agricultores parceiros.

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Tabela 1 – Composição da cesta

Fonte: Carta de Acordos da Comerativamente (2011, p. 01) Podemos perceber que o preço da cesta de alimentos (R$ 13,00) está sem o frete. O

cálculo do transporte é descrito em seguida na tabela 2. Nele o grupo coloca na ponta do

lápis os custos do trajeto de ida e volta, entre a sede da Comerativamente e o

acampamento Irmã Alberta, chegando a um valor final por viagem de R$ 41,90. O custo

total da logística é dividido por um número mínimo de dez associados e eleva o preço

da cesta para R$ 17,00.

Tabela 2 – Cálculo do Frete

Fonte: Carta de Acordos da Comerativamente (2011, p. 02) Contudo, a composição idealizada para as cestas – duas variedades de folhas, duas de

legumes, duas de frutas e um tempero – quase nunca era respeitada devido à já referida

monotonia dos cultivos, o que é explicado pela realidade cotidiana do acampamento.

Poucos moradores do Irmã Alberta trabalham de fato na terra, sendo a indefinição da

situação jurídica do acampamento identificada pelos próprios moradores como sendo

um dos motivos pelo qual a maioria prefere empregar-se na cidade. De acordo com o

depoimento de uma moradora, muitos não querem trabalhar no cultivo para depois

serem despejados, a mesma regra vale para construção das casas e melhorias no espaço

coletivo.

É importante salientar que muitas são as dificuldades enfrentadas pelos que cultivam e

por aqueles que querem cultivar: não há assistência técnica suficiente para o cultivo, os

moradores não têm acesso aos financiamentos do governo, faltam ferramentas, sementes

Cest a Porção kg ou maço PreçoFolha 1 1 R$ 1,20Folha 2 1 R$ 1,20Tempero 1 R$ 0 ,60Legume 1 1 R$ 2 ,00Legume 2 1 R$ 2 ,00Frut a 1 2 R$ 3 ,00Frut a 2 1 R$ 3 ,00

Cust o de cada cest a sem fret e R$ 13 , 0 0

Logíst ica Especif icação Qt d. Cust oPedagio 1 Rodoanel 2 R$ 2 , 7 0Pedagio 2 Anhanguera 2 R$ 12 , 7 0Gasolina 15 km/ L 5 L R$ 12 , 5 0Depreciação do veículo 0 , 2 0 cent avos/ Km 70 km R$ 14 , 0 0

Cust o t ot al da logíst ica R$ 4 1, 9 0Cust o t ot al da logíst ica dividido ent re 10 associadxs R$ 4 , 19

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e insumos em geral. Ademais, o solo do terreno é extremamente lixiviado e degradado,

o relevo não é propícios para a agricultura artesanal, devido à sua acentuada

declividade. A região é bem seca durante o inverno e o acesso à água é difícil.

Muitos dos problemas e dificuldades vividas pelos moradores do Irmã Alberta provém

da situação de “ilegalidade” na qual o acampamento se encontra. A regularização e

oficialização pelo governo federal é essencial para as famílias ocupantes, sem a qual não

é possível acessar os programas de financiamento do governo e nem as políticas

públicas básicas (saneamento básico, pavimentação e iluminação das ruas, energia

elétrica, etc). Essa situação tem reflexos importantes no cotidiano dos moradores e

normatiza a precariedade da vida, criando uma atmosfera de instabilidade.

A parceria com o acampamento Irmã Alberta foi um dos grandes trunfos da cooperativa

pois permitiu, no que tange o consumo de hortaliças, que o grupo chegasse o mais perto

de alcançar uma prática totalmente coerente com os seus princípios e objetivos. Essa

parceria possibilitou o consumo de alimentos livres de contaminantes intencionais, ao

mesmo tempo que apoiou e fortaleceu a agricultura familiar e os movimentos sociais

através de uma relação ativa e direta entre produtores e consumidores. Contudo, essa

parceria também foi repleta de percalços que muitas vezes mostraram, na prática, as

fragilidades da teoria. As quatro principais fragilidades da cooperativa – logística de

transporte, gestão do trabalho, parcerias com os agricultores, dificuldades em atingir o

ponto de equilíbrio econômico – podem ser claramente exemplificadas através das

relações de parceria com o Irmã Alberta.

