Resenha: Fora de contexto

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227 ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014 Resenhas STRATHERN, Marilyn. [1986]. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. 160 p. Glauco B. Ferreira 1 Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected] O s debates sobre antropologia reflexiva ao longo dos últimos 30 anos têm construído um fértil espaço para a inovação e para criação de novas formas de pensar sobre a teoria antropológica e sobre a maneira como antropólogos constroem suas etnografias. A confe- rência “Fora de contexto” de Marilyn Strathern, proferida em 1986, compondo a versão daquele ano da Frazer Lecture 2 na Universidade de Liverpool, parece ser um dos textos-chave na (re)construção dessa arqueologia contemporânea a respeito de alguns dos textos fundadores que contribuíram com o que veio ser nomeado, desde então, como um tipo de “reflexividade antropológica”. A conferência da autora, proferida num momento crucial da “virada pós-moderna” na antropologia ao longo da década de oitenta, fazia ecoar um série de discussões que “estavam no ar” como ela mes- ma observa, principalmente no contexto disciplinar estadunidense e também britânico. Não é coincidência que autora comente, ao longo do prefácio e de seu texto revisado para a publicação no Brasil 3 , que ela havia tido contato prévio com os manuscritos de antropólogos norte-americanos tais como George Marcus e Paul Rabinow, ficando assim, de certo modo, “inspirada” por muitas das questões elencadas por estes autores em seus textos, e que foram depois amadurecidas ao longo dos debates realizados em Seminário em Santa Fé, contexto através do qual surge a coletânea Writing Culture (1986), reunindo textos já clássicos, que marcaram certa transformação nas discussões sobre a reflexividade em antropologia. DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-8034.2014v16n1p227

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Strathern -resenha do seu texto: Fora de contexto

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    STRATHERN, Marilyn. [1986]. Fora de Contexto: as fices persuasivas da antropologia. So Paulo: Terceiro Nome, 2013. 160 p.

    Glauco B. Ferreira1

    Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]

    Os debates sobre antropologia reflexiva ao longo dos ltimos 30 anos tm construdo um frtil espao para a inovao e para criao de novas formas de pensar sobre a teoria antropolgica e sobre a maneira como antroplogos constroem suas etnografias. A confe-rncia Fora de contexto de Marilyn Strathern, proferida em 1986, compondo a verso daquele ano da Frazer Lecture2 na Universidade de Liverpool, parece ser um dos textos-chave na (re)construo dessa arqueologia contempornea a respeito de alguns dos textos fundadores que contriburam com o que veio ser nomeado, desde ento, como um tipo de reflexividade antropolgica.

    A conferncia da autora, proferida num momento crucial da virada ps-moderna na antropologia ao longo da dcada de oitenta, fazia ecoar um srie de discusses que estavam no ar como ela mes-ma observa, principalmente no contexto disciplinar estadunidense e tambm britnico. No coincidncia que autora comente, ao longo do prefcio e de seu texto revisado para a publicao no Brasil3, que ela havia tido contato prvio com os manuscritos de antroplogos norte-americanos tais como George Marcus e Paul Rabinow, ficando assim, de certo modo, inspirada por muitas das questes elencadas por estes autores em seus textos, e que foram depois amadurecidas ao longo dos debates realizados em Seminrio em Santa F, contexto atravs do qual surge a coletnea Writing Culture (1986), reunindo textos j clssicos, que marcaram certa transformao nas discusses sobre a reflexividade em antropologia.

    DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-8034.2014v16n1p227

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    A conferncia, enfocada em resgatar ao mesmo tempo comparar os mtodos e abordagens tericas e tambm, inevitavelmente, as dife-renas entre Sir James Frazer e Bronislaw Malinowski, est carregada, nas entrelinhas, de outro debate, tal como se fosse uma contenda oculta, sobre as possibilidades de resgate mais atual de certas tcnicas narrativas e de representaes etnogrficas empreendidas por Frazer. Retraando algumas das contribuies de Frazer, a autora chega ao tipo de ressalva velada que se fazia ao antroplogo ento e tambm origem de seu descrdito depois de instalado o novo paradigma antropolgico malinowskiano, isto , de que Frazer abordava ritos, crenas e mitos fora de contexto, sem considerar seriamente suas origens etnogrficas e relacionando contextos sem uma ideia de tota-lidade holstica. Utilizando-se dessa premissa para tomar o trabalho do autor em reviso, Strathern se propem a fazer um tipo de resgate, perguntando-se se o tipo de empreendimento antropolgico desen-volvido por Frazer no poderia ser comparado, em alguma medida, com as experimentaes ps-modernas de escrita e representao antropolgica de ento, no fim dos anos oitenta.

    Notando que os tipos de livros escritos por Frazer e por Mali-nowski eram bastante distintos, construindo tipos de diferentes de escritos antropolgicos, a autora se pergunta se de fato, em comparao com o trabalho narrativo persuasivo malinowskiano de representao (na qual fica marcada a impresso de que o antroplogo esteve l, em campo, e registrou e representou o que viu e viveu com a autoridade que lhe outorga o campo), os trabalhos de Frazer no foram exatamente desmerecidos, depois da ascenso do paradigma dominante provindo do mtodo comparativo de Malinowski, justamente por serem por demais literrios e de certa forma, destacados das narraes mais afixadas experincia vvida do campo etnogrfico. Mas no seria jus-tamente esta uma das principais caractersticas daquela ento nova antropologia reflexiva ps-moderna da dcada de 1980, isto , a de ser, tal como queriam seus autores, algo que se colava no texto e que tinha suas caractersticas literrias destacadas de forma consciente, assumindo-se como representao textual, composta das perspectivas antropolgicas e nativas permutadas atravs de diferentes contextos?

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    Em realidade, ambos os antroplogos, seja Malinowski ou Frazer, construam narrativas que estavam inaugurando formas de narrar e representar e que eram tambm, para autora, forma de estabelecer de-terminados tipos de pblicos leitores. Esses mesmos pblicos poderiam aceitar tais narrativas um tanto por seu tom determinante (no caso de Frazer) ou ento persuasivo (no caso de Malinowski) justamen-te por que ambos os antroplogos conseguiam construir narrativas evocativas e que tinham um senso de localidade, ao mesmo tempo em que se revestiam de legitimidade cientfica, mesmo que, nenhum deles abdicasse, na construo do texto, dos aspectos ficcionais de seus livros, isto , eles no podiam evitar certo grau de fico mesmo que estivessem construindo narrativas cientficas sobre outras pessoas e culturas. O que mudou, da passagem de um paradigma frazeriano para um mais malinowskiano na antropologia (uma revoluo episte-molgica na disciplina no comeo do sculo XX, segundo Strathern) foi justamente a maneira de colocar as coisas em contexto no texto etnogrfico. Malinowski, diferentemente de Frazer, conseguiu instituir um tipo de herana e modelo para seus seguidores e estudantes, no qual o trabalho de campo passou a ser o diferencial para construo de uma narrativa realmente persuasiva, organizando de maneira holstica diversos fragmentos, que princpio estariam fora de contexto na ex-perincia englobante do campo etnogrfico realizado pelo antroplogo. A tradio de descrio etnogrfica de Malinowski (hegemnica entre antroplogos depois de superado o tipo de trabalho realizado por Frazer) buscava situar cada coisa em seu contexto social, encaixando cada elemento, e fazendo com que ganhassem sentido somente na des-crio monogrfica e, em ltima instncia, na experincia significativa do leitor informado ao ler a obra, tornando fatos, crenas e prticas sociais consideradas estranhas ou exticas em entidades palatveis e convincentes, isto , cheias de sentido, mesmo que de entrada estes sentidos no fossem explcitos para quem se dispusesse a ler. Nesse caso, cada coisa estaria colocada em contexto, fazendo sentido para o leitor e para o antroplogo, que mantm distncia tanto do pblico leitor como do contexto e etnogrfico estudado.

    E segundo Strathern, dessa maneira, com um novo tipo de pa-radigma consolidado, anacronicamente, foi possvel desconsiderar

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    (pelo menos no contexto disciplinar a partir do qual ela escreve) os trabalhos pioneiros de Frazer, tratando de classific-los tardiamente como peas um tanto confusas e at mesmo encaixadas narrativa-mente de forma ruim, exatamente por que ali as coisas esto fora de contexto, quase transformando em familiares algumas prticas que pareceriam exticas (no ocidentais) para o seu pblico leitor e ao mesmo tempo, inversamente, transformando prticas comuns (ocidentais) em algo talvez extraordinrio. Mas, para a autora, o que seria possvel naquele momento, no momento ps-moderno sobre o qual ela escrevia nesta sua conferncia de 1986 e inspirada por Frazer, era permitir e voltar a poder jogar com os contextos, algo que Frazer freqentemente realizava em seus livros.

    Com esta anlise a autora no sugere que Frazer fosse de algum modo ps-moderno de forma anacrnica, mas sim que talvez ele tenha construdo em seus textos muito mais do que se propunha ou pensava ento, ao lidar com o exotismo de prticas culturais de manei-ra prxima, lidando com diferentes vozes e contextos, embaralhando informaes e saltando de um contexto ao outro, sem o compromisso de construir representaes holsticas, tentando exprimir idias alheias de culturas, textos e vozes heterogneas. Mas esse embaralhamento no se trataria de uma baguna, mas sim de diferentes fragmen-tos justapostos, carregados, segundo Strathern de certa de ironia, nos exerccios contemporneos. Ao juntar fragmentos desconexos, construindo o que talvez seja, para a autora, um estilo ps-moderno de escrita etnogrfica, que se preocupasse com a representao de representaes, com poderes de persuaso colocados em evidncia, poder-se-ia propiciar uma mudana no jogo das representaes an-tropolgicas sobre os outros, trazendo para o centro do debate a autoconscincia e ressaltando a reflexividade inerente construo dos textos pelos antroplogos.

    O problema de pensar sobre representaes de representaes j era para Strathern algo construdo desde o comeo dos debates pelas pesquisas feministas, no qual discursos aparentemente plurais e hete-rogneos j faziam muito vinha se construindo. O problema modernista colocado de como representar os outros j estava apresentado como

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    tropo s reflexes feministas, que ao lidar com diferentes contextos e comunidades, adicionando a isso as diferentes posicionalidade exis-tentes a partir de deferentes campos disciplinares dos pesquisadores, possibilitaria justamente realizar um saudvel jogo consciente com os estes mesmo contextos ao longo da escrita. Fazendo relao explcita entre o contexto dos estudos acadmicos sobre as questes de gnero e os movimentos sociais feministas na vida real, por assim dizer, estes embaralhamento de contextos j se prestava de uma maneira corriqueira, momento no qual se pode perceber-se enquanto grupo de interesse, isto , como feministas, com diferentes enfoques, mas com propsitos epistemolgicos talvez um pouco semelhantes. No caso dos antroplogos, escreve a autora, nem sempre este tipo de autoconsci-ncia se desenvolve e se apresenta de maneira fcil, surgindo talvez como um problema relativamente novo. Jogar com os contextos de legitimao internos antropologia parece ser problema no campo antropolgico e talvez a distino entre ns e os outros, descritos nos textos etnogrficos, possa ser a origem desta dificuldade. Mas, nota Strathern, a ideia de que possa existir uma aldeia global, como uma possvel fico antropolgica interessante, onde todos so infini-tamente diferentes, mas inevitavelmente um tanto quanto iguais, em polifonia multivocalidade contnuas, parecem ser ideias que ecoam um pouco do exerccio antropolgicos composto por Frazer em seus livros, colocando coisas, prticas e pessoas fora de contexto, embaralhando todos esses itens e criando um mundo onde todos os contextos parecem ser iguais. Mas de qualquer forma, para haver comunicao necessrio que mesmo lidando com contextos embaralhados, os antroplogos continuem recorrendo aos contextos a partir dos quais escrevem.

    Strathern nota ainda que mesmo com o novo tom e o debate sobre a autoconscincia antropolgica, no se poderia deixar de notar que inevitavelmente a relao entre antroplogos, escrita e pblico leitor se modificaram no fim do sculo XX, justamente por que as pessoas sobre as quais os antroplogos classicamente escreviam se tornaram tambm parte deste mesmo pblico e eles mesmo, em alguns casos, so hoje antroplogos e nativos. Assim, de qualquer forma, a per-gunta que se coloca ainda hoje e naquele momento em que Strathern

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    escrevia era perguntar-nos para quem os antroplogos escrevem e como poderamos pensar na recepo destes textos numa conjuntura pluralizada e multicontextual. Poderia perguntar tambm de que maneira se constroem as fices persuasivas antropolgicas de hoje, questionando igualmente as estratgias literrias de ficcionalizao destes textos, em diferentes pocas, seja contemporaneamente ou nas pocas em que escreveram Malinowski e Frazer.

    O jogo de contextos parece ser assim algo interessante nas propostas de Strathern, justamente por que se presta a ser uma das primeiras tentativas da autora em construir uma elaborao, depois mais aprofundada em seu livro Partial Connections (1991), em cons-truir um tipo de narrativa antropolgica persuasiva e que lide com o contexto etnogrfico, sem ter que necessariamente criar um todo plenamente holstico e encaixado em todas as suas partes atravs do texto. Assim colocar coisas fora de contexto parece se um excelente exerccio na construo de textos etnogrficos, justamente por per-mitir certa liberalidade a quem escreve, mitigando a necessidade de minimizar os conflitos internos de determinado campo em questo em nome da homogeneidade de determinado grupo ou regio em estudo, colocando a autoconscincia e posicionalidade do autor em questo de forma bastante evidente, que torna-se assim tambm uma das questes a serem abordadas ao longo escrita, isto , entrecruzada ou mesmo permeada ao longo das descries etnogrficas. Assim, a descrio busca de algum modo, ainda assim, refazer uma totalida-de, pois neste empreendimento descrever produto das conexes parciais estabelecidas entre partes que, por sua natureza fractal, no podem engendrar um encaixe perfeito; ainda assim, abrir mo da ideia de totalidade no significaria optar pela fragmentao, mas sim considerar a relevncia de se refazer um todo, que se caracterizaria pela sua no coeso (Mizrahi, 2010, p. 15). interessante notar como alguns trabalhos etnogrficos realizados no Brasil tal com o trabalho de tese de Mylene Mizrahi sobre a esttica do funk carioca (2010) as possibilidade alternativas de construo de narrativas j vem sendo exploradas, de modo a produzir o que Strathern caracteriza como um tipo de experimento textual um tanto quanto quebradio (a autora se

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    utiliza, em Partial Connections, da imagem de uma loua quebrada que recomposta atravs de seus cacos imagem esta tomada de emprstimo ao matemtico James Gleick algo que poderia ser talvez realizado de forma semelhante ao construirmos textos etnogrficos), propondo enxergar a criao do texto como maneira de construir narraes um tanto quanto fora de contexto, que abram mo da ideia de totalidade holstica, mas que ao mesmo tempo, considere a importncia construir um todo, ainda que este todo seja de um tipo no coeso.

    Notas

    1 Doutorando em Antropologia Social no Programa de Ps-Graduao em Antropo-logia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC).

    2 A Frazer Lecture faz parte do calendrio acadmico antropolgico britnico e se desloca entre diferentes universidades, ocorrendo anualmente em diferentes campi e contando com conferncias de diferentes antroplogos.

    3 A edio brasileira faz parte da coleo Antropologia hoje da editora Terceiro Nome, numa parceria com o Ncleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP. A traduo para esta edio ficou a cargo de Tatiana Lotierzo e Luis Felipe Kojima Hirano.

    Referncias

    CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (Ed.). Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley, CA: University of California Press, 1986.

    MIZRAHI, Mylene. A esttica Funk carioca: criao e conectividade em Mr. Catra. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais. Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, 2010.

    STRATHERN, Marilyn. Partial connections. Walnut Creek, CA: Altamira Press; Rowman & Littlefield Publishers, 2004 [1991].

    Recebido em 21/11/2013Aceito em 01/04/2014