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    jamento entre vivos e mortos. Da sua

    caracterizao como rito de encerramento

    do luto, realizado para promover a reinte-

    grao dos parentes do morto nos padresde sociabilidade normais. Seu foco no

    a posio das geraes atuais diante

    das antecessoras, mas um ciclo maior

    de transformaes (p. 138). A viso dos

    cantores no jawosi anti-histrica e

    transcende, segundo a autora, as posturas

    progressistas e degenerativas.

    Ojawosi para esquecer os mortos,

    disse uma mulher kayabi antroploga.

    No registrei nenhuma informao sobre

    a celebrao dojawosi como rito final do

    luto entre 1981 e 1982. As pessoas obser-

    vavam, nessa poca, que o ritual havia se

    tornado raro com o fim da guerra intertri-

    bal e dos conflitos sistemticos e abertos

    com os brancos. O jawosi era associado

    sempre morte de inimigos e inicia-

    o masculina celebrada em seguida

    participao em episdios homlogos guerra expedies para atrao de

    outros ndios, viagens s cidades.

    Os trs tipos de performance ritual

    oratria dos lderes, cantos domarak

    e cantos do jawosi dizem respeito s

    fronteiras da sociedade kayabi. Eles do

    margem a especulaes cosmolgicas

    diferentes e a posicionamentos diver-

    gentes dos narradores quanto s polticas

    de contato com a sociedade nacional. Ao

    mesmo tempo, produzem efeitos sociais

    imediatos, reintegram indivduos e re-

    foram relaes.

    Merece destaque o comentrio escla-

    recedor dos textos (falados e cantados)

    que leva em considerao as diferentes

    modalidades de discurso, os interlo-

    cutores e os contextos cerimoniais, os

    aspectos gramaticais e os recursos deperformance (tais como o emprego do

    corpo). O artifcio grfico de dispor em

    quatro colunas os textos permite ao lei-

    tor visualizar a alternncia do narrador

    entre falas que se referem ao evento da

    narrao, falas que produzem pontos

    de contato entre narrao e contedo

    narrado, falas que narram eventos e, por

    ltimo, falas dos personagens da narra-o. Alternando-se entre as diferentes

    event frames, o narrador aproxima sua

    audincia das realidades que descreve.

    Assim, os acontecimentos que o paj can-

    ta, por exemplo, tornam-se apreensveis

    pelas pessoas comuns.

    Por ter sido hspede de alguns dos

    protagonistas do livro, tive satisfao

    em rememorar, ao longo da leitura de I

    foresee my life, a proverbial hospitalidade

    dos Kayabi. Independentemente desta

    circunstncia, os leitores interessados em

    etnologia das Terras Baixas da Amrica

    do Sul e anlise de narrativas autobiogr-

    ficas apreciaro o livro por sua clareza e

    sensibilidade.

    Whyte, William Foote. 2005 [1943]. So-ciedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editor. 390pp.

    Cristina Patriota de Moura

    Universidade Estadual de Gois

    Sessenta e dois anos aps a sua primeira

    edio, finalmente publicada em lngua

    portuguesa a exemplar etnografia de

    William Foote Whyte sobre Cornerville

    (North End), uma rea pobre e degra-

    dada de Eastern City (Boston), habitada

    por imigrantes italianos.

    Ao terminar o curso de graduao em

    economia, Whyte recebeu uma bolsa de

    Harvard para fazer a pesquisa que de-

    sejasse, desde que no valesse crditos

    para um doutorado. Passou quase quatro

    anos vivendo no North End, embrenhan-do-se em densas redes de relaes ao

    passo que tambm fazia extensas leituras

    em antropologia e sociologia e reformu-

    lava sua pesquisa, at chegar ao formato

    que lhe permitiu escreverSociedade de

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    Esquina, questionando preceitos com-

    partilhados pelos socilogos urbanos da

    poca, como a noo de desorganizao,

    cara a Louis Wirth, em Chicago.Whyte tinha apenas 22 anos quando

    iniciou seu estudo. Inicialmente incomo-

    dava-o a sensao de desconhecimento

    da populao de uma rea espacialmente

    to prxima de seu circuito como uni-

    versitrio de classe mdia, e procurava

    meios de transformar as reas pobres e

    degradadas. Em Harvard, travou conta-

    tos com Conrad Arensberg, tambm pes-

    quisador jnior que trabalhara com Lloyd

    Warner no estudo de Yankee City. Arens-

    berg e Eliot Chapple vinham desenvol-

    vendo uma teoria da interao social que

    teve grande influncia na formulao da

    metodologia a ser utilizada por Whyte,

    que se diferenciaria de autores como os

    Lynd com seus estudos de comunidade.

    Posteriormente, j com o estudo pronto,

    Whyte ingressa na Universidade deChicago, apresentando Sociedade de

    Esquina como tese de doutorado, sob a

    orientao de Lloyd Warner e com o apoio

    de Everett Hughes. Aps contundentes

    ataques de Wirth, o livro foi aceito como

    tese, desde que o autor elaborasse uma

    reviso da literatura j existente sobre

    reas pobres e degradadas.

    O livro comea opondo a perspectiva

    da classe mdia branca norte-americana,

    da qual Whyte fazia parte, que via todas

    as reas pobres como caticas, e a per-

    cepo dos de dentro, que vem em

    Cornerville um sistema social altamente

    organizado e integrado (p. 21). O autor

    prope, ento, justamente compreender

    essa organizao social existente. Cons-

    tri uma narrativa dinmica, complexa e

    abrangente, permitindo ao leitor acom-panhar com clareza os meandros de uma

    estrutura social formada por diferentes

    padres de interao, atravs dos quais

    indivduos se movimentam e organiza-

    es formais e informais surgem, desapa-

    recem e brotam novamente, em diversos

    nveis da hierarquia social.

    Mas apesar de a construo de Whyte

    apresentar uma impressionante sofisti-cao terico-metodolgica, sem a qual

    seria impossvel chegar ao resultado atin-

    gido, o texto no cita obras nem autores e

    tampouco procura adequar o material de

    campo a modelos abstratos previamente

    elaborados. Nas palavras do autor:

    Nesta pesquisa sobre Cornerville,

    pouco iremos nos preocupar com as

    pessoas em geral. Encontraremos

    pessoas particulares e observa-

    remos as coisas particulares que

    fazem. O padro geral de vida

    importante, mas s pode ser cons-

    trudo por meio da observao dos

    indivduos cujos padres configu-

    ram esse padro (p.23).

    Encontramos diversos personagensao longo do texto, em uma trama de

    aes conjuntas, competies por lide-

    ranas, composio de alianas polticas

    e econmicas, distribuies de bens e

    favores, estabelecimento, manuteno e

    rompimento de laos de amizade. Com-

    pe-se uma Cornerville que passa a fazer

    sentido como organizao social digna

    de respeito e compreenso, mas que tem

    sua prpria lgica, diferente dos padres

    estabelecidos e aceitos pela socieda-

    de norte-americana mais abrangente,

    identificada com a classe mdia anglo-

    sax com origens protestantes. O livro

    um amplo exerccio de relativizao e

    retomada do ponto de vista nativo, se-

    gundo os preceitos malinowskianos nos

    quais o autor diz ter se inspirado.

    O autor descreve quatro tipos de or-ganizao: a gangue de esquina, o clube

    organizado por rapazes formados, a

    organizao mafiosa e a poltica partid-

    ria. Os dois primeiros abrigam os peixes

    midos: os rapazes de esquina, que

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    ocupam a posio mais baixa na hie-

    rarquia social, e os rapazes formados,

    que se encontram em meio a trajetrias

    de ascenso social. J os gngsteres e ospolticos so os peixes grados, ocupam

    o topo da hierarquia local. Mas cada

    tipo identificado por Whyte construdo

    a partir da observao e da descrio de

    trajetrias de indivduos e grupos con-

    cretos com os quais o autor no s entrou

    em contato, mas de fato envolveu-se em

    aes, disputas e projetos conjuntos.

    Acompanhamos a trajetria de Doc e

    seus rapazes de esquina, que formavam a

    gangue dos Norton, e de Chick, que fazia

    parte do Clube da Comunidade Italiana,

    com os interesses divididos entre atuar

    como base de mobilidade social para os

    rapazes formados ou servir ao bem da

    comunidade local. Os Norton acabam

    desintegrando-se e os membros formados

    do Clube da Comunidade Italiana vo se

    distanciando cada vez mais dos rapazese das moas locais, com suas redes de

    obrigaes recprocas que dificultam

    as trajetrias de ascenso individual e

    a entrada em um mundo com valores

    individualistas. Conclui-se que o que

    diferencia Doc de Chick no a maior

    habilidade ou inteligncia de cada um.