Estrutura de logística e logística do transporte – o espaço de entrega e retirada das

cestas de alimentos do Irmã Alberta, assim como de outros produtos, é a própria sede da

cooperativa situada no prédio da ITCP-USP e cedida pela mesma. Como este prédio é

um dos barracões que estão sendo paulatinamente demolidos pela reitoria da USP, a

Comerativamente, assim como a Incubadora, sofre com a possibilidade de ficar

desalojada em um futuro próximo. Isto representa uma grande ameaça para a

cooperativa na medida em que suas finanças não comportariam o custo do aluguel de

um espaço.

No entanto, um problema mais urgente e cotidiano foi o transporte das cestas do Irmã

Alberta: a cooperativa não dispõe de automóvel próprio para realizar este transporte e os

produtores encontravam-se na mesma situação. O preço das cestas não permitia nem a

eles e nem à cooperativa contratar alguém para efetuar tal serviço. Diante dessa

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situação, durante todo o primeiro semestre de 2011 o transporte das cestas foi realizado

por um membro da cooperativa com o seu automóvel privado. Este associado recebia a

cada viagem o valor calculado do frete (R$ 41,90) e uma cesta de alimentos doada pelos

próprios produtores, como contrapartida para a logística do transporte. Como o frete

estava incluído no preço da cesta, a arrecadação do valor total necessário para cobrir os

gastos do transporte estava diretamente ligada ao número de cestas pedidas a cada

quinzena, o que se revelou um problema quando o número de pedidos começou a

diminuir, gerando um déficit no pagamento do transporte, provisoriamente resolvido por

um sistema de créditos para o associado em questão.

A fragilidade da logística do transporte se agravou no segundo semestre de 2011

quando, por motivos de saúde, o associado responsável pelo transporte foi obrigado a

interromper essa tarefa. A cooperativa ficou de mãos atadas e viu sua parceria com os

produtores do Irmã Alberta tornar-se inviável e insustentável e, desde então as compras

de cestas foram interrompidas.

A parceria com os agricultores – outro ponto limitador da atuação da cooperativa é a

realidade dos agricultores do acampamento. Além dos muitos problemas enfrentados

com a produção, existe toda uma teia de relações sociais conflituosas, construídas ao

longo de nove anos, sobre a qual a Comerativamente tem pouco poder de ação. Esses

conflitos internos atravancaram as tentativas de formação de uma cooperativa de

produção dentro do acampamento. Em consequência disto, a Comerativamente teve

que tratar com cada agricultor individualmente, apesar da parceria depender do conjunto

deles.

A esse propósito, vale dizer que as visitas da produção, idealizadas para servirem como

momento de assistência técnica e levantamento dos problemas e dificuldades

enfrentadas pelos produtores – que se esperava resultassem em mutirões de cooperação

entre consumidores e produtores –, transformaram-se em visitas para o planejamento

das cestas. A cada quinzena uma visita era feita aos produtores para descobrir quem

estava produzindo o que, e quais desses alimentos estariam prontos para o consumo da

próxima leva de cestas. Assim, o associado que fazia a visita devia passar de lote em

lote para organizar a composição da cesta, o que consumia todo o tempo da visita e o

impedia de realizar as atividades de caráter técnico.

Esta dinâmica tornou-se desgastante e ineficiente, o que gerou a necessidade de se

pensar em alternativas para a montagem da cesta. A cooperativa propôs, então, uma

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experiência de planejamento da produção dos agricultores parceiros, que consistia na

elaboração conjunta de ferramentas que permitissem aos agricultores organizar a

montagem das cestas independentemente das visitas. O objetivo era atingir uma fluidez

de informações onde a logística de compra das cestas pudesse ser resolvida por telefone

e as visitas cumprissem sua função idealizada de assistência.

O modelo de planejamento proposto pelos membros da cooperativa ocorreria em duas

etapas, a primeira de planejamento trimestral da produção, a segunda de previsão

quinzenal de real disponibilidade dos alimentos. Algumas reuniões foram organizadas

com os produtores para tentar construir ferramentas que viabilizassem essa proposta,

porém isso foi feito antes do recesso de Julho, com a intenção de realizar oficinas no

segundo semestre. Tal proposta, porém, não se realizou devido aos problemas de

inviabilidade do transporte, organização dos associados e mobilização dos produtores.

A proposta consistia no planejamento trimestral que visava auxiliar os agricultores na

organização da produção individual, bem como na escolha de culturas ideais para cada

época do ano. A Comerativamente tentou incentivar os agricultores a ter um cultivo

mais diversificado, pois muitas vezes a preferência era dada para culturas mais fáceis de

serem cultivadas, o que se refletia em uma produção monótona de alimentos, com pouca

variedade. A previsão quinzenal, por sua vez, seria um instrumento de uso mais

imediato, e tinha a intenção de obter uma previsão de quais itens comporiam as cestas

do mês, levando em conta o tempo de amadurecimento de cada alimento. O registro

dessa previsão ficaria centralizado em uma pessoa, identificada pela cooperativa como

referência para o grupo de produtores, e que seria o contato para a organização das

compras.

Ponto de equilíbrio – o cálculo de sustentabilidade da cooperativa13 previa um número

ideal de 30 associados, número que não chegou a ser atingido na fase estudada, que

contou com 12 associados desde o começo de 2011. Isto fragilizava a situação

financeira da cooperativa, impedindo-a de ter uma movimentação financeira média

estável. Essa instabilidade era sentida sobretudo nos pedidos das cestas, onde o frete era

calculado com um mínimo de 10 pedidos, o que significava que praticamente todos os

associados tivessem que obrigatoriamente pedir cestas quinzenais para que o valor do

frete fosse recuperado.

Gestão do trabalho e participação dos associados – logo no início da parceria com o

Irmã Alberta houve a redução das frentes de ação, inicialmente idealizadas na carta de

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acordos da cooperativa, devido à baixa arrecadação das taxas de associação que não

permitiam uma remuneração justa para tantos gestores. Além disso, algumas frentes não

tinham atividades constantes, o que resultou em uma diferença significativa da

quantidade de horas de trabalho realizadas por cada gestor. Apenas três das cinco frentes

se mantiveram ativas – a coordenação; produção Irmã Alberta e Zona Cerealista; e

laticínios. A frente de coordenação é responsável pela facilitação das reuniões e

memória do grupo, assim como pela contabilidade geral. A frente Irmã Alberta está com

as atividades suspensas desde o começo do segundo semestre de 2011 enquanto que a

frente da Zona Cerealista e laticínios continua funcionando normalmente.

A dificuldade da gestão é articular e mobilizar os outros associados para que os

trabalhos e atividades da cooperativa sejam descentralizados, o que faz com que os

gestores fiquem sobrecarregados. No caso específico da parceria com o Irmã Alberta,

havia uma demanda de trabalho e dedicação muito grande, pois a parceria estava em

construção e ainda não havia consolidado uma dinâmica própria. Esse tipo de

construção é possível quando há uma participação ampla dos associados, o que não

ocorreu durante o período da experiência, tanto em função do pequeno número de

associados quanto pela indisponibilidade destes em participar da cooperativa de maneira

mais ativa.

Conclusão

A Economia Solidária carrega através dos seus princípios um grande potencial de

transformação da sociedade. As iniciativas deste movimento têm se fortalecido e

alcançado resultados positivos na sociedade brasileira. No entanto, qualquer forma de

resistência ao sistema capitalista é sempre parcialmente absorvida e quebrada por ele na

medida em que este – o capitalismo e sua lógica – é hegemônico. Isto exige de cada

EES uma constante revisão e autocrítica das escolhas e trajetos feitos ao longo do seu

percurso, caso contrário, ele fatalmente estará determinado a consolidar sua inclusão

social na economia capitalista.

