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1 O PENTECOSTALISMO EM CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA Reflexões sobre religiosidade popular Cesar Pinheiro Teixeira Monografia de conclusão do Curso de Ciências Sociais, apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ. Orientadora: Clara Mafra. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006.

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O PENTECOSTALISMO EM CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA

Reflexões sobre religiosidade popular

Cesar Pinheiro Teixeira

Monografia de conclusão do Curso de

Ciências Sociais, apresentada ao

Departamento de Ciências Sociais do

Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas da UERJ.

Orientadora: Clara Mafra.

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Deus por iluminar meus pensamentos e por sempre atender os meus pedidos de socorro. Gostaria também de agradecer à minha família: ao meu irmão, Thiago Pinheiro, por me escutar pacientemente em meus devaneios e por sempre dialogar comigo quando oportuno; à minha mãe, Leila Pinheiro, por me ensinar a ler o mundo de forma menos ingênua, por sempre afiar o meu olhar; e ao meu pai, Paulo Cesar Teixeira, por nunca me deixar desistir dos meus planos e dos meus sonhos. Não posso deixar de lembrar-me dos meus irmãos de comunidade. Aos amigos do Rebanho de Maria: Eduardo Costa, Leonardo Rodrigues, Vlamir Azevedo, Thiago Pinheiro, Roni Feliphe, Lequinho, Juliana Ferreira, Fátima Deniane, Ísis Eccard, Isabel Sad e Isabella Carvalho. Deixo aqui registrado os meus sinceros agradecimentos por tudo o que fizeram por mim: por todas as orações, conselhos, tempo cedido a me escutar, etc. Estaremos sempre juntos na luta por um mundo mais justo. Também devo agradecer aos meus amigos da Igreja Assembléia de Deus da Lagoa que me receberam com muito carinho. Obrigado por terem respondido pacientemente a todas as minhas perguntas e por ter cedido tempo para me ajudarem em meu trabalho de campo. Agradeço também a minha amiga e orientadora Clara Mafra, com quem dou meus primeiros passos na profissão. Obrigado pela paciência em meus momentos de crise, pelo apoio prestado nos momentos de dificuldade, por toda a compreensão e carinho que teve comigo nesses anos que trabalhamos juntos. Obrigado por me auxiliar em meus momentos de dúvida e de incertezas. Obrigado por me incentivar sempre. Obrigado por toda a atenção e tempo dedicados a mim. Devo muito a você. Aos eternos amigos: Palloma Menezes, Alexandre Magalhães e André Salata. Partilhamos lágrimas e sorrisos durante quatro anos e construímos laços fortes que o tempo certamente não desfará. Obrigado por todos os momentos de partilha nos quais podíamos descarregar as tensões, as incertezas e os medos típicos de estudantes de ciências sociais. Obrigado também por me apoiarem em meus momentos de dificuldade e por me ouvirem sempre que eu necessitei desabafar. Vocês estarão sempre no meu coração.

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RESUMO

Pinheiro, Cesar. O Pentecostalismo em contextos de violência: reflexões sobre

religiosidade popular, Rio de Janeiro: UERJ / IFCH. 2006. Monografia. (Graduação em

Ciências Sociais). Orientador: Professora Clara Cristina J. Mafra.

Palavras-Chave: Pentecostalismo, Religiosidade Popular, Violência, Narcotráfico, Reciprocidade

Esta monografia busca trazer novos apontamentos sobre a religiosidade popular a partir do estudo de caso de uma igreja pentecostal que está situada num contexto de violência. O argumento principal consiste basicamente em mostrar que o caráter popular do pentecostalismo difere do catolicismo camponês. Para aprofundar este argumento, revejo critérios clássicos de classificação da religiosidade como popular (especialmente o caráter não institucional e sincrético da expressão religiosa popular), problematizando-os. Indico também que o contexto de violência, onde crescem as igrejas pentecostais, necessitam de um outro aporte de compreensão para se pensar a religiosidade popular. Neste contexto, a resistência e a auto-afirmação das camadas populares, que caracterizam a expressão religiosa do povo, não estariam ligadas àquelas características pensadas, sobretudo, a partir do catolicismo popular.

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SUMÁRIO

Nota Inicial Sobre as Transformações no Campo Religioso Brasileiro .......................... 6 Capítulo 1 – Introdução: Religiosidade Popular, Pentecostalismo e Violência ............. 9 1.1 – A Religiosidade Popular ....................................................................................... 9 1.2 – O Pentecostalismo e a Religiosidade Popular .......................................................14 1.3 – O Pentecostalismo em contextos de violência ...................................................... 18 Capítulo 2 – Lagoa, Magé, Baixada Fluminense ............................................................25 Capítulo 3 – A lógica de dom e contra-dom entre igreja e tráfico na Lagoa ................. 28 3.1 – Pentecostais e Traficantes na Lagoa: Rejeição e Proximidade ............................. 28 3.2 – A lógica de ação pentecostal em relação ao tráfico .............................................. 32 3.3 – Conivência ou Radicalização da lógica de dom e contra-dom? ............................39 3.4 – As Conseqüências Locais da Lógica de Ação Pentecostal em Relação ao Tráfico ........................................................................................................................... 43

Capítulo 4 – Conclusão: O Caráter Popular do Pentecostalismo .................................. 48

Anexo – Mapa da Lagoa .............................................................................................. 55

Bibliografia..................................................................................................................... 57

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NOTA INICIAL SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO

Diversos autores (Mariz e Machado, 1998; Pierucci, 2004; Almeida e Montero,

2001; entre outros) vêm mostrando as transformações sofridas pelo campo religioso

brasileiro. A cada censo podemos perceber que o Brasil deixa de ser um país quase

exclusivamente católico1. De acordo com Pierucci (2004), fazer sociologia da religião

no Brasil é, de algum modo, fazer uma sociologia do declínio da igreja católica.

De acordo com os dados do IBGE e dos dados descritos na obra de Ferreira (1970)2,

em 1940, 95,2% da população brasileira declarava-se católica, enquanto 2,6%

declarava-se evangélica e 0,2% declarava-se sem religião. Em 2000, o número de

católicos declarados cai para 73,8%, enquanto o de evangélicos sobe para 15,45%,

juntamente com o número de pessoas que se declaram sem religião, 7,2%.

Porém, não é somente o declínio da igreja católica que caracteriza as mudanças no

campo religioso brasileiro. Há uma notória diversificação do campo. O crescimento das

igrejas pentecostais e neopentecostais é o melhor exemplo desta pluralização

institucional. Os censos também registram aumentos no porcentual de kardecistas e

adeptos das religiões afro-brasileiras. Além disso, como já vimos, cresce o número dos

que se declaram sem religião.

Diante destas transformações – que não são transformações específicas do Brasil,

mas de toda a América Latina -, autores como Chesnut (2003) passam a dar mais ênfase

à expressão mercado religioso para denominar a pluralidade institucional que surge na

América Latina. Neste mercado religioso, indivíduos racionais optariam por uma ou

outra religião de acordo com as suas necessidades de consumo de bens de salvação

(Chesnut, 2003).

Este tipo de pluralismo institucional religioso é um fenômeno recente no Brasil. De

acordo com Mariz e Machado (1998), anteriormente a explosão pentecostal, o

pluralismo religioso não contestava a identidade católica. As práticas kardecistas e afro-

brasileiras eram percebidas como práticas complementares ao catolicismo. A afiliação

religiosa exclusiva não estava tão presente no campo religioso brasileiro. Segundo

1 Segundo Mariz e Machado (1998), afirmar que houve uma pluralização institucional no campo religioso brasileiro “não significa dizer que até então este país não conhecia prática religiosa plural. Apesar da quase exclusividade católica, esta sociedade já conhece de muito tempo a diversidade de crenças e práticas religiosas”. 2 Os dados se referem à obra de Cândido Procópio Camargo Ferreira – Católicos, Protestantes, Espíritas – e ao censo de 2000 feito pelo IBGE.

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Mariz e Machado (1998), é após as décadas de 60 e 70 com o surgimento das igrejas

pentecostais e do movimento de renovação carismática católica (MRCC) que tem início

uma pluralização institucional no campo religioso do Brasil.

Com o surgimento de um campo religioso institucionalmente diversificado, os

indivíduos têm a oportunidade de trocar de religião; cria-se um trânsito religioso. Este

trânsito não se dá de maneira aleatória e descompassada, mas nele podemos perceber

determinadas tendências específicas.

De acordo com Almeida e Montero (2001), os muito pobres e os muitos ricos

mudaram menos de religião. A mudança foi mais forte nos estratos C e D, com

escolaridade baixa e média, especialmente, entre as mulheres. Os católicos foram os

que mais perderam fiéis, enquanto os pentecostais foram os que mais receberam. De

maneira geral, o panorama do trânsito religioso, conforme Almeida e Montero (2001), é

o seguinte: os católicos, embora sejam uma espécie de doadores universais, perdem fiéis

preferencialmente para os sem religião e para os pentecostais. Na outra ponta, os

pentecostais buscam seus fiéis em determinados estratos sociais e segmentos religiosos

– basicamente entre católicos, afro-brasileiros e sem religião.

É possível perceber que o eixo da transformação no campo religioso brasileiro é

formado pelos estratos sociais mais baixos e menos escolarizados. Os indivíduos

pertencentes às camadas populares parecem ser aqueles que dinamizam o campo

religioso do Brasil. Nesse sentido, seria muito interessante atentarmos para as

características dos pentecostais. Apontado por alguns autores (Cesar e Shaull, 2000)

como o futuro das igrejas cristãs, o movimento pentecostal, junto dos sem religião, é a

expressão maior das mudanças ocorridas no cenário religioso do Brasil. Entender o

crescimento pentecostal, mais que compreender as transformações ocorridas no campo

religioso brasileiro, permite-nos entender as transformações ocorridas na própria

sociedade brasileira.

Como apontam os dados da pesquisa Novo Nascimento (Fernandes et al, 1998), é

entre as camadas populares que o pentecostalismo cresce com mais velocidade. No

Brasil, destaca-se o Rio de Janeiro, por ser o estado menos católico. Quanto mais pobre

a área, menos católica ela continua sendo e mais pentecostal ela se torna.

Diferentemente das igrejas protestantes históricas, as pentecostais concentram maior

porcentagem de pobres com menor educação formal, além de maior número de fiéis que

se autodeclaram negros/pardos.

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As transformações no campo religioso brasileiro evidenciam que, embora o

pentecostalismo adquira adeptos em todos os estratos sociais, é nas camadas populares

que ocorre maior crescimento. A pergunta que a maioria dos sociólogos e antropólogos

vêm fazendo é exatamente esta: porque este tipo de religiosidade cresce

vertiginosamente nas camadas populares da sociedade brasileira? Uma vez instaurado

um mercado religioso por que o trânsito religioso, considerando a população residente

nas áreas mais pobres, tende, de maneira geral, a direções específicas – com os mais

pobres aderindo às igrejas pentecostais? O pentecostalismo tem um papel de destaque

dentro do campo religioso brasileiro.

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CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO: RELIGIOSIDADE POPULAR, PENTECOSTALISMO E VIOLÊNCIA 1.1) A RELIGIOSIDADE POPULAR

O debate sobre religiosidade popular na América Latina é denso e comporta as

mais diferentes vertentes de opinião sobre o assunto. Os teóricos da religiosidade

popular concentram suas análises sobre uma forma específica de religião bem assentada

e difundida na América Latina: o catolicismo popular. É sobre este fenômeno empírico

que os teóricos da religião popular tendem a se debruçar para descrever características e

construir seus modelos de interpretação.

O objetivo principal desta seção é tentar mapear a discussão sobre a religião

popular, bem como trazer à tona a estrutura do debate. De modo algum pretendo esgotar

a discussão, mas apenas compor um quadro com os principais pontos levantados por

diferentes vertentes de interpretação. Em relação a este quadro tentarei repensar o lugar

de uma das religiões que mais se destaca no campo religioso brasileiro, por seu

vertiginoso crescimento entre as camadas populares: o pentecostalismo. Ou seja,

tentarei analisar as adequações e inadequações desta religião aos modelos teóricos

propostos.

Segundo Oliveira (1994), podemos destacar duas principais linhas de

interpretação acerca da religiosidade popular. A primeira consiste em caracterizar a

religião popular como forma de alienação: conjunto de crenças e rituais subjetivos que

não mantém nenhum tipo de vínculo com um projeto político de reforma social. A outra

corrente concebe a religião popular como a expressão religiosa dos oprimidos de onde

nasceriam projetos políticos revolucionários. Estas duas concepções de religião popular

corresponderiam a (ou derivariam de) duas concepções do que seria o “popular”. De um

lado temos uma linha interpretativa que defende o “popular” como uma distorção ou

deformação de uma forma original ou oficial; e uma corrente que vê o “popular” como

expressão cultural autêntica das classes subalternas, de onde afirmariam uma certa

resistência política em relação às classes dominantes (Oliveira, 1994).

Para Oliveira (1994), seria exatamente esta dicotomia que revelaria o caráter

ambivalente da religião popular. Por um lado encontraríamos elementos que sugerem

formas de resistência política e cultural perante a classe dominante; porém, a religião

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popular encontraria dentro da sua própria estrutura limites para a realização de projetos

políticos de reforma social.

Seguindo na tentativa de superar esta dicotomia, Oliveira (1994) enumera três

pontos básicos que fundamentariam a religião popular: 1) nela há uma socialização dos

bens sagrados, ou seja, estes seriam mais acessíveis às camadas populares, uma vez que

não dependem exclusivamente de especialistas; 2) as crenças, práticas e rituais são

articulados implicitamente, não havendo teologia ou doutrina sistemática; e 3) a

legitimidade da religião popular advém da tradição e não de uma instituição controlada

por especialistas.

No debate sobre “o saber popular” também encontramos elementos que nos

ajudam a compreender mais claramente determinadas características da religiosidade

popular. Como nos mostra Costa (1989), o saber popular seria compreendido como

dotado de “pureza” e autenticidade, não profanado pelas impurezas dos códigos

burgueses; seria a expressão do mágico, do intuitivo e do primitivo. No Brasil, o

popular teria se tornado sinônimo de generosidade, singularidade, inocência e

criatividade (Costa, 1989:207).

Além disso, Costa (1989) aborda outra questão importante para a discussão: o

saber popular deveria necessariamente estar desligado de qualquer institucionalidade. O

autor mostra que a literatura sobre o tema aponta para o comprometimento ideológico

das instituições. Dentro das instituições não haveria lutas sociais ou culturais, mas estas

agiriam apenas de forma a reproduzir a ideologia dominante. De acordo com Costa

(1989:208)

“(...) a hipótese de um projeto contra-hegemônico que incorporasse uma

luta cultural no interior do próprio campo institucional, jamais foi pensado

seriamente. As instituições seriam o terreno ‘deles’. Para ‘nós’ – (o povo,

simples e bom) – a autenticidade e a pureza da independência e da

autonomia”.

De acordo com as análises sobre o catolicismo popular (Mariz e Theije, 1990;

Sanchis, 1979; Brandão, 1986; Barnados, 1979; Oliviera, 1994) podemos perceber que

o debate gira em torno da questão da autenticidade e espontaneidade da expressão

religiosa, do sincretismo, da não-institucionalidade e dos conflitos com o clero. Mas de

qualquer modo, a religião popular não se definiria por si própria, mas em contraponto à

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religião erudita, à religião oficial ou à religião das classes dominantes (Oliveira, 1994;

Sanchis, 1979; Brandão, 1986).