    Os dois inserem-se em diferentes padres

    de atividades que envolvem, inclusive,

    diferentes lgicas econmicas e formas de

    gastar dinheiro. Se Chick vive segundo

    uma economia de poupana em que o

    que conta o lucro e a ascenso pesso-

    al, Doc age segundo uma economia de

    consumo, na qual as relaes pessoais e

    a reciprocidade devem falar mais alto. Ao

    chegar a esta concluso, vemos crticas s

    polticas pblicas que instalam centros

    comunitrios com assistentes sociaisexternos que pouco sabem sobre a popu-

    lao local, suas formas de organizao e

    que no estariam tambm procurando se

    adaptar s necessidades e aos padres de

    liderana j existentes.

    Na segunda parte do livro encon-

    tramos os gngsteres e os polticos com

    suas organizaes. Aprendemos que as

    grandes organizaes mafiosas desenvol-veram-se na poca da Lei Seca, como os

    negcios de venda de bebidas. Elas foram

    posteriormente legalizadas ou transfor-

    maram-se em outro tipo de empreen-

    dimento, desta vez lidando com jogos

    ilegais. O jogo de nmeros, diz o autor,

    um negcio como qualquer outro, com ro-

    tina, organizao, eficincia e disciplina.

    H uma estrutura que vai do apostador,

    agentes, passando pelos homens de

    50% que repassam 50% dos ganhos

    ao escritrio at chegar ao escritrio

    ou companhia, controlado pelo grande

    mafioso T. S., um homem de negcios

    discreto e com amplas conexes com a

    polcia e os polticos. A coero fsica

    minimizada, mas j houve pocas em que

    prevalecia o gangster violento, crimino-

    so romntico, pirata.A polcia atua como um amortecedor

    entre duas organizaes sociais distintas

    e com diferentes expectativas. Se a classe

    mdia espera que o policial faa cumprir

    a lei de forma impessoal, em Cornerville

    espera-se que ele se insira em relaes

    pessoais e aja mais como um mediador

    e regulador de atividades ilegais. H

    subornos e trocas de favores entre gngs-

    teres e policiais, mas h tambm relaes

    pessoais significativas que envolvem

    amizade e confiana mtua, principal-

    mente levando em conta que grande

    parte dos policiais cresceu no mesmo

    ambiente e compartilha a viso de mun-

    do local, que distingue entre atividades

    ilegais honestas e outras atividades

    moralmente condenveis, como roubo

    e assassinato, por exemplo. O autor nosapresenta ento um complexo jogo de

    interesses, no qual h diferentes tipos de

    presses exercidas sobre policiais, gngs-

    teres e a populao local, em suas intera-

    es internas e externas. As organizaes

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    mafiosas tambm cumprem importante

    papel como provedoras de empregos, em-

    prstimos e oportunidades de ascenso

    social a indivduos discriminados pelomercado de trabalho formal.

    Para entender as relaes dos gn-

    gsteres com os rapazes de esquina e os

    diferentes tipos de liderana, acompa-

    nhamos os acontecimentos envolvendo

    o estabelecimento e a trajetria do Clube

    Social e Atltico de Cornerville, formado

    inicialmente por duas cliques e contando

    com o patrocnio de Tony Cataldo, dono

    de casas de apostas e de um jogo de

    bingo. Inicialmente, o clube composto

    por duas cliques, cada uma com um lder

    informal um rapaz de esquina e um

    membro da organizao mafiosa. Duran-

    te um perodo de quase dois anos, vemos

    o desenvolvimento das atividades do

    clube, as disputas de poder e a mudana

    da organizao informal, desaparecendo

    as clivagens internas e passando a haverum lder interno, ainda que Tony perma-

    necesse como figura importante. Carlo

    e Tony tinham diferentes tipos de poder.

    Fora do clube, Tony iniciava aes para

    um grande nmero de homens sobre os

    quais Carlo no podia agir (p. 205), mas

    Carlo tinha intimidade com os rapazes de

    esquina e, portanto, maior capacidade de

    iniciar aes no clube.

    Ao longo de todo o livro, Whyte pro-

    cura mostrar ao leitor como os indivduos

    de Cornerville e principalmente os lderes

    de diversos grupos sociais encontram-se

    em posies ambguas, entre um tipo de

    padro de interao baseado em altos

    nveis de sociabilidade e cdigos de obri-

    gaes recprocas e outro tipo, valorizado

    pela sociedade envolvente, baseado no

    desempenho individual, o que facilitao reconhecimento por pessoas de fora,

    como assistentes sociais, professores e

    estudantes das grandes universidades

    norte-americanas e polticos republica-

    nos. Estes ltimos opem-se aos polticos

    do partido democrata, os quais se mantm

    conectados s redes que incluem rapa-

    zes de esquina e seus lderes, famlias e

    agncias funerrias, sociedades ligadas igreja catlica e, como no poderia deixar

    de ser, aos gngsteres.

    Conhecemos, ento, a complexa

    organizao social de Cornerville atra-

    vs de um relato cheio de personagens,

    grupos formais e informais, conflitos e

    alianas. Mas alm dos j citados, h

    um outro personagem que aparece no

    livro em diversas posies e s vezes

    influenciando as decises tomadas nos

    grupos: Bill Whyte. Nesse ponto,

    impressionante a forma como o autor

    evidencia sua prpria participao na

    dinmica social que procura compreen-

    der. Aparece jogando boliche, votando

    nas reunies de clubes e at fazendo

    campanha poltica para um senador.

    Afinal de contas, nos diz o autor, assim

    como seus informantes, o pesquisador um animal social (p. 283).

    Se o livro um clssico dos estudos

    urbanos e um valioso trabalho sobre

    organizaes, lideranas e as relaes

    entre o que mais recentemente vem sen-

    do chamado de agncia individual e a

    construo social da pessoa, o apndice

    A, intitulado Sobre a evoluo de socie-

    dade de Esquina, um texto de grande

    interesse para todos aqueles que desejam

    compreender melhor as questes metodo-

    lgicas e ticas envolvidas em qualquer

    trabalho de campo antropolgico. O texto

    de quase 80 pginas escrito em diversas

    etapas, desde a segunda edio do livro

    em 1955 at sua derradeira edio em

    1993 inclui preciosas consideraes

    sobre o histrico da pesquisa, a constru-

    o do objeto, a insero do pesquisadorno campo e seus relacionamentos com

    os membros dos grupos pesquisados.

    Inclui tambm um rarssimo acompanha-

    mento da recepo do trabalho entre os

    habitantes de Cornerville, das trajetrias

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    posteriores de alguns dos principais per-

    sonagens do livro e, inclusive, respostas

    a crticas feitas obra, j na dcada de

    1990, no contexto do que o autor chamade marco ps-fundacional nas cincias

    sociais, referindo-se virada crtica ini-

    ciada por Clifford Geertz em Works and

    Lives e continuada pelos antroplogos

    ps-modernos.

    A edio traduzida para o portugus

    traz uma esclarecedora apresentao

    de Gilberto Velho, que discute no s

    a atualidade da obra, mas tambm sua

    relao com as diferentes abordagens

    presentes na Escola de Chicago. Dela

    consta tambm o prefcio quarta edio

    norte-americana e um apndice, ambos

    escritos pelo autor, que so to interes-

    santes quanto o prprio texto original.

    Insere, finalmente, o surpreendente

    depoimento de Angelo Orlandella, um

    ex-rapaz de esquina que trabalhou como

    assistente de pesquisa e narra as influ-ncias de Sociedade de Esquina em sua

    vida profissional.

    Sociedade de Esquina , portanto,

    uma obra que, apesar de sua idade

    avanada, nos chega com a maturidade

    de um clssico relido e problematizado

    por moradores do North End, cientistas

    sociais com diferentes perspectivas

    tericometodolgicas e seu prprio

    autor. Vem proporcionar-nos uma pers-

    pectiva original, interessante tanto em

    termos de contribuir para a formao

    em cincias sociais e estudos urbanos

    quanto para compreender fenmenos

    que podem apresentar semelhanas

    importantes com aqueles encontrados,

    ainda hoje, nas reas pobres e degrada-

    das de nossas cidades.