REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS - FGV DIREITO RIO · no direito administrativo brasileiro?...

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GRADUAÇÃO 2014.1 REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS AUTOR: SÉRGIO GUERRA COLABORAÇÃO: BERNARDO BARBOSA

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GRADUAÇÃO2014.1

REGULAÇÃO ESERVIÇOS PÚBLICOS

AUTOR: SÉRGIO GUERRA

C OLABORAÇÃO: BERNARDO BARBOSA

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SumárioRegulação e Serviços Públicos

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 3

UNIDADE I: REFORMA DO ESTADO E REGULAÇÃO ....................................................................................................... 12Aula 1 .......................................................................................................................................... 12Aula 2 .......................................................................................................................................... 18Aulas 3 e 4: .................................................................................................................................. 34

UNIDADE II: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPS). CONSÓRCIOS PÚBLICOS. ............... 45Aulas 5 e 6: .................................................................................................................................. 45Aulas 7 e 8 ................................................................................................................................... 56Aula 9 .......................................................................................................................................... 77Aula 10 ........................................................................................................................................ 88Aula 11 ........................................................................................................................................ 96

UNIDADE III — REGIME JURÍDICO DAS ATIVIDADES MONOPOLIZADAS PELO ESTADO ....................................................... 101Aula 12 ...................................................................................................................................... 101

UNIDADE IV. AGÊNCIAS REGULADORAS ................................................................................................................ 110Aula 13 ...................................................................................................................................... 110Aulas 14 e 15 ............................................................................................................................. 120Aula 16 ...................................................................................................................................... 133

UNIDADE V: PROCESSO ADMINISTRATIVO ............................................................................................................. 139Aula 17 ...................................................................................................................................... 139

UNIDADE VI: CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ............................................................................................. 147Aula 18 ...................................................................................................................................... 147Aula 19 ...................................................................................................................................... 153Aula 20 ...................................................................................................................................... 158

UNIDADE VII — RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ............................................................................................ 165Aula 21 ...................................................................................................................................... 165

UNIDADE VIII: AGENTES ESTATAIS ....................................................................................................................... 171Aulas 22 e 23 ............................................................................................................................. 171Aula 24 ...................................................................................................................................... 184

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1 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e

refl exividade: uma nova teoria sobre as

escolhas administrativas. Belo Horizon-

te: Fórum, 2008.

2 Sobre a releitura da supremacia do

interesse público sobre o privado,

destacamos, para aqueles que dese-

jam uma introdução sobre o assunto,

a obra de MEDAUAR, Odete. O direito

administrativo em evolução.2ª ed.

São Paulo: RT, 2003 p. 185 e ss., e, em

maior profundidade, os diversos arti-

gos que compõem a coletiva intitulada:

Interesses públicos versus interesses

privados: desconstruindo o princípio

da supremacia do interesse público.

Daniel Sarmento (Org.). Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2005; o artigo de ÁVILA,

Humberto. Repensando o “princípio da

supremacia do interesse público sobre

o particular”. In: SARLET (Org.). O direito

público em tempos de crise: estudos em

homenagem a Ruy Ruben Ruschel.

Porto Alegre: Livraria do Advogado,

1999. p. 99-127; o artigo de OSÓRIO,

Fábio Medina. Existe uma supremacia

do interesse público sobre o privado

no direito administrativo brasileiro?

Revista de Direito Administrativo, v. 220,

2000, p. 69-107.

3 CASSESE, Sabino. La globalización jurí-

dica. Madri: Marcial Pons, 2006, p. 181.

4 Nesse sentido, consulte-se a obra DU-

GUIT, Léon. Les transformations du droit

public. Paris  : Éditions La Memoire du

Droit, 1999.

5 Expressão utilizada por Sérgio Bu-

arque de Holanda para se referir aos

movimentos “aparentemente reforma-

dores” ocorridos no Brasil, conduzidos

pelos grupos dominantes. Na obra

clássica HOLANDA, Sérgio. Raízes do

Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006, p. 160.

INTRODUÇÃO

O direito administrativo brasileiro foi muito infl uenciado pelo direito ad-ministrativo francês.

Na sua origem, era considerado um mero conjunto de condições necessá-rias à conformação da estrutura burocrática do Governo às regras criadas pelo Poder Legislativo. Isto é, pensava-se o direito administrativo como sendo a disciplina voltada apenas à organização da máquina administrativa do Esta-do, com características de unidade, centralização e uniformidade, em posição privilegiada em relação ao cidadão e direcionada à manutenção do funciona-mento dos serviços públicos.1

A inquestionável superioridade do interesse público sobre o privado2 foi conjugada com a supremacia da administração, o princípio da legalidade e a função discricionária.3 Daí adveio o regime administrativo diferenciado, compreendendo as prerrogativas da Administração Pública: poder de polícia e radical desigualdade, unilateral e singular, tais como espécies diferentes de propriedade, contratos e responsabilidade (diversas, portanto, do direito pri-vado), submetidas as causas desta matéria, inclusive, a um tribunal próprio no caso francês.

Um passo importante para a evolução do direito administrativo ocorreu no início do século passado, com León Duguit, ao doutrinar acerca das trans-formações do direito público.4 Nessa obra, destacando a passagem, no direito administrativo, da puissance public para o service public, Duguit advertia que, com o desaparecimento do sistema imperialista, a noção de serviço público substituiu a de soberania e mudou a concepção de lei, ato administrativo, justiça administrativa e responsabilidade estatal.

Na modernidade, a concepção de direito administrativo no Brasil, seguin-do os infl uxos do direito administrativo francês, estava totalmente conforme a uma atuação executiva estatal hierarquizada e suportada por decisões de “cima para baixo”,5 à luz da teoria clássica da separação de poderes. Esse fato era justifi cado pelo modelo de Estado social, com forte intervenção executiva estatal direta nas atividades econômicas.

O direito administrativo está mudando (está em mutação). O direito ad-ministrativo de que a sociedade atual necessita não se pode caracterizar como a mesma disciplina do século XIX e da primeira metade do século XX. Deve acompanhar as características e os riscos por que passa a sociedade contempo-rânea globalizada, que, por isso, clama por uma releitura de categorias, fórmu-las e institutos desse ramo do direito público, cunhados há mais de um século.

A globalização forçou com que a sociedade repensasse a função, a estrutura e o custo dos Estados, especialmente à luz dos princípios da subsidiariedade e da efi ciência. [...] Essa transição balança alicerces de

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6 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direi-

to Administrativo Regulatório. Rio de

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, pp.

1, 2 e 16.

7 BRASIL (Constituição de 1988). Art.

174. Como agente normativo e regula-

dor da atividade econômica, o Estado

exercerá, na forma da lei, as funções de

fi scalização, incentivo e planejamento,

sendo este determinante para o setor

público e indicativo para o setor privado.

8 Por exemplo: é sabido que nas princi-

pais questões submetidas à regulação

estatal as normas têm linhas mestras

da política econômica e social, fazendo

com que seja necessária uma liberdade

ao administrador público na hora de

executar os comandos gerais da norma,

dependendo: (i) dos dados empíricos

decorrentes das técnicas disponíveis e

testadas; (ii) da circunstância fática em

que a norma está sendo aplicada, e; (iii)

dos impactos prospectivos multilaterais

decorrentes do ato. Estaremos diante,

portanto, de questões que transcen-

dem a vinculação do administrador

público ao princípio da legalidade.

há muito solidifi cados no Direito Administrativo e que, por isso, preci-sam ser revistos para acompanhar a evolução dos fatos nos planos eco-nômico e social, proporcionando um necessário e seguro travejamento jurídico para as novas relações que se produzem no campo em expansão do público não estatal. [...] A globalização da economia tem ampliado as fronteiras comerciais entre os países gerando blocos econômicos e acordos internacionais que colocam a Administração Pública, direta e indireta, cada vez mais em contato com outros países, organismos in-ternacionais — especialmente os de fomento — e cidadãos que adqui-rem liberdade de circulação e de ofício, com igualdade de tratamento, forçando, com isso, o aparecimento de novo aspecto no estudo do Di-reito Administrativo.6

A atividade administrativa, mais do que instrumento de defi nição auto-ritária do direito aplicável vai, aos poucos, tornando-se um mecanismo de composição de interesses públicos e privados, que se manifestam no pro-cedimento, e que os órgãos de decisão devem regular de maneira a tomar a decisão mais adequada e que melhor salvaguarde os direitos subjetivos e os interesses em presença.

Nesse diapasão, desponta uma questão de capital importância estudada nas aulas de direito administrativo concernente à confi guração da regulação estatal nas relações contemporâneas entre a Administração Pública descentra-lizada e o agente regulado que recebe a delegação dos serviços públicos. Essa forma de intervenção estatal (regulação) deve atender ao interesse público, sem, contudo, deixar de sopesar os efeitos e os impactos dessas decisões no subsistema regulado com os interesses de segmentos específi cos da sociedade e, até mesmo, com o interesse individual no caso concreto. De certa forma, esse aspecto é uma novidade no estudo do Direito Administrativo.

Nesse campo de questões, as atribuições estatais, no contemporâneo Esta-do Regulador — confi rmado, entre nós, com a promulgação da Carta de 19887 — deve atentar para a justiça material no caso real, impossível de ser previsível e positivada, na maioria das vezes, pelo Poder Legislativo. O direito administrativo se estruturou, no passado, no princípio da legalidade e, hoje, veremos que a legalidade não é sufi ciente para desvendar todos os desafi os postos aos seus estudiosos.8

Assim, faz parte do objetivo dessa disciplina chamar ao debate jurídico essa nova fase por que passa o estudo do direito administrativo, como, por exem-plo, a forma de compatibilização dos instrumentos de regulação de serviços públicos dentro das premissas decorrentes do Estado Democrático de Direito.

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A. OBJETO GERAL DA DISCIPLINA

Constitui objeto geral da disciplina Regulação e Serviços Públicos discu-tir as funções desempenhadas pelo Estado no âmbito da Ordem Econômi-ca, com ênfase na regulação estatal e na disciplina dos serviços públicos. Os alunos também serão capacitados em temas como processo administrativo, responsabilidade civil do Estado e regime jurídico dos agentes estatais.

B. FINALIDADES DO PROCESSO ENSINO-APRENDIZADO

No curso Regulação e Serviços Públicos, a cada encontro serão discutidos um ou mais casos geradores construídos, na maioria das vezes, a partir de situações que foram objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a fi m de familiarizar o aluno com questões discutidas no dia a dia forense e despertar o seu senso crítico com relação às posições adotadas pelos Tribunais.

A fi nalidade do processo de ensino-aprendizado deste curso é problemati-zar a complexidade dos temas enfrentados pelos administradores públicos e pelos administrados, com ênfase na pluralidade de correntes sobre os assun-tos abordados e na análise da jurisprudência.

C. MÉTODO PARTICIPATIVO

A metodologia do curso é eminentemente participativa, requerendo in-tensa interação dos alunos nos debates em sala e preparo prévio para as aulas, mediante a leitura das indicações bibliográfi cas obrigatórias e, sempre que possível, das leituras complementares.

D. DESAFIOS E DIFICULDADES DO CURSO

O Curso exigirá do aluno uma visão refl exiva do Direito Administrativo e capacidade de relacionar a teoria exposta na bibliografi a e na sala de aula com outras disciplinas, especialmente o Direito Constitucional. O principal desafi o consiste em construir uma visão contemporânea e pós-moderna do Direito Administrativo, centrado nos direitos dos cidadãos, buscando sempre cotejar o conteúdo da disciplina com a realidade do País.

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E. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

A avaliação será composta por duas provas de igual peso. A nota fi nal será composta pela média aritmética entre as duas notas obtidas pelo aluno, notas por conceito e eventuais atividades complementares que venham a ser opor-tunamente solicitadas aos alunos.

F. ATIVIDADES PREVISTAS

Além dos debates em sala de aula decorrentes dos casos geradores e das leituras prévias, que são essenciais a que as discussões possam ocorrer de for-ma qualifi cada, o curso possui um blog que pode ser acessado em http://direitoadministrativofgvrio.wordpress.com/blog/. Os alunos são estimulados a contribuir para as discussões do blog ao longo do semestre.

G. CONTEÚDO DA DISCIPLINA

A disciplina Regulação e Serviços Públicos discutirá as funções desempe-nhadas pelo Estado no âmbito da Ordem Econômica, com ênfase na regula-ção estatal e na disciplina dos serviços públicos.

Como decorrência necessária à compreensão dos limites da atuação da Administração Pública na Ordem Econômica, será apresentado o rol de con-troles a que se sujeitam os atos da Administração Pública. O programa abran-ge ainda a responsabilidade civil do Estado por atos e omissões da Adminis-tração Pública, bem como o estatuto jurídico do agente estatal.

Em síntese, o curso será composto pelas seguintes unidades:

Unidade I: Reforma do Estado e regulação.Unidade II: Concessão de serviços públicos e Parcerias Público-Privadas.

Consórcios públicos.Unidade III: Regime jurídico das atividades monopolizadas pelo Estado.Unidade IV: Agências reguladoras.Unidade V: Processo administrativo.Unidade VI: Controle dos atos administrativos.Unidade VII: Responsabilidade civil do Estado.Unidade VIII: Agentes estatais.

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PLANO DE ENSINO

Apresentamos abaixo quadro que sintetiza o Plano de Ensino da discipli-na, contendo a ementa do curso, sua divisão por unidades e os objetivos de aprendizado almejados com a matéria.

DISCIPLINA:

Regulação e serviços públicos

PROFESSORES:

Sergio Guerra e Patrícia Sampaio

NATUREZA DA DISCIPLINA:

Obrigatória

CÓDIGO:

CARGA HORÁRIA:

60 horas

EMENTA

Reforma do Estado e regulação. Serviços públicos, monopólios estatais e atividades privadas regulamentadas: distinção. Concessão de serviços públi-cos e Parcerias Público-Privadas. Consórcios públicos. Regime jurídico das atividades monopolizadas pelo Estado. Agências reguladoras. Processo ad-ministrativo. Controle dos atos administrativos. Responsabilidade civil do Estado. Agentes estatais.

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OBJETIVOS

Discutir as funções desempenhadas pelo Estado no âmbito da Ordem Econômica, com ênfase na regulação estatal e na disciplina dos serviços pú-blicos. Os alunos também serão capacitados em temas como processo ad-ministrativo, responsabilidade civil do Estado e regime jurídico dos agentes estatais.

METODOLOGIA

A metodologia de ensino é participativa, com ênfase em estudos de casos. Para esse fi m, a leitura prévia obrigatória, por parte dos alunos, mostra-se fundamental.

PROGRAMA

Introdução— Apresentação do Plano de Ensino e visão geral da disciplina

Unidade I: Reforma do Estado e regulação.— Apresentação do Plano de Reforma do Estado e suas consequências

para a reordenação da participação do Estado na atividade econômica. Dis-tinção entre serviços públicos, atividades econômicas monopolizadas e ativi-dades privadas regulamentadas.

— Problematização do conceito de serviço público.— Análise da divisão constitucional de competências em matéria de servi-

ços públicos e consequências práticas sobre a sua normatização e fi scalização.

Unidade II: Concessão de serviços públicos e Parcerias Público-Priva-das. Consórcios públicos.

— Apresentação do instituto da concessão de serviço público: caracte-rísticas do contrato, exigências para sua celebração válida. Discussão acerca do conteúdo do princípio do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão. Análise de temas polêmicos referentes à política tarifária. Discussão acerca dos direitos dos usuários do serviço público e a incidência do Código de Defesa do Consumidor sobre a relação concessionária — usuário. Estudo das possibilidades de extinção das concessões de serviços públicos.

— Apresentação do instituto das Parcerias Público-Privadas e suas espé-cies, distinguindo-as das concessões comuns. Análise dos requisitos para sua

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celebração válida e das garantias que podem ser ofertadas pelo parceiro pú-blico ao privado.

— Análise do instituto dos consórcios públicos: em que consistem; como são constituídos; direitos e deveres dos consorciados; extinção.

Unidade III: Regime jurídico das atividades monopolizadas pelo Estado.— Será comentado breve histórico acerca da normatização da atividade de

exploração e produção de petróleo e gás natural no país.— Apresentação dos setores que constituem atividades econômicas mo-

nopolizadas de acordo com a Constituição Federal.— Discussão das modifi cações introduzidas na regulação dos monopólios

estatais pela Emenda Constitucional 09/95 e o modelo de concessão da Lei 9.478/97.

— Apresentação do modelo de partilha de produção.

Unidade IV: Agências reguladoras.— Problematização da origem das agências reguladoras no Brasil e no

direito comparado.— Discussão acerca das principais características que fazem das agências

reguladoras autarquias em regime especial: decisão colegiada, mandato fi xo dos dirigentes, discussão acerca do cabimento de recurso hierárquico impró-prio.

— Apresentação das funções regulatórias, com ênfase sobre o tema da regulação normativa.

Unidade V: Processo administrativo.— Apresentação dos princípios informadores do processo administrativo,

destacando a ênfase dos preceitos garantidores dos direitos dos administra-dos.

— Comentários das principais previsões da Lei 9784/99.— Discussão das principais características do Processo administrativo san-

cionador e sua aproximação ao direito penal.

Unidade VI: Controle dos atos administrativos.— Discussão dos plúrimos controles a que se encontram sujeitos os atos

praticados pela Administração Pública, com ênfase no controle pelo Poder Legislativo, pelos Tribunais de Contas, pelo Poder Judiciário e pela Sociedade Civil.

— Análise da ação de improbidade administrativa e as possíveis sanções decorrentes de uma condenação.

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Unidade VII: Responsabilidade civil do Estado.— Diferenciação entre responsabilidade civil do Estado e responsabilida-

de civil do servidor— Diferenciação entre os casos de responsabilidade por ato comissivo e

por ato omissivo do Estado. Análise das hipóteses de exclusão da responsabi-lidade civil do Estado.

Unidade VIII: Agentes estatais.— Diferenciação dos regimes estatutário e celetista. Apresentação das ga-

rantias e vedações do servidor público.— Apresentação das hipóteses de responsabilidade funcional do servidor

público, com diferenciação entre responsabilidade civil, penal e funcional. Comentários acerca da sindicância e do processo administrativo disciplinar.

— Análise da Lei de Improbidade Administrativa e suas consequências.— Breves comentários à Lei de repressão ao abuso de autoridade (Lei

4898/65).

CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

A avaliação será composta por duas provas, sendo uma no meio e outra ao fi nal do semestre. Eventualmente, as provas poderão ser conjugadas com trabalhos, aos quais poderá ser atribuída pontuação parcial sobre a nota da prova.

BIBLIOGRAFIA OBRIGATÓRIA

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Ja-neiro: Forense, 2012.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Curso de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.

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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

GUERRA, Sergio. Agências reguladoras: da Administração Pública piramidal à governança em rede. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

_______. O controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen Iu-ris, 2005.

JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialé-tica, 1997.

RIBEIRO, Mauricio Portugal; PRADO, Lucas Navarro. Comentários à lei de PPP: parceria público-privada: fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007.

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9 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-

moderno. Tradução de Marçal Justen

Filho. Belo Horizonte: Editora Fórum,

2009. p. 16.

10 Post-modern condition. Minneapolis:

University of Minnesota Press, 1985.

11 Eros Roberto Grau entende que estão

inseridos nas atividades econômicas

em sentido amplo (gênero) tanto os

serviços públicos (espécie) quanto as

atividades econômicas em sentido

estrito (espécie). GRAU. A ordem econô-

mica..., p. 138 et seq. Em sentido con-

trário, manifesta-se Odete Medauar:

“A nosso ver, não parece adequado ao

ordenamento brasileiro considerar o

serviço público como atividade econô-

mica. De um lado, tem-se o art. 175,

que, de modo claro atribui o serviço

público ao poder público, podendo ser

realizado pelo setor privado mediante

concessão ou permissão. Vê-se que a

Constituição Federal fi xou um vínculo

de presença do poder público na ativi-

dade qualifi cada como serviço público,

presença esta que pode ser forte ou

fraca, mas que não pode ser abolida.

Esta presença se expressa na escolha

do modo de realização da atividade, na

sua destinação ou atendimento de ne-

cessidades da coletividade.” MEDAUAR.

Segurança jurídica e confi ança legíti-

ma. In: ÁVILA (Coord.). Fundamentos

do estado de direito: estudos em home-

nagem ao professor Almiro do Couto e

Silva, p. 125.

UNIDADE I: REFORMA DO ESTADO E REGULAÇÃO

AULA 1

I. TEMA

Reforma do Estado e regulação.

II. ASSUNTO

Regulação estatal das atividades econômicas.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

O objetivo desta aula consiste em compreender o contexto de reforma do Estado vivenciada nos anos 90.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

O presente curso insere-se no contexto da crescente complexidade da so-ciedade contemporânea e fortalecimento da democracia. Segundo Jacques Chevallier, as transformações que os Estados conhecem atualmente não po-dem ser consideradas um fenômeno isolado: elas remetem a uma crise mais genérica das instituições e dos valores da modernidade nas sociedades ociden-tais; e essa crise parece dever conduzir a uma construção de um novo modelo de organização social.9

O termo “pós-modernidade”, popularizado por Jean-François Lyotard,10 indica novas concepções surgidas a partir da segunda grande guerra mundial, incrementadas nas décadas de oitenta e noventa do século XX. Nesta fase, adote-se ou não essa terminologia, vive-se sob um modelo de Estado em que o jusnaturalismo liberal e a intervenção social cedem lugar à interferência estatal nas atividades econômicas privadas (em sentido amplo e restrito)11 e setores sensíveis à sociedade sob confi guração de escolha regulatória. Busca-se uma atuação efi ciente e com foco no bem estar social mediante ponderação nos confl itos distributivos, à luz de princípios — não apenas regras — que trabalham com categorias econômicas.

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12 JUSTEN FILHO. Curso de direito ad-

ministrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

2006, p. 18.

13 Conforme advertência de Sabino

Cassese, a regulação existe quando a

classe política se libera de uma parte de

seus poderes a favor de entidades não

eleitas pelo povo, que são capazes de

bloquear as decisões das eleitas. Para

que essa condição ocorra, não basta a

separação entre regulador e operador.

É preciso, também, a separação entre

regulador e governo, cujo fi m é evitar

a politização das decisões. Ele permite

distinguir toda forma de intervenção

ou controle desenvolvida sob a direção

do governo da regulação em sentido

estrito. La globalización jurídica. Trad.

Luis Ortega, Isaac Martín Delgado e

Isabel Gallego Córceles. Madrid: Marcial

Pons, 2006, p. 151. Nas palavras de

Egon Bockmann Moreira, o fenômeno

da concentração sem centralização faz

com que o poder estatal seja fragmen-

tado numa rede de autoridades inde-

pendentes, detentoras de competên-

cias autônomas, com o poder central

apenas estabelecendo a política geral

de todos os setores e as metas a serem

atingidas. MOREIRA, Egon Bockmann.

Agências reguladoras independentes,

défi cit democrático e a “elaboração

processual de normas”. In: Estudos de

direito econômico. Belo Horizonte: Ed.

Fórum, 2004, p. 172.

14 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Agên-

cias reguladoras: a “metamorfose” do

Estado e da democracia (uma refl exão

de direito constitucional e comparado).

In: Direito da regulação. Revista de

Direito da Associação dos Procuradores

do Novo Estado do Rio de Janeiro. v. IX.

Alexandre Santos de Aragão (org.) Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 90.

Um dos principais traços dessa fase por que passa a sociedade está no fato de que a atuação estatal em um determinado aspecto do conjunto social ten-de a produzir refl exos em outro segmento e afetar o direito individual. Nesse período, o problema básico de qualquer Constituição política contemporâ-nea não pode mais ser captado em toda sua extensão por aquela fórmula clás-sica em que se tinha um problema de delimitação do poder estatal em face do cidadão individualmente considerado. Hoje se demanda um disciplinamento da atividade política e econômica, permitindo a satisfação do interesse cole-tivo que as anima, compatibilizando-o com interesses de natureza individual e pública com base em um princípio de proporcionalidade.

O Quadro abaixo apresenta a evolução do Estado moderno até a denomi-nada pós-modernidade:

Com as premissas da pós-modernidade e que acabaram por impor fortes mudanças na condução da Ordem Econômica em diversos países, notada-mente na Europa durante a década de 80, o modelo de Estado Regulador foi confi rmado no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nesse novo sistema, dito neoliberal, o modelo liberal e o intervencionismo social cedem lugar à intervenção estatal na ordem econômica social, impon-do-se que “novas necessidades sejam identifi cadas e expostas, especialmente para que o Estado neutralize os excessos e se valha de seu poder como instru-mento de controle da atuação privada”.12

Diante desse contexto, e sob o aspecto orgânico, a Administração Pública direta, considerando a premente necessidade de atrair investimentos — so-bretudo estrangeiros — decidiu abrir mão da função de regular diretamente os subsistemas privatizados de telecomunicações, energia elétrica, transportes etc., conferindo essa função a entidades reguladoras independentes. 13

O modelo regulatório decorre do fenômeno de “mutação constitucio-nal”14, desencadeado pelas alterações estruturais por que passou a sociedade e

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15 Autoridades reguladoras independen-

tes. Coimbra: Coimbra Editores, 2003,

p. 10.

16 Conrado Hübner Mendes aduz que:

“as empresas que saem do domínio es-

tatal e passam a fazer parte do domínio

privado não podem estar submetidas,

exclusivamente, às livres decisões de

seus administradores, motivadas uni-

camente pelas contingências econômi-

cas. Devem, sim, estar em consonância

com interesses que transcendem os

meramente capitalistas. Por esse mo-

tivo, ao retirar da máquina estatal tais

empresas, nasce a necessidade de regu-

lá-las intensamente.” MENDES, Conrado

Hübner. Reforma do Estado e agências

reguladoras. In: Direito administrativo

econômico. Carlos Ari Sundfeld (coord.).

São Paulo: Malheiros, 2000, p. 108.

17 CHEVALLIER. O Estado pós-moderno,

p. 73.

18 SOUTO, Marcos Juruena Villela. De-

sestatização: privatização, concessões,

terceirizações e regulação. 4. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 441.

19 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. Rio de Janei-

ro: Ed. Forense, 2002, p. 68.

20 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo.

Pensando o controle da atividade regu-

lação estatal. In: SÉRGIO GUERRA (Co-

ord.). Temas de direito regulatório. Rio

de Janeiro: Freitas Bastos, 2005, p. 202.

que esse acontecimento teve como conseqüência, no plano das instituições políticas, o surgimento do imperativo de mudança nas formas de exercício das funções estatais clássicas. O fenômeno da regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa do que uma espécie de corretivo indis-pensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e às deformações do regime capitalista e, de outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por esse mesmo capitalismo.

Diante desses fatos, quais devem ser os objetivos dessa função regulatória descentralizada, adotada em diversos países, inclusive no Brasil? Vital Morei-ra e Fernanda Maças15 advertem serem várias as razões para a adoção do mo-delo de regulação estatal por entidades independentes, ao invés da regulação direta pelo Poder Executivo. Uma dessas razões está atrelada ao novo sentido de regulação administrativa.Com efeito, no modelo intervencionista havia uma confusão entre intervenção direta estatal na atividade econômica e as tarefas regulatórias e, em várias situações, a função regulatória competia ao próprio operador público, muitas vezes sob a fi gura do monopólio. Com o aparecimento de novos operadores privados na execução de atividades econô-micas e serviços públicos, entendeu-se que deveria haver uma separação das funções de regulação e as funções de participação pública na própria ativida-de regulada.16

Para Jacques Chevallier, a regulação se distingue dos modos clássicos de in-tervenção do Estado na economia, pois consiste em supervisionar o jogo eco-nômico, estabelecendo certas regras e intervindo de maneira permanente para amortecer as tensões, compor os confl itos e assegurar a manutenção de um equilíbrio do conjunto. Ou seja, por meio da regulação o Estado não se põe mais como ator, mas como árbitro do processo econômico, limitando-se a en-quadrar a atuação dos operadores e se esforçando para harmonizar suas ações.17

Marcos Juruena Villela Souto18 leciona que um processo de regulação im-plica, tipicamente, em várias fases, em que se destacam a formulação das orientações da regulação, a defi nição e operacionalização das regras, a imple-mentação e aplicação das regras, o controle da aplicação das regras, a sanção dos transgressores e a decisão nos recursos. Paralela e simultaneamente aos desafi os colocados pela globalização, o Estado atual sofre a crise do fi nancia-mento das suas múltiplas funções. Diante dessa crise há inevitabilidade da retração do Estado frente às necessidades sociais, ou, alternativamente, ado-tam-se novas estratégias de atuação compatíveis com a escassez de recursos.19

Nesse contexto, Floriano Azevedo Marques Neto20 anota: “A atividade re-gulatória é espécie do gênero atividade administrativa. Mas trata-se de uma espécie bastante peculiar. Como já pude afi rmar em outra oportunidade, é na moderna atividade regulatória estatal que melhor se manifesta o novo paradigma de direito administrativo, de caráter menos autoritário e mais consensual,

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21 Sabino Cassese chega a afi rmar que

as entidades reguladoras independen-

tes “não devem ponderar o interesse

público a elas confi ado com outros

interesses públicos secundários, como

sucede em outros órgãos públicos que

formam parte do Estado, começando,

sobretudo, pelo governo.”. La globaliza-

ción..., p. 151.

22 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo.

A nova regulação dos serviços públicos.

Revista de direito administrativo, Rio de

Janeiro, v. 228, p. 13-29, abr./jun.2002.

Denominando esse modelo como Esta-

do subsidiário, José Alfredo de Oliveira

Baracho denota que perseguindo os

seus fi ns, harmoniza a liberdade auto-

nômica com a ordem social justa, com

a fi nalidade de manter o desenvolvi-

mento de uma sociedade formada de

autoridades plurais e diversifi cadas, re-

cusando o individualismo fi losófi co. Por

isso, a idéia de subsidiariedade aparece

como a solução intermediária entre o

Estado-providência e o Estado Liberal.

BARACHO, José Alfredo. O princípio de

subsidiariedade: conceito e evolução. Rio

de Janeiro: Forense, 2000, p. 88.

23 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das

agências reguladoras independentes.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 21.

aberto à interlocução com a sociedade e permeado pela participação do ad-ministrado”.

Entretanto, o principal objetivo perseguido com a instituição de um mo-delo estatal regulatório foi a cessão de capacidade decisória sobre aspectos técnicos para entidades descentralizadas em troca de credibilidade e estabili-dade, demonstrando-se, com isso, que a regulação estatal deixava de ser as-sunto de Governo para ser assunto de Estado. Adveio, com a globalização, a obrigação de se gerar salvaguardas institucionais que signifi quem um com-promisso com a manutenção de regras (segurança jurídica) e contratos de longo prazo.21

Por esse novo papel do Estado Regulador se abandona o perfi l autoritário em prol de uma maior interlocução do Poder Público com a sociedade. En-quanto na perspectiva do liberalismo compete ao poder público assegurar as regras do jogo para livre afi rmação das relações de mercado, e no modelo social inverte-se este papel, de modo que a atividade estatal seja a provedora das necessidades coletivas, ao Estado neoliberal são exigidas funções de equa-lização, mediação e arbitragem das relações econômicas e sociais, ponderados os interesses em presença. 22

Nessa ordem de convicções, Marçal Justen Filho23 conclui que a concepção regulatória retrata uma redução nas diversas dimensões da intervenção estatal no âmbito econômico, incorporando uma concepção de subsidiariedade. Isso importa reconhecer os princípios gerais da livre iniciativa e da livre empresa, reservando-se ao Estado o instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de valores fundamentais. Assim, pode-se identifi car a seguinte comparação entre as fases acima examinadas:

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A importância da função regulatória está em conformar a garantia de equi-líbrio de um subsistema, por meio de mecanismos para sua efetividade com vistas ao ajuste das oscilações econômicas, mesmo contra suas próprias regras.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e refl exividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 73 a 105.

Leitura complementar

BINEMBOJN, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janei-ro: Renovar, 2006, capítulo II.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Juridicidade, pluralidade nor-mativa, democracia e controle social. In: Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 27 e ss.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro promulgou a lei nº 3.339, a qual concedeu gratuidade de transporte aos estudantes da rede pública de ensino, idosos e defi cientes físicos no sistema ferroviário. Ocorre que o referido serviço de transporte coletivo é objeto de contrato de conces-são entre o poder público e a iniciativa privada, à qual foi outorgada a sua exploração, por meio de processo licitatório. Sendo assim, a concessionária é remunerada mediante tarifa paga pelos usuários do serviço. No entanto, considerando que referida lei não existia no momento da celebração dos contratos de concessão, o custeio das gratuidades aprovadas pela Assembléia Legislativa não foi previsto pelos licitantes na elaboração de suas propostas.

Isso posto, relativamente à constitucionalidade da referida lei estadual:(i) Quais os argumentos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro em favor da constitucionalidade da norma promulgada?(ii) Como deve posicionar-se a Agência Reguladora de Serviços Públicos

Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Ro-dovias do Estado do Rio de Janeiro — AGETRANSP?

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(iii) Que alegações poderão ser formuladas pelas associações de proteção aos direitos dos estudantes?

(iv) Como devem posicionar-se as associações de defesa dos usuários do serviço público?

(v) Tem a concessionária algum pleito em razão da nova lei? Quais seriam os argumentos em favor do ressarcimento das perdas de receita?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

O papel do Estado nas relações econômico-sociais se modifi cou com o passar do tempo. De um Estado precipuamente interventor, tem-se hoje um papel regulador do Estado, exercido, especialmente, por entidades descentra-lizadas, dotadas de tecnicidade e autonomia face ao Poder Executivo central.

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AULA 2

I. TEMA

Reforma do Estado e regulação.

II. ASSUNTO

Estado Regulador, Programa Nacional de Desestatização, as Reformas Constitucionais e as privatizações.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Esclarecer a conformação atual da participação do Estado na Ordem Eco-nômica e como as modifi cações introduzidas pela Constituição de 1988 in-fl uenciaram mudanças nas funções desempenhadas pela Administração Pú-blica no tocante ao desempenho da atividade econômica.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A Constituição de 1988 e a participação do Estado na economia

A Constituição de 1988 constitui o ponto de partida para se compreender as mudanças observadas na forma de participação do Estado na economia nos últimos anos.

Neste aspecto, deve-se esclarecer que as formas e o grau de participação do Estado na dinâmica econômica de um País dependem fundamentalmente do tipo de organização expresso na Constituição Econômica, na qual se encon-tra a determinação do regime básico de ordenação dos fatores de produção, bem como seus princípios regedores e objetivos almejados.

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, quatro são os requisitos que caracterizam uma ordem econômica com sendo “descentralizada” ou “de mercado”: trata-se de uma economia multipolar, constituída por redes de troca entre centros de produção, de oferta de fatores e de consumo, ligados por uma solidariedade funcional; trata-se de uma economia de empresa, que constitui uma “unidade econômica de produção que assegura a ligação entre os mercados de bens e serviços (demanda de consumo fi nal) e os mercados de

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24 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.

Direito constitucional econômico. São

Paulo: Saraiva, 1990, p. 9. Ver também

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica

na Constituição de 1988. 6a ed. São Pau-

lo: Malheiros, 2001.

25 Direito constitucional econômico, ob.

cit., p. 9.

26 Não há que se falar em subsidiarie-

dade do papel do Estado na Ordem

Econômica no que tange à prestação

dos serviços públicos e execução das

atividades monopolizadas pelo Estado.

27 Agências reguladoras e a evolução

do direito administrativo econômico. 2ª

edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003,

p. 132.

fatores de produção (trabalho e capital); trata-se de uma economia de cálcu-los em moeda, sendo que os preços exprimem as tensões de escassez da vida econômica, traduzem as necessidades e as pretensões entre as quais se instau-ra um equilíbrio econômico; e trata-se de uma economia em que o Estado exerce somente uma interferência indireta e global, podendo orientar, in-fl uenciar a economia através de políticas, mas sem cunho determinante.24

A Constituição de 1988 adota o modelo de organização econômica capita-lista, sendo a livre iniciativa princípio fundamental da República (art 1º, IV) e da Ordem Econômica (art. 170, caput); garantindo-se o direito de proprie-dade, inclusive dos bens de produção (arts. 5º, XII e 170, II) e; respeitando-se a liberdade de atividade econômica independentemente de prévia autorização, salvo nos casos previstos em lei (arts. 5º, XIII e 170, parágrafo único).25

O art. 173, caput, da Constituição consagra o princípio da subsidiariedade da participação do Estado na atividade econômica:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a explo-ração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme defi nidos em lei.26

Portanto, a Constituição determina que, como regra geral, o Estado se abstenha de exercer diretamente atividade econômica. Para que possa de-sempenhá-la, faz-se necessário que exista previsão constitucional, ou lei que determine haver relevante interesse coletivo ou necessidade relacionada à se-gurança nacional.

Sobre o princípio da subsidiariedade e sua aplicação na Ordem Econômi-ca, expõe Alexandre Santos de Aragão:

Inserto no Princípio da Proporcionalidade, mais especifi camente em seu elemento necessidade, está o Princípio da Subsidiariedade, que, na seara do Direito Econômico, impõe ao Estado que se abstenha de inter-vir e de regular as atividades que possam ser satisfatoriamente exercidas ou auto-reguladas pelos particulares em regime de liberdade. Ou seja, à medida que os valores constitucionalmente assegurados não sejam preju-dicados, o Estado não deve restringir a liberdade dos agentes econômicos e, caso seja necessário, deve fazê-lo da maneira menos restritiva possível.27

A participação direta do Estado na atividade econômica, quando admi-tida, concretiza-se geralmente pela constituição de empresas públicas e so-ciedades de economia mista, para as quais a Constituição previu um regime jurídico próprio e aproximado daquele aplicável aos agentes privados, cujos princípios encontram-se estatuídos no art. 173, §1º, nos seguintes termos:

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28 Faz-se relevante mencionar que a

jurisprudência mitiga a equiparação

das empresas públicas e sociedades

de economia mista às pessoas jurídi-

cas de direito privado quando aquelas

desempenham atividades considera-

das serviços públicos. Nesse sentido,

veja-se decisão do Supremo Tribunal

Federal relativa à Empresa Brasileira

de Correios e Telégrafos, a qual, muito

embora apresente natureza jurídica

de empresa pública, goza de algumas

prerrogativas inerentes à Fazenda

Pública, em consideração à relevância

do serviço público por ela prestado.

Ver, a respeito, Recurso Extraordinário

nº 229.696, j. em 16.11.2000, Rel. do

acórdão Min. Maurício Corrêa, maioria.

29 Dispõe o art. 3º da Constituição

Federal: “Constituem objetivos fun-

damentais da República Federativa

do Brasil: I – construir uma sociedade

livre, justa e solidária; II – garantir o de-

senvolvimento nacional; III – erradicar

a pobreza e a marginalização e reduzir

as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação”.

30 Mesmo antes da promulgação da

Constituição Federal de 1988, o profes-

sor Fábio Konder Comparato já ensinava

que: “Quando se fala em função social

da propriedade não se indicam as res-

trições ao uso e gozo dos bens próprios.

Essas últimas são limites negativos aos

direitos do proprietário. Mas a noção de

função, no sentido em que é emprega-

do o termo nesta matéria, signifi ca um

poder, mais especifi camente, o poder

de dar ao objeto da propriedade des-

tino determinado, de vinculá-lo a certo

objetivo. O adjetivo social mostra que

esse objetivo corresponde ao interesse

coletivo e não ao interesse próprio do

dominus; o que não signifi ca que não

possa haver harmonização entre um

e outro. Mas, de qualquer modo, se se

está diante de um interesse coletivo,

essa função social da propriedade cor-

responde a um poder-dever do proprie-

tário, sancionável pela ordem jurídica.”

COMPARATO, Fábio Konder. Função

social da propriedade dos bens de pro-

dução. In Revista de Direito Mercantil.

São Paulo: Malheiros, n. 63, p. 73.

Art. 173. (...)§1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da so-

ciedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem ativida-de econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

I — sua função social e formas de fi scalização pelo Estado e pela sociedade;

II — a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

III — licitação e contratação de obras, serviços, compras e aliena-ções, observados os princípios da administração pública;

IV — a constituição e o funcionamento dos conselhos de adminis-tração e fi scal, com a participação de acionistas minoritários;

V — os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.28

Para uma melhor compreensão do papel do Estado face à atividade econô-mica, não se pode desconsiderar que a Constituição de 1988 possui uma plêiade de objetivos da República de conteúdo marcadamente redistributivo (art. 3º da Constituição de 1988)29, os quais vão reclamar uma atuação posi-tiva do Estado na seara econômica para a sua efetivação. Além disso, os arti-gos 5o, XXIII e 170, III, da Constituição Federal determinam que a proprie-dade cumprirá função social30. Ademais, a livre concorrência como princípio fundador da Ordem Econômica (art. 170, IV) exige uma intervenção do Estado na prevenção e repressão do abuso do poder econômico (art. 174, §3º, CF/88).

Em adição aos princípios supracitados, uma das chaves para guiar o es-forço de hermenêutica da Ordem Econômica é o artigo 174 da Constitui-ção, o qual se mostra bastante elucidativo no que tange ao papel conferi-do ao Estado na atividade econômica após a inauguração do novo regime constitucional:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econô-mica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fi scalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Interpretando-se esse artigo, observa-se que ao Estado é consagrado o pa-pel precípuo de agente normativo e regulador da atividade econômica, exer-cendo as funções de incentivo, fi scalização e planejamento, na forma em que

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31 A terminologia é de Eros Roberto

Grau. A ordem econômica na Constitui-

ção de 1988, ob. cit., p. 169.

dispuser a lei. Ou seja, por um lado, o Poder Constituinte não previu a pres-tação direta da atividade econômica como função primordial do Estado (art. 173, caput, CRFB/88); por outro lado, conferiu-lhe amplos instrumentos de intervenção indireta, mediante, por exemplo, das funções de planejamento e regulação. Nesse sentido, cumpre esclarecer que, ao transferir algumas ativi-dades de utilidade pública à execução por particulares, por meio do processo de desestatização, o Estado brasileiro não deixou de possuir profunda infl u-ência sobre a atividade econômica, mas sua tradicional participação direta (como Estado-empresário) foi substituída por uma intervenção primordial-mente de direção ou indução31.

Portanto, encontra-se no artigo 174 da Constituição Federal uma previsão genérica de ordenação da economia pelo Estado, baseada no exercício do poder-dever fi scalizatório, normativo e sancionador, no qual pode ser ante-visto o embrião do futuro desmembramento dessas competências nos orde-namentos setoriais regulatórios, hoje personifi cados na fi gura das agências reguladoras, que serão estudadas adiante neste Curso.

O Programa Nacional de Desestatização

O último Governo brasileiro comandado por um militar foi o do General João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1984). Foi nesse momento que se iniciou o “desmantelamento” do Estado Empresário com o Programa Nacio-nal de Desestatização — PND, iniciando o processo de privatizações.

Por meio desse Programa, foram preconizadas as seguintes ações, visando “dinamizar e simplifi car o funcionamento da Administração Pública Federal”: a) construir para a melhoria do atendimento dos usuários do serviço público; b) reduzir a interferência do Governo na atividade do cidadão e do empresário e abreviar a solução dos casos em que essa interferência é necessária, mediante a descentralização das decisões, a simplifi cação do trabalho administrativo e a eliminação de formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco; c) agilizar a execução dos programas federais para assegurar o cumprimento dos objetivos prioritários do Governo; d) substituir, sempre que praticável, o controle prévio pelo efi ciente acompanhamento da execu-ção e pelo reforço da fi scalização dirigida, para a identifi cação e correção dos eventuais desvios, fraudes e abusos; e) intensifi car a execução dos trabalhos da Reforma Administrativa de que trata o Decreto-Lei nº 200, de 25 de feverei-ro de 1967, especialmente os referidos no Título XIII; f ) fortalecer o sistema de livre empresa, favorecendo a empresa pequena e média, que constituem a matriz do sistema, e consolidando a grande empresa privada nacional, para que ela se capacite, quando for o caso, a receber encargos e atribuições que se encontram hoje sob a responsabilidade de empresas do Estado; g) impedir

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32 No caso do setor elétrico, tinha-se

o Departamento Nacional de Energia

Elétrica — DNAEE, órgão do Ministério

das Minas e Energia.

33 PINHEIRO, Armando Castelar. “Re-

gulatory Reform in Brazilian Infras-

tructure: Where do We Stand?” Rio de

Janeiro, IPEA, Texto para discussão nº

964, maio de 2003, p. 7. Disponível em

http://www.ipea.gov.br, consultada

em 13.02.2005.

o crescimento desnecessário da máquina administrativa federal, mediante o estímulo à execução indireta, utilizando-se, sempre que praticável, o contra-to com empresas privadas capacitadas e o convênio com órgãos estaduais e municipais; h) velar pelo cumprimento da política de contenção da criação indiscriminada de empresas públicas, promovendo o equacionamento dos casos em que for possível e recomendável a transferência do controle para o setor privado, respeitada a orientação do Governo na matéria.

Entretanto, foi com a instituição de uma fi losofi a regulatória na matriz constitucional brasileira que se implementou no país um amplo processo de desestatização, considerando-o como sendo a retirada da presença do Estado de atividades reservadas constitucionalmente à iniciativa privada (princípio da livre iniciativa) ou de setores onde ela possa atuar com maior efi ciência (princípio da economicidade).

Assim, a partir do arcabouço constitucional supracitado, em 1990 foi criado o Programa Nacional de Desestatização (“PND”), por intermédio da Medida Provisória nº 155/1990, posteriormente convertida na Lei nº 8.031, de 12.04.1990. Nos termos desta Lei, a desestatização compreende a alie-nação pela União, de direitos que lhe assegurem, diretamente ou por meio de outras controladas, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade; e a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou por meio de entidades controladas, bem como daqueles de sua responsabilidade.

Até os anos 90, as atividades relacionadas aos setores de infraestrutura eram executadas basicamente por empresas públicas e sociedades de econo-mia mista, sendo a regulação e gerência dos setores de infraestrutura atribuí-da a departamentos ministeriais diretamente subordinados aos ministros de Estado.32 Armando Castelar Pinheiro33 comenta que tais departamentos apresentavam as seguintes características, as quais contribuíram signifi cativa-mente para o cenário de inefi ciência acima descrito: (i) não eram indepen-dentes do governo; (ii) mostravam-se capturados pelos agentes do setor (as chamadas “estatais”); e (iii) não possuíam competência no que concerne à determinação das tarifas, as quais eram fi xadas pelo ministro da Fazenda como parte da política macroeconômica pretendida. Eram também comuns as práticas de subsídios cruzados entre diferentes segmentos de uma mesma atividade, assim como o recurso a empréstimos externos garantidos pelo go-verno, os quais permitiam manter as tarifas artifi cialmente baixas, dentre ou-tros mecanismos que impediam a auto-sufi ciência dos agentes setoriais e, consequentemente, o seu funcionamento em bases de mercado.

Na verdade, como leciona Vital Moreira, o processo de privatização pode conduzir ao estabelecimento de esquemas reguladores que a anterior proprie-dade pública permitia dispensar. Muitos dos serviços públicos geridos pelo

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34 Auto-regulação profi ssional e admi-

nistração pública. Lisboa: Almedina,

1997, p. 38.

35 BRASIL. Plano Diretor da Reforma do

Estado. Disponível em: http://www.

planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/

PLANDI.HTM>. Acesso em: 03 abr.

2010.

Estado começaram por ser serviços públicos concedidos altamente regulados, de modo que o binômio privatização/regulação signifi ca, de certa maneira, retorno às origens.34 Com o diagnóstico acima descrito, não é surpreendente que, em 1988, o Constituinte brasileiro e, posteriormente, o Poder Consti-tuinte Derivado (por emendas constitucionais) tenham pretendido inaugurar uma nova forma de participação estatal na vida econômica, conforme a se-guir detalhado.

As Emendas Constitucionais de 1995

O Executivo Federal iniciou o processo de desestatização brasileiro com a edição da Lei nº 8.031/1990. Em 1995, notadamente com a promulgação de Emendas Constitucionais, o Estado pode avançar com a desestatização.

Convém registrar alguns trechos da apresentação do Plano Diretor da Re-forma do Aparelho do Estado,35 que bem refl ete seus objetivos:

A crise brasileira da última década foi também uma crise do Esta-do. Em razão do modelo de desenvolvimento que Governos anteriores adotaram, o Estado desviou-se de suas funções básicas para ampliar sua presença no setor produtivo, o que acarretou, além da gradual de-terioração dos serviços públicos, a que recorre, em particular, a parcela menos favorecida da população, o agravamento da crise fi scal e, por conseqüência, da infl ação. Nesse sentido, a reforma do Estado passou a ser instrumento indispensável para consolidar a estabilização e asse-gurar o crescimento sustentado da economia. Somente assim será pos-sível promover a correção das desigualdades sociais e regionais. Com a fi nalidade de colaborar com esse amplo trabalho que a sociedade e o Governo estão fazendo para mudar o Brasil, determinei a elaboração do “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, que defi ne ob-jetivos e estabelece diretrizes para a reforma da Administração Pública brasileira. O grande desafi o histórico que o País se dispõe a enfrentar é o de articular um novo modelo de desenvolvimento que possa tra-zer para o conjunto da sociedade brasileira a perspectiva de um futuro melhor. Um dos aspectos centrais desse esforço é o fortalecimento do Estado para que sejam efi cazes sua ação reguladora, no quadro de uma economia de mercado, bem como os serviços básicos que presta e as políticas de cunho social que precisa implementar.

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FGV DIREITO RIO 24

36 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Reforma da ordem econômica e fi nan-

ceira. Cadernos de Direito Constitucional

e Ciência Política. São Paulo, v. 3, n. 9, p.

22-25, out/dez. 1994.

Sobre a necessidade de reforma constitucional para o atingimento dessa política absenteísta, de fato ocorrida em 1995, é digno de menção o posicio-namento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Dois são os temas de reforma: o da ordem econômica e o da ordem fi nanceira. Com relação à necessidade de rever-se o capítulo da ordem econômica basta lembrar da Constituição de 1967-1969, dita estatizan-te e autocrática, era menos regulatória da economia e menos monopo-lista que a Constituição de 1988. Passamos de sete para mais de vinte modalidades de intervenção regulatória e de uma para seis previsões de intervenções monopolistas. Houve, portanto, um retrocesso. (...) O Es-tado, ao imiscuir-se na ordem econômica para competir com a socieda-de ou para se substituir a ela com exclusividade, ou seja, nas modalida-des de intervenção concorrencial e monopolista, se afasta do exercício regular de seu poder coercitivo, do qual detém o monopólio, para ser mais apenas uma empresa ou mais um concorrente. Com isso, ele perde suas características públicas. O Estado se privatiza, perdendo de vista os interesses gerais, que lhes são próprios, para ter interesses privados. Além de não existirem mais recursos para recapitalizar as empresas do Estado, escasseiam também os recursos para o desempenho de suas atividades públicas: o Estado privatizado acaba se despublicizando36

E conclui que:

“privatizar torna-se necessário para republicizar o Estado: fazê-lo re-tornar às prestações que só ele pode fazer numa sociedade; dar-lhe se-gurança jurídica, segurança física, segurança social, nos campos da saú-de e da educação, e, tão negligenciado, dar-lhe segurança monetária,

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FGV DIREITO RIO 25

37 Idem. Em sentido oposto a esse ra-

ciocínio, Paulo Bonavides assevera que

“todas essas Emendas constitucionali-

zam a dependência do País, um crime

que jamais a ditadura militar de 1964

ousou perpetrar, pois os seus generais-

presidentes – faça-se-lhes justiça –

eram quase todos nacionalistas. Aceito

e aplaudido por algumas elites como o

determinismo deste fi m de século, o ne-

oliberalismo arvora a ideologia de sujei-

ção, para coroar, como uma fatalidade,

a abdicação, nos mercados globais, da

independência econômica do País”. Cur-

so de direito constitucional. 12a ed. São

Paulo: Malheiros, 2002, p. 613.

38 BRASIL. Plano Diretor da Reforma do

Estado. Disponível em: <http://www.

planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/

PLANDI.HTM>. Acesso em: 03 abr.

2010.

uma moeda estável, inconspurcada pelas emissões infl acionárias, essa modalidade imoral de obter recursos sem tributo, ou o que é pior, sem o respeito às reservas e condicionantes tributários”.37

As Emendas Constitucionais cujas matérias estão voltadas à nova política de retirada do Estado da execução direta das atividades econômicas são as de nº 5, de 15 de agosto de 1995, que transferiu aos Estados a competência para a exploração diretamente, ou mediante concessão, dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado; nº 6, de 15 de agosto de 1995, que pôs fi m à distinção entre empresas brasileiras em razão da origem do seu capital (se na-cional ou estrangeiro); nº 7, de 15 de agosto de 1995, que tratou da abertura para navegação de cabotagem; nº 8, de 15 de agosto de 1995, que fl exibilizou o monopólio dos serviços de telecomunicações e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; e nº 9, de 9 de novembro de 1995, que fl exibilizou o mono-pólio da exploração do petróleo e do gás natural.