Segundo Brandão (1986), uma notável característica da religião popular seria

sua capacidade de recriar as doutrinas impostas pela teologia da religião oficial. Embora

o agente religioso popular aprenda com os dirigentes eruditos, longe deles ele é um

reinventor ativo e um praticante autônomo.

“Depois de absorver os ensinos da igreja e incorporá-los seletivamente às

devoções locais, os agentes do campesinato recorrem à ideologia vigente de

classe, em suas comunidades, para redefinirem símbolos, crenças, rituais e

modos de conduta religiosa ou de conduta civil regida pela religião”.

(Brandão, 1986:204)

No terreno da religião popular, saímos das histórias para entrarmos nas estórias.

Os fundamentos teológico-históricos que legitimam os santos da igreja católica e suas

festas, são recriados pelos agentes populares que incorporam às narrativas outros

elementos da lógica cotidiana da comunidade. A legitimidade do saber da religião

popular não está atrelada a uma instituição; é um saber fluido, de posse da comunidade,

que se legitima pela tradição. Assim, por exemplo, como nos mostra Brandão (1986)

um rezador católico diz que o fundamento da Festa da Folia de Reis, não está no Novo

Testamento, com a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus, mas sim no Antigo

Testamento, uma vez que os Três Reis eram amigos de confiança de Deus-Pai que, por

isso, mandou-lhes visitar seu Filho.

A este processo de reinvenção da religião, Brandão (1986) chama popularização.

Esta não decorre de uma má aprendizagem da doutrina por parte dos indivíduos – e aqui

reside uma crítica à corrente elitista que vê na religião popular uma forma pervertida da

religião oficial – mas consiste num processo coletivo de recriação de símbolos, crenças,

rituais e modos de conduta de acordo com a lógica da classe subalterna e com as

especificidades de cada doutrina.

“Como não há ali um corpo doutrinário de provas eruditas da veracidade do

modo de fé, é o repertório do imaginado acreditado que cria e recria os

sinais de verdade dos sistemas de crença, não porque assim é

ideologicamente, mas porque assim aconteceu miticamente. A gente dos

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“sítios” e os negros da “turma” não acreditam em um santo porque ele foi

santificado pela igreja. Eles preferem acreditar nas narrativas que fazem, ao

mesmo tempo, a verdade e o incrível do santo e do padroeiro”. (Brandão,

1986: 213)

Esta recriação sobre o erudito não é um simples aspecto da cultura popular. Ela

seria, usando os termos de Brandão, a própria popularização do oficial. O teórico russo

Mikhail Bakthin (1999) ao realizar uma teorização do grotesco e do carnavalesco,

propõe uma teoria da cultura popular tendo como argumento de base que as variações,

reinvenções e recriações caricaturais e humorísticas da cultura erudita ou oficial é que

caracterizam a própria cultura popular.

Bakthin (1999) destaca o caráter popular das obras do escritor francês François

Rabelais e as questões de ordem ritualísticas nas camadas populares no período

medieval, tais como: o corpo grotesco, o rebaixamento de ordem corporal e as inversões

de sentido e de valores oficiais do clero e da nobreza. Nesta época, segundo Bakthin,

essas inversões e rebaixamentos faziam parte do repertório carnavalesco, da praça

pública, do universo das camadas populares.

A capacidade transformadora e o aspecto jocoso das manifestações populares

produzia uma certa “dualidade do mundo”. O resultado das recriações populares se

confrontavam com as formas de culto e cerimônias oficiais. A cultura popular tem por

entendimento um caráter de oposição à cultura oficial (Bakthin, 1999). Aos aspectos

divinos, por exemplo, correspondiam uma série de zombarias e ambos eram igualmente

sagrados e oficiais. (Bakthin, 1999).

Este caráter ambíguo da cultura popular é um traço presente e marcante também

no catolicismo rústico. Ao analisar o fenômeno das romarias, Sanchis (1979) mostra a

ambivalência presente nesta forma de religiosidade. A romaria concentrava elementos

da religião popular e da religião oficial. Assim, podemos dizer que, sob a ótica da

religião erudita, a romaria levava consigo elementos sagrados e profanos. Esta

ambigüidade ocupa papel importante na visão de mundo que a religião popular constrói.

Segundo Sanchis (1979:10)

“(...) essa ambigüidade fundamental, na visão das coisas e no

comportamento cultual, terá a tendência de permanecer viva, de uma vida

subterrânea, para emergir e se alojar, desta vez visivelmente, em qualquer

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nicho de legitimidade oferecido pelas manifestações religiosas aceitas pela

hierarquia. A principal, desde então, e até hoje, será a romaria”.

Esta ambigüidade se revela, de maneira mais visível, nos elementos sincréticos

presentes na religião popular. Ao analisar as romarias portuguesas na Idade Média – e a

tentativa da igreja Católica de romanizá-las, tornando-as peregrinações oficiais, isto é,

de acordo com a doutrina oficial da igreja – Sanchis (1979) nos mostra que entre o que

era imposto pela hierarquia eclesiástica e a prática religiosa camponesa, havia uma

recriação da doutrina oficial de acordo com os valores e os deuses da antiga religião dos

camponeses. Segundo Sanchis (1979:10):

“O ‘Diabo’ de Martinho não era aquele que, espontaneamente, o povo

podia conceber. Entre a boca de um e o ouvido de outro, abria-se espaço

para uma mudança de código. Sobre a figura demoníaca que lhe era

denunciada, o camponês projetava a imagem de seus antigos deuses,

expressão de uma natureza ao mesmo tempo benéfica e cruel, mas também

recurso protetor sobre o segundo desses aspectos. ‘Demônio’, talvez, se

quiserem, mas apesar de tudo, benfazejo, como a longa experiência já o

demonstrou”.

Nas festas populares do catolicismo, por exemplo, é comum encontrarmos

também estas ambigüidades: no mesmo ritual em que se venera o Santo, reza-se o terço

e faz-se orações, também é permitido o consumo de cachaça e que se dance para o

Santo. Em vez de um sistema doutrinário que dite regras, a ênfase reside no contato com

o santo: com todas as ambigüidades que podem estar presentes nessa aproximação. A

apropriação popular do sistema de crenças religioso, valorizando mais a experiência

com o sobrenatural que um sistema racional-filosófico de explicações e criação de

respostas para perguntas como qual é o sentido da vida? faz com que os deuses do povo

sejam mais fortes, mais poderosos, mais milagreiros, exatamente porque estão mais

próximos, em contato, muitas vezes corporal, com os seus fiéis (Brandão, 1986). Assim,

o que a religião oficial coloca como sagrado e profano, encontra-se reunido no terreno

da religião popular: a partir da recriação, por parte dos camponeses, da doutrina oficial,

isto se torna possível. Mesmo que a doutrina da hierarquia eclesiástica rotule certas

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práticas como demoníacas, elas continuam tendo valor na religião popular, mesmo

enquanto práticas negativas (Sanchis, 1979).

A fronteira entre o erudito e o popular, em Brandão (1986), por exemplo, é antes

política que cultural. São as classes menos favorecidas que ao entrarem em contato com

a religiosidade erudita, apropriam-se da religião e recriam práticas, discursos e ações.

As religiões eruditas trariam consigo a reprodução de valores da classe correspondente.

As principais características da religião popular não residiriam em nenhuma essência

popularizante, mas no recorte ideológico que é feito na religião, diferente do recorte

erudito, obviamente (Brandão, 1986).

Desse modo, podemos entender as recriações sincréticas e as ambigüidades

contidas na religião popular, que se expressam à margem da instituição e, muitas vezes,

em conflito com ela (Sanchis, 1979), como uma forma de resistência política e cultural a

um modelo religioso que é imposto de cima. É apropriando-se do saber religioso oficial

que os camponeses do catolicismo popular expressam uma forma própria de religião das

classes subalternas: ambígua, sincrética, espontânea, não-institucional, corporal, que

enfatiza um deus menos metafísico e mais presente no cotidiano, etc.

A partir das análises e descrições de diferentes autores (Brandão, 1986; Oliveira,

1994; Sanchis, 1979) podemos perceber características gerais que podem ser extraídas

no intuito de compor um quadro que nos permita compreender, de maneira genérica, as

formas de religiosidade popular.

As análises sobre o catolicismo popular revelam duas posições distintas: a dos

que compreendem a religião popular como uma perversão da religião oficial e a dos que

a compreendem como uma expressão cultural autêntica dos oprimidos. Na tentativa de

superar esta dicotomia vimos que a religião popular recria, de forma sincrética e

ambígua, a religião oficial. A religiosidade popular, portanto, se constrói em

contraponto a religião oficial: absorvendo e recriando os seus conteúdos.

Desta forma, embora as relações mecânicas entre religião e classe social não

sejam tão confiáveis, visto que nem sempre a religião dos oprimidos reflete exatamente

uma consciência de classe (Oliveira, 1994), é possível perceber que a religião popular

conserva consigo um caráter de resistência política e cultural ao se apropriar da doutrina

que lhe é imposta, recriando-a e reinventado-a – de acordo com os valores de classe e

com as práticas religiosas anteriores.

1.2) O PENTECOSTALISMO E A RELIGIOSIDADE POPULAR

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Levando em consideração as características da religiosidade popular apontadas

anteriormente, tentarei contrapor uma religião que vem se destacando no campo

religioso brasileiro: o pentecostalismo.

O crescimento dos pentecostais, embora atravesse a sociedade brasileira como

um todo, dá-se mais enfaticamente nas camadas populares. É exatamente nas grandes

periferias dos centros urbanos que as igrejas pentecostais vão se multiplicar com maior

velocidade. Ou seja, é no contexto urbano (de pobreza urbana) que a religião

pentecostal cresce com mais força.

O pentecostalismo traz de volta ao protestantismo elementos mágicos, bem

como o catolicismo popular o faz em relação à doutrina oficial (Brandão, 1986). Porém,

o que exatamente o caracterizaria como uma versão popular do protestantismo? O fato

do crescimento dos pentecostais se dar com maior força nas camadas populares não é

um argumento suficiente para afirmarmos que o pentecostalismo é uma forma de

religião popular, pois o próprio conceito de povo não é algo claro e bem delineado.

Embora as práticas pentecostais sejam construídas em contraponto ao

protestantismo oficial, elas não utilizam elementos considerados profanos pela religião

erudita. O pentecostalismo não corresponderia a uma simples popularização dos rituais,

crenças e modos de conduta do protestantismo histórico. Porém, os pentecostais

reinventam o protestantismo: “trazem Deus para perto” quando enfatizam os “dons do

Espírito Santo” e a ação de Deus no cotidiano. Reencantam o protestantismo.

Brandão (1986) afirma que o caráter popular do pentecostalismo está presente

exatamente não em suas instituições, nas casas de oração e nos pontos de pregação, mas

na existência de um “povo crente”, fluido, que percorre barracões e quintais procurando

uma “igreja quente”, onde haja curas e milagres e, exatamente por isso, são “firmes na

fé”.

Este autor encontra dificuldades para compreender o pentecostalismo enquanto

uma forma de religiosidade popular. Ao priorizar antes características políticas que as

propriamente culturais, Brandão (1986) constrói um quadro (com base na etnografia

realizada sobre o campo religioso em Itapira) em que identifica um continuum religioso:

no pólo mais erudito teríamos a igreja católica oficial e suas paróquias, as igrejas

protestantes históricas (presbiteriana e batista), os centros espíritas de “mesa-branca”.

No domínio de mediação teríamos os agentes semiletrados do catolicismo popular que

estendem seus serviços à burguesia, os grupos bíblicos não-evangélicos e os

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pentecostais tradicionais (assembléia de Deus, Cristo pentecostal no Brasil e igreja do

Senhor Jesus) e centros de umbanda e candomblé. No pólo mais popular teríamos os

agentes do catolicismo popular (negros e camponeses iletrados) que realizam serviços

restritos a sujeitos subalternos, as seitas pentecostais de barracão e os terreiros de sarava

e os agentes autônomos de possessão.

Este “povo crente” desligado de uma institucionalidade, que legitima a fé através

dos feitos divinos vivenciados no cotidiano e testemunhados nos púlpitos das pequenas

igrejas, improvisando orações, pregações, coros e falando em línguas estranhas,

carregaria consigo a lógica da comunidade pensada através de termos religiosos. A

conduta moral incorruptível que o crente deve ter, embora seja um rompimento com o

mundo secular, recriaria dentro da igreja a ordem da comunidade.

Embora as afirmações de Brandão se refiram a um pentecostalismo popular não-

institucional, nota-se que a adesão ao pentecostalismo não corresponde apenas a uma

mudança de consumo de bens de salvação, mas há um forte compromisso institucional e

a redefinição de um novo estilo de vida (Mariz e Machado, 1998). Esta adoção de um

novo estilo de vida é uma das características mais notáveis do pentecostalismo. Consiste

não só em romper com práticas cotidianas seculares como o consumo de bebida

alcoólica ou freqüentar espaços considerados sob domínio demoníaco como bares ou

clubes. Há também o rompimento com as práticas religiosas anteriores consideradas

demoníacas: se o fiel vem do catolicismo é proibida a relação com os santos, caso venha

das religiões afro-brasileiras não mais se permite as atividades mediúnicas com as

entidades. De acordo com Mariz e Machado (1998), esta reclamação por uma identidade

religiosa exclusiva é que fortalece o compromisso institucional, uma vez que é a

instituição que define o novo ethos.

Entretanto, diferentemente da estrutura verticalizada do catolicismo, as instituições

pentecostais se constituem de forma mais autônoma, são dotadas de uma autonomia

relativa (Mafra, 2001). As redes sociais se constituem de maneira mais “frouxa”. As

igrejas se constituem localmente: são geralmente construídas a partir de “mutirões”,

elaboram localmente as práticas cotidianas – as formas de evangelização, os cultos, etc.

-, não exigem conhecimentos específicos, estão mais próximas do cotidiano das

pessoas.

A discussão sobre religião popular a partir do catolicismo rústico valoriza a questão

da não-institucionalidade deste, bem como os conflitos entre a expressão popular e a

expressão oficial. O pentecostalismo apresenta uma institucionalidade diferente do

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catolicismo oficial. Há uma certa dificuldade em compreender o caráter popular do

pentecostalismo exatamente por esta ligação da religião com a instituição. Como vimos,

Brandão (1986) faz uma distinção entre o pentecostalismo popular e o de mediação –

estes não estariam no domínio popular por estarem ligadas a uma instituição que

reproduz os valores da classe dominante.

O pentecostalismo transforma e reinventa práticas, crenças e modos de conduta

oficiais do protestantismo, como no catolicismo popular, mas, diferentemente deste,

destaca-se do “mundo” através de uma mudança radical de comportamento por parte

dos fiéis após a conversão. As ambigüidades contidas nas formas religiosas populares

como no catolicismo rústico ou nas religiões afro-brasileiras, são desfeitas no

pentecostalismo. Mal e Bem ganham contornos claros e bem definidos. Isso difere

bastante o pentecostalismo do catolicismo popular, que mistura, por exemplo, em suas

festas, ritos sagrados e profanos (Zaluar, 1997).

O pentecostalismo difere bastante do catolicismo rústico: embora encantado

como este, a sua legitimidade não vem da tradição, mas antes de projeções futuras sobre

o mundo. As pessoas se convertem e mudam radicalmente o estilo de vida porque se

preparam para a “vinda de Jesus” que levará consigo os “salvos”. Além disso, esta

mudança de comportamento se baseia num saber religioso que não é completamente

desvinculado de qualquer institucionalidade. Ao contrário, a mudança de ethos está

ligada à entrada em alguma igreja.

Também gostaria de chamar a atenção para o fato de que, diferente do

catolicismo popular, o pentecostalismo não traz consigo as ambigüidades e sincretismos

presentes naquele. A mudança de ethos exige uma identidade religiosa exclusiva: deve-

se abolir práticas antigas, que são reinterpretadas como demoníacas. Obviamente, isto

significa um certo grau de sincretismo religioso, mas que difere qualitativamente do

sincretismo presente no catolicismo popular. Neste, o sincretismo é ambivalente:

práticas consideradas sagradas e profanas são realizadas pelos fiéis. No pentecostalismo,

sagrado e profano permanecem separados: o sincretismo existe, mas não de forma

ambígua. O pai-de-santo que se converte não deixa de acreditar nas suas práticas

antigas, mas elas passam a ser demoníacas e proibidas.

As reflexões acerca da religiosidade popular resultante de diversas análises que

se concentram, sobretudo, no catolicismo camponês, não parecem ser adequadas para

compreendermos o pentecostalismo enquanto forma de religião que cresce com maior

ênfase nas camadas populares. A força do pentecostalismo parece vir exatamente de

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uma mudança de ethos que está ligada a um compromisso institucional e não a um saber

e prática religiosa desvinculado de uma igreja. Além disso, as recriações do

pentecostalismo não se dão de maneira sincrética e ambígua, como no catolicismo

popular: ou seja, o pentecostalismo reclama uma identidade religiosa exclusiva em que

Bem e Mal, Sagrado e Profano são postos de maneira clara e bem delineada. Deste

modo, onde estaria a resistência cultural e política que estão presentes nos modelos

teóricos construídos para se pensar a religião popular, se na recriação dos pentecostais

há uma ligação com a instituição e não permanecem valores e práticas religiosas

anteriores à conversão?

A análise do pentecostalismo de acordo com o modelo teórico desenvolvido para

se pensar a religiosidade popular mostra os limites do mesmo. A minha intenção não é

desconstruir as atuais reflexões, nem mesmo propor um novo modelo de interpretação.

É bem mais modesta: consiste em tentar compreender o pentecostalismo enquanto

religião popular, suas práticas e rituais, no âmbito urbano, mais especificamente, nas

periferias dos grandes centros urbanos.

Como nos mostra Costa (1989:209),

“Ficam freqüentemente sem resposta nessa literatura [sobre o ‘popular’] os

efeitos que o rápido e brutal processo de modernização do país teria sobre a

identidade cultural da população. A reorganização do espaço urbano, a

violência cotidiana, a estruturação da família, o desemprego estrutural, a

imposição de padrões culturais através do consumo passivo do lazer, etc.

são referências ausentes nos estudos”.

Assim, para uma melhor compreensão do caráter popular do pentecostalismo,

levarei em consideração uma importante questão posta nas periferias urbanas - onde

mais crescem as igrejas pentecostais: a violência. A partir da análise do pentecostalismo

em contextos de violência urbana, pretendo trazer à tona características desta religião

que não estão presentes nos modelos da religião popular, e até mesmo em desacordo

com eles, mas que são extremamente importantes para refletirmos sobre a religiosidade

popular nas periferias dos centros urbanos contemporaneamente.

1.3) O PENTECOSTALISMO EM CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA

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O que pretendo realizar aqui é o seguinte: a partir do contexto no qual se

encontra inserido (com sucesso) o pentecostalismo, e considerando suas próprias

características – muitas delas em desacordo com os modelos teóricos a respeito da

religiosidade popular -, trazer para discussão novos elementos, com o intuito de

enriquecer o debate sobre a religião popular no contexto das periferias urbanas

brasileiras.

A violência presente nos centros urbanos do Brasil e da América Latina é uma

violência que atravessa classes sociais. Entretanto, embora exista em diversos lugares e

atinja diversas pessoas, a violência não atinge homogeneamente a cidade (Cano, 1995).

Os dados do Rio de Janeiro mostram que as áreas de menor desenvolvimento sócio-

econômico sofrem muito mais com a violência que as áreas mais desenvolvidas,

evidenciando uma correlação entre violência e status sócio-econômico. As maiores

vítimas da violência no Rio de Janeiro têm um perfil já bastante conhecido: são negros e

pardos, de baixa renda e baixa escolaridade, moradores de áreas pobres, homens e têm

entre 15 e 24 anos de idade (Cano, 1997)

Como nos mostra Soares (2005) esses indivíduos são, geralmente, vítimas e

algozes de um processo perverso de sociabilidade, que relega muitos à invisibilidade

para qual a saída mais viável é o uso da arma de fogo e a entrada para o narcotráfico. E

este é um processo que ocorre exatamente nas áreas mais pobres da cidade: nas favelas,

nos subúrbios, etc. Olhando pelo lado de fora, o senso comum enxerga ali um reduto de

perigosos bandidos, um lugar onde a vida é algo banal. Porém, a favela não é

sociologicamente uma comunidade: ali habita uma população heterogênea que se

comunica com a sociedade mais ampla, é um lugar onde as relações sociais e os valores

constituídos não diferem daqueles vigentes “no asfalto” (Machado, 1967). Portanto,

embora este processo do qual nos fala Soares aconteça ali, não atinge a todos da mesma

forma.

O tráfico de drogas é um catalisador da violência dentro das áreas mais pobres

da cidade. Os conflitos entre quadrilhas rivais e entre bandidos e policiais só fazem

aumentar as cifras das mortes violentas dentro dos subúrbios e favelas. Além disso, o

ethos masculino que se desenvolve dentro do tráfico fragiliza as relações sociais dentro

destas áreas. O traficante, que afirma sua masculinidade e seu poder, cunhado na

“disposição para matar” usando sua arma de fogo, traz o medo e a insegurança para a

vida cotidiana da comunidade (Zaluar, 1997).

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Todavia, se por um lado a violência cresce de maneira heterogênea na cidade, é

interessante notar, por outro lado, que as transformações no campo religioso ocorrem

com mais intensidade dentro das camadas mais populares da sociedade. Liderando a

multiplicação institucional evangélica, é nos subúrbios e nas favelas que as igrejas

pentecostais vão se multiplicar com maior velocidade e maior intensidade. Sampaio

(2005) chama a atenção para as semelhanças entre o perfil dos pentecostais e o perfil

das vítimas da violência: 57 % da população evangélica recebe até 2 salários mínimos,

40% tem até 4 anos de escolaridade e 51% é o somatório de “negros” e “pardos”.

Sampaio conclui que

“Embora os dados apresentados tenham níveis de abrangência

diferenciados, é possível inferir que os moradores de favelas têm perfil

correspondente à maioria dos evangélicos pentecostais e ao mesmo tempo

aproximam-se da maior parte das vítimas de violência e homicídio”.

(2005:13)

Não podemos provar a existência de alguma correlação entre os índices de

violência e a presença de pentecostais em áreas socialmente vulneráveis, muito menos

sugerir vínculos causais entre as variáveis, pois falta ainda uma pesquisa quantitativa

que dê segurança para a construção de modelos teóricos a esse respeito. Contudo,

muitos pesquisadores perceberam relações qualitativas entre grupos religiosos e a

violência dentro de áreas socialmente vulneráveis.

A antropóloga Alba Zaluar argumenta que traficantes e pentecostais são

extremos que se tocam. O narcotráfico é associado à imagem do mal; os traficantes são

agentes a serviço do demônio. Usam drogas e um palavreado moralmente condenável.

Andam armados, matam, fazem o mal. Por sua vez, os pentecostais são os agentes de

Deus na terra. Pregam a sua Palavra; usam roupas decentes. Têm uma conduta social de

acordo com os preceitos evangélicos. Convidam todos à salvação e à obediência à

Palavra do Senhor. O narcotráfico representa o mal, o pentecostalismo, o bem. De um

lado o medo de uma invasão policial imprevista ou do ataque dos adversários; de outro

o medo das ciladas do demônio que podem retirar o crente do caminho reto.

Paradoxalmente, é exatamente esta polarização que aproxima os diferentes

agentes. Para além das oposições existe uma continuidade entre os dois sistemas

simbólicos que permite a identificação de um pelo outro. Ambos são, por exemplo,

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maniqueístas, intolerantes, clientelistas. Um é poderoso pelo manejo da arma de fogo, o

outro, pelo manejo da Palavra.

A respeito dos católicos Zaluar (1997) diz que o sagrado reside na lógica

“comunitária”. A solidariedade para com os próximos e um ethos altruístas opõe-se a

realizações egoístas de interesses particulares. A “cidade de Deus” é a cidade de um

amor comunitário que preza por solidariedade, respeito e união entre os moradores.

Assim, os traficantes aparecem, enquanto figuras do mal, como o inverso simétrico do

sagrado comunitário católico3, uma vez que procurariam realizar, através da violência,

desejos individuais, egoístas.

Entre os católicos, a absolutização da idéia de mal não ocorre como entre os

pentecostais. Um traficante pode ser uma boa pessoa que não está naquele caminho por

obra do Diabo. A idéia de Bem e de Mal entre os pentecostais aparece de maneira mais

definida. Os traficantes são partes do exército do demônio e agem em prol do mal. São

almas que precisam ser salvas através da conversão. Os traficantes, para os

pentecostais, não apenas se opõem a um espírito comunitário, mas estão

verdadeiramente possuídos pelo demônio (Zaluar, 1997).

De acordo com Mafra (1998), em sua etnografia do morro Santa Marta, católicos

progressistas e evangélicos propõem diferentes formas de relações de troca com o

narcotráfico. A principal luta na qual estão envolvidos esses católicos progressistas é a

de desassociar tráfico e moradores, ou seja, tornar os moradores independentes em

relação ao narcotráfico, atingindo a prática “populista” e “clientelista” (Mafra, 1998)

dos traficantes através de um resgate da cidadania e da conscientização dos moradores.

O objetivo aqui é um resgate do morro pelo morro, baseados numa afirmação dos

moradores da favela enquanto cidadãos e independentes do narcotráfico. Por sua vez, os

evangélicos ressacralizam o mundo (Mafra, 1998), interpretando sua existência e suas

ações nele, como espirituais.

Assim, católicos e o tráfico de drogas se vêem envolvidos numa disputa política,

onde toda e qualquer relação com o tráfico é rejeitada, não por preceitos de moral

religiosa, por enxergar no tráfico a cristalização do pecado, etc., mas pelo tráfico criar

3 Conforme Zaluar (1997:120), “embora simbolizando e realizando até as últimas conseqüências o amor ao ego e o interesse material e simbólico que o entroniza, [os traficantes] prestavam sua homenagem à ‘comunidade’ através de uma série de regras de respeito ao morador e de distribuições caridosas de bens a viúvas pobres e a crianças sem tênis; homenagem esta cada vez mais difícil e ineficaz diante dos tiroteios constantes entre eles, diante das ameaças físicas aos moradores e expulsões aos que ousassem opor-se aos seu poder”.

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um sistema de poder no qual os moradores se vêem a todo o momento submissos e que

somente uma conscientização política poderia reverter a situação.

Os pentecostais, no morro Santa Marta, demonizam o tráfico de drogas por

reconhecer que ali está presente o profano, o mundano. Porém, não estabelecem uma

completa segregação em relação ao tráfico – como efetivamente fazem os católicos –

por causa da ordem proselitista e da adesão piedosa. A principal crítica aos católicos por

parte dos pentecostais está baseada no fato de que a rejeição a qualquer relação com o

tráfico acaba por gerar uma lógica de exclusão, já que os moradores das áreas mais

pobres da favela, que geralmente são empurradas para esse tipo de negócio, acabam

sendo excluídas. Além disso, há o fato de que “não há como estabelecer fronteiras claras

com o narcotráfico, pois queiramos ou não, sempre haverá um parente amigo vizinho ou

filho que tranpös a fronteira e acaba atuando, mesmo que temporariamente, no

“movimento”. “o rigor na rejeição do tráfico leva esses católicos a rejeição da própria

comunidade” (Mafra, 1998:287).

Diferentemente dos católicos, os pentecostais não têm como preocupação

principal um resgate da cidadania e conscientização ou ideais de justiça social. O que

move estes indivíduos nas complexas relações existentes na favela é a própria

interpretação que eles fazem acerca do mundo: há uma guerra espiritual de Deus contra

o Diabo e, para que as pessoas possam ser salvas, é preciso que a palavra chegue a

todos.

Tanto os dados quantitativos quanto os qualitativos sugerem haver relações

diferentes entre diversos grupos religiosos e a violência, principalmente em contextos

em que há a forte presença do narcotráfico.

A resposta que os grupos religiosos dão ao problema da violência no contexto das

periferias urbanas brasileiras não é algo simples ou corriqueiro. Em certa medida, esta

reposta revela sucessos e fracassos dos grupos religiosos nas áreas socialmente

vulneráveis. A violência tornou-se cotidiana nesses contextos e a religião transforma-se

num instrumento através do qual os moradores lidam com as agressões e ameaças

possíveis no dia-a-dia: seja através da formulação de uma consciência política ou de

uma guerra espiritual.

As práticas pentecostais em relação à violência, sejam elas as práticas religiosas

ou as civis, são apontadas por diferentes autores (Zaluar, 1997; Alves 2002; Mafra,

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1998) como sendo uma importante chave para a compreensão da expansão desta

religião em áreas socialmente vulneráveis. Seguindo esta linha de raciocínio e

trabalhando em cima dos argumentos desenvolvidos por estes autores até o momento,

pretendo investigar mais detidamente as dinâmicas desenvolvidas por pentecostais em

contextos de violência, atentando para as suas conseqüências na vida cotidiana dos

próprios pentecostais.

Baseando-me na etnografia realizada por mim em Magé4, pretendo discutir a

importância da presença da violência no contexto das periferias urbanas brasileiras para

se refletir sobre a religião popular contemporânea. Partindo da análise dos contatos

entre evangélicos pentecostais e traficantes na periferia da Baixada Fluminense,

argumentarei que o contexto atual de desenvolvimento da religiosidade popular é este

urbano marcado por relações violentas, presença de grupos de narcotráfico, ação

policial corrupta e violenta, etc. Este contexto, que é visivelmente diferente do

camponês/rural, a partir de onde se criou o quadro de reflexão sobre a religiosidade

popular, exige outro aporte de compreensão exatamente para que a expressão religiosa

popular preserve sua mais forte característica: a resistência e auto-afirmação das

camadas populares.

Embora o pentecostalismo se caracterize por uma forte ligação do fiel com a

instituição, esta, diferentemente do catolicismo, não é tão distante dos fiéis – nem em

termos de educação, nem em termos de formalização. A hipótese que ordena este estudo

é a de que as igrejas pentecostais respondem (com sucesso) às questões postas no

cotidiano das camadas populares – principalmente em relação à violência associada ao

tráfico.

O cotidiano das áreas socialmente vulneráveis em que há a presença do tráfico,

de armas, de situações de risco, de conflitos entre polícia e quadrilhas de traficantes,

etc., exige definições e agilidade nas repostas a estas questões. Ao utilizarem com rigor

as regras de dom e contra-dom e, além disso, orientados por uma concepção encantada

de mundo que consiste em compreender as ações e os conflitos do dia-a-dia de acordo

com as disputas e as ações de Deus e do Demônio, ou seja, orientados pela lógica de

uma Batalha Espiritual (Mariz, 1999), os pentecostais conseguem responder de forma

mais precisa e ágil às questões postas por um contexto violento. Uma religião popular,

de acordo com as reflexões acerca do catolicismo popular, sincrética, ambígua e não

4 Município localizado na Baixada Fluminense.

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institucional, ofereceria múltiplas possibilidades de respostas, possivelmente

dificultando as ações coletivas e individuais num contexto que exige agilidade e

definição no trato com o tráfico, pois o reconhecimento da fronteira entre o simples

contato e a conivência é uma questão levada à sério no cotidiano das camadas populares

(Mafra, 1998).

Argumentarei, por fim, como o pentecostalismo conserva consigo um caráter de

resistência política e cultural que está desligado das características observadas no

catolicismo popular: a mistura de elementos considerados profanos pela religião oficial

com os sagrados, as ambigüidades, a não institucionalidade. Os pentecostais se

destacam dentro da área socialmente vulnerável estudada: vão as bocas-de-fumo pregar

para os traficantes, evangelizam em áreas consideradas “de risco”, tratam os rapazes do

tráfico com autoridade muitas vezes, possuem uma liberdade de circulação espacial

diferenciada de outros moradores, etc. Tentarei mostrar que, exatamente por responder

de maneira mais bem definida e ágil às questões postas pelo contexto violento, os

pentecostais conseguem se destacar. O caráter de resistência política e cultural, portanto,

não viria do sincretismo ou da não institucionalidade, como no caso do catolicismo

popular, mas da posição privilegiada e diferenciada que podemos perceber na relação

dos pentecostais com os interlocutores (violentos ou não) que estão presentes no seu

entorno.

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CAPÍTULO 2

LAGOA, MAGÉ, BAIXADA FLUMINENSE O campo no qual se extraiu os dados para o presente trabalho, localiza-se numa

região onde a pobreza e a precariedade da urbanização estão abaixo da média da

Baixada Fluminense. Periferia de Magé, município do Estado do Rio de Janeiro, a

Lagoa recebeu como seus primeiros habitantes, posseiros que se apropriavam dos lotes

abandonados, juntamente com escravos recém-libertos que por lá se estabeleciam. Com

o desenvolvimento do poder público local, a posse foi dificultada, e o bairro, então,

passou a ser ocupado por pessoas que compravam os lotes, que eram extremamente

baratos, pela região se localizar num terreno pantanoso, onde algumas horas de chuva

bastavam para provocar – como ainda hoje ocorre – inundações. Para agravar a

situação, o lugar se localiza ao lado de um rio completamente assoreado, esquecido pelo

poder público local. A Lagoa se localiza num terreno pantanoso: provavelmente poderia

ser uma antiga fazenda de um Barão do Império que foi loteada devido à crise da

agricultura brasileira no século XIX.

Por causa dos lotes baratos, muitos trabalhadores rurais (principalmente do

norte fluminense) vieram tentar reconstruir suas vidas em Magé – na Lagoa – , atraídos

também pelas oportunidades de emprego que algumas industrias ofereciam. Assim,

houve um aumento significativo da população e, com a chegada dessas pessoas, vieram

também os evangélicos pentecostais e o tráfico de drogas.

Na Lagoa da década de 1980 nasce a igreja Assembléia de Deus que protagoniza

esta etnografia. Oriundos do Espírito Santo, pastor José e sua família compram um lote

no qual se desenvolveria a igreja, que já se iniciara na casa da sogra do pastor. A igreja

era composta pela família de Jorge5 e de sua esposa, que trabalhavam, sem medir

esforços, na missão de cooptar outras famílias para a “obra de Deus”. Visitando

cotidianamente os vizinhos, realizando cultos, vigílias e orações, a igreja foi

conquistando mais adeptos e, assim, complexificando a organização de sua estrutura

interna e de suas relações com o lugar. A igreja foi presidida por Pastor Jorge durante

mais de quinze anos. Porém, atualmente, a igreja é presidida por pastor Luís, filho do

pastor presidente da Assembléia de Deus Matriz, que se localiza em Guapimirm,

município vizinho.

5 Por motivos éticos ocultarei os verdadeiros nomes das pessoas que me cederam suas histórias e depoimentos. Utilizarei nomes fictícios.

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Ao passo que a igreja crescia, o bairro também se desenvolvia e com ele o

tráfico de drogas. Atualmente, o bairro é divido entre duas quadrilhas de traficantes –

Comando Vermelho e Terceiro Comando. Segundo os depoimentos colhidos durante o

trabalho de campo, durante muito tempo uma única quadrilha dominou o tráfico de

drogas na Lagoa e há vinte anos, aproximadamente, os moradores dizem ter começado

as primeiras disputas por espaço e clientela.

O aumento da população não acompanhava o desenvolvimento da urbanização.

Muitos dos membros da igreja auxiliavam na construção das casas; a própria igreja foi

construída na base do mutirão. A precariedade da infra-estrutura alimentava o

clientelismo e a violência – práticas políticas recorrentes na Baixada -, isso alimentava

cada vez mais o desenvolvimento do tráfico na região.

Se em seu início a igreja crescia num ambiente em que havia uma infra-estrutura

urbana precária, clientelismo e inúmeras famílias de trabalhadores rurais, as quais

produziam para sua própria subsistência enquanto procuravam emprego nas poucas

fábricas e na capital, atualmente, soma-se a essas características do lugar, o aumento do

desemprego e o desenvolvimento do narcotráfico, seguido do aumento da violência.

A igreja se localiza numa parte do bairro que está bastante próxima do centro da

cidade, Parque Imperador6, o que facilitava as minhas idas ao campo, principalmente à

noite. Todavia, a região onde está localizada a Assembléia de Deus é conhecida pelos

corriqueiros conflitos entre policiais e traficantes, o que muitas vezes prejudicava o

andamento da etnografia.

Através da ajuda financeira dos membros, da igreja Matriz, localizada em

Guapimirim e de muitos moradores que não são crentes, mas são parentes de pessoas

ligadas à igreja, ou de indivíduos que enxergam no desenvolvimento da igreja uma

saída para os jovens envolvidos no narcotráfico, mas que também não são evangélicos,

a Assembléia de Deus da Lagoa conseguiu ampliar o terreno, o templo, construiu salas

para a escola dominical, etc.

Atualmente, a Lagoa possui uma grande concentração de igrejas evangélicas,

além de uma capela católica e poucos terreiros de umbanda7. A escolha da igreja onde

realizamos a pesquisa se realizou pela facilidade de entrada no campo. A etnografia foi

6 O bairro Lagoa é um complexo que compreende três localidades distintas: Parque Imperador, Mundo Novo e Bela Floresta. 7 Há em anexo um mapa da Lagoa que mostra como estão distribuídos os templos e onde se localizam as “áreas de risco”, ou seja, as áreas de maior possibilidade de conflitos entre quadrilhas e/ou entre estas e policiais.

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realizada entre os anos de 2004 e 2006: obtive um total de 15 entrevistas, elaborei

muitos diários de campo, visitei famílias, enfim, acompanhei, de maneira geral, o

cotidiano das pessoas da igreja, atentando principalmente para os contatos entre os

evangélicos e os traficantes.

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CAPÍTULO 3 A LÓGICA DO DOM E CONTRA-DOM ENTRE IGREJA E TRÁFICO NA LAGOA 3.1) PENTECOSTAIS E TRAFICANTES NA LAGOA: REJEIÇÃO E PROXIMIDADE

Os pentecostais da Lagoa afirmam para qualquer interlocutor de fora, entre eles,

eu, como pesquisador, que mantêm distância do tráfico, pois ali enxergam a esfera do

profano. Uma das características mais notáveis dos evangélicos é esta distinção radical

entre o que é “do mundo”, o que é profano, secular e o que é sagrado, o que é de Deus

(Mariz, 1997). Sendo assim, a ausência de relação entre tráfico e igreja é o fato mais

provável. Os pentecostais afirmam não haver nenhum tipo de relação entre a igreja e o

tráfico na Lagoa.

(...) eu não me incomodo não. Que eles tão fazendo as coisas deles pra lá e eu pra cá. Não tem nenhum tipo de relação com eles não. (Wagner, entrevista realizada em fevereiro de 2005)

Tráfico e igreja seriam duas esferas de ação que não se cruzam. Representam a

batalha entre Deus e o Diabo na terra; a disputa entre a salvação e a perdição das almas;

estabelecem entre si uma guerra de movimentos (Mafra, 1998). Tráfico e igreja agem de

formas opostas e independentes: “eles estão fazendo as coisas deles pra lá e eu pra

cá”; enquanto a igreja evangeliza, o tráfico vicia; a igreja dá a vida nova, o tráfico mata;

a igreja representa a salvação, o tráfico a perdição. Enfim, deste ponto de vista não há

intersecção entre tráfico e igreja ou, para usar uma expressão do campo, a relação entre

eles é “zero”.

A antropóloga Alba Zaluar argumenta que traficantes e pentecostais são

extremos que se tocam. O narcotráfico é associado à imagem do mal; os traficantes são

agentes a serviço do demônio. Usam drogas e um palavreado moralmente condenável.

Andam armados, matam, fazem o mal. Por sua vez, os pentecostais são os agentes de

Deus na terra. Pregam a sua Palavra; usam roupas decentes. Têm uma conduta social de

acordo com os preceitos evangélicos. Convidam todos à salvação e à obediência à

Palavra do Senhor. O narcotráfico representa o mal, o pentecostalismo, o bem. De um

lado o medo de uma invasão policial imprevista ou do ataque dos adversários; de outro

o medo das ciladas do demônio que podem retirar o crente do caminho reto.

Segundo Zaluar (1997), exatamente esta polarização entre crentes e traficantes

aproxima os diferentes agentes. Para além das oposições existe uma continuidade entre

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os dois sistemas simbólicos que permite a identificação de um pelo outro. Ambos são,

por exemplo, maniqueístas, intolerantes, clientelistas. Um é poderoso pelo manejo da

arma de fogo, o outro, pelo manejo da Palavra .

A idéia de Bem e de Mal entre os pentecostais aparece de maneira definida. Os

traficantes são partes do exército do demônio e agem em prol do mal. São almas que

precisam ser salvas através da conversão. Os traficantes, para os pentecostais, não

apenas se opõem a um espírito comunitário, mas estão verdadeiramente possuídos pelo

demônio (Zaluar, 1997).

“No plano religioso evangélico, pentecostal e popular,

bandido é, assim, o que escolhe a identidade negativa, com a

qual acaba por se identificar por uma série de circunstâncias.

Essa dicotomia absoluta embasa a firmeza dos evangélicos de

lutar dentro de si mesmos contra a presença do Diabo na

“cidade de Deus”; centrados, entretanto, na sua salvação

individual, na sua igreja, algumas das quais proclamam-se

como as únicas verdadeiras, excluindo as outras como coisa do

maligno”. (Zaluar, 1997:120)

A respeito dos católicos Zaluar (1997) diz que o sagrado reside na lógica

“comunitária”. A solidariedade para com os próximos e um ethos altruístas opõe-se a

realizações egoístas de interesses particulares. A “cidade de Deus” é a cidade de um

amor comunitário que preza por solidariedade, respeito e união entre os moradores.

Assim, os traficantes aparecem, enquanto figuras do mal, como o inverso simétrico do

sagrado comunitário católico, uma vez que procurariam realizar, através da violência,

desejos individuais, egoístas.

A importância do modelo de salvação individual em entre pentecostais também é

salientada pelo sociólogo José Cláudio Alves (2002). Os evangélicos estariam mais

ligados a uma visão individual dos problemas locais em relação à violência e ao tráfico

de drogas. Uma conseqüência disso seria a maior visibilidade e empenho,

principalmente por parte dos pentecostais, na aproximação (com fins proselitistas, de

tratamento psicológico e espiritual) de dependentes químicos e traficantes. Isto seria

algo que permitira a esses grupos uma comunicação muito maior com estes setores,

favorecendo processos individuais de solução (Alves, 2002).

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Embora. à primeira vista pareça que os pentecostais estejam isentos de uma

relação com o tráfico, existe uma proximidade em muitos casos: física, geográfica, de

socibilidade, em relação ao parentesco e à família. Igreja e tráfico convivem no mesmo

bairro. Estão nas ruas, nas esquinas, em casa. Ao lado da igreja, uma boca-de-fumo;

uma irmã crente tem um filho traficante; primos pertencentes aos dois grupos ficam

juntos: no futebol, nas conversas de rua, na escola. Porém, a igreja repudia o

narcotráfico. Os pentecostais da Lagoa, por exemplo, possuem uma rotina de orações,

louvores, vigílias, etc. que tem como objetivo principal a intercessão pelo bairro; há

pedidos de paz, pelo fim do tráfico e pelo fim do envolvimento dos indivíduos com o

mesmo. Os crentes levam aos traficantes, em atitudes muito ousadas, a palavra de

Deus.

Os grupos de jovens e de senhores, realizam suas saídas em todas as regiões do

entorno da Lagoa, visando pregar, orar e entoar louvores para os transeuntes. E o fazem

mesmo nas áreas consideradas “áreas de risco”, por causa da presença intensa do

tráfico. Os crentes sempre contam o sucesso que obtêm nestas “saídas”8. Contam que os

traficantes choram, jogam as armas no chão e alguns deles se convertem, mesmo que

dias depois retornem ao tráfico. Porém, mesmo que estas ações atinjam os traficantes,

não são ações voltadas para o tráfico; as saídas têm como propósito fundamental a

evangelização na própria comunidade.

(...)um dia eu subi no morro e ele tava com mais de vinte. Nós fomos evangelizar no morro num dia de domingo de tarde, só com a mocidade. Mas uma coisa tremenda o poder de Deus: os caras joga as armas tudo no mato, choram, pedem oração. Eles aceitam chorando e muitos se convertem. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

Aqui podemos perceber a construção de um paradoxo em relação ao discurso

dos crentes na Lagoa: se por um lado, há a veemente negação de qualquer tipo de

relação com o tráfico local, pois ali se reconhece a esfera do profano, esfera de ação do

Demônio, por outro, há uma preocupação com os indivíduos envolvidos no tráfico; faz-

se orações nas bocas-de-fumo e outras ações proselitistas em relação aos traficantes. Há

a negação da relação, mas se estabelece o contato.

8 Categoria nativa utilizada para designar o momento em que os grupos vão às ruas, às esquinas, às bocas-de-fumo para realizarem pregações e louvores no espaço público local.

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Por mais que este tipo de contato seja direto, pois muitas vezes os crentes vão

até as bocas-de-fumo pregar para os rapazes do tráfico, não se estabelece ali um embate

direto. O objetivo não é desarticular o tráfico, a fim de se fazer justiça dentro da lei –

como no caso dos católicos do Santa Marta9 – mas, interferir espiritualmente “ganhando

almas para Jesus”. O objetivo é fazer com que os traficantes “aceitem Jesus”,

convertam-se, conseqüentemente, abandonando o narcotráfico. Segundo os

pentecostais, há uma batalha espiritual na qual os homens atuam a favor de Deus ou do

Diabo: o exército de Deus age tentando libertar os homens do Diabo, através da

conversão, “aceitando Jesus”; os homens que pertencem ao exército do Demônio agem

visando a perdição dos “santos”, tentando corrompê-los, enganá-los, contaminá-los.

Desse modo, a relação entre igreja e tráfico não é “zero”, mas assume contornos

espirituais. Os católicos progressistas entram numa disputa política com o tráfico,

usando como instrumento a conscientização dos moradores. Na batalha espiritual, os

crentes visam cooptar mais homens para o exército de Deus, livrando-os da perdição e

da morte, por meio do proselitismo e da oração. Por meio desta batalha espiritual,

traficantes e pentecostais travam uma guerra, que na verdade é a guerra entre o bem e o

mal, entre Deus e o Diabo.

“(...) [há um trabalho específico] de oração. De oração, pra Deus trazer essas pessoas pro meio evangélico, pra Deus trabalhar mesmo, libertar eles né. E usamos, sempre, quando vamos pregar o evangelho, cada um tem o seu pensamento. Eu, no meu pensamento, na forma como eu procuro me expressar perante o púlpito, anunciar o evangelho ne, também não uso fazer a menção... Você tem que abandonar as drogas e vir pra Jesus. Eu não uso falar dessa forma. Primeiro porque isso não vai mudar o quadro da vida dele, porque o que leva a pessoa a mudar é ele se arrepender dos pecados e aceitar Jesus. Porque se eu prego a mensagem, você tem que se arrepender dos seus pecados e aceitar Jesus. Ele pode estar nas drogas, pode estar em qualquer tipo de circunstância na sua vida que vai mudar o quadro da vida dele. Você tem que abandonar a sua vida de alcoólatra: eu não uso dessa forma, porque você deve se arrepender dos seus pecados e aceitar Jesus. Porque é possível, muitas das vezes, uma pessoa abandonar o álcool, abandonar as drogas, abandonar o cigarro e não mudar o quadro da vida dele, pois ele não aceitou Jesus. Perante à sociedade ele vai tá bem, mas é possível que daqui a pouco ele vai voltar a fazer aquilo novamente, porque ele não fez o certo. Ele apenas ele deixou de fazer. Mas quando ele aceita Jesus, ele é liberto. Por isso Jesus diz:

9 Conforme Mafra(1996), entre os católicos progressistas, a recusa de relação direta com o tráfico e a disputa de espaço e influência com o mesmo, são as regras principais. Os católicos trabalham baseados num ideal de justiça social que se constrói a partir do resgate do ideal de cidadania dos próprios moradores. Assim, a conscientização política dos indivíduos torna-se mais importante que a própria conversão ao catolicismo.

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conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. A origem de tudo isso aí é o pecado. Inclusive tivemos um culto num dia desse aí, no bairro Saco: cheguei pros irmãos ó, não vamos ficar mencionando sobre o traficante, que precisa abandonar, deixa ele pra lá, vamos falar de Jesus, dos benefícios de Jesus, que Jesus cura, que Jesus dá alegria, que Jesus dá paz”. (Paulo, entrevista realizada em fevereiro de 2005)

Neste trecho de entrevista, podemos perceber como o irmão recusa um embate

direto com o tráfico, preferindo atuar utilizando a lógica da batalha espiritual. Ele não

fala diretamente às pessoas para saírem da vida do crime, do narcotráfico; ele diz que

elas precisam aceitar Jesus. O que garante a mudança de vida ao indivíduo não é

simplesmente abandonar a vida das drogas. A pessoa pode ficar circulando entre o que é

“santo”, “puro”, e o que é “pecado”, “impuro”, se o motivo de sua saída não for de

origem divina. O que garante a “mudança do quadro da vida” do indivíduo é o fato dele

cumprir o ritual de passagem ao exército de Deus “aceitando Jesus”, pois, se o mal que

assola a sua vida possui uma origem sobrenatural – o Demônio -, então, para se reverter

a situação, não basta uma conscientização (política), mas enxergar a batalha entre Deus

e o Diabo e se posicionar do lado “santo”.

3.2) AS ESTRATÉGIAS DE AÇÃO EM RELAÇÃO AO TRÁFICO

Um traço marcante existente em contextos de violência em que há presença do

narcotráfico é a ambigüidade que há nas relações entre estes e os demais moradores do

lugar. Por um lado, a tirania do traficante armado projeta um sentimento de revolta e

indignação; por outro, estes mesmos traficantes violentos são vistos com respeito e

admiração quando defendem a “área” de quadrilhas rivais, por exemplo (Zaluar, 1985).

Esta ambigüidade tem conseqüências perversas para os moradores do lugar, uma

vez que ela permite compreender as relações entre traficantes e localidade tanto como

uma relação de conflito como uma relação de cooperação. Isso faz com que, no senso

comum, os moradores de uma área socialmente vulnerável em que há presença de

tráfico de drogas sejam reconhecidos, muitas vezes, como cúmplices potenciais do

narcotráfico.

Como compreender então, uma proposta de ação religiosa que rejeita a relação

com o tráfico, por motivos óbvios, mas que, ao mesmo tempo, recorre a uma

proximidade a ele em suas ações proselitistas, já que optam por soluções individuais em

relação aos problemas gerados pela presença e atuação do narcotráfico? Como estar

próximo à fonte do mal sem ser por ela contaminada?

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A vida cotidiana de um bairro socialmente vulnerável oferece alguns desafios

aos pentecostais. Muitas vezes vi algumas situações que poderíamos caracterizar como

portadoras de uma tensão moral ou ética que foge à vida ritual do culto e da pregação.

Durante o meu trabalho de campo, a igreja foi assaltada três vezes. Os ladrões levaram

equipamentos eletrônicos de alto valor (caixas de som, amplificadores, cd player),

instrumentos musicais, bicicletas. Estes bens, segundo os fiéis, foram comprados com

muito sacrifício: dezenas de rifas vendidas, horas trabalhando no bazar da banda da

igreja – onde todo o dinheiro conseguido é destinado a gastos com instrumentos e

equipamento de som -, etc. É um investimento difícil de ser recuperado.

Todavia, como em outros bairros ocupados pelo narcotráfico, este tipo de atitude

não é bem vista pelos “donos do poder local” – os traficantes –, estando os assaltantes

sujeitos à punição assim que descobertos. Os moradores do lugar, portanto, podem ter

seus bens devolvidos caso comuniquem ao chefe local a perda que sofreram. A igreja,

sendo parte da comunidade, poderia, portanto, fazer valer a “lei local”, recorrendo à

autoridade do tráfico. No entanto, evita-se este tipo de contato. Como conta o presbítero

Rogério:

“O camarada foi lá... um dia desses entraram lá no pátio da igreja e roubaram o rádio de um carro. Levaram uma bicicleta semana passada, novinha. Aí o irmão foi lá. Foi lá, falou com não sei quem e aí o pastor reclamou. Falou: olha irmão não faz isso não, não vale a pena não. É nessa hora que você corre o risco, sabe de quê? De entrar. O cara chega lá e negocia contigo: olha, vou atrás do seu prejuízo, vou lhe repor. Tu vai ficar com uma dívida com o vagabundo. Aí logo depois ele chega lá, que vagabundo infelizmente é isso né, ele faz um favor pra você e logo depois ele vai cobrar de você. Aí você, fulano, roubaram meu rádio, ele vai lá, apanha, amanhã ele vai querer que você bote ele aqui dentro da sua casa pra lhe dar janta. Então é melhor você pedir a Deus a ajuda pra comprar outro rádio, larga aquele rádio pra lá, porque se o cara trouxer isso da outro caso. Mas a gente não costuma fazer isso não pra não ter nenhum tipo de relacionamento fora dos padrões da Bíblia, com um ciclo de pessoa... não que... a questão não é o cidadão, não é a pessoa, a questão é aquilo que ta nele, aquilo que ta agindo na vida dele, se a gente entrar naquele esquema ali, com certeza ele vai tentar corromper a igreja, aí vai sair fora da ordem da Bíblia, aí complica tudo, aí complica tudo, entendeu”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

A fim de compreender melhor este exemplo, é importante entendermos as regras de

troca embutidas na situação. De acordo com Mauss (1974), a troca não é um ato

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simples. Ela produz relações (políticas, religiosas, econômicas, jurídicas, etc.). As trocas

não são necessariamente de artigos materiais ou presentes, mas compreendem também

símbolos, sejam visitas, festas, tributos, etc. A base dessas relações de troca é

estabelecida sobre três atitudes obrigatórias: dar, receber e retribuir. Assim, entende-se a

constituição da vida social por um constante dar e receber.

Segundo Lanna (2000:176), “ao receber alguém

estou me fazendo anfitrião, mas também crio, teórica e

conceptualmente, a possibilidade de vir a ser hóspede

deste que hoje é meu hóspede. A mesma troca que me

faz anfitrião, faz-me também um hóspede potencial. Isto

ocorre porque ‘dar e receber’ implica não só uma troca

material, mas também uma troca espiritual, uma

comunicação entre almas”.

Todo artigo trocado, seja material ou simbólico, possui um mana, que é fonte de

autoridade, riqueza e prestígio (Mauss, 1974). Assim, quando algo é doado, o doador

estende seu mana ao recebedor, que deverá retribuir o presente. Estabelecer relações de

troca, portanto, é mesclar almas; permite a comunicação entre os homens, a inter-

subjetividade, a sociabilidade (Lanna, 2000). Mas esta comunicação nem sempre se dá

de maneira que se possa estabelecer uma relação de eqüidade entre os agentes. Ao

contrário, a todo o momento criam-se hierarquias, já que doadores são superiores a

recebedores; estes últimos possuem uma dívida com os primeiros. Entretanto, a lógica

de dom e contra-dom presente na etnografia da Lagoa, mostra também que “o que está

em causa não é a reciprocidade envolvendo bens ou pessoas, mas sim a reciprocidade

no reconhecimento de hierarquias e submissão a quem tem força, poder e prestígio.”

(Mafra, 1996. p. 280)

A possível relação de justiça estabelecida aqui se torna um problema para os

pentecostais, pois o parceiro em potencial “foge aos padrões da Bíblia”.Caso recorra ao

tráfico, a igreja acionará uma relação de reciprocidade; enquanto recebedora de um

favor, estará fadada a um contra-favor, terá uma “dívida” com ele, de forma que a

congregação terá de construir uma relação de parceria. O tráfico se faz presente na

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igreja através do favor feito e ela se fará presente no tráfico através do contra-favor.

Utilizando termos do campo: “é nessa hora que a igreja corre o risco de entrar”, pois

“amanhã ele [o traficante] vai querer que você bote ele aqui dentro da sua casa pra lhe

dar janta”.

Estabelecer um contato com o tráfico em que haja troca significa, portanto, para os

pentecostais, duas coisas: 1) criação de um vínculo com o narcotráfico, uma vez que, ao

receber algo do tráfico – a ajuda para recuperar o bem furtado – o próprio tráfico se faz

presente na igreja, estendendo-se seu mana a ela; 2) ao doar algo à igreja, o tráfico

posiciona-se enquanto doador e a igreja, em contraponto, como recebedora. A dádiva

recebida hierarquiza: a igreja tem uma dívida com o tráfico, com o Mal, com o

demônio: além de criar um vínculo com ele, terá de servi-lo, retribuindo o que foi dado

em algum momento.

Da mesma forma que, na guerra espiritual, se Deus age através dos homens,

aumentando o número de fiéis, retirando-os do pecado, o Diabo, através do tráfico, pode

“contaminar” os “santos” fazendo-os contrair consigo uma dívida através de uma

relação de reciprocidade. Porém, uma religião que salienta a idéia do diabo é também

ética. Há condenação, há o bem e o mal. Não se pode apelar para a figura do demônio

para resolver os problemas (Mariz, 1997).

A Batalha Espiritual funciona, então, como uma narrativa que coloca todo contato

com o tráfico sob suspeita. Nesta relação, a igreja pode se estabelecer como doadora

espiritual e até mesmo material: o crente pode aconselhar, falar de Jesus, atender a um

pedido por comida e, enquanto isso, evangelizá-lo. Porém, o crente não deve estabelecer

nenhum tipo de vínculo com o traficante: o vínculo entre os indivíduos pode ter um

efeito “poluidor”.

“(...) Nesse sentido, se ele precisar de um conselho, sempre nós estamos pronto a dar um conselho. Procurar tirar o elemento do mal caminho e trazer ele pra um bom caminho. A gente acolhe num sentido moral, entendeu, no sentido espiritual, mas se a gente, se no início assim, se chegar um bandido aqui na minha porta eu dou um prato de comida a ele, não posso negar. A Bíblia me ensina a fazer isso, dou um pão pra ele, com manteiga, se ele ta com fome. Ah, eu to com fome, então eu digo pra ele: você espera aí que eu vou pegar. Dali meu irmão, acabou o relacionamento. Se enquanto ele estiver comendo eu puder falar alguma coisa de Jesus pra ele eu falo, já aconteceu isso aqui. Mas se ele falar, ah, eu to foragido, tão querendo me matar, eu quero dormir aí na sua casa, aí eu vou falar: ah, meu amigo, infelizmente, nem na varanda você vai poder dormir. Porque se

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não depois eu posso levar flagrante com vagabundo dentro da minha casa”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

Se o crente estabelecer um vínculo com o traficante, pode ser “contaminado” e

até mesmo reconhecido como cúmplice dele. Se o irmão recebe o traficante em seu lar,

este se torna um hóspede em potencial dele (Lanna, 2000). A questão enfrentada pelo

pentecostal não é a de sua casa ser invadida por um traficante foragido, desrespeitando o

seu direito à propriedade, mas o problema moral/ético/espiritual de estar auxiliando um

membro do exército do Demônio, estabelecendo, assim um vínculo com ele.

O que vale sublinhar é que a igreja tenta se estabelecer como doadora espiritual

ou material em relação aos traficantes. Esta posição marca o limiar entre a ajuda e a

cumplicidade para os envolvidos na relação. O contato entre igreja e tráfico é permitido,

diferente da ação dos católicos em relação ao tráfico no morro Santa Marta (Mafra,

1998), abominando qualquer tipo de contato e priorizando a disputa direta com eles

através da conscientização dos moradores. Embora, no caso pentecostal, o contato seja

permitido, seus limites devem ser bem claros: é preciso evitar quaisquer atitudes que

permitam o reconhecimento de um vínculo, caso contrário, a relação torna-se proibida.

“A igreja, o relacionamento da igreja com o tráfico, na verdade é zero, se não orar. Orar e dar conselho. Esses dias mesmo nós pegamos um camarada aí, envolvido no tráfico, todo embaraçado. E ele aceitou Jesus, nós demos uma assistência. Ele não perseverou porque ficou com medo. Os caras começaram a ameaçar, que ia matar, que ele saiu, e aquela coisa toda entendeu. A igreja, o relacionamento da igreja com tráfico é só mesmo orar pra Deus libertar essas pessoas, pra Deus tirar eles daquele meio, entendeu. Se chegar um traficante e quiser uma ajuda,a igreja é muito cautelosa, entende. Por que a igreja é muito cautelosa? Já vi chegar lá, vários, chegou lá um cara lá matador um dia desses fugido, um fugitivo matador, de manhã cedo, numa oração de seis horas da manha, desesperado, queria ajuda. Mas olha só, aqui não tem lugar pra você ficar, que todo mundo conhece o cara. Aí você pega um bandido desse bota dentro da igreja, amanhã a polícia vem, dá um flagrante, vocês tão guardando bandido, e aí? Se ele estivesse numa sessão espiritual, o que que acontece, aquilo ali é público, a igreja é pública, então a questão de estar ali, o cara entrou, a porta ta aberta, se a policia pegar ele la dentro, não, olha so, a gente ta aqui realizando um trabalho espiritual! O cidadão entrou... mas se a gente guardar... Se ele se converter e a gente vê que ele ta produzindo os frutos do entendimento que a Bíblia diz e ele ta largado no mundo, aí arruma-se, dá um apoio a ele, com muito cuidado, com muita cautela. Mas se o cara chegar e ah, eu sou traficante, to correndo pra lá e pra cá, quero ficar aí dentro, não, não, não, infelizmente a gente não vai poder. Porque a Bíblia manda a gente ser prudente. Quando você guarda um bandido dentro da sua casa você ta se expondo, ou ele te roubar, ou ele levar um flagrante dentro da sua casa, ele vai complicar a sua vida, não é verdade?”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

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Este trecho de entrevista revela a complexidade do contato entre pentecostais e

traficantes. A negociação entre “ato lícito” e “ato ilícito” vai às minúcias do evento.

Deve-se acolher o traficante dando-lhe comida, água e palavra, pois este é um princípio

cristão de hospitalidade. A estratégia apresentada na entrevista por irmão Rogério é: dar

primeiro água e comida e, enquanto come e bebe, é possível falar de Jesus para o

traficante. Mas em hipótese alguma o crente pode acolhê-lo dentro de casa, pois os

perigos contidos aí são relevantes: haverá um comprometimento do crente com o

traficante que ultrapassa o relacionamento público, digamos, formal. Há, portanto, o

perigo de construir um vínculo com o traficante. Se a polícia chegasse naquele

momento, o crente poderia ser indiciado por crime de associação ao tráfico. “Quando

você guarda um bandido dentro da sua casa você tá se expondo”, ultrapassando os

limites de sociabilidade e desrespeitando regras que viabilizam uma certa “imunidade

moral” dos pentecostais.

O acolhimento público do criminoso / possível converso é fundamental nesta

negociação moral. Não é Maria ou Rogério que acolhem o bandido, mas a irmã Maria

ou o irmão Rogério.

Embora os crentes priorizem um modelo de ação em relação ao tráfico que

privilegia soluções individuais, os contatos entre eles são regidos por regras coletivas.

Estas dizem como o crente deve se portar, o que é certo e o que é errado, o que o crente

deve falar, o que ele pode receber ou ouvir do traficante.

“(...)você precisa saber botar uma barreira, botar um muro: opa, esse muro aqui você não pode passar. Esse muro é no sentido figurado. Não é um muro de madeira, de concreto. (...)às vezes é conversa secular, não precisa nem ser evangelizando. Você pode sentar com ele, conversa secular, e conversar com ele normalmente, igual você conversa com colega seu da rua. Conversa normalmente só que você tem que colocar limites. Ele sempre vai te oferecer alguma coisa. É difícil. Eu sempre falo, numa vez que eu dava aula na escola dominical: você tem que andar com dois sacos do lado: um sem furo e outro com furo. Aí o que acontece, as coisas boas você pega e bota no sem furo e as coisas ruins você bota no que tem furo, que vai ficar por ali mesmo. Aí você aceita”. (Eduardo, entrevista realizada em março de 2006)

“A minha relação com eles é: bom dia, boa tarde, sento pra conversar, mas eles faz lá as coisas deles e eu sou crente. É um jeito de você dizer não, você saber botar uma barreira, botar um muro. Opa... esse muro aqui você não pode passar. (...)Igual eu to conversando com você, a gente ta conversando sobre um assunto, eu posso ser aberto com você ou não, eu posso fechar uma oportunidade de você querer descobrir alguma coisa de mim ou não, mas é você que tem que botar o seu limite, não as pessoas fazer um limite pra você. É você que tem que ter um limite”. (Eduardo, entrevista realizada em março de 2006)

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Este “muro” do qual nos fala o entrevistado deve prevalecer em qualquer

situação. Não é apenas uma regra de conduta formal que deve ser seguida no espaço

público. É uma regra que garante a “imunidade moral” do crente ao entrar em contato

com o traficante. Porém, num bairro atravessado por relações de parentesco, muitas

vezes tráfico e igreja encontram-se dentro de casa, por exemplo, na relação entre a mãe

evangélica e o filho traficante:

“(...)já teve dias dele chegar em casa e dizer assim: minha mãe, abrir o armário, e dizer, Tem comida? Eu dizer, Tem, tem um pouquinho de arroz, um pouquinho de feijão na panela, a conta pra ele comer - porque eu dividia aquele pouco pra todo mundo. Se a senhora quisesse, mãe, eu iria lá fora agora e fazia uma boa compra pra senhora. Aí o que aconteceu, naquela hora me deu um nervoso, eu agarrei no peito dele, sacudi e falei: nunca mais você me fala isso, porque eu sou sua mãe e eu não aceito coisas erradas dentro da minha casa. Mãe que isso? Eu falei, ó, um dia você vai ser preso e você não vai dizer eu estou aqui porque minha mãe aceitou aquele dinheiro imundo. Aí ele também abaixou a cabeça e nunca mais. Então, hoje, eu sei quem é o meu filho porque eu não sou boba. E muitas coisas que a gente olha e Deus vai orientando a gente. (Cristina, entrevista realizada em fevereiro de 2006)

Através deste trecho de entrevista podemos reconhecer de forma mais patente a

maneira como os evangélicos lidam com situações eticamente perigosas. Múltiplos

papéis estão na situação: mãe/crente e filho/traficante. A mãe pobre necessita de ajuda:

seria legítimo um filho ajudar a mãe com seu próprio dinheiro. Porém, o filho é

traficante. E a mãe evangélica percebendo que a origem da ajuda do filho é o tráfico –

“eu sei quem é meu filho”, diz a mãe” – sabe que deve rejeitá-la.

Se a mãe evangélica aceita a dádiva do filho traficante ela estará contraindo

uma dívida com o próprio tráfico. Este contaminará a mulher crente, através do que foi

trocado, corrompendo-a. A dificuldade não reside no indivíduo, mas no vínculo que ele

traz consigo; a questão posta em jogo é: com quem se troca? Com quem estarei

estabelecendo uma relação de reciprocidade? Antes de ser uma relação entre mãe e

filho, há ali, presentes, tráfico e igreja.

Através da batalha espiritual, os crentes têm grande agilidade na formulação de

respostas morais adequadas para os múltiplos pertencimentos: “e Deus vai orientando a

gente”, conclui a entrevistada. A lógica do dom e contra-dom entre evangélicos e

traficantes se dá de maneira singular neste contexto, pois não diz respeito só a doadores

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e recebedores, mas a uma articulação criteriosa segundo o papel social e o espaço

público do lugar.

A mãe que relatou a situação anterior não possui dúvidas em relação à atitude

que deve ser tomada. Ela, como mãe, estando numa situação de pobreza extremada,

poderia aceitar a ajuda do filho. Seria legítimo. Mas se age enquanto indivíduo isolado,

ignorando a Batalha Espiritual, e aceita a dádiva do filho, ela se corrompe, contamina-se

com o mal contido na dádiva. Entretanto, ao assumir o papel de Irmã Cristina, ou seja,

tendo em mente as questões postas pela Batalha Espiritual, a situação

eticamente/moralmente perigosa ganha contornos claros: não é possível receber algo do

filho, pois ele é um traficante e um “crente”, “eleito do Senhor”, não pode ter dívidas

com o Demônio.

3.3) CONIVÊNCIA OU RADICALIZAÇÃO DA LÓGICA DE DOM E CONTRA-DOM?

Observamos, então, que os evangélicos da Lagoa, ao se aproximarem de

traficantes, levam consigo um instrumental de ação que pode ajudar a estar próximo do

mal, tentando atrair os rapazes do tráfico para a igreja, numa guerra de movimentos

(Mafra, 1998), sem serem “contaminados” por eles. Porém, o modelo de ação

pentecostal – priorizando o processo individual de conversão e sendo orientado por uma

lógica de dom e contra-dom, bem como pela narrativa da Batalha Espiritual – possui

dificuldades, uma vez que muitos evangélicos, pastores e fiéis, atuam fora desse

modelo, quebrando as regras de sociabilidade em relação aos traficantes.

Num trecho de entrevista, um irmão nos dá um contra-exemplo: mostra-nos

como a relação de reciprocidade entre tráfico e igreja, realizada “sem cautela”, ou seja,

quando a igreja estabelece um vínculo com o tráfico, no qual, através de uma troca, a

igreja se vê literalmente associada ao mesmo.

“Lá no Rio o tráfico banca as famílias carentes, também usa os filhos, entende. Então, lá nessas favelas lá no Rio, é danado pra traficante chegar e querer bancar, querer comprar a igreja. Aí é aquela história né, de vez em quando você não vê aí aquelas reportagens aí dizendo que já encontraram arma dentro da igreja. Tudo é uma negociata que depois custa caro”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

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O dinheiro do tráfico corrompe a igreja. Compromete sua “imunidade moral” em

relação ao tráfico. Cria dívida, vínculo, hierarquia. A igreja, ao receber algo do tráfico,

ao fazer um “favor comprometedor”, coloca-se numa posição inferior ao narcotráfico.

“É uma negociata que depois custa caro”.

Obviamente, não podemos fazer uma leitura ingênua do sentido que os

pentecostais dão às suas ações, achando que todas as regras são sempre cumpridas. Mas

o conteúdo desse contra-exemplo é relevante na medida em que a quebra da regra revela

a existência da mesma. O irmão reprova a aceitação do dinheiro do tráfico pela igreja.

Não se pode apelar para o tráfico para conseguir nenhum tipo de benefício, pois, uma

vez agindo assim, cria-se um vínculo com o que é profano, com o próprio Demônio.

Na Lagoa, os pequenos pontos de pregação crescem aos poucos. Este

crescimento, de acordo com as explicações dos próprios pentecostais, depende do

conforto que o templo oferece aos seus membros10. Cria-se um paradoxo interessante: é

preciso atrair mais fiéis, a fim de se acumular dinheiro com os dízimos para construir

templos mais confortáveis. Por outro lado, é preciso construir templos mais confortáveis

para atrair mais fiéis. Nesse contexto, não é impossível que as igrejas aceitem dinheiro

do tráfico em troca de pequenos favores, como esconder armas nos templos e pontos de

pregação, bem como utilizá-los como refúgios para os traficantes procurados pela

polícia.

“Aí é aquela história né, de vez em quando você não vê aí aquelas reportagens aí dizendo que já encontraram arma dentro da igreja(...)A igreja quando a gente olha pra dentro da igreja, a igreja tem homens sérios, nós hoje estudamos na escola dominical, existe hoje obreiros, pastores fraudulentos, a Bíblia diz: maldito o homem que faz da minha obra... relaxadamente, fraudulentamente, com interesse, certo?”. (Rogério, entrevista realizada em 10/07/2005)

Assim, percebemos que este modelo de ação em relação ao tráfico, que consiste

basicamente em interceptar a criação de qualquer tipo de vínculo com os traficantes,

10 “A gente ta fazendo assim porque a mebresia, o que que eles querem, o importante é ver uma igreja bonita, com uma bancada boa, com ventiladores bom, entendeu, eles não tão assim preocupado, até às vezes eles não se... a gente se preocupa com a estética, eles tão preocupado, não é que eles não liguem pra isso, mas eles não cobram muito da igreja, não irmão tem que ser bonito assim, tem que ser bonito assado, tem que ser com ar condicionado, tem que ser com... a gente vai lá, bota o ventilador... bota os banco, agora a gente vai trocar banco, vai trocar tudo, tudo vai ser novo ali na igreja.” (Rogério, entrevista realizada em 10/07/2005).

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mesmo estando em contato com eles, através de um rígido posicionamento de doador,

seja de coisas materiais ou espirituais, encontra dificuldades. Embora possa haver, de

fato, no contato entre pentecostais e traficantes, a quebra da regra de sociabilidade e a

criação de vínculos entre fiéis e traficantes, como indica o próprio membro da igreja,

não é a regra que deve ser seguida.

Ao agirem em desacordo com a lógica que deve ser seguida no contato com os

traficantes, ou seja, ao aceitarem algo do tráfico, recebem o mana que vem do Diabo,

com quem, a partir de então, terão uma dívida a ser paga. Agir desse modo significa

desrespeitar uma regra que é compartilhada, é agir individualmente, sem levar em

consideração “o que diz a palavra de Deus”.

Numa conversa informal, um irmão diz que a igreja, quando em contato com os

traficantes, não poderia rebaixar-se como faz a polícia, que aceita dinheiro do tráfico

para soltar bandidos, corrompendo-se. O irmão completa chamando a atenção para o

fato de que alguns policiais não gozam de prestígio dentro do local não apenas por

serem violentos, mas por entrar numa relação de reciprocidade com o tráfico. Ao

receber o dinheiro, os policiais se contaminam com o Mal proveniente dali, perdendo

prestígio e autoridade dentro da Lagoa.

O que é altamente compartilhado entre os pentecostais da Lagoa é a idéia de que

os traficantes também são filhos de Deus, “não se pode fazer distinção entre pessoas”,

portanto, devem estar próximos a eles. Porém, no contato, a todo momento são geradas

situações portadores de tensões morais e ambigüidades, com as quais os crentes não

lidam de maneira individual, mas através de uma postura compartilhada pelo grupo: é

proibido criar vínculo com o mal. Ao se relacionarem com os “outros” não-

evangélicos, os fiéis devem atentar sempre em observar exatamente quem são seus

interlocutores, pois a qualquer momento podem ser acusados de associação com o Mal,

perdendo prestígio perante à comunidade.

Entretanto, ao fazer o trabalho de campo, escutei histórias que aparentemente

contradizem o que afirmei anteriormente. Como nos mostra o presbítero Paulo:

“Certo dia eu estava em certo local, um obreiro falando sobre uma senhora que tava num momento de dificuldade: Senhor manda pão, que ela estava precisando de alimento né, orando a Deus pra que Deus enviasse pão. Aí tinha uns garotos [do tráfico] que... vamos fazer com que essa mulher pare de ficar orando. Vamos enganar ela. Aí foram lá compraram bastante pão e jogaram lá. Aí ela saiu assim e disse, Graças te dou Senhor, porque o Senhor mandou o pão. Aí eles ficaram rindo, olha lá, dizendo que foi Jesus que

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mandou o pão! Só que eles não entenderam, com aquela ação que eles agiram, jogando o pão para ela, foi Deus que moveu o coração deles pra fazer aquilo”. (Paulo, entrevista realizada em fevereiro de 2005)

Nesta situação, há uma mulher pentecostal que passa por uma situação de

pobreza aguda e ora para que Deus a ajude. Ouvindo isso, alguns rapazes do tráfico

resolvem “enganar” a mulher e compram alguns pães. Jogam os pães para a mulher e se

divertem ao verem-na agradecendo a Deus. A oferta não é direta, pois a mulher não

sabe exatamente como aqueles pães chegaram a ela: apenas sabe que foi fruto de suas

orações. Mas esta estória revela alguns aspectos relevantes da lógica de ação

pentecostal.

A característica mais forte presente nessa forma de lidar com o tráfico é a

seguinte: agindo em situações portadoras de uma grande tensão moral e ambigüidades,

os crentes dão respostas aparentemente contraditórias, mas de fato coerentes. Num

momento é preciso negar a ajuda do filho que é traficante; em outra situação é possível

receber alimentos dos rapazes do tráfico. Na primeira situação temos uma oferta direta

do traficante; na segunda há uma oferta indireta – a mulher não sabia que os rapazes do

tráfico haviam oferecido os pães. A mãe recusa a oferta, enquanto a senhora em situação

de igual pobreza a aceita. Entretanto, o presbítero não acusa a senhora de conivência

com o tráfico.

Na batalha entre Deus e o Diabo, os homens podem pertencer ao exército de

Deus ou ao grupo do Demônio. Ambos podem tomar o corpo das pessoas e agir em seu

lugar (Mariz, 1997). Se aquilo que é recebido pela igreja provém de pessoas que fazem

parte do exército do Diabo ou de pessoas que estão sendo usadas por Ele sempre haverá

o risco de ser “contaminado”, “corrompido”, através do que foi recebido – como no

caso do dinheiro oriundo do tráfico. Porém, a igreja, enquanto a grande mediadora entre

Deus e o Mundo, pode purificar a dádiva recebida, fazendo com que, em vez de

pertencentes ao exército do Diabo, os envolvidos na troca estejam agindo por vontade

de Deus. Assim, a dádiva não é oriunda do mal, mas da própria vontade divina.

O que nos chama a atenção aqui é o fato de que a lógica de ação pentecostal em

relação ao tráfico parece ser tão rígida, quanto o expresso pelos crentes, mas não tão

ambígua a ponto de perder a coerência no espaço público local. Sugerimos que esta

lógica de ação seja menos um conjunto de regras pré-definidas pela instituição que

resultado de um processo contínuo de acumulação de conhecimento em relação à

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postura adequada no lidar com o tráfico, algo que passa por uma institucionalidade

mínima, pelo compartilhamento com “os outros” do local.

Orientando-se pela narrativa da Batalha Espiritual e pela lógica da dádiva, os

pentecostais conseguem desfazer as ambigüidades contidas nessas situações. Eles não

agem de maneira contraditória: não se pode receber nada que venha do Diabo. Na

primeira situação, mesmo sendo uma mãe que passa por dificuldades, Cristina rejeita a

dádiva do filho para não ser “contaminada pelo mal”. Em outro momento, a senhora

sobre a qual nos fala o Presbítero, aceita a dádiva dos traficantes pois eles não estavam

agindo movidos pelo Diabo, mas por Deus, não havendo com isso risco de

contaminação.

Numa situação em que a lógica aqui descrita seria quebrada, ou seja, uma

mulher aceitaria uma oferta do trafico, sendo, por isso, conivente com ele, observamos,

na verdade, uma radicalização da mesma lógica para desfazer a ambigüidade contida na

situação. Ao oferecem, mesmo que indiretamente, algo à mulher, os rapazes a colocam

em uma situação extremamente tensa: ela, por ser crente, não pode receber nada do

tráfico; ao mesmo tempo ela necessita de ajuda e ora a Deus por isso; os rapazes

escutam os apelos da senhora e resolvem intervir “jogando o pão lá”. A radicalização da

lógica de reciprocidade permite que a mulher saia desta situação em que poderia ser

acusada de conivência com o narcotráfico, sem que se perca a coerência em relação à

não contaminação no contato com o tráfico. Através da narrativa da Batalha Espiritual é

possível compreender a estória contada pelo presbítero Paulo: Deus age através dos

rapazes, não há contaminação com o mal.

3.4) CONSEQÜÊNCIAS LOCAIS DA LÓGICA DE AÇÃO PENTECOSTAL EM RELAÇÃO AO

TRÁFICO

Esta relativa facilidade em lidar consistentemente com situações tensas e

ambíguas por parte dos pentecostais da Lagoa parece gerar uma autoridade moral na

localidade. Os assembleianos da Lagoa se destacam pela forma como lidam com os

traficantes: vão às bocas-de-fumo “pregar” e aconselhar os rapazes. Ouvi inúmeras

histórias de “evangelizações” em que os traficantes choram, escondem as armas e

ouvem atentamente os pentecostais. Há uma atmosfera de “respeito” pelos evangélicos.

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Os traficantes param para escuta-los, como se fossem sábios que dão conselhos aos

mais necessitados de orientação.

Constantemente, na Lagoa, ouvi afirmações que demonstravam o mútuo

“respeito” entre traficantes e pentecostais. Isto não decorre do fato de que tráfico e

igreja se admirarem mutuamente, mas que da mesma forma que os evangélicos

procuram não interferir na atuação do narcotráfico – ainda que isso venha acontecer

inconscientemente através do evangelismo – o tráfico também procura não interferir na

vida da igreja.

“(...) do nosso ponto de vista nós procuramos não afrontá-los né. Porque da forma que a gente não procura agredir, não fazer menção, já é um meio também não envolver na vida deles né, e aí não tem como também... eles não se envolve na nossa. A gente não se mete na deles, nós vamos convivendo bem assim, não convivendo bem, é... nós não somos agredidos por eles. (Paulo, entrevista realizada em fevereiro de 2005)

O tráfico prejudica a vivência da democracia à nível local na medida em que se

estabelece como poder local paralelo (Leeds, 1998). Os traficantes controlam as ruas,

vigiam as pessoas que entram e saem do lugar, invadem as casas das pessoas

procurando refúgio, muitas vezes agridem os moradores por não obedecerem às regras

impostas por eles. Este trecho de entrevista mostra que ao darem respostas que

assumem contornos espirituais à ação do narcotráfico, rejeitando um embate direto,

procurando “não afrontá-los”, os crentes se colocariam numa situação de privilégio em

relação a outros moradores do lugar. Eles [por serem crentes] não são agredidos pelos

traficantes, por exemplo.

“(...) mas num dia desses, dia de domingo, eu vim por aqui por dentro mesmo no foco, nas casinhas. Quando cheguei lá na curva, meti o pé mesmo, pisei fundo. Quando cheguei aqui na esquina, dobrei a esquina ali, o cara tava tão doido de cocaína, mas tão doido, maconha, pára aí cara!Botou a arma assim na minha frente, quando botou a arma... bum, mergulhou dentro do carro. Quando ele mergulhou dentro do carro, que ele viu que era eu que tava de paletó e gravata, o outro falou, sai daí rapaz, saí daí, pô, como é que você vai mexer com um cara desses? Não mexe com o cara não rapaz, o cara é crente. Aí puxou o cara, pergunta à minha esposa só, foi na orelha do cara e pumba, deu um tabefe na orelha do cara, tu é louco? Pode perguntar à minha esposa, foi num dia de domingo, tu é louco? Não mexe com essa cara não, não ta vendo que eles são crentes, aquela coisa toda, eu nem conhecia”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

Ao voltar para casa à noite, o irmão passa pelo “foco”, lugar onde há uma maior

concentração de bocas-de-fumo na Lagoa. Ao passar é surpreendido por um traficante

que invade seu carro. Mas, a descrição do caso, indica-nos que esta poderia ser uma

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situação excepcional: o bandido que invade o carro do irmão está entorpecido, ele está

“doidão de cocaína”, não reconhecendo que aquele indivíduo não deve ter o direito de ir

e vir lesado. O outro traficante que não havia feito uso de drogas, reconhece o crente

dentro do carro pelo paletó e pela gravata: imediatamente ele diz para o seu amigo que

eles não poderiam assaltar aquela pessoa, pois era um crente. “Você ta maluco rapaz,

não mexe com o cara não, o cara é crente!”. O paletó e a gravata, marcas visuais da

identidade do crente, parece garantir, neste caso, o livre-acesso ao local sem ser

incomodado pelos traficantes. Se um deles ameaçou o irmão, é porque “estava doidão

de cocaína”.

“(...)um bandido um dia me parou ali ó, que eu vinha de carro e eles queria que eu piscasse o farol pra eles mas eu nunca pisquei, pode até perguntar pra minha esposa, eu até me arriscava um pouco, que teve um dia que um cara piscou pra mim o farol e eu fui piscar pro cara... e a polícia quase me atropelou ali, quase me meteu o malho em cima, mas sorte que o PM me conheceu .Nesse dia, vinha um carro de lá pra cá e o cara me conhecia. Ele tava piscando pra mim me avisando que a polícia tava dando uma blitz, aí eu pisquei pra ele, mas eu nem sabia, pra mim ele tava me cumprimentando, mas ele tava avisando da blitz. Os cara tava tudo com metralhadora, quando eu pisquei o PM pulou de trás do poste na frente do carro, já com a arma assim pra mim, aí o cara me conheceu, o Eduardo, um cara que tem ali. Só sei que eu passo ali às vezes e eles só me chamam: ô pastor! Ô paastorr! Você tem que dar um sinal pra gente pastor. Eu falei, rapaz, esse negócio de sinal é complicado hein(...)”. (Rogério, entrevista realizada em julho de 2005)

Esta última situação indica mais claramente a proibição do vínculo com o

narcotráfico e o privilégio adquirido pelos evangélicos. O irmão, num primeiro

momento, não sabia que a troca de cumprimento com o farol diz acerca da condição

social do indivíduo no lugar: ao piscar o farol para uma outra pessoa, a polícia logo

reconhece a possibilidade da comunicação entre traficantes. Ao saber disso, o irmão

decide não piscar mais o farol quando cumprimentado, pois nessa troca, nessa relação

de reciprocidade, pode ser reconhecida uma associação com o tráfico. Porém, o

entrevistado reconhece que a escolha da não relação, do não contato, do não

cumprimento, pode colocar a vida dele em risco. Ele se vê entre duas opções opostas:

piscar o farol, obedecendo à lei local, porém não pondo em risco a sua vida, ou afirmar

o seu direito de ir e vir, não piscando o farol. É importante ressaltar que essa afirmação

do direito é uma conseqüência da resposta espiritual/moral que os crentes dão aos

traficantes: afirmam os seus direitos, não estabelecendo um vínculo que os “contamine”.

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Este traço da ação pentecostal em contextos de violência também foi observado

por outros autores (Birman e Leite, 2000; Leite, 2007; Mafra, 1998; Birman 2003). Eles

observam que a pertença religiosa pentecostal permite que os fiéis se distanciem

simbolicamente do campo da marginalidade e do crime. “A conversão religiosa pode

ser pensada também como uma alternativa no ‘campo de possibilidades’ dos moradores

de favelas para enfrentar os contextos de risco, insegurança e isolamento em que vivem”

(Leite, 2007:4). Os pentecostais se destacariam por um determinada autoridade moral

que permite a eles uma circularem entre bocas-de-fumo e traficantes sem se contaminar

moralmente (Leite, 2007). Como nos mostram Birman e Leite (2000:279), “segundo os

moradores das áreas ocupadas militarmente pelo tráfico, os pentecostais são os únicos

que afrontam os traficantes diretamente, que os interpelam sem medo, onde quer que

estes se encontrem”.

A explicação sugerida para esta autoridade moral consiste basicamente em

mostrar que, ao negarem uma relação com o tráfico que coloque o fiel em situação de

submissão enquanto recebedor de algo, ou seja, colocando-se, no reverso, como doador,

seja material ou espiritual. Assim, os pentecostais estenderiam seu mana aos traficantes,

e com esta sobreposição hierárquica ganhariam autoridade, prestígio e poder. Desta

forma, adquiririam uma autoridade moral em relação aos traficantes, que os respeitam.

A fonte de autoridade advém da possibilidade de desfazer as ambigüidades,

posicionando-se do lado do Bem e não deixando se contaminar pelo que é Mal. Agindo

como a polícia, que aceita suborno do traficante, a igreja perderia essa autoridade moral.

E há comprovação empírica, que é indicada pelos próprios pentecostais: a polícia

gozaria menos de prestígio na localidade pelas suas atitudes violentas e desrespeitando

os direitos humanos que pela sua cumplicidade com o tráfico, com o Mal.

De acordo com Birman e Leite (2000), o fiel pentecostal é aquele que goza de

maior prestígio em relação à eficácia de combate ao Mal. Os exemplos mais citados são

aqueles que dizem respeito às atividades dos pentecostais em relação aos traficantes.

Estes religiosos seriam de novo tipo, distintos de padres e pais-de-santo. Seria um tipo

de religiosidade inteiramente descomprometida com as forças malignas. Os atributos

religiosos dos pentecostais permitiram a eles fazer contato com as forças malignas sem

serem contaminados por nenhuma delas.

A resposta moral que os evangélicos dão em situações ambíguas e moralmente

tensas, reconhecendo limites éticos entre simples relação e cumplicidade, pode fazer

com que eles, uma vez que são vistos como portadores de uma autoridade moral,

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tenham uma posição privilegiada na comunidade, afirmando direitos os quais deveriam

ser universais, mas que são fragilizados, sobretudo, pelo impacto da presença do tráfico

de drogas, que compromete a experiência da democracia a nível local (Leeds, 1998).

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CAPÍTULO 4 CONCLUSÃO: O CARÁTER POPULAR DO PENTECOSTALISMO A proposta geral deste trabalho será retomada neste capítulo. A partir da análise

sobre a lógica de ação dos pentecostais em relação ao tráfico na Lagoa, voltar-me-ei

para as questões gerais sobre religiosidade popular propostas no capítulo 1. O caminho

que pretendo percorrer é o seguinte: em primeiro lugar é importante retomarmos as

adequações e inadequações do pentecostalismo em relação às reflexões gerais sobre a

religiosidade popular – feita, sobretudo, com base no catolicismo camponês; mostrar

como o contexto violento da periferia urbana (no caso a Lagoa, área socialmente

vulnerável em Magé) insere no cotidiano dos moradores questões que necessitam de

respostas bem definidas, em relação às quais a lógica de reciprocidade e da batalha

espiritual parecem ser bastante adequadas; demonstrar que o caráter popular do

pentecostalismo difere bastante do catolicismo, mas conserva consigo, ainda que de

maneira diferente deste, a resistência cultural e política e a auto-afirmação das camadas

populares que caracterizam fortemente a expressão religiosa popular.

O quadro teórico acerca da religiosidade popular, embora abarque correntes

diferentes, possui como principais características: 1) a religião popular é construída em

contraponto à religião oficial; 2) produção religiosa realizada por não especialistas do

sagrado; 3) expressão religiosa “fluida”, não-institucional; 4) presença de sincretismo e

não exclusividade doutrinária; 5) resistência cultural e política e auto-afirmação das

camadas populares. Construído, sobretudo, a partir das análises realizadas sobre o

catolicismo popular, este quadro apresenta adequações e inadequações quando

contraposto ao pentecostalismo.

Porém, antes de mais nada, é preciso fazer algumas observações importantes.

Tendo como referência principalmente a obra de Brandão (1989), observamos que a

característica mais relevante da expressão religiosa popular é a sua capacidade de

resistência cultural, preservando práticas, crenças e rituais religiosos anteriores à

presença da religião dominante – o sincretismo – e política, ao contrapor-se ao modelo

religioso das classes dominantes. Em relação à resistência política, por exemplo,

Brandão (1986) observa que há uma solidariedade maior entre católicos e protestantes

históricos, que entre os últimos e os pentecostais populares. A religião popular permite

que as camadas populares se expressem de maneira espontânea, de algum modo fora do

controle das classes dominantes. Desta forma, a religião popular está desligada de uma

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certa institucionalidade, uma vez que é produzida por não especialistas e para

autoconsumo.

A questão que colocamos é a seguinte: uma vez que o quadro teórico geral

elaborado para se pensar a religiosidade popular teve como foco o catolicismo, será que

se deve recusar o título de popular ao pentecostalismo? Será que não haveria nesta

religiosidade certos traços de resistência cultural e política e de auto-afirmação das

camadas populares? Entretanto, onde exatamente residiria o caráter popular da religião

pentecostal?

O pentecostalismo retoma elementos mágicos e os traz de volta ao

protestantismo: a experiência em relação ao sagrado é vivenciada no cotidiano do fiel –

na revelação de uma profecia, na prática da glossolalia, nas experiências diretas com o

Espírito Santo. Porém, isto não significa a o pentecostalismo é construído em

contraponto ao protestantismo histórico. O pentecostalismo não representa uma versão

popular do protestantismo como o catolicismo popular o é em relação ao oficial.

O saber, as práticas, crenças e rituais do pentecostalismo estão ligadas a uma

instituição, diferente do catolicismo popular que não está ligado à instituição. Esta

institucionalidade pentecostal não é verticalizada e fortemente hierarquizada como no

catolicismo oficial. As igrejas pentecostais são dotadas de uma autonomia relativa

(Mafra, 2001). Os pastores e presbíteros geralmente são pessoas de mesma posição

social que os demais fiéis; quase não há distância social entre os profissionais do

sagrado e os membros. A institucionalidade pentecostal é mais “frouxa” e há uma maior

liberdade para improviso e negociação dentro da própria igreja.

Assim, diferentemente do catolicismo popular, que se concretiza fora da

instituição oficial, num saber comunitário (Brandão, 1986), em práticas e rituais que são

desenvolvidos pelo povo, de maneira coletiva, embora reconstruídos a partir das

práticas oficiais, o pentecostalismo cresce e se desenvolve fincado em pequenas igrejas,

com suas burocracias internas, seus funcionários, suas doutrinas. Cresce de maneira

menos verticalizada e hierarquizada que o catolicismo oficial, com uma relativa, mais

notável, autonomia local.

O pentecostalismo carrega consigo elementos que caracterizam um sincretismo

religioso. Mas, ainda assim, isto se dá de forma diferente do catolicismo camponês. O

pentecostalismo é sincrético uma vez que se apropria de elementos de outras religiões

para reelaborar a sua doutrina (Birman, 2001) como, por exemplo, vemos na

demonização das religiões afro-brasileiras uma forma de sincretismo. Porém, diferente

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do catolicismo popular, não mistura dentro do mesmo espaço o sagrado e o profano, a

devoção ao santo e a festa onde se bebe cachaça. O pentecostalismo é portador de um

tipo de sincretismo que desfaz estas ambigüidades. É um sincretismo que junta e separa

ao mesmo tempo. Apreende elementos de outras religiões distribuindo-os

coerentemente nas categorias Bem e Mal.

No catolicismo popular, o sincretismo, ou melhor, a persistência de práticas e

rituais religiosos da população camponesa que são anteriores à chegada da religião

oficial, caracteriza essa resistência cultural às práticas romanizadas, uma vez que essa

mistura de rituais e crenças formaria uma expressão espontânea e autêntica. Sanchis

(1979), descreve as tentativas da igreja em Portugal de romanizar as romarias populares,

controlando as formas de expressão religiosa presentes nela que fugiam à doutrina

oficial. Os conflitos presentes nessas romarias entre a igreja oficial e a igreja popular

permitem-nos enxergar mais claramente esta resistência ao padrão de crenças, práticas

e rituais impostos pela religião oficial.

O pentecostalismo não apresenta um sincretismo que permita um raciocínio

similar ao realizado em relação ao catolicismo popular. A memória coletiva (e

individual) é reinterpretada. As práticas anteriores não são incorporadas às práticas pós-

conversão. Ao contrário, são demonizadas. Isso significaria um comprometimento da

resistência cultural? Falando do improviso da vida social, Ingold lembra que "há uma

pressão do passado que está no trabalho da memória, imaginada não como uma caixa

registradora ou uma gaveta que guarda recortes do que aconteceu, mas que recorda o

caminho" (Ingold e Hallan 2007:11), pois a "duração é o progresso contínuo do passado

que alcança o futuro o que se dissolve no seu avanço". Seguindo Bergson; "Não

temos registros, gavetas...Na realidade o passado... segue cada instante; tudo que nós

sentimos, pensamos e desejamos desde nossa infância esta lá, priorizando no presente

aquilo que será recolhido, pressionando contra os portais da consciência que com prazer

deixaria aquilo de fora."(Bergson 1911:5 apud Ingold e Hallan 2007:11). Assim, se

considerarmos que somente há um trabalho criativo, ou autêntico, apenas quando o

ocorre bricolagem/sincretismo religioso, corremos o risco de estreitar a compreensão da

memória/criatividade humana; pois a memória, tanto pode se apegar a elementos

previamente produzidos para produzir um terceiro sentido (bricoleur/sincretismo) como

pode ignorar estes suportes de cultura, apegando-se puramente a uma duração produzida

pela consciência. Os pentecostais defenderiam uma duração de segundo tipo, sem apego

aos "produtos culturais", mas dando privilégio à consciência.

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Mais uma vez, então, recoloco a questão: uma vez que o pentecostalismo se

constrói ligado a instituição e seu sincretismo se dá de forma a reelaborar o passado, não

o incluindo como parte de suas crenças e rituais, onde exatamente residiria a resistência

cultural e política tão fortemente presente nas análises sobre o catolicismo popular?

Como vimos os pentecostais pretendem seguir com bastante rigor a lógica de

reciprocidade, em relação ao tráfico, que é orientada pela narrativa da batalha espiritual.

Estes, como procurei mostrar, são importantes instrumentos utilizados para compor as

repostas adequadas em relação a um cotidiano que é atravessado pela presença do

tráfico e da violência. O contato com narcotráfico é sempre perigoso porque há o risco

do interlocutor ser contaminado. Entretanto, a presença do tráfico exige repostas.

Os pentecostais não ignoram a presença do tráfico de drogas e elaboram

respostas para a mesma. Porém, diferentemente dos católicos, as repostas dos

pentecostais assumem contornos espirituais (Mafra, 1998). O contato é permitido.

Todavia, não se pode deixar contaminar pelo “mal” oriundo do tráfico. Ao entrar em

contato com os traficantes, recebendo algo deles, corre-se o risco de ser contaminado.

Além disso, estar na posição de recebedor, significa perder prestígio e autoridade em

relação àquele que dá (Mauss, 1974). Portanto, esta contaminação, risco de ser

reconhecido como conivente com o tráfico de drogas, implica também submeter-se à

hierarquia e à autoridade do narcotráfico.

Neste contexto que envolve a presença do narcotráfico, a presença de um grupo

religioso que constrói suas respostas não exatamente baseadas num modelo doutrinário

ou político – como no caso da rejeição do tráfico por parte dos católicos no morro Santa

Marta (Mafra, 1998) - , mas orientado por uma lógica de reciprocidade e pela narrativa

da batalha espiritual, consegue proximidade e respeito (relativos) em relação ao

narcotráfico.

De acordo com Lins e Silva (1990), na Cidade de Deus, os católicos não são

respeitados pelos bandidos locais11, senão os padres e os beatos por possuírem uma

conduta social diferenciada (não bebem, não fuma, andam com roupas decentes, etc.). O

respeito que determinados grupos religiosos possuem dentro da comunidade advém

exatamente de uma conduta social que se destacaria dentro da comunidade por ser uma

conduta ética, respeitosa, respeitável (Lins e Silva, 1990).

11 Este respeito do qual falam os autores está ligado ao termo nativo “consideração”. Esta pode atenuar a violência das quadrilhas passível de ser sofrida pelos moradores. Uma pessoa “considerada” goza de “privilégios” dentro da comunidade, como, por exemplo, não ter restringido o seu direito de ir e vir dentro do lugar.

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“Pois os evangélicos são tidos como pessoas especiais, cujas vidas são

regidas por um código de ética muito rígido, o que acaba provocando a

segregação deles no mundo social local, ao contrário de católicos e

espíritas, no mais das vezes trabalhadores cujas atividades de vida cotidiana

não são afetadas pela religião que abraçaram”. (Lins e Silva, 1990:172)

Portanto, uma religião de caráter popular, claramente encantada, mas que escapa

das ambigüidades que envolvem os conceitos de Bem e Mal, construindo regras morais

de conduta que são a condição para a legitimidade e o reconhecimento da nova

identidade, parece ganhar destaque dentro de um contexto que envolve pobreza,

violência e criminalidade.

Exatamente por manterem uma postura segregadora em relação ao mundo

“secular” e às “coisas do mal” é que os pentecostais conseguem uma posição de respeito

e são “considerados” pelos traficantes locais. Lins e Silva ainda acrescentam que os

católicos são os que menos imputam respeito aos bandidos. Todos são católicos e até

mesmo o bandido, muitas vezes, afirma ser um católico “não-praticante”. Portanto, “o

respeito do bandido pelo evangélico advém do fato de que o primeiro sabe que o

segundo o vê como um “cabeça-fraca”, um discípulo do mal” (Lins e Silva, 1990:173).

Como pudemos observar no capítulo anterior, a lógica de ação pentecostal em

relação ao tráfico possui uma notável conseqüência local: a autoridade moral, que

consiste basicamente numa privilegiada liberdade de circulação social e espacial dos

evangélicos pentecostais dentro de um bairro que é atravessado por conflitos entre

quadrilhas de traficantes e entre estas e a polícia. Esta liberdade de circulação é algo que

dificilmente outros moradores do lugar acessariam individualmente. Como tentei

demonstrar, essa autoridade moral é fruto da lógica de ação pentecostal em relação ao

tráfico: tentam nunca se contaminar pelo tráfico, sempre agindo no espaço público (e

mesmo no privado) como doadores.

Os pentecostais, mesmo ligados a uma instituição e portando um tipo de

sincretismo que não leva em conta as misturas, mas prioriza a consciência em relação ao

passado, podem adquirir um caráter popular nestes contextos de violência exatamente

por oferecer respostas adequadas – que desfazem determinadas ambigüidades, que são

de fácil acesso, permitem mais agilidade e rapidez nas relações sociais – à presença do

tráfico de drogas e da violência a ele associada. Uma mãe que possui o filho traficante e

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se vê diante de uma situação em que o filho oferece uma dádiva a ela sabe exatamente

que seu papel, enquanto evangélica, é o de não aceitar a dádiva para não se contaminar

com o mal e, assim, perder autoridade e prestígio.

É exatamente para este ponto que eu gostaria de chamar a atenção. Como

observamos no capítulo precedente, no contexto de violência da Lagoa, a presença do

tráfico de drogas coloca situações tensas eticamente, ambíguas. Orientados por uma

lógica de reciprocidade e batalha espiritual, os pentecostais conseguem esquivar-se da

contaminação do tráfico sem precisar ignorá-lo, como é a aposta dos católicos no Santa

Marta (Mafra, 1998). É aqui que residiria o caráter de resistência que, nesse contexto,

não se daria em relação a uma classe dominante, mas relação à presença autoritária e

comprometedora, muitas vezes do narcotráfico. Os pentecostais auto-afirmariam, como

vimos quando abordamos as conseqüências locais da lógica de ação pentecostal, direitos

que são comprometidos pela presença do tráfico, pelo conflito entre quadrilhas e entre

estas e os policiais12. Ao negar piscar o farol para o bandido, a fim de não se contaminar

ao entrar numa relação de reciprocidade com “o outro”, o pentecostal afirma seu direito

de ir e vir dentro da Lagoa.

O caráter popular do pentecostalismo difere do caráter popular do catolicismo.

As análises da religiosidade popular realizadas a partir das observações do catolicismo

rústico trazem para o centro da discussão o caráter não institucional e sincrético que por

sua vez caracterizariam, de maneira mais genérica, a resistência política e cultural dessa

expressão religiosa. Fora do controle dos especialistas do sagrado: religiosidade

produzida pelo povo, para autoconsumo. As camadas populares resistiram à dominação

de classe, criando na expressão religiosa um espaço para uma criação livre, espontânea

autêntica. Reinventando e recriando a religião oficial a partir dos seus próprios mitos,

lendas, costumes e histórias, as camadas populares não reproduziriam apenas (ou

distorceriam, de acordo como uma visão elitista) a doutrina oficial e a teologia erudita.

O contexto no qual mais cresce o pentecostalismo, nas áreas pobres urbanas,

contém determinados elementos em seu cotidiano: como a presença do tráfico de

drogas. A possibilidade de violência e as ambigüidades contidas na relação com o

tráfico são traços marcantes no cotidiano de contextos como o da Lagoa. Um tipo de

religiosidade, como o pentecostalismo, embora ligado a uma certa institucionalidade e

portador de um tipo de sincretismo diferente do catolicismo popular, permite a seus

12 Ver seção 3.4, capítulo 3.

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fiéis, orientados pela lógica da reciprocidade e pela narrativa da batalha espiritual,

acessar respostas que podem desfazer algumas situações de ambigüidade do cotidiano:

onde há qualquer momento um simples contato pode ser reconhecido como conivência

com o tráfico, significando perda de autoridade e prestígio no espaço público local.

A questão da violência associada ao tráfico nas periferias urbanas parece ser um

elemento central para a reflexão sobre a religiosidade difundida neste contexto. As

camadas populares urbanas possuem questões cotidianas em relação às quais as

características da religião popular pensadas para o catolicismo camponês não representa

um instrumento tão eficaz quanto o pentecostalismo. O caráter popular do

pentecostalismo viria, portanto, de sua resistência e auto-afirmação em relação à

presença do tráfico de drogas e da violência associada a ele. Dotado de uma autoridade

moral realmente notável nestes contextos de violência, o pentecostalismo configuraria

uma alternativa para uma vivência relativamente segura no cotidiano violento das

periferias urbanas, como na Lagoa.

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Anexo – Mapa da Lagoa

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Legenda Linha Férrea Limites do Bairro Rua principal que divide o bairro Área definida como violenta pelo informante 1 – Assembléia de Deus da Lagoa (onde foi realizado o trabalho de campo) 2 – Capela de Nossa Senhora das Graças 3 – Ponto de Pregação da Assembléia de Deus da Lagoa 4 – Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade 5 – Centro Espírita Luz e Salvação 6 – Igreja Batista do Parque Imperador 7 – Bazar da Igreja Batista 8 – Igreja Pentecostal Deus é Amor 9 – Terreiro de Umbanda 10 – Assembléia de Deus 11 – Congregação Cristã no Brasil 12 – Assembléia de Deus 13 – Assembléia de Deus 14 – Assembléia de Deus 15 – Assembléia de Deus 16 – Assembléia de Deus 17 – Igreja Congregacional 18 – Ponto de Pregação de Assembléia de Deus 19 – Assembléia de Deus 20 – Casa de Informante 21 – Terreno onde foi um Terreiro de Umbanda 22 – Casa de Informante

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