[FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

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    A COLEÇÃO ENSAIOS TRANSVERSAIS

    trata

    de temas ~ue articulam reflexões teóricas e aÇões

    cotidiana~, em busca do que se poderia caracterizar

    co.mo uma Scientia ctiva Os textôs representam

    vozes que procuram um debate aberto,

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    © by Edita Flusser

    Vilém lusser

    Todos os direitos desta edição reservados

    Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda.

    Rua Maestro Callia, 123 Vila Mariana 04012-100

    São Paulo, SP - Telefax: (11) 5082-4190

    e-mail: [email protected]

    site: www.escrirura:s.com.br

    Coordenação editorial

    Nilson José Machado

    Capa

    VeraAndrade

    Sistema Alexandria

    A.L. : 1528677

    Tombo: 31458

     

    a Religiosidade

    A literatura e o senso de realidade

    TO~SAIS

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    Editoração eletrônica

    Ricardo Siqueira

    Ilustração da capa

    Mikhail Aleksandrovitch Vrubel

     La Perla, 1904

    Galeria Tretiakov, Moscou

    Fotolitos

    Binhos

    1. Ensaios brasileros

    r.

    Título. 11.Tí tulo: A li teratura e o senso de real i

    dade.

    m.

    Série.

    ISBN 85-7531-060-7

    Impressão

    Banira Gráfica

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)

    Flusser, Vilém, 1920-1991.

    Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade/Vilém Flusser.

    São Paulo: Escrituras Editora, 2002. - (Coleção ensaios transversais)

    ~if)AAMú

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    li:

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    02-5687

    CDD- 869.94

    Índices para catálogo sistemático:

    1.Ensaios: Literatura brasi leira 869.94

    Impresso no Brasil

    Printed in Brazil

    F'-'

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    escrituras

    São Paulo, 2002

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     umár o

    Apresentação .IX

    Introdução 13

    (1) Da religiosidade 15

    (2) Por que e para quê? 23

    (3) Coincidência incrível... 31

    (4) Pensamento e reflexão 37

    (5) Da dúvida 47

    (6) Praga, a cidade de Kafka 63

    (7) Esperando por Kafl

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     present ção

    A trajetória do filósofo Vilém Flusser é um exemplo de

    engajamento intelectual que se tornou raro nos dias de

    hoje. Da cidade de Praga onde nasceu em 1920 Flusser e

    sua mulher Edith emigram para o Brasil depois de uma

    breve permanência em Londres fugindo da máquina de

    extermínio nazista que avançava sobre a Europa no início

    dos anos 40. Em São Paulo ele inicia sua carreira como filó-

    sofo ao publicar seus primeiros livros e artigos nos anos 60

    e atuando como professor de uma geração dejovens entusias-

    mados pelo seu estilo de pensar falar e escrever sobre temas

    que segundo ele estavam remodelando toda a história do

    ocidente.

    Em suas palestras que o tornaram conhecido como

    um homem polêmico e intelectualmente sedutor eram

    especialmente os jovens que se sentiam atraídos pela sua

    maneira elástica de pensar cheia de sutilezas e nuances

    cristalinos. Como orador influente Flusser transcendia a

    condição temporal da fala despertando para o vislumbre de

    certas dimensões atemporais do pensamento. Ele sabia que

    o arrebatamento era a condição essencial para a percepção

    do fluxo das coisas e talvez isso possa explicar a influência

    que exerceu sobre muitos artistas para quem ele parecia

    falar desde cedo. A sua não ortodoxia acadêmica aliada a

    uma vasta cultura histórica despertavam tanto o prazer de

    IX

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    pensar, quanto os várlOs ataques que sua forma de ver

    filosofia nos jornais recebeu. Seu hábito de encerrar

    ensaios e até mesmo livros sem notas de rodapé parece ter

    sempre afrontado aquela ordem magistral de manipulação

    do saber, incomodada com as performances filosóficas e

    com a objetividade comunicativa de um pensador lInico

    entre nós.

    No Brasil, Flusser irá exercer seu engajamel1to por

    meio de publicações, cursos, palestras e projetos culturais

    que, segundo sua forma de entender, poderiam servir dc

    modelos para o resto mundo. Ao retornar para a Europa no

    início dos anos 70, ele dará início

    à

    fasemais robusta dc sua

    obra, cujo marco fundamental será a publicação do livro

    Für einen Philosophie der Fotografie

      Por uma Filosofia da

    Fotografia ), editado primeiramente na Alemanha cm

    1983

    e dois anos depois no Brasil, com o título

    A

    Filosofia

    da Caixa Preta. Essa obra será responsável pela imagcm

    associada ao filósofo de um profeta da era tecnológica ,

    um premonitor do avanço de uma sociedade cujos va

    lores estariam sendo transferidos da produção de objctos

    para a produção de informações.

    Em suas freqüentes viagens entre a Europa e o Brasil ,

    Flusser construiu uma rede transoceânica de debates em

    torno de três pontos axiais básicos: a invenção do alfabeto,

    a invenção da tipografia e a invenção da fotografia. Para o

    filósofo, a fotografia, o primeiro meio de produção

    automática da imagem, irá marcar o advento de um novo

    período da história humana, pois a história da

    humanidade é a história do homem com seu instrumento

    e, por isso, é possível falar de uma mentalidade da pedra

    lascada, uma mentalidade do bronze e do ferro, assim como

    o de uma mentalidade digital .

    Mas o tema de Da religiosidade , de Vilém Flusser,

    não é o da emergência de uma nova capacidade para fazere

    decifrar imagens imagens técnicas), e sim a literatura. Ela é

    x

     o lugar no qual se articula o senso de realidade. E senso de

    realidade é, sob certos aspectos, sinônimo de religiosidade.

    Para os interessados em sua obra, a reedição desse livro vem

    nos oferecer um fecundo campo de estudos da filosofia que

    se articulava no autor por volta dos anos 60. Além de nos

    apresentar uma via de acesso a seu pensamento, SOlnos

    ainda apresentados à filosofia de Vicente Ferreira da Silva,

    figura de grande importância na formação intelectual de

    Vilém Flusser em São Paulo. Em vários dos ensaios aqui

    reunidos encontraremos as primeiras formulações que

    serão, décadas mais tarde, retomadas na Filosofia da Caixa

    Preta como no  ns Universum der Technischen ilder   No

    universo das Imagens Técnicas ), livro de

    1985

    e ainda

    inédito em português, no qual ele aprofunda os argumen

    tos lançados na Filosofia.

    Além dos ensaios sobre Kafka, a poesia concreta

    paulista e Guimarães Rosa, Flusser aborda também um

    tema que parece pontuar toda a sua obra, que é o tema da

    morte. Ao tratar desse tema exclusivo da vida , o filósofo

    nos ensina que, Toda frase de obra de pensador vivo apon

    ta, ...) em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, e

    toda frase de obra de pensador morto aponta o intelecto

    que a recebe. E a obra, como um todo, esta ligada ao in

    telecto que a originou como por cordão umbilical, enquan

    to vivo o seu autor. A morte corta esse cordão e a obra

    emite pseudópodes em direção aos intelectos abertos para

    recebê-Ia. O último significado da obra é deslocado, pela

    morte, do intelecto do autor para os intelectos dos seus

    interlocutores. ...) De receptor e de ponto de ressonância

    transforma-se o interlocutor em guardião e realizador da

    obra. A responsabilidade ... ) passa do autor para o inter

    locutor, e o destino da obra depende doravante dele .

    Quanto a nós, os provisoriamente pouco numerosos

    interlocutores da obra , podemos dizer também que temos

    o privilégio e a responsabilidade de acolhê-Ia em nosso ínti-

    XI

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    mo para que continue a realizar-se. Não seremos dignos

    desse privilégio nem estaremos à altura dessa responsabili

    dade se a ternura e plasticidade da obra for pretexto para

    uma inibição de nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra e

    plástica dispõe essa obra de força suficiente para resistir a

    nossos golpes.

     

    debaixo dos golpes que ela se formar

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    o Renascimento.

    o

    quarto e o quinto representam um

    esforço de formular um novo senso de realidade tomando

    como real a língua. Representam portanto a minha filoso

    fia. Os ensaios 6 7 e 8 tratam da realidade como aparece

    em Kafka. Os números 9 e 10 tentam articular a realidade

    do existencialismo e mais especialmente a camusiana. A

    partir daí focalizo a cena da literatura brasileira. Os ensaios

    11 12 13 e 14 se batem com e contra a filosofia de Vicen

    te Ferreira da Silva que é uma filosofia em busca de uma

    realidade. O ensaio nO 15 trata da poesia concreta que é

    uma técnica de criar nova língua portanto nova realidade.

    Os últimos dois ensaios têm por tema a obra de Guimarães

    Rosa que alia a técnica realizadora do concretismo com

    uma religiosidade transcendente. A presente coleção de

    ensaios procura portanto mostrar como a tendência ociden

    tal em direção de uma nova religiosidade se manifesta pro

    dutivamente na cultura brasileira.

     

    neste sentido que pode

    ser tomada como um esforço em prol da elaboração de uma

    filosofia da literatura brasileira.

    Reunir estes ensaios sob a forma de um livro é tentar

    salvá-Ios do efêmero que é próprio de toda Revista. Espero

    que esta contribuição modesta seja útil

    à

    discussão geral do

    que é a civilização brasileira.

    São Paulo setembro de 1965.

     ilém lusser

    14

      religiosid de

    Há pessoas incapazes de repetir a mais simples melo

    dia. Outras se tornam lânguidas ao ouvir um tango argenti

    no. Há os que transpõem com os últimos acordes da Flau

    ta mágica a porta celeste. Para outros o Cravo bem

    temperado representa o próprio intelecto humano transfor

    mado em fenômeno audível. São exemplos de diversos

    tipos de musicalidade. Há paralelamente diversos tipos de

    criação musical cuja gama se estende desde o empenho

    comercial dos compositores de Hollywood até o empenho

    religioso de um Palestrina. E há finalmente o exército de

    críticos que explicam a música e de virtuosos que a apli

    cam . Os virtuosos são aplaudidos e venerados os críticos

    têm existências um tanto mais reclusas. Essa é em termos

    gerais a cena da música se desconsiderarmos fenômenos

    marginais como empresários editores musicais fabricantes

    e lojas de discos. A forma da cena é mutável mas a música

    como tal é digamos eterna. O propósito do presente artigo

    é forçar um paralelo entre música e religião e entre musica

    lidade e religiosidade. A comparação é sempre um método

    de estudo fértil não tanto pelos seus resultados mas pela

    distância que pode proporcionar ao espírito contemplativo.

    O fenômeno que corresponde

    à

    crítica musical é no

    campo da religião um certo tipo de filosofia. Mas devemos

    confessar desde logo que a crítica musical é infinitamente

    15

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    mais competente que a maioria da filosofia do tipo mencio

    nado. Dou como exemplo o marxismo. Essa filosofia,

    tomada como crítica de religião, considera os empresários,

    os editores musicais, e os fabricantes e lojas de discos como

    os fenômenos centrais da cena da música isto é, natural

    mente, transpondo de religião para música , e acredita que

    a religião pode e deve ser explicada a partir dos empresários

    e dos fabricantes. Como é possível tamanha excentricidade?

    É que os filósofos marxistas dispõem de uma religiosidade

    que corresponde à musicalidade daquele que não sabe repe

    tir a mais simples melodia. Algo como a crítica marxista da

    religião é inconcebível no campo da música, já que a esco

    lha da profissão de crítico musical pressupõe uma certa afi

    nidade entre o crítico e a música, perfeitamente dispensável

    no campo da religião e da filosofia. Dou, como outro exem

    plo, o freudianismo. Essa psicologia filosofizante, tomada

    como crítica de religião, considera o crítico como figura

    central da cena, e crê que a crítica pode acabar com a músi

    ca, libertando assim o ouvinte da necessidade de sujeitar-se

    a ela. É que, provavelmente, o freudiano dispõe de uma

    religiosidade que corresponde à musicalidade daquele que

    soluça ouvindo tangos. Não é portanto, a meu ver, da críti

    ca da religião que devemos esperar um esclarecimento do

    fenômeno religioso, pelo menos não no início do nosso

    esforço. Somos, creio, nesse esforço, remetidos a nossa

    vivência interna,

    à

    religiosidade. É ela, embora tão variável

    e insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômeno

    religioso. Todas as demais aproximações são secuncLíriase

    auxiliares. A ela pretendo recorrer, portanto, no presente

    artigo.

    Chamarei de religiosidade nossa capacidade para cap

    tar a dimensão sacra do mundo. Embora não seja ela uma

    capacidade que é comum a todos os homens, é, não obstan

    te, uma capacidade tipicamente humana. Certas pessoas,

    certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento

    16

    especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoas

    religiosamente surdas, mas não há época nem sociedade

    inteiramente isentas de religiosidade. Pessoas religiosamen

    te surdas vivem em mundos rasos e chatos, movimentam-se

    entre coisas transparentes porque em tese inteiramente

    explicáveis , e dirigem-se para a morte que torna absurdos

    os mundos, as coisas e a própria vida. A capacidade religio

    sa torna profundo o mundo, opacas as coisas porque

    nunca inteiramente explicáveis , e torna problemática a

    morte. A capacidade religiosa torna portanto obscura a

    visão antes clara do mundo, como a contemplação da paisa

    gem torna obscura a visão clara do mapa. O pintor aquele

    que procura captar a visão da paisagem é portanto um obs

    curantista do ponto de vista do cartógrafo aquele que

    reduz a paisagem à sua clareza plana e chata . E o homem

    religioso é um obscurantista do ponto de vista daquele que

    não é incomodado pela dimensão sacra do mundo. Como a

    clareza é desejável, há pessoas que abafam dentro de si a voz

    da religiosidade e vivem como que com óculos escuros para

    ver mais claramente. Mas como a clareza é chata, há pessoas

    que fingem um sentimento religioso para o qual não têm

    capacidade, e vivem enganando-se a si mesmos. Essas duas

    inautenticidades opostas complicam o fenômeno da reli

    giosidade.

    Épocas e sociedades religiosamente férteis educam e

    fortalecem a capacidade individual para a religiosidade.

    Épocas e sociedades religiosamente pobres, como a época

    que está para encerrar-se e a sociedade tecnológica, repri

    mem e abafam a capacidade individual para a religiosidade.

    Uma conseqüência dessa repressão é a deformação da reli

    giosidade, que assume formas grotescas e monstruosas como

    o zen-budismo nos Estados Unidos ou o paganismo atroz da

    Alemanha hitlerista. Outra conseqüência dessa repressão é o

    desvio do ardor religioso da dimensão sacra para a profani

    dade chata do mundo e resulta em pseudo-religiosidades

    17

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    como o endeusamento do dinheiro ou do Estado. Estas

    deformações e perversões da capacidade religiosa marcam a

    cena da atualidade e dificultam, portanto, a contemplação

    do fenômeno da religiosidade.

    Feita abstração das formas inautênticas e das formas

    perversas, resta-nos a capacidade genuína para captar a

    dimensão sacra do mundo. Essacapacidade revelao mundo

    e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é,

    como realidade que aponta para fora de simesma. Essesig

    nificado que o mundo e nossa vida dentro dele têm é cha

    mado o sacro . A profundidade do significado, a extensão

    do sacro, dependem da nossa capacidade para a religiosida

    de. O significado da vida pode ser, por exemplo, simples

    mente a preparação para uma outra vida, em tudo igual a

    esta, mas mais feliz, e eterna.

    Este tipo de significado é conferido à vida por um tipo

    de religiosidade comparável à musicalidade do apreciador

    do tango. E o significado da vida pode ser a superação do

    Eu e sua diluição na imensidão do sacro. A intensidade da

    nossa capacidade religiosa é portanto variada. Mas sua

    estrutura, sua Gestalt é nos imposta. Os grandes gênios

    religiosos da nossa civilização a impuseram sobre as nossas

    mentes. O sacro é, para nós ocidentais, prefigurado e proje

    tado por esses gênios, como a música é para nós prefigurada

    e projetada pelos grandes compositores. Mas aí a compara

    ção entre música e religião setorna insuficiente. Os grandes

    compositores estão no mesmo plano ontológico como nós,

    são gente como nós, embora certamente de proporções

    muito maiores. Mas os grandes gênios religiosos, esses seres

    míticos como Abrão e Jacó, Moisés e, de maneira ainda

    mais acentuada, Jesus, são revelados, pela nossa capacidade

    religiosa, como participando de outro plano de realidade.

    Em outras palavras: a nossa religiosidade

    é

    limitada

    à

    reali

    zação de um único projeto: aquele que f )iinspirado, in i lo

    tempore

    ao povo de Israel para realizar-se na civilização do

    18

    Ocidente. Em suma: o sacro é, para nós, exclusivamente

    Deus. Sabemos intelectualmente de outros tipos de projeto,

    de outros tipos de religiosidade, e de outros tipos de sacro.

    Mas este conhecimento intelectual é intraduzível para a

    camada da vivência religiosa, e as tentativas nesta direção

    são fadadas ao malogro da inautenticidade. Somos, como

    seres religiosos, prisioneiros da revelação sinaica, por mais

    que nos rebelemos contra essasgrades.   esseo projeto den

    tro do qual fomos jogados e é essa, no fundo, nossa defini

    ção de ocidentais dentro da qual existimos.

    Nosso tipo de religiosidade nos define como exis

    tentes, e estabelece o mundo dentro do qual existimos.

     

    verdade que no curso da nossa história elementos da reli

    giosidade grega, e em grau menor das religiosidades latinas,

    germânicas e eslavas, infiltraram-se na nossa experiência

    religiosa para enriquecê-Ia e aprofundá-Ia. Mas não altera

    ram sua estrutura básica, que pode ser caracterizada pelos

    conceitos de fé e obras . A fé é a fidelidade ao significa

    do transcendente do mundo e da vida dentro dele, fidelida

    de essamantida em desafio a toda evidência em contrário; é

    portanto absurda. As obras são resultado do nosso esforço

    em prol desse significado transcendente, esforço esse que

    transforma o mundo profano em mundo sacro pelo sacrifí

    cio; são portanto absurdas. Nossa religiosidade oscila entre

    o pólo absurdo da fé e o pólo absurdo das obras. De certa

    forma é a história do Ocidente idêntica com a oscilação do

    pêndulo da religiosidade entre os seus dois pólos. Agosti

    nho e S. Tomás, Calvino e Marx marcam-lhe o compasso.

    A absurdidade de nossa religiosidade é nossa resposta ao

    absurdo do mundo profano. Essa revolta escandalosa con

    tra a absurdidade pela absurdidade para utilizar, embora

    em contexto diferente, um pensamento kiekegardiano),

    marca a religiosidade do Ocidente.

    Nossas religiões tradicionais são o ambiente dentro do

    qual nossa religiosidade funciona. Para voltar ao paralelo

    19

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    com a música, são as religiões tradicionais as organizações

    que nos fornecem as orquestras e as salas de concerto, e os

    seus sacerdotes são nossos grandes virtuosos. Mas seria

    insincera a tentativa de negar que as religiões tradicionais

    estão em crise. Não satisfazem mais a nossa religiosidade. A

    crise das religiões não é resultado dos ataques empreendidos

    pelos

    soit dis nt

     materialistas ateus , mas os materialistas

    ateus são resultado da crise das religiões do Ocidente. Os

    esforços ecumênicos, que são tentativas de formar uma

    única religião ocidental para enfrentar a irreligiosidade, são,

    portanto, a meu ver, contraproducentes. A união das reli

    giões só pode ser conseguida pela diluição da religiosidade,

    e essa diluição apressará a decadência das religiões, já que

    deixará ainda mais insatisfeita a nossa religiosidade. O pre

    sente momento pode ser portanto caracterizado pela tenta

    tiva, consciente ou não, de darmos novo campo a nossa

    religiosidade. Como indivíduos e como sociedade estamos

    à

    procura de um veículo novo para substituir as religiões

    tradicionais e abrir campo a nossa religiosidade latente.

    As inautenticidades e perversões de nossa religiosida

    de, das quais falei mais acima, são sintomas da procura. Na

    falta de um novo veículo autêntico, a religiosidade abre

    canais frustrados como partidos políticos ou seitas extrava

    gantes. Mas em si é a procura de um sinal de renovação e de

    saúde. A Idade Moderna era, no campo da religiosidade,

    uma época decadente. Começou pelas guerras religiosas,

    portanto por uma exacerbação religiosa que é sinal de deca

    dência interna. Culminou no Iluminismo, portanto numa

    religiosidade pervertida, já que desviada do transcendente e

    fixada sobre os dois conceitos para-religiosos razão e

    naturezà . E acabou na profanação total e enfadonha da

    tecnologia. A procura de um novo veículo para nossa reli

    giosidade, que marca a meu ver a atualidade, é uma supera

    ção da Idade Moderna. Com efeito, todas as nossas ativida

    des criadoras, inclusive as científicas e as artísticas, estão

     

    dedicadas ao esforço de abrir campo novo

    à

    religiosidade.

    Com nosso intelecto ainda somos modernos, mas com

    nossa religiosidade já participamos de uma época vindoura.

    O que eqüivale a dizer que somos seres de transição e em

    busca do futuro. Se as religiões tradicionais são inaceitáveis

    para essa nova religiosidade, se as religiões exóticas são des

    vendadas como fugas, e se o desvio da religiosidade para a

    política, a economia, a tecnologia decepciona, ficamos com

    a fome religiosa insatisfeita. Invejamos os que a satisfazem

    na forma tradicional ou nas formas substitutivas, mas

    simultaneamente sentimos desprezo por eles. Essa mistura

    de inveja e desprezo, de humildade e blasfêmia, caracteriza

    a religiosidade insatisfeita.

     

    essa religiosidade não compro

    metida e portanto faminