Resenha Sociedade de Esquina
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7/29/2019 Resenha Sociedade de Esquina
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RESENHAS258
jamento entre vivos e mortos. Da sua
caracterizao como rito de encerramento
do luto, realizado para promover a reinte-
grao dos parentes do morto nos padresde sociabilidade normais. Seu foco no
a posio das geraes atuais diante
das antecessoras, mas um ciclo maior
de transformaes (p. 138). A viso dos
cantores no jawosi anti-histrica e
transcende, segundo a autora, as posturas
progressistas e degenerativas.
Ojawosi para esquecer os mortos,
disse uma mulher kayabi antroploga.
No registrei nenhuma informao sobre
a celebrao dojawosi como rito final do
luto entre 1981 e 1982. As pessoas obser-
vavam, nessa poca, que o ritual havia se
tornado raro com o fim da guerra intertri-
bal e dos conflitos sistemticos e abertos
com os brancos. O jawosi era associado
sempre morte de inimigos e inicia-
o masculina celebrada em seguida
participao em episdios homlogos guerra expedies para atrao de
outros ndios, viagens s cidades.
Os trs tipos de performance ritual
oratria dos lderes, cantos domarak
e cantos do jawosi dizem respeito s
fronteiras da sociedade kayabi. Eles do
margem a especulaes cosmolgicas
diferentes e a posicionamentos diver-
gentes dos narradores quanto s polticas
de contato com a sociedade nacional. Ao
mesmo tempo, produzem efeitos sociais
imediatos, reintegram indivduos e re-
foram relaes.
Merece destaque o comentrio escla-
recedor dos textos (falados e cantados)
que leva em considerao as diferentes
modalidades de discurso, os interlo-
cutores e os contextos cerimoniais, os
aspectos gramaticais e os recursos deperformance (tais como o emprego do
corpo). O artifcio grfico de dispor em
quatro colunas os textos permite ao lei-
tor visualizar a alternncia do narrador
entre falas que se referem ao evento da
narrao, falas que produzem pontos
de contato entre narrao e contedo
narrado, falas que narram eventos e, por
ltimo, falas dos personagens da narra-o. Alternando-se entre as diferentes
event frames, o narrador aproxima sua
audincia das realidades que descreve.
Assim, os acontecimentos que o paj can-
ta, por exemplo, tornam-se apreensveis
pelas pessoas comuns.
Por ter sido hspede de alguns dos
protagonistas do livro, tive satisfao
em rememorar, ao longo da leitura de I
foresee my life, a proverbial hospitalidade
dos Kayabi. Independentemente desta
circunstncia, os leitores interessados em
etnologia das Terras Baixas da Amrica
do Sul e anlise de narrativas autobiogr-
ficas apreciaro o livro por sua clareza e
sensibilidade.
Whyte, William Foote. 2005 [1943]. So-ciedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. 390pp.
Cristina Patriota de Moura
Universidade Estadual de Gois
Sessenta e dois anos aps a sua primeira
edio, finalmente publicada em lngua
portuguesa a exemplar etnografia de
William Foote Whyte sobre Cornerville
(North End), uma rea pobre e degra-
dada de Eastern City (Boston), habitada
por imigrantes italianos.
Ao terminar o curso de graduao em
economia, Whyte recebeu uma bolsa de
Harvard para fazer a pesquisa que de-
sejasse, desde que no valesse crditos
para um doutorado. Passou quase quatro
anos vivendo no North End, embrenhan-do-se em densas redes de relaes ao
passo que tambm fazia extensas leituras
em antropologia e sociologia e reformu-
lava sua pesquisa, at chegar ao formato
que lhe permitiu escreverSociedade de
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Esquina, questionando preceitos com-
partilhados pelos socilogos urbanos da
poca, como a noo de desorganizao,
cara a Louis Wirth, em Chicago.Whyte tinha apenas 22 anos quando
iniciou seu estudo. Inicialmente incomo-
dava-o a sensao de desconhecimento
da populao de uma rea espacialmente
to prxima de seu circuito como uni-
versitrio de classe mdia, e procurava
meios de transformar as reas pobres e
degradadas. Em Harvard, travou conta-
tos com Conrad Arensberg, tambm pes-
quisador jnior que trabalhara com Lloyd
Warner no estudo de Yankee City. Arens-
berg e Eliot Chapple vinham desenvol-
vendo uma teoria da interao social que
teve grande influncia na formulao da
metodologia a ser utilizada por Whyte,
que se diferenciaria de autores como os
Lynd com seus estudos de comunidade.
Posteriormente, j com o estudo pronto,
Whyte ingressa na Universidade deChicago, apresentando Sociedade de
Esquina como tese de doutorado, sob a
orientao de Lloyd Warner e com o apoio
de Everett Hughes. Aps contundentes
ataques de Wirth, o livro foi aceito como
tese, desde que o autor elaborasse uma
reviso da literatura j existente sobre
reas pobres e degradadas.
O livro comea opondo a perspectiva
da classe mdia branca norte-americana,
da qual Whyte fazia parte, que via todas
as reas pobres como caticas, e a per-
cepo dos de dentro, que vem em
Cornerville um sistema social altamente
organizado e integrado (p. 21). O autor
prope, ento, justamente compreender
essa organizao social existente. Cons-
tri uma narrativa dinmica, complexa e
abrangente, permitindo ao leitor acom-panhar com clareza os meandros de uma
estrutura social formada por diferentes
padres de interao, atravs dos quais
indivduos se movimentam e organiza-
es formais e informais surgem, desapa-
recem e brotam novamente, em diversos
nveis da hierarquia social.
Mas apesar de a construo de Whyte
apresentar uma impressionante sofisti-cao terico-metodolgica, sem a qual
seria impossvel chegar ao resultado atin-
gido, o texto no cita obras nem autores e
tampouco procura adequar o material de
campo a modelos abstratos previamente
elaborados. Nas palavras do autor:
Nesta pesquisa sobre Cornerville,
pouco iremos nos preocupar com as
pessoas em geral. Encontraremos
pessoas particulares e observa-
remos as coisas particulares que
fazem. O padro geral de vida
importante, mas s pode ser cons-
trudo por meio da observao dos
indivduos cujos padres configu-
ram esse padro (p.23).
Encontramos diversos personagensao longo do texto, em uma trama de
aes conjuntas, competies por lide-
ranas, composio de alianas polticas
e econmicas, distribuies de bens e
favores, estabelecimento, manuteno e
rompimento de laos de amizade. Com-
pe-se uma Cornerville que passa a fazer
sentido como organizao social digna
de respeito e compreenso, mas que tem
sua prpria lgica, diferente dos padres
estabelecidos e aceitos pela socieda-
de norte-americana mais abrangente,
identificada com a classe mdia anglo-
sax com origens protestantes. O livro
um amplo exerccio de relativizao e
retomada do ponto de vista nativo, se-
gundo os preceitos malinowskianos nos
quais o autor diz ter se inspirado.
O autor descreve quatro tipos de or-ganizao: a gangue de esquina, o clube
organizado por rapazes formados, a
organizao mafiosa e a poltica partid-
ria. Os dois primeiros abrigam os peixes
midos: os rapazes de esquina, que
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ocupam a posio mais baixa na hie-
rarquia social, e os rapazes formados,
que se encontram em meio a trajetrias
de ascenso social. J os gngsteres e ospolticos so os peixes grados, ocupam
o topo da hierarquia local. Mas cada
tipo identificado por Whyte construdo
a partir da observao e da descrio de
trajetrias de indivduos e grupos con-
cretos com os quais o autor no s entrou
em contato, mas de fato envolveu-se em
aes, disputas e projetos conjuntos.
Acompanhamos a trajetria de Doc e
seus rapazes de esquina, que formavam a
gangue dos Norton, e de Chick, que fazia
parte do Clube da Comunidade Italiana,
com os interesses divididos entre atuar
como base de mobilidade social para os
rapazes formados ou servir ao bem da
comunidade local. Os Norton acabam
desintegrando-se e os membros formados
do Clube da Comunidade Italiana vo se
distanciando cada vez mais dos rapazese das moas locais, com suas redes de
obrigaes recprocas que dificultam
as trajetrias de ascenso individual e
a entrada em um mundo com valores
individualistas. Conclui-se que o que
diferencia Doc de Chick no a maior
habilidade ou inteligncia de cada um.
Os dois inserem-se em diferentes padres
de atividades que envolvem, inclusive,
diferentes lgicas econmicas e formas de
gastar dinheiro. Se Chick vive segundo
uma economia de poupana em que o
que conta o lucro e a ascenso pesso-
al, Doc age segundo uma economia de
consumo, na qual as relaes pessoais e
a reciprocidade devem falar mais alto. Ao
chegar a esta concluso, vemos crticas s
polticas pblicas que instalam centros
comunitrios com assistentes sociaisexternos que pouco sabem sobre a popu-
lao local, suas formas de organizao e
que no estariam tambm procurando se
adaptar s necessidades e aos padres de
liderana j existentes.
Na segunda parte do livro encon-
tramos os gngsteres e os polticos com
suas organizaes. Aprendemos que as
grandes organizaes mafiosas desenvol-veram-se na poca da Lei Seca, como os
negcios de venda de bebidas. Elas foram
posteriormente legalizadas ou transfor-
maram-se em outro tipo de empreen-
dimento, desta vez lidando com jogos
ilegais. O jogo de nmeros, diz o autor,
um negcio como qualquer outro, com ro-
tina, organizao, eficincia e disciplina.
H uma estrutura que vai do apostador,
agentes, passando pelos homens de
50% que repassam 50% dos ganhos
ao escritrio at chegar ao escritrio
ou companhia, controlado pelo grande
mafioso T. S., um homem de negcios
discreto e com amplas conexes com a
polcia e os polticos. A coero fsica
minimizada, mas j houve pocas em que
prevalecia o gangster violento, crimino-
so romntico, pirata.A polcia atua como um amortecedor
entre duas organizaes sociais distintas
e com diferentes expectativas. Se a classe
mdia espera que o policial faa cumprir
a lei de forma impessoal, em Cornerville
espera-se que ele se insira em relaes
pessoais e aja mais como um mediador
e regulador de atividades ilegais. H
subornos e trocas de favores entre gngs-
teres e policiais, mas h tambm relaes
pessoais significativas que envolvem
amizade e confiana mtua, principal-
mente levando em conta que grande
parte dos policiais cresceu no mesmo
ambiente e compartilha a viso de mun-
do local, que distingue entre atividades
ilegais honestas e outras atividades
moralmente condenveis, como roubo
e assassinato, por exemplo. O autor nosapresenta ento um complexo jogo de
interesses, no qual h diferentes tipos de
presses exercidas sobre policiais, gngs-
teres e a populao local, em suas intera-
es internas e externas. As organizaes
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mafiosas tambm cumprem importante
papel como provedoras de empregos, em-
prstimos e oportunidades de ascenso
social a indivduos discriminados pelomercado de trabalho formal.
Para entender as relaes dos gn-
gsteres com os rapazes de esquina e os
diferentes tipos de liderana, acompa-
nhamos os acontecimentos envolvendo
o estabelecimento e a trajetria do Clube
Social e Atltico de Cornerville, formado
inicialmente por duas cliques e contando
com o patrocnio de Tony Cataldo, dono
de casas de apostas e de um jogo de
bingo. Inicialmente, o clube composto
por duas cliques, cada uma com um lder
informal um rapaz de esquina e um
membro da organizao mafiosa. Duran-
te um perodo de quase dois anos, vemos
o desenvolvimento das atividades do
clube, as disputas de poder e a mudana
da organizao informal, desaparecendo
as clivagens internas e passando a haverum lder interno, ainda que Tony perma-
necesse como figura importante. Carlo
e Tony tinham diferentes tipos de poder.
Fora do clube, Tony iniciava aes para
um grande nmero de homens sobre os
quais Carlo no podia agir (p. 205), mas
Carlo tinha intimidade com os rapazes de
esquina e, portanto, maior capacidade de
iniciar aes no clube.
Ao longo de todo o livro, Whyte pro-
cura mostrar ao leitor como os indivduos
de Cornerville e principalmente os lderes
de diversos grupos sociais encontram-se
em posies ambguas, entre um tipo de
padro de interao baseado em altos
nveis de sociabilidade e cdigos de obri-
gaes recprocas e outro tipo, valorizado
pela sociedade envolvente, baseado no
desempenho individual, o que facilitao reconhecimento por pessoas de fora,
como assistentes sociais, professores e
estudantes das grandes universidades
norte-americanas e polticos republica-
nos. Estes ltimos opem-se aos polticos
do partido democrata, os quais se mantm
conectados s redes que incluem rapa-
zes de esquina e seus lderes, famlias e
agncias funerrias, sociedades ligadas igreja catlica e, como no poderia deixar
de ser, aos gngsteres.
Conhecemos, ento, a complexa
organizao social de Cornerville atra-
vs de um relato cheio de personagens,
grupos formais e informais, conflitos e
alianas. Mas alm dos j citados, h
um outro personagem que aparece no
livro em diversas posies e s vezes
influenciando as decises tomadas nos
grupos: Bill Whyte. Nesse ponto,
impressionante a forma como o autor
evidencia sua prpria participao na
dinmica social que procura compreen-
der. Aparece jogando boliche, votando
nas reunies de clubes e at fazendo
campanha poltica para um senador.
Afinal de contas, nos diz o autor, assim
como seus informantes, o pesquisador um animal social (p. 283).
Se o livro um clssico dos estudos
urbanos e um valioso trabalho sobre
organizaes, lideranas e as relaes
entre o que mais recentemente vem sen-
do chamado de agncia individual e a
construo social da pessoa, o apndice
A, intitulado Sobre a evoluo de socie-
dade de Esquina, um texto de grande
interesse para todos aqueles que desejam
compreender melhor as questes metodo-
lgicas e ticas envolvidas em qualquer
trabalho de campo antropolgico. O texto
de quase 80 pginas escrito em diversas
etapas, desde a segunda edio do livro
em 1955 at sua derradeira edio em
1993 inclui preciosas consideraes
sobre o histrico da pesquisa, a constru-
o do objeto, a insero do pesquisadorno campo e seus relacionamentos com
os membros dos grupos pesquisados.
Inclui tambm um rarssimo acompanha-
mento da recepo do trabalho entre os
habitantes de Cornerville, das trajetrias
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posteriores de alguns dos principais per-
sonagens do livro e, inclusive, respostas
a crticas feitas obra, j na dcada de
1990, no contexto do que o autor chamade marco ps-fundacional nas cincias
sociais, referindo-se virada crtica ini-
ciada por Clifford Geertz em Works and
Lives e continuada pelos antroplogos
ps-modernos.
A edio traduzida para o portugus
traz uma esclarecedora apresentao
de Gilberto Velho, que discute no s
a atualidade da obra, mas tambm sua
relao com as diferentes abordagens
presentes na Escola de Chicago. Dela
consta tambm o prefcio quarta edio
norte-americana e um apndice, ambos
escritos pelo autor, que so to interes-
santes quanto o prprio texto original.
Insere, finalmente, o surpreendente
depoimento de Angelo Orlandella, um
ex-rapaz de esquina que trabalhou como
assistente de pesquisa e narra as influ-ncias de Sociedade de Esquina em sua
vida profissional.
Sociedade de Esquina , portanto,
uma obra que, apesar de sua idade
avanada, nos chega com a maturidade
de um clssico relido e problematizado
por moradores do North End, cientistas
sociais com diferentes perspectivas
tericometodolgicas e seu prprio
autor. Vem proporcionar-nos uma pers-
pectiva original, interessante tanto em
termos de contribuir para a formao
em cincias sociais e estudos urbanos
quanto para compreender fenmenos
que podem apresentar semelhanas
importantes com aqueles encontrados,
ainda hoje, nas reas pobres e degrada-
das de nossas cidades.