O caráter revolucionário do cooperativismo, princípio básico da EcoSol, é a supressão

da figura do capitalista através da eliminação da propriedade privada dos meios de

produção, da organização coletiva da produção e da autogestão, isto é, da não separação

entre trabalho e capital. Contudo, estes elementos não são suficientes, na atual fase do

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capitalismo, para impedir que o trabalho seja super explorado. Em realidade, o resultado

é percebido pela tendência de auto-exploração do trabalhador, isto é, para conseguir ser

competitivo, muitos empreendimentos solidários acabam funcionando sob um regime

mais intenso de trabalho com uma remuneração menor do trabalhador, o que gera a

precarização do trabalho. Enquanto o mundo e o mercado forem capitalistas, os

empreendimentos solidários também o serão. Nessa perspectiva, uma questão se coloca:

como pode um empreendimento solidário sobreviver dentro de uma sociedade

capitalista sem que se criem novas relações de exploração no seu interior?

No caso da Comerativamente, as fragilidades decorrentes do descompasso entre o

paradigma da EcoSol e as determinações do mercado capitalista frequentemente

levaram a uma instabilidade que colocou em xeque a própria existência da cooperativa.

Contudo, tais fragilidades também representaram a oportunidade de inovações nas

iniciativas da cooperativa que buscou, constantemente, soluções teóricas e práticas para

os problemas e dificuldades do grupo, aspecto este que tornou-a um espaço de formação

diverso e contínuo. Embora os princípios e objetivos do grupo tenham permanecido

quase que inalterados, a constante mudança na forma de alcançá-los adicionou novos

elementos às reflexões sobre o papel e forma de atuação da cooperativa.

Sendo assim, a Comerativamente está inserida dentro das contradições do mundo da

mercadoria, vive-as cotidianamente e tem que se reinventar frequentemente para

transpô-las e manter o seu caráter transformador. O que possibilita que ela tenha essa

flexibilidade é o fato de que os seus membros não dependam dos rendimentos da

cooperativa para sobreviver. Ademais, se pensarmos que o capitalismo gira em torno da

constante produção e circulação de mercadorias, então, o consumo crítico e consciente

(e até mesmo o não-consumo) proposto pela Comerativamente pode ser a semente de

uma verdadeira transformação das relações sociais de produção.

A parceria entre a Comerativamente e o Irmã Alberta representou um elo importante

para ambos os grupos, permitindo que uma relação próxima entre os consumidores e os

produtores fosse de fato estabelecida. Para o Irmã Alberta, isso representou um ganho

de visibilidade importante que, de acordo com a análise dos moradores, trouxe apoio e

força para o movimento, sobretudo no que tange sua luta pelo assentamento oficial

daquelas famílias. Para a cooperativa e para seus membros, a parceria com o Irmã

Alberta além de ter possibilitado o consumo de alimentos orgânicos provenientes da

agricultura familiar, representou um avanço na direção de experimentar a prática dos

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princípios levados pelo grupo. Mesmo que a experiência desta parceria tenha sido breve

ela deixou uma marca positiva na formação do grupo e as relações sociais estabelecidas

nesse processo persistem até hoje, independentes das relações comerciais.

Tentamos mostrar, ao longo deste trabalho, que a EcoSol é um terreno fértil de formação

e, ao nosso ver, esse caráter formativo se confirmou na experiência da Cooperativa de

Consumo Comerativamente e nas iniciativas inspiradas por ela. É o contato direto

entre as pessoas, o compartilhamento e multiplicação do conhecimento e das

tecnologias sociais, o apoio mutuo, a cooperação, etc. que formam aqueles que passam

por este grupo, pois o caráter revolucionário de qualquer coisa vem dos indivíduos que

ali participam. Concordamos com Goldman (2007) quando ela diz que o revolucionário

não está na coisa em si, mas sim na consciência social que lhe guia, sem isso a

Economia Solidária é apenas mais uma porta de entrada para o atual sistema econômico

e, por isso, traz poucas ou nenhuma mudança à lógica social estabelecida.

Notas

1 Esta pesquisa foi realizada dentro do programa de iniciação científica da USP sob a orientação da

Professora Doutora Valéria de Marcos do Departamento de Geografia da USP. A pesquisa foi realizada com o auxílio da bolsa FFLCH (2010/11), renovada em 2012 para dar continuação aos estudos realizados durante o primeiro ano de pesquisa.

2 O acampamento Irmã Alberta é fruto da ocupação realizada por 700 famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, em julho de 2002, de um terreno da Sabesp localizado no Km 27,5 da Rodovia Anhanguera, no distrito de Perus – São Paulo. Nove anos depois, as 37 famílias que moram no terreno ainda lutam pela desapropriação oficial da área e assentamento dos moradores.

3 A própria ruptura entre o campo e a cidade está colocada a partir da divisão do trabalho e do trabalho como mercadoria.

4 Através das leituras dos escritos de Owen percebemos que os vícios (vices) dos trabalhadores são apontados a partir de uma forte moral cristã como sendo o alcoolismo, a desonestidade e corrupção, o roubo, a violência, entre outras formas de degradação social trazidas, segundo o autor, pelas condições precárias de vida. “The character of man is formed for him, and not by him” (o caráter do homem é formado para ele e não por ele), frase recorrente nos discursos de Owen.

5 “In these institutions shoe-makers, carpenters, cabinet-makers, and other artisans exchanged products directly using labor notes and without paying retail prices, with goods thus trading “equitably” on the basis of labour and raw materials costs. For the time being labour was evaluated at the rate of 6d per hour, which was assumed to be a fair mean between various forms of work” (Owen, 1991, p. xviii).

6 A Cáritas Brasileira é uma instituição da Igreja Católica, articulada mundialmente com outras Cáritas, que até meados da década de 1960 apenas promovia ações de caridade e assistencialismo. Contudo, há uma transformação na ênfase de suas ações que passam a apoiar e promover projetos que auxiliassem no desenvolvimento social.

7 O grupo não foi incubado pela ITCP-USP, no entanto, esta participou ativamente no fortalecimento da cooperativa, tanto no que diz respeito à disponibilização das estruturas físicas para acolhida do grupo, quanto na construção das reflexões sobre a atuação do coletivo. Essa parceria foi além do apoio institucional: muitos dos formadores da Incubadora fazem ou fizeram parte do Comerativamente, construindo-o coletivamente com importantes contribuições quanto às reflexões acerca da Economia Solidária. Essa proximidade com a ITCP-USP trouxe contribuições significativas para o desenvolvimento do grupo na medida que manteve o debate sobre as práticas solidárias, sempre

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atualizado e refinado. 8 Carta de Princípios da Comerativamente, 2011. Documento do aquivo da cooperativa cecido para a

realização desta pesquisa. 9 A presença de um fundo comum faz parte do modelo de organização cooperativista, sendo utilizado

para reinvestimentos ou para fortalecer a cooperativa em momentos difíceis. Este tipo de fundo já estava presente na Comerativamente, porém, o fundo de fomento dos núcleos foi uma contrapartida do EES Sementes de Paz na forma de uma “taxa de fundo” (10%) presente no preço final das cestas, com o objetivo de incentivar e fortalecer os núcleos de consumo parceiros.

10 Carta de princípios da Cooperativa de Consumo Comerativamente, 2011, p. 01. 11 Na época da parceria a produção do acampamento era muito frágil, em quantidade e variedade das

roças, devido ao pequeno número de produtores e às limitações materiais vividas por estes. 12 A ação mais recente em que a cooperativa esteve presente foi o PDC 2011 (Permaculture Design

Course), organizado por um grupo no qual alguns participantes eram membros da Comerativamente. Este curso foi realizado, pelo segundo ano, no acampamento Irmã Alberta com o objetivo de aplicar as técnicas aprendidas nos lotes dos moradores, beneficiando-os e compartilhando as técnicas e conhecimentos da permacultura e agroecologia.

13 O cálculo de sustentabilidade de um empreendimento busca mapear e planejar as condições que o viabilizam economicamente. No caso da Comerativamente isso significou planejar os gastos fixos do grupo, avaliar a capacidade de produção dos agricultores do Irmã Alberta e definir as estruturas e dinâmicas de organização interna, calculando dessa forma quantos associados seriam necessários para viabilizar e garantir o funcionamento da cooperativa (tanto no que tange a estabilidade economica, quanto no que diz respeito aos trabalhos da gestão e outras atividades realizadas pelo grupo).

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