Após a promulgação das Emendas Constitucionais de nºs 5 a 8, foi apro-vado, em 21 de setembro de 1995, o já mencionado Plano Diretor da Refor-ma do Aparelho do Estado, sob a motivação de reconstruir o Estado de forma a resgatar sua autonomia fi nanceira e sua capacidade de implementar políti-cas públicas:38

Este “Plano Diretor” procura criar condições para a reconstrução da Administração Pública em bases modernas e racionais. No passa-do, constituiu grande avanço a implementação de uma Administração Pública formal, baseada em princípios racional-burocráticos, os quais se contrapunham ao patrimonialismo, ao clientelismo, ao nepotismo, vícios estes que ainda persistem e que precisam ser extirpados. Mas o sistema introduzido, ao limitar-se a padrões hierárquicos rígidos e ao concentrar-se no controle dos processos e não dos resultados, revelou-se lento e inefi ciente para a magnitude e a complexidade dos desafi os que o País passou a enfrentar diante da globalização econômica. A si-tuação agravou-se a partir do início desta década, como resultado de reformas administrativas apressadas, as quais desorganizaram centros decisórios importantes, afetaram a “memória administrativa”, a par de desmantelarem sistemas de produção de informações vitais para o pro-cesso decisório governamental. É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma Administração Pública que chamaria de “gerencial”, baseada em conceitos atuais de administração e efi ciência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para o poder chegar ao ci-dadão, que, numa sociedade democrática, é quem dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna “cliente privilegiado” dos serviços prestados pelo Estado.

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39 Segundo dados obtidos no BNDES

(www.bndes.gov.br/privatizacao —

acesso em 31 de julho de 2003), entre

1990 e 1992 foram incluídas sessenta

e oito empresas no PND, das quais de-

zoito foram desestatizadas, com a arre-

cadação de cerca de quatro bilhões de

dólares norte-americanos, em grande

parte através de títulos representati-

vos da dívida pública federal. Nos três

primeiros anos do PND a estratégia

governamental constituiu-se em con-

centrar esforços na venda de estatais

produtivas, pertencentes a setores

anteriormente estratégicos para o de-

senvolvimento do País, tais como com-

panhias siderúrgicas, petroquímicas e

de fertilizantes. Em 1993 e 1994 inten-

sifi cou-se o processo de transferência

de empresas produtivas ao setor pri-

vado, concluindo-se a privatização das

empresas siderúrgicas. Nesse período

foram desestatizadas quinze empresas,

com a arrecadação de cerca de quatro

e meio bilhões de dólares norte-ame-

ricanos, em sua maior parte em mo-

eda corrente. Em março de 1994, pelo

Decreto nº 1.068 o Executivo Federal

incluiu no PND as participações societá-

rias minoritárias detidas por fundações,

autarquias, empresas públicas, socie-

dades de economia mista e quaisquer

outras sociedades controladas, direta

ou indiretamente, pela União Federal.

Com a eleição do Presidente Fernando

Henrique Cardoso em 1995 houve uma

intensifi cação nas privatizações. O PND

foi apontado como sendo um dos prin-

cipais instrumentos do Programa Dire-

tor da Reforma do Aparelho do Estado.

Entre 1995 e 1996, após signifi cativas

alterações da matriz constitucional

mediante a fl exibilização dos serviços

de telecomunicações e do monopólio

da exploração do petróleo e do gás

natural, dentre outras, e com a edição

de lei específi ca acerca da concessão e

permissão dos serviços públicos (Lei nº

8.987/95), iniciou-se uma nova fase do

PND, em que os serviços públicos foram

sendo concedidos à iniciativa privada,

com destaque para o setor elétrico, de

transportes e telecomunicações. É re-

levante registrar que em 1997 ocorreu

um dos grandes marcos do PND, com

a venda das ações da Companhia Vale

do Rio Doce — CVRD, num processo

de desestatização pautado por intensa

batalha de liminares judiciais. Com a

privatização da Companhia Vale do

Rio Doce encerrou-se praticamente a

transferência à iniciativa privada das

empresas industriais e o início de uma

nova fase, cujo foco principal foi a pri-

vatização de empresas ligadas à área

de infra-estrutura e as concessões de

serviços públicos. Além da privatização

da CVRD, merece destaque, ainda, o

término da desestatização da Rede Fer-

roviária Federal – RFFSA, com a venda

da malha Nordeste e o leilão de sobras

de 14,65% das ações ordinárias da

A desestatização implementada no país foi executada mediante várias mo-dalidades39: alienação de participação societária detida pelo Estado, inclusive de controle acionário; abertura de capital; aumento de capital, com renúncia ou cessão, total ou parcial, de direitos de subscrição; alienação, arrendamen-to, locação, comodato ou cessão de bens e instalações; dissolução de socieda-des ou desativação parcial de seus empreendimentos, com a consequente alie-nação de seus ativos; e concessão, permissão ou autorização de serviços públicos.40 Conforme visto, o programa de desestatização fez-se acompanhar da instituição de toda uma estrutura reguladora por parte do Estado, sendo relevante, por conseguinte, estudar o signifi cado da regulação do Estado so-bre a atividade econômica, a partir das considerações a seguir tecidas, e o seu impacto sobre o direito administrativo.

Regulação da atividade econômica

A terminologia “regulação da atividade econômica” apresenta mais de um sentido, dependendo do contexto em que for utilizada. Com efeito, o termo pode ser interpretado tanto como signifi cando um conjunto de atividades esta-tais voltadas à regulamentação de um determinado setor específi co da economia (como, por exemplo, os setores de telecomunicações, energia, seguros de saúde, petróleo, dentre outros), mas também como o conjunto das atividades estatais voltadas à fi scalização e regulamentação sobre a generalidade dos agentes da economia, como é o caso das atividades exercidas pelos órgãos ambientais e de defesa da concorrência.41 De uma outra perspectiva, mas igualmente espelhando a pluralidade de signifi cados que o termo pode abarcar, observa Vital Moreira:

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FGV DIREITO RIO 27

Companhia Espírito Santo Centrais Elé-

tricas — Escelsa. Nesse ano também

foi realizada a primeira privatização no

setor fi nanceiro, envolvendo as ações

do Banco Meridional do Brasil S/A. Em

16 de julho de 1997 foi editada a Lei nº

9.472, a Lei Geral de Telecomunicações,

tornando-se possível o processo de

privatização do setor de telecomuni-

cações, no qual foram licitadas con-

cessões de telefonia móvel celular para

três áreas do território nacional. Em ju-

lho de 1998 o governo federal alienou

as ações das doze holdings, criadas a

partir da cisão do Sistema Telebrás, re-

presentando a transferência à iniciativa

privada das Empresas de Telefonia Fixa

e de Longa Distância, bem como das

empresas de Telefonia Celular-Banda

A. O resultado fi nanceiro com a venda

das ações dessas doze empresas somou

22.057 milhões de reais, sendo que o

ágio médio foi de 53,74% sobre o preço

mínimo. Foi transferida para a iniciativa

privada a exploração do Terminal de

Contêineres do Porto de Sepetiba (Te-

con 1), da Cia. Docas do Rio de Janeiro,

do Cais de Paul e do Cais de Capuaba

(Cia. Docas do Espírito Santo-CODESA),

Terminal roll-on roll-off (CDRJ) e Porto

de Angra dos Reis (CDRJ). No setor elé-

trico foi realizada a venda das ações de

emissão da Companhia Centrais Elétri-

cas Geradoras do Sul S/A — GERASUL, 

após  a cisão efetivada em  29  de abril 

de  1998.  A arrecadação foi de 800,4

milhões de dólares norte-americanos,

pagos totalmente em moeda corren-

te. Em 1999 o governo arrecadou 128

milhões de dólares norte-americanos

com a outorga das concessões para

exploração de quatro áreas de telefonia

fi xa das empresas espelho que fazem

concorrência às atuais companhias de

Telecomunicações.  Em 23 de junho

daquele ano foi realizada a venda da

Datamec S.A — Sistemas e Proces-

samento de Dados, empresa do setor

de Informática, que  foi adquirida pela

Unisys Brasil S.A pelo preço mínimo de

47,29 milhões de dólares norte-ame-

ricanos. O Porto de Salvador (CODEBA)

foi adquirido em 21 de dezembro pela

Wilport Operadores Portuários pelo

preço mínimo de 21 milhões de dólares

norte-americanos. O resultado obtido

com o Programa Nacional de Desestati-

zação no ano 2000 atingiu cerca de 7,7

bilhões de dólares norte-americanos,

representando, assim, a maior receita

anual já auferida pelo Programa desde

o seu início. O destaque no ano consis-

tiu na venda das ações que excediam o

controle acionário detido pela União na

Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, e a

desestatização do Banco do Estado de

São Paulo S.A – Banespa. A conclusão

da mega operação de venda, no Brasil

e no exterior, das ações da Petrobrás

ocorreu em 09 de agosto daquele ano e

o valor total auferido foi de 4 bilhões de

dólares norte-americanos. Observe-se

Quanto à amplitude do conceito, aparecem-nos três concepções de regulação: (a) em sentido amplo, é toda forma de intervenção do Esta-do na economia, independentemente de seus instrumentos e fi ns; (b) num sentido menos abrangente, é a intervenção estatal na economia por outras formas que não a participação direta na atividade econômi-ca, equivalendo, portanto, ao condicionamento, coordenação e disci-plina da atividade econômica privada; (c) num sentido restrito, é so-mente o condicionamento normativo da atividade econômica privada (por via de lei ou outro instrumento normativo).42

Dessa forma, a atividade estatal de regulação, em seu sentido mais técnico e restrito, constitui uma espécie do gênero intervenção estatal na economia, diferindo, todavia, da participação direta do Estado, tanto no que tange aos seus pressupostos, quanto aos seus objetivos e instrumentos. Nesse sentido, expõe Marçal Justen Filho:

A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de inter-venção indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de go-verno e a realização dos direitos fundamentais.43

A regulação estatal da atividade econômica, longe de diminuir a impor-tância da participação do Estado na economia, apenas lhe confere uma nova dimensão. O Estado deixa de ter uma função eminentemente empresarial, para passar a atuar principalmente de forma indireta, como ente fomentador, regulador, mediador, fi scalizador e planejador da vida econômica.

Conforme visto, a partir dessa mudança de perspectiva iniciada com a Constituição de 1988 e reforçada após as Emendas Constitucionais que pro-piciaram o processo de desestatização44, ganha ênfase, no Brasil, a fi gura do Estado regulador, cuja atuação, em sentido bastante amplo, é assim defi nida por Alexandre Santos de Aragão:

A regulação estatal da economia é o conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionais, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da liberdade privada ou meramente indu-tiva, determina, controla, ou infl uencia o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais defi nidos no mar-co da Constituição e orientando-os em direções socialmente desejáveis.

É nesta perspectiva que o jurista, as entidades e os órgãos reguladores devem estar atentos para paradigmas regulatórios como a administrativiza-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 28

que se tratou de operação pioneira em

que, pela primeira vez foram aceitos re-

cursos do FGTS na aquisição das ações.

Do mesmo modo, merece destaque a

alienação das ações do Banco do Estado

de São Paulo – Banespa, realizada em

20 de novembro. Nessa operação o ban-

co espanhol Santander Central Hispano

adquiriu 60% do capital votante do

Banespa por 7 bilhões de reais, corres-

pondendo a um ágio de 281% em rela-

ção ao preço mínimo de 1,8 bilhões de

reais. Foram realizadas no ano de 2000

vendas de participações minoritárias

da União incluídas no PND no âmbito

do Decreto 1068/94, bem como licita-

das, pela Agência Nacional de Energia

Elétrica — ANEEL, concessões para

exploração de novos aproveitamentos

hidrelétricos e de novas linhas de trans-

missão. No ano 2001 foram realizados

dois leilões de concessão dos serviços

de telefonia celular para as Bandas D e

E. As Áreas 2 e 3 da Banda D e Área 1

da Banda E, foram vendidas para a Tele-

com Itália, representando, respectiva-

mente, 543 milhões de reais, com ágio

de 0,56%, 997 milhões de reais, com

ágio de 40,42% e 990 milhões de reais,

com ágio de 5,3%. A Área 2 da Banda D

foi arrematada pela Telemar, pelo valor

de 1.102 milhões de reais, com ágio de

17,3%, e as Áreas 2 e 3 da Banda E não

tiveram lances ofertados no dia do lei-

lão. Em 30 de abril de 2001 foi realizado

leilão de ações, no âmbito do Decreto

1.068/94, totalizando 26 milhões de

reais, e, em 18 de julho encerrou-se a

oferta  pública, no Brasil e no exterior,

de 41.381.826 ações preferenciais da

Petrobrás, representativas de 3,5% do

seu capital total, perfazendo com a

venda um total de 808,3 milhões de dó-

lares norte-americanos. Em janeiro de

2002 foi privatizado o Banco do Estado

do Amazonas – BEA, por 76,8 milhões

de dólares norte-americanos.

40 Bem a propósito, o Programa Na-

cional de Desestatização foi objeto de

amplo questionamento perante os

Tribunais Superiores, onde destacamos

o acórdão do Tribunal Pleno do Supre-

mo Tribunal Federal, na ADIN 1078/RJ,

julgada em 11 de maio de 1994, que

confi rmou a constitucionalidade das

privatizações, em textual: Ação Dire-

ta De Inconstitucionalidade. Medida

Cautelar. Medida Provisória n. 506, de

25/5/1994, art. 1º, e Decretos n.s 427,

de 16/01/1992; 473, de 10/3/1992, e

572, de 22/6/1992, todos concernentes

ao Programa Nacional de Desestati-

zação, regulado pela Lei nº 8.031, de

12/4/1990. 2. Alegação de ofensa ao

art. 21, XII, 171, II e 176, par. 1.. da

Constituição. 3. Não conhecimento da

ação, relativamente aos decretos n.s

427, 473 e 572, todos de 1992, por

não serem atos normativos, mas, tão-

só, atos administrativos individuais e

concretos. 4. Diante da viabilidade de

privatização de entidades da adminis-

ção, fl uidez, consensualidade, refl exibilidade, consensualismo, valorização dos resultados em relação aos meios, permeabilidade aos demais subsistemas sociais, etc.

A função reguladora da economia pelo Estado possui muitas e complexas faces, donde a importância de a interpretação dos atos estatais nessa seara ser realizada em consonância com os valores mencionados pelo autor.

Qual é o impacto para essa função reguladora para o Direito Administrativo?A regulação de atividades econômicas pelo Estado desponta como uma

“nova” categoria de escolha pela Administração Pública, sendo a estrutura estatal necessária para equilibrar os subsistemas regulados, suprir as falhas do mercado, mediar e ponderar os diversos interesses ambivalentes (sem pender para qualquer um dos lados).

A escolha regulatória descentralizada tem mais condições de enfrentar os desafi os da refl exividade da vida social, que consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação re-novada sobre estas próprias práticas, alterando assim seu caráter.

A compatibilização desse modelo de atuação estatal com a pós-moderni-dade está no fato de que o Estado deve, ainda, conter os excessos perpetrados pelos agentes que detêm o poder econômico privado por meio de valores e princípios garantidos pela força normativa da Constituição Federal.

A associação do direito administrativo à fase pós-moderna indica, portan-to, sua necessária adaptação às mudanças econômicas e sociais, permitindo seu perfeito acoplamento ao contexto da realidade para ser instrumento de efetividade dos direitos fundamentais. A supremacia do interesse público e, indiretamente, da Administração Pública, nessa fase, deve deixar de ser um atributo permanente e prevalente.

Com efeito, as políticas nacionais típicas do Estado contemporâneo se põem em prática mediante a edição de muitas regras gerais, em grande par-te com indeterminações técnicas, que acabam por exigir mais do que uma simples integração dessas mesmas normas, como ocorre com a escolha deter-minativa de conceito (conceito jurídico indeterminado) e a escolha discricio-nária (discricionariedade).

Com as premissas da pós-modernidade e o ingresso do Brasil no modelo regulador, infere-se que novas necessidades devem ser identifi cadas e expos-tas, especialmente para que o Estado neutralize os excessos e utilize seu “po-der” como instrumento de controle da atuação privada.

A importância da escolha administrativa regulatória é detectada na confor-mação da garantia de equilíbrio de um subsistema, por meio de mecanismos para sua efetividade com vistas ao ajuste das oscilações econômicas e sociais, ainda que possam parecer surpreendentes por suas características inovadoras em relação ao direito administrativo passado.

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tração indireta, no sistema da Consti-

tuição, a Lei nº 8.031, de 1990, instituiu

o Programa Nacional de Desestatiza-

ção, cujas modifi cações poderão ser

feitas por lei, de acordo com a política

da administração a ser seguida, respei-

tadas as normas da Constituição. 5. Os

fundamentos da inicial não justifi cam a

concessão da cautelar, não se caracteri-

zando, também, o “periculum in mora”.

6. Se porventura houver processo de

privatização de empresa, que se tenha

como contrário à lei especial referida

ou aos princípios da Constituição, há

vias judiciais adequadas, para even-

tualmente atacar o ato administrativo

especifi co, tal como já sucedeu. 7. Ação

conhecida, em parte, e, nessa parte,

indeferida a medida cautelar.

41 SUNDFELD, Carlos Ari. “Introdução às

Agências Reguladoras”. In SUNDFELD,

Carlos Ari (coord.). Direito Administra-

tivo Econômico. São Paulo: Malheiros,

2000, p. 18. Explica ainda o autor: “A

regulação, enquanto espécie de in-

tervenção estatal, manifesta-se tanto

por poderes e ações com objetivos

claramente econômicos (o controle de

concentrações empresariais, a repres-

são de infrações à ordem econômica, o

controle de preços e tarifas, a admissão

de novos agentes no mercado) como

por outros de justifi cativas diversas,

mas de efeitos econômicos inevitáveis

(medidas ambientais, urbanísticas, de

normalização, de disciplina das profi s-

sões etc.).” Ob. Cit., loc. cit.

42 MOREIRA, Vital. Auto-regulação

profi ssional e administração pública.

Coimbra: Almedina, 1997, p. 35. Co-

mumente, a doutrina administrativista

utiliza a terminologia em seu segundo

signifi cado.

43 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direi-

to administrativo. São Paulo: Saraiva,

2005, p. 447.

44 Marcos Juruena Villela Souto defi ne o

processo de desestatização nos seguin-

tes termos: “É a retirada do Estado de

atividades reservadas constitucional-

mente à iniciativa privada (princípio da

livre iniciativa) ou de setores em que ela

possa atuar com maior efi ciência (prin-

cípio da economicidade); é o gênero do

qual são espécies a privatização, a con-

cessão, a permissão, a terceirização e a

gestão associada de funções públicas”.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito

administrativo da economia. 3ª ed. Rio

de Janeiro: Lumen Iuris, 2003, p. 147.

45 Conforme GUERRA, Sérgio. Discricio-

nariedade..., op. cit.

Por meio do atual modelo de Estado, propício à escolha regulatória, deve-se buscar um planejamento preventivo, pois não se concebe mais a idéia de que há domínio, pelas casas legislativas, de todas as informações indispensáveis para apontar as variáveis mercadológicas a serem objeto de regras. Deve-se, ainda, perseguir a efetivação do fomento para seu correto desenvolvimento em bases sólidas, fi rmes; além de estar atento à proteção dos subsistemas, diante das pressões advindas dos interesses antinômicos — inseridos no próprio subsis-tema — ou do sistema social. Sob esses pilares, pensa-se que a regulação esta-rá em condições próximas de se apresentar como apta a garantir direitos fun-damentais, ponderando-os com outros interesses e direitos de idêntica dignidade jurídica e constitucional, observando-se princípios e valores sem uma predeterminada hierarquia entre os mesmos.45

Regulação, autorregulação, desregulação

Para uma melhor compreensão dos fundamentos jurídicos da regulação econômica, mostra-se relevante proceder à diferenciação de conceitos nem sempre utilizados com o devido rigor científi co.

A autorregulação diz respeito àquelas atividades nas quais os agentes que a desempenham se autoimpõem o dever de obediência a determinadas nor-mas, estabelecidas por uma entidade reconhecida pelo grupo como legítima. Constituem exemplos clássicos de autorregulação as normas ditadas por con-selhos de organizações profi ssionais, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Federal de Medicina.

Veja-se que o tema foi objeto de análise no Supremo Tribunal Federal quando da análise da constitucionalidade do exame da Ordem dos Advoga-dos do Brasil:

A advocacia se submete, no Brasil, ao que VITAL MOREIRA (Au-torregulação Profi ssional e Administração Pública. Coimbra: Almedi-na, 1998, p. 88) denomina de autorregulação pública. Nas palavras do mestre português,

“A autorregulação pública é aquela protagonizada por orga-nismos profi ssionais ou de representação profi ssional dotados de estatuto jurídico-público. A autorregulação é legalmente estabele-cida: os organismos autorregulatórios dispõem de poderes típicos das autoridades públicas. As normas de regulação profi ssional são para todos os efeitos normas jurídicas dotadas de coercibilidade. A autorregulação pública pode resultar de dois movimentos totalmente distintos. De um lado, pode ser consequência da publicização de for-

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mas de autorregulação privada preexistente; do outro lado, pode re-sultar da entrega de funções reguladoras originariamente estaduais a organismos de autorregulação propositadamente criados para o efeito. Nos sistemas de direito administrativo continental, o exemplo mais típico de autorregulação profi ssional é a das ordens profi ssionais que são organismos de regulação das chamadas profi ssões liberais. O seu nome e número varia de país para país. Mas, para além dessas diferenças, subsiste um conjunto de características comuns essenciais: a natureza jurídico-pública, como ‘corporações públicas’ (excetuado o caso controvertido da França); a fi liação obrigatória, como condição do exercício da profi ssão; o poder regulamentar; a regulamentação e/ou implementação das regras de acesso à profi ssão e do exercício desta; a formulação e/ou aplicação dos códigos de deontologia profi ssional; o exercício da disciplina profi ssional, mediante aplicação de sanções, que podem ir até a expulsão, com a consequente interdição do exercício profi ssional.” (grifou-se)

O modelo brasileiro se enquadra na segunda defi nição de VITAL MOREIRA, em que a lei prevê normas gerais para a disciplina de sua atividade, mas confere à OAB, observados os parâmetros legais previa-mente determinados, atribuição para regulamentar o exercício profi s-sional. No caso, a Lei nº 8.906/94 fi xou, como requisito indispensável à inscrição na OAB — e, portanto, ao exercício da advocacia — a aprovação no Exame de Ordem. Percebe-se, com isso, que a restrição à liberdade fundamental de ofício está presente na lei formal, atendendo-se, portanto, ao limite imanente da reserva de lei. A delegação legisla-tiva de regulamentação do Exame de Ordem ao Conselho Federal da OAB não fere a reserva de lei, ao menos sob uma perspectiva moderna do princípio da legalidade. ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO (A Concepção Pós-Positivista do Princípio da Legalidade. In Revista de Direito Administrativo 236: 51-64 Rio de Janeiro: Renovar, abr./jun. 2004.), forte no magistério de CHARLES EISENMANN, assina-la que a concepção da reserva legal deve deixar à lei formal a previsão de habilitação de competências e a principiologia que deverá orientar a sua regulamentação infralegal. Do contrário, impor-se-ia uma rigidez à disciplina do Exame de Ordem incompatível com a dinâmica da socie-dade. A evolução social demanda fl exibilidade das normas regulatórias, o que não é diferente no campo da advocacia. A multiplicidade e a complexidade crescentes das relações sociais aumentam a necessidade de permanente reavaliação dos critérios e métodos de aferição da qua-lifi cação profi ssional do advogado, sendo certo que o esgotamento da matéria na lei rapidamente causaria a obsolescência da sua disciplina.

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46 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. 2a ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, p. 31.

De outro giro, também não seria adequado afi rmar que a regulamen-tação deveria dar-se exclusivamente por intermédio do decreto presi-dencial, na forma do art. 84, IV, da Constituição Federal. Trata-se de ideia já superada pela solidifi cação do Direito Regulatório, admitindo-se pacifi camente a delegação legislativa em favor das agências reguladoras independentes. Não se pretende, evidentemente, classifi car a OAB como uma agência reguladora — já se assinalou a sua natureza privada. No entanto, sua condição sui generis desafi a a clássica repartição de funções estatais e a coloca, de algum modo, entre os centros de poder político da-quilo que o emérito Professor DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO (Poder, Direito e Estado: O Direito Administrativo em Tempos de Globalização — in memoriam de Marcos Juruena Villela Souto. Belo Horizonte: Fórum, 2011) denomina de Estado policrático. Afi nal, cui-da-se de entidade com atribuições institucionais relevantíssimas, como, por exemplo, a propositura de ações do controle abstrato de constitucio-nalidade das leis e atos normativos, como a ADI, a ADC e a ADPF, para as quais exibe o status de legitimada universal, isto é, fi ca dispensada de demonstração de pertinência temática. Ao mesmo tempo, remanesce a OAB como entidade de autorregulação profi ssional, à qual se confi a a disciplina infralegal da advocacia. Faz sentido que assim o seja, pois a própria legitimidade democrática da regulação profi ssional da advocacia também repousará na observância da visão concreta do mercado e de suas práticas usuais (em constante transformação), sem prejuízo das medidas corretivas que se eventualmente fi zerem necessárias. Portanto, conferir à entidade de classe a fi xação dos marcos regulatórios que orientarão a atividade profi ssional de seus próprios fi liados é, em princípio, consagrar a refl exividade que, segundo SERGIO GUERRA (Discricionariedade e refl exividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008), legitima a atividade regulatória.”

A desregulação, por sua vez, refere-se às ocasiões em que o Estado deixa de intervir sobre o mercado. Assim, a desregulação relaciona-se a um processo de redução de normas cogentes sobre determinada atividade (estatais ou não, como as autoimpostas por associações ou outros entes institucionais), que passa então a reger-se basicamente pelo princípio da livre iniciativa e da liber-dade de concorrência.46

Dessa forma, não se mostra correto equiparar os fenômenos “delegação da prestação de serviço público a particulares” e “desregulação”, pois que, no primeiro caso, o Estado não busca se retirar da atividade econômica, mas sim modifi car a sua forma de atuação, passando a agir como gestor — e não mais agente — da atividade econômica.

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47 Exceções a essa regra geral são as

atividades de ensino e prestação de

serviços de saúde que, embora caracte-

rizadas como serviços públicos quando

prestadas pelo Estado, encontram-se

abertas ao seu exercício pela iniciativa

privada.

Diferentes espécies de atividades reguladas: serviços públicos, monopólios estatais e atividades privadas regulamentadas.

Ao longo deste curso teremos a oportunidade de observar que as ativida-des econômicas, em sentido amplo, podem ser classifi cadas em atividades econômicas propriamente ditas, que são abertas à iniciativa privada; serviços públicos, que geralmente são de titularidade de um dos entes da federação;47 ou, ainda, monopólios públicos, que pertencem à União Federal e estão taxa-tivamente previstos na Constituição Federal.

Todas essas espécies de atividades podem ser reguladas pelo Estado, va-riando, no entanto, o conteúdo da regulação, a depender do tipo de atividade a ser regulado. As próximas aulas serão dedicadas à disciplina jurídica dos serviços públicos.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Ma-lheiros, 2005, cap. X (“Tipos de atividade administrativa: a regulação econômico-social”).

GUERRA, Sergio. Introdução ao direito das agências reguladoras. Rio de Janei-ro: Freitas Bastos, 2004, pp. 1 a 10.

Leitura complementar

Acórdão do Supremo Tribunal Federal que decidiu acerca da constitucio-nalidade do Exame de Ordem da OAB (Recurso Extraordinário 603583).

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A TERMOPAR S.A., com sede no Estado do Paraná, é uma empresa pública federal, extremamente produtiva e cujos funcionários encontram-se satisfeitos com as funções que lhes são atribuídas e a remuneração recebida.

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48 Caso gerador elaborado pelo Profes-

sor Sergio Guerra para o curso online

de Direito das Agências Reguladoras da

Escola de Direito da Fundação Getulio

Vargas.

Em que pese a situação favorável, o governo federal, na qualidade de úni-co acionista da TERMOPAR, decidiu incluir a TERMOPAR no Programa Nacional de Desestatização. Revoltados e com o apoio do sindicato dos tra-balhadores, os funcionários fazem manifestações públicas contrárias à priva-tização da TERMOPAR. Diante da decisão governamental de seguir com a privatização, o sindicato ingressa com ação direta de inconstitucionalidade contra a medida provisória concernente à privatização da empresa, sob alega-ção de violação aos artigos 21, XII; 171, II (à época em vigor, ora já revogado) e 176, §1º, todos da Constituição Federal.

Na sua opinião, como deveria ter sido decidida a ADI? A sua resposta seria diferente caso a TERMOPAR estivesse defi citária?48

(Ref. ADI 1078/RJ, julgada em 11 de maio de 1994)

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Com a Constituição da República Federativa de 1988, a intervenção es-tatal na economia passou por uma signifi cativa transformação, de uma proe-minente participação direta nos setores da economia para um papel principal de reguladora das atividades econômicas.

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49 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Di-

reito administrativo. São Paulo: Atlas,

2000, p. 95.

50 Instituciones de derecho administrati-

vo, tomo II, p. 364. Como utilidade de

natureza jurídica, o autor exemplifi ca

a inscrição de uma hipoteca sobre um

imóvel pela autoridade competente;

dentre os serviços de natureza econô-

mico-social, incluem-se os transportes

públicos e a iluminação pública.

AULAS 3 E 4:

I. TEMA

Regime jurídico dos serviços públicos.

II. ASSUNTO

Princípios, características e divisão constitucional de competências em matéria de serviços públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o regime jurídico aplicável aos serviços públicos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais fi nalidades da Administração Pública.

Conforme relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a expressão “serviços pú-blicos” pode ser tomada tanto em concepção ampla como estrita; na primei-ra, insere-se toda atividade que o Estado exerce para cumprir suas fi nalidades, abrangendo, assim, não apenas a atividade administrativa, mas também a legislativa e a judiciária. Já a disciplina jurídica dos serviços públicos adminis-trativos, em sentido estrito, requer que se os diferencie não apenas das ativi-dades legislativa e jurisdicional, mas também da própria atividade de polícia da Administração Pública. Nosso objeto de análise nas aulas que se seguem se restringirá à concepção de serviço público em sentido estrito.49

De acordo com Renato Alessi, os serviços públicos, em sentido estrito, compreendem as atividades da Administração voltadas a buscar uma utilida-de para os particulares, tanto de natureza jurídica, como de ordem econômi-co-social. Dividem-se em serviços prestados uti universi, como o caso da ilu-minação pública, e uti singuli, como é o caso dos transportes públicos.50

Os serviços públicos caracterizam-se por serem estatais e indelegáveis, ou seja, a sua titularidade não pode ser transferida à iniciativa privada, embora a sua execução, em determinadas hipóteses, possa sê-lo.

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51 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de Direito Administrativo. 15a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006,

pp. 265 e 266.

52 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Di-

reito administrativo. 12a ed. São Paulo:

Atlas, 98.

53 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito

administrativo. São Paulo: Malheiros,

2005, p. 478.

O conceito de serviços públicos se apresenta um dos temas mais contro-vertidos em direito administrativo. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, existem três correntes distintas para a conceituação dos serviços públi-cos, que privilegiam três critérios distintos de análise:51

critério orgânico (ou subjetivo): serviço público é aquele prestado por ór-gãos públicos;

critério formal: serviço público é aquele disciplinado por regime de direito público, por disposição legal; e

critério material: serviço público é aquele que atende direta e essencial-mente a interesses da coletividade.

Para grande parte da doutrina, qualquer desses critérios, isoladamente, será insufi ciente para abranger todas as características dos serviços públicos, de modo que o seu conceito emerge, o mais das vezes, da conjugação dos três. Nesse sentido, vejam-se conceitos de alguns dos principais administrativistas brasileiros:

Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Serviço público [é] toda atividade material que a lei atribui ao Esta-do para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime total ou parcialmente público.52

Marçal Justen Filho:

Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito público.53

Celso Antônio Bandeira de Mello:

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público — portanto, consagra-dor de prerrogativas de supremacias e restrições especiais —, instituído

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54 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.

Curso de direito administrativo. 21ª ed.

São Paulo: Malheiros, 2006, p. 642.

55 Direito dos serviços públicos. Rio de

Janeiro: Forense, 2007, p. 157.

56 GORDILLO, Agustín. Tratado de dere-

cho administrativo. 5ª ed. Belo Horizon-

te: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI, p. 37.

57 GORDILLO, Agustín. Tratado de de-

recho administrativo. 5ª ed. Belo Hori-

zonte: Del Rey, 2003, tomo 2, cap. VI,

pp. 40-41.

pelo Estado em favor dos interesses defi nidos como públicos no sistema normativo.54

Alexandre Aragão:

Serviços públicos são as atividades de prestação de utilidades econô-micas a indivíduos determinados, colocadas pela Constituição ou pela Lei a cargo do Estado, com ou sem reserva de titularidade, e por ele desempenhadas diretamente ou por seus delegatários, gratuita ou re-muneradamente, com vistas ao bem-estar da coletividade.55

A difi culdade na defi nição exata das características essenciais à classifi ca-ção de uma determinada atividade estatal como serviço público teve por con-sequência a chamada “crise do serviço público”, quando se percebeu que pelo menos dois elementos que durante longo tempo fi zeram parte essencial do núcleo desse conceito, esvaíram-se com o passar dos anos. Conforme ressalta Agustín Gordillo, “dois elementos desta noção — a da pessoa que presta o serviço e o regime que o regula — entraram em crise há muito tempo”.56 Questionando a necessidade de uma conceituação doutrinária de serviço pú-blico, o autor observa:

A determinação de aplicar um regime de direito público a certa ati-vidade, estatal ou não, é uma decisão que a doutrina não pode estipular livremente, a partir da afi rmação que resolva fazer no sentido de cha-má-la “serviço público”; essa determinação vem dada pelo ordenamen-to jurídico, na medida em que efetivamente submeta ou não, em maior ou menor grau, alguma atividade humana ao direito público. Que al-guém a chame “serviço público” antes de existir a regulação legal de direito público, expressa somente uma opinião pessoal de que conviria que essa atividade fora objeto de regulação pelo direito público. Que denomine “serviço público” a uma atividade qualquer, depois que o direito público a regulou, não apenas é intranscendente, como também enseja confusões, pois muitos poderão crer, seguindo a tradição concei-tual, que se rege pelo direito público porque “é” um serviço público, esquecendo-se de que é chamado convencionalmente de serviço públi-co porque está regido expressamente pelo direito público. Se o jurista encontra determinada atividade regida pelo direito privado, não pode chamá-la de serviço público sem induzir a equívocos. Tampouco efetua com isso alguma classifi cação juridicamente relevante ou útil. (...) So-mente o regime jurídico positivo pode justifi car a denominação (...).57

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Em que pese uma tendência hoje observada de se privilegiar a dimensão formal da defi nição de serviços públicos, o regime de direito público que in-forma a prestação dos serviços públicos apresenta um conjunto de princípios que, quando presentes, permitem ao intérprete caracterizar a atividade estatal como serviço público.

Nesse sentido, ainda que a lei não o defi na expressamente como “serviço público”, caso exija que o mesmo seja prestado à generalidade da popula-ção, de forma contínua, regular, efi ciente e atual, com segurança, cortesia e preocupação com universalização e modicidade da tarifa cobrada como contraprestação, estar-se-á diante de um serviço público. Esses princípios en-contram fundamento no art. 175, IV, da Constituição Federal, que exige que os serviços públicos sejam prestados de forma “adequada”, a qual é então detalhada na Lei nº 8.987, de 13.02.1995, a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos, cujo art. 6º, §1º, dispõe:

§1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, efi ciência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

O requisito de atualidade é detalhado no §2º desse mesmo artigo:

§2º. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equi-pamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e a expansão do serviço.

Atenta à realidade das atividades, a lei preocupou-se também em deter-minar hipóteses nas quais, embora seja interrompido o serviço, não resta caracterizada ofensa ao princípio da continuidade:

§3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua in-terrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I — motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e

II — por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.

O serviço público divisível pode ser remunerado por taxa ou tarifa. Nos termos do art. 145, II, da Constituição Federal, a taxa remunera serviços públicos obrigatórios, impostos ao administrado, específicos e indivisíveis, sendo um exemplo clássico a taxa de prevenção de incên-dio. Os serviços públicos facultativos são remunerados por tarifa, que constitui um preço público, podendo o usuário optar por usufruir ou

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58 Desestatização, Privatizações, Con-

cessões e Terceirizações.4a. ed. Rio de

Janeiro, E. Lúmen Jures, 2.001.p. 144

não do serviço que a Administração, de forma direta ou indireta, põe à sua disposição.

A partilha de competências constitucionais entre os entes federados para prestar ou conceder o serviço público

A estrutura que defi ne a repartição de competências constitucionais entre os entes federativos opera-se com fundamento no princípio da predominância do interesse. Nesse sentido, a Constituição Federal enumera os serviços públi-cos a serem prestados pelo ente federado, por si ou por terceiros, nos termos do art. 175 da Constituição Federal.

Os Estados-membros constituem instituições típicas do federalismo clás-sico, pois são os mesmos que dão a estrutura conceitual dessa forma de Es-tado. Nos termos do art. 21, §1o da Constituição Federal, aos Estados são reservadas todas as competências remanescentes, ou seja, aquelas que a Cons-tituição não tenha vedado expressamente.

Marcos Juruena Vilella Souto destaca, acerca da competência estadual, com arrimo em Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que “a doutrina, muitas vezes, tem demonstrado certa vacilação em precisar quais seriam os limites rigorosos desta competência remanescente dos Estados-membros, reconhecendo mes-mo que, em termos reais, seria das mais reduzidas, seja em extensão, seja em importância. Dessa maneira, numa primeira aproximação do preceito consti-tucional em comento, passou-se a considerar que estariam excluídas do âmbi-to da competência dos Estados todas aquelas matérias atribuídas de modo restritivo à competência da União e dos Municípios”.58

Porém, é extensa a lista de serviços públicos que os Estados podem, e de-vem, prestar diretamente ou transferir para terceiros, mediante concessão ou permissão.

Com efeito, as competências da União estão elencadas no art. 21, enquan-to que aos Municípios competem as concessões e permissões dos serviços públicos de interesse local (art. 30, V, CF/88).

Assim, compete à União explorar, ou conceder, os serviços de tele-comunicações, serviço postal e aéreo; radiodifusão sonora e de sons e imagens; energia elétrica; aproveitamento energético dos cursos d´água; navegação aérea e infraestrutura aeroportuária; transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros, fronteiras nacionais e os que trans-ponham limites de Estados e Territórios; transporte rodoviário interes-tadual e internacional de passageiros; serviços portuários. Além disso, é de competência da União instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e defi nir critérios de outorga de direitos de seu uso; instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,

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59 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Mutações de Direito Administrativo. Rio

de Janeiro: Renovar, p. 328.

60 Existem, ainda, regimes de parceria

entre o poder público e pessoas de di-

reito privado sem fi nalidades lucrativas

(o chamado “terceiro setor”), dentre

as quais se incluem as organizações

sociais e as organizações da sociedade

civil de interesse público. Ver, a respei-

to, CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 15ª

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006,

pp. 287 a 295.

saneamento básico e transportes urbanos; e estabelecer princípios e dire-trizes para o sistema nacional de viação.

Aos Estados, cabe, expressamente, a prestação dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado (art. 25, §2º, CF/88), e toda e qualquer com-petência que não tenha sido atribuída à União, nem seja estritamente de in-teresse local (poderes remanescentes). São eles: transporte ferroviário, exceto quando competente a União, transporte metroviário; transporte rodoviário intermunicipal; transporte aquaviário, exceto quando for de competência da União, nos termos do art. 21, XII, d, da CF;

Cumpre destacar que aos Estados-membros compete, ainda, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e mi-crorregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Aos Municípios compete a prestação dos serviços de interesse local (art. 30, V, CF), que “deve ser entendido como predominante e não exclusivo, para efeito da caracterização da competência em cada caso, máxime se consi-derarmos as alterações tecnológicas, sempre incidentes na evolução dos servi-ços públicos que são capazes de transformar, em pouco tempo, um serviço tipicamente local num serviço que poderá vir a ser prestado efi cientemente em escala regional ou, mesmo, nacional.”59 Sob a competência municipal, tem-se, ainda, como inovação na Constituição de 1988, as atividades admi-nistrativas de interesse comum (art. 23), a exemplo do saneamento básico.

As formas de execução dos serviços públicos

Os serviços públicos podem ser prestados tanto diretamente pelo próprio ente titular da competência, como ter sua execução delegada a terceiros.

O Estado, quando decide prestá-los diretamente, pode instituir empresas públicas e sociedades de economia mista, como forma de gerir de forma mais efi ciente a execução desses serviços.

Conforme se detalhará nas próximas aulas, caso decida delegar a prestação do serviço à iniciativa privada, aplicar-se-ão os institutos da concessão e da permissão de serviços públicos (por força da previsão do art. 175, CF), ha-vendo ainda discussão doutrinária quanto à possibilidade de delegação de serviços públicos por meio do instituto da autorização, tendo em vista o dis-posto no art. 21, XI e XII, da Constituição.60

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V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Serviços públicos: introdução• Conceito• Características• Classifi cação• Titularidade• Princípios

Leitura complementar:

DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, capí-tulo 4 (“serviços públicos”).

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública exigindo que a Administração Pública de determinado município passasse a efetuar coleta de lixo domiciliar diária. Como se sabe, é dever das autoridades pú-blicas, em suas três esferas (federal, estadual e municipal), promover a saúde pública da população e prestar os serviços públicos de forma contínua. Em primeira instância, o juiz monocrático julgou procedente o pleito do Minis-tério Público.

Inconformado, o Município interpôs recurso de apelação, baseando-se na ausência de lei específi ca que o obrigasse a efetuar referida coleta diária e no poder discricionário da Administração Pública, sustentando que seria com-petência do Prefeito decidir sobre a forma e periodicidade da coleta de lixo domiciliar.

O Tribunal deu provimento ao recurso, entendendo que as normas cons-titucionais invocadas pelo Ministério Público teriam natureza programática, e que o Poder Judiciário não pode se imiscuir na esfera de competência dis-cricionária da Administração, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes.

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Dessa feita, houve inconformismo do Ministério Público, que interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça.

Tendo em vista a situação acima exposta e as características da atividade de coleta de lixo domiciliar, responda: ela constitui um serviço público? Essa conclusão é relevante para o deslinde da controvérsia? Por quê? Se você fosse Ministro(a) do STJ, daria provimento ao recurso? Quais seriam os funda-mentos do seu voto?

Caso gerador 2:

Em agosto de 2009 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 46, em que se discutia se o “monopólio” do serviço postal pela União, previsto em lei federal da década de 70, havia sido recepcionado pela Constituição de 1988.

Tal questão possuía alta relevância prática, pois da decisão do STF de-pendia a conclusão sobre se empresas privadas poderiam atuar livremente no mercado de serviço de entrega de correspondências.

A controvérsia teve origem no fato de que a Constituição Federal determi-na, em seu art. 21, X, ser dever da União a prestação do serviço postal.

Art. 21. Compete à União:(...)X — manter o serviço postal e o correio aéreo nacional

Além disso, a lei nº 6.538/78, que dispõe sobre os serviços postais, conferiu-lhe monopólio para o desempenho dos serviços postais, nos seguintes termos:

Art. 9º — São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

I — recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;

II — recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:

III — fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franque-amento postal.

§1º — Dependem de prévia e expressa autorização da empresa ex-ploradora do serviço postal;

a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear

correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal.

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61 MARQUES NETO, Floriano Peixoto

de Azevedo. “Reestruturação do setor

postal brasileiro”. Revista Trimestral de

DireitoPpúblico, nº 19, p. 149.

62 MARQUES NETO, Floriano Peixoto

de Azevedo. Reestruturação do setor

postal brasileiro. Revista Trimestral de

Direito Público, nº 19, p. 161.

§ 2º — Não se incluem no regime de monopólio:a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências

da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;

b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventual-mente e sem fi ns lucrativos, na forma defi nida em regulamento.

Para Floriano de Azevedo Marques Neto, “não se nega que a atividade postal seja de enorme relevância para a integração do país e para a preservação da identidade nacional. Mas isto remete muito mais à necessidade de existir um serviço postal universal (dever de manutenção do mesmo) do que à contingên-cia de ser ele monopolizado pelo Estado”.61 Adiante, o autor complementa:

Igualmente no que toca ao ‘monopólio’ público — que, como vi-mos, exclui a possibilidade do exercício de uma atividade por outrem que não o Poder Público — no próprio art. 21 vamos encontrar com-petências determinadas pelo verbo ‘manter’ e que nem de longe podem ser tidas como excludentes do exercício do exercício da atividade por entidades privadas. É o caso da obrigação de manter serviços ofi ciais de estatística, geografi a, geologia e cartografi a no âmbito nacional (inciso XV). Ora, é irrefutável que à União corresponde o encargo de sustentar e prover a coletividade nacional de tais serviços. Porém, a ninguém so-correria defender que tal atividade seria ‘monopólio’ da União, vedan-do às universidades, às organizações não-governamentais ou mesmo às entidades o exercício das atividades de levantamento estatístico, geo-gráfi co ou, o que é mais comum, a realização de serviços de pesquisa geológica ou cartográfi ca de âmbito nacional.62

Nesse sentido, pergunta-se:1) A atividade de entrega de correspondências constitui serviço público?

Em sua análise, comente o dispositivo constitucional acima transcrito bem como a lei nº 6.538/78.

2) Caso seja serviço público, deve necessariamente ser prestado através de “monopólio”? Por quê? Qual seria o correto signifi cado técnico da palavra “monopólio”, constante do art. 9º da Lei nº 6.538/78?

3) Afi nal, a Lei nº 6.538/78 foi recepcionada pela Constituição Federal?

Caso gerador 3:

Nos termos do art. 21 da Constituição Federal, compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de

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transporte aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território, além dos portos marítimos, fl uviais e lacustres.

Ademais disso, compete à União instituir diretrizes para os transportes ur-banos e estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação e executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras. Deter-mina ainda a Carta Magna que a lei disporá sobre a ordenação do transporte aquático, estabelecendo as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estran-geiras.

De outro lado, o art. 25 da Constituição Federal dispõe que compete aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição, e que os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropoli-tanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Diante dessas competências, pode se concluir que a titularidade dos servi-ços prestados por empresas de apoio portuário, apoio marítimo, cabotagem, navegação interior e longo curso são de competência federal, atualmente atri-buídas por lei à ANTAQ, e que a titularidade dos serviços públicos de trans-porte de passageiros nas regiões metropolitanas é do Estado, sendo objeto de regulação estadual.

Uma operadora de transporte aquaviário de passageiros em uma determi-nada Baía que alcança vários municípios, com fulcro no disposto no art. 2º da Lei n. 9074 de 07 de julho de 1995, indaga, por consulta à ANTAQ, so-bre a necessidade de obtenção de autorização para proceder à sua operação. A ANTAQ, por meio de ofício em resposta à consulta, entende que independe de concessão, permissão ou autorização o transporte aquaviário de passagei-ros. A empresa inicia, assim, as operações.

De outro lado, a Agência Estadual, não concordando com essa funda-mentação da ANTAQ, notifi ca a Empresa comunicando que ela não poderá operar na Baía enquanto não submeter e obtiver pedido de autorização à Agência Estadual.

Pergunta-se: existe confl ito de competências entre a ANTAQ e a Agência Reguladora estadual no caso concreto? Caso, por hipótese, estiver-se diante de um confl ito de competências, ele poderá ser submetido ao Poder Judiciá-rio? Nesse caso, a que Tribunal competirá dirimi-lo?

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

Serviço público é uma expressão polissêmica que, todavia, tem inegável efeito prático sobre o regime jurídico aplicável às atividades econômicas. O regime jurídico de cada serviço público deve ser buscado no ordenamento jurídico do ente estatal que, por defi nição constitucional, tenha competência para sua disciplina.

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UNIDADE II: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPS). CONSÓRCIOS PÚBLICOS.

AULAS 5 E 6:

I. TEMA

Delegação dos serviços públicos

II. ASSUNTO

Formas de delegação dos serviços públicos: concessão e permissão. Licita-ção e contrato de concessão

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os institutos da concessão e da permissão de serviços públicos, expondo suas principais características.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A concessão de serviços públicos na Constituição de 1988

Os serviços públicos não se confundem com as atividades econômicas privadas. Como visto, em termos de atividades econômicas, a Constituição dispõe sobre a ideia de subsidiariedade. A Constituição também indica que alguns serviços públicos podem ser considerados não privativos; isto é, po-dem, ao mesmo tempo, ser considerados atividades econômicas livres à ini-ciativa privada. É, por exemplo, o caso da saúde e da educação:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.§ 1º — As instituições privadas poderão participar de forma com-

plementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, me-

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diante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades fi lantrópicas e as sem fi ns lucrativos.

§ 2º — É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fi ns lucrativos.

§ 3º — É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos pre-vistos em lei.

§ 4º — A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facili-tem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fi ns de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da fa-mília, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exer-cício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho.

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I — cumprimento das normas gerais da educação nacional;II — autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Os serviços públicos propriamente ditos são de exclusiva titularidade es-tatal. É errado, portanto, dizer que a delegação de serviço público constitui uma privatização. Para que os serviços públicos sejam exercidos pelo setor privado, só por meio de delegação do Estado: como visto, as atividades eco-nômicas são regidas pelo art. 170 da Constituição Federal ao passo que a concessão de serviços públicos tem a base de seu regime jurídico estatuída no art. 175 da Constituição Federal, o qual dispõe:

Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre: I — o regime das empresas concessionárias e permissionárias de ser-

viços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fi scalização e rescisão da con-cessão ou permissão;

II — os direitos dos usuários; III — política tarifária; IV — a obrigação de manter serviço adequado.

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A norma acima determina que as concessões devem ser precedidas de li-citação, bem como exige a promulgação de lei que viesse a dispor sobre o regime jurídico das concessionárias, o contrato de concessão, direitos dos usuários dos serviços públicos, política tarifária e adequação do serviço.

Conforme se pode observar, o dispositivo constitucional deixa assente, já no caput, que toda concessão ou permissão de serviço público pressupõe a realização de processo licitatório, exceto nos casos de dispensa e inexigibili-dade, os quais deverão, em todo caso, observar as formalidades e requisitos previstos na lei, especialmente na Lei nº 8.666/1993.

Em obediência ao supracitado mandamento constitucional, no sentido de que lei viria a dispor sobre o regime jurídico das concessionárias e permissio-nárias de serviços públicos, foi promulgada a Lei nº 8.987, de 13.02.1995.

A Lei nº 8.987/95 apresenta um conjunto de normas relativas à concessão de serviços públicos, cujo art. 2º traz as seguintes defi nições:

Art. 2o Para os fi ns do disposto nesta Lei, considera-se:I — poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou o

Município, em cuja competência se encontre o serviço público, pre-cedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão;

II — concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de con-corrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;

III — concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, amplia-ção ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delega-da pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de con-corrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado median-te a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;

(...)

A Lei disciplina também as licitações para concessão de serviços públicos, as quais devem observância aos princípios estatuídos no art. 14 da Lei nº 8.987/1995:

Art. 14. Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da

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legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, mo-ralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.

O conjunto de normas gerais relativas à licitação para concessão de ser-viços públicos encontra-se nos artigos 15 a 22 da Lei nº 8.987/1995, cuja leitura faz-se necessária à completa compreensão do tema.

Interessante observar que, tendo em vista o intuito de introdução da con-corrência nos setores que foram objeto do processo de desestatização, o art. 16 da Lei nº 8.987/1995 determina que, sempre quando possível, as conces-sões devem ser concedidas sem caráter de exclusividade:

Art. 16. A outorga de concessão ou permissão não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica jus-tifi cada no ato a que se refere o art. 5o desta Lei.

Contrato de concessão de serviços públicos

As cláusulas essenciais a todo e qualquer contrato de concessão encon-tram-se previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, o qual dispõe:

Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas:I — ao objeto, à área e ao prazo da concessão;II — ao modo, forma e condições de prestação do serviço;III — aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros defi nidores

da qualidade do serviço;IV — ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o

reajuste e a revisão das tarifas;V — aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da

concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações;

VI — aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço;

VII — à forma de fi scalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la;

VIII — às penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação;

IX — aos casos de extinção da concessão;X — aos bens reversíveis;

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XI — aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das inde-nizações devidas à concessionária, quando for o caso;

XII — às condições para prorrogação do contrato;XIII — à obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de

contas da concessionária ao poder concedente;XIV — à exigência da publicação de demonstrações fi nanceiras pe-

riódicas da concessionária; eXV — ao foro e ao modo amigável de solução das divergências con-

tratuais.Parágrafo único. Os contratos relativos à concessão de serviço pú-

blico precedido da execução de obra pública deverão, adicionalmente:I — estipular os cronogramas físico-fi nanceiros de execução das

obras vinculadas à concessão; eII — exigir garantia do fi el cumprimento, pela concessionária, das

obrigações relativas às obras vinculadas à concessão.

Faz-se interessante constatar que, apesar de a lei, desde a sua promulgação, ter previsto no inciso XV que deveria constar dos contratos de concessão nor-mas relacionadas a formas amigáveis de solução de controvérsias, a fi m de se evitarem dúvidas sobre se referida redação constituía autorização legal para a introdução da arbitragem nesses contratos, a Lei nº 11.196/2005 introduziu o art. 23-A à Lei nº 8.987/1995, cuja redação estabelece:

Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de me-canismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Encargos do Concessionário e do Poder Concedente

O concessionário de serviços públicos submete-se a uma série de deveres que decorrem diretamente da lei. Nesse sentido, veja-se o quanto dispõe o art. 31da Lei nº 8.987/95:

Art. 31. Incumbe à concessionária:I — prestar serviço adequado, na forma prevista nesta Lei, nas nor-

mas técnicas aplicáveis e no contrato;II — manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à

concessão;III — prestar contas da gestão do serviço ao poder concedente e aos

usuários, nos termos defi nidos no contrato;

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IV — cumprir e fazer cumprir as normas do serviço e as cláusulas contratuais da concessão;

V — permitir aos encarregados da fi scalização livre acesso, em qual-quer época, às obras, aos equipamentos e às instalações integrantes do serviço, bem como a seus registros contábeis;

VI — promover as desapropriações e constituir servidões autoriza-das pelo poder concedente, conforme previsto no edital e no contrato;

VII — zelar pela integridade dos bens vinculados à prestação do serviço, bem como segurá-los adequadamente; e

VIII — captar, aplicar e gerir os recursos fi nanceiros necessários à prestação do serviço.

Parágrafo único. As contratações, inclusive de mão de obra, feitas pela concessionária serão regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não se estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela concessionária e o poder concedente.

Igualmente, também o poder público possui uma série de deveres que decorrem da delegação do serviço publico, conforme expressa previsão do art. 29:

Art. 29. Incumbe ao poder concedente:I — regulamentar o serviço concedido e fi scalizar permanentemente

a sua prestação;II — aplicar as penalidades regulamentares e contratuais;III — intervir na prestação do serviço, nos casos e condições previs-

tos em lei;IV — extinguir a concessão, nos casos previstos nesta Lei e na forma

prevista no contrato;V — homologar reajustes e proceder à revisão das tarifas na forma

desta Lei, das normas pertinentes e do contrato;VI — cumprir e fazer cumprir as disposições regulamentares do ser-

viço e as cláusulas contratuais da concessão;VII — zelar pela boa qualidade do serviço, receber, apurar e solucio-

nar queixas e reclamações dos usuários, que serão cientifi cados, em até trinta dias, das providências tomadas;

VIII — declarar de utilidade pública os bens necessários à execução do serviço ou obra pública, promovendo as desapropriações, direta-mente ou mediante outorga de poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabilidade pelas indenizações cabíveis;

IX — declarar de necessidade ou utilidade pública, para fi ns de ins-tituição de servidão administrativa, os bens necessários à execução de serviço ou obra pública, promovendo-a diretamente ou mediante ou-

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63 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de

serviços públicos. São Paulo: Dialética,

1997, p. 279.

64 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de

serviços públicos. São Paulo: Dialética,

1997, p. 279.

torga de poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabi-lidade pelas indenizações cabíveis;

X — estimular o aumento da qualidade, produtividade, preservação do meio-ambiente e conservação;

XI — incentivar a competitividade; eXII — estimular a formação de associações de usuários para defesa

de interesses relativos ao serviço.

Possibilidade de subconcessão e transferência do contrato de concessão

Em regra, a execução do objeto contratado deve ser realizada diretamente pela parte que o celebrou. Entretanto, a Lei nº 8.987/1995 permite a chama-da subconcessão, desde que obedecidas às seguintes formalidades:

Art. 26. É admitida a subconcessão, nos termos previstos no contrato de concessão, desde que expressamente autorizada pelo poder concedente.

§1o. A outorga de subconcessão será sempre precedida de concorrência.§2o. O subconcessionário se sub-rogará todos os direitos e obriga-

ções da subconcedente dentro dos limites da subconcessão.

A subconcessão é defi nida por Marçal Justen Filho como a situação em que “o concessionário abdica dos poderes recebidos, atinentes ao desempe-nho do serviço concedido”. Portanto, “atribui a outrem aqueles encargos que havia recebido do Estado”, de forma que “um terceiro assume a prestação do serviço sem sujeitar-se ao estrito controle do concessionário”63.

Essa caracterização faz-se relevante, pois nem toda contratação de terceiro para desenvolver parte do objeto da concessão traduz-se em subconcessão. Conforme explana Marçal Justen Filho:

Contratar um terceiro, ainda que para desempenho de atividades inerentes à concessão, não caracteriza cessão ou subconcessão. Dá-se uma dessas duas fi guras quando o vínculo entre concessionário e tercei-ro produzir transferência de faculdades indissociáveis à gestão de servi-ços públicos. Ademais, também se confi gurará cessão ou subconcessão quando o terceiro assumir (ainda que parcialmente) a gestão do serviço por conta e risco próprios.64

A transferência da concessão e a mudança no controle societário da con-cessionária devem ser precedidas de aprovação do poder concedente, sob pena de caducidade. Nesse sentido, dispõe o art. 27 da Lei nº 8.987/1995:

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Art. 27. A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão.

§1o. Para fi ns de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente deverá:

I — atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade fi nan-ceira e regularidade jurídica e fi scal necessárias à assunção do serviço; e

II — comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.

§2o. Nas condições estabelecidas no contrato de concessão, o poder concedente autorizará a assunção do controle da concessionária por seus fi nanciadores para promover sua reestruturação fi nanceira e asse-gurar a continuidade da prestação dos serviços.

§3o. Na hipótese prevista no § 2o deste artigo, o poder concedente exigirá dos fi nanciadores que atendam às exigências de regularidade jurídica e fi scal, podendo alterar ou dispensar os demais requisitos pre-vistos no §1o, inciso I deste artigo.

§4o. A assunção do controle autorizada na forma do § 2o deste arti-go não alterará as obrigações da concessionária e de seus controladores ante ao poder concedente.

A norma tem por fi nalidade evitar que a condução do serviço público seja atribuída a outras pessoas que não as licitantes vencedoras da licitação sem prévia aprovação do poder público, já que, em tese, a referida transferência ou alteração de controle pode vir a prejudicar a execução do serviço.

Note-se, por outro lado, que a lei não veda a transferência da concessão nem a alteração do controle acionário. Ao contrário, admite-as expressamen-te, desde que previamente aprovadas pelo poder concedente. Essa possibili-dade tem razão de ser, por exemplo, à vista dos longos prazos dos contratos de concessão, que muitas vezes alcançam três décadas (ou mais, em caso de prorrogação), não podendo se esperar que, durante todo esse largo período temporal, não possa a situação da concessionária e de seu grupo econômico vir a ser alterado. Entretanto, em prol da preservação da continuidade e da qualidade do serviço, a lei exige que haja prévia aprovação do poder público a toda e qualquer mudança que implique transferência da concessão ou alte-ração do seu controle societário.

Permissão de serviços públicos

A permissão de serviços públicos encontra-se defi nida no art. 2º, IV, da Lei nº 8.987/95:

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65 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 15a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006,

p. 338.

Art. 2o Para os fi ns do disposto nesta Lei, considera-se:(...)IV — permissão de serviço público: a delegação, a título precário,

mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.

De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, a permissão de serviços públicos constitui “o contrato administrativo através do qual o Poder Público (permitente) transfere a um particular (permissionário) a execução de certo serviço público nas condições estabelecidas em normas de direito público, inclusive quanto à fi xação do valor das tarifas”.65

Classicamente, a permissão era considerada um ato unilateral da Adminis-tração Pública, e não uma forma de contratação.

Entretanto, com a Constituição de 1988, a doutrina passou a reconhecer o caráter contratual da permissão de serviços públicos, haja vista que o art. 175, parágrafo único, I, da Constituição faz referência ao “caráter especial de seu contrato”, ao dispor sobre a lei que viria a disciplinar o regime das empre-sas concessionárias e permissionárias:

Art. 175. (...)Parágrafo único. A lei disporá sobre:I — o regime das empresas concessionárias e permissionárias de ser-

viços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fi scalização e rescisão da con-cessão ou permissão;

(...)

Sobre a controvérsia, expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

A Constituição de 1988 tratou, porém, do instituto da permissão de serviço público no seu art. 175, submetendo-o, do mesmo modo que a concessão de serviços públicos, à indispensável licitação e a um regime contratual.

Havia, entretanto, uma perplexidade, no inciso I, do parágrafo úni-co, do referido artigo 175 da Constituição, criada pela menção ao con-trato, que, à época, diante do que parecia ser uma defi ciência técnica da redação, incluiria a permissão.

Ora, se tanto a concessão como a permissão fossem ambas modali-dades contratuais, não haveria distinção a ser feita, e o legislador cons-titucional teria sido superfetatório. A única exegese constitucional ra-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

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66 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Curso de direito administrativo. 12ª ed.

Rio de Janeiro: Forense, p. 438.

zoável seria, portanto, aquela que resgatasse a autonomia do instituto, enquanto ato unilateral da Administração.

Porém, toda essa construção, destinada a salvar o instituto da per-missão, com suas características doutrinárias tradicionais, perdeu sua razão de ser com o advento da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que, em lacônico e impreciso dispositivo (art. 40), caracterizou-a como um contrato de adesão, confi rmando, assim, sua submissão à mesma disciplina das concessões.66

O art. 40 da Lei nº 8.987/1995, a que se refere o autor, possui a seguinte redação:

Art. 40. A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais nor-m as pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.

Parágrafo único. Aplica-se às permissões o disposto nesta Lei.

Portanto, em que pesem as críticas doutrinárias, a permissão de serviço público, por força do disposto no art. 175, parágrafo único, I, da Consti-tuição e do art. 40 da Lei nº 8.987/1995, em nosso ordenamento jurídico, apresenta atualmente natureza jurídica contratual.

Cumpre destacar que a concessão regida pela Lei 8.987/95 (concessão co-mum), não se confunde com a concessão especial, disposta na Lei 11.079/2004, a denominada parceria público-privada, objeto de aula específi ca.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Concessão e Permissão de serviços públicos

o Introduçãoo Fontes normativaso Concessão de serviços públicos (Concessão comum — subitens

1 a 10)o Permissão de serviços públicos

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Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 2005, pp. 96 a 121.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Ma-lheiros, 2005, pp. 500 a 544.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 430 a 450.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

O contrato de concessão do transporte metroviário de passageiros do Es-tado do Rio de Janeiro prevê deveres a serem prestados por ambas as partes contratantes. Dessa forma, por um lado, compete à concessionária promover a manutenção adequada do serviço, garantindo a sua continuidade. Por ou-tro lado, o poder público estadual obrigou-se a entregar novas estações e trens para exploração pela concessionária.

Nesse sentido, pergunta-se: caso, por qualquer razão, o poder público atrase o cronograma de entrega de trens, pode a concessionária deixar de prestar o serviço de transporte coletivo metroviário de passageiros?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os serviços públicos podem ser executados por terceiros não integrantes da Administração Público. Nesse caso, esta execução se dá por meio dos con-tratos de concessão e/ou permissão, nos termos do art. 175 da Constituição da República.

A contratação de um terceiro para a execução de serviço público deve ser precedida de procedimento licitatório em que seja assegurada a isonomia entre os licitantes. A Lei nº 8.987/1995 deve ser estudada pelo aluno, pois é o diploma normativo que trata das disposições aplicáveis aos contratos de concessão e permissão de serviço público.

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FGV DIREITO RIO 56

AULAS 7 E 8

I. TEMA

Direitos dos usuários de serviços públicos e política tarifária.

II. ASSUNTO

Direitos dos usuários e os princípios que regem a concessão de serviços públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os direitos dos usuários de serviços públicos concedidos e dis-cutir o signifi cado dos princípios que regem as concessões de serviços públi-cos, com especial ênfase ao princípio do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Direitos dos usuários de serviços públicos

Na Lei nº 8.987/1995 encontra-se o rol de direitos do usuário do servi-ço público concedido. Nesse sentido, dispõem os arts. 7º e 7-A da Lei nº 8.987/1995:

Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setem-bro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

I — receber serviço adequado;II — receber do poder concedente e da concessionária informações

para a defesa de interesses individuais ou coletivos;III — obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vá-

rios prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)

IV — levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

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V — comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos pratica-dos pela concessionária na prestação do serviço;

VI — contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

Art. 7º-A. As concessionárias de serviços públicos, de direito públi-co e privado, nos Estados e no Distrito Federal, são obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês de vencimento, o mínimo de seis datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus débitos.

A defi nição legal de “serviço adequado”, por sua vez, é encontrada no art. 6º, o qual alude às condições de regularidade, continuidade, efi ciência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas:

Art. 6o. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de servi-ço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabeleci-do nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, efi ciência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§ 2o A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equi-pamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua inter-rupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I — motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II — por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

Um tema bastante discutido em sede regulatória reside na aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação entre a concessionária de servi-ços públicos e os usuários dos referidos serviços.

Por um lado, a Constituição Federal prevê ser a defesa do consumidor princípio constitucional fundador da Ordem Econômica (art. 170, IV), ao passo que o art. 175, ao tratar dos serviços públicos, previu que lei viria a dispor sobre os direitos dos usuários.

Tendo em vista que o constituinte não costuma utilizar termos distintos para aludir a um mesmo instituto jurídico, a doutrina discute a existência de peculiaridades relativas aos direitos dos usuários dos serviços públicos com-

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67 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessões de

serviços públicos. São Paulo: Dialética,

1997, p. 131.

parativamente às disposições gerais do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), que regem a generalidade das relações entre fornecedo-res de produtos ou serviços e seus usuários fi nais.

Por outro lado, tanto o CDC quanto a Lei de Concessões de Serviços Pú-blicos (Lei nº 8.987/1995) contêm normas prevendo a aplicação do CDC às concessões de serviços públicos:

CDC (Lei nº 8.078/1990):

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:(...)X — a adequada e efi caz prestação dos serviços públicos em geral

Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995):

Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setem-bro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

(...)

Dessa forma, não se questiona a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações entre concessionária e usuário de serviços públicos, mas sim a extensão e o limite dessa aplicação, tendo em vista as peculiari-dades que informam a prestação de serviço público, tais como deveres de continuidade e universalidade, bem como a remuneração por meio de tarifa.

Nesse sentido, é preciso considerar que a prestação de serviço público traz subjacente a ideia de interesse coletivo e justiça distributiva, elemento ge-ralmente ausente das relações típicas de direito do consumidor, nas quais se enfoca a relação individual fornecedor-consumidor (e, portanto, questões de justiça comutativa). Além disso, a relação entre concessionária e usuário de serviço público não pode ser analisada desconsiderando-se o contrato de con-cessão celebrado entre o poder concedente e a prestadora do serviço público.

Dessa forma, Marçal Justen Filho observa ser necessário reconhecer a pri-mazia do regime de direito administrativo sobre a de direito consumerista nas relações entre usuários e concessionárias de serviços públicos:

O prestador de serviço privado estrutura sua operação econômica com fi nalidade diversa da satisfação do interesse público. Ele busca ob-ter o maio lucro possível, tendo em vista os princípios da atividade econômica em sentido estrito (CF/88, art. 170). Já o prestador do ser-viço público desempenha atividade disciplinada pelos princípios de di-reito público e apenas pode intentar a satisfação egoística de seu inte-resse na medida em que se realize o interesse público. 67

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68 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso

de direito administrativo. Rio de Janeiro:

Forense, 2012, p. 385.

No mesmo sentido, manifesta-se Alexandre Santos de Aragão:

Todavia, o CDC não pode ser aplicado indiscriminadamente aos serviços públicos, já que eles não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação de ma-nutenção de um sistema prestacional coletivo.

Os serviços públicos, ao revés, constituem atividades de prestação de bens e serviços muitas vezes titularizadas pelo Estado com exclusivi-dade, só podendo ser prestados por particulares enquanto delegatários (res extra commercium). A razão para tais atividades econômicas serem retiradas da livre iniciativa e submetidas a um regime jurídico tão espe-cial se explica pelo fato de visarem a assegurar os interesses dos cidadãos enquanto integrantes de uma mesma sociedade, não como pessoas in-dividualmente consideradas.

Ao contrário das relações do concessionário com eventuais parceiros privados (ex. fornecedores de insumos), as suas relações com usuários podem variar de acordo com as determinações de serviço do Poder con-cedente, não tendo o usuário-consumidor ‘direito adquirido’ ou ‘ato jurídico perfeito’ para impor a manutenção das condições iniciais de prestação do serviço, que podem ser unilateralmente alteradas pelo jus variandi da Administração Pública, respeitado o equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão.

Os serviços públicos têm uma conotação coletiva muito mais ampla que as atividades econômicas privadas. Visam à coesão social, sendo muitas vezes um instrumento técnico de distribuição de renda e reali-zação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), com o fi nan-ciamento, através das tarifas dos usuários que já têm o serviço, da sua expansão aos que ainda não têm acesso a ele. Se fosse apenas pelo siste-ma privatista do CDC, essas tarifas teriam que ser consideradas abusi-vas (artigos 39, V; e art. 51, IV, CDC), eis que superam o valor que seria decorrente apenas da utilidade individualmente fruída.68

A jurisprudência também tem se mostrado sensível à diferenciação entre as fi guras do consumidor e a do usuário de serviço público. Nesse sentido, veja-se trecho de decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Serviço público de fornecimento de energia elétrica. A relação entre fornecedor e consumidor não se confunde com a fi rmada por conces-sionária e usuário, dado que o concedente é o poder público, caso em que se observa a supremacia do interesse público. Vácuo legislativo em

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FGV DIREITO RIO 60

69 Apelação cível 2006.001.19958.

reger os direitos do usuário em relação à concessionária. Inadimple-mento do Congresso Nacional com o disposto no art. 37, da Emenda Constitucional nº 19/98, que determina a edição da lei de defesa do usuário de serviços públicos. Aplicação somente analógica da legislação consumerista, que deve ser interpretada em harmonia com outros di-plomas.

Se há regulamento administrativo estabelecendo a forma como será regulada a relação, descabe a invocação do Código de Defesa do Con-sumidor para obter algo que com aquele contrasta. Usuário inadim-plente no pagamento de suas contas. Suspensão do fornecimento por falta de pagamento. Auto-tutela admitida por lei após prévio aviso comprovado nos autos.69

Portanto, doutrina e jurisprudência inclinam-se no sentido do reconheci-mento de peculiaridades da situação jurídica do usuário do serviço público, que o afastam, em determinados tópicos, da disciplina prevista no CDC.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, reconheceu-se, inclusive, a ju-ridicidade da atuação dos órgão de defesa do consumidor e responsáveis pela regulação de serviços públicos e atividades econômicas (RESP1.138.591-RJ — RELATOR: MINISTRO CASTRO MEIRA):

PROCESSO CIVIL. CONSUMIDOR. EMBARGOS À EXE-CUÇÃO FISCAL. MULTA APLICADA PELO PROCON. DIVER-GÊNCIA JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. NÃO CONHECIMENTO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. DOSIMETRIA DA SANÇÃO. VALIDADE DA CDA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07⁄STJ. COMPETÊNCIA DO PROCON. ATUAÇÃO DA ANATEL. COMPATIBILIDADE. [...] 5. Sempre que condutas praticadas no mercado de consumo atingirem diretamente o interesse de consumidores, é legítima a atuação do Procon para aplicar as sanções administrativas previstas em lei, no re-gular exercício do poder de polícia que lhe foi conferido no âmbito do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Tal atuação, no entanto, não exclui nem se confunde com o exercício da atividade regulatória setorial realizada pelas agências criadas por lei, cuja preocupação não se restringe à tutela particular do consumidor, mas abrange a execução do serviço público em seus vários aspectos, a exemplo, da continuidade e universalização do serviço, da preservação do equilíbrio econômico-fi nanceiro do contrato de concessão e da modicidade tarifária.

Também em sede normativa mostra-se relevante mencionar que a Emen-da Constitucional nº 19/1998 exigia que, dentro de 120 dias a contar de

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FGV DIREITO RIO 61

70 No âmbito estadual e municipal, exis-

tem alguns diplomas normativos pro-

mulgados. A título ilustrativo, pode-se

mencionar que o Estado de São Paulo

possui o seu Código de Proteção e De-

fesa dos Usuários de Serviços Públicos

– Lei estadual nº 10.294/1999.

sua promulgação, viesse a ser expedido o Código de Defesa do Usuário do Serviços Públicos:

Art. 27. O Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Emenda, elaborará lei de defesa do usuário de serviços públicos.”

Entretanto, até a presente data, referido diploma legal não foi exarado, de forma que se tem, nesse aspecto, um hiato normativo.70 A ausência de norma expressa, contudo, não impede o reconhecimento dos direitos dos usuários de serviços públicos, a partir da aplicação das previsões da Lei nº 8.987/1995 (a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos), bem como dos dis-positivos do Código de Defesa do Consumidor, naquilo em que não confl i-tarem com a ordenação jurídica dos serviços públicos.

O princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão

Dentre os princípios que regem as concessões de serviços públicos destaca-se, por sua relevância, o princípio da modicidade tarifária, o qual somente pode ser compreendido à luz do princípio do equilíbrio econômico-fi nancei-ro, os quais devem, por conseguinte, ser analisados em conjunto.

O equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão constitui princípio cons-titucionalmente assegurado, podendo ser inferido do art. 37, XXI, da Cons-tituição Federal, quando se refere à exigência de “manutenção das condições efetivas da proposta” nos pagamentos relativos aos serviços contratados me-diante licitação:

Art. 37. (...)XXI — ressalvados os casos especifi cados na legislação, as obras,

serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os con-correntes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualifi cação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Igualmente, encontra-se positivado no art. 9º, §4º, da Lei nº 8.987/95, o qual dispõe:

§4º. Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-fi nanceiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.

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71 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Par-

cerias na administração pública. 4a ed.

São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.

72 RESP 431121 / SP, j. em 20.08.2002.

73 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Par-

cerias na administração pública. 4a ed.

São Paulo: Atlas, 2002, p. 97.

74 “Rigorosamente, a manutenção do

equilíbrio econômico-fi nanceiro é um

princípio regulador do contrato admi-

nistrativo. Não é nem direito nem dever

de cada parte, mas uma característica

do contrato. Pode-se aludir ao direito

da parte de obter elevação da remu-

neração em virtude da ampliação de

seus encargos. Isso será conseqüên-

cia da natureza jurídica do contrato

administrativo, que é integrada pelo

princípio da manutenção do equilíbrio

econômico-fi nanceiro da contratação”.

(Concessões de serviços públicos. São

Paulo: Dialética, 1997, p. 146).

Consoante Maria Sylvia Zanella di Pietro, o princípio do equilíbrio eco-nômico-fi nanceiro da concessão fundamenta-se em quatro princípios, quais sejam, (i) eqüidade, (ii) razoabilidade, (iii) continuidade e (iv) indisponibili-dade do interesse público.71 Como já esclareceu o Superior Tribunal de Justi-ça, “a fi nalidade da cobrança da tarifa é manter o equilíbrio fi nanceiro do contrato, possibilitando a prestação contínua do serviço público”.72

Maria Sylvia Zanella di Pietro73 menciona que um dos aparentes parado-xos da teoria do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão reside na ne-cessidade de se conciliar o direito do concessionário ao equilíbrio com a ideia de que os riscos associados à execução do serviço devem correr por sua conta.

Em resposta a essa aparente contradição, a autora observa que os riscos ordinários da atividade devem ser atribuídos ao concessionário e, por con-seguinte, não lhe conferem direito à recomposição de eventuais perdas, pois que, nesses casos, não se pode falar propriamente de desequilíbrio.

Por outro lado, quanto às circunstâncias extraordinárias, sendo inimputá-veis ao concessionário, devem ser arcadas pelo poder concedente, autorizan-do a revisão tarifária (com fulcro nas teorias do fato do príncipe, do fato da administração e da imprevisão). A esse respeito, mostra-se relevante destacar lição de Marçal Justen Filho74, segundo a qual o equilíbrio econômico-fi nan-ceiro da concessão não constitui propriamente um direito, mas antes um princípio regulador, uma garantia a ambos, concessionário e poder conce-dente, de que a equação original do contrato será mantida ao longo do exer-cício da concessão. Especialmente, o princípio atua no sentido de conferir aos licitantes a certeza de que podem apresentar as melhores propostas possí-veis no momento da licitação — pois não precisam incluir em seus cálculos projeções de custos associados a perdas relacionadas a eventos imprevisíveis (o que seria mesmo impossível) — garantindo-se, dessa forma, a efetividade do objetivo do procedimento licitatório, que é a busca da proposta mais van-tajosa para a Administração. Nas palavras do autor:

Mas o fundamental se encontra no princípio da indisponibilidade do interesse público. Em primeiro lugar, impõe a necessidade de evitar que a Administração arque com desembolsos superiores aos necessários à satisfação dos seus fi ns. A Administração necessita selecionar a pro-posta mais vantajosa (...) A consagração desse princípio representa a garantia à Administração de que receberá as propostas mais vantajosas e de menor preço, porquanto o direito assegura ao particular que a re-lação entre encargos e remuneração não será alterada.(...) O particular não necessita incluir em suas previsões os eventos futuros prejudiciais, pois o direito lhe assegura a manutenção do arcabouço contratual deli-neado no momento inicial da contratação. Signifi ca que o princípio da

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75 Concessões de serviços públicos. São

Paulo: Dialética, 1997, p. 149.

76 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito

administrativo regulatório. Rio de Janei-

ro: Lúmen Juris: 2002, p. 208.

77 Concessões de serviços públicos. São

Paulo: Dialética, 1997 p. 263

indisponibilidade do interesse público exclui a viabilidade de uma con-tratação sujeitável a riscos de imprevisão ou de modifi cações da relação econômica subjacente.75

O princípio da modicidade tarifária

Marcos Juruena Villela Souto se refere ao princípio da modicidade das tarifas como “a própria consequência do princípio da generalidade, por força do qual as tarifas devem ser o mínimo possível onerosas para os usuários”76.

A modicidade tarifária encontra previsão expressa no art. 6º, §1º, da Lei nº 8.987/95, o qual dispõe:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de servi-ço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabeleci-do nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, efi ciência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

O princípio da modicidade tarifária, em um regime de concessão de servi-ço público, exige, por outro lado, o adimplemento por parte dos usuários no que tange ao pagamento da tarifa. Sem mecanismos efetivos de cobrança, o equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão poderá vir a romper-se, pondo em risco o funcionamento da concessionária e, por conseguinte, a continui-dade dos serviços públicos para os demais usuários.

A lei e os contratos de concessão preveem alguns mecanismos capazes de garantir ao concessionário e ao poder concedente a manutenção do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão, como o reajuste e a revisão tarifária. So-bre a diferença entre os institutos, Marçal Justen Filho observa que “o reajus-te corresponde à modifi cação do valor da tarifa para enfrentar elevações nor-mais de custos, relacionadas ao fenômeno infl acionário”. Já a revisão “envolve a possibilidade de modifi cações imprevisíveis na formação dos custos neces-sários à prestação dos serviços”.77

O tema das tarifas praticadas por concessionárias de serviços públicos en-volve sempre questões complexas, sendo geralmente distintas as percepções dos agentes afetados: para o poder concedente, a alta da tarifa pode produzir im-pacto negativo sobre o desenvolvimento econômico e um custo político; para a concessionária, liga-se à sua receita e consequente retorno sobre os investi-mentos realizados; já os usuários têm em regra uma sensação de que a tarifa se apresenta elevada, produzindo impacto signifi cativo sobre o custo de vida.

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FGV DIREITO RIO 64

78 RIBEIRO, Solange e FALCÃO, Maria

Isabel. O modelo tarifário brasileiro. In:

LANDAU, Elena (org.) Regulação jurídica

do setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen

Iuris, 2006, p. 265.

Quanto aos confl itos envolvendo a questão tarifária, observam Solange Ribeiro e Maria Isabel Falcão, analisando o tema sob o prisma das tarifas do serviço público de distribuição de energia elétrica:

A defi nição tarifária é um mecanismo regulatório muito importante para a garantia do funcionamento efi ciente do mercado em regime de monopólios naturais. A tarifa de fornecimento de energia elétrica pode ser vista sob diferentes óticas: (i) na percepção do consumidor, os dis-pêndios incorridos com energia elétrica são altos e as tarifas aumentam mais do que a infl ação e os salários, restringindo sua capacidade de pa-gamento ao longo dos anos; (ii) na percepção do Governo, o custo de energia elétrica possui grande infl uência sobre a economia brasileira e, consequentemente, sobre o controle infl acionário; (iii) e fi nalmente, a percepção dos investidores que atuam em ambientes regulados é de que as tarifas não são sufi cientes para promover a rentabilidade esperada e que, portanto, o retorno sobre o capital investido não é adequado.78

A breve passagem acima permite perceber que a tarifa constitui sempre um tema delicado no âmbito das discussões regulatórias.

Instrumentos para preservação do equilíbrio econômico-financeiro da concessão

Conforme já estudado, a legislação prevê mecanismos de garantia do equi-líbrio econômico-fi nanceiro da concessão. Nesse sentido, a Lei nº 8.987/1995 estabelece instrumentos para preservação desse princípio, tais como o reajus-te e a revisão tarifárias.

(a) O reajuste anual da tarifa

Os contratos de concessão, em conformidade com as previsões editalícias, costumam prever o direito das concessionárias ao reajuste anual da tarifa, para reposição das perdas decorrentes da infl ação.

(b) A revisão extraordinária

A lei de concessões confere ao concessionário o direito à revisão da tarifa quando houver alterações nos tributos incidentes sobre a atividade (à exceção daqueles relativos à renda), nos termos do art. 9º, §3º, da Lei nº 8.987/1995:

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§3º. Ressalvados os impostos sobre a renda a criação, a alteração ou extin-ção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da propos-ta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.

Em alguns casos, também legislações setoriais, editais e contratos de con-cessão preveem o direito à revisão na hipótese de determinados eventos que não são passíveis de ingerência pela concessionária, como a majoração do custo de insumos essenciais à execução da atividade concedida.

(c) A revisão periódica da tarifa

Adicionalmente, os editais e os contratos de concessão aludem à revisão periódica da tarifa, relativamente a fatores que tenham ocasionado perdas ou ganhos imprevisíveis para qualquer das partes e que tenham, nesse sentido, alterado o equilíbrio econômico-fi nanceiro. A revisão periódica se destina a estabelecer novos níveis tarifários para a concessionária, de acordo com as alterações nos custos de serviço.

O tema da revisão e dos reajustes tarifários não raro enseja profundas dis-cussões judiciais, em razão da elevação das tarifas e consequente alegação de ofensa ao direito do usuário a tarifas módicas e demais princípios de proteção e defesa do consumidor.

Tem-se observado no Superior Tribunal de Justiça forte tendência a fazer respeitar o marco regulatório e os mecanismos de revisão e reajuste tarifários previstos nos contratos de concessão.

Por outro lado, em havendo erro de cálculo, a jurisprudência determina a devolução dos valores pagos a maior pelos usuários do serviço, conforme se constata da decisão abaixo, na qual o presidente do STJ decidiu que, tendo havido erro na fi xação da tarifa decorrente de revisão tarifária periódica, os usuários fazem jus à reparação do dano, embora não à devolução em dobro prevista no art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, por ter restado caracterizado erro escusável:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.340.949 — MS (2012/0181557-4)RELATOR: MINISTRO HUMBERTO MARTINS

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉ-TRICA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO. COBRAN-ÇA INDEVIDA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ERRO ESCUSÁ-VEL. DEVOLUÇÃO DE FORMA SIMPLES. PRETENSÃO DE

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FGV DIREITO RIO 66

REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

DECISÃOVistos.Cuida-se de recurso especial interposto por CERAMICA VOLPISO

LTDA.,com fundamento no art. 105, III, “a”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul que negou provimento à apelação da recorrente nos termos da se-guinte ementa (fl . 458, e-STJ):

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. RECURSO DO RÉU. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. PRELI-MINAR REJEITADA. REVISÃO TARIFÁRIA PERIÓDICA DA CONCESSIONÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA. CDC APLICÁ-VEL À MATÉRIA. RESTITUIÇÃO NA FORMA SIMPLES. ERRO ESCUSÁVEL. EXCLUSÃO DA CONDENAÇÃO DE TODOS OS ENCARGOS. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL NESTA PARTE. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E PARCIALMEN-TE PROVIDO.

Segundo entendimento da Corte Superior de Justiça é competente aJustiça Estadual para resolver questões envolvendo revisão ou au-

mento de tarifação de energia elétrica, tendo em vista que a União e a ANEEL não possuem interesse para demandar nestas causas.

Sendo reconhecida a existência de relação de consumo entre as par-tes, devem ser aplicadas as regras consumeristas, inclusive com relação à inversão do ônus probatório.

Demonstrada a cobrança em excesso oriunda de revisão tarifária pe-riódica, bem como a responsabilidade da concessionária de distribui-ção de energia elétrica, a repetição do indébito é medida que se impõe, na forma simples, em razão da existência de erro escusável.

(...)APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. RECURSO DA AU-

TORA. REVISÃO TARIFÁRIA PERIÓDICA DA CONCESSIO-NÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA. RESPONSABILIDADE DA CONCESSIONÁRIA. DEVOLUÇÃO NO PERÍODO DE ABRIL DE 2005 A DEZEMBRO DE 2007. RECURSO IMPROVIDO.

Demonstrada a cobrança em excesso oriunda de revisão tarifária pe-riódica, bem como a responsabilidade da concessionária de distribui-ção de energia elétrica, a repetição do indébito é medida que se impõe, na forma simples e em parcela única.”

Foram rejeitados os embargos de declaração opostos (fl s. 479/482, e-STJ).

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Alega a recorrente, nas razões do recurso especial, violação do art. 535, incisos I e II, do Código de Processo Civil, ao argumento de que o Tribunal de origem não logrou sanar as obscuridades apontadas nos embargos de declaração. Aponta, ainda, ofensa aos arts. 42 do CDC; e 876, 884 e 887 do Código Civil, ao sustentar que houve enriqueci-mento ilícito da agravada, e a pleitear repetição de indébito em dobro, em virtude de cobrança ilegal e de má-fé da concessionária.

As contrarrazões foram oferecidas às fl s. 463/578, e-STJ.

Admitido o apelo especial na origem (fl s. 598/600, e-STJ), subiramos autos para apreciação nesta Corte.

É, no essencial, o relatório.

Não merece prosperar o recurso.

(...)Outrossim, quanto à alegação de que deve ser em dobro a devolução

dos valores cobrados indevidamente, não assiste razão à recorrente.

O Tribunal a quo entendeu pela ausência de ma-fé da ENERSUL, ao considerar que a cobrança indevida decorreu da aplicação de índices divulgados pela ANEEL, o que considerou erro escusável, e determi-nou

a restituição de forma simples do valor averiguado como indevida-mente pago pela recorrida. Nos termos do acórdão regional (fl . 463, e-STJ):

”Isto porque, a função da ANEEL é apenas regular e fi scalizar a qua-lidade dos serviços prestados, de modo que a concessionária prestadora do serviço é a única benefi ciária das receitas que arrecada e está sujeita aos riscos empresariais da atividade que desempenha, devendo respon-der diretamente pelas suas obrigações e pelos prejuízos que causar.

Logo, demonstrada a cobrança em excesso oriunda de revisão ta-rifária periódica, bem como a responsabilidade da concessionária de distribuição de energia elétrica, a repetição do indébito é medida que se impõe, na forma simples, porquanto não se vislumbra ter a apelante agido com dolo ou má-fé na cobrança a maior, pois não competia a

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ela aferir a legalidade dos índices divulgados pela ANEEL, a agência encarregada da regulação dos seus serviços.

O ordenamento consumerista, em seu artigo 42, parágrafo único, disciplina que o consumidor cobrado em quantia indevida tem o direi-to à repetição do indébito, por valor igual ao dobro ao que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justifi cável.

A única escusa para tal penalidade é o engano justifi cável, ou seja, a situação onde não se poderia esperar outra conduta daquele que re-cebeu os valores em excesso, senão a cobrança perpetrada, exatamente como ocorrido neste caso.

(...)Assim, o aludido art. 42, parágrafo único, do CDC, não se aplica aocaso, visto a escusabilidade da cobrança.”

Nesse sentido é a jurisprudência desta Corte. Confi ra-se o seguinteprecedente:

“ADMINISTRATIVO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ENER-GIA ELÉTRICA. COBRANÇA INDEVIDA DE VALORES. PERÍ-ODO DE ABRIL DE 2005 A DEZEMBRO DE 2007.

RECONHECIMENTO PELO TRIBUNAL A QUO. ANÁLISE DE MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. RESTITUIÇÃO EM DOBRO. ERRO JUSTIFICÁVEL. PRESEN-ÇA. AFASTAMENTO DA PENALIDADE.

1. A verifi cação do período em que se pretende a restituição de va-lores cobrados indevidamente pela concessionária de energia elétrica, demanda análise do suporte fático-probatório dos autos, considerando que o Tribunal de origem expressamente consignou que a cobrança em excesso somente decorreu no período de abril de 2005 a dezembro de 2007. Incidência da Súmula 7/STJ.

2. Quanto à possibilidade de restituição em dobro do valor cobrado indevidamente, a jurisprudência desta Corte entende que ‘o engano, na cobrança indevida, só é justifi cável quando não decorrer de dolo (má-fé) ou culpa na conduta do fornecedor do serviço’ (REsp 1.079.064/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 20.4.2009).

3. Na espécie, conforme premissas fáticas formadas nas instâncias ordinárias, trata-se de erro justifi cável, uma vez que a cobrança de valo-res se deu de acordo com o percentual oferecido pela agênciaregulado-ra, não sendo cabível, pois, a imposição da penalidade

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prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.4. Recurso especial parcialmente conhecido, e nessa parte, não pro-

vido.”(REsp 1.210.187/MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Se-

gunda Turma, julgado em 7.12.2010, DJe 3.2.2011.)Ademais, inviável nesta via rever o entendimento assentado pelo Tri-

bunal de origem, referente à confi guração de erro justifi cável, a afastar a penalidade prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, por de-mandar incursão no contexto fático-probatório dos autos, defeso em recurso especial, nos termos do enunciado 7 da Súmula desta Corte de Justiça.

Ante o exposto, com fundamento no art. 557, caput, do CPC, nego provimento ao recurso especial.

Publique-se. Intimem-se.Brasília (DF), 14 de dezembro de 2012.MINISTRO HUMBERTO MARTINSRelator

Portanto, observa-se da decisão supracitada que o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a legitimidade do arcabouço jurídico-institucional que se seguiu à implementação do processo de desestatização, com a celebra-ção de contratos de concessão, bem como a necessidade de se fazer respeitar os contratos em vigor, reconhecendo-se o direito das concessionárias e dos usuários do serviço ao equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão, que passa pela obediência aos critérios de reajuste e revisão tarifários contratual-mente previstos, em respeito ao marco regulatório em vigor e ao princípio da segurança jurídica.

Possibilidade de interrupção do serviço em caso de falta de pagamento

A possibilidade de interrupção do serviço por falta de pagamento rendeu profundas discussões na doutrina e na jurisprudência a partir do processo de desestatização, tendo em vista os princípios da continuidade e regularidade dos serviços públicos concedidos, previstos na Lei nº 8.987/1995, bem como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos entre conces-sionárias e particulares.

Contra essa possibilidade são geralmente levantados argumentos como essencialidade do serviço, dignidade da pessoa humana, existência de meio processual próprio para cobrança em casos de inadimplemento (como a ação de cobrança), direito do consumidor à essencialidade do serviço. Veja-se que

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os arts. 22, caput, e 42, caput, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) dispõem:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessioná-rias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimen-to, são obrigados a fornecer serviços adequados, efi cientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de cons-trangimento ou ameaça.

Conforme anteriormente mencionado, o CDC aplica-se, embora com ressalvas, às relações entre concessionária e usuário do serviço, por força do disposto no art. 7º, caput, da Lei nº 8.987/1995:

Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setem-bro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

I — receber serviço adequado;II — receber do poder concedente e da concessionária informações

para a defesa de interesses individuais ou coletivos;III — obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vá-

rios prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998);

IV — levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

V — comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos pratica-dos pela concessionária na prestação do serviço;

VI — contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

De outro lado, as concessionárias alegam que a impossibilidade de interrup-ção da prestação do serviço sinaliza ao mercado que “o inadimplemento com-pensa”, já que não levaria à imediata supressão do serviço, e a reparação do dano, somente se daria de forma imperfeita, tendo em vista o lapso temporal e os custos inerentes às demandas judiciais. Dessa forma, inadimplementos reite-rados terminariam por colocar em risco o equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão e, com isso, a possibilidade de a concessionária seguir prestando ser-viço adequado, contínuo e regular. Além disso, o próprio art. 6º, §3º, II da Lei nº 8.987/1995 determina que não caracteriza descontinuidade do serviço a in-terrupção do serviço, após prévio aviso, em caso de inadimplemento do usuário.

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79 REsp 363943/MG, Rel. Ministro Hum-

berto Gomes de Barros, Primeira Seção,

julgado em 10.12.2003, DJ 01.03.2004

, p. 119.

80 Voto vencedor do Min. Humberto

Gomes de Barros no RE 363.943, j. em

10.12.2003.

Após profundos embates, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justi-ça, por maioria de votos, veio a reconhecer, por exemplo, a legitimidade do corte de energia elétrica a consumidores inadimplentes, desde que observadas as exigências previstas na legislação, em decisão que restou assim ementada:

ADMINISTRATIVO — ENERGIA ELÉTRICA — CORTE — FALTA DE PAGAMENTO — É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respec-tiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II).79

Em sustentação da possibilidade de suspensão do serviço, foi considerada a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-fi nanceiro da con-cessão. Em suas razões de decidir, o ministro-relator Humberto Gomes de Barros observou:

...a proibição [do corte] acarretaria aquilo a que se denomina “efeito dominó”. Com efeito, ao saber que o vizinho está recebendo energia de graça, o cidadão tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de luz.

Ora, se ninguém paga pelo fornecimento, a empresa distribuidora de energia não terá renda. Em não tendo renda, a distribuidora não poderá adquirir os insumos necessários à execução dos serviços conce-didos e, fi nalmente, entrará em insolvência.

Falida, a concessionária interromperia o fornecimento a todo o mu-nicípio, deixando às escuras, até a iluminação pública.80

Cumpre mencionar que o STJ tem entendido que a possibilidade de sus-pensão atinge, inclusive, as pessoas jurídicas de direito público (como Esta-dos e municípios), conforme se observa da decisão monocrática abaixo, da lavra no ministro Humberto Martins, a qual se pede licença para transcrever tendo em vista que explica, de forma bastante didática, a evolução da ju-risprudência pátria no que se refere ao tema das tarifas de energia elétrica, possibilidade de corte e o princípio da modicidade tarifária:

RECURSO ESPECIAL — ALÍNEAS “A” E “C” — ADMINIS-TRATIVO — ENERGIA ELÉTRICA — CONCESSÃO DE SER-VIÇO PÚBLICO — INADIMPLÊNCIA DO MUNICÍPIO CON-SUMIDOR — SUSPENSÃO DO SERVIÇO — POSSIBILIDADE — RECURSO PROVIDO.

DECISÃOVistos.

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Cuida-se de recurso especial interposto por AES Sul — Distribui-dora Gaúcha de Energia S/A, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição da República, contra v. acórdão proferido pelo egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, cuja ementa guarda o seguinte teor:

“INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉ-TRICA. MUNICÍPIO INADIMPLENTE.

É incontestável o direito do concessionário à remuneração prevista no contrato administrativo fi rmado com o Poder Concedente. Toda-via, esse direito não pode se sobrepujar ao interesse difuso da coletivi-dade municipal à manutenção do fornecimento do serviço público, de natureza essencial, sob pena de violação à própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Em nome do princípio da proporciona-lidade, não está a concessionária autorizada a utilizar dos meios mais gravosos para a obtenção dos seus créditos, quando poderá fazê-lo pela via judicial própria” (fl . 567).

Aponta a recorrente violação do artigo 6º, §3º, II, da Lei n. 8.987/95 e negativa de vigência ao artigo 17 da Lei 9.427/96, além de divergên-cia jurisprudencial com julgados deste Sodalício. É, no essencial, o re-latório.

(...).Em verdade, a suposta necessidade da continuidade do serviço

público, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, não se traduz em uma regra de conteúdo absoluto, em vista das limitações previstas na Lei n. 8.987/97. Aliás, nessa linha de entender, a colenda Primeira Turma, por meio de voto condutor da lavra do ilustre Minis-tro Teori Albino Zavascki, assentou que “tem-se, assim, que a continui-dade do serviço público assegurada pelo art. 22 do CDC não constitui princípio absoluto, mas garantia limitada pelas disposições da Lei n. 8.987/95, que, em nome justamente da preservação da continuidade e da qualidade da prestação dos serviços ao conjunto dos usuários, per-mite, em hipóteses entre as quais o inadimplemento, a suspensão no seu fornecimento” (REsp 591.692-RJ, DJ 14/3/2005).

Seja como for, não se desconhece haver intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca do tema versado nos presentes autos, inclusive no âmbito das Turmas que compõem a egrégia Primeira Seção deste Sodalício. Há arestos da egrégia Primeira Turma nos quais restou con-signado o entendimento de que “é defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo e compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrá-

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rio das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança” (REsp 223.778/RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.3.2000).

Dispõe a Lei n. 8.987/95 que os serviços públicos, prestados em regime de concessão, deverão ser adequados ao pleno atendimento dos usuários, exigindo-se a regularidade, continuidade, efi ciência, atualidade, genera-lidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas (art. 6º, § 3º).

Assegura o referido diploma, entretanto, que:

“Art. 6º. (...)§ 3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a suainterrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:(...)II — por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da

coletividade.”

Posteriormente, a Lei n. 9.427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica — ANEEL e disciplinou o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica, admitiu o corte do fornecimen-to do serviço por falta de pagamento, condicionada à comunicação prévia da autoridade competente. Confi ra-se:

“Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essen-cial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de 15 (quinze) dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.

Parágrafo único. O Poder Público que receber a comunicação adota-rá as providências administrativas para preservar a população dos efei-tos da suspensão do fornecimento de energia, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida.”

Sob outro enfoque, todavia, não se admite receba o usuário, se admi-tida a impossibilidade de suspensão do serviço, um estímulo à inadim-plência. Não se pode olvidar que se trata de serviço oneroso, cujo forne-cimento deve ser prestigiado pelo respectivo pagamento, na forma da lei.

Ademais, ao editar a Resolução 456, de 29 de novembro de 2000, a própria ANEEL, responsável pela regulamentação do setor de energéti-co no país, contemplou a possibilidade de suspensão do fornecimento do serviço em inúmeras hipóteses, dentre as quais o atraso no paga-mento de encargos e serviços vinculados ao fornecimento de energia elétrica prestados mediante autorização do consumidor, ou pela presta-ção do serviço público de energia elétrica (art. 91, incisos I e II).

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81 STJ, RESP 757016, Min. Humberto

Martins, DOU 09.08.2006

Oportuno mencionar, por fi m, que não será o Judiciário, entretan-to, insensível relativamente às situações peculiares em que o usuário deixar de honrar seus compromissos em razão de sua hipossufi ciência, circunstância que não se amolda ao caso em exame.

Confi ra-se o seguinte julgado desta Corte:“ADMINISTRATIVO — FORNECIMENTO DE ENERGIA

ELÉTRICA — FALTA DE PAGAMENTO — CORTE — MUNI-CÍPIO COMO CONSUMIDOR.

1. A Primeira Seção já formulou entendimento uniforme, no senti-do de que o não pagamento das contas de consumo de energia elétrica pode levar ao corte no fornecimento.

2. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, a mes-ma regra deve lhe ser estendida, com a preservação apenas das unidades públicas cuja paralisação é inadmissível.

3. Legalidade do corte para as praças, ruas, ginásios de esporte, etc.4. Recurso especial provido” (REsp 460.271/SP, Rel. Min. ElianaCalmon, DJ 6.5.2005).(...)Pelo que precede, com fundamento no §1º-A do artigo 557 do

CPC, dou provimento ao recurso especial.81

Portanto, também no que tange a entes públicos, existem algumas deci-sões reconhecendo a possibilidade de corte do fornecimento de energia elétri-ca, em vista da necessidade de se preservar o equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Concessão e Permissão de serviço público

o Concessão de Serviços Públicos (concessão comum — itens 11 a 15)

Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella de. Parcerias na administração pública. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 77 a 89.

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GROTTI, Dinorah. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros.

MEDAUAR, Odete. Serviços públicos e serviços de interesse econômico ge-ral. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Re-novar, 2003.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

Trata-se de lei estadual que estabeleceu gratuidade aos defi cientes físicos pobres no transporte ferroviário de passageiros.

Inconformada, a concessionária pleiteia, com base no princípio do equilí-brio econômico-fi nanceiro da concessão, direito a revisão da tarifa.

De outro lado, entidades de defesa dos usuários dos serviços públicos ale-gam que o princípio da modicidade tarifária determina que, tendo em vista o reduzido número de pessoas potencialmente aptas a se benefi ciar da gratui-dade, não se há de falar em rompimento do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão.

A seu ver, como deveria ser resolvida a controvérsia?

Caso gerador 2:

Considere as seguintes situações:1. João, morador de área pobre da cidade, não paga a conta de luz de sua

humilde casa há três meses, desde que perdeu seu emprego.2. Maria também não paga sua conta de luz há seis meses, pois, consi-

derando o seu apertado orçamento, está priorizando a economia de recur-sos para reformar sua casa. Acredita que seu consumo, sendo relativamente baixo, não trará qualquer prejuízo à “portentosa” concessionária, que possui como acionistas controladores de fundos de investimento e pujantes grupos internacionais.

3. Adicionalmente, a prefeitura da cidade onde moram João e Maria tam-pouco paga a conta de energia elétrica de suas repartições há mais de um ano, pois o prefeito vem priorizando investimentos nas escolas do municí-pio, alegando não sobrar recursos para essa despesa. A prefeitura depende da energia elétrica não apenas para iluminar suas repartições, mas também para o funcionamento de escolas e hospitais.

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4. A concessionária que presta o serviço público de transporte urbano na cidade, por força de contrato de concessão, tampouco paga a conta de luz há mais de seis meses, alegando que a receita arrecadada com a venda de passa-gens tem sido insufi ciente para cobrir todos os seus gastos, sendo que está priorizando o pagamento dos funcionários.

Como advogado da concessionária de energia elétrica que distribui ener-gia elétrica para João, Maria, a prefeitura e a concessionária de transporte fer-roviário da cidade, que medida você proporia à sua cliente em cada uma das situações acima relatadas? É possível cortar o fornecimento de energia elétrica em todas as hipóteses? A sua resposta permaneceria a mesma se, ao invés de energia elétrica, o serviço cujo pagamento se encontra em aberto fosse o de fornecimento de água e esgoto?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os direitos dos usuários de serviço público são previstos no art. 7º e 7-A da Lei nº 8.987/1995. Tais direitos são exigíveis diretamente da concessio-nária de serviço público responsável pela prestação daquele determinado ser-viço. Por sua vez, esta concessionária possui uma relação administrativa com o Poder Concedente que lhe concedeu a execução do serviço público por meio de um procedimento licitatório. Durante esta aula foram explorados confl itos que podem surgir diante da concomitância dessas relações jurídicas.

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AULA 9

I. TEMA

Extinção do contrato de concessão de serviço público

II. ASSUNTO

Análise das hipóteses de extinção das concessões e suas consequências.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir as diferentes razões pelas quais pode ser encerrado o contrato de concessão. Apresentar o instituto da reversão dos bens afetados à concessão.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Da extinção do contrato de concessão

O art. 35 da Lei nº 8.987/1995 determina as hipóteses de extinção do contrato de concessão:

Art. 35. Extingue-se a concessão por:I — advento do termo contratual;II — encampação;III — caducidade;IV — rescisão;V — anulação; eVI — falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento

ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual.§ 1o. Extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os

bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato.

§ 2o. Extinta a concessão, haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários.

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82 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo

Moreira. Curso de direito administrativo.

14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006,

p. 444.

83 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo

Moreira. Curso de direito administrativo.

14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006,

p. 444.

§ 3o. A assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis.

§ 4o. Nos casos previstos nos incisos I e II deste artigo, o poder concedente, antecipando-se à extinção da concessão, procederá aos le-vantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária, na forma dos arts. 36 e 37 desta Lei.

A extinção ordinária é aquela que ocorre no advento do termo fi nal, quan-do ocorre a reversão ao poder público dos bens vinculados ao serviço.

Adicionalmente, existem hipóteses em que o Estado poderá retomar ante-cipadamente a concessão, de forma transitória ou permanente. A primeira ocorrerá em casos de força maior, como greves, calamidades públicas, decre-tação do estado de defesa ou estado de sítio que não impeçam, em caráter defi nitivo, a execução do contrato. A segunda terá lugar nos casos de anula-ção, encampação, caducidade, rescisão, distrato, renúncia e força maior.82

Sobre as hipóteses de anulação do contrato de concessão, observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Esta é forma de desfazimento contratual genérica, que se dá quando os elementos do contrato administrativo não se conformam aos dita-mes legais. Tanto cabe à Administração quanto ao Judiciário declarar a nulidade que, como é sabido, atua ex tunc, devolvendo as partes à situação anterior ao contrato desfeito.

Por outro lado, em razão da existência de cláusulas privadas insertas no contrato administrativo, no campo de aplicação da autonomia da vontade, será possível caracterizar-se também hipóteses de anulabilida-de, nos casos previstos na lei civil, por incapacidade da parte privada ou emanação viciada da sua vontade.83

A encampação, por sua vez, diz respeito às hipóteses de encerramento do contrato de concessão por interesse público, sem que tenha havido inadimple-mento da concessionária, estando prevista no art. 37 da Lei nº 9.897/1995:

Art. 37. Considera-se encampação a retomada do serviço pelo poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse pú-blico, mediante lei autorizativa específi ca e após prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior.

Veja-se que a lei exige que haja lei específi ca autorizando a encampação, a qual somente pode ser efetivada após o pagamento da indenização ao particular.

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A caducidade, ao revés, poderá ocorrer nos casos de inexecução total ou parcial, pela concessionária, dos deveres assumidos no contrato de concessão:

Art. 38. A inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a cri-tério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições deste artigo, do art. 27, e as normas convencionadas entre as partes.

§1o. A caducidade da concessão poderá ser declarada pelo poder concedente quando:

I — o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou de-fi ciente, tendo por base as normas, critérios, indicadores e parâmetros defi nidores da qualidade do serviço;

II — a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposi-ções legais ou regulamentares concernentes à concessão;

III — a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;

IV — a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido;

V — a concessionária não cumprir as penalidades impostas por in-frações, nos devidos prazos;

VI — a concessionária não atender a intimação do poder conceden-te no sentido de regularizar a prestação do serviço; e

VII — a concessionária não atender a intimação do poder conce-dente para, em 180 (cento e oitenta) dias, apresentar a documentação relativa a regularidade fi scal, no curso da concessão, na forma do art. 29 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. (Redação dada pela Lei nº 12.767, de 2012)

§2o. A declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verifi cação da inadimplência da concessionária em processo admi-nistrativo, assegurado o direito de ampla defesa.

§3o. Não será instaurado processo administrativo de inadimplência antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descum-primentos contratuais referidos no § 1º de ste artigo, dando-lhe um prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enqua-dramento, nos termos contratuais.

§4o. Instaurado o processo administrativo e comprovada a inadim-plência, a caducidade será declarada por decreto do poder concedente, independentemente de indenização prévia, calculada no decurso do processo.

§5o. A indenização de que trata o parágrafo anterior, será devida na forma do art. 36 desta Lei e do contrato, descontado o valor das multas contratuais e dos danos causados pela concessionária.

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§6o. Declarada a caducidade, não resultará para o poder concedente qualquer espécie de responsabilidade em relação aos encargos, ônus, obrigações ou compromissos com terceiros ou com empregados da concessionária.

Em razão da relevância da atividade desenvolvida — serviço público — a concessionária somente pode rescindir o contrato por meio de ação judicial, devendo manter a prestação do serviço até o trânsito em julgado da decisão que lhe defi ra o pedido formulado, conforme se observa do art. 39, parágrafo único, da Lei nº 8.987/1995:

Art. 39. O contrato de concessão poderá ser rescindido por inicia-tiva da concessionária, no caso de descumprimento das normas con-tratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial especialmente intentada para esse fi m.

Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, os ser-viços prestados pela concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em julgado.

Da intervenção

Nem sempre, todavia, o término imediato da concessão é a medida mais adequada à promoção do interesse público. Assim, quando as condições do caso concreto o recomendarem, o poder concedente poderá intervir na con-cessão, para que seja assegurada a adequação na prestação do serviço, bem como o fi el cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes. Deverá ser aberto processo administrativo para apuração de eventuais irregularidades. A intervenção poderá, ao fi nal, redundar na extin-ção da concessão (arts. 32 a 34, Lei 8.987/95).

Da reversibilidade dos bens objeto da concessão

Como já visto, a concessão corresponde a uma forma descentralizada de prestação de serviço público que se consubstancia por meio de um contrato administrativo, pelo qual o Poder Público concedente transfere a um conces-sionário a execução de determinado serviço público, sob sua efetiva regula-ção, mediante o pagamento de tarifas pagas pelos usuários.

Sobre a natureza jurídica da concessão, salienta Celso Antonio Bandeira de Mello que a mesma constitui “uma relação jurídica complexa, composta de um ato regulamentar do estado que fi xa unilateralmente condições de

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84 Curso de Direito Administrativo. 13ª

ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 632.

85 Lei 8.987/95, art. 23.

funcionamento, organização e modo de prestação do serviço, isto é, as con-dições por meio do qual o concessionário voluntariamente se insere debaixo da situação jurídica objetiva estabelecida pelo Poder Público, e de contrato, por cuja via se garante a equação econômico-fi nanceira, resguardando os le-gítimos objetivos de lucro do concessionário”.84

Destarte, em se tratando a concessão de um contrato administrativo, esta se formaliza por intermédio de um instrumento escrito, onde são fi xadas as cláusulas indispensáveis à validade do negócio jurídico. Com efeito, deve o contrato de concessão obrigatoriamente enunciar o objeto, a área e o prazo da concessão; o preço do serviço; os critérios e procedimentos para reajuste e revisão das tarifas; os direitos e deveres dos usuários para desfrute das presta-ções; os direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessio-nária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades futuras de alteração e expansão do serviço; as penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária; os casos de extinção da concessão; os bens reversíveis; os critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária; as condições de prorrogação do contrato; a forma de presta-ção de contas da concessionária ao poder concedente; e, fi nalmente, o foro e o modo de solução das divergências contratuais.85

Deve-se observar que a legislação de regência, ao exigir a adoção de tais cláusulas no contrato de concessão, considerados essenciais para a sua forma-ção, dispôs sobre a natureza do referido negócio jurídico, onde se constata a necessidade do Poder Público, mediante o exercício da sua função regula-tória, ditar para o concessionário as condições pelas quais o serviço deva ser prestado ao usuário. Para tanto, necessário se faz que a organização e o fun-cionamento do serviço delegado, mesmo passando a ser executado por um particular, não percam as suas características de generalidade, essencialidade, continuidade, modicidade tarifária, relevância, de ser prestado de forma igual para todos os usuários e de ter, por fi m, a satisfação de uma necessidade cole-tiva. Dentre as cláusulas essenciais do contrato encontram-se aquelas relativas aos bens reversíveis e aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento das indenizações devidas à concessionária.

No que concerne às Concessionárias impõe-se, segundo o art. 31 da men-cionada Lei nº 8.987/1995, manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à concessão, e zelar pela integridade dos mesmos. Esse regramento tem a fi nalidade de zelar pelo real cumprimento dos objetivos da concessão, traçando, de forma rígida, comportamentos a serem adotados por ambos os contratantes, notadamente para que o serviço público concedido seja presta-do de modo a alcançar os interesses da coletividade.

Cumpre salientar que a reversão de bens constitui um preceito tradicional nas leis brasileiras referentes às concessões de serviços públicos. Nesse sen-tido, a normativa vigente estabelece que, extinta a concessão, retornam ao

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 82

86 Celso Antônio Bandeira de Mello.

Prestação de Serviços Públicos e Admi-

nistração Indireta. RT, 1973, p.53.

poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato.

É de notar-se que a reversão pode ser defi nida como a entrega pelo conces-sionário ao poder concedente dos bens vinculados à concessão, por ocasião do fi m do contrato, em virtude de sua destinação ao serviço público, de modo a permitir sua continuidade. Essa devolução constitui um corolário do contrato, em que o concessionário se coloca transitoriamente em lugar do Poder Público concedente para a prestação de um serviço que incumbe a este. Assim é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, “a reversão é a passagem ao poder concedente dos bens do concessionário aplicados ao serviço, uma vez extinta a concessão. Portanto, através da chamada reversão, os bens do concessionário, necessários ao exercício do serviço público, integram-se no patrimônio do concedente ao se fi ndar a concessão.”86

O ponto nodal nesse campo de questões está em saber se a reversão atinge a todos os bens que entraram no acervo da concessão. Com efeito, a diver-gência em torno da qualifi cação dos bens reversíveis é freqüente, e isso se deve, na maioria das vezes, a pouca precisão dos editais de licitação e das cláusulas contratuais.

Pode-se assegurar que não há uma regra clara na legislação em vigor sobre os chamados bens reversíveis. Nada obstante, costuma-se conceituá-los como aqueles diretamente vinculados e necessários ao serviço público, que integra-rão o patrimônio do concedente ao se fi ndar a concessão.

Ressalte-se que os bens envolvidos na prestação do serviço objeto da conces-são podem ser públicos ou privados, dependendo de sua origem. A esse propó-sito, ao discorrer sobre o regime dos bens de propriedade da empresa estatal que desempenha serviço público, mediante concessão ou permissão, doutrina Maria Sylvia Zanella di Pietro que ela possui um patrimônio próprio, embora tenha que se utilizar, muitas vezes, de bens pertencentes à pessoa pública política.

Assim, dentre os bens nele integrados, distinguem-se duas espécies. Os que estão diretamente afetados à execução do serviço público e os que não es-tão afetados. Nesse sentido, esclarece a respeitada administrativista que se os bens das concessionárias e permissionárias são afetados a um serviço público, eles têm que se submeter ao mesmo regime jurídico a que se submetem os bens pertencentes à União, Estados e Municípios, também afetados à realiza-ção de serviços públicos.

Se fosse possível a essas empresas alienar livremente esses bens, se esses bens pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, ha-veria uma interrupção no serviço público. E o serviço é considerado público precisamente porque atende a necessidades essenciais da coletividade. Daí a impossibilidade de sua paralisação, e daí a sua submissão a regime jurídico publicístico.

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87 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Na-

tureza jurídica dos bens das empresas

estatais, Revista PGE de São Paulo, dez.

1988: 173-185, p. 182 e ss.

88 Luiz Alberto Blanchet. Concessão de

Serviços Públicos. 2ª ed. Editora Juruá:

2000, p.102.

89 Hely Lopes Meirelles. Direito Admi-

nistrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003, p. 379.

No caso do serviço público, é a pessoa pública política (União, Estado ou município) que detém a sua titularidade: a concessionária apenas o executa e não tem qualquer disponibilidade sobre ele, como também não tem a livre disponibilidade sobre os bens afetados ao serviço público.87

Releva assinalar que diversas são as opiniões acerca da reversibilidade dos bens privados na concessão de serviços públicos. Colhe-se, nesse sentido, o magistério de Luiz Alberto Blanchet:

A opinião predominante é no sentido de que somente os bens neces-sários à prestação do serviço concedido, e para esse fi m efetivamente utilizados, deveriam ser revertidos ao poder concedente, conforme, ali-ás, entende também o Supremo Tribunal Federal. Este é o posiciona-mento mais condizente com o princípio da permanência, ou continui-dade, do serviço, pois se os bens efetivamente utilizados na prestação adequada do serviço já são sufi cientes para preservar a continuidade de sua prestação, a reversão dos demais bens é supérfl ua, e de qualquer modo terá sido paga com recursos públicos antes da concessão (se já existentes ou adquiridos pelo poder concedente para utilização na pres-tação do serviço), durante (dissolvido o seu custo no valor da tarifa), ou ao fi nal da concessão mediante indenização ao concessionário (se assim estiver previsto no contrato).88

De fato, no entender de Hely Lopes Meirelles, somente devem ser rever-tidos os bens vinculados à prestação do serviço, podendo a empresa dispor livremente sobre os demais bens não utilizados no serviço. Assim sustenta o jurista, com singular clareza que:

Segundo a doutrina dominante, acolhida pelos nossos Tribunais, a reversão só abrange os bens que asseguram sua adequada prestação. Se o concessionário, durante a vigência do contrato, formou um acervo à parte, embora provindo da empresa, mas desvinculado do serviço e sem emprego na sua execução, tais bens não lhe são acessórios e, por isso, não o seguem necessariamente, na reversão.89

É de se salientar que a noção de vinculação dos bens à prestação dos serviços também está relacionada ao regime tarifário, pois que a rigor so-mente os bens empregados na sua execução são alcançados pela tarifa. Essa relação fi ca muito bem realçada na doutrina de José dos Santos Carvalho Filho: “... o objeto da reversão consiste apenas nos bens empregados pelo concessionário para a execução do serviço, e isso porque apenas esses fo-ram alcançados pela projeção das tarifas. Os bens adquiridos com sua pró-pria parcela de lucros, todavia, permanecem em seu poder, até mesmo

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FGV DIREITO RIO 84

90 José dos Santos Carvalho Filho. Ma-

nual de Direito Administrativo. 10ª ed.

Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p.

330.

91 RE 32865. Relator Min. EDGARD COS-

TA. Julgamento em 28/08/1956. Órgão

Julgador 2ª TURMA.

92 RE 71727-RJ. Relator   Min. DJACI

FALCÃO. Julgamento em  11/12/1979.

Órgão Julgador  2ª TURMA.

93 Art. 36. A reversão no advento do

termo contratual far-se-á com a inde-

nização das parcelas dos investimentos

vinculados a bens reversíveis, ainda

não amortizados ou depreciados, que

tenham sido realizados com o objetivo

de garantir a continuidade e atualidade

do serviço concedido.

porque situação contrária vulneraria o direito de propriedade, assegurado no art. 5º, XXII, da CF.”90

No direito pátrio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há mui-to consagra o entendimento de que só são reversíveis os bens efetivamente imprescindíveis ao contrato. À guisa de exemplo, é oportuno colacionar o seguinte acórdão:

Serviço de bondes do Distrito Federal. Reversão à Prefeitura dos bens da companhia sua cessionária. Somente são reversíveis aqueles vincula-dos, próprios ou afetos à execução do serviço concedido, na conformi-dade do respectivo contrato, esclarecido por “termos de acordo” poste-riores. Os adquiridos, portanto, pela concessionária, por aplicação de seus recursos, sem aquela destinação, são de sua livre propriedade e, consequentemente, não reversíveis. Recurso extraordinário por violação dos arts. 2º da lei de introdução ao código civil, 644 e 647 do código civil, 141, par. 2º, da constituição federal, e da lei nº. 1.533, de 1951. Improcedência das argüições. Revogabilidade de ato administrativo. Di-vergência inexistente, face à jurisprudência a respeito assentada. Argui-ção, sobre serôdia, descabida e violação da lei orgânica do distrito fede-ral. Descabimento, conseqüente, do recurso; seu não conhecimento.91

Outro aresto pode ser destacado no mesmo sentido: “Concessão de Servi-ço Público — Reversão — Contrato — Não cabe a reversão de bens não vinculados ao serviço concedido, que podem ser livremente alienados pelo concessionário, nos termos do contrato de concessão”.92

Conclui-se, das elucidativas referências, que somente os bens efetivamente atrelados ao contrato de concessão são passíveis de reversão. Do contrário, se quisesse o poder concedente apropriar-se de todos os bens da concessionária, indiscriminadamente, confi gurar-se-ia um autêntico processo de desapropria-ção, não só dos bens da empresa mas também do seu capital. Não se pode olvi-dar que a reversão está sujeita a postulados fundamentais dos quais o poder concedente não pode afastar-se, podendo-se citar como exemplo o de que nin-guém deve enriquecer-se às expensas de outro. Com base neste princípio, aliás, é que a Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995), no seu art. 36, preocupou-se em prever o instrumento da indenização para o caso de investimentos feitos pelo concessionário referentes a bens reversíveis que não tenham sido amortizados.93

Cabe enfatizar que, em princípio, por ocasião do término do prazo con-tratual, todos os investimentos já devem ter sido amortizados ou depreciados. A esse respeito, recorre-se do magistério de Maria Sylvia Zanella di Pietro: “Nesse caso, extinta a concessão ou a permissão, pelo decurso do prazo ini-cialmente estipulado, estará, em princípio, coberto o valor da indenização. Se a amortização não tiver sido total, por qualquer razão, ou se a extinção se der

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FGV DIREITO RIO 85

94 Maria Sylvia Zanella di Pietro, in Par-

cerias na Administração Pública, 3ª ed.,

Atlas, 1999, p. 86.

95 Art. 36, Lei 8.987/1995.

96 É o que dispõe o art. 18, da Lei

8.987/1995: O edital de licitação será

elaborado pelo poder concedente,

observados, no que couber, os crité-

rios e as normas gerais da legislação

própria sobre licitações e contratos e

conterá, especialmente: (...) X — a

indicação dos bens reversíveis; XI — as

características dos bens reversíveis e as

condições em que estes serão postos à

disposição, nos casos em que houver

sido extinta a concessão anterior;

antes do prazo estipulado, caberá ao poder concedente indenizar o concessio-nário pelo valor restante, ainda não amortizado. É o que estabelece o art. 36 da lei 8.987.”94

Com essas duas reservas, ao termo fi nal do contrato de concessão o po-der concedente pode recolher o acervo vinculado ao contrato em condições regulares, capazes de assegurar a continuidade do serviço, e o concessionário recobrar inteiramente o que fora investido durante o contrato na manuten-ção dos bens reversíveis.

Via de regra, o prazo contratual é dimensionado em função de uma previ-são inicial dos investimentos necessários. Porém, num contrato de longa du-ração, há sempre a necessidade de se fazer novos e até mesmo imprevistos investimentos, inclusive em período próximo ao fi nal da concessão, tudo com o objetivo, como diz a lei95, de “garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido”.

Destarte, os investimentos adicionais feitos pela concessionária podem ser insuscetíveis de amortização no prazo estabelecido inicialmente. Desse modo, somente se for garantido à concessionária o retorno da totalidade dos investi-mentos efetuados, ela os fará, atendendo com isso os interesses dos usuários.

Vale notar, todavia, que apesar da lei dispor sobre o pagamento de indeni-zação, no seu art. 36, “dos investimentos vinculados a bens reversíveis”, não esclareceu como e quando esse pagamento deverá ser efetuado. A Lei deixa implícito que, no caso de advento do termo contratual, o pagamento deverá ser feito após a extinção (§ 2º do art. 35), mas silencia totalmente quanto à forma.

Quanto à necessidade do instrumento contratual indicar os bens que re-verterão ao Poder Público ao término da concessão, como determina o inciso X, do art. 23 da Lei de Concessões, importa assinalar que a regra também deve ser prevista no edital da licitação.96 É de notar-se, entretanto, que essa relação de bens constante do instrumento contratual não é taxativa, sendo certo que outros bens que venham a ser adquiridos pela concessionária — e que efetivamente venham a ser utilizados no serviço — também serão consi-derados reversíveis.

Nessa ordem de considerações, pode-se asseverar que novos bens adqui-ridos pela concessionária, efetivamente utilizados na prestação dos serviços, serão passíveis de reversão ao poder concedente. Vale lembrar que os inves-timentos feitos pela concessionária em bens vinculados ao serviço objeto do contrato devem ser depreciados durante o decorrer da concessão, na forma do contrato, sendo correto afi rmar que, caso ao fi nal desta não tenha sido possí-vel amortizá-los em sua totalidade, deverá incidir a indenização dos mesmos pelo poder concedente. É importante mencionar também que, no caso de haver renovação dos bens arrolados no edital ou no contrato de concessão, e, por consequência, ser retirada do serviço qualquer dos referidos bens, esse procedimento importará na sua desafetação. Com efeito, se determinado

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FGV DIREITO RIO 86

bem não é mais utilizado na operação dos serviços, perde o seu caráter, para constituir bem privado da empresa.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens.• Concessão e Permissão de serviços públicos

o Concessão de Serviços Públicos (concessão comum) — itens 16 a 19.

Leitura complementar

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. 4a ed. São Paulo: Atlas, 20025, pp. 89 a 96.

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho de Arruda. O serviço te-lefônico fi xo e a reversão de bens. In: GUERRA, Sergio. Temas de direito regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

O Diretor-Presidente de uma concessionária de serviços de telecomunica-ções procura seu aconselhamento advocatício porque deseja vender um gran-de terreno, de propriedade da concessionária, que não está sendo utilizado na prestação do serviço de telecomunicações. Nesse sentido, deseja saber se é possível a venda de tal bem e se há necessidade de alguma providência junto ao poder concedente para esse fi m. A sua resposta seria a mesma caso a venda pretendida se referisse a centrais telefônicas? Qual a relevância de se ter a precisa e completa lista dos bens reversíveis de uma concessão? Em que instrumentos deve estar elencada a lista dos bens reversíveis?

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 87

VII. CONCLUSÃO DA AULA

O contrato de concessão de serviço público pode ser extinto de forma natural, pelo mero decurso do tempo, ou de forma antecipada, por fato da concessionária e/ou do Poder Concedente ou alheio a ambos.

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FGV DIREITO RIO 88

97 A terminologia “parceria público-

privada” é utilizada, aqui, em seu

sentido preciso. Não se pode descon-

siderar, entretanto, a existência de ou-

tros institutos, anteriormente às PPPs,

que, em distintos graus, permitem a

participação da iniciativa privada na

consecução de fi nalidades públicas ou

socialmente relevantes. Nesse sentido,

citem-se as sociedades de economia

mista, as organizações da Sociedade

Civil de Interesse Público – OSCIPS, as

concessões tradicionais, os convênios,

dentre outras. Ver, a respeito, ARAGÃO,

Alexandre Santos de. As parcerias

público-privadas – PPPs no direito bra-

sileiro. Revista de Direito da Associação

dos Procuradores do Novo Estado do Rio

de Janeiro, v. XVII – Parcerias público-

privadas (coord. Flávio Amaral Garcia).

Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 54.

98 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direi-

to administrativo. São Paulo: Saraiva,

2005, p. 549.

99 PASIS, Jorge Antonio Bozoti e BOR-

GES, Luiz Ferreira Xavier. “A nova defi -

nição de parceria público-privada e sua

aplicabilidade na gestão de infra-estru-

tura pública”. Revista do BNDES. Rio de

Janeiro,dez 2003, v.10, n. 20, p. 184.

AULA 10

I. TEMA

Parcerias público-privadas.

II. ASSUNTO

Parcerias público-privadas: concessões patrocinadas e concessões adminis-trativas.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar o instituto das parcerias público-privadas, distinguindo-as das concessões comuns.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

As parcerias público-privadas foram introduzidas no ordenamento jurídi-co brasileiro, em âmbito federal, por intermédio da Lei nº 11.079, de 30.12.2004.97

O instituto das PPPs foi defi nido por Marçal Justen Filho nos seguintes termos:

contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da infra-estrutura, mas mediante uma garantia es-pecial e reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obten-ção de recursos no mercado fi nanceiro.98

Uma das fi nalidades das PPPs consiste em “antecipar investimentos que exigiriam muito tempo para serem feitos apenas com recursos públicos, dan-do ao parceiro privado a obrigação de adiantar recursos a serem recebidos no futuro, de uma vez ou em parcelas”99. Ou seja, cabe à iniciativa privada reali-zar primeiramente os investimentos e a obra necessários à colocação do servi-ço à disposição da população. Apenas após estar o serviço em operação, o

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 89

100 Manual de Direito Administrativo.

23ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010. p. 465

poder público ingressa então com recursos fi nanceiros, seja complementando a tarifa ou remunerando integralmente o serviço prestado. Desde a edição da lei 12.766/12, é possível o escalonamento de pagamentos por etapa da Nesse sentido, dispõe o art. 7º da Lei nº 11.079/2004:

Art. 7o A contraprestação da Administração Pública será obrigato-riamente precedida da disponibilização do serviço objeto do contrato de parceria público-privada.

§ 1o É facultado à administração pública, nos termos do contrato, efetuar o pagamento da contraprestação relativa a parcela fruível do serviço objeto do contrato de parceria público-privada.

§ 2o O aporte de recursos de que trata o § 2o do art. 6o, quando rea-lizado durante a fase dos investimentos a cargo do parceiro privado, de-verá guardar proporcionalidade com as etapas efetivamente executadas.

As PPPs constituem espécies do gênero “concessão”, e se dividem em PPPs patrocinadas e PPPs administrativas, conforme defi nidas no art. 2º, §§1º e 2º, da Lei nº 11.079/2004:

Art. 2o Parceria público-privada é o contrato administrativo de con-cessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.

§1o. Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contra-prestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

§2o. Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.

A norma deixa claro que a característica que distingue as PPPs das de-mais concessões, disciplinadas pela Lei nº 8.987/1995 (denominadas pela lei “concessões comuns”), consiste na contraprestação pecuniária por parte da Administração Pública. Nesse sentido, dispõe o art. 2º, §3º, da Lei nº 11.079/2004:

§3o. Não constitui parceria público-privada a concessão comum, as-sim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando não envol-ver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

A doutrina critica a expressão “concessão administrativa”. Segundo José dos Santos Carvalho Filho100: “A expressão é vaga e de difícil inteligência. Ao

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 90

101 Conforme observou Marcos Juruena

Villela Souto, sobre o limite mínimo de

R$ 20 milhões: “Não há dúvidas de que

diversos municípios fi carão impossibi-

litados de adoção do mecanismo para

aprimoramento da sua gestão” SOU-

TO, Marcos Juruena Villela. Parcerias

público-privadas. Revista de Direito da

Associação dos Procuradores do Novo

Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Par-

cerias público-privadas (coord. Flávio

Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen

Iuris, 2006, p. 34.

que parece a lei pretendeu dar em concessão uma série de atividades tipicamente administrativas, para as quais precisará de investimentos do setor privado.”

As concessões comuns permanecem regidas pela Lei nº 8.987/1995, con-forme expressa previsão do art. 3º, §2º, d Lei nº 11.079/2004:

§2o. As concessões comuns continuam regidas pela Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e pelas leis que lhe são correlatas, não se lhes aplicando o disposto nesta Lei.

O art. 2º, §4º, da Lei nº 11.079/2004, prevê algumas limitações à cele-bração das parcerias:

§ 4o É vedada a celebração de contrato de parceria público-privada:I — cujo valor do contrato seja inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte

milhões de reais);II — cujo período de prestação do serviço seja inferior a 5 (cinco)

anos; ouIII — que tenha como objeto único o fornecimento de mão-de-

obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública.

O inciso I é alvo de ressalvas doutrinárias, uma vez que o valor de R$ 20 milhões pode se mostrar elevado para determinados Estados e Municípios da Federação. Assim, a doutrina critica o fato de que, a prevalecer o entendi-mento de que esse valor se aplica a toda e qualquer PPP, e não apenas às PPPs federais, os municípios muito difi cilmente poderão utilizar esse instrumento inovador.101

Já o inciso III tem por objetivo impedir o desvirtuamento da fi nalidade das PPPs, uma vez que o seu intuito, como visto, é permitir à iniciativa pri-vada adiantar investimentos que, em princípio, seriam realizados pelo poder público. Dessa forma, as PPPs voltam-se a objetivos que exigem a consecução de obras de grande vulto, atreladas à prestação de serviços, não se aplicando para simples compras, prestações de serviços ou realização de obras de enge-nharia, as quais devem seguir sendo regidas pela lei geral de licitações (Lei nº 8.666/1993) e, quando relativos a serviços públicos, aplicando-se a Lei nº 8.987/1995, conforme acima visto.

As cláusulas dos contratos de PPPs encontram-se previstas no art. 5º da Lei nº 11.079/2004:

Art. 5o As cláusulas dos contratos de parceria público-privada aten-derão ao disposto no art. 23 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 91

I — o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação;

II — as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao par-ceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fi xadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas;

III — a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraor-dinária;

IV — as formas de remuneração e de atualização dos valores con-tratuais;

V — os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços;

VI — os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do par-ceiro público, os modos e o prazo de regularização e, quando houver, a forma de acionamento da garantia;

VII — os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parcei-ro privado;

VIII — a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução sufi cientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§ 3o e 5o do art. 56 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;

IX — o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do ris-co de crédito dos fi nanciamentos utilizados pelo parceiro privado;

X — a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas;

XI — o cronograma e os marcos para o repasse ao parceiro privado das parcelas do aporte de recursos, na fase de investimentos do projeto e/ou após a disponibilização dos serviços, sempre que verifi cada a hipó-tese do § 2o do art. 6o desta Lei.

§1o. As cláusulas contratuais de atualização automática de valores baseadas em índices e fórmulas matemáticas, quando houver, serão aplicadas sem necessidade de homologação pela Administração Públi-ca, exceto se esta publicar, na imprensa ofi cial, onde houver, até o prazo de 15 (quinze) dias após apresentação da fatura, razões fundamentadas nesta Lei ou no contrato para a rejeição da atualização.

§ 2o Os contratos poderão prever adicionalmente:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 92

I — os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle da sociedade de propósito específi co para os seus fi nanciadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação fi nanceira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;

II — a possibilidade de emissão de empenho em nome dos fi nan-ciadores do projeto em relação às obrigações pecuniárias da Adminis-tração Pública;

III — a legitimidade dos fi nanciadores do projeto para receber in-denizações por extinção antecipada do contrato, bem como pagamen-tos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias público-privadas.

A legislação exige, ainda, que o vencedor da licitação para contratação por in-termédio de PPP constitua sociedade de propósito específi co para o projeto, cujo controle não poderá ser alterado sem a prévia aprovação do poder público (art. 9º, Lei nº 11.079/2004). A licitação para contratação das PPPs deverá ser por meio da modalidade concorrência, e ser precedida de estudo técnico que comprove a con-veniência e a oportunidade de contratação pela modalidade PPP, bem como que os recursos empenhados pelo poder público na parceria não levarão ao descum-primento das metas estatuídas pela legislação de responsabilidade fi scal (art. 10).

Conforme visto, a principal característica das PPPs consiste no fato de que o particular receberá parte ou toda sua remuneração do poder público.

Dessa forma, a lei buscou proteger o investidor contra o risco de inadim-plemento da Administração. Nesse sentido, previu que os contratos de PPPs poderão ser protegidos por garantias outorgadas pelo poder público ao par-ceiro privado:

Art. 8o As obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pú-blica em contrato de parceria público-privada poderão ser garantidas mediante:

I — vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal;

II — instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei;III — contratação de seguro-garantia com as companhias segurado-

ras que não sejam controladas pelo Poder Público;IV — garantia prestada por organismos internacionais ou institui-

ções fi nanceiras que não sejam controladas pelo Poder Público;V — garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal

criada para essa fi nalidade;VI — outros mecanismos admitidos em lei.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 93

102 BRAGA, Fabiana Andrada do Ama-

ral Rudge. PPP: O Fundo Garantidos,

a execução das garantias e a compati-

bilidade com o sistema constitucional

dos precatórios. Revista de Direito da

Associação dos Procuradores do Novo

Estado do Rio de Janeiro, v. XVII – Par-

cerias público-privadas (coord. Flávio

Amaral Garcia). Rio de Janeiro: Lumen

Iuris, 2006, pp. 238 e 239.

Assim, caso o poder público deixe de pagar a contraprestação pactuada, o parceiro privado poderá excutir a garantia. Especifi camente no que se refere às PPPs da União, o art. 16 autorizou a União, suas autarquias e fundações públicas a participar, no limite global de R$ 6.000.000.000,00 em Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas — FGP, com a fi nalidade de prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais.

Conforme é sabido, em regra, as dívidas do Estado são pagas por meio de precatório, de forma que parte da doutrina vislumbra inconstitucionalidade na existência do fundo garantidor das PPPs, por ofensa ao princípio do pre-catório. Sustentando a constitucionalidade do Fundo, manifesta-se Fabiana Andrada Rudge:

A Lei nº 11.079/04, ao instituir o FGP na forma de um fundo de na-tureza privada e patrimônio próprio, separado do patrimônio dos cotis-tas, sujeito a direitos e obrigações próprios, criou, na verdade, uma nova espécie de entidade sem personalidade jurídica ou, conforme usualmen-te designado, uma universalidade de direito que, embora destituída de personalidade jurídica, goza de algumas faculdades que somente a esta são comuns, sendo que a gestão, a representação judicial e extrajudicial, no caso do FGP, fi cam a cargo da instituição fi nanceira controladora.

A execução contra a Fazenda não se faz devida em razão da dívida que se visa quitar, mas, como regra, da natureza dos bens da pessoa exe-cutada. Assim, a partir do momento em que o patrimônio deixa de ser público e passa a ser privado, independentemente de visar garantir um interesse público, ele deixa de estar submetido à sistemática dos pre-catórios, passando a ser regido por normas comuns da execução civil.

Mas isso, é claro, somente até o limite do montante integralizado pelos cotistas. As obrigações que não puderem ser garantidas pelo Fun-do, por falta de liquidez deste, terão que ser executadas, ainda que con-substanciadas em título extrajudicial, diretamente em face do patrimô-nio do parceiro público, sujeitando-se, já então, como visto, às disposições da Constituição Federal (art. 100) e do Código de Processo Civil (arts. 730 e 731).102

Outra mudança introduzida pela Lei 12.766/12 consistiu na mudança do prazo para o particular contratado recorrer ao Fundo Garantidor de Parceria (FGP) na hipótese de inadimplemento do Poder Público. Com a nova reda-ção dada ao §5º do art. 18 da lei 11.079/04, o prazo em referência passa a ser de 15 dias, para crédito reconhecido pelo poder público, e de 45 dias após o vencimento para fatura emitida pelo particular, não aceita pelo Poder Público para reembolso, desde que não tenha havido motivação devida para a recusa:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 94

“§5º O parceiro privado poderá acionar o FGP nos casos de:I — crédito líquido e certo, constante de título exigível aceito e não

pago pelo parceiro público após 15 (quinze) dias contados da data de vencimento; e

II — débitos constantes de faturas emitidas e não aceitas pelo parcei-ro público após 45 (quarenta e cinco) dias contados da data de venci-mento, desde que não tenha havido rejeição expressa por ato motivado.”

Por fi m, a Lei 12.766/12 alterou o limite do comprometimento da receita corrente líquida dos Estados, Distrito Federal e dos municípios com as PPPs. O novo texto estipula uma ampliação neste limite de comprometimento orçamen-tário, estimulando, assim, que os entes federativos invistam na celebração de contratos de PPP. O limite de 3% previsto anteriormente passou a ser de 5% da receita corrente líquida, nos termos da nova redação do art. 28 da lei 11.079/04:

“Art. 28. A União não poderá conceder garantia ou realizar transfe-rência voluntária aos Estados, Distrito Federal e Municípios se a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas por esses entes tiver excedido, no ano anterior, a cinco por cento da receita corrente líquida do exercício ou se as despesas anuais dos contratos vigentes nos dez anos subsequentes excederem a cinco por cento da receita corrente líquida projetada para os respectivos exercícios.”

VI. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, item:• Concessão especial de serviços públicos (parcerias público-privadas)

Leitura complementar

GARCIA, Flavio Amaral (coord.) Parcerias público-privadas. Revista de direi-to da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, v. XVII.

SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Direito administrativo das parcerias. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 95

VII. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A delegação do sistema carcerário à iniciativa privada poderia, em tese, ser uma solução economicamente efi ciente para que o Poder Público equacio-nasse o problema que vem se agravando em alguns Estados da federação, no que concerne à segurança pública. Há um défi cit de vagas para presos que não pára de aumentar. Construir e operar as penitenciárias por meio de con-tratos de Parceria Público-Privada (PPP) poderia ser a solução.

Considerando que, no Brasil, a legislação sobre as PPPs não trata especifi -camente da contratação de presídios, indaga-se:

(i) é possível, à luz da normativa que rege a matéria, a adoção da PPP para a gestão de penitenciárias?

(ii) Se possível, e numa leitura atenta da legislação, que atividades po-deriam ser executadas por parte do parceiro privado?

(iii) Como seria a contraprestação paga pela Administração Pública ao parceiro privado?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

As parcerias público-privadas constituem um interessante meio de parti-lha de custos e riscos entre o poder público e a iniciativa privada na gestão de serviços públicos. Por meio delas, o parceiro privado pode prestar serviços públicos aos usuários fi nais, recebendo parcela de sua remuneração do poder público (PPP-patrocinada), ou, ainda, pode prestar serviços à Administração Pública, sendo integralmente remunerado por esta (PPP-administrativa).

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 96

AULA 11

I. TEMA

Consórcios públicos.

II. ASSUNTO

Conceito e análise do regime jurídico dos consórcios públicos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o regime jurídico aplicável aos consórcios públicos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conforme visto nas aulas anteriores, a prestação de serviços públicos à população constitui uma das principais fi nalidades da Administração Públi-ca. Essa prestação pode ser feita diretamente pelos entes da Federação ou por entidades integrantes da Administração Pública Indireta. É neste contexto que surgem os consórcios públicos.

A Emenda Constitucional nº 19/98 acrescentou o art. 241 à Constituição Federal, estabelecendo que:

“Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de en-cargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.”

Conforme se infere do dispositivo acima, o consórcio público é constitu-ído para que determinados entes que o integrem possam gerir cooperativa-mente e de forma associada a exploração de serviços públicos.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa a importância dos consórcios pú-blicos ao afi rmar que:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 97

103 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Di-

reito administrativo. São Paulo: Atlas,

2010, p. 475.

“Muitas vezes, o serviço que uma pessoa jurídica pública não pode ou tem difi culdades para executar sozinha torna-se possível ou mais efi ciente mediante a conjugação de esforços.”103

Assim, o consórcio público é uma alternativa à exploração de serviços pú-blicos pelos entes da Federação, que, de modo integrado e cooperado, podem prestá-los de maneira mais efi ciente, maximizando os valores oriundos da alocação de recursos para essa prestação.

Natureza jurídica

A Lei nº 11.107/05 regulamenta, em caráter nacional, o art. 241 da Cons-tituição Federal e dispõe que os consórcios públicos podem ter natureza de direito público ou de direito privado, a depender da forma que se revestirem.

No caso de constituir associação pública, o consórcio adquirirá personalidade jurídica de direito público (art. 41, IV, do Código Civil), sendo considerado, neste caso, uma espécie de autarquia. Ao revés, se atender os requisitos da legis-lação civil (em especial aqueles destinados às associações privadas — art. 53 e seguintes do Código Civil), adquirirá personalidade jurídica de direito privado.

A defi nição da personalidade jurídica dos consórcios públicos infl uencia o regime a eles aplicável, mas não atinge a essência de seu objetivo, qual seja: a gestão associada de um serviço público por entes diversos da Federação.

Constituição e competência dos consórcios públicos

Nos termos da Lei nº 11.107/05, o consórcio público será constituído por contrato cuja celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções pelo chefe do executivo de cada um dos entes da Federação.

São cláusulas necessárias do protocolo de intenções as que estabeleçam (art. 4º da Lei nº 11.107/05):

I — a denominação, a fi nalidade, o prazo de duração e a sede do consórcio;

II — a identifi cação dos entes da Federação consorciados;III — a indicação da área de atuação do consórcio;IV — a previsão de que o consórcio público é associação pública ou

pessoa jurídica de direito privado sem fi ns econômicos;V — os critérios para, em assuntos de interesse comum, autorizar

o consórcio público a representar os entes da Federação consorciados perante outras esferas de governo;

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 98

VI — as normas de convocação e funcionamento da assembléia ge-ral, inclusive para a elaboração, aprovação e modifi cação dos estatutos do consórcio público;

VII — a previsão de que a assembléia geral é a instância máxima do consórcio público e o número de votos para as suas deliberações;

VIII — a forma de eleição e a duração do mandato do representante legal do consórcio público que, obrigatoriamente, deverá ser Chefe do Poder Executivo de ente da Federação consorciado;

IX — o número, as formas de provimento e a remuneração dos empregados públicos, bem como os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional in-teresse público;

X — as condições para que o consórcio público celebre contrato de gestão ou termo de parceria;

XI — a autorização para a gestão associada de serviços públicos, explicitando:

a) as competências cujo exercício se transferiu ao cons órcio público;b) os serviços públicos objeto da gestão associada e a área em que

serão prestados;c) a autorização para licitar ou outorgar concessão, permissão ou

autorização da prestação dos serviços;d) as condições a que deve obedecer o contrato de programa, no

caso de a gestão associada envolver também a prestação de serviços por órgão ou entidade de um dos entes da Federação consorciados;

e) os critérios técnicos para cálculo do valor das tarifas e de outros preços públicos, bem como para seu reajuste ou revisão; e

XII — o direito de qualquer dos contratantes, quando adimplente com suas obrigações, de exigir o pleno cumprimento das cláusulas do contrato de consórcio público.

Ainda nos termos da Lei nº 11.101/05, o contrato de consórcio público é considerado celebrado com a ratifi cação, mediante lei, do protocolo de intenções. A propósito, é importante salientar que o contrato de consórcio exterioriza, como dito anteriormente, um acordo de vontades que se direcio-na para o mesmo sentido, razão pela qual o contrato de consórcio público é considerado um negócio jurídico multilateral, por meio do qual todos os entes participantes estão hierarquicamente na mesma posição e com os mes-mos objetivos.

Desse modo, primeiramente, os chefes do Poder Executivo dos entes da Federação devem subscrever o protocolo de intenções que regerá o consórcio e, em seguida, após a subscrição de seu teor, o Legislativo de cada um dos entes deverá ratifi cá-lo.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 99

Para atingir seus objetivos, o consórcio público poderá realizar as determi-nações previstas no §1º do art. 2º da Lei 11.107/05:

Art. 2o Os objetivos dos consórcios públicos serão determinados pelos entes da Federação que se consorciarem, observados os limites constitucionais.

§ 1o Para o cumprimento de seus objetivos, o consórcio público poderá:

I — fi rmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, re-ceber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo;

II — nos termos do contrato de consórcio de direito público, pro-mover desapropriações e instituir servidões nos termos de declaração de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, realizada pelo Poder Público; e

III — ser contratado pela administração direta ou indireta dos entes da Federação consorciados, dispensada a licitação.

§ 2o Os consórcios públicos poderão emitir documentos de cobran-ça e exercer atividades de arrecadação de tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços ou pelo uso ou outorga de uso de bens pú-blicos por eles administrados ou, mediante autorização específi ca, pelo ente da Federação consorciado.

§ 3o Os consórcios públicos poderão outorgar concessão, permissão ou autorização de obras ou serviços públicos mediante autorização pre-vista no contrato de consórcio público, que deverá indicar de forma es-pecífi ca o objeto da concessão, permissão ou autorização e as condições a que deverá atender, observada a legislação de normas gerais em vigor.

Estes poderes concedidos aos consórcios públicos são instrumentos postos à disposição pela lei para que os objetivos para os quais eles foram criados sejam alcançados.

Contrato de rateio

O contrato de rateio constitui o instrumento contratual que regula a obriga-ção fi nanceira dos entes consorciados no consórcio público. A Lei nº 11.107/05 determina que os entes consorciados, isolados ou em conjunto, bem como o consórcio público, são partes legítimas para exigir o cumprimento das obrigações previstas no contrato de rateio. Essa exigibilidade das obrigações assumidas é co-rolário natural da própria existência do consórcio público, eis que, sem o aporte de recursos, os objetivos assumidos pelo consórcio não poderão ser cumpridos.

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FGV DIREITO RIO 100

A gravidade do não cumprimento das obrigações fi nanceiras assumidas no contrato de rateio fez com que a Lei nº 11.107/05 previsse a possibilidade de exclusão do ente consorciado que não consignar, em sua lei orçamentária ou em créditos adicionais, as dotações sufi cientes para suportar as despesas assumidas por meio de contrato de rateio do consórcio público, após prévia suspensão.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, item:• Consórcios públicos

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Ja-neiro: Forense, 2012, p. 131/134.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Reuniram-se o Presidente da República, o Governador do Estado do Rio de Janeiro e o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro para discutir qual a melhor forma de coordenar a participação desses entes da federação na or-ganização e realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Foi-lhes sugerida, nesse sentido, a criação de um consórcio público. Informe se é possível a criação de um consórcio público para esse fi m e, em caso positivo, informe as principais etapas para a sua criação válida. Quais seriam as vantagens da criação dessa espécie de entidade, no caso concreto?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os consórcios públicos consistem em uma reunião de esforços entre dis-tintos entes federativos com o objetivo de gerirem de forma associada deter-minados serviços públicos.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 101

104 SOUTO, Marcos Juruena Villela. De-

sestatização: privatização, concessões,

terceirizações e regulação. 4. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 22.

105 Celso Antônio Bandeira de Mello

denota que existem três formas de

interferência do Estado na ordem eco-

nômica: poder de polícia, incentivos

e atuação direta empresarial (BAN-

DEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso

de direito administrativo. 14. ed. São

Paulo: Malheiros, 2002. p. 619). Diogo

de Figueiredo Moreira Neto, sem con-

siderar o fomento público por não ter

natureza impositiva, as classifi ca em

quatro tipos: regulatória, concorrencial,

monopolista e sancionatória (MOREIRA

NETO. Direito regulatório...., op. cit., p.

129). Por sua vez, Diogenes Gaspari-

ni apresenta as seguintes formas de

intervenção no domínio econômico:

controle de preços, controle de abaste-

cimento, repressão ao abuso do poder

econômico, monopólio, fi scalização,

incentivo e planejamento (GASPARINI,

Diogenes. Direito administrativo. 7. ed.

São Paulo: Saraiva, 2002. p. 605).

UNIDADE III — REGIME JURÍDICO DAS ATIVIDADES MONOPOLIZADAS PELO ESTADO

AULA 12

I. TEMA

Monopólios públicos

II. ASSUNTO

Regulação das atividades monopolizadas pelo Estado

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir a participação do Estado nas atividades econômicas que, sem apresentarem natureza jurídica de serviços públicos, constituem monopólio da União, especialmente os casos do petróleo e do gás natural. Apresentar a controvérsia de que se cercou a discussão quanto à constitucionalidade da Lei nº 9.478/1997.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

À luz do texto constitucional de 1988 pode-se identifi car inúmeras formas de intervenção do Estado em face da ordem econômica, e que orientam as escolhas políticas em diversas atuações. Marcos Juruena Villela Souto, por exemplo, destaca que com vistas ao desenvolvimento do atual papel pelo Estado (regulador) estão previstas as seguintes formas de intervenção: norma-tiva, repressiva, tributária, regulatória e exploração direta da atividade econô-mica.104 Outros autores apresentam classifi cações distintas acerca das formas de intervenção.105

Malgrado haver difi culdade prática em apontar todos os mecanismos de inter-venção estatal, no Estado Regulador, cumpre indicar algumas formas de fazê-lo.

Vale destacar que a forma de intervenção estatal pode ocorrer isolada ou, até mesmo, de forma cumulativa em determinados setores, de modo que o Estado reserva uma atividade econômica como serviço público, regulando-a, atuando como agente econômico e criando políticas indutivas (ex. setor elétrico).

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FGV DIREITO RIO 102

Como se vê, são inúmeras formas de intervenção estatal na ordem econô-mica, de modo que o Estado deve estar preparado para atuação de sua orga-nização administrativa. Para a nossa aula, merece destacar que nos termos da Constituição Federal, algumas atividades da indústria do petróleo e do gás natural são monopólios da União Federal:

Art. 177. Constituem monopólio da União:I — a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros

hidrocarbonetos fl uidos;II — a refi nação do petróleo nacional ou estrangeiro;III — a importação e exportação dos produtos e derivados básicos

resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;IV — o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional

ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;

V — a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a in-dustrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus de-rivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)

A redação original da Constituição de 1988 vedava à União conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, à iniciativa privada, no que tange ao monopólio do petróleo e gás natural.

Com a edição da Emenda Constitucional nº 9, de 09.11.95, passou a ser admissível que as atividades relacionadas à pesquisa, lavra, importação, exportação e transporte de petróleo e gás natural fossem contratadas com empresas estatais ou privadas, tendo em vista a alteração da redação do art. 177, §1º, da Constituição Federal:

Redação original Redação dada pela EC 9/95

177 (...)§ 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º.

Art. 177 (...)§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das ativida-des previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 103

Dessa forma, passou a ser permitida a contratação, pela União, na forma da lei, das seguintes atividades que compõem a indústria do petróleo e gás natural:

177. (...):I — a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros

hidrocarbonetos fl uidos;II — a refi nação do petróleo nacional ou estrangeiro;III — a importação e exportação dos produtos e derivados básicos

resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;IV — o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional

ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;

Por força do art 177, §2º, da Constituição, as referidas atividades econô-micas são objeto de regulação estatal por meio de órgão regulador.

Em 06.08.1997, foi promulgada a Lei Federal nº 9.478, que dispõe sobre a Política Energética Nacional. Essa Lei estabeleceu os princípios da regu-lação das atividades econômicas relativas ao monopólio do petróleo, bem como a operação de instalações e equipamentos relacionados com o exercício dessas atividades. Esse mesmo ato legislativo instituiu a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustível — ANP, a quem coube regular as atividades relativas ao monopólio da indústria do petróleo e do gás natural.

Os arts. 4º e 5º da Lei nº 9.478/97 prevê os institutos da concessão e da autorização para a exploração por terceiros das atividades da indústria do petróleo e do gás natural:

Art. 4º Constituem monopólio da União, nos termos do art. 177 da Constituição Federal, as seguintes atividades:

I — a pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fl uidos;

II — a refi nação de petróleo nacional ou estrangeiro;III — a importação e exportação dos produtos e derivados básicos

resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;IV — o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional

ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem como o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e de gás natural.

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FGV DIREITO RIO 104

106 Na indústria do petróleo, a “explora-

ção” e a “produção” são conceitos téc-

nicos e defi nidos. No direito brasileiro,

tais defi nições encontram-se no art.

6º da Lei nº 9.478/97: “Art. 6º. Para os

fi ns desta Lei e de sua regulamenta-

ção, fi cam estabelecidas as seguintes

defi nições: (...) XV — Pesquisa ou

Exploração: conjunto de operações ou

atividades destinadas a avaliar áreas,

objetivando a descoberta e a identi-

fi cação de jazidas de petróleo ou gás

natural; (...) XVI — Lavra ou Produção:

conjunto de operações coordenadas de

extração de petróleo ou gás natural de

uma jazida e de preparo para sua mo-

vimentação”.

107 Dependendo, logicamente, da com-

provação de possuir os necessários

requisitos de caráter técnico, ex vi do

art. 25 da Lei nº 9.478/97: “Art. 25.

Somente poderão obter concessão para

a exploração e produção de petróleo ou

gás natural as empresas que atendam

aos requisitos técnicos, econômicos e

jurídicos estabelecidos pela ANP”.

108 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. Rio de Janei-

ro: Forense, 2003, p. 156.

Art. 5º As atividades econômicas de que trata o artigo anterior serão reguladas e fi scalizadas pela União e poderão ser exercidas, mediante concessão ou autorização, por empresas constituídas sob as leis brasilei-ras, com sede e administração no País.

No que tange às atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural106, com a entrada em vigor da Lei nº 9.478/1997, qualquer empresa constituída sob leis brasileiras passou a ter o direito de participar das licita-ções promovidas pela ANP com o objetivo de contratar a sua execução com terceiros107, devendo essa exploração correr— por conta e risco do concessio-nário, mediante celebração de contratos de concessão. Nesse sentido dispõem os arts. 23 e 26, caput, da Lei nº 9.478/97:

Art. 23. As atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de con-cessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida nesta Lei.

(...)Art. 26. A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de

explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tribu-tos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes.

(...)

Cumpre não confundir a concessão da atividade petrolífera com a conces-são de serviços públicos. A diferenciação entre serviços públicos e atividades monopolizadas pelo Estado encontra-se, dentre outros, no fato de que os primeiros visam à satisfação de interesses coletivos, ao passo que as últimas teriam por fi nalidade principalmente o atendimento a interesses fi scais ou estratégicos do Estado, embora gerem refl exos mediatos sobre o bem-estar da sociedade.108 A estrutura econômico-fi nanceira dos contratos também se apresenta diferente.

Assim, no caso das atividades que compõem a indústria do petróleo, tem-se que a concessão é para uso de bem público e desempenho de atividade econômica monopolizada, mas não se trata de concessão de serviço público (ver, a respeito, voto-vista do ministro Eros Roberto Grau, ADI 3273).

Regime de Partilha de Produção

Como visto, a pesquisa e a exploração da lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fl uidos são atividades de monopólio da

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FGV DIREITO RIO 105

União, que pode explorá-las diretamente ou mediante delegação a particular, nos termos do que dispõe o art. 177, inciso I e § 1º, da Constituição Federal. A pesquisa e a exploração da lavra podem ser feitas sob diversas modalidades. O Brasil, usualmente, utiliza o modelo simples de concessão, por meio do qual o concessionário vencedor da licitação paga à União determinada quan-tia pelo direito de buscar reservas petrolíferas (art. 23, Lei 9.478/97). Tendo êxito em tal busca, o produto da lavra é explorado pelo próprio concessioná-rio, que remunera o Poder Público com royalties, que, nada mais são, do que participações devidas sobre esta exploração, eis que a propriedade do bem explorado é da União, nos termos do art. 20 da Constituição Federal.

Este usual modelo adotado no Brasil é marcado pela atribuição do risco ao concessionário, uma vez que este emprega recursos fi nanceiros e humanos na busca por reservas petrolíferas, sem qualquer garantia de resultado. A in-certeza quanto à existência de reservas faz com que este modelo conceda ao particular o produto de eventuais reservas petrolíferas encontradas, cabendo ao Poder Público os royalties decorrentes da eventual exploração e os valores provenientes do pagamento do bônus de assinatura dos contratos para a ex-ploração pelo particular, sem prejuízo da arrecadação dos tributos incidentes sobre a atividade.

Outro modelo exploratório das jazidas de petróleo e gás natural consiste no contrato de partilha de produção. A sua utilização no Brasil está intimamente ligada a descoberta de acumulações de petróleo e gás natural em reservatórios situados na camada do “pré-sal” e, da mesma maneira, a áreas que venham a ser consideradas estratégicas pelo Conselho Nacional de Política Energética.

A denominada camada do “pré-sal” e as áreas consideradas estratégicas encontram suas respectivas defi nições legais nos incisos do art. 2°, da Lei 12.351/10:

“IV — área do pré-sal: região do subsolo formada por um prisma vertical de profundidade indeterminada, com superfície poligonal de-fi nida pelas coordenadas geográfi cas de seus vértices estabelecidas no Anexo desta Lei, bem como outras regiões que venham a ser delimita-das em ato do Poder Executivo, de acordo com a evolução do conheci-mento geológico;

V — área estratégica: região de interesse para o desenvolvimento na-cional, delimitada em ato do Poder Executivo, caracterizada pelo baixo risco exploratório e elevado potencial de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fl uidos”.

Diferentemente do modelo usual de concessão mencionado anteriormen-te, o modelo de partilha de produção é comumente utilizado em situações

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109 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso

de Direito Administrativo. 1ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2012, p. 466.

de baixo risco exploratório, isto é, quando há maior grau de certeza sobre a existência de potencial petrolífero.

Isso se deve às características deste modelo de exploração que, nos termos do art. 2º, inciso I, da Lei nº 12.351/10, é defi nido da seguinte forma:

“regime de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fl uidos no qual o contratado exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção e, em caso de descoberta comercial, adquire o direito à apropriação do custo em óleo, do volume da produção correspondente aos roya lties devidos, bem como de parcela do excedente em óleo, na proporção, condições e prazos estabelecidos em contrato”.

No modelo de partilha de produção, o particular vencedor da licitação, após ser ressarcido pelos custos da exploração (denominado cost oil), partilha o produto da exploração com as demais partes do contrato, na proporção e condições estabelecidas no contrato.

É possível antever que a adoção do modelo de partilha de resultado acar-reta uma maior participação da União na exploração do petróleo, eis que o produto da exploração não será de exclusivo aproveitamento por parte do concessionário, mas partilhado com a União, que é a proprietária do bem explorado.

Sintetizado por Alexandre Santos de Aragão, o modelo de partilha de re-sultado na área do pré-sal funcionará da seguinte maneira:

“O modelo exploratório afi nal adotado pelo Congresso Nacional (Leis n. 12.351, 12.304 e 12.276/10) para as áreas do pré-sal que não tenham sido anteriormente objeto de contratos de concessão é o de um contrato de partilha, com elementos de joint venture, a ser celebrado (1) pela União, representada pela nova estatal Empresa Brasileira de Admi-nistração de Petróleo e Gás Natural — Pré-Sal Petróleo S.A., com (2) a Petrobras, contratada sem licitação com um percentual mínimo de trinta por cento e sempre exercendo a função de operadora, ou seja, de empresa-líder do consórcio e de executora de material das atividades, e com (3) a empresa privada que vencer a licitação oferecendo à União a maior participação na produção, após ressarcido o seu cost oil.” 109

A descrição acima sintetiza o modelo de partilha de produção adotado pelo Brasil para a exploração das reservas petrolíferas do pré-sal.

Merece menção que se encontra em trâmite no Supremo Tribunal Federal a ADI nº 4492, proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro con-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 107

110 Na mencionada ADI, o Governador

do Estado do Rio de Janeiro requer que

seja dada a referida lei interpretação

conforme a Constituição Federal da

República de 1988, em especial diante

das previsões constitucionais dos arts.

20, § 1º e 177, § 2º, bem como ressalta

a violação aos princípios federativo e

democrático e o impacto econômico

que os estados produtores irão sofrer

com a não arrecadação das participa-

ções especiais.

Segundo a fundamentação da ADI, o

art. 5º da Lei nº 12.276/10 não confere

expressamente aos estados e municí-

pios produtores o direito à participação

especial nos lucros da exploração das

jazidas de petróleo, garantida pelo art.

20, § 1º da Constituição Federal. Sendo

uma garantia constitucional, a Lei fede-

ral, ao omitir este direito aos estados e

municípios produtores, afronta direta-

mente o que dispõe o art. 20, § 1º da

Constituição Federal.

tra a Lei federal nº 12.276/10, a qual permite que a Petrobras, dispensada de licitação, exerça atividades de pesquisa de lavra de petróleo, gás natural e ou-tros hidrocarbonetos fl uidos em áreas não concedidas do pré-sal, até o volu-me de 5 bilhões de barris, sem o pagamento das participações especiais, cujos estados produtores recebem pela exploração do petróleo.110

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

Voto do Relator e voto-de-vista do ministro Eros Grau na ADI — MC 3.273-DF.

Leitura complementar

MARTINS, Daniela Couto. A regulação da indústria do petróleo segundo o modelo constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

VALOIS, Paulo (org.). Temas de direito do petróleo e do gás natural. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2002.

__________. Temas de direito do petróleo e do gás natural II. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

O Governo do Estado do Paraná ajuizou ação direta de inconstitucio-nalidade, com pedido de liminar, em face de diversos dispositivos da Lei nº 9.478/1997 — que dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.

Dentre os dispositivos legais impugnados, encontrava-se o art. 26, caput, da Lei nº 9.784/1997, cuja redação é a seguinte:

Art. 26. A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade, desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tribu-tos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes.

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FGV DIREITO RIO 108

A insurgência referia-se, especialmente, à expressão “conferindo-lhe a pro-priedade, desses bens, após extraídos”.

Além dos incisos I a IV e §§1º e 2º do art. 177 da Constituição Federal, já acima transcritos, o art. 26 ofenderia, por exemplo, o art. 20, IX, o qual elen-ca, dentre os bens de titularidade da União, “os recursos minerais, inclusive os do subsolo”. Igualmente, o §1º do art. 20, da CF/88 determina:

§1º. É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Fe-deral e aos Municípios, bem como a órgãos de administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fi ns de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma conti-nental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação fi nanceira por essa exploração.

Ao deferir a medida cautelar pleiteada, o relator afi rmou que dentre os bens abrangidos pelo dispositivo em questão, encontravam-se o petróleo e o gás natural, que seriam classifi cados como recursos minerais. Em seguida, afi rmou que, apesar de os recursos poderem ter pesquisa e lavra realizadas por particulares por meio de concessão ou autorização, essa delegação não podia chegar a transferir ao ente privado a titularidade sobre o resultado do produto da lavra, sob pena de ofensa aos arts. 176 e 177. Nesse sentido, argumentou:

I — petróleo e gás natural são bens da União, sejam os encontrados no subsolo, sejam os situados na plataforma continental, no mar terri-torial ou zona econômica exclusiva (art. 20, inciso IX e §1º);

II — do resultado da sua exploração participam ou são compensa-dos (conforme o caso) os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como certos órgãos da Administração Direta da União e mais o proprietário do respectivo solo, se de jazida em subsolo se tratar (§1º do art. 20, combinadamente com o §2º do art. 176);

(...)IV — revelam-se como propriedade distinta da do solo, para efeito

de exploração ou aproveitamento (caput do art. 176);V — são recursos passíveis de ter a sua pesquisa e lavra, ou sua ex-

ploração e aproveitamento, realizáveis por via de autorização ou con-cessão (art. 176 e seu §1º), mas agora sem a possibilidade de transferên-cia do produto da lavra para o concessionário, por ser essa transferência incompatível com o regime de monopólio a que se referem o inciso I do art. 177 e o §2º, inciso III, desse mesmo artigo);

(...).

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Entretanto, conforme você poderá notar a partir da leitura obrigatória o entendimento acima acabou não prevalecendo, tendo sido exitosa a tese de que o art. 26, caput, da Lei nº 9.478/1997 não se apresenta inconstitucional.

Após ler o voto-vista do ministro Eros Roberto Grau, procure elencar os argumentos ali esposados em favor da constitucionalidade do referido dispo-sitivo legal.

VII. CONCLUSÃO DA AULA

As atividades que constituem monopólio estatal assim o são consideradas precipuamente pelo interesse estratégico (segurança nacional, aspectos fi scais, etc.) que detêm. Estão previstas na Constituição Federal. Especifi camente em relação à pesquisa e a exploração da lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fl uidos, recente legislação introduziu o regime de partilha de produção para as áreas do pré-sal e as que venham a ser conside-radas de interesse estratégico pelo CNPE. Nos demais casos, continua a ser aplicado o modelo de concessão introduzido pela Lei 9.478/97.

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111 BRASIL. Emenda Constitucional nº

8 (15 de agosto de 1995): Art. 21, XI

— explorar, diretamente ou mediante

autorização, concessão ou permissão,

os serviços de telecomunicações, nos

termos da lei, que disporá sobre a or-

ganização dos serviços, a criação de um

órgão regulador e outros aspectos ins-

titucionais. Emenda Constitucional nº

9, de 9 de novembro de 1995: Art. 177,

§2º: A lei a que se refere o §1º disporá

sobre: I — a garantia do fornecimento

dos derivados de petróleo em todo o

território nacional; II — as condições

de contratação; III — a estrutura e

atribuições do órgão regulador do mo-

nopólio da União.

UNIDADE IV. AGÊNCIAS REGULADORAS

AULA 13

I. TEMA

Agências reguladoras

II. ASSUNTO

Regime jurídico das agências reguladoras.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar as características das agências reguladoras e as principais con-trovérsias atinentes à sua constitucionalidade.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Além de órgãos independentes (Ministério Público e Tribunal de Contas), criados pela Constituição Federal de 1988, — e que não se inserem na clássi-ca teoria tripartite de separação de poderes — para melhor realizar o feixe de atribuições regulatórias da atividade econômica e social que lhe foi conferido pela Constituição de 1988 o Estado instituiu, por lei, entidades reguladoras autônomas, conferindo-lhes competência para fi scalizar e ditar normas sobre determinados setores.

A função neutral regulatória — e seu modo de execução, por meio de ór-gãos com ou sem autonomia — não foi explicitada na Carta de 1988, sendo, portanto, decorrente de norma legal. Apenas no art. 20, XI, e no art. 177 da Constituição Federal está prevista a criação de órgãos reguladores para os serviços públicos de telecomunicações e para as atividades monopolizadas da indústria do petróleo. Ambas as previsões não constavam do texto original, decorrendo de emendas constitucionais.111

Assim, as agências reguladoras, criadas por lei — e, repita-se, não estrutu-radas na Constituição Federal — surgiram no âmbito de um movimento de descentralização administrativa (e, não, mera desconcentração), revestidas de natureza jurídica autárquica especial.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 111

112 “Havia uma nova compreensão dos

limites da expansão liderada pelo Es-

tado. O setor público, limitado por uma

crise fi scal e pela necessdade de esta-

bilizar as fi nanças públicas, precisou

reduzir as transferências de capital para

empresas estatais. O governo encarava

limites claros sobre seu poder de inves-

timento. O que levou à busca de investi-

dores privados que pudessem fornecer

novos investimentos à infra-estrutura.

Isso, por sua vez, exigia uma nova es-

trutura regulatória, com mudanças de

uma grandeza que provavelmente não

havia sido imaginada no princípio. Os

objetivos iniciais da reforma regulató-

ria e da privatização eram facilitar as

condições e atrair novos investimentos,

inclusive do exterior, para aumentar

a efi ciência e reduzir a dívida pública.

Porém, havia tensão entre o objetivo

orçamentário de curto prazo e a neces-

sidade de facilitar futuros investimen-

tos e oferecer um cenário orientado

ao crescimento” (ORGANIZAÇÃO PARA

COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO — OCDE. Relatório sobre

a reforma regulatória no Brasil: fortale-

cendo a governança para o crescimen-

to. Paris e Brasília, 2008).

113 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Mutações do direito administrativo. Rio

de Janeiro: Renovar, 2001. p. 147.

114 Sobre o uso desse termo, ver: BINEN-

BOJM, Gustavo. Uma teoria do direito

administrativo: direitos fundamentais,

democracia e constitucionalização. Rio

de Janeiro: Renovar, 2006. p. 22.

115 Celso Antônio Bandeira de Mello,

por exemplo, afi rma que a denomi-

nação “agências reguladoras” deve ter

sido copiada dos Estados Unidos da

América, presumivelmente pelo fato

de se imaginar que uma terminologia

corrente na organização administrativa

estadunidense conferiria prestígio e

certa grandiosidade às nossas autar-

quias. “Aliás, é sabido que países sub-

desenvolvidos muitas vezes têm uma

reverência servil para com os desenvol-

vidos. Será, talvez, o atavismo cultural

dos colonizados” (BANDEIRA DE MELLO,

Celso Antônio. Curso de direito adminis-

trativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,

2002. p. 150).

116 Cf. nosso GUERRA, Sérgio. Controle

judicial dos atos regulatórios. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 99.

117 Ver ADI nº 1.949-0/RS.

118 BRASIL. Constituição Federal (1988).

Art. 84. Compete privativamente ao Pre-

sidente da República: II — exercer, com

o auxílio dos Ministros de Estado, a di-

reção superior da administração federal.

119 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Poder, direito e Estado: o direito admi-

nistrativo em tempos de globalização.

Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 89.

A descentralização autárquica, depois de certo declínio, ressurgiu restaura-da como a melhor solução encontrada para conciliar a atuação típica de Esta-do, no exercício de manifestações imperativas, de regulação e de controle.112

Estas atividades demandam personalidade jurídica de Direito Público, com uma fl exibilidade proporcionada por uma ampliação da autonomia ad-ministrativa e fi nanceira, pelo afastamento das burocracias típicas da admi-nistração direta e, sobretudo, pelo relativo isolamento de suas atividades ad-ministrativas em relação à arena político-partidária.113

Como dito, a característica estrutural de rede ou policêntrica114 (não pira-midal), não encontra detalhamento na Carta Constitucional de 1988, que apenas utilizou o termo “órgão regulador” para se referir à criação de autori-dades regulatórias.

Em que pesem críticas formuladas115 à legislação infraconstitucional, parte da doutrina116 e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal117 não identi-fi caram haver inconstitucionalidade na criação dessas entidades, vis-à-vis o disposto no art. 84 da Constituição Federal de 1988,118 que atribui ao Chefe do Poder Executivo a direção superior da Administração Pública.

A principal característica dessas entidades, sem prejuízo da diversidade das áreas que regulam, foi o afastamento da clássica estrutura hierárquica dos ministérios e da direta infl uência política do Governo, com certo grau de autonomia.119 Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “As funções atribuídas a esta categoria de agentes que exercem funções estatais neutrais, duplamente legitimados, tanto pelo mérito em seu acesso — que é uma legi-timação originária — como pelo exercício político-partidariamente isento de suas funções — que vem a ser uma legitimação corrente — por atuarem no interesse direto da sociedade, o que lhes atribui essa legitimidade, e dotados de investidura estatal, o que lhes confere autoridade, vêm suprir as defi ciên-cias crônicas na percepção e no atendimento dos legítimos interesses gerais da sociedade pós-moderna. Assim, os agentes neutrais, robustecidos por várias atuações paralelas — mas, frise-se, sempre independentes daquelas a cargo dos tradicionais estamentos e órgãos estatais político-partidários — para ob-ter esse resultado, se vão difundindo e se capilarizando por toda a sociedade, encontrando a sua mais autêntica e poderosa validação no exercício das fun-ções constitucionalizadas de zeladoria, de controle e de promoção de justiça”

E essa autonomia está diretamente ligada a sua caracterização como últi-ma instância decisória na esfera administrativa.120

Surgimento das Agências Reguladoras brasileiras

O surgimento das Agências Reguladoras brasileiras, como já se teve a opor-tunidade de afi rmar,121 começa, basicamente, paralelamente ao lançamento,

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 112

120 TÁCITO, Caio. Agências reguladoras

da administração. Revista de Direito

Administrativo, n. 221, p. 3, 4, jul./set.

2000.

121 GUERRA, Sérgio. Introdução ao direito

das agências reguladoras. Rio de Janei-

ro: Freitas Bastos, 2004.

122 SARAVIA. Governança social..., op.

cit., p. 22.

123 “Nas décadas de 1980 e 1990, vários

movimentos, abrigados sob o guar-

dachuva da New Public Management

(NPM), especialmente nos países

anglo-saxões, propunham soluções

para a administração pública. Pontos

centrais se referiam à adaptação e à

transferência dos conhecimentos ge-

renciais desenvolvidos no setor privado

para o público, pressupondo a redução

do tamanho da máquina administra-

tiva, uma ênfase crescente na compe-

tição e no aumento de sua efi ciência”

(PECI, Alketa; PIERANTI, Octavio Penna;

RODRIGUES, Silvia. Governança e New

Public Management: convergências e

contradições no contexto brasileiro.

O&S, v. 15, n. 46, jul./set. 2008).

pelo Governo Federal, do denominado Plano Diretor da Reforma do Apare-lho do Estado, sob a motivação de reconstruir o Estado, de forma a resgatar sua autonomia fi nanceira e sua capacidade de implementar políticas públicas.

Referindo-se às agências, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Esta-do previu que dois fatores inspiraram a formulação do projeto: a responsabili-zação por resultados e a autonomia de gestão. Assim, o objetivo inicial — não implementado na prática — focava na modernização da máquina pública, visando transformar autarquias e fundações, que exerciam atividades exclusi-vas do Estado (com o necessário poder de polícia), em agências autônomas.

O Plano previa que o projeto das agências autônomas desenvolver-se-ia em duas dimensões. Em primeiro lugar, seriam elaborados os instrumentos legais necessários à viabilização das transformações pretendidas, e um levantamento visando superar os obstáculos na legislação, normas e regulações existenteEm paralelo, seriam aplicadas as novas abordagens em algumas autarquias sele-cionadas, que se transformariam em laboratórios de experimentação.

Influxos estrangeiros absorvidos na criação das agências reguladoras no Brasil

É comum indagar quais foram os infl uxos que inspiraram os autores do modelo brasileiro de Agências Reguladoras independentes.

Certamente, a ideia de descentralização advém do movimento estruturado no Reino Unido, denominado de New Public Management (NPM), adotado a partir da década de 80 visando modernizar a organização administrativa, isto é, esse termo foi utilizado para descrever a onda de reformas do setor público nesse período.

Enrique Saravia122 leciona que nas décadas de 80 e 90, vários países — en-tre eles o Brasil — tentaram reformas que permitissem maior agilidade e fl exi-bilidade à atividade estatal. Os diversos planos de melhora receberam a deno-minação comum de Nova Gerência Pública (New Public Management) e seus principais enunciados foram sintetizados num memorável relatório da OCDE (1996). Tratava-se de medidas destinadas a dotar a Administração Pública de um comportamento gerencial que aliviasse a máquina ou o aparelho do Esta-do. Muitos países avançaram por esse caminho e se registraram melhoras efe-tivas em muitos deles. No entanto, o modelo funcionou melhor nos países de democracias e economias evoluídas e estáveis. Não aconteceu idêntico fenô-meno nos países com fortes desigualdades sociais e regionais, com pesados endividamentos e défi cits fi scais, ou com sistemas políticos em transição.

O programa do NPM123 pode ser resumido, de forma objetiva, nas seguin-tes medidas: (i) diminuir o tamanho do Estado, inclusive do efetivo de pes-soal; (ii) privatização de empresas e atividades; (iii) descentralização de ativi-dades para os governos subnacionais; (iv) terceirização de serviços públicos

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 113

124 COSTA. Frederico Lustosa da. Re-

forma do estado e contexto brasileiro:

crítica do paradigma gerencialista. Rio

de Janeiro: FGV, 2010. p. 154.

125 Disponível em: <www.ofgem.gov.

uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

126 Disponível em: <www.ofwat.gov.

uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

127 Disponível em: <www.rail-reg.gov.

uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

128 Disponível em: <www.caa.co.uk>.

Acesso em: 13 dez. 2010.

129 Disponível em: <www.oft.gov.uk>.

Acesso em: 13 dez. 2010.

130 Disponível em: <www.natlotcomm.

gov.uk>. Acesso em: 13 dez. 2010.

(outsorcing); (v) regulação de atividades conduzidas pelo setor privado; (vi) transferência de atividades sociais para o terceiro setor; (vii) desconcentração de atividades do governo central; (viii) separação de atividades de formulação e implementação de políticas públicas; (ix) estabelecimento de mecanismos de aferição de custos e avaliação de resultados; (x) autonomização de serviços e responsabilização de dirigentes; (xi) fl exibilização da gestão orçamentária e fi nanceira das agências públicas; (xii) adoção de formas de contratualização de resultados; (xiii) abolição da estabilidade dos funcionários e fl exibilização da relação de trabalho no serviço público.124

No bojo das reformas administrativas, trazidas nos governos Margareth Th atcher e John Major, foram criadas diversas entidades regulatórias.

Destaque-se a Offi ce of Telecomunication (OFTEL), na área de teleco-municações, criada no ano de 1984; a Offi ce of Gas (OFGAS), para regular o setor de gás, e a Offi ce of Eletricity Regulation (OFFER), regulando o setor de eletricidade.

Estas entidades, após fusão no ano de 1999, transformaram-se na Offi ce of Gas and Eletricity Markets (OFGEM), abrangendo os setores de gás e eletricidade.125

Foram criadas a Water Services Regulation Authority (OFWAT)126 para o setor voltado aos recursos hídricos; a Offi ce of Rail Regulation (ORR),127 do sistema ferroviário, a Civil Aviation Authority (CAA),128 para o setor aéreo, a Offi ce of Fair Trading (OFT),129 atuando na defesa da concorrência, e uma agência responsável por loterias, a Offi ce of the National Lottery (OFLOT), sucedida pela National Lottery Commission.130

Registre-se, ainda, a infl uência estadunidense quanto à estruturação dos entes regulatórios, propriamente ditos. Com efeito, os Estados Unidos da América experimentaram um amplo e contínuo desenvolvimento da regu-lação setorial desde 1887, quando surgiu a Interstate Commerce Commission, com competência regulatória do transporte ferroviário interestadual.

A Independent Regulatory Commission é um ente estatal autônomo, diri-gido por um colegiado composto por Commissioners eleitos pelo Chefe do Poder Executivo, e investidos para exercer o múnus público por meio de mandato fi xo. Desse modo, esses dirigentes só podem ser exonerados em caso de falta grave.

Os mandatos dos Commissioners variam, sendo certo que sempre são deter-minados por prazos escalonados, de forma que os mandatos não sejam coin-cidentes. A nomeação do Chairman, que preside o órgão colegiado, compete ao Chefe do Poder Executivo, com prévia aprovação do Senado Federal.

Por essas e outras características, verifi ca-se que, do ponto de vista estrutu-ral (e não quanto à ideia de adotar, na Administração Pública, mecanismos gerenciais), o paradigma das Agências Reguladoras brasileiras é a Independent

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 114

131 Jean-Jacques Daigre leciona que

as Agências Reguladoras francesas

também tiveram como paradigma as

agências norte-americanas. Por suas

palavras: “Les autorités de régulation

sont nés de la transposition des agen-

ces américaines et en particulier, dans

le secter fi nancier, de la SEC, la Securi-

ties and Exchange Comission, mise em

place à la suite de 1929, pour marquer

la politique nouvelle engagée par Roo-

sevelt” (DAIGRE, Jean-Jacques. Ombres

et lumières: examen critique du fonc-

tionnement des autorités administra-

tives indépendantes. In: CHARETTE,

Hervé de. Le contrôle démocratique des

autorités administratives independántes

à caractère économique. Paris: Economi-

ca, 2002. p. 5).

132 Nesse sentido, ver: MEIRELLES, Hely

Lopes. Direito administrativo brasileiro.

18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 315.

133 Luís Roberto Barroso bem resume a

questão ao denotar que “é desnecessá-

rio com efeito, enfatizar que as agên-

cias reguladoras somente terão condi-

ções de desempenhar adequadamente

seu papel se fi carem preservadas de in-

gerências externas inadequadas, espe-

cialmente por parte do Poder Público,

tanto no que diz respeito a suas deci-

sões político-administrativas quanto a

sua capacidade fi nanceira. Constatada

a evidência, o ordenamento jurídico

cuidou de estruturá-las como autar-

quias especiais, dotadas de autonomia

político-administrativa e autonomia

econômica-fi nanceira” (BARROSO,

Luis Roberto. Apontamentos sobre as

agências reguladoras. In: MORAES, Ale-

xandre de (Org.). Agências reguladoras.

São Paulo: Atlas, 2002. p. 121).

134 Cf. Alexandre Santos de Aragão

quando adverte que a qualifi cação de

independente conferida a muitas das

agências reguladoras deve ser entendi-

da em termos. Em nenhum país em que

foram instituídas possuem indepen-

dência em sentido próprio, mas apenas

uma maior ou menor autonomia, den-

tro dos parâmetros fi xados pelo orde-

namento jurídico (ARAGÃO, Alexandre

Santos de. As agências reguladoras

independentes e a separação dos po-

deres: uma contribuição da teoria dos

ordenamentos setoriais. Revista dos

Tribunais, São Paulo, v. 786, p. 11-56,

abr. 2001).

135 MOREIRA, Vital. Por uma regulação

ao serviço da economia de mercado e

do interesse público: a “declaração de

condeixa”. Revista de Direito Público da

Economia — RDPE, Belo Horizonte, n.

01, p. 252, 253, jan./mar. 2003.

Regulatory Commission norte-americana, que não se confunde com a deno-minada administrative agency.131A administrative agency é um ente criado por lei e dotado de personalidade jurídica de Direito Público, com a atribuição de dirigir, de forma descentralizada, um programa ou uma missão governa-mental. Essas entidades gozam de autonomia funcional, estando subordina-das hierarquicamente ao Presidente e ao Ministro de Estado responsável pela pasta a qual a agência está vinculada.

Natureza jurídica das Agências Reguladoras

As Agências Reguladoras brasileiras são autarquias de regime especial, pos-suindo autonomia em relação ao Poder Público central.

Já foram criadas no Brasil, sob essa forma e nomenclatura, dez agências reguladoras federais: ANEEL, ANP, ANATEL, ANVISA, ANA, ANS, AN-CINE, ANTT, ANTAQ e ANAC, cada uma com as suas especifi cidades, adiante examinadas.

O regime especial — i.e. diferenciado — signifi ca que à entidade autár-quica são atribuídas características especiais, visando aumentar sua autono-mia comparativamente com as autarquias comuns, sem infringir os preceitos constitucionais pertinentes a essas entidades de personalidade pública.132

Além das atribuições de competência regulatória, com a ampliação das funções normativas e judicantes da Administração Pública indireta, pode-se congregar os seguintes elementos conformadores da autonomia das Agências Reguladoras: organização colegiada; impossibilidade de exoneração ad nu-tum dos seus dirigentes; autonomia fi nanceira e orçamentária, e, por último, a independência decisória.133

Autonomia regulatória

As Agências Reguladoras são entidades autônomas em relação ao poder central, sendo, em termos,134 detentora de independência decisória.

Em prol da autonomia regulatória das Agências, Vital Moreira135 aponta diversas razões. A primeira seria a separação entre a política e a economia, de modo que a economia não permaneça nas mãos do Governo; a segunda seria a garantia de estabilidade e segurança no quadro regulatório (inamovibilida-de do mandato dos reguladores), de modo a não depender do ciclo eleitoral, mantendo a confi ança dos agentes regulados quanto à estabilidade do am-biente regulatório. Segue sustentando, como razão para a autonomia, o favo-recimento do profi ssionalismo e a neutralidade política, mediante o recruta-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 115

136 Celso Antônio Bandeira de Mello

é radicalmente contra a garantia dos

mandatos dos dirigentes das Agências

Reguladoras por prazo posterior ao

fi m do mandato do Chefe do Poder

Executivo que o nomeou. “Isso seria

o mesmo que engessar a liberdade

administrativa do futuro Governo. Ora,

é da essência da República a tempo-

rariedade dos mandatos, para que o

povo, se o desejar, possa eleger novos

governantes com orientações políticas

e administrativas diversas do Governo

precedente” (BANDEIRA DE MELLO. Cur-

so..., cit., p. 153).

137 Ver ADIn nº 1.949-RS, em que essa

matéria foi questionada perante o

Supremo Tribunal Federal pelo Gover-

nador do Estado do Rio Grande do Sul.

Vale registrar sobre o tema que a Lei nº

9.986/00, que dispõe sobre a gestão de

recursos humanos das Agências Regu-

ladoras, padronizou a forma de escolha

dos seus dirigentes.

mento de especialistas profi ssionais, em vez de correligionários políticos dos governantes. Tem-se, ainda, a separação do Estado-empresário do Estado re-gulador, com o indispensável tratamento isonômico entre os operadores pú-blicos e privados. Destaca a “blindagem” contra a captura regulatória, me-diante a criação de reguladores afastados das constrições próprias da luta partidária e do ciclo eleitoral, proporcionando melhores condições de resis-tência às pressões dos regulados e, por fi m, a garantia do autofi nanciamento, de modo que a entidade reguladora potencialize a sua autonomia em relação ao Governo e aos regulados.

Analisando, em apertada síntese, esses traços que garantem a autonomia e independência decisória das Agências Reguladoras, pode-se trazer as seguin-tes observações.

A organização dessas entidades autárquicas estruturou-se de forma que as suas decisões defi nitivas observem, em regra, a forma colegiada. O Conselho Diretor é composto pelo Diretor-Presidente e demais Diretores, com quorum deliberativo por maioria absoluta. As nomeações desses dirigentes são feitas por mandatos por prazos certos e não coincidentes,136 havendo impossibili-dade de exoneração ad nutum.137

A autonomia fi nanceira e orçamentária está assegurada nas leis instituido-ras de cada Agência Reguladora, em que pese o contingenciamento de recur-sos (retardamento ou inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária) que essas autarquias vêm experimentando nos últimos anos. Veja-se, dentre diversas, uma notícia jornalística sobre essa questão:

“Orçamentos cada vez mais apertados estão na origem do poder cada vez mais escasso das agências reguladoras. No ano passado, so-freram o maior corte de repasses desde que foram criadas, em meados da década de 90, e acumulam R$37 bilhões em reduções entre 1998 e 2009. Já elevado, de 65,6% em 2002, o contingenciamento cresceu para 85,7% das receitas totais, segundo levantamento da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), com infor-mações do Tesouro Nacional. Contingenciamento é uma espécie de limitação para reforçar o superávit primário do governo federal recur-sos que terminam sendo usados para pagar o juro da dívida pública interna. Só em 2009, foram contingenciados R$8 bilhões de receitas, como royalties, taxas de fi scalização cobradas das concessionárias e bô-nus, que pesam no preço dos serviços. Como esses recursos não podem ser usados para cobrir outro tipo de despesa, entram no superávit. Um dos principais refl exos da redução de receita é o enfraquecimento da fi scalização. Sem dinheiro sufi ciente e quadro de funcionários restrito, diminui a capacidade para detectar falhas no mercado. Isso dá mar-gem para a piora na prestação de serviços. No setor aéreo, o aumento

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 116

138 Nas Agências Reguladoras Estaduais

e Municipais, a vinculação administra-

tiva, logicamente, será às respectivas

Secretarias.

139 A Adjuntoria de Contencioso é o ór-

gão de direção da Procuradoria-Geral

Federal, dirigida pelo Adjunto de Con-

tencioso, com as atribuições de coorde-

nação e orientação das atividades de

contencioso das Procuradorias Regio-

nais Federais, Procuradorias Federais

nos Estados, Procuradorias Seccionais

Federais e Escritórios de Representação

da PGF. Exerce a representação judicial

das 157 autarquias e fundações pú-

blicas federais e da União (esta por

delegação de competência, na defesa

de contribuições previdenciárias nas

ações trabalhistas) junto ao Supremo

Tribunal Federal, Tribunais Superiores

e Turma Nacional de Uniformização

dos Juizados Especiais Federais e, ex-

traordinariamente, junto a qualquer

outro juízo ou Tribunal. Exerce também,

competências delegadas para autorizar

acordos e aprovar análises de preca-

tórios entre outras (Disponível em:

<http://www.agu.gov.br>. Acesso

em: 15 dez. 2010).

da demanda provocou o caos nos aeroportos e testou a paciência dos passageiros. O último episódio, no início do mês, expôs a fragilidade da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que não conseguiu evitar o colapso da mudança das escalas da Gol. No fi m do ano passado, o mesmo havia ocorrido com a TAM, que mudou o sistema de check-in. [...] Esse tipo de medida enfraquece e reduz o poder de decisão das agências avalia o professor de direito administrativo da Fundação Ge-tulio Vargas, Carlos Ari Sundfeld. Até o fi nal do mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá indicar mais sete dirigentes de agências reguladoras. Há duas vagas abertas, uma na ANP e outra na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nos próximos meses, haverá mais cinco a preencher” (Receita de agências reguladoras perde R$37 bilhões em 12 anos. Zero Hora, Porto Alegre, 16 ago. 2010).

Finalmente, a independência decisória representa o estabelecimento do Conselho Diretor da Agência Reguladora como última instância decisória, haja vista a sua vinculação administrativa (e não subordinação hierárquica) ao respectivo Ministério.138

Vale ressaltar que ato normativo de 2009, expedido pela Advocacia-Ge-ral da União (AGU), provocou certa polêmica envolvendo a autonomia das Agências Reguladoras.

A AGU é instituição prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 131), cuja missão envolve a representação judicial e extrajudicial da União, seja por via direta ou por órgãos vinculados, além das atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Por meio da edição da Lei Complementar nº 73/93, foram disciplinadas as funções desse órgão, envolvendo: (i) o controle interno da legalidade dos atos administrativos; (ii) a fi xação da interpretação da Constituição, das leis, tratados e demais atos normativos; (iii) a unifi cação da jurisprudência admi-nistrativa, com a solução de controvérsias entre órgãos jurídicos da Adminis-tração Federal, bem como que a edição de enunciados de súmula administra-tiva resultante da jurisprudência iterativa dos tribunais.

Em 2002, por meio da Lei nº 10.480/02, foi criada a Procuradoria-Geral Federal, órgão vinculado à AGU, a quem compete a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais. A partir de então, foram integrados à estrutura da AGU esses serviços de representação judicial e consultoria jurídica.

Nesse contexto, a AGU editou a Portaria nº 164, de 20 de fevereiro de 2009, por meio da qual se atribuiu à Adjuntoria de Contencioso da Procura-doria Federal139 a representação judicial de autarquias e fundações públicas federais junto aos tribunais superiores (STF e STJ) e na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Assim, a representação judicial

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 117

dos interesses das Agências Reguladoras, pela AGU, passou a ser considerada medida que, em tese, pode restringir a autonomia desses entes autárquicos.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

Voto do ministro Nelson Jobim na ADI 1949-0.

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GUERRA, Sergio. Introdução ao direito das agências reguladoras. Rio de Janei-ro: Freitas Bastos, 2004.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS) foi criada sob a forma de Autarquia Especial, fundamentada na necessidade de autonomia administrativa, fi nanceira e de-cisória para efi cazmente regular, controlar e fi scalizar, em especial, as áreas de saneamento, energia elétrica, rodovias, telecomunicações, portos e hidrovias, irrigação, transporte intermunicipal de passageiros, aeroportos, distribuição de gás canalizado e inspeção de segurança veicular. Na atividade de regulação, a AGERGS realiza análises do desempenho econômico dos serviços delega-dos e da efi ciência dos mesmos, bem como pesquisas junto aos usuários para assegurar que estão pagando preços justos e recebendo serviços de qualidade.

O Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Direta de Inconstituciona-lidade — ADIN 1949-0 — contestando a redação dos arts. 7º e 8º do texto legal que criou a AGERGS, a Lei Estadual nº 10.931, de 09/01/1997, altera-da pela Lei Estadual nº 11.292, de 23/12/1998, que dispõem:

Art.7º O Conselheiro terá mandato de 4 (quatro) anos, será nome-ado e empossado somente após a aprovação do seu nome pela Assem-bléia Legislativa (...)

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 118

Art.8º O Conselheiro só poderá ser destituído, no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa.

O Estado alegou que:• a AGERGS tinha função planejadora e está inscrita no âmbito do

Executivo devendo obediência ao chefe do Poder Executivo. Sendo parte integrante da administração pública do Estado do Rio Grande do Sul, os cargos da instituição só poderiam ser providos por concurso público ou nomeação para cargo em comissão;

• ao condicionar a exoneração dos conselheiros da AGERGS, no cur-so dos respectivos mandatos, à decisão da Assembléia Legislativa, em realidade tornava sem efeito a livre exonerabilidade dos ocupantes de cargo de provimento em comissão pelo chefe do Poder Executivo, prevista no art. 37, II, da Constituição Federal/88;

• os conselheiros da AGERGS são equiparados a ocupantes de cargos de provimento em comissão, precários por sua própria natureza, da confi ança do governante;

• sendo órgão técnico, auxiliar na formulação e execução da política econômica de governo, não poderia ser dirigida por quem não se identifi casse com o governo legitimamente eleito.

A AGERGS, por sua vez, sustentou que:• as atribuições e competências da AGERGS estão claramente tipifi ca-

das na sua Lei de criação. A agência não tem função planejadora, não é da sua essência imiscuir-se na política de ação governamental, tarefa exclusiva do chefe do Poder Executivo, e sua essência é a autonomia;

• o chefe do Poder Executivo, que propôs a criação da agência, tinha clara a ideia de que o Executivo, na qualidade de poder concedente de serviços públicos delegados, não deveria envolver-se, como parte, nos eventuais confl itos de interesses entre ele e os concessionários ou entre estes e os usuários, ou mesmo entre os usuários e o poder concedente e concessionárias. Tais confl itos, para serem soberanamente dirimidos, deveriam ser submetidos à apreciação de um ente autônomo em rela-ção ao próprio Executivo;

• Os conselheiros, de escolha exclusiva do Executivo, foram recrutados entre fi guras representativas do Executivo, da Administração Superior do Tribunal de Contas e do Ministério Público;

• a AGERGS, enquanto autarquia, possui autonomia administrativa, fi nanceira e decisória, enquadrando-se nos postulados das Constitui-ções Federal e Estadual. A fi gura do mandato do conselheiro tem pre-visão no disposto no art. 52, III, “f ”, da Constituição Federal/88 que

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 119

140 Caso Gerador constante da apostila

“Por que regular?”, elaborada pela

pesquisadora Maria Carneiro sob a

orientação da Professora Elena Landau

para o Curso de Regulação do Setor de

Energia Elétrica do Programa de Educa-

ção Continuada da Escola de Direito da

Fundação Getulio Vargas.

admite a escolha, pelo Senado, “de titulares de outros cargos que a lei determinar”;

• a previsão correspondente na Carta Estadual está contida no art. 53, XXVIII, “c”, que expressa ser de “atribuição exclusiva da Assembléia Legislativa aprovar a escolha de titulares de outros cargos que a lei determinar”.

Com base nos fatos anteriormente apresentados:1) Comente os argumentos do Estado e da agência reguladora.2) As agências reguladoras necessitam de autonomia para regular?3) Os fundamentos da regulação estão de alguma forma ligados à autono-

mia das agências reguladoras?140

VII. CONCLUSÃO DA AULA

As agências reguladoras exercem função de ordenação dos mercados por elas regulados, tendo competências normativas, fi nscalizatórias e sanciona-doras. Para exercerem de modo efi ciente a função que lhes é conferida, tais entidades gozam de personalidade jurídica de direito público e possuem au-tonomia reforçada.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 120

141 Conforme observa Floriano de Aze-

vedo Marques Neto, as políticas de

governo “são os objetivos concretos

que um determinado governante eleito

pretende ver impostos a um dado setor

da vida econômica ou social. Dizem

respeito à orientação política e gover-

namental que se pretende imprimir a

um setor”. Agências reguladoras: ins-

trumentos do fortalecimento do Estado.

Texto disponível em http://www.abar.

org.br, acesso em 15.02.2005.

AULAS 14 E 15

I. TEMA

Agências reguladoras.

II. ASSUNTO

Agências Reguladoras. Funções.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar as diferentes funções exercidas pelas agências reguladoras, es-pecialmente as funções normativa, fi scalizatória e sancionadora, o que exige uma releitura do princípio da separação dos poderes.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

As agências reguladoras exercem funções de Estado

As funções de Estado são aquelas dispostas na Constituição e nas leis, as quais devem necessariamente ser observadas e executadas pela Administração Pública, independentemente de quem seja o partido ou governante na chefi a do Poder Executivo. As funções de governo, por sua vez, consistem nas prio-ridades concretas do governante democraticamente eleito para a implemen-tação durante o seu governo e dizem respeito à orientação política e governa-mental que se pretende imprimir a um setor, sempre e em qualquer caso submetidas às políticas de Estado.141

As agências reguladoras desenvolvem funções de Estado, pois são criadas em decorrência da previsão genérica de regulação estatal da economia exposta no art. 174 da Constituição (além das previsões constitucionais específi cas de criação da ANATEL e da ANP), exercendo função eminentemente pública.

Tal constatação já foi, inclusive, reconhecida pela jurisprudência do Su-premo Tribunal Federal, ao julgar medida cautelar em Ação Direta de In-constitucionalidade, na qual se discutia a constitucionalidade da previsão, constante da Lei nº 9.986/2000, de contratação de pessoal técnico para as

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 121

142 Ação direta de inconstitucionalidade

nº 2.310-1-DF, in Revista de Direito da

Associação dos Procuradores do Novo

Estado do Rio ed Janeiro”, v. IX, pp. 433

a 435.

143 O art. 1º, caput, da Lei nº 10.871,

determina ser a lei aplicável às autar-

quias especiais intituladas agências

reguladoras: “Art. 1o Ficam criados,

para exercício exclusivo nas autarquias

especiais denominadas Agências Re-

guladoras, referidas no Anexo I desta

Lei, e observados os respectivos quan-

titativos, os cargos que compõem as

carreiras de: (...)”

144 Vide, a respeito, MARQUES NETO,

Floriano. “Agências reguladoras: instru-

mentos do fortalecimento do Estado”.

Texto disponível em http://www.abar.

org.br, acesso em 15.02.2005.

agências, no regime de emprego público, portanto, mediante contratos regi-dos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Naquela ocasião, assim se ma-nifestou o ministro Marco Aurélio Mello, ao reconhecer a inconstitucionali-dade de tal norma:

Inegavelmente, as agências reguladoras atuam como poder de polí-cia, fi scalizando, cada qual em sua área, atividades reveladoras de servi-ço público, a serem desenvolvidas pela iniciativa privada (...) Está-se diante de atividade na qual o poder de fi scalização, o poder de polícia, fazem-se com envergadura ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aque-le que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público (...) [próprio] àqueles que de-senvolvam atividades exclusivas de Estado (...).142

Com essa decisão, restou reconhecida, em sede liminar, que a natureza dos serviços desenvolvidos pelo pessoal técnico das agências mostrava-se incom-patível com o regime contratual da CLT, devendo, portanto, esses servidores serem regidos pelo regime jurídico estatutário. Nesse sentido, em 2004, veio a ser editada nova lei, pondo fi m à controvérsia, dispondo o art. 6º da Lei nº 10.871, de 24.05.2004:

Art. 6º. O regime jurídico dos cargos e carreiras referidos no art. 1o desta Lei é o instituído na Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, observadas as disposições desta Lei.143

Além disso, nos termos das diversas leis que autorizaram a sua criação, as agências reguladoras brasileiras possuem natureza de autarquias em regime especial, sendo-lhes, portanto, aplicáveis todas as prerrogativas inerentes às autarquias em geral, tais como personalidade jurídica e patrimônio próprios, ausência de subordinação ao Ministério ao qual se vinculam, autonomia fi -nanceira e orçamentária, além de terem por fi nalidade “executar atividades tí-picas da Administração que requeiram, para seu melhor funcionamento, ges-tão administrativa e fi nanceira descentralizada”, conforme a redação do art. 5º, I, do Decreto-Lei º 200/1967, que traz a defi nição legal das autarquias.

Principais funções

Em breve síntese, pode esquematizar as atribuições das agências regulado-ras da seguinte forma: Função executiva, Função Normativa e Função Judi-cante (ou de solução de controvérsias).

Alguns autores sistematizam o tema de forma diversa, como, por exemplo:144

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 122

145 Sobre o princípio da legalidade e

atuação da Administração Pública, ex-

põe DIÓGENES GASPARINI: “o princípio

da legalidade, resumido na proposição

suporta a lei que fi zeste, signifi ca estar

a Administração Pública, em toda a sua

atividade, presa aos mandamentos da

lei, deles não se podendo afastar, sob

pena de invalidade do ato e responsa-

bilidade de seu autor. Qualquer ação

estatal sem o correspondente calço

legal, ou que exceda ao âmbito demar-

cado pela lei, é injurídica e expõe-se à

anulação”. GASPARINI, Diógenes. Direito

administrativo. 5ª ed. São Paulo: Sarai-

va, 1995, p. 6

Poder normativo: poder de editar comandos gerais para o setor regulado, obedecido o princípio da legalidade. Existe grande controvérsia quanto à ex-tensão dos poderes normativos das agências reguladoras, a qual será apresen-tada adiante.

Poder de fi scalização: atribuição para monitorar o setor, prevenindo e re-primindo o desrespeito ao ordenamento jurídico setorial.

Poder de sanção: competência para impor sanções em caso de descumpri-mento das normas aplicáveis ao setor.

Poder de conciliação: capacidade de conciliar ou mediar interesses de ope-radores regulados, consumidores isolados ou grupos de interesses homogêne-os, ou ainda interesses de agentes econômicos que se relacionam com o setor regulado no âmbito da cadeia produtiva.

Poder de resolução de controvérsias: atribuição para dirimir confl itos. A maioria das leis que dispõem sobre as agências setoriais lhes conferiu compe-tência para dirimir confl itos no âmbito administrativo entre os agentes do se-tor. Por exemplo, no caso da Agência Nacional de Energia Elétrica — ANE-EL, a previsão encontra-se no art. 3º, V, da Lei nº 9.427/1996, o qual dispõe:

Art. 3º Além (...), compete à ANEEL: V — dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre con-

cessionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores.

Poder de recomendação: prerrogativa de orientar, subsidiar ou informar o poder político sobre as características do setor, recomendando medidas ou decisões a serem editadas no âmbito da política pública.

Função normativa das agências reguladoras

A possibilidade de as agências reguladoras emanarem atos normativos abs-tratos causa certa perplexidade na doutrina, especialmente à luz do princípio constitucional da legalidade145, positivado no art. 37, caput, da Constituição, e das competências privativas do chefe do Poder Executivo previstas no art. 84, II e IV, da Constituição Federal:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 123

146 Direito administrativo, 12a ed. São

Paulo: Atlas, pp. 391/392.

147 NICODEMO, Silvia.Gli atti normativi

delle autoritá independenti. Milão: CE-

DAM, 2002, p. 305.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:(...)II — exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção su-

perior da administração federal;(...)IV — sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expe-

dir decretos e regulamentos para sua fi el execução;(...)”

Dessa forma, os limites do poder das agências reguladoras de gerar nor-mas abstratas e gerais são alvo de profunda controvérsia. Para Maria Sylvia Zanella di Pietro:

A função normativa que exercem não pode, sob pena de inconstitu-cionalidade, ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão ad-ministrativo ou entidade da administração indireta. Elas nem podem regular matéria não disciplinada em lei, porque os regulamentos autô-nomos não têm fundamento constitucional no direito brasileiro, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do Po-der Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade que detém o poder regulamentar e não pelo legis-lador. As únicas normas que podem estabelecer têm de produzir efeitos internos, apenas, dirigidos à própria agência, ou podem dizer respeito às normas que se contêm no edital de licitações, sempre baseadas em leis e regulamentos prévios.146

Por outro lado, alguns autores defendem que “a atribuição de funções nor-mativas a órgãos de formação não eletiva, ou de composição mista, não cons-titui violação do princípio democrático. Deve, no entanto, ser reconhecida dentro daquele princípio fundamental, que encerra em si mesmo os demais, exprimindo o balanceamento das manifestações da vontade política com a garantia dos direitos, com respeito às razões de efi ciência administrativa”147.

A partir dos debates doutrinários, observam Alexandre Santos de Aragão e Patrícia Sampaio que a possibilidade e os limites da função normativa das agências reguladoras “deve ser compreendida à luz da fi nalidade do exercício da atividade administrativa, a qual reside no cumprimento das competências constitucional e legalmente consagradas às autoridades. Nessa perspectiva, entende-se a feição normativa do poder de polícia como instrumento legíti-mo de concretização desses objetivos. Não se trata, em qualquer hipótese, de autoridades administrativas exercendo competência legislativa ou quase-le-gislativa (no Brasil, a fi gura do regulamento autônomo mostra-se excepcional — art. 84, VI, da Constituição Federal), mas sim de atividade normativa

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 124

148 ARAGÃO, Alexandre Santos de e

SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro.

Omissão no exercício do poder norma-

tivo das agências e a concorrência des-

leal. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de

(coord.) O poder normativo das agências

reguladoras. Rio de Janeiro: Forense,

2006, p. 547.

149 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos

atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen

Iuris, 2005, pp. 350 e 351.

150 Veja-se como devem ser os procedi-

mentos para as delegações legislativas

(Art. 68 da Constituição de 1988): As

leis delegadas serão elaboradas pelo

Presidente da República, que deverá

solicitar a delegação ao Congresso

Nacional. § 1º — Não serão objeto

de delegação os atos de competência

exclusiva do Congresso Nacional, os de

competência privativa da Câmara dos

Deputados ou do Senado Federal, a

matéria reservada à lei complementar,

nem a legislação sobre: I — organiza-

ção do Poder Judiciário e do Ministério

Público, a carreira e a garantia de seus

membros; II — nacionalidade, cida-

dania, direitos individuais, políticos e

eleitorais; III — planos plurianuais,

diretrizes orçamentárias e orçamentos.

§ 2º — A delegação ao Presidente da

República terá a forma de resolução do

Congresso Nacional, que especifi cará

seu conteúdo e os termos de seu exercí-

cio. § 3º — Se a resolução determinar

a apreciação do projeto pelo Congresso

Nacional, este a fará em votação única,

vedada qualquer emenda.

151 MOREIRA NETO, Diogo. Direito

regulatório. Rio de Janeiro: Renovar,

pp.108-109.

152 Agência nacional de vigilância sani-

tária: natureza jurídica, competência

normativa, limites dos poderes regula-

tórios. Revista de Direito Administrativo,

Rio de Janeiro, v. 215, pp. 71-83, jan./

mar. 1999.

153 Sobre a separação de poderes, diz

Alexandre Aragão: “Qualquer que seja

a nomenclatura adotada, em todos os

países em que as comissões, agências

ou autoridades administrativas inde-

pendentes de regulação foram insti-

tuídas, as maiores discussões jurídicas

geradas disseram e dizem respeito à

sua compatibilidade com o princípio

da separação de poderes. É curioso

notar como a disparidade dos sistemas

jurídicos não impediu que esta questão

possuísse uma impressionante pereni-

dade e homogeneidade, e, mais, que a

solução a ela dada nos E.U.A., na Europa

ou no Brasil foi pela constitucionalida-

de destas entidades reguladoras, o que

implica em uma nova leitura do prin-

cípio da separação de poderes”. Notas

de atualização da obra de Bilac Pinto.

Regulamentação efetiva os serviços de

utilidade pública. 2.ed. atualizada por

inserida no bojo das competências administrativas do Estado e, por conse-guinte, subordinada, sempre, à legalidade”148.

De todo modo, há de se atentar para os riscos de desvios ou exercício abu-sivo dessa competência. Conforme salienta Sérgio Guerra: “na regulação nor-mativa (portarias, resoluções, etc.), o dano pode decorrer de uma intervenção desnecessária ou inadequada no subsistema regulado. Como dito, diante da imperatividade dos freios e contrapesos, são legítimas as restrições regulató-rias à livre iniciativa privada, desde que razoáveis e proporcionais. Por isso, a regulação normativa deve ser praticada por meio de uma interpretação volta-da para frente, orientada na ponderação de interesses, custos, ônus e benefí-cios da ação regulatória.”149

É possível concluir que as agências reguladoras têm o poder-dever de exer-cer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hie-rarquicamente superiores. Essa função normativa das agências reguladoras não é primária, e sim secundária, haja vista que, entre nós, a função norma-tiva primária é precípua do Poder Legislativo, sendo exercida de forma extra-vagante pelo Poder Executivo, seja por meio de medidas provisórias ou dele-gação legislativa150.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto denota que além da modalidade tradi-cional da regulamentação secundária, que produz efeitos introversos, como característica dos órgãos administrativos, existem aquelas tipicamente regula-tórias, que se caracterizam por seus efeitos extroversos sobre as matérias des-legalizadas e na estrita medida em que o tenham sido.151 Esse mesmo jurista, ao examinar os limites da competência normativa outorgada às entidades reguladoras autônomas de serviços públicos, adverte que ultrapassar tais limi-tes, ao acrescentar às normas reguladoras critérios político-administrativos onde não deveriam existir, caracteriza invasão de poderes que são próprios à esfera das decisões do Poder Legislativo e propositadamente retirados dos agentes da burocracia administrativa direta.152

A bem da verdade, a polêmica acerca da função normativa das agências reguladoras se insere numa discussão com maior profundidade, que envolve a adaptação das agências reguladoras ao sistema tripartite oitocentista, subsu-mido no princípio da separação e equilíbrio entre os poderes estatais.153

Pelas normas regulatórias se permite o exercício da capacidade técnica des-sas entidades descentralizadas (tecnicismo) para dispor, com maior densidade, sobre as matérias que lhe competem para equilibrar o subsistema regulado, diversamente das leis que, editadas pelo Poder Legislativo, assumem caráter genérico e sem concretude. Nas palavras de Marcos Juruena Villela Souto:

o legislador não tem, necessariamente, o conhecimento técnico nem a proximidade dos fatos a editar a norma, que, por isso, deve se manter

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 125

Alexandre Santos de Aragão. Rio de

Janeiro: Forense, 2002, p. 119. Floriano

Peixoto de Azevedo Marques Neto, em

suas observações acerca do tema em

comento, aduz que “quase diretamente

relacionada com a difi culdade que a

fi gura da autoridade reguladora inde-

pendente tem com a tripartição dos

Poderes, emerge a questão da suposta

colidência com o princípio da legalida-

de. (...) O fato é que a atuação destes

órgãos reguladores refl ete a crise vivi-

da pelo princípio da legalidade; crise,

esta, que não decorre meramente do

fenômeno do surgimento das agências,

mas da própria profusão de fontes nor-

mativas. Aqui parece se colocar a chave

para superar a crítica, sempre presente,

relativa à suposta contraposição entre

a nova regulação estatal e o princípio

da legalidade. A oposição não está

entre as competências das agências e a

fi gura da lei como fonte necessária das

competências do agente público. O que

parece estar em questão é a motriz da

legalidade”. MARQUES NETO, Floriano

Marques. A nova regulação estatal e

as agências independentes. Direito

administrativo econômico. Carlos Ari

Sundfeld (org.). São Paulo: Malheiros,

2000, p. 94. Acerca das discussões ocor-

ridas sobre a Separação de Poderes no

período da Revolução Francesa, inclusi-

ve com profunda análise dos Cadernos

de 1789, ver a obra de Léon Duguit,

originalmente publicada em 1893. La

separación de poderes y la asamblea

nacional de 1789. Madri, Centro de Es-

tudios Constitucionales, 1996, p. 9, ss.

154 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Di-

reito administrativo regulatório. Rio de

Janeiro: Lumen Iuris, p. 46.

155 Parte da doutrina compreende a fun-

ção normativa como uma “delegação

de poderes”. Ao examinar a função legi-

ferante à luz da teoria da separação dos

poderes, o constitucionalista Alexandre

de Moraes acentua que as Agências

Reguladoras poderão receber do Poder

Legislativo, por meio de lei de iniciativa

do Poder Executivo, uma “delegação”

para exercer seu poder normativo de

regulação. Adverte, contudo, que com-

pete ao Congresso Nacional a fi xação

das fi nalidades, dos objetivos básicos

e da estrutura das Agências, bem como

a fi scalização de suas atividades. No ar-

tigo intitulado “Agências reguladoras”,

na obra coletiva de igual título sob a

organização do Autor. (São Paulo: Atlas,

2002, p. 20). Também se referindo à

função normativa das Agências Regula-

doras como “delegação”, Tércio Sampaio

Ferraz Júnior sustenta que com a cria-

ção das Agências Reguladoras, ocorre

“uma ostensiva delegação de poderes,

quase-lesgislativos, outros quase-judi-

ciais e outros quase-regulamentares”.

Agências reguladoras: legalidade e

constitucionalidade. Revista Tributária

de Finanças Públicas, Rio de Janeiro,

num plano de generalidade, para abrigar todas as situações; não é, assim, viável que adentre em detalhes; ademais, as normas sobre o funciona-mento do mercado tendem a ser normas técnicas, econômicas e fi nan-ceiras, que mudam com a evolução tecnológica ou comercial; se a lei cuidasse de cada detalhe, estaria constantemente desatualizada e provo-caria a frequente necessidade de movimentação do Poder Legislativo.154

Contudo, parte da doutrina sustenta que não se trata de “delegação”, haja vista que a função reguladora — incluindo parcela normativa — não compe-te originariamente ao Poder Legislativo.155 Se por um lado se admite como constitucional a função normativa prevista expressamente nas leis de criação das agências reguladoras,156 entende-se, por outro, que a função regulamentar de competência do presidente da República não se confunde com a função reguladora das agências reguladoras, que, em parte, se consubstancia na edi-ção de normas regulamentares.157

Nesse sentido, é valiosa a manifestação do mestre J.J. Gomes Canotilho, que leciona: “A função de regulação (e de controle) de um determinado setor (mercado de valores mobiliários, comunicação social, energia, água e resídu-os) atribuídas por lei a certas entidades independentes fará delas essencial-mente autoridades reguladoras que estabelecem as regras e controlam a apli-cação das normas. Fixar ‘regras reguladoras’ corresponde, tendencialmente, a regulamentar matérias no fi gurino clássico da administração pública”.158 Res-ta dizer, “regular” abrange outros institutos muito mais profundos do que a “regulamentação” de uma lei.

Nas palavras de Caio Tácito, a função regulamentar detida pelo chefe do Poder Executivo não é somente a de reproduzir analiticamente a lei, mas a de ampliá-la e completá-la, segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar.159

Por outro lado, como assevera Marçal Justen Filho, a função regulatória (ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo-se “em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores”.160

Por isso,a competência normativa exercida pelas agências reguladoras, in-serida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundí-vel com o “poder regulamentar” primário, de competência do chefe do Poder Executivo.161

Com isso, chega-se à seguinte distinção entre regulamentação e regulação apresentada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto162: a regulamentação, é cometida a chefes de Estado ou Governo, é uma função política, que visa

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 126

v. 35, p. 143-158, nov./dez. 2000.

Floriano Peixoto de Azevedo Marques

Neto utiliza a expressão “delegação de

poderes” para as Agências Reguladoras

pela lei de criação da entidade, confor-

me nota de rodapé nº 48, do artigo A

nova regulação estatal e as agências in-

dependentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari

(coord.). Direito administrativo econô-

mico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 93.

Marçal Justen Filho inicialmente afi rma

que o instituto da delegação legislativa

não se aplica ao tema em estudo. Con-

tudo, logo a diante, afi rma que “pode se

dar uma delegação normativa de cunho

secundário”. O direito das agências regu-

ladoras independentes. São Paulo: Dia-

lética, 2002, pp. 512-513. Em sentido

contrário — ao qual aderimos — de-

nota Alexandre Santos de Aragão: “nes-

tes casos, o que temos na realidade, é

a execução pela Administração Pública

da Lei, que, contudo, deixou de estabe-

lecer maiores detalhes sobre a matéria

legislada, fi xando apenas standards e

fi nalidades gerais”. Agências regulado-

ras e a evolução do direito administrativo

econômico., p. 411. Leila Cuéllar tam-

bém não compartilha do entendimento

de que se trata de delegação de “poder

normativo” às Agências Reguladoras.

(As agências reguladoras e seu poder

normativo. São Paulo: Dialética, 2001,

p. 116). No mesmo sentido, Romeu Fe-

lipe Bacellar Filho (O poder normativo

dos entes reguladores e a participação

dos cidadãos nesta atividade. Serviços

públicos e direitos fundamentais: os

desafi os da regulação na experiência

brasileira. Revista de Direito Administra-

tivo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 153-162,

out./dez. 2002, p. 160. Sobre a desle-

galização (que tanto pode ocorrer pela

exclusão legal de um comportamento a

qualquer tipo de regra ou pela substi-

tuição do referencial normativo), e seu

conceito oriundo da doutrina francesa,

ver essa mesma obra na página 122, ss.

Recomenda-se, ainda, sobre o tema da

deslegalização no campo da sanção, a

obra de Fábio Medina Osório. Direito

administrativo sancionador. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000, p. 215, ss.

156 A exemplo da lei criadora da ANVISA

(Lei nº 9782/1999): Art. 8º.  Incumbe à

Agência, respeitada a legislação em vi-

gor, regulamentar, controlar e fi scalizar

os produtos e serviços que envolvam

risco à saúde pública.

157 Ao comentar a função reguladora

das Agências, José Carlos Francisco

afi rma que: “a função reguladora

abrangeria a função regulamentar (de

fi el execução das leis)”. Agência regula-

dora: atividade normativa. In: Direito da

Regulação. Alexandre Santos de Aragão

(coord.). Revista de Direito da Associa-

ção dos Procuradores do Novo Estado

do Rio de Janeiro. v. XI. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2002, p. 129. Marcos Ju-

ruena Villela Souto prefere a expressão

impor regras de caráter secundário em complementação às normas legais, com o objetivo de explicitá-las e dar-lhes execução. A regulação é uma função administrativa, que não decorre da prerrogativa do poder político, e sim, da abertura da lei para que o agente regulador pondere, de forma neutra, os in-teresses concorrentes em confl itos setoriais, sejam eles potenciais ou efetivos.

O Superior Tribunal de Justiça já examinou e julgou a questão, tendo prevalecido a tese abaixo (MINISTRO LUIZ FUX — MARÇO/2006. STJ AGRG na MC 10443-PB):

LIMINAR E TELEFONIA. SERVIÇO PRÉ-PAGO. DEFESA AO CONSUMIDOR. LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLI-CO. RECURSO ESPECIAL ADMITIDO. CAUTELAR E EFEITO SUSPENSIVO. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA PRESENTES. ATUAÇÃO CONFORME ATO DA AGÊNCIA RE-GULADORA. Vigente ato normativo da Agência Reguladora cujo escopo é regular o segmento, não podem os estabelecimentos regula-dos absorverem danos e punições pelo fato do cumprimento das regras maiores, posto engendrarem exercício regular do direito. Modifi cação ex abrupto dessas regras da Agência Reguladora por tutela provisória em liminar concedida em ação, acarreta periculum in mora, mercê de o fumus boni iuris repousar no cumprimento do ato da Agência. De-veras, somente a ausência de nulifi cação específi ca do ato da Agência autoriza o Judiciário e intervir no segmento, sob pena de invadir seara administrativa estranha ao Poder Judiciário. (Sergio Guerra in Contro-le Judicial dos Atos Regulatorios, Editora Lumem Juris, Jan⁄2005, pags. 355⁄369). Impossibilidade de atendimento técnico da decisão liminar, que confi gurou para o Relator periculum in mora inverso, máxime porque a adoção da providência contrária ao ato da ANATEL (art. 55 da Resolução 316⁄2002, e itens 4.6 e 4.6.1, da Norma 03⁄98).

Função executiva

As funções executivas, que incluem a fi scalização e a sanção, detidas pelas agências reguladoras, se assemelham às atribuições dos órgãos da administra-ção pública direta, no exercício do poder de polícia estatal.163 Por meio dessas funções, as agências reguladoras concedem, permitem e autorizam serviços e uso de bens públicos, expedem licenças, autorizam reajuste e revisão ordiná-ria e extraordinária de tarifas de serviços públicos para manter o equilíbrio econômico e fi nanceiro das concessões.

Ademais disso, por meio das funções executivas, as agências reguladoras fi scalizam o exercício das atividades econômicas, no que tange à sua confor-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 127

“diretrizes de cunho normativo”, para se

referir a essa parcela da função regula-

dora. Direito administrativo regulatório.

Rio de Janeiro: Lumen Iuris, p. 46. Em

sentido restritivo, Paulo César Melo

da Cunha sustenta que “a natureza

jurídica das Agências Reguladoras não

lhes autoriza a prática de atos regula-

mentares, como observado da leitura

de alguns pronunciamentos daqueles

que se aplicaram ao estudo e se ma-

nifestaram sobre o assunto, eis que o

papel da entidade regulatória se limita

a editar atos normativos, implementá-

los e a fi scalizar sua correta aplicação”.

A regulação jurídica da saúde suple-

mentar no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2003, pp. 141-142. A propósito,

há possibilidade de sustação dos atos

normativos das Agências Reguladoras

pelo Congresso Nacional, nos termos do

art. 49, V, da CF.

158 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito

Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra: Almedina, 1998, p. 818.

159 As delegações legislativas e o po-

der regulamentar. In: Temas de direito

público, v. 1, Rio de Janeiro: Renovar,

1997, p. 510.

160 O direito das agências reguladoras

independentes. São Paulo: Dialética,

2002, p. 556.

161 Nesse sentido, CASTRO, Carlos Ro-

berto Siqueira. A constituição aberta e

os direitos fundamentais: ensaio sobre

o constitucionalismo pós-moderno e

comunitário. Rio de Janeiro: Forense,

2003, p. 213.

162 Direito regulatório..., cit., pp. 132-

133. Nesse mesmo sentido, Marcos

Juruena Villela Souto afi rma que

enquanto a regulação é técnica, a

regulamentação é política, havendo

legitimidade eleitoral para tanto. O

mesmo não ocorre na regulação, que

se limita a implementar a decisão po-

lítica. A regulação atende a interesses

coletivos (setoriais), enquanto que a

regulamentação a interesses públicos,

gerais. Direito administrativo regulató-

rio..., cit., p. 233.

163 Nas palavras de Marcos Juruena

Villela Souto , a regulação executiva se

desenvolve, essencialmente, por meio

de atos de consentimento de ingresso

no mercado, mediante a concessão de

licenças, autorizações e permissões.

Essa função se opera, ainda, por meio

de adjudicação do objeto de contratos

administrativos de concessões e per-

missões de serviços públicos, de uso

de bens públicos ou do exercício de

atividades econômicas relacionadas

a bens ou serviços públicos. Destaca

ainda o Autor que a regulação exe-

cutiva se realiza por meio de atos de

fi scalização da correta execução da

atividade consentida ou contratada,

mação aos parâmetros dos atos que consentiram o ingresso dos agentes regu-lados no mercado.164

No exercício da regulação dos serviços públicos, a agência reguladora terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e fi nanceiros da concessionária.165 Nos casos de concessão de serviço público, malgrado a execução por conta e risco da concessionária, resta indisputável a necessidade de ser assegurada à Administração Pública (no caso, às agências reguladoras) a fi scalização das atividades desenvolvidas pela concessionária.

Como a Administração, pela concessão, não transfere a titularidade do serviço, mas apenas sua execução, ela tem que zelar pela fi el execu-ção do contrato. Dentro desse poder de direção e controle, insere-se (...) o poder de fi scalizar, de forma ampla, a execução do contrato.166

Em que pese esse direito de ter acesso e fi scalizar todas as atividades da concessionária, isso jamais poderá representar o “poder” sobre a gestão da companhia. Nesse sentido, diz Di Pietro com propriedade:

O exercício desse poder de direção e controle constitui um poder-dever da Administração, ao qual ela não pode furtar-se, sob pena de responsabilidade por omissão. Mas deve ser exercido dentro de limites razoáveis, não podendo a fi scalização fazer-se de tal modo que substitua a gestão da empresa. A Administração apenas fi scaliza. Ela não admi-nistra a execução do serviço.167

Marcos Juruena Villela Souto leciona que um importante instrumento de regulação executiva é a “interpretação regulatória”, haja vista que nem sempre a generalidade da lei ou da norma se adapta ao caso concreto. Desse modo, impõe-se um juízo de equidade do agente regulador, de modo a atender à fi nalidade da norma, ponderando custos e benefícios.168

Função judicante

No que tange à função de solução de controvérsias detida pelas agências reguladoras, está voltada à solução de eventuais confl itos entre os diversos agentes regulados, entre esses agentes e os usuários/consumidores ou com o Poder Público (concedente, permitente ou autorizador). Contudo, essa atri-buição suscita controvérsias em sede doutrinária quanto a sua classifi cação ser ou não considerada uma função judicante, haja vista o papel desempenhado pelo Poder Judiciário em nosso ordenamento jurídico-constitucional.169

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 128

nos limites estabelecidos na moldura

regulatória, que envolve a Constituição,

lei, normas do órgão regulador e atos

de consentimento ou de adjudicação.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito

administrativo regulatório, p.57. Marçal

Justen Filho retrata esse aspecto em

sua obra sobre as Agências Reguladoras

Independentes, anotando a desne-

cessidade de um estudo perfunctório

das funções executivas, eis que “ao

desenvolver essas atividades, a agência

estará desempenhando atuação muito

similar àquele objeto de estudo no

tocante às demais entidades da Admi-

nistração indireta”. O direito das agên-

cias reguladoras independentes. São

Paulo: Dialética, 2002, p. 481. Diogo

de Figueiredo Moreira Neto se refere ao

tema como “funções administrativas”,

exercidas em qualquer dos campos

da administração, tanto no campo da

polícia administrativa, quanto no dos

serviços públicos, no do ordenamento

econômico ou no do ordenamento so-

cial, inclusive no do fomento público,

envolvendo, materialmente, desde ati-

vidades de planejamento às de gestão. Direito regulatório, p. 108.

164 Sobre as funções executivas das

Agências Reguladoras, Alexandre

Santos de Aragão deu destaque à

competência fi scalizatória. Segundo o

Autor, são poderes para aplicar sanções

“decorrentes do descumprimento de

preceitos legais, regulamentares ou

contratuais pelos agentes econômicos

regulados”. E complementa seu enten-

dimento advertindo que a “aplicação de

sanções deve estar apoiada em algum

dispositivo legal, ainda que genérico,

fi cando a graduação e a especifi cação

das penalidades a serem normatizadas

pela agência”. Agências reguladoras e a

evolução..., cit., p. 318.

165 Nesse sentido, dispõe a Lei nº

8.987/1995: Art. 30. No exercício da

fi scalização, o poder concedente terá

acesso aos dados relativos à adminis-

tração, contabilidade, recursos técnicos,

econômicos e fi nanceiros da concessio-

nária. Parágrafo único. A fi scalização

do serviço será feita por intermédio

de órgão técnico do poder concedente

ou por entidade com ele conveniada,

e, periodicamente, conforme previsto

em norma regulamentar, por comissão

composta de representantes do poder

concedente, da concessionária e dos

usuários.

166 DI PIETRO, Parcerias na administração

pública. São Paulo: Atlas, p. 79.

167 Idem, p.80. Quanto à alteração do

controle societário das concessionárias

de serviços públicos, e a atuação e in-

tervenção do poder concedente, ver o

artigo de Arnold Wald (Da competência

das agências reguladoras para intervir

na mudança do controle das empresas

concessionárias. Revista de Direito Ad-

Marcos Juruena Villela Souto, admitindo a função judicante das agências reguladoras, denota que a diferença entre a função reguladora judicante e a função jurisdicional é que na grande maioria dos casos a função judicante do Poder Judiciário e da própria Administração é voltada para o passado, para as origens do problema e para a defi nição de quem errou e de quem foi vítima.170 Por outro lado, a função regulatória judicante é voltada para o futuro, impreg-nada de uma necessidade da interpretação prospectiva do julgador em vislum-brar quais são as prováveis conseqüências daquela decisão, que não abrange apenas as partes envolvidas no confl ito, mas todo o mercado que vai sofrer com a relação custo/benefício. E conclui que as agências reguladoras têm com-petência judicante, pois essas entidades autárquicas têm por objetivo a solução de confl itos entre os agentes, buscando o equilíbrio entre os envolvidos.171

Por essa função judicante a agência reguladora deve buscar a promoção da competição e, onde houver, a livre concorrência, a não discriminação, a uti-lização efi ciente e o incremento de investimentos em infraestrutura voltada à exploração das atividades econômicas e dos serviços públicos, viabilizando que as informações sejam fornecidas de forma precisa, sem criar difi culdades ao acesso de outros interessados pela sua ausência ou insufi ciência.172

Desse modo, pode-se inferir, com aqueles doutrinadores que sustentam a legalidade e a legitimidade do exercício da função judicante pelas agências reguladoras, que somente as entidades tecnicamente preparadas e dotadas de todas as informações e mecanismos para regular um subsistema econômico ou social têm condições de visualizar todo o cenário que envolve uma decisão isolada diante do caso concreto.

Esse aspecto prospectivo da decisão que visa por fi m a confl itos entre agentes regulados, ou até mesmo entre o Poder Público e os consumidores, tem reais condições de ponderar e estabelecer um efetivo equilíbrio entre os diversos interesses em presença.

A título exemplifi cativo, destaca-se no capítulo VII, da Lei nº 9.478/1997, que trata do transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, que à Agên-cia Nacional de Petróleo — ANP foi atribuída competência para fi xar o valor e a forma de pagamento da remuneração ao proprietário dos dutos de trans-porte, caso não haja acordo entre este e outros interessados em transportar seus produtos nesses mesmos dutos.173

A agência reguladora pode, ainda, atuar nas funções de conciliação e mediação.É de notar-se que a conciliação é um meio de solução de confl itos onde o

conciliador não decide o confl ito, mas age para facilitar, sugerindo, inclusive, a forma de acordo entre as partes. Na solução de confl ito por meio da con-ciliação não se leva em conta decisões anteriores, mas somente os interesses das partes.

Por sua vez, a mediação é um instrumento de resolução de confl itos por meio do qual as partes se aproximam para alcançar tal intento. A aproxima-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 129

ministrativo. Rio de Janeiro, v. 229, p.

27-43, jul./set. 2002).

168 Conforme texto gentilmente cedido

pelo Autor, de suas palestras proferidas

no Auditório do Superior Tribunal de

Justiça no dia 24 de junho de 2002, no

Seminário organizado pelo Instituto

Brasileiro do Petróleo e pelo Sindicato

das Indústrias Distribuidoras de Com-

bustíveis, e no Encontro de Integração

promovido pela Agência Nacional de

Saúde Suplementar – ANS, no dia 10

de julho de 2002, no Rio de Janeiro,

parcialmente vertido para o idioma

francês, para apresentação como Pro-

fessor Visitante na Universidade de

Poitiers – França.

169 Para João Bosco Leopoldino da

Fonseca essas atribuições não são con-

sideradas judicantes, pois as Agências

Reguladoras “são organismos públicos

(a lei brasileira as caracteriza como

autarquias especiais), desprovidos

de poder jurisdicional. Elas não têm,

diferentemente do que a lei concede

ao CADE, no Brasil, o poder judicante”.

Direito econômico. Rio de Janeiro: Fo-

rense, 2002, p. 261. Carlos Ari Sundfeld,

apesar de hesitar na admissão da fun-

ção judicante pela Agência Reguladora,

no exercício de um papel que compete

ao Poder Judiciário, acaba admitindo

que o Judiciário não é capaz de co-

nhecer todos os confl itos surgidos em

decorrência da vida cotidiana, “e das

normas editadas para transformar em

valores jurídicos os novos valores que

foram sendo incorporados pela socie-

dade”. SUNDFELD, Carlos Ari. Introdu-

ção às agências reguladoras. In: Direito

Administrativo Econômico. São Paulo:

Malheiros, 2000., p. 31. Arnold Wald e

Luíza Rangel de Moraes sustentam, de

forma temperada, que “considerando

o grau de independência que deve ter

a agência, é admissível conceber que

possa, eventualmente, ter uma compe-

tência quase judicial”. E advertem que

seria preciso que se constituísse no âm-

bito da mesma uma “Câmara Especial”,

que, não sendo dotada de competência

administrativa, esteja apta a julgar os

confl itos entre o poder concedente e o

concessionário. Para esses Autores tal

solução se constituiria na organização

de uma forma de contencioso admi-

nistrativo, funcionando, em relação às

concessões, como os Conselhos de Con-

tribuintes atuam em matérias fi scais,

ou como o Conselho de Recursos do

Sistema Financeiro Nacional no tocante

à área bancária, sem prejuízo da pos-

terior apreciação pelo Poder Judiciário

de qualquer lesão de direito. Agências

reguladoras. Revista de Informação

Legislativa, Brasília, v.141, p. 143-171,

jan./mar. 1999.

170 Função regulatória. In: Direito em-

presarial público. Marcos Juruena Villela

Souto e Carla C. Marshall (Orgs.). Rio de

ção das partes em confl ito é feita por intermédio da agência reguladora, que deverá estar em posição de neutralidade.

Como leciona Marcos Juruena Villela Souto, o recurso à mediação por agente neutro é fundamental, pois o mediador intervém na pesquisa de solu-ções, no favorecimento de trocas construtivas, estimulando as comunicações e no enquadramento das negociações, determinando e explicando as regras procedimentais, resguardando a observância das normas regulatórias.174

Assim, pode-se dizer que as principais diferenças entre mediação e conci-liação consistem na forma de atuação da agência reguladora, haja vista que na mediação ela apenas é uma facilitadora, ao passo que na conciliação ela interfere no acordo e estimula os agentes regulados a se comporem.

Tem-se, ainda, como forma de resolução de confl itos, o instituto da ar-bitragem. Na arbitragem, a intervenção da agência reguladora, com poderes decisórios, consistirá no julgamento do confl ito entre os agentes regulados, exarando e impondo uma decisão, contra a qual não caberá recurso. A arbi-tragem não se limita, como nas fases de conciliação ou mediação, a oferecer alternativas às partes para os confl itos, mas sim decidir sobre o problema e impor a solução. Com efeito, quando é instituída, a arbitragem torna-se obrigatória entre os agentes regulados, não podendo estes rediscutir o assun-to. Dessa forma, a diferença fundamental entre a mediação e a conciliação, de um lado, e a arbitragem, de outro, encontra-se na autoridade conferida à agência reguladora para decidir o confl ito e impor a solução às partes, sendo que na mediação/conciliação a decisão é das partes, que podem, ou não, chegar a um acordo.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto leciona que as funções judicantes po-dem ser exercidas sob diferentes modalidades, todas com características não jurisdicionais (como o são as atividades de conciliação, de mediação e até de arbitramento de interesses em confl ito).175 E conclui que não existindo um interesse público específi co legalmente predefi nido, todos os interesses em confl ito ou potencialmente confl itivos admitem ser legitimamente pondera-dos e até negociados, o que patenteia a existência de uma ampla disponibili-dade relativa para o exercício judicativo extrajudicial da função reguladora.176

Contudo, a possibilidade de imposição, pelas agências reguladoras, de um juízo arbitral regulatório para a solução de confl itos com os agentes regulados não é tema livre de polêmicas.

Marcos Juruena Villela Souto distingue a arbitragem comercial — que não se submete à revisão judicial — e a arbitragem regulatória, que resulta em um ato administrativo regulatório. Nas palavras do próprio Autor:

Há quem não reconheça a competência para a arbitragem regulató-ria. Isto porque, no Direito brasileiro (Lei nº 9.307, de 23/09/96), a arbitragem comercial exige um prévio compromisso arbitral, pelo qual

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 130

Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 27.

171 Idem.

172 Idem, p.7. Nesse mesmo sentido,

Alexandre Santos de Aragão sustenta

que a função julgadora das Agências

Reguladoras não é, a exemplo do que

se dá quando exercida pelo Poder

Judiciário, voltada para o passado.

Ao contrário, há um marcante caráter

prospectivo de realização de políticas

públicas cuja implementação lhes

incumbe. Destaca, ainda, que mais do

que visar a composição de determinado

confl ito entre as partes envolvidas, ob-

jetiva precipuamente a composição dos

confl itos entre subsistemas setoriais.

Agências reguladoras e a evolução...,

cit., pp. 318-319. Para Manoel Gonçal-

ves Ferreira Filho, as Agências Regula-

doras gozam de poder judicante pois

“têm atribuições que se estendem ao

contencioso, porque estão habilitadas

a dirimir litígios, seja os que envolvam

empresas que exerçam atividade por

ela controlada, seja entre estas e os

usuários do serviço”. Curso de direito

constitucional. 28a ed. SP: Saraiva,

2002, p. 141. Em idêntico sentido, Mar-

çal Justen Filho aduz que “se pode con-

ceber a intervenção da agência regula-

dora para composição de confl itos de

interesses – sejam aqueles derivados

de relações entre Estado e particular,

sejam os que comportem controvérsias

apenas entre particulares”. O direito das

agências reguladoras independentes.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 555.

173 BRASIL. Lei n. 9.478, 06 de agosto

de 1997. Art. 56. Observadas as dispo-

sições das leis pertinentes, qualquer

empresa ou consórcio de empresas

que atender ao disposto no art. 5° po-

derá receber autorização da ANP para

construir instalações e efetuar qualquer

modalidade de transporte de petróleo,

seus derivados e gás natural, seja para

suprimento interno ou para importa-

ção e exportação. Parágrafo único. A

ANP baixará normas sobre a habilitação

dos interessados e as condições para a

autorização e para transferência de sua

titularidade, observado o atendimento

aos requisitos de proteção ambiental

e segurança de tráfego. Art. 57. No

prazo de cento e oitenta dias, a partir

da publicação desta Lei, a PETROBRÁS

e as demais empresas proprietárias de

equipamentos e instalações de trans-

porte marítimo e dutoviário receberão

da ANP as respectivas autorizações,

ratifi cando sua titularidade e seus di-

reitos. Parágrafo único. As autorizações

referidas neste artigo observarão as

normas de que trata o parágrafo único

do artigo anterior, quanto à transfe-

rência da titularidade e à ampliação

da capacidade das instalações. Art. 58.

Facultar-se-á a qualquer interessado o

uso dos dutos de transporte e dos ter-

minais marítimos existentes ou a serem

as partes acordam que qualquer confl ito seja solucionado por um árbi-tro. Entretanto, a arbitragem comercial, que trata de interesses disponí-veis, não se confunde com a arbitragem regulatória (que lida com os interesses de uma coletividade afetada pelo confl ito) em razão de os comandos da Lei de Arbitragem não se aplicarem aos segmentos regu-lados, salvo, por analogia, na parte procedimental. Não há qualquer violação ao Princípio da Autonomia da Vontade. Quem adere a um segmento regulado se compromete a cumprir e a se submeter a todo o ordenamento jurídico setorial que orienta o seu funcionamento, que tem implícito o poder da agência reguladora baixar normas estabele-cendo limitações à liberdade do contratado, interferindo nas relações entre fornecedores e entre fornecedor e consumidor. Este contrato rela-cional vai ser constantemente fi scalizado e atualizado por normas ema-nadas da agência reguladora, e os confl itos vão ser, possivelmente, solu-cionados pela via arbitral regulatória também. Todo esse contexto integra o marco regulatório, ao qual o regulado voluntariamente adere ao pleitear um consentimento de polícia ou ao fi rmar um contrato com a Administração. A tanto não é obrigado, mas integrando o segmento, por decisão própria, deve se submeter a todas as regras que orientam o seu funcionamento.” 177

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

GUERRA, Sergio. Discricionariedade e refl exividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 177 a 204.

GUERRA, Sergio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lu-men Iuris, 2004, pp. 92 a 98; 125 a 140.

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.) O poder normativo das agências re-guladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independen-tes — fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 25 a 72.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 131

construídos, mediante remuneração

adequada ao titular das instalações.

§ 1º A ANP fi xará o valor e a forma

de pagamento da remuneração ade-

quada, caso não haja acordo entre as

partes, cabendo-lhe também verifi car

se o valor acordado é compatível com

o mercado. § 2º A ANP regulará a pre-

ferência a ser atribuída ao proprietário

das instalações para movimentação de

seus próprios produtos, com o objetivo

de promover a máxima utilização da

capacidade de transporte pelos meios

disponíveis. Art. 59. Os dutos de trans-

ferência serão reclassifi cados pela ANP

como dutos de transporte, caso haja

comprovado interesse de terceiros em

sua utilização, observadas as disposi-

ções aplicáveis deste Capítulo.

174 Direito administrativo regulatório. Rio

de Janeiro: Renovar, p. 61.

175 Prossegue o Autor, ao expor seu

pensamento sobre a arbitragem: “Para

executar as tarefas próprias, sob o re-

gime administrativo, o Poder Público,

no caso, as agências reguladoras, não

prescinde do acesso aos mais diversos

bens e serviços produzidos pelo mer-

cado, o que o obriga a atuar também

sob o regime privado para obtê-los,

ou seja, sem recorrer à coerção, um

expediente que nem sempre é jurídica

ou politicamente admissível ou, ainda,

politicamente aconselhável”. Direito

regulatório..., cit., p. 109. Alexandre

Freitas Câmara discorda da possibilida-

de das Agências Reguladoras atuarem

como cortes arbitrais. “O motivo dessa

absoluta impossibilidade é, em verda-

de, bastante simples: a arbitragem é,

por defi nição, uma atividade que se

desenvolve à margem do Estado. É um

método paraestatal (ou não-estatal) de

composição de confl itos. É da própria

natureza da arbitragem a sua incom-

patibilidade com a atuação do Estado

(através de qualquer de seus órgãos)

como corte arbitral”. Arbitragem nos

contratos envolvendo agências regula-

doras. In: Direito da Regulação. Revista

de Direito da Associação dos Procura-

dores do Novo Estado do Rio de Janeiro.

Alexandre Santos de Aragão (coord.) v.

XI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002,

p. 154.

176 Idem, p. 111.

177 Conforme texto gentilmente cedido

pelo Autor, em trabalho de cunho dou-

trinário ainda não publicado (ver nota

de rodapé nº 134). Ver, ainda, seu Direi-

to administrativo regulatório..., cit., pp.

63-65. Em sentido contrário, Lúcia Valle

Figueiredo, Intervenção do Estado no

domínio econômico e breves conside-

rações sobre as agências reguladoras,

Revista de Direito Público da Economia,

v. 2, abri/jun 2003, p. 270.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Depois de estabelecer limites mais severos à propaganda do bilioná-rio setor de bebidas, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-sa) prepara-se para dar outro passo ambicioso e ainda mais polêmico — fechar o cerco à próspera indústria de alimentos de baixo teor nutritivo. O alvo principal será a publicidade de um segmento que tem oferta muito mais diversifi cada e universo de consumidores maior que o das bebidas alcoólicas. As restrições se estenderão às formas de comerciali-zação dos produtos.

A Anvisa concluiu o texto preliminar do regulamento técnico que restrin-girá a oferta e divulgação de alimentos que contêm quantidades elevadas de açúcar, gorduras saturadas e trans, sódio e bebidas com baixo teor nutricional. O prazo de consulta pública já se encerrou. Se aprovada, a regulamentação obrigará a veiculação de advertências sobre os perigos do consumo excessivo desses alimentos e bebidas em embalagens e peças publicitárias. Poderá ser obrigatória a divulgação de frases como esta: “Este alimento possui elevada quantidade de gordura saturada. O consumo excessivo de gordura saturada aumenta o risco de desenvolver diabetes e doenças do coração”.

A ofensiva da Anvisa atingirá um dos alvos da indústria de alimen-tos conhecidos como “junk food” — as crianças. A propaganda deste tipo de comida será restrita ao período das 21h às 6h no rádio e na TV. O objetivo é desencorajar os pais a ceder aos apelos das crianças por esses produtos. A prática amplamente disseminada de distribuição de brindes e prêmios será proibida. Também não será permitido o uso, em publicidade, de fi guras, desenhos e personalidades admiradas pelo público infantil. A coordenadora da Política Nacional de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Ana Beatriz Vasconcellos, diz que as normas podem reduzir riscos à saúde de consumidores e gastos pú-blicos bilionários com atendimento médico decorrente da alimentação inadequada.

Segundo Ana Beatriz, o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta cerca de R$ 11 bilhões anuais no tratamento de doenças crônicas não trans-missíveis, como obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares e cân-cer. Essas despesas representam 70% do total dos custos do SUS. Para ela, políticas públicas voltadas à alimentação saudável podem evitar 90% dos óbitos provocados por obesidade e diabetes.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 132

178 Maiores detalhes podem ser conferi-

dos em OLIVEIRA. Metade das cidades

não terá conta por minuto: nos muni-

cípios onde as telefônicas não fi zeram

conversão dos pulsos, ligações locais

entre fi xos serão de graça. O Globo,

Caderno de Economia, Rio de Janeiro, p.

30, 15 mar. 2007.

A consulta formulada pelo seu cliente consiste em examinar se a ANVISA, cuja natureza jurídica é de autarquia especial, tem ou não competência para a edição de normas regulatórias nos moldes do caso gerador e quais seriam os limites para essa normatização.

Caso gerador 2:

Trata-se da mudança das regras para a conversão da cobrança das ligações telefônicas de pulso para minuto — a tarifação por minuto foi estabelecida na renovação dos contratos das concessionárias de telefonia fi xa.

Os motivos da mudança foram as limitações da tarifação por pulso e a difi culdade para detalhar as ligações locais nas contas; isto é, o usuário será benefi ciado com uma forma de tarifação mais transparente (base normativa: artigo 1º da Resolução nº 423, de 6 de dezembro 2005 e itens 2.1 e 3.1 do Anexo da Resolução nº 423, de 6 de dezembro 2005).

Em que pese a idéia inicial de imperatividade dessa regra sobre as empresas reguladas — e, após, a realização de consulta e audiência públicas, manifes-tações de associações de usuários, do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, dos Procons estaduais e municipais etc. — chegou-se a um consenso entre regulador e regulados.

A ANATEL não compeliu as concessionárias a implementarem a conver-são em áreas em que os custos (com a conversão) não justifi cassem os benefí-cios aos usuários (detalhamento das contas) nas localidades em que houvesse baixa densidade de linhas telefônicas. Por outro lado, as empresas reguladas concordaram em não cobrar dos usuários as chamadas locais entre telefones fi xos que excedem a franquia com determinado número de pulsos.178

Nesse caso, indaga-se:(i) Atenta contra a juridicidade o posicionamento da ANATEL?(ii) A ANATEL estaria obrigada a aplicar sanções pelo descumprimentoda norma?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Nessa aula foram estudados os poderes e funções exercidas pelas agências reguladoras: poder normativo, poder de fi scalização, poder de sanção, poder de conciliação, poder de resolução de controvérsias.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 133

179 Conforme leciona Clèmerson Merlin

Cléve, o poder político é indivisível, te-

oricamente, porque seu titular é o povo

que não o divide, senão que, em face

da ação do Poder Constituinte, confere

o exercício a diferentes órgãos encar-

regados de exercer distintas tarefas ou

atividades, ou ainda diferentes funções.

Ademais, o poder é indivisível por

natureza. Não corresponde a uma coi-

sa que a ela se possa aceder, algo com

fi m e começo, um objeto capaz de ser

tomado, destruído ou multiplicado.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade

legislativa do poder executivo. 2.ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

p. 30.

180 GUERRA, Sérgio. Discricionarieda-

de..., op. cit., p. 92 ss.

181 MONTESQUIEU. O espírito das leis.

Trad. Cristina Murachco. São Paulo:

Martins Fontes, 1993. p. 16-17.

182 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito admi-

nistrativo. 18 ed. São Paulo: Malheiros,

1993. p. 66.

AULA 16

I. TEMA

Agências reguladoras

II. ASSUNTO

Agências Reguladoras. Legitimidade democrática. Consultas e audiências públicas

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir se as agências reguladoras, por não terem seu órgão máximo com-posto por pessoas eleitas diretamente pelo sufrágio popular, carecem de legiti-midade democrática para o exercício de suas funções, especialmente no que se refere à competência normativa. Apresentar as teorias e os institutos que pro-curam conferir maior transparência e permeabilidade à atuação das agências reguladoras e, portanto, atuam no sentido da sua legitimação democrática.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Na estrutura do princípio tripartite da separação de poderes, se três são, conceitualmente, as funções de Estado, uno e indivisível,179 na prática, é o Poder Executivo que deve ser exercido não apenas para aplicar a lei como também para concretizar, de um modo geral, os valores e princípios políticos compartilhados na sociedade.180

Essas funções clássicas do Estado brasileiro (Legislativo, Executivo e Judici-ário), inspiradas nos moldes preconizados na obra de Monstesquieu181, se divi-dem em órgãos públicos (desconcentração) e em entidades (descentralização).

Na desconcentração, uma das classifi cações acerca dos órgãos públicos é: a) órgãos independentes; b) órgãos autônomos; c) órgãos superiores, e; d) órgãos subalternos182. Quanto à descentralização, dividem-se em: a) autar-quia; b) sociedade de economia mista; c) empresa pública, d) fundações e, e) consórcios públicos.

Tradicionalmente, o Brasil republicano adotou o modelo tripartite. Assim está dito no artigo 2º, da Constituição Federal de 1988: “São Poderes da

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 134

183 “As mudanças no Brasil também

refl etem tendências mais amplas que

ocorrem no âmbito internacional. Essas

tendências foram observadas em mui-

tos países europeus, onde o arcabouço

para os amplos setores de infra-estru-

tura está em constante transformação.

As diretrizes européias determinaram

padrões claros de regulação dos setores

abrangidos pelo estudo e até mesmo

para o estabelecimento de processos

independentes de tomada de decisões

dos órgãos reguladores. Na Europa,

essas diretrizes também abordavam os

planos de saúde privados. É importante

que o Brasil assegure que as mudanças

no seu ambiente regulatório avancem,

de uma maneira geral, pari passu às

tendências gerais observadas no âmbi-

to internacional.” ORGANIZAÇÃO PARA

COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO — OCDE. Relatório sobre a

Reforma Regulatória no Brasil: fortale-

cendo a governança para o crescimen-

to. Paris e Brasília, 2008.

184 MEDAUAR, Odete. O direito adminis-

trativo..., op. cit., p. 120.

185 CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-

moderno. Trad. Marçal Justen Filho.

Belo Horizonte: Forum, 2009. p 98.

União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Contudo, a Constituição Federal de 1988 não estruturou, exata-mente, o Estado Brasileiro em apenas três “poderes”.

E isso não ocorreu somente no Brasil.183

A realidade político-institucional e social da segunda metade do século XX apresentou-se muito mais complexa em relação à época de Montesquieu. Nesse contexto muitas instituições que hoje existem em grande parte dos ordenamentos ocidentais são difi cilmente enquadráveis em alguns dos três clássicos poderes quanto à vinculação estrutural e hierárquica184.

Essa mudança, segundo Jacques Chevallier, é sensível a partir do início da década de 80, assistindo-se a um movimento de desintegração, que se traduz pela diversifi cação crescente das estruturas administrativas. A ordem burocrá-tica, fundada sobre a hierarquização, é desestabilizada pela proliferação de estruturas de um novo tipo, colocadas fora do aparelho de gestão clássico e escapando ao poder de hierarquia. A fi gura pós-moderna de rede tende a par-tir daí a se substituir àquela da pirâmide.185

Com efeito, a carta cidadã de 1988 trouxe, de forma objetiva, órgãos pú-blicos independentes dos três poderes (ou funções) clássicos.

Atualmente, além daqueles que estruturam as funções clássicas inerentes a legislação, a administração e a jurisdição (v.g. o Supremo Tribunal Federal o Conselho Nacional de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais, em geral, o Congresso Nacional, a Chefi a dos Poderes Executivos, nos três níveis da federação etc.), são órgãos públicos independentes, por força do texto constitucional, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União.

Tanto o Ministério Público quanto o Tribunal de Contas são órgãos inde-pendentes, pois, nos termos da carta magna, têm defi nidas suas competências e não estão subordinados, hierarquicamente, a qualquer outro órgão. Vale lembrar, como antes apresentado neste relatório, que a Ordem dos Advoga-dos do Brasil — OAB, também é considerada uma entidade independente, por decisão do Supremo Tribunal Federal.

E quanto às funções exercidas pelas Agências Reguladoras?

Da Legitimidade Democrática das Agências Reguladoras

Diante desse quadro constitucional brasileiro, uma das principais críticas comumente encontradas sobre as funções exercidas pelas agências regulado-ras é que se estaria outorgando funções normativas, judicantes e sancionado-ras a entes cujos titulares não seriam dotados de legitimidade democrática.

De fato, os diretores das agências não são eleitos diretamente pelo povo e, portanto, não atendem diretamente ao princípio da representação majo-ritária. Aliás, o intuito da instituição das agências reguladoras é justamente

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 135

186 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. Rio de Janei-

ro: Forense, 2003, pp. 441 e 442.

que os mandatos de seus diretores sejam não-coincidentes entre si e com o mandato do chefe do Poder Executivo.

No entanto, se não são diretamente eleitos pelo povo, os diretores das agências reguladoras são indicados pelo chefe do Poder Executivo e sabatina-dos ante o Poder Legislativo (no Senado Federal, no caso das agências regu-ladoras federais). Nesse sentido, pode-se considerar que possuem legitimida-de democrática “refl exa”, ainda que apenas parcial, já que os mandatos não coincidem com o do chefe do Poder Executivo. Além disso, faz-se necessário lembrar que as agências reguladoras, sendo autarquias, são criadas por lei, portanto por uma decisão do Parlamento, o qual também é responsável pelo delineamento da função diretiva das agências e sua composição.

Aliás, a existência de autoridades estatais não eleitas com elevado grau de autonomia não constitui fenômeno restrito às agências reguladoras nem ape-nas recente, conforme relata Alexandre Santos de Aragão:

No advento da Revolução Francesa acreditava-se que apenas os ór-gãos da soberania popular, ou seja, os mandatários eleitos, poderiam levar a vida em sociedade a bom termo. Logo, porém, foi verifi cada a necessidade da criação de órgãos estatais com autonomia de gestão e in-dependência funcional para, fora do círculo político-eleitoral, controlar e equilibrar as relações entre os titulares de cargos eletivos para assegu-rar a observância dos valores maiores da coletividade. Surgiram, então, os poderes neutrais do Estado, que abrangem realidades díspares, desde as cortes constitucionais às agências reguladoras independentes, pas-sando pelos tribunais de contas, conselhos com sede constitucional etc.

O que há de comum a todos estes órgãos, que, sem dúvida possuem escala de autonomia variável, é o (1) caráter não eletivo do provimento dos seus titulares, (2) a natureza preponderantemente técnica de suas funções e (3) a independência, ou seja, a ausência de subordinação hierárquica aos poderes políticos eletivos do Estado como forma de propiciar (4) o exercício imparcial das suas funções em relação aos di-versos interesses particulares que estiverem em jogo, aos interesses do próprio Estado do qual fazem parte e à vontade majoritária da socieda-de manifestada por seus representantes.186

Portanto, a compreensão da legitimidade democrática passa pela conside-ração de que, em primeiro lugar, não são a única autoridade estatal com função normativa e executiva sem representatividade direta. A partir da teoria dos poderes neutrais, observa-se que a democracia exige a existência de auto-ridades não eleitas que possam atuar como freios e contrapesos da atuação dos mandatários dos Poderes Legislativo e Executivo diretamente eleitos pelo povo. Conforme conclui Alexandre Aragão, “longe de serem antinômicos à

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 136

187 Agências reguladoras e a evolução

do direito administrativo econômico,

p. 442.

democracia em razão da possibilidade de contradição com as forças políticas majoritárias, asseguram o pluralismo no seio do Estado sem retirar totalmen-te os poderes do chefe do Poder Executivo e do Poder Legislativo”187. São, por isso mesmo, autoridades que exercem funções de Estado, e não de governo.

A participação da sociedade também constitui importante fonte legitima-dora dos atos das agências reguladoras. Nesse sentido, ganha força, no con-texto da instituição dessas autoridades reguladoras independentes, a presença de grupos da sociedade no processo de constituição da norma reguladora, por intermédio dos institutos da consulta e da audiência públicas. Aliás, a Constituição Federal, no artigo que disciplina a atividade da Administração Pública, institui um princípio geral de participação do usuário no que tange à atividade da Administração Direta e Indireta (o que inclui, como visto, as agências) relativamente à prestação de serviços públicos:

“Art. 37(...)§ 3º. A lei disciplinará as formas de participação do usuário na ad-

ministração pública direta e indireta, regulando especialmente:I — reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,

asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;

II — o acesso dos usuários a registros administrativos e informações sobre atos do governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;

III — a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”.

Assim, os institutos da consulta e da audiência pública vêm se fi rmando cada vez mais como instrumentos de legitimação democrática das agências reguladoras, ao permitirem que as futuras normas cogentes dessas entidades passem por um procedimento prévio de relativa negociação e consensualiza-ção entre todas as esferas da sociedade potencialmente alcançadas pela futura norma. Nesse sentido, cresce a importância dos institutos da audiência públi-ca e da consulta pública, bem como de órgãos como a ouvidoria, os quais pro-piciam a ponderação, pelo ente regulador, de todos os interesses envolvidos.

No âmbito da ANEEL, por exemplo, o legislador positivou a exigência de consulta pública no art. 4º, §3º, da Lei nº 9.427/1996:

Art. 4º. (...)§3º. O processo decisório que implicar afetação de direitos dos

agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de projeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, será precedido de consulta pública convocada pela ANEEL.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 137

188 MATTOS, Paulo Todescan Lessa.

Agências reguladoras e democracia:

participação pública e desenvolvimen-

to. In: SALOMÃO FILHO, Calixto (coord).

Regulação e desenvolvimento. São Pau-

lo: Malheiros, 2002, p. 182 e ss.

189 Uma previsão legal genérica quanto

à possibilidade de realização de consul-

tas e audiências públicas é encontrada,

em sede federal, na Lei 9.784/99: “Art.

31. Quando a matéria do processo

envolver assunto de interesse geral, o

órgão competente poderá, mediante

despacho motivado, abrir período de

consulta pública para manifestação de

terceiros, antes da decisão do pedido,

se não houver prejuízo para a parte

interessada. § 1o A abertura da consulta

pública será objeto de divulgação pelos

meios ofi ciais, a fi m de que pessoas

físicas ou jurídicas possam examinar

os autos, fi xando-se prazo para ofe-

recimento de alegações escritas. § 2o

O comparecimento à consulta pública

não confere, por si, a condição de in-

teressado do processo, mas confere o

direito de obter da Administração res-

posta fundamentada, que poderá ser

comum a todas as alegações substan-

cialmente iguais. Art. 32. Antes da to-

mada de decisão, a juízo da autoridade,

diante da relevância da questão, pode-

rá ser realizada audiência pública para

debates sobre a matéria do processo”.

190 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das

agências reguladoras independentes.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 585.

Na prática, observa-se que tais previsões normativas têm sido implantadas pelas agências reguladoras com crescente sucesso, comprovando o caráter de-mocratizador do acesso dos mais diversos segmentos da sociedade e grupos de interesse ao diálogo com as autoridades reguladoras.

Não se desconhece que os institutos, por si só, não garantem a inclusão dos diversos segmentos da sociedade na discussão regulatória. Com efeito, existem estudos que demonstram comparecerem às audiências e consultas públicas, mormente os entes regulados e seus representantes, sendo ainda reduzida a participação de associações de pequenos usuários (no caso dos serviços públi-cos) e de entidades de defesa de interesses difusos da sociedade.188

No entanto, esse défi cit democrático não parece resultar da natureza do instituto, mas sim da ausência de uma cultura histórica relativamente a esses institutos. A informalidade que costuma caracterizar as consultas, onde as opiniões freqüentemente podem ser encaminhadas por fax ou mesmo sim-ples correio eletrônico, facilitam e ampliam a possibilidade de participação, de forma que é esperado que esses mecanismos tenham crescente efetividade na conformação dos marcos regulatórios.189

Paralelamente, outro importante instrumento de legitimação democrática da atuação das agências reguladoras reside na procedimentalização de todos os seus atos. Especialmente no que tange ao processo administrativo sancio-nador, a sanção somente pode ser imposta após a instauração de processo administrativo no qual se confi ra ampla oportunidade de defesa e produção de provas, tudo em conformidade com o princípio maior do devido processo legal, cuja incidência sobre os processos administrativos não pode mais ser questionada. Conforme observa Marçal Justen Filho, “também se aplicam no âmbito das agências as garantias constitucionais acerca do direito de receber informações e de petição (art. 5º, XXXIII e XXXIV, CF/88)”.190

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

MOREIRA NETO, Diogo. Novos institutos conceituais da ação adminis-trativa: gestão pública e parcerias. In: Mutações de direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 315 a 349.

Leitura complementar

BRUNA, Sergio Varella. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pú-blica, revisão judicial. São Paulo: RT, 2003.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 138

191 MS 24.184-DF, rel. Ministra Ellen

Gracie,13.8.2003.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

O IBAMA, em que pese não se caracterizar como agência reguladora, constitui autarquia federal com algumas competências regulatórias em maté-ria de tutela do meio ambiente. Nesse sentido, compete-lhe criar e disciplinar unidades de conservação ambiental, prevendo a legislação que rege a matéria caber ao IBAMA realizar consulta pública previamente à edição de atos sobre essa matéria. Nesse sentido, dispõe o art. 22 da Lei nº 9.985/2000:

Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público....

§ 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identifi car a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento.

No exercício dessa competência, o IBAMA decidiu ampliar os limites territo-riais da área de preservação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Para esse fi m, expediu a respectiva portaria, a qual não foi precedida de consulta públi-ca, sob o fundamento de que o Decreto nº 4.340/2000, que regulamentou a Lei 9.985/2000, admite outras formas de oitiva da população para esta fi nalidade.

Além disso, o IBAMA argui a ausência de força vinculante da consulta pública, já que o ente estatal não está obrigado a seguir as sugestões recebidas. Sustenta, assim,a facultatividade do procedimento ou, subsidiariamente que, mesmo em se alegando que fosse obrigatório, a sua ausência não pode ser sufi ciente para desconstituir a nova limitação territorial do Parque, que já se encontra em funcionamento. Ademais, como qualquer ato administrativo, a portaria em tele goza de presunção de legitimidade.

A seu ver, existe vício na edição da portaria que determinou a ampliação dos limites territoriais da Chapada dos Veadeiros? Em caso positivo, qual seria a consequência jurídica advinda do defeito de formação do ato?191

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Muito se questiona acerca da legitimidade democrática das agências reguladoras por conta da eleição de seus diretores não ser feita diretamente pelo povo. Ocorre que isto deve ser ponderado com o fato deles serem eleitos pelo chefe do Executivo e sabatinados pelo Legislativo, de modo que a legitimidade democrática, se não é direta, é refl exa.Também contribuem para a legitimidade democrática a intro-dução de instrumentos de participação, como as audiências e consultas públicas.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 139

UNIDADE V: PROCESSO ADMINISTRATIVO

AULA 17

I. TEMA

Processo administrativo.

II. ASSUNTO

Processo administrativo: princípios e fundamentos.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar os princípios norteadores dos processos administrativos, com ênfase no processo administrativo federal e sua disciplina pela Lei nº 9.784/1999.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conforme vimos observando ao longo de todo o estudo do Direito Admi-nistrativo, a mudança do enfoque autoritário para a compreensão da função administrativa como provedora de serviços públicos e garantidora de direitos fundamentais veio a requerer uma maior sindicabilidade e transparência das atividades estatais. Também a proteção dos cidadãos ante os atos da Adminis-tração Pública ganha reforço, como já tivemos oportunidade de estudar, no que se refere aos princípios a que a Administração Pública deve obediência, em especial, legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, efi ciência, proporcionalidade, razoabilidade, fi nalidade e motivação.

Nesse contexto, a Constituição Federal garantiu a todo indivíduo tam-bém o direito ao contraditório e à ampla defesa no âmbito dos processos administrativos. A própria importância da procedimentalização dos atos da Administração Pública constitui elemento desse processo.

Desde 1999, encontra-se em vigor a Lei nº 9.784, a qual apresenta as principais normas de direito administrativo processual em matéria federal, tendo por fi nalidade preservar direitos dos administrados e melhor cumpri-mento dos fi ns da Administração (art. 1º). Seus dispositivos aplicam-se a

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 140

192 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Processo administrativo federal. Rio de

Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 41.

todos os processos administrativos em curso perante as autoridades que com-põem a Administração Pública Federal, naquilo em que não confl itarem com eventuais leis especiais que prevejam ritos processuais próprios, que permane-ceram em vigor (art. 69). Sobre o âmbito de incidência da lei, faz-se relevante observar a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

A Administração Federal envolve, genericamente, todos os órgãos e pessoas administrativas federais. (...) vale a pena sublinhar que a lei se referiu expressamente à administração indireta, que, como é sabido, pode ser desempenhada por entidades dotadas de personalidade jurídi-ca de direito privado, como é o caso das sociedades de economia mista e empresas públicas. Conquanto sejam pessoas privadas, não deixam de integrar a Administração Pública federal, de modo que também elas deverão observar o procedimento estatuído na lei, sobretudo quando houver interesses de terceiros, administrados, que devem ser preserva-dos como deseja o diploma regulador.192

Os princípios norteadores dos processos administrativos federais são en-contrados logo no artigo 2, caput, segundo o qual:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos prin-cípios da legalidade, fi nalidade, motivação, razoabilidade, proporcio-nalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e efi ciência.

Adicionalmente, o parágrafo único desse mesmo artigo apresenta outros princípios de primordial envergadura no que se refere à proteção do admi-nistrado face à Administração Pública, dentre os quais destacamos o dever de probidade e boa-fé (inc. IV); o dever de fundamentação das decisões admi-nistrativas (inc. VII); e a proibição de aplicação retroativa de nova interpreta-ção adotada pela Administração (inc.XIII):

Art. 2º. (...)Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados,

entre outros, os critérios de:I — atuação conforme a lei e o Direito;II — atendimento a fi ns de interesse geral, vedada a renúncia total

ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;III — objetividade no atendimento do interesse público, vedada a

promoção pessoal de agentes ou autoridades;IV — atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 141

V — divulgação ofi cial dos atos administrativos, ressalvadas as hipó-teses de sigilo previstas na Constituição;

VI — adequação entre meios e fi ns, vedada a imposição de obri-gações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

VII — indicação dos pressupostos de fato e de direito que determi-narem a decisão;

VIII — observância das formalidades essenciais à garantia dos direi-tos dos administrados;

IX — adoção de formas simples, sufi cientes para propiciar adequa-do grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

X — garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de ale-gações fi nais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;

XI — proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei;

XII — impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuí-zo da atuação dos interessados;

XIII — interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fi m público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

A Lei nº 9.784/1999 assegura ao Administrado os seguintes direitos:

Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Adminis-tração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I — ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

II — ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III — formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

IV — fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.

Em contrapartida, impõe-lhe também importantes deveres, dentre os quais o de atuar com veracidade e boa-fé:

Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 142

I — expor os fatos conforme a verdade;II — proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;III — não agir de modo temerário;IV — prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar

para o esclarecimento dos fatos.

A lei federal traz dispositivos eminentemente processuais, tais como com-petência, forma de processamento do feito, produção de provas, impedimen-to e suspeição do servidor ou autoridade que decidirá o feito; forma, tempo e lugar do processo; instrução.

O princípio da motivação mereceu um capítulo especial na Lei, cujo dis-positivo é aqui reproduzido pela importância das garantias que conferem aos administrados:

CAPÍTULO XIIDA MOTIVAÇÃO

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indica-ção dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I — neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;II — imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;III — decidam processos administrativos de concurso ou seleção

pública;IV — dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licita-

tório;V — decidam recursos administrativos;VI — decorram de reexame de ofício;VII — deixem de aplicar jurisprudência fi rmada sobre a questão ou

discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios ofi ciais;VIII — importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação

de ato administrativo.§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo

consistir em declaração de concordância com fundamentos de anterio-res pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

§ 2o Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.

§ 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 143

193 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito admi-

nistrativo sancionador. 2ª ed. São Paulo:

RT, 2005, p. 104.

194 Direito administrativo sancionador.

2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 487.

195 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito admi-

nistrativo sancionador, p. 488.

Direito Administrativo Sancionador

Alguns processos administrativos têm por fi nalidade específi ca constatar a existência de um ilícito administrativo para, se for o caso, impor a correspon-dente sanção. Trata-se do denominado Direito Administrativo Sancionador.

A sanção administrativa, na visão de Fábio Medina Osório, consiste:

em um mal ou castigo, porque tem efeitos afl itivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Públi-ca, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como conseqüência de uma conduta ilegal, tipifi cada em norma proibitiva, com uma fi nalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo. A fi nalidade repressora, ou punitiva, já inclui a disciplinar, mas não custa deixar clara essa inclusão, para não haver dúvidas.193

No âmbito do direito administrativo sancionador, faz-se relevante trazer a lume algumas regras e princípios que vigoram no direito penal, a fi m de se analisar a extensão de sua aplicabilidade no âmbito do direito administrativo sancionador.

Princípio da presunção de inocência

Na seara administrativa, o princípio aplica-se, de acordo com Fábio Medi-na Osório, com algumas nuances. O autor observa, por exemplo, que “no Direito Administrativo Sancionador, alguns atos gozam, sim, de alguma pre-sunção de veracidade”, a qual, no entanto, também não se mostra absoluta. Assim, poder-se-ia sugerir a existência de uma relativa inversão do ônus da prova, impensável em sede penal, onde o princípio da presunção de inocên-cia vigora de forma mais ampla.194 Assim, o autor constata a tendência a “um caminho restritivo à presunção de inocência, estabelecendo-se, com critérios de razoabilidade, uma equilibrada distribuição do ônus probatório, sem des-considerar as peculiaridades dos casos concretos e, inclusive, as necessidades sociais, a partir de avanços tecnológicos”.195

Ausência de dever de o acusado declarar ou produzir prova contra si mesmo

Como é sabido, na seara penal, o acusado tem o direito de se manter em silêncio.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 144

196 ‘A questão a elucidar é se o indivíduo

pode ser obrigado a produzir provas

contra si mesmo, colaborando com

a acusação à custa de sua liberdade

fi siopsíquica, ou de outros direitos,

o que, a meu ver, se revela, a priori,

intolerável. E é intolerável semelhante

exigência geral porque, evidentemen-

te, o imputado não pode ser forçado

a comportamentos positivos, físicos,

contrários aos seus interesses, violando,

claramente, sua integridade fi siopsí-

quica, sua liberdade de movimentos,

ou diversos direitos fundamentais em

jogo, para fi ns de auxiliar a acusação

ou o Poder Público. (...) Distinta a hi-

pótese quando o sujeito venha a ser

civilmente demandado em matéria de

direitos indisponíveis. Havendo razo-

abilidade, o Estado pode exigir do réu

que se submeta a exame de DNA, para

estabelecer paternidade biológica.

Isso porque a mera recusa não basta,

na medida em que o fi lho tem direito

fundamental, correlato à sua dignidade

humana, de conhecer o pai biológico.

(...) Outro enfoque haveria na análise

do comportamento do agente como

meio de prova e inclusive como uma

presunção contrária aos seus interes-

ses. O sujeito que nega submeter-se a

um exame de controle rotineiro deve,

indiscutivelmente, comprovar motivos

razoáveis e justifi cáveis de seu agir,

afastando a mancha de culpabilidade

que lhe resulta inerente. (...) Ademais,

o indivíduo que adota determinados

comportamentos, ilógicos e desarrazo-

ados, deve arcar com as conseqüências

no plano probatório. O que não se po-

deria aceitar, a meu juízo, é a tipifi ca-

ção de formas intoleráveis de forçar o

indivíduo a um comportamento con-

trário aos seus próprios interesses, sob

pena de esvaziarmos sua presunção

de inocência e seus direitos processu-

ais fundamentais, ligados ao devido

processo legal.” OSÓRIO, Fabio Medina.

Direito administrativo sancionador, pp.

501 e 502.

197 OSORIO, Fabio Medina. Direito admi-

nistrativo sancionador, p. 522.

198 OSÓRIO, Fabio Medina. Direito admi-

nistrativo sancionador, p. 524.

199 “Nos processos administrativos, a

ciência do acusado acerca das imputa-

ções que lhe são formuladas é condição

básica de validade do feito. (...) O aces-

so aos processos, por advogados, é um

direito fundamental dos acusados ou

investigados em geral, salvo nas ex-

cepcionais e fundamentadas hipóteses

legais de sigilo, em que a autoridade

competente delimita áreas restritas,

provisoriamente, ao efeito de viabilizar

medidas cautelares urgentes. Não ha-

vendo concreta e plausível justifi cativa

ao sigilo, este não deverá prevalecer,

eis que o Estado Democrático de Direito

supõe transparência dessas espécies

No âmbito do direito administrativo sancionador, Fábio Medina Osório sustenta que, como regra geral, o administrado não deve ser obrigado a pro-duzir prova contra si mesmo.196

Princípio da ampla defesa

Cumpre lembrar que, por força constitucional, o princípio da ampla defe-sa incide também em sede de direito administrativo sancionador:

Art. 5º.(...)LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos

acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

No entanto, trata-se de direito que deve ser exercido no âmbito do devido processo legal:

A norma que consagra a ampla defesa há de ser interpretada com a razoabilidade que recomenda e exige o devido processo legal. Amplitu-de de defesa não é uma só, insisto, em processos penais, administrativos ou de improbidade administrativa. As distinções resultam da inserção da ampla defesa, ou dos direitos de defesa, no devido processo legal. Cada processo tem suas peculiaridades e disso depende, também o al-cance dos direitos de defesa. Impossível uma generalização absoluta e radical.197

Direito à informação

A doutrina alude ao direito à informação como a necessidade de que o investigado seja chamado a responder às acusações que lhe estejam sendo formuladas, sendo “condição essencial ao exercício da plena defesa e da pro-teção jurídica às legítimas expectativas”.198

Isso não signifi ca, entretanto, que nos limites da lei não possa haver sigilo no interesse das investigações, devendo, todavia, essa possibilidade ser inter-pretada restritivamente, e somente subsistindo enquanto presentes as razões que o justifi cam.199

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 145

de processos punitivos.” OSÓRIO, Fabio

Medina. Direito administrativo sancio-

nador, p. 525.

200 Além disso, existe expressa previsão

no art. 93, X, da Constituição, no que

tange ao Poder Judiciário, aplicando-se

tanto às decisões jurisdicionais quanto

às decisões administrativas dos Tribu-

nais. Assim, com igual razão devem ser

motivadas as decisões da Administra-

ção Pública. OSÓRIO, Fabio Medina. Di-

reito administrativo sancionador, p. 531.

201 Lei 9.873/99. Art. 1º. Prescreve em

cinco anos a ação punitiva da Adminis-

tração Pública Federal, direta e indireta,

no exercício do poder de polícia, objeti-

vando apurar infração à legislação em

vigor, contados da data da prática do

ato ou, no caso de infração permanen-

te ou continuada, do dia em que tiver

cessado.

Princípio da motivação

Em que pese não se encontrar, de forma direta, o princípio da motivação em sede constitucional, a doutrina costuma extraí-lo da interpretação do art. 5º, incisos LIV e LV, da CF/88.200 Não se tecerá aqui maiores considerações sobre o princípio, o qual já foi alvo de profundo estudo no âmbito da matéria Atividades e Atos Administrativos.

Coisa Julgada Administrativa

A coisa julgada administrativa não se confunde com o instituto da coisa julgada no âmbito do Poder Judiciário. No processo judicial signifi ca a imu-tabilidade da decisão; em sede administrativa, signifi ca que o assunto não mais poderá sofrer alteração nessa esfera, embora possa ser revisto em âmbito judicial.

Prazos extintivos no âmbito da Administração Pública

Também a Administração Pública e os administrados submetem-se a pra-zos extintivos no curso de suas relações, em nome do princípio da segurança jurídica. Trata-se dos institutos da (i) prescrição administrativa, (ii) decadên-cia administrativa e (ii) preclusão administrativa.

Os prazos extintivos podem aplicar-se aos administrados (por exemplo, a preclusão do direito de recorrer no curso de um processo administrativo, por perda do prazo recursal), ou à Administração (veja-se a regra geral da Lei 9.873/99, segundo a qual prescreve em cinco anos o poder punitivo de polí-cia da Administração, contados da data do fato)201.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, item:• Controle da Administração Pública

o Processo administrativo (subitens 7.1 a 7.6)

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 146

Leitura complementar

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários à Lei nº 9.784 de 29/11/1999. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005.

DALLARI, Adilson e FERRAZ, Sergio. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Um conselheiro de Agência Reguladora tem, de forma continuada, soli-citado à Concessionária inúmeras e minudentes informações dos negócios da empresa, sob a alegação de serem necessárias à instrução de novos pro-cessos regulatórios. Esse fato, na visão da Concessionária, demonstra que o mesmo permanece no fi rme propósito de adotar um procedimento parcial com relação aos interesses da mesma. Até porque esse conselheiro, antes da privatização da empresa, era funcionário da mesma, tendo se insurgido, pu-blicamente, contra a decisão de desestatizá-la. Refl ita sobre o princípio do contraditório e da motivação no processo administrativo, com vistas à prote-ção dos direitos da Concessionária a uma regulação imparcial.

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os processos administrativos destinam-se a apurar determinados fatos, consentir com a realização de determinados atos, punir determinado servi-dor. Trata-se de um procedimento formal que deve observar princípios como os da legalidade, fi nalidade, motivação, ampla defesa e contraditório.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 147

202 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pe-

reira da. Em busca do acto administra-

tivo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.

p. 107: “Quer se trate de uma decisão

unilateral, quer de uma decisão con-

tratual, a participação dos particulares

no procedimento administrativo é a

garantia de uma maior ponderação de

todos os interesses envolvidos e de uma

decisão administrativa mais correcta e

efi caz, porque mais facilmente aceito

pelos destinatários”.

UNIDADE VI: CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

AULA 18

I. TEMA

Controle dos atos administrativos.

II. ASSUNTO

Controle dos atos administrativos. Controle no âmbito do Executivo. Anulação e revogação do ato administrativo. Recurso hierárquico e recurso hierárquico impróprio.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir se existe controle dos atos praticados pelos órgãos e entidades da Administração Pública, especialmente, com relação a essas últimas, sobre o cabimento de recurso hierárquico impróprio.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A Constituição Federal garantiu a todo indivíduo o direito ao contraditó-rio e à ampla defesa no âmbito administrativo. A própria importância da procedimentalização202 dos atos da Administração Pública reforça essa garan-tia. Nesse sentido, dispõe a Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-rança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 148

203 “No patrimonialismo, o governante

trata toda a administração política

como seu assunto pessoal, ao mesmo

modo como explora a posse do poder

político como um predicado útil de sua

propriedade privada. Ele confere po-

deres a seus funcionários, caso a caso,

selecionando-os e atribuindo-lhes ta-

refas específi cas com base na confi ança

pessoal que neles deposita e sem esta-

belecer nenhuma divisão de trabalho

entre eles. [...] Os funcionários, por

sua vez tratam o trabalho administra-

tivo, que executam para o governante

como um serviço pessoal, baseado em

seu dever de obediência e respeito. [...]

Em suas relações com a população, eles

podem agir de maneira tão arbitraria

quanto aquela adotada pelo governan-

te em relação a eles, contanto que não

violem a tradição e o interesse do mes-

mo na manutenção da obediência e da

capacidade produtiva de seus súditos.”

BENDIX, Reinhard. Max Weber: um perfi

l intelectual. Trad. Elisabeth Hanna e

Jose Viegas Filho. Brasília: UNB, 1986.

p. 270-271. Sobre o tema, entre nós,

ver a obra: COSTA, Frederico Lustosa da.

Reforma do estado..., op. cit., p.30.

204 WEBER, Max. Economia e sociedade.

v.2. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe

Barbosa. São Paulo: Imprensa Ofi cial,

2004. p. 199 (título original: Wirtschaft

und Gesellschaft: Grundriss der vers-

tehenden Soziologie).

205 Sobre os problemas ocorridos no

Brasil, no processo de burocratização

ou de racionalização burocrática como

fenômeno histórico que decorre da su-

perioridade da administração pública

sobre as formas patrimonialistas, ver

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A refor-

ma do estado para a cidadania: a refor-

ma gerencial brasileira na perspectiva

internacional. São Paulo: Editora 34,

1998. p. 48.

206 WEBER, Max. Economia e sociedade.

v.2. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe

Barbosa. São Paulo: Imprensa Ofi cial,

2004. p. 144.

Portanto, em um Estado Democrático de Direito, mostra-se primordial que os atos de uma entidade administrativa sejam passíveis de controle exter-no, isto é, por outras autoridades que não aquela que exarou o ato.

Reconsideração pelo próprio órgão

No âmbito administrativo, o “controle”, ou melhor, a “reconsideração” pela própria autoridade que exarou o ato é sempre possível, sendo facultado à administração revê-lo, em caso de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e tendo mesmo o dever de fazê-lo em caso de ilegalida-de. Nesse sentido, mostra-se pacífi co o entendimento da jurisprudência, con-forme se observa do enunciado 473 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:

Súmula 473, STF — A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Recurso hierárquico

Além disso, como regra geral, a Administração Pública organiza-se de for-ma hierárquica, podendo o cidadão, por conseguinte, recorrer contra deter-minada decisão ao ente hierarquicamente superior.

Segundo o princípio da hierarquia de cargos e da sequência de instâncias, contrapondo-se à ideia de patrimonialismo203, o modelo weberiano desenhou um sistema fi xamente regulamentado de mando e subordinação das autori-dades, com fi scalização das inferiores pelas superiores.204

O modelo racional-legal, pelo qual a dominação se exerce por meio de um quadro administrativo burocrático (ao invés da burocracia patrimonial),205 foi estruturado por Weber206 de modo que os funcionários: (a) são pessoalmente livres; isto é, devem obedecer apenas às obrigações objetivas de seu cargo; (b) são nomeados — e não eleitos — sob uma rigorosa hierarquia dos cargos; (c) têm competências funcionais fi xas; (d) livre seleção por meio da qualifi cação profi s-sional (contratação) mediante concurso (provas etc.); (e) são remunerados em dinheiro — compatível com a posição na hierarquia — com direito a aposenta-doria; (f ) devem exercer o cargo como profi ssão única; (g) devem ter um plano de carreira: progressão por tempo de serviço ou por merecimento, ou as duas; (h) devem separar trabalho das questões pessoais (não haver apropriação do car-go); (i) devem seguir rigoroso sistema de controle administrativo disciplinar.

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FGV DIREITO RIO 149

207 dem, p. 145;

208 MOREIRA NETO, Diogo. Curso de

direito administrativo. 14a ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2006, p. 104.

209 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. 2a ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, pp. 348-350.

Por essa estrutura, Weber sustentou que se atingiria, de forma mais racio-nal, o exercício de dominação. Nessa forma, seria alcançado tecnicamente o máximo rendimento (efi ciência) em virtude da precisão, continuidade, disci-plina, rigor e confi abilidade, intensidade e extensibilidade dos serviços, e aplicabilidade formalmente universal a todas as tarefas públicas.207

Sobre o princípio da hierarquia na Administração Pública, observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Este princípio diz respeito, assim, à coordenação e à subordinação desses entes, órgãos e agentes entre si e à distribuição escalonada das respectivas funções, com o objetivo de estabelecer uma seqüência de autoridade progressiva, de modo a harmonizar esforços, ordenar atua-ções, fi scalizar atividades e corrigir irregularidades.

O princípio hierárquico, de natureza instrumental, é, por esse moti-vo, notadamente essencial à disciplina da ação dos agentes da adminis-tração pública, que são os elementos humanos envolvidos, integrando-se com institutos dos campos da responsabilidade, da teoria das nulidades e da sanatória dos atos administrativos.208

Recurso hierárquico impróprio

Existem entes da Administração que não se relacionam com o Poder Exe-cutivo central a partir de uma relação de subordinação, não havendo, nesses casos, que se falar em hierarquia. É o caso, por exemplo, das agências regu-ladoras, razão pela qual a doutrina discute se, relativamente a essas entidades não-subordinadas, caberia recurso contra seus atos ao Poder Executivo Cen-tral (o chamado “recurso hierárquico impróprio”).

Em princípio, a ausência de subordinação hierárquica das agências regula-doras ao chefe do Poder Executivo se apresenta incompatível com o fato de se admitir a possibilidade de os administrados recorrerem a esse último em caso de discordância de uma decisão da agência. Sobre isto, cumpre conside-rar que as agências reguladoras apresentam natureza jurídica de autarquias especiais, possuindo personalidade jurídica, receita e patrimônio próprios, dirigentes com mandato, e autonomia face ao Ministério a que se vinculam

209. De fato, a relação entre a agência reguladora e o Ministério é de mera vinculação, e não de subordinação. Partindo das características de autonomia e ausência de subordinação, é possível defender ser a sua natureza incompa-tível com a possibilidade de recurso de suas decisões ao ministro de Estado.

Dessa forma, para uma correta aproximação do problema, torna-se neces-sário compreender a amplitude do direito ao recurso na esfera administrativa, e compatibilizá-lo com a autonomia inerente às agências.

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FGV DIREITO RIO 150

210 Veja-se, a respeito, manifestação

do ministro Octávio Gallotti: “Sr. Pre-

sidente, também entendo que não há

direito constitucional ao duplo grau de

jurisdição, seja na via administrativa,

seja na via judicial e, por esse motivo,

a lei, ao criar um recurso que poderia

não instituir, pode submetê-lo à exi-

gência de depósito, fi cando a ampla

defesa assegurada quanto à decisão de

primeira instância”. (voto do ministro

Octávio Gallotti no Recurso Extraordi-

nário nº 210.246-6/GO, proferido em

21.11.19970).

211 Agências reguladoras e a evolução

do direito administrativo econômico. 2a

ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.

346 e ss.

212 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos

atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lúmen

Iuris, 2005, p. 256. Ver, ainda, desse au-

tor: Agências reguladoras e supervisão

ministerial. In O poder normativo das

agências reguladoras. Alexandre San-

tos de Aragão (Coord.) Rio de Janeiro:

Forense, 2006.

213 Ob. cit., pp. 257 e 258.

Por um lado, pode-se defender que a garantia constitucional do recurso na esfera administrativa é observada com a mera previsão de recursos adminis-trativos interna corporis, como, por exemplo, o recurso contra uma decisão monocrática à diretoria colegiada da agência. Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem conferido interpretação restritiva ao art. 5º, LV, da Constituição, no que tange ao recurso na esfera administrativa, atri-buindo ao dispositivo constitucional um signifi cado próximo a uma exigên-cia de “meios” ou “instrumentos” necessários à ampla defesa, mas não pro-priamente de um duplo grau de jurisdição na esfera administrativa.210

Assim, para essa corrente, a natureza jurídica das agências se apresenta incompatível com a possibilidade de recurso ao chefe do Poder Executivo ou aos ministros de Estado, mencionando-se, dentre as razões para tal recusa, (i) ausência de previsão legal, sendo que, à luz do princípio da legalidade estrita (art. 37, caput, da CF/88), a autoridade administrativa somente pode agir em havendo atribuição conferida por lei; (ii) a exigência do art. 5º, LV, da Cons-tituição Federal encontrar-se-ia atendida pelos recursos internos à própria agência previstos nas leis que as instituíram; e (iii) admitir a possibilidade de recurso tornaria a estabilidade dos dirigentes conferida mediante mandato — justamente para torná-los insuscetíveis a pressões políticas — inócua. 211

Por outro lado, admitindo a possibilidade de recurso hierárquico impró-prio em determinadas circunstâncias excepcionais, especialmente em caso de fl agrante usurpação de competência, manifesta-se Sérgio Guerra:

a provocação de instâncias executivas superiores não é apenas direito dos administrados, mas torna-se também imperativo caso se pretenda observar o esgotamento das instâncias administrativas antes de sujeitar a questão ao Poder Judiciário.212

Entretanto, para o autor, essa possibilidade de recurso não se apresenta ilimitada, pois que há de ser compatibilizada com a autonomia inerente às agências. Dessa forma, não é toda e qualquer matéria decidida pela agência que pode ser objeto de revisão pelo chefe do Poder Executivo. Como regra geral, quando realizadas dentro da sua esfera de competências, atos executi-vos, normativos ou judicantes das agências encontram-se imunes à revisão na esfera administrativa, sendo, no entanto:

plausível inferir ser cabível o recurso hierárquico impróprio contra as decisões do órgão máximo das Agências Reguladoras quando delibe-rarem acerca de temas exclusivamente relacionados às políticas públicas do setor regulado, em fl agrante usurpação de competência do Poder Legislativo e do Poder Executivo, aí estando incluída a esfera ministe-rial com supedâneo no art. 76 da Constituição da República.213

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 151

A visão acima descrita se encontra baseada no art. 76 da Constituição, segundo o qual:

Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.

O art. 84, II, da Constituição Federal, por sua vez, dispõe competir pri-vativamente ao presidente da República a direção superior da administração federal, com o auxílio dos ministros de Estado.

Em síntese, é com fulcro nos supracitados dispositivos constitucionais, que conferem ao presidente da República competência genérica de supervisão da administração federal, que essa vertente doutrinária sustenta a possibilidade de, quando uma decisão de agência reguladora for proferida em usurpação de com-petência privativa do chefe do Poder Executivo (como no caso da defi nição de políticas públicas), o ministro de Estado a que esteja vinculada a agência possa conhecer de recurso interposto pelo administrado que se julgar prejudicado.

Merece destaque ainda que, desde 2006, a Advocacia Geral da União pos-sui parecer normativo vinculante sustentando o cabimento de recurso hierár-quico impróprio. Explica-se a denominação recurso hierárquico “impróprio” pela ausência de subordinação entre a entidade que expediu a decisão ou ato questionado e a autoridade revisora.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

Parecer nº AGU/MS 04/2006 e Despacho do Consultor Geral da União nº 438/06 (Anexo III à presente apostila)

GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lu-men Iuris, 2005, pp. 251 a 260.

Leitura complementar

GUERRA, Sérgio. Agências reguladoras e supervisão ministerial. In ARA-GÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 584 a 593.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 349 a 383.

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FGV DIREITO RIO 152

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Agência Nacional de Transportes Aquaviários, no exercício de sua com-petência fi scalizatória, receou que estivesse havendo prática anticoncorrencial relativamente à cobrança de taxa praticada pelos terminais alfandegados so-bre a movimentação e entrega de contêineres destinados a terminais retroal-fandegados do Porto de Salvador.

Em razão dessa suspeita, a ANTAQ exarou ato administrativo, consis-tente na remessa de ofício, contendo suas considerações sobre o tema ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica — CADE, autarquia federal com competência para decidir administrativamente sobre infrações à Ordem Econômica, para que essa adotasse as providências cabíveis na sua esfera de atribuições.

Inconformada, uma das empresas investigadas recorreu ao Ministro dos Transportes, solicitando-lhe que anulasse o ato da agência reguladora que determinou o envio da questão ao CADE. A esse respeito, pergunta-se:

Deve o ministro dos Transportes conhecer o recurso apresentado?Quais as correntes existentes sobre o poder de revisão do Poder Executivo

central sobre os atos das agências reguladoras?Por que, para a parcela da doutrina que admite a possibilidade de proposi-

tura de referido recurso, esse é denominado “recurso hierárquico impróprio”?Ainda que se admita essa possibilidade, quais seriam os limites da revisão

a ser exercida pelos membros do Poder Executivo central?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os atos da Administração Pública, a despeito de gozarem de presunção de legitimidade, estão sujeitos a um controle administrativo permanente, sendo dever da Administração Pública anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revo-gá-los, por conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial, nos termos da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 153

214 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das

agências reguladoras independentes.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 588.

AULA 19

I. TEMA

Controle do ato administrativo.

II. ASSUNTO

Controle do ato administrativo: controle pelo Poder Legislativo, pelo Tri-bunal de Contas e pelo Ministério Público.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar o controle dos atos da administração pública pelo Poder Legis-lativo e pelo Tribunal de Contas, e discutir os limites desse poder de revisão.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

O controle parlamentar

Nos termos do art. 49, X, da Constituição Federal, compete exclusivamen-te ao Congresso Nacional fi scalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração Pública indireta.

Quanto à extensão das matérias que podem ser objeto de controle pelo Congresso Nacional, observa Marçal Justen Filho, tratando especifi camente dos atos das agências reguladoras:

O controle parlamentar pode versar, de modo ilimitado, sobre toda a atividade desempenhada pela agência, inclusive no tocante àquela prevista para realizar-se em épocas futuras — ressalvada a necessidade de sigilo em face das características da matéria regulada. Poderá ques-tionar-se não apenas a gestão interna da agência, mas também se exigir a justifi cativa para as decisões de cunho regulatório. Caberá fi scalizar inclusive o processo administrativo que antecedeu a decisão regulatória produzida pela agência, com ampla exigência de informações sobre as justifi cativas técnico-científi cas das opções adotadas.214

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O controle pelo Tribunal de Contas

A Administração Pública tem suas contas, atos e contratos submetidos ao controle do Congresso Nacional. Nesse sentido expressamente dispõe o art. 70, caput, da Constituição Federal:

Art. 70. A fi scalização contábil, fi nanceira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indi-reta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacio-nal, mediante controle externo, e pelo controle interno de cada poder.

O art. 71 da Constituição, por sua vez, determina que, no exercício do controle externo, o Congresso Nacional será auxiliado pelo Tribunal de Con-tas da União, nos seguintes termos:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exer-cido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:...

II — julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas pelo Poder Público fe-deral, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III — apreciar, para fi ns de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluí-das as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadoria, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório (...)

VIII — aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX — assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providên-cias necessárias ao exato cumprimento da lei, se verifi cada a ilegalidade;

X — sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comu-nicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;(...)

§1º. No caso de contrato, o ato de sustação será adotado direta-mente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.

§2º. Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito. (...)

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 155

215 Com relação aos órgãos e entidades

da Administração Pública estadual, tal

competência é exercida pelos Tribunais

de Contas dos Estados. Especifi camente

com relação aos municípios, por um

lado, ainda são poucos os municípios

que instituíram agências reguladoras.

Por outro, a Constituição Federal de

1988 proibiu a criação de novos tribu-

nais de contas municipais, mantendo,

todavia, em funcionamento aqueles

em vigor anteriormente à sua promul-

gação. Assim, em municípios onde não

houver Tribunal de Contas, as agências

municipais deverão prestar contas ao

Tribunal de Contas estadual. Veja-se, a

esse respeito, o disposto no art. 75 da

Constituição Federal: “As normas esta-

belecidas nesta seção aplicam-se, no

que couber, à organização, composição

e fi scalização dos Tribunais de Contas

dos Estados e do Distrito Federal, bem

como dos Tribunais e Conselhos de

Contas dos Municípios.” Vide, ainda, art.

37, §4º, da CF/88: “É vedada a criação

de Tribunais, Conselhos ou órgãos de

Contas Municipais.”

216 A ASEP era a antiga Agência Regula-

dora dos Serviços Públicos Concedidos

do Estado do Rio de Janeiro, substituída

nas suas funções pela AGETRANSP –

Agência Reguladora de Serviços Públi-

cos Concedidos de Transportes Aqua-

viários, Ferroviários, Metroviários e de

Rodovias do Estado do Rio de Janeiro e

pela AGENERSA – Agência Reguladora

de Energia e Saneamento Básico do

Estado do Rio de Janeiro.

217 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. 2a ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, p. 340.

218 A Instrução Normativa TCU nº 27, de

07.12.1998, dispõe sobre a fi scalização,

pelo Tribunal de Contas da União, dos

processos de desestatização. A Instru-

ção Normativa nº 43, de 10.07.2002,

dispõe sobre o acompanhamento, pelo

Tribunal de Contas da União, dos pro-

cessos de revisão tarifária periódica dos

contratos de concessão dos serviços de

distribuição de energia elétrica.

Dessa forma, por força de expressa previsão constitucional, a Administra-ção Pública federal direta e indireta submete-se ao controle externo do Con-gresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, cuja natureza jurídica, portanto, é de órgão auxiliar do Poder Legislativo. Exerce, assim, atividade eminentemente administrativa de cunho fi scalizatório.215

Um tema que merece análise mais cuidadosa diz respeito à necessidade de todos os atos e decisões das entidades da Administração Pública indire-ta (como as autarquias, sociedades de economia mista e empresas públicas) submeterem-se ao controle do Tribunal de Contas, ou se somente aqueles nos quais se observa um efeito direto sobre dispêndio de verbas públicas subordinam-se a tal revisão.

Tal questão se desdobra na controvérsia, por exemplo, sobre terem os Tri-bunais de Contas competência para controlar “atos de regulação”, tais como reajustes tarifários ou decisões sobre reequilíbrio econômico-fi nanceiro de contrato de concessão. O assunto é apresentado por Alexandre Santos de Aragão nos seguintes termos:

Considerando que tais atos não implicam em gasto de verba públi-ca, isto é, que não geram despesas a serem arcadas pelo Estado, não eclodindo, conseqüentemente, o pressuposto do controle pelo Tribunal de Contas (art. 7, CF), Luís Roberto Barroso sustentou (...) que “não pode o Tribunal de Contas questionar decisões político-administrativas da ASEP-RJ216 nem tampouco requisitar planilhas e relatórios expedi-dos pela Agência ou por concessionário, que especifi quem fi scalização e procedimentos adotados na execução contratual”.

Posição diversa é a sustentada por Mauro Roberto Gomes de Matos, que afi rma, com fulcro no art. 71, VIII, que “o ato administrativo que defere o aumento de tarifa se inclui no enredo constitucional de contas públicas, visto que mesmo ela sendo paga pelo usuário do serviço, é cobrada mediante a prestação de um serviço público outorgado pelo Estado”.217

Cumpre ressaltar, ainda, que o TCU exarou atos normativos especifi camen-te para reger a sua fi scalização sobre os processos de desestatização e sobre os processos de revisão tarifária periódica das distribuidoras de energia elétrica.218

O controle pelo Ministério Público

Nos termos da Constituição Federal, o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a

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FGV DIREITO RIO 156

defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesse sentido, são princípios institucionais do Mi-nistério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Competem ao Ministério Público atribuições muito amplas, abertas, haja vista o uso de conceitos jurídicos indeterminados no texto constitucional, a saber:

a) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, pro-movendo as medidas necessárias a sua garantia;

b) promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interes-ses difusos e coletivos.

Desse modo, e à luz dessa competência atribuída pela Carta Magna, o Ministério Público vem agindo em diversos assuntos submetidos à regulação estatal de serviços públicos e atividades econômicas. Algumas das medidas adotadas pelo Ministério traz riscos sistêmicos, conforme será discutido na aula sobre controle judicial dos atos administrativos.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Controle da Administração Pública

o Controle legislativo

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de; SAMPAIO,Patrícia Regina Pinheiro. As ações do Ministério Público em matéria de regulação e a importância dos instrumentos consensuais. In RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (org.). Ministério Público: refl exões sobre princípios e funções institucio-nais. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 426-449.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

A Agência Nacional de Telecomunicações fez publicar edital de licitação para outorga de faixas de frequência do serviço de provimento de acesso à internet banda larga sem fi o. No edital, a ANATEL proibiu que a concessio-nária incumbente de telefonia fi xa local participasse da referida licitação na região em que fosse titular da concessão.

O Ministério das Comunicações discordou desse posicionamento, ma-nifestando-se publicamente contra a restrição que, a seu ver, restringiria de forma desnecessária os potenciais licitantes.

Em defesa da restrição, a ANATEL alega que as concessionárias locais, por serem titulares da exploração da infraestrutura local e já operarem o serviço de banda larga por de linha telefônica (ADSL), encontram-se em posição fa-vorecida face às demais licitantes, e poderiam realizar concorrência predatória às entrantes.

Conforme visto, o Tribunal de Contas da União possui competência para acompanhar os processos de licitação realizados pelas entidades da Adminis-tração Pública indireta, como as agências reguladoras. Entretanto, discute-se qual o limite de intervenção do TCU nesses processos.

No caso em comento, o TCU determinou a suspensão da licitação a fi m de que a ANATEL prestasse informações sobre o modelo escolhido para as outorgas, e as razões pelas quais as concessionárias de telefonia fi xa local fo-ram impedidas de participar.

Considerando os fatos acima narrados, tem o TCU competência para de-terminar a suspensão da licitação? Em relação a questões regulatórias, deve o TCU controlar as atividades-fi m das agências reguladoras?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Em atenção ao controle entre os Poderes integrantes da República, os atos administrativos são sujeitos também ao controle do Poder Legislativo, nos termos do art. 49, X, da Constituição Federal, e do Tribunal de Contas, nos termos do art. 70 da Constituição Federal.

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AULA 20

I. TEMA

Controle dos atos administrativos.

II. ASSUNTO

Controle dos atos administrativos. Controle pelo Poder Judiciário.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir o âmbito e os limites de revisão, pelo Poder Judiciário, dos atos administrativos.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Conforme visto na matéria Atividades e Atos Administrativos, a amplitu-de do controle do Poder Judiciário sobre os atos da administração mostra-se questão profundamente controversa.

A sujeição desses atos ao controle do Poder Judiciário não é questionada, em razão do princípio da jurisdição una ou da inafastabilidade do conheci-mento de lesão a direito pelo Poder Judiciário, expressamente disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal:

Art. 5º (...)XXXV — A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão

ou ameaça a direito.

Profunda discussão emerge, no entanto, quanto aos limites desse controle.De fato, classicamente se entendia que o Poder Judiciário não pode aden-

trar o mérito de escolhas discricionárias da Administração, uma vez que a competência para o exercício do juízo de conveniência e oportunidade in-cumbe à Administração Pública — e não ao Poder Judiciário. Nesse sentido, manifesta-se Hely Lopes Meirelles: “quanto ao objeto do controle, (...) há de ser unicamente a legalidade, sendo-lhe vedado pronunciar-se sobre conveni-

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219 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito admi-

nistrativo brasileiro. 24a ed. São Paulo:

Malheiros, 1999, p. 633

220 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos

atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen

Iuris, 2005, pp. 271-272.

221 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das

agências reguladoras independentes.

São Paulo: Dialética, 2002, p. 590,

grifou-se.

ência, oportunidade ou efi ciência do ato em exame, ou seja, sobre o mérito administrativo”.219

Sobre a necessidade de o Poder Judiciário respeitar o âmbito de discricio-nariedade dos entes administrativos, expõe Sérgio Guerra, no âmbito dos atos regulatórios:

o excesso da atuação jurisdicional sobre as decisões administrativas traz consigo a controvérsia acerca das decisões de agentes públicos, de-mocraticamente eleitos ou não, pelos juízes. (...) Se o julgador alterar um ato administrativo regulatório, que envolve, fundamentalmente, a eleição discricionária dos meios técnicos necessários para o alcance dos fi ns e interesses setoriais — despido das pressões políticas comumente sofridas pelos representantes escolhidos pelo sufrágio —, esse magistra-do, na maioria das vezes, poderá, por uma só penada, afetar toda a harmonia e equilíbrio de um subsistema regulado.220

No mesmo sentido, veja-se Marçal Justen Filho:

Insista-se em que o ato produzido pela agência, ainda quando apto a produzir efeitos abstratos e gerais, continua a se qualifi car como ato administrativo. Trata-se de uma manifestação de discricionariedade, que demanda exame e qualifi cação pelo Judiciário segundo os princí-pios gerais vigentes. Isso signifi ca que o exercício de competências vin-culadas comporta ampla investigação pelo Judiciário. Mesmo no to-cante à discricionariedade é possível cogitar da fi scalização jurisdicional. O controle jurisdicional não pode invadir aquele núcleo de autonomia decisória inerente à discricionariedade. (...) O Judiciário pode verifi car se a autoridade administrativa adotou todas as providências necessárias ao desempenho satisfatório de uma competência discricionária. É pos-sível invalidar a decisão administrativa quando se evidencie ter sido adotada sem as cautelas necessárias, impostas pelo conhecimento técni-co-científi co.221

Portanto, o Poder Judiciário não tem competência revisora sobre o exercí-cio da competência discricionária da Administração, desde que exercida nos limites da atribuição que lhe tenha sido legalmente atribuída e respeitados os princípios constitucionais regedores da atividade administrativa. Não se pode negar que a Administração — direta ou indireta — possui um núcleo de competências discricionárias, sobre as quais pode exercer um juízo de conve-niência e oportunidade, e sobre o qual o Poder Judiciário não possui compe-tência revisora. Conforme observa Sergio Guerra, “a Administração é livre para eleger, dentro do amplo espaço que em cada caso lhe permite a lei e o

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222 GUERRA, Sergio. “Atualidades sobre o

controle judicial dos atos regulatórios”.

In: LANDAU, Elena (org.). Regulação

jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro:

Lumen Iuris, 2006, p. 174.

Direito, as razões (jurídicas, econômicas, sociais, técnicas, ambientais), a cur-to, médio e longo prazo, que servem de suporte a suas decisões”222.

Veja-se, a título ilustrativo, a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça, na qual se discutiu o limite da revisão do Poder Judiciário sobre ato administrativo exarado por agência reguladora: A partir da decisão abaixo, pode-se perceber que o STJ tem reconhecido a importância da atividade de-sempenhada pelas agências reguladoras, bem como a limitação da compe-tência revisional do Poder Judiciário sobre os atos das agências, conforme se constata na decisão da lavra do ministro Edson Vidigal, no caso do reajuste tarifário da CELPE, cujo trecho segue a seguir transcrito.

Em breve síntese, foi proposta ação civil pública pretendendo a declaração de nulidade do reajuste tarifário autorizado pela ANEEL, tendo o pedido de antecipação de tutela sido deferido em primeira instância, para suspender os efeitos da Resolução Homologatória e do Despacho ANEEL que haviam fi xado a nova tarifa. O juízo determinou, ainda, que a ANEEL fi xasse provi-soriamente novos percentuais para as tarifas, bem como fossem mantidos os valores anteriormente praticados até a divulgação das novas tarifas provisó-rias, em conformidade com a decisão judicial.

Tendo a decisão sido mantida em segunda instância, sobreveio pedido de suspensão da referida antecipação da tutela ao Superior Tribunal de Justiça, oca-sião em que assim se manifestou o ministro Edson Vidigal, ao deferir o pedido:

Quanto ao potencial lesivo da liminar em comento, a requerente en-fatizou que o questionado reajuste foi fi xado com base em critérios técni-cos, fi éis à manutenção do equilíbrio econômico-fi nanceiro do contrato de concessão vigente (Cláusula Sétima), determinados, inclusive, por componentes alheios à gestão da Concessionária, não havendo excesso.

É certo que na oportunidade da celebração do contrato de con-cessão da distribuidora de energia elétrica, conforme autorizado pela legislação pertinente, inseriram-se cláusulas prevendo mecanismos de manutenção de seu equilíbrio econômico-fi nanceiro, como o reajuste tarifário. Esses mecanismos têm origem na política tarifária previamen-te aprovada pelo Conselho Nacional de Desestatização — CND, e são vitais para que a prestação do serviço público possa se dar em con-formidade com os princípios constitucionais e legais incidentes, e que não só permitam, mas viabilizem a celebração de tais contratos entre o Poder Público e o particular que se disponha a negociar com a Admi-nistração, notadamente em se tratando de contratos de concessão com prolongado prazo de duração.

Assim já decidi em hipótese semelhante (SL 57-DF): o descumprimen-to de cláusulas contratuais, impedindo a correção do valor real da tarifa, nos termos em que previsto no contato de concessão, causa sérios prejuízos

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223 STJ, SLS nº 162, Rel. Min. Edson Vidi-

gal, DJ 20.09.2005.

fi nanceiros à empresa concessionária, podendo afetar gravemente a qua-lidade dos serviços prestados e sua manutenção, implicando ausência de investimentos no setor, prejudicando os usuários, causando refl exos nega-tivos na economia pública, porquanto inspira insegurança e riscos na con-tratação com a Administração Pública, afastando os investidores, resultan-do graves conseqüências também para o interesse público como um todo, além, é claro, de repercutir negativamente no chamado “Risco Brasil”.

(...)Por isso, em que pesem os argumentos do Pleno do TRF/5ª Região,

que ressaltou a complexidade e inacessibilidade do sistema tarifário de energia elétrica e necessidade de contenção dos prejuízos impostos à sociedade — matéria a ser tratada no mérito da ação —, vejo carac-terizados aqui os pressupostos necessários ao deferimento do pedido de suspensão, e o risco inverso, vez que a decisão é passível de causar grave lesão aos interesses públicos privilegiados, ordem administrativa e economia pública, Lei nº 8.437/92, art. 4º.

Assim, defi ro em parte o pedido, para suspender a decisão que ante-cipou a tutela nos autos da Ação Civil Pública nº 2005.83.00.008345-6, confi rmada pelo Pleno do TRF 5ª Região, até o julgamento do mé-rito perante o Tribunal de origem.223

A decisão supratranscrita demonstra a inclinação do Superior Tribunal de Justiça em preservar o marco regulatório em vigor, reconhecendo a importân-cia do equilíbrio econômico-fi nanceiro da concessão e da divisão de funções entre o Poder Executivo — formulador e executor de políticas públicas — e o Poder Judiciário, guardião do Estado de Direito. Conforme observado, a regulação possui uma dimensão prospectiva e de ordenação setorial, que não pode ser desconsiderada quando da análise jurídica das questões setoriais.

Por outro lado, os Tribunais pátrios não têm se furtado a declarar a nu-lidade de atos praticados pela Administração Pública quando afrontam os princípios constitucionais regedores da atuação administrativa, não mais se podendo dizer que tal controle se limita a critérios como legalidade e com-petência, mas inclui também revisão à luz de todos os princípios constitucio-nais, inclusive quanto à proporcionalidade e razoabilidade. Vejam-se, a título exemplifi cativo, as seguintes decisões do STJ:

ADMINISTRATIVO. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO ATIVO A RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE MEDICAMENTOS COM FÓRMULAS INSCRITAS NA FARMACOPÉIA BRASILEIRA. PRO-DUTOS FITOTERÁPICOS. ISENÇÃO. LIMINAR DEFERIDA.

(...) 2. A Lei nº 6.360/76, que disciplina a comercialização de pro-dutos farmacêuticos, é bastante clara ao estatuir, no art. 23, a desne-

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

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224 AgRg na MC 6146 / DF, 2a Turma do

STJ, j. em 12.08.2003, v.u.

225 Processo nº 200034000054157,

1a Turma do TRF da 1a Região, j. em

27.06.2001, v.u.

cessidade de registro para os medicamentos cujas fórmulas estejam inscritas na Farmacopéia Brasileira, situação na qual se enquadram os produtos fi toterápicos industrializados pela requerente.

3. A restrição imposta à requerente, consistente na apreensão, em todo o território brasileiro, dos produtos por ela comercializados, por falta de registro não exigido em lei, confi gura dano à sua imagem co-mercial, além de comprometer a própria existência da pessoa jurídica, impossibilitada que fi ca de exercer suas atividades comerciais, situação que coloca em risco, via refl exa, o emprego de inúmeros trabalhadores que ali ganham o seu sustento diário.

4. Não se pode atribuir conotação maniqueísta e discriminatória aos interesses comerciais da empresa requerente, tão-só porque confronta-dos, na espécie, com os sagrados princípios que dizem o direito à vida e à saúde da população brasileira, dos quais se coloca como guardiã a Agência requerida. (...)

7. Agravo regimental a que se nega provimento.224

ADMINISTRATIVO. TELECOMUNICAÇÕES. REGULAMEN-TA-ÇÃO DO PLANO GERAL DE OUTORGAS. DECRETO Nº 2.534/98. CONCEITO DE EMPRESA COLIGADA. DESCONSI-DERAÇÃO DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA RESOLU-ÇÃO Nº 101/99 DA ANATEL. INVASÃO DE CAMPO NORMATI-VO ALHEIO. SENTENÇA REFORMADA. APELAÇÃO PROVIDA.

1. O Plano Geral de Outorgas de Serviços de Telecomunicações, editado pelo Decreto nº 2.534/98, mediante autorização expressa da Lei 9.472/97, art. 18, II, veda a autorização para prestação de serviços de telecomunicações em geral a empresa coligada com outra prestadora de serviço telefônico fi xo, observados os demais termos do art. 10, § 2º.

2. O conceito de empresa coligada, havendo participação sucessiva de várias pessoas jurídicas, é fornecido pelo art. 15 e § único da referida disposição normativa, que manda considerar o valor fi nal da participa-ção por meio da composição das frações de controle de cada empresa na linha de encadeamento.

3. Tal conceito não pode ser alterado por critérios introduzidos pela Resolução 101/99 da ANATEL, porque refoge ao campo de compe-tência normativa adstrito à agência reguladora, não amparado pelo art. 19, XIX, da Lei 9.472/97.

4. Preliminares rejeitadas e apelação provida para determinar o exa-me do pedido administrativo com desconsideração dos dispositivos da aludida Resolução relativos à participação acionária sucessiva.

5. Sentença reformada. (Grifamos)225

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 163

226 Nas palavras de Sérgio Guerra:

“caso o Poder Judiciário anule uma

decisão regulatória discricionária por

inobservância, pelo agente regulador,

de elementos conformadores do ato,

o magistrado deve devolver o assunto

à Agência Reguladora para que exare

outra decisão, levando em considera-

ção todos os aspectos apontados pelo

Tribunal.” GUERRA, Sérgio. Controle judi-

cial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro:

Lúmen Iuris, 2005, p. 277.

227 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agên-

cias reguladoras e a evolução do direito

administrativo econômico. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, p. 353.

Ainda no que tange aos limites da revisão judicial dos atos administrati-vos, faz-se necessário enfrentar o tema da possibilidade de o juiz substituir a decisão proferida na esfera administrativa.

Como regra geral, tem-se que tal substituição é possível mas não devida, pois violaria o princípio da separação dos poderes. Com efeito, o juiz, ao anular uma decisão administrativa, não pode substituir o juízo de conveniên-cia e oportunidade que é próprio da Administração Pública, pois nem a Constituição nem as leis lhe outorgam tal competência226. Assim, deverá re-enviar a matéria para nova decisão pela entidade administrativa.

Excepcionalmente, em elogio ao princípio da efi ciência, parcela da doutri-na admite que, quando apenas uma solução legítima puder ser extraída do ordenamento jurídico, estará o juiz autorizado a determiná-la, substituindo o ato administrativo anulado.227

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Controle da Administração Pública

o Controle judicial (subitens 1 a 4)

Leitura complementar

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 584 a 593.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 349 a 383.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador 1:

O Sr. X encontra-se desconfi ado do preço que vem pagando pelo serviço de telefonia fi xa comutada à operadora local. Acredita que lhe possam estar sendo imputadas na conta telefônica ligações que, em verdade, não realizou.

Nesse sentido, procurou a operadora que lhe presta o serviço, exigindo que essa passasse a lhe fornecer relatório discriminado de todas as ligações

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efetuadas a partir do seu aparelho, detalhando o número de telefone chama-do e a quantidade de impulsos gastos por ligação.

Em resposta, a operadora alegou que não estaria obrigada a lhe prestar tal infor-mação, tendo em vista que a agência reguladora exarara resolução estabelecendo prazo para que as empresas efetivassem a digitalização de toda a rede (quando então os pulsos poderão ser discriminados ao usuário), o qual ainda não haveria expirado.

Inconformado, o Sr. X lhe procura, e solicita assessoria jurídica, especial-mente porque tem notícia de que o Código de Defesa do Consumidor asse-gura aos usuários de serviço público o direito à informação.

Considerando o disposto na Ordem Constitucional Econômica, a fun-ção jurisdicional do Poder Judiciário e o princípio da separação dos poderes, pergunta-se: como resolver o aparente confl ito entre o mandamento consti-tucional de tutela da defesa do consumidor e a delegação de competências normativas às agências reguladoras, que igualmente encontra legitimidade no ordenamento constitucional vigente? Deve o Poder Judiciário afastar a aplicação do ato normativo da agência reguladora? Sob qual argumento?

Caso gerador 2:

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face de uma concessionária de serviço móvel pessoal e da ANATEL sustentando a ilega-lidade e inconstitucionalidade da limitação temporal de créditos pré-pagos de telefonia móvel, admitida por força de resolução da agência reguladora. Pergunta-se:

a) O Ministério Público tem legitimidade para ajuizar referida demanda, ou somente os consumidores que se sentissem diretamente prejudicados pela norma poderiam fazê-lo?

b) Deve o Poder Judiciário julgar procedente a ação?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

Os atos administrativos submetem-se ao crivo do Poder Judiciário, revisão essa, no entanto, que deve ser consistente com o princípio da separação dos poderes.

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

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228 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Di-

reito Privado. 2a edição. Rio de Janeiro:

Editor Borsoi, 1966, Tomo LIII, p. 447.

UNIDADE VII — RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

AULA 21

I. TEMA

Responsabilidade civil do Estado.

II. ASSUNTO

Responsabilidade civil do Estado.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir as hipóteses em que o Estado responde civilmente por atos causa-dos por seus agentes ou por omissões no seu dever de agir.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A consagração da responsabilidade civil do Estado constitui imprescindí-vel mecanismo de defesa do cidadão face ao Poder Público. Mediante a pos-sibilidade de responsabilização, o administrado tem assegurada a certeza de que todo dano a direito seu ocasionado pela ação de qualquer agente público no desempenho de suas funções públicas será reparado pelo Estado. Funda-se nos pilares da equidade e da igualdade, como salienta Pontes de Miranda:

O Estado — portanto, qualquer entidade estatal — é responsável pe-los fatos ilícitos absolutos, como o são as pessoas físicas e jurídicas. O princípio de igualdade perante a lei há de ser respeitado pelos legislado-res, porque, para se abrir exceção à incidência de alguma regra jurídica sobre responsabilidade extranegocial, é preciso que, diante dos elementos fácticos e das circunstâncias, haja razão para o desigual tratamento.228

Celso Antônio Bandeira de Mello defi ne a responsabilidade civil do Esta-do nos seguintes termos: “Entende-se por responsabilidade patrimonial ex-tracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economica-mente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 166

229 MELLO, Celso Antônio Bandeira de.

Curso de Direito Administrativo. 4a edi-

ção. São Paulo: Malheiros, 1993, p.430.

230 CZAJKOWSKI, Rainer. Sobre a Res-

ponsabilidade Civil do Estado. Jurispru-

dência Brasileira: cível e comércio. Curiti-

ba: Juruá, 1993, no. 170, pp.11/12.

sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.229

A responsabilidade estatal não se confunde com a de seu funcionário, uma vez que este último, no exercício de suas funções, pode causar dano tanto a bens estatais quanto a de particulares. Em ambos os casos, comprovada sua culpa, deverá ressarcir os prejuízos causados.

Entretanto, o cidadão lesionado em seu direito por ato decorrente do agir estatal não depende desta prova (de culpa do agente público) para obter in-denização, pois pode acionar diretamente o Estado, que responderá sempre que demonstrado o nexo de causalidade entre o ato do seu funcionário e o dano injustamente sofrido pelo indivíduo. Trata-se, portanto, de responsabi-lidade objetiva: a culpa do administrador apenas será discutida caso o Estado ingresse com ação de regresso. Assim:

(...) diz-se que a responsabilidade deste [o Estado] é objetiva, porque não se impõe ao particular, lesado por uma atividade de caráter público (ou alguma omissão), que demonstre a culpa do Estado ou de seus agentes. Sinteticamente, a responsabilidade do Estado se caracteriza pelo preenchimento dos seguintes pressupostos: 1) que se trate de pes-soa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de ser-viços públicos; 2)que estas entidades estejam prestando serviço públi-co; 3) que haja um dano causado a particular; 4) que o dano seja causado por agente (a qualquer título) destas pessoas jurídicas e; 5) que estes agentes, ao causarem dano, estejam agindo nesta qualidade.230

O ordenamento jurídico brasileiro abraçou a tese da responsabilidade civil do Estado na Constituição Federal, artigo 37, §6o. Segundo a Magna Carta:

Art. 37. (...)§6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito priva-

do prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa.

Igualmente, determina o Código Civil de 2002:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmen-te responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

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FGV DIREITO RIO 167

231 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Curso de Direito Administrativo. 14a ed.

Rio de Janeiro: Forense, p. 588.

232 CAETANO, Marcelo. Princípios Funda-

mentais do Direito Administrativo. Rio

de Janeiro: Forense, 1977 p. 544.

233 MELLO, Celso Antonio Bandeira de.

Curso de direito administrativo , p. 453.

234 CAHALI, Y. Responsabilidade Civil do

Estado. 2a edição, 2a tiragem. São Paulo:

Malheiros, 1996, pp. 96 e 97.

235 TEPEDINO, Gustavo. Evolução da

Responsabilidade Civil no Direito Brasi-

leiro e suas Controvérsias na Atividade

Estatal. In: Temas de Direito Civil. Rio de

Janeiro: Editora Renovar, p. 176.

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro abraçou a tese da responsabili-dade civil do Estado, decorrente da teoria do risco da atividade desenvolvida.

Defende Diogo de Figueiredo Moreira Neto a superioridade desta teoria sobre as demais, afi rmando que: “(...) a teoria do risco administrativo não vai ao ponto de ignorar a culpa concorrente ou exclusiva do prejudicado na cau-sação do evento, pois, na realidade, seria iníquo que o Estado, ou seja, toda a comunidade, respondesse pela composição de um dano para o qual a vítima concorreu com culpa”.231

Marcelo Caetano, por sua vez, esclarece que a justifi cativa ético-jurídica da adoção desta teoria está em que “os riscos acarretados pelas coisas ou ativida-des perigosas devem ser corridos por quem aproveite os benefícios da existên-cia dessas coisas ou do desenrolar de tais atividades (...). A Administração deve responder pelos riscos resultantes de atividades perigosas ou da existên-cia de coisas perigosas, quando não tenha havido força maior estranha ao funcionamento dos serviços (...) na origem dos danos e não consiga provar que estes foram causados por culpa de quem os sofreu”. 232

São, portanto, requisitos para o nascimento do dever ressarcitório do Esta-do, consoante a teoria do risco administrativo, hoje a mais difundida:

a) a existência de um dano correspondente a “lesão a um direito da víti-ma”233, certo e injusto (para os adeptos da teoria subjetiva em caso de omissão do poder público, estes casos exigem, ainda, o comportamento culposo da administração, conforme adiante explanado);

b) o responsável pelo ato deve se revestir da qualidade de funcionário da Administração Pública;

c) é preciso que haja nexo de causalidade entre o ato comissivo ou omissi-vo da Administração e o dano causado. Ressalte-se que, na apuração da cau-salidade, o STF abraça a teoria da interrupção do nexo causal, ou do dano direto e imediato, que proclama existir nexo causal apenas quando o dano é o efeito direto e necessário de uma causa.234

Conforme frisa Gustavo Tepedino, a adoção da responsabilidade objetiva se coaduna com os princípios constitucionais da República:

Com efeito, os princípios da solidariedade social e da justiça distri-butiva, capitulados no art. 3o., incisos I e III, da Constituição, segundo os quais se constituem em objetivos fundamentais da República a cons-trução de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradica-ção da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades so-ciais e regionais, não podem deixar de moldar os novos contornos da responsabilidade civil. (...) Impõem, como linha de tendência, o cami-nho da intensifi cação dos critérios objetivos de reparação do dano e do desenvolvimento de novos mecanismos de seguro social.235

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REGULAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

FGV DIREITO RIO 168

236 TEPEDINO, Gustavo. “A Evolução da

responsabilidade civil no direito brasi-

leiro e suas controvérsias na atividade

estatal”. In: Temas de Direito Civil. Rio de

Janeiro: Editora Renovar, pp. 191 e 192.

Cumpre mencionar que a referência é

ao artigo 15 do Código Civil de 1916,

já revogado.

Responsabilidade civil do Estado por ato omissivo

Conforme acima visto, em relação ao ato comissivo do agente adminis-trativo, encontra-se consagrada a tese de que o Estado é responsável objeti-vamente pelos danos causados, devendo ressarcir à vítima a integralidade dos prejuízos sofridos. Todavia, quanto ao ato omissivo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são vacilantes, sendo que ainda é majoritária a tese de que neste caso impera a responsabilidade subjetiva, sendo necessária a comprova-ção de negligência do Poder Público. Entende-se que a omissão é sufi ciente para caracterizar a culpa, caso se comprove que a situação impunha um dever de agir ao Estado, por intermédio de seus órgãos.

Desde o advento da Constituição de 1988, Gustavo Tepedino sustenta ser a responsabilidade do Estado objetiva tanto por ato comissivo quanto por ato omissivo. Nesse sentido, ainda sob a égide do Código Civil de 1916 (revoga-do pela Lei nº 10.406/2002), já afi rmava:

Não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de legislador constituinte — ubi lex non dis-tinguit nec nos distinguere debemus. A Constituição Federal, ao introdu-zir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base nos princípios axiológicos e normativos (dos quais se destaca o da isonomia e o da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade o art. 15 do Código Civil, que se torna, assim, revogado ou, mais tecnicamente, não foi recepcionado pelo sistema constitucional.

Nem de objete que tal entendimento levaria ao absurdo, confi gu-rando-se uma espécie de panresponsabilização do Estado diante de to-dos os danos sofridos pelos cidadãos, o que oneraria excessivamente o erário e suscitaria uma ruptura no sistema da responsabilidade civil. A rigor, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado comporta causas excludentes, que atuam, como acima já aludido, sobre o nexo causal entre o fato danoso (a ação administrativa) e o dano, e tal sorte a miti-gar a responsabilização, sem que, para isso, seja preciso violar o texto constitucional e recorrer à responsabilidade aquiliana.236

Para Marçal Justen Filho, a responsabilidade civil do Estado por ato omis-sivo pode ser desdobrada em pelo menos duas situações distintas:

Os casos de ilícito omissivo próprio são equiparáveis aos atos comissi-vos, para efeitos de responsabilidade civil do Estado. Assim, se uma norma estabelecer que é obrigatório o agente público praticar certa ação, a omis-são confi gura atuação ilícita e gera a presunção de formação defeituosa da

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237 Curso de direito administrativo. São

Paulo: Malheiros, 2005, p. 600.

vontade. O agente omitiu a conduta obrigatória ou por atuar intencional-mente ou por formar defeituosamente sua própria vontade — a não ser que a omissão tenha sido o resultado intencional da vontade orientada a produzir uma solução conforme ao direito e por ela autorizada.

O grande problema são as hipóteses de ilícito omissivo impróprio, em que o sujeito não está obrigado a agir de modo determinado e específi co. Nesses casos, a omissão do sujeito não gera presunção de infração ao dever de diligência. É imperioso, então, verifi car concreta-mente se houve ou não infração ao dever de diligência que recai sobre os exercentes de função estatal. Se existiam elementos fáticos indicati-vos do risco de consumação de um dano, se a adoção das providências necessárias e sufi cientes para impedir esse dano era da competência do agente, se o atendimento ao dever de diligência teria conduzido ao im-pedimento da adoção das condutas aptas a gerar o dano — então, estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil.

Essa concepção conduz à responsabilização civil do Estado em ques-tões de fi scalização institucional e permanente, sempre que o exercício ordinário das competências de acompanhamento dos fatos permitisse inferir a probabilidade de resultado danoso a terceiro.237

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Responsabilidade civil do Estado

o Introduçãoo Evoluçãoo Direito brasileiroo Aplicação da responsabilidade objetivao Reparação do danoo O Direito de regresso

Leitura complementar

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Ma-lheiros, 2006, pp. 791 a 813.

MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 586 a 590.

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VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Houve um desabamento nas obras de construção do Metrô de São Paulo.As obras foram contratadas pela Companhia do Metropolitano de São

Paulo (uma sociedade de economia mista) com um consórcio de empreiteiras (Consórcio Via Amarela), vencedora do certame licitatório.

Apesar de o Consórcio Via Amarela ser o executor das obras na linha 4 do metrô, o governo do Estado e a própria estatal estão sendo responsabilizados pela possível falha técnica que tenha provocado o desabamento do canteiro de obras, segundo o Ministério Público de São Paulo, a Defensoria Pública e especialistas em direito administrativo.

Para eles, o Estado tinha o dever de fi scalizar a obra e pode responder na esfera cível pelas consequências do acidente que provocou a morte de sete pessoas, na última sexta-feira. O Estado, por sua vez, afi rma que o consórcio deve assumir toda a responsabilidade pelo acidente.

À luz do caso acima, indaga-se:1 A responsabilidade civil é do Estado, como consta da nota acima, ou do

Metrô, ou das consorciadas que realizaram a obra?2. Caso você entenda ser possível a responsabilização do Estado, ela seria

por ato comissivo ou omissivo? Seria objetiva ou subjetiva?2. No caso acima, pode-se dizer que houve culpa in eligendo ou culpa in

vigilando?

VII. CONCLUSÃO DA AULA

O Estado responde objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Existe controvérsia doutrinária acerca da na-tureza da responsabilidade administrativa do Estado na hipótese de ato omis-sivo, sendo ainda majoritária a tese que sustenta a responsabilidade subjetiva nesses casos. A responsabilização do agente público é subjetiva, dependendo da comprovação de dolo ou culpa.

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238 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 15a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006,

p. 491.

239 Manual de direito administrativo, p.

491.

UNIDADE VIII: AGENTES ESTATAIS

AULAS 22 E 23

I. TEMA

Regime jurídico dos agentes estatais.

II. ASSUNTO

Regime jurídico dos agentes estatais: classifi cação, prerrogativas, vedações. Sindicância e processo administrativo disciplinar.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Apresentar as diferentes espécies de relação entre o Estado e os agentes es-tatais, classifi cando a natureza dos vínculos. Discutir as prerrogativas e veda-ções em cada uma das hipóteses. Discutir as consequências do cometimento de falhas funcionais dos servidores públicos, comentando a sindicância e o processo administrativo disciplinar, com ênfase na Lei 8.112/90, que rege esses temas na esfera federal,

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

A maioria das funções administrativas é desempenhada por servidores pú-blicos, os quais, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho:

São todos os agentes que, exercendo com caráter de permanência uma função pública em decorrência de relação de trabalho, integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das funda-ções públicas de natureza autárquica.238

Portanto, “os servidores públicos fazem do serviço público uma profi ssão, como regra de caráter defi nitivo, e se distinguem dos demais agentes públicos pelo fato de estarem ligados ao Estado por uma efetiva relação de trabalho”239.

Até a Emenda Constitucional 19/98 vigeu o Regime Jurídico Único, se-gundo o qual todos os servidores da Administração Pública deveriam seguir

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240 Manual de direito administrativo, pp.

491 e 492.

o regime estatutário. A partir de 1998, entretanto, por força das alterações introduzidas pela citada emenda, a Administração Pública tinha passado a possuir dois regimes jurídicos básicos para reger a sua relação com os servi-dores, quais sejam, o (i) regime jurídico estatutário e (ii) o regime jurídico celetista. Veja-se o texto constitucional:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I — os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasi-leiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

II — a investidura em cargo ou emprego público depende de apro-vação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

A distinção dos regimes é realizada por José dos Santos Carvalho Filho da seguinte forma:

Servidores públicos estatutários são aqueles cuja relação jurídica de trabalho é disciplinada por diplomas legais específi cos, denominados de estatutos. Nos estatutos estão inscritas todas as regras que incidem sobre a relação jurídica, razão por que nelas se enumeram os direitos e deveres dos servidores e do Estado.

(...)A segunda categoria é a dos servidores públicos trabalhistas (ou ce-

letistas), assim qualifi cados porque as regras disciplinadoras de sua rela-ção de trabalho são as constantes da Consolidação das Leis do Traba-lho. Seu regime básico, portanto, é o mesmo que se aplica à relação de emprego no campo privado, com as exceções, é lógico, pertinentes à posição especial de ambas as partes — o Poder Público.240

Assim, o primeiro regime tem fulcro em um conjunto de normas que disciplinam a relação entre o servidor público e a Administração, ao passo que o segundo tem natureza contratual. No primeiro regime, após período probatório, o funcionário adquire direito à estabilidade no cargo, o que não se aplica aos servidores celetistas.

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241 Manual..., 24ª ed. p. 555-556.

Todavia, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (Med. Liminar) 2135-4, decidida em Plenário no dia 02.08.2007 e cujo acórdão foi publicado em 07.03.2008, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, vencidos os Ministros Nelson Jobim, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa, deferiu parcial-mente a medida cautelar para suspender a efi cácia do artigo 39, caput, da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 019, de 04 de junho de 1998, tudo nos termos do voto do relator originário, Minis-tro Néri da Silveira.

Essa reforma da Constituição não passou em dois turnos na Câmara dos De-putados e, por isso, os ministros derrubaram a mudança devido ao vício formal de aprovação no Congresso. Assim, voltou a vigorar o Regime Jurídico Único.

Sobre a questão do Regime Jurídico Único, vale trazer observação de José dos Santos Carvalho Filho:241

A unicidade de regime jurídico alcança tão-somente os servidores permanentes. Para os servidores temporários, continua subsistente o regime especial como previsto no art. 37, IX, da CF. Portanto, será sempre oportuno destacar que a expressão “regime único” tem que ser considerada cum grano salis, para entender-se que os regimes de pessoal são dois — um regime comum (tido como regime único) e outro, o regime especial (para servidores temporários).

A Constituição também admite a contratação de servidores públicos tem-porários, por prazo determinado, para atender a casos de excepcional interes-se público. Nesse sentido, determina o art. 37, IX:

Art. 37. (...)IX — A lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determina-

do para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;(...)

Referida lei deve ser editada por cada ente federativo (União, Estados e municípios). No âmbito federal, a Lei nº 8.745/1993 dispõe sobre a contra-tação temporária de servidores.

Por fi m, vale mencionar que também podem ser admitidas na Administração Pública pessoas estranhas aos seus quadros, na hipótese de cargos comissionados (que podem ser preenchidos por funcionários de carreira ou não). A previsão de cargos comissionados encontra-se no art. 37, II da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

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242 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 17a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007,

p. 528

243 Id. Ibid., p. 529.

244 Id.

obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência e, também, ao seguinte: 

(...)II — a investidura em cargo ou emprego público depende de apro-

vação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em co-missão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

Dos Cargos Públicos

Os servidores públicos estatutários ocupam cargos. Cargo público é o lu-gar dentro da organização funcional da Administração Direta e de suas autar-quias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específi cas e remuneração fi xadas em lei ou diploma a ela equivalente.242

Cargo não se confunde com função de confi ança, prevista no art. 37, V da Constituição Federal. Função corresponde “ao exercício de algumas funções específi cas por servidores que desfrutam da confi ança de seus superiores, os quais, por isso mesmo, percebem certa retribuição adicional para compensar tal especifi cidade. Retratam, em última análise, modalidade de gratifi cação, paga em virtude do tipo especial de atribuição e, somente podem ser exerci-das por servidores que ocupem cargo efetivo.”243

Há três distintas espécies de cargos: os vitalícios, os efetivos e em comissão.

Vitalícios: aqueles que oferecem a maior garantia de permanência a seus ocupantes.

Efetivos: constituindo a grande maioria, são aqueles que se revestem do caráter de permanência.

Cargo em comissão (ou de confi ança): são aqueles de ocupação transitó-ria, e seus titulares são nomeados em função da relação de confi ança.244

No âmbito federal, a Lei que rege a matéria é a Lei nº 8112, de 11/12/1990. Nessa lei são tratadas questões como: acessibilidade (a regra é o concurso pú-blico), provimento, investidura, reingresso, vacância, estabilidade etc.

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Vedação de Acumulação de Cargos

A Constituição da República de 1988 consagrou a vedação de acumulação remunerada de cargos, empregos ou funções públicas, mantendo as ressalvas à acumulação nestes casos:

a) situação de professor com outra de idêntica natureza;b) situação de professor com outra técnica ou científi ca;c) duas situações privativas de médico; exigindo-se, tão-somente, o

requisito da compatibilidade de horários, a teor destas disposições.

A questão está disposta no art. 37 da Constituição de 1988:

Art. 37.XVI — é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, ex-

ceto quando houver compatibilidade de horários:a) a de dois cargos de professor;b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científi co;c) a de dois cargos privativos de médico;XVII — a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e

abrange autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público;

Além das exceções previstas acima, observada, por óbvio, a compatibilida-de de horários, fi caram efetivamente assegurados os seguintes direitos:

a) aos magistrados e membros do Ministério Público, o exercício da fun-ção pública de magistério (arts. 95, parágrafo único, I; e 128, § 5º, II, c,

respectivamente);b) ao médico militar, o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos

privativos de médico que estivessem, na data da Constituição, sendo exerci-dos na Administração Pública Direta ou Indireta (art. 17, § 1º, do ADCT);

c) o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de profi s-sionais de saúde que estivessem, em 05/10/88, sendo exercidos na Adminis-tração Direta e Indireta (art. 17, § 2º, do ADCT).

No caso, por exemplo, dos magistrados, a Constituição Federal foi expressa:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:Parágrafo único. Aos juízes é vedado:I — exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função,

salvo uma de magistério;

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245 Manual de Direito Administrativo. Ob.

Cit., p. 567.

Malgrado o texto expresso, a interpretação doutrinária seguiu na linha de que essa limitação referia-se, apenas, a instituições públicas. Veja-se, por exemplo, a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho:

“A ressalva quanto à permissividade — uma única função de magis-tério — limita-se a cargos ou funções em instituições pertencentes à Administração, seja centralizada, seja descentralizada (...). Por outro lado, como a restrição do texto — uma única função — se refere a instituições administrativas, nada impede que, alem do cargo de ma-gistério nessas instituições, o magistrado tenha contrato com insti-tuições ou cursos do setor privado, desde que, obviamente, haja com-patibilidade de horários com o exercício da judicatura. Da mesma forma, é legítimo que, não ocupando cargo em estabelecimento públi-co, tenha um ou mais contratos com instituições privadas para a função de professor.”245

Acerca dessa questão, o Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, “alon-gou” essa interpretação e permitiu que magistrado ocupasse função de Dire-tor de Escola de Magistratura. Veja a ementa do Pedido de Providências n. 775.106, cujo julgamento foi por maioria de votos:

EMENTA: Pedido de Providências. Vedações impostas aos magis-trados.

Consulta formulada por servidor público. Conhecimento. Vigência da LOMAN. Premissa fundamental. Conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, está em plena vigência os dispositivos da Lei Complementar no. 35179, particularmente sobre os deveres e vedações aos magistrados. Matéria, aliás, também já apreciada no CNJ quando da edição da Resolução no. 10105. Regras complementadas pelo art. 95 e parágrafo único da Constituição Federal. Prevalência do princípio da dedicação exclusiva, indispensável a função judicante. Não pode o magistrado exercer comércio ou participar, como diretor ou ocupante de cargo de direção, de sociedade comercial de qualquer espécie/na-tureza ou de economia mista (art. 36, 1 da LOMAN). Também está impedido de exercer cargo de direção ou de técnico de pessoas jurí-dicas de direito privado (art. 44 do Código Civil c/c art. 36, 11 da LOMAN). Ressalva-se apenas a direção de associação de classe ou de escola de magistrados e o exercício de um cargo de magistério. Não pode, consequentemente, um juiz ser presidente ou diretor de Rotary, de Lions, de APAEs, de ONGs, de Sociedade Espírita, Rosa-Cruz, etc, vedado também ser Grão Mestre da Maçonaria; síndico de edifício em condomínio; diretor de escola ou faculdade pública ou particular, entre

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outras vedações. Consulta que se conhece respondendo-se afi rmativa-mente no sentido dos impedimentos.

Veja-se a manifestação do Relator, Desembargador Marcus Faver, ao sus-tentar essa “interpretação”:

“Por fi m, a questão das escolas de magistratura me parece que haja uma diferença básica e absolutamente visível. Há um cargo que é o de direção da escola, que é um cargo executivo; portanto, pareceria vir de encontro ao que sustento. Mas atividade da escola é, ainda que a escola não seja um órgão interno, uma atividade própria do Judiciá-rio, de formação e aperfeiçoamento de juízes. Então, é evidente que é possível ao juiz exercitar cargo de direção de escola.”

Como se vê, a interpretação quanto à acumulação de cargos por Magis-trados mereceu apreciação do Conselho Nacional de Justiça — CNJ no caso concreto.

Empresas Estatais

Quanto às empresas públicas e sociedades de economia mista que, confor-me se sabe, integram a Administração Pública Indireta com natureza jurídica de pessoa de direito privado, o art. 173, §1º, II, da Constituição Federal, em sua atual redação, determina que tais entidades adotem o regime celetista, pois o texto constitucional as equipara às empresas privadas no que tange às obrigações trabalhistas:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a ex-ploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme defi nidos em lei.

§1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da so-ciedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem ativida-de econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

(...)II — a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas,

inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

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246 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 17a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007,

p. 846.

247 Idem, p. 848.

248 Idem, 849.

Processo administrativo disciplinar

Dentre a generalidade dos processos administrativos, destaca-se a espécie dos processos administrativos disciplinares, a qual tem por fi nalidade a averi-guação da ocorrência de um ilícito administrativo para, se for o caso, impor uma sanção de natureza administrativa ao agente público que descumpre seus deveres funcionais.

Não há uma base normativa específi ca que discipline a matéria. Incide, para esse tipo de processo, o princípio da disciplina reguladora difusa.246 As regras se encontram nos estatutos funcionais das diversas pessoas federativas (cada pes-soa administrativa tem autonomia para instituir o seu estatuto funcional).

Sindicância

Uma das fases da apuração da existência de alguma infração funcional é a sindicância. É uma apuração preliminar dos fatos, colhendo os seguintes in-dícios: i) existência de infração funcional; ii) autoria e iii) elemento subjetivo com que se conduziu o responsável.247

Em âmbito federal, a sindicância não se confunde com o Inquérito Admi-nistrativo.248 Este tem sinônimo de instrução. Portanto, não se trata de insti-tuto autônomo, e, sim, de uma das fases do processo disciplinar principal. Esse é o sentido empregado na normativa federal (Lei nº 8112/90):

Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sin-dicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.

Art. 145. Da sindicância poderá resultar: I — arquivamento do processo; II — aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30

(trinta) dias; III — instauração de processo disciplinar. Parágrafo único. O prazo para conclusão da sindicância não excede-

rá 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por igual período, a critério da autoridade superior.

Art. 146. Sempre que o ilícito praticado pelo servidor ensejar a im-posição de penalidade de suspensão por mais de 30 (trinta) dias, de de-missão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou destituição de cargo em comissão, será obrigatória a instauração de processo disciplinar.

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Art. 151. O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases: I — instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão; II — inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e

relatório; III — julgamento.

Merece ser lembrado que Estados e municípios têm autonomia para le-gislar sobre seus respectivos processos disciplinares, tendo a Lei 8.112/90 natureza federal.

Processo Administrativo Disciplinar

Processo Administrativo Disciplinar é todo aquele que tem por objeto a apuração de ilícito funcional. Apurado o ilícito, aplica-se a respectiva sanção. A Lei 8.112/90 disciplina o tema em sede federal:

Do Processo Disciplinar

Art. 148. O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.

Art. 149. O processo disciplinar será conduzido por comissão com-posta de três servidores estáveis designados pela autoridade competen-te, observado o disposto no § 3o do art. 143, que indicará, dentre eles, o seu presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado.

§ 1o A Comissão terá como secretário servidor designado pelo seu presidente, podendo a indicação recair em um de seus membros.

§ 2o Não poderá participar de comissão de sindicância ou de inqué-rito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consanguíneo ou afi m, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau.

Art. 150. A Comissão exercerá suas atividades com independência e imparcialidade, assegurado o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da administração.

Parágrafo único. As reuniões e as audiências das comissões terão ca-ráter reservado.

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Art. 151. O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases: I — instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão; II — inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e

relatório; III — julgamento.

Art. 152. O prazo para a conclusão do processo disciplinar não ex-cederá 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem.

§  1o Sempre que necessário, a comissão dedicará tempo integral aos seus trabalhos, fi cando seus membros dispensados do ponto, até a entrega do relatório fi nal.

§ 2o As reuniões da comissão serão registradas em atas que deverão detalhar as deliberações adotadas.

Na esfera federal, são cabíveis as seguintes penalidades:

Art. 127. São penalidades disciplinares: I — advertência; II — suspensão; III — demissão; IV — cassação de aposentadoria ou disponibilidade; V — destituição de cargo em comissão; VI — destituição de função comissionada

Essas penalidades são aplicadas observando-se as seguintes regras:

Art. 128. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natu-reza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

Parágrafo  único. O ato de imposição da penalidade mencionará sempre o fundamento legal e a causa da sanção disciplinar. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

Art. 129. A advertência será aplicada por escrito, nos casos de vio-lação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII e XIX, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifi que imposição de penalidade mais grave.

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249 CARVALHO FILHO, José dos Santos.

Manual de direito administrativo. 17a

ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007,

p.906.

Art.  130. A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifi quem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias.

§ 1o Será punido com suspensão de até 15 (quinze) dias o servidor que, injustifi cadamente, recusar-se a ser submetido a inspeção médica determinada pela autoridade competente, cessando os efeitos da pena-lidade uma vez cumprida a determinação.

§ 2o Quando houver conveniência para o serviço, a penalidade de suspensão poderá ser convertida em multa, na base de 50% (cinqüenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração, fi cando o servidor obrigado a permanecer em serviço.

Art. 131. As penalidades de advertência e de suspensão terão seus registros cancelados, após o decurso de 3 (três) e 5 (cinco) anos de efeti-vo exercício, respectivamente, se o servidor não houver, nesse período, praticado nova infração disciplinar.

Parágrafo único. O cancelamento da penalidade não surtirá efeitos retroativos.

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: I — crime contra a administração pública; II — abandono de cargo; III — inassiduidade habitual; IV — improbidade administrativa; V — incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; VI — insubordinação grave em serviço; VII — ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em

legítima defesa própria ou de outrem; VIII — aplicação irregular de dinheiros públicos; IX — revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; X — lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional; XI — corrupção; XII — acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; XIII — transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

Como se vê, acima, um dos motivos ensejadores da demissão do servidor é a denominada improbidade administrativa. Segundo Carvalho Filho,249 a ação de improbidade administrativa é aquela em que se pretende o reconhecimento judi-cial de condutas de improbidade na Administração, perpetradas por administra-dores públicos e terceiros, e a consequência é a aplicação das sanções legais, com o escopo de preservar o princípio da moralidade. Ela será o tema da última aula.

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V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Servidor público

o Agentes públicoso Servidores públicoso Regimes jurídicos funcionaiso Organização funcionalo Regime constitucional (subitens 1 a 4)o Responsabilidade dos servidores públicos

• Processo administrativo (subitem 7.7 — Processo administrativo-dis-ciplinar)

Leitura complementar

MOREIRA NETO, Diogo. Curso de direito administrativo. 14a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, capítulo XII.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

Trata-se de aplicação de pena de demissão, pelo Ministro da Justiça, a poli-cial do Departamento de Polícia Rodoviária Federal do Ministério da Justiça, em razão da prática de irregularidades na comprovação das despesas realiza-das com transporte público, para fi ns de recebimento do auxílio-transporte, o que lhe teria rendido um proveito pessoal próprio da ordem de R$ 36,80.

A seu ver, mostra-se proporcional a sanção aplicada face ao delito admi-nistrativo cometido? Pode o Poder Judiciário rever o ato administrativo de demissão? Sob qual fundamento?

Considere, em sua análise, a decisão proferida pelo STJ no mandado de segurança nº 10.827.

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VII. CONCLUSÃO DA AULA

Nestas duas aulas tivemos oportunidade de entender como se organizam os cargos e funções no âmbito da Administração Pública, bem como tomar conhecimento das espécies de vínculo que pode haver entre agentes estatais e o Estado, as suas características, prerrogativas e impedimentos. Verifi camos, ainda, que faltas funcionais podem ensejar responsabilização do servidor pú-blico, devendo ser precedida de processo administrativo disciplinar, no qual devem ser assegurados o contraditório e a ampla defesa.

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AULA 24

I. TEMA

Improbidade administrativa. Abuso de autoridade

II. ASSUNTO

Análise da Lei de Improbidade Administrativa e a sua importância para a concretização do princípio da moralidade. Tecer breves comentários sobre atos que caracterizam abuso de autoridade.

III. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Tratar dos atos que caracterizam violação do dever de probidade admi-nistrativa pelos agentes públicos e as suas consequências. Apresentar breves comentários sobre a Lei de Abuso de Autoridade.

IV. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Os agentes públicos possuem determinados deveres intrínsecos ao cargo e função que desempenham, consagrados, em grande parte, na própria Cons-tituição Federal, em especial aqueles listados no caput do art. 37.

No âmbito destes deveres de observância obrigatória pelos agentes públi-cos se encontra o dever de probidade administrativa. A essência deste dever se correlaciona com conceitos como os de honestidade e lealdade.

A probidade administrativa compreende a exigência de um comportamen-to ético, isto é, para fi ns de proteção da probidade administrativa, o agente público deve agir orientado e pautado por princípios éticos e em conformi-dade com o que a lei dispõe. O agir do agente público em desconformidade com a probidade administrativa o sujeita a diversas sanções nas esferas cível, administrativa, criminal e política, nos termos do que estabelece o artigo 37, § 4º, da Constituição da República de 1988:

§ 4º — Os atos de improbidade administrativa importarão a sus-pensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indispo-

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250 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Curso de Direito Administrativo. 15ª ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 359.

251 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Di-

reito Administrativo”. 23ª ed. São Paulo:

Atlas, 2010, p. 826.

nibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Sobre o tema, é clássica a lição doutrinária de Diogo de Figueiredo Mo-reira Neto:

Este dever, simplesmente de probidade, ou de probidade administra-tiva, como se lê na Constituição (art. 37, § 4º), vem a ser a particulari-zação do dever ético geral de conduzir-se honestamente (honeste vivere).

O referido mandamento constitucional prevê lei federal (Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992), que defi ne os atos de improbidade administrativa, simples e qualifi cados (arts. 9, 10, 11) e estabelece penas específi cas, independentemente das cominadas em outros diplomas.250

Inspirada nesta previsão constitucional, a Lei nº 8.429/92 foi promulgada para regulamentar os atos de improbidade administrativa e suas respectivas sanções.

Elementos do ato de improbidade administrativa

A Lei nº 8.429/92 enumera os atos tidos como ímprobos e as sanções aplicáveis a quem os comete.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro analisa em sua obra os elementos constitu-tivos que compõem os atos de improbidade, quais sejam:

“a) sujeito passivo: umas das entidades mencionadas no artigo 1º da Lei n. 8.429;

b) sujeito ativo: o agente público ou terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se benefi cie sob qualquer forma di-reta ou indireta (arts. 1 º e 3º);

c) ocorrência de ato danoso descrito na lei, causador de enriquecimento ilícito para o sujeito ativo, prejuízo para o erário ou atentado contra os prin-cípios da Administração Pública; o enquadramento do ato pode dar-se iso-ladamente, em uma das três hipóteses, ou, cumulativamente, em duas ou três;

d) elemento subjetivo: dolo ou culpa.”251

Para fi ns didáticos, o tema será tratado adotando a divisão dos elementos acima.

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252 Art. 1º da Lei nº 8.429/92.

253 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso

de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2012, p. 638.

Sujeitos do ato de improbidade administrativa

O sujeito passivo dos atos de improbidade administrativa é toda entidade atingida pelo ato ímprobo praticado. Desse modo, quaisquer entidades inte-grantes da Administração Pública Direta e Indireta podem ser afetadas pela prática de atos de improbidade. A Lei de Improbidade Administrativa252 in-cluiu no rol de sujeitos passivos dos atos de improbidade as empresas incor-poradas ao patrimônio público ou entidades para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do pa-trimônio ou da receita anual, e também as entidades que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fi scal ou creditício, de órgão público, bem como aquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limi-tando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

Por sua vez, considera-se sujeito ativo do ato de improbidade a pessoa que efetivamente o pratica ou que tenha contribuído ou sido benefi ciada pela sua prática. Assim, são sujeitos ativos o agente público, servidor ou não, e o terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se benefi cie sob qualquer forma direta ou indireta.

Ato Danoso

A Lei nº 8.429/92 elenca nos seus artigos 9º a 11 os atos de improbidade administrativa, dividindo-os em três modalidades distintas.

Comentando a divisão feita pela referida lei, Alexandre dos Santos de Ara-gão assevera que:

“Os tipos a serem punidos segundo a lei de ação de improbidade administrativa, muitas vezes de baixa densidade normativa, podem consistir (a) em atos ou omissões que importem enriquecimento ilícito do agente público ou de particular, independentemente de prejuízo aos cofres públicos (art. 9º); (b) que, ao contrário, gerem prejuízo aos co-fres públicos independentemente de enriquecimento de quem quer que seja (art. 10); ou que, simplesmente, (c) violem princípios da Ad-ministração Pública, mesmo que não tenha causado nenhum prejuízo à Administração Pública ou enriquecimentos ilícitos;”253

Desse modo, o art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa determina que constitui ato de improbidade importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de

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cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° da própria lei.

Por sua vez, o art. 10 da referida lei determina que constitui ato de impro-bidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malba-ratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º da própria lei.

Finalmente, o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa determina que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princí-pios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições.

Ao defi nir atos de improbidade da forma acima, utilizando conceitos in-determinados e abertos, o legislador permite que o intérprete-julgador apure as circunstâncias dos casos levados ao seu conhecimento para considerá-los ou não como ato de improbidade. Os incisos dos referidos artigos elencam determinadas práticas que o legislador a priori pode seguramente considerar como ímproba, não excluindo, porém, a possibilidade de consumação de atos de improbidade fora do rol exemplifi cativo contido nestes incisos.

Especifi camente em relação ao art. 11, que prevê que constitui ato de im-probidade aquele que atente contra os princípios da Administração Pública, cabe destacar que, para se confi gurar um ato como ímprobo, não é necessária a demonstração da ocorrência de dano ou de enriquecimento ilícito, sendo sufi ciente a prova da violação aos princípios tutelados por esse dispositivo.

Dolo ou Culpa

O elemento subjetivo mostra-se essencial para a confi guração do ato de improbidade administrativa; ou seja, faz-se necessária a demonstração de dolo ou culpa do agente público. Daí decorre que nem todo ato ilegal pode ser caracterizado como ímprobo. O agente público pode cometer ilegalidades sem agir com desonestidade, de modo que nesses casos não devem os atos praticados serem considerados como de improbidade administrativa, ressal-vada, de qualquer forma, eventuais responsabilidades pelos danos oriundos dos atos ilegais praticados.

Para fi ns de confi guração de ato de improbidade administrativa e de res-ponsabilidade por sua prática, somente o ato que fere a moralidade admi-nistrativa, por meio de conduta eivada de má-fé, é que deve ser tido como caracterizador da violação ao dever de probidade administrativa. O Superior Tribunal de Justiça consolidou tal entendimento no julgamento do AgRg no AgRg no AREsp nº 166766 / SE, conforme se observa da passagem abaixo extraída da ementa do acórdão:

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O reconhecimento da tipifi cação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa requer a demons-tração do elemento subjetivo, consubstanciado no dolo para os tipos previstos nos arts. 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do art. 10, todos da Lei n. 8429/92.

Como sucintamente descrito na ementa acima, os elementos culpa ou dolo são essenciais para a confi guração do ato de improbidade administrati-va, sendo que nas hipóteses do art. 10 — que causem prejuízo ao erário — o próprio dispositivo, em seu caput, admite a prática na modalidade culposa.

Sanções

O art. 37, § 4º, da Constituição da República de 1988, prevê que o ato de improbidade administrativa importará na suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erá-rio, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Por sua vez, o art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa prevê outras punições ao agente público e terceiros que pratiquem atos de improbidade administrativa, dentre elas a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamen-te ao patrimônio, o pagamento de multa civil em pecúnia e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

De acordo com o dispositivo legal, estas sanções podem ser aplicadas cumulativamente, mas o julgador deve estar atento ao postulado da propor-cionalidade na aplicação das sanções cabíveis, sendo necessária a adequada avaliação das circunstâncias do caso, do grau de culpa do infrator e da lesi-vidade da conduta do agente para fi ns de efetivação da dosimetria da sanção aplicável pelo ato de improbidade.

Responsabilidade pela prática do ato de improbidade administrativa

Os atos tidos como de improbidade administrativa podem representar transgressões concomitantes na esfera administrativa, civil e criminal. Pode haver ainda sanções de natureza política, como suspensão de direitos políticos.

Deste modo, verifi cada a prática de ato de improbidade administrativa, caberá à autoridade administrativa instaurar o competente processo admi-nistrativo disciplinar para fi ns de investigação do ato administrativo irregular

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254 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Curso de Direito Administrativo. 15ª ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 690.

e aplicação de eventuais sanções no âmbito administrativo, sem prejuízo da comunicação ao Ministério Público para que este adote as medidas na esfera cível, via sobretudo da ação civil pública por ato de improbidade adminis-trativa, e criminais cabíveis. Sobre o tema, esclarece Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“Quanto à responsabilização do agente indiciado pela prática de atos de improbidade administrativa se fará por um processo adminis-trativo preparatório, a que se seguirá um processo judicial. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade, com designação de comissão competente e instauração de processo administrativo, no qual, se encontrados fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à Procuradoria do órgão para requerer ao juízo competente a decreta-ção do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.”254

A ação civil pública por ato de improbidade administrativa é o mecanismo judicial de natureza punitiva que visa a aplicar a sanção ao agente público e a terceiros benefi ciados pela conduta lesiva do dever de probidade admi-nistrativa, sem prejuízo de outras ações judiciais para a apuração da respon-sabilidade criminal e de processos administrativos para a responsabilização administrativa.

O art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa fi xa o prazo de prescrição para a aplicação das sanções previstas na lei:

“Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:

“I — até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confi ança;

“II — dentro do prazo prescricional previsto em lei específi ca para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.”

Cabe destacar que, para fi ns de ressarcimento ao erário, a ação de impro-bidade é imprescritível, conforme determina o art. 37, § 5º, da Constituição da República:

“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

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255 ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia.

Curso de direito administrativo. 21ª ed.

São Paulo: Atlas, 2008, pp. 695-696.

Desse modo, a ação de improbidade prescreve no prazo previsto no art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa, sendo imprescritível na hipótese cuja pretensão seja o ressarcimento ao erário.

Abuso de Autoridade

A Lei nº 4.898, de 9 de Dezembro de 1965, elenca os atos de autoridade pública que constituem abuso de autoridade e as penalidades aplicáveis pela prática destes atos.

Referido diploma legal estipula ainda a regulamentação do direito de repre-sentação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, naquelas circunstâncias caracterizadas como atos abusivos praticados por autoridades públicas. Ademais, possibilita à vítima de qualquer abuso de poder por parte de um agente público levar tal fato ao conhecimento das autoridades públicas, estando o autor do abuso sujeito a sanções administrativas, de natureza cível e penal, previstas no caput, §1° e §2°, do art. 6º da Lei nº 4.898/65.

A responsabilidade do agente público que comete ato de abuso de autori-dade se dá mediante o procedimento previsto no art. 1º da referida lei:

“Art. 1º. O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são regulados pela presente lei.”

Acerca dessa lei, Maria Sylvia Zanella di Pietro comenta:

A representação é a denúncia de irregularidades feita perante a pró-pria Administração Pública ou a ente de controle como o Ministério Público ou o Tribunal de Contas.

Está disciplinada pela Lei n. 4.898, de 9-12-65, quando se tratar de representação contra abuso de autoridade, defi nido pelos arts. 3º e 4º. Nesse caso, a representação é dirigida à autoridade superior que tiver competência para aplicar ao culpado a respectiva sanção, bem como ao órgão do Ministério Público que tiver competência para iniciar proces-so-crime contra a autoridade culpada. A primeira determinará a instau-ração de inquérito para apurar o fato (art. 7º) e o segundo denunciará o réu, no prazo de 48 horas, desde que o fato constitua abuso de auto-ridade (art. 13); não o fazendo nesse prazo, será admitida ação privada (art. 16).255

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256 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

Curso de direito administrativo. 15ª. ed.

Rio de Janeiro: Forense, p. 659.

No que se refere às sanções aplicadas aos agentes infratores, comenta Dio-go de Figueiredo Moreira Neto:

“A vítima, além da promoção da responsabilização administrativa e penal do servidor, que haja procedido com abuso de autoridade, terá a faculdade de acioná-lo civilmente, independentemente da condenação da Fazenda Pública pelo dano causado por seu servidor, através de uma ação autônoma.”256

Nos termos do art. 3º da lei, constitui ato de abuso de autoridade qual-quer atentado:

a) à liberdade de locomoção;b) à inviolabilidade do domicílio;c) ao sigilo da correspondência;d) à liberdade de consciência e de crença;e) ao livre exercício do culto religioso;f ) à liberdade de associação;g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;h) ao direito de reunião;i) à incolumidade física do indivíduo; ej) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profi ssional.

Acrescentando ao rol do art. 3º, caracterizam ainda como atos de abuso de autoridade as hipóteses dispostas no art. 4º da mesma lei:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a cons-trangimento não autorizado em lei;

c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;

d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;

e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fi ança, permitida em lei;

f ) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;

g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

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257 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilida-

de Civil. 3ª. edição – Rio de Janeiro: Edi-

tora Forense, 2007. páginas 395-396.

258 AI 70043035377 RS, Décima Câmara

Cível, Des. Rel. Ivan Balson Araújo¸ Jul-

gamento em 02/06/2011.

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem com-petência legal;

i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

No mesmo sentido, o art. 9º da Lei nº 4.898/65 dispõe que a autoridade responsável pelo ato poderá ser responsabilizada não apenas de maneira re-gressiva pela Administração Pública, mas também de maneira isolada direta-mente pelo particular lesado. Dessa forma, o lesado tem a opção de propor a ação diretamente contra a autoridade responsável pelo ato ou contra o ente estatal que ela presente.

Sobre o tema, ressalta-se que a ação de reparação de danos proposta pelo particular ofendido poderá conter o Estado, juntamente com o agente públi-co que cometeu delito, em litisconsórcio passivo. Nesse sentido, é a doutrina de Arnaldo Rizzardo:

“Desde que a responsabilidade decorra da culpa, é natural que se dei-xe à livre escolha de quem está revestido de legitimidade ativa decidir contra quem ingressará com ação de ressarcimento de danos. Realmente, se os danos causados a terceiros pelos agentes do Estado decorrem de ato doloso ou culposo, faculta-se ao lesado acionar unicamente o Estado, ou o Estado e o servidor em litisconsórcio passivo, ou apenas o servidor.”257

A jurisprudência brasileira também defende o supramencionado posicio-namento, conforme se observa pelo julgamento do Agravo de Instrumento n° 70043035377 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul258:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CI-VIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. OFENSAS VERBAIS E FISÍCAS PROFERIDAS POR DIRETORA DE ESCOLA MUNICIPAL. DE-MANDA AJUIZADA CONTRA O AGENTE PÚBLICO. POSSIBI-LIDADE. DENUNCIAÇÃO DA LIDE AO ENTE PÚBLICO. DES-CABIMENTO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO DE REGRESSO.

1. Fundada a ação reparatória em culpa ou dolo do agente público, o ofendido poderá propor a ação unicamente contra o Estado, ou o Es-tado e o servidor em litisconsórcio passivo, ou unicamente o servidor.

2. Optando a vítima pelo ajuizamento da ação contra o servidor, haverá uma relação de direito privado, inexistindo possibilidade de pre-juízo direto ao erário público, tampouco direito de regresso do agente contra o ente público.

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3. Não havendo direito de regresso, inexiste justifi cativa para a de-nunciação da lide ao município.

4. Não verifi cadas as possibilidades de cabimento da denunciação da lide previstas no art. 70, CPC, é incabível o pleito.

5. O prequestionamento quanto à legislação invocada fi ca estabele-cido pelas razões de decidir.

Desse modo, considerando que, não raras vezes, o agente causador do dano não possui patrimônio sufi ciente para responder pelos prejuízos oca-sionados à vítima, é comum que as ações de responsabilidade civil sejam propostas em face do ente estatal presentado pelo agente, cabendo a este, em eventual condenação, exercer o direito de regresso contra o agente causador do dano na hipótese deste ter agido com culpa ou dolo.

V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

Leitura obrigatória

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, itens:• Controle da Administração Pública

o Ação de improbidade administrativa

Leitura complementar

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, páginas 636 — 641.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, páginas 689 — 691.

VI. AVALIAÇÃO

Caso gerador:

A Prefeita do Município X, candidata à reeleição, em processo investigató-rio em trâmite na Justiça Eleitoral, utiliza a Procuradoria do Município para defender seus interesses perante este Tribunal.

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Considerando que o processo em trâmite na Justiça Eleitoral trata exclusi-vamente de interesse particular da Prefeita, posicione-se sobre a legalidade do ato e se este se caracteriza como de improbidade administrativa.

VII. CONCLUSÃO DA AULA

A probidade administrativa é dever fundamental e basilar do agente pú-blico que exerça cargo ou função pública, eis que lida umbilicalmente com a máquina administrativa, cujo objetivo primordial é o atendimento ao inte-resse público. Disso decorre a importância da Lei nº 8.429/92 — Lei de Im-probidade Administrativa — uma vez que seus dispositivos são instrumentos garantidores da preservação do dever de probidade, assim como da punição aos que não observarem este dever. Igualmente a legislação repudia atos de abuso de autoridade, reprimindo-os nas esferas civil, penal e administrativa.

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SÉRGIO GUERRAPós-Doutor em Administração Pública pela FGV/EBAPE. Doutor e Mestre em Direito. Professor Titular de Direito Administrativo da FGV DIREITO RIO, onde ocupa o cargo de Vice-Diretor de Ensino, Pesquisa e Pós-graduação. Coordenador do curso International Business Law, da University of California (Irvine). Editor da Revista de Direito Admi-nistrativo — RDA. Autor de diversos livros e artigos na área de direito administrativo, regulatório e ambiental.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

André Pacheco Teixeira MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE ENSINO

Marília AraújoCOORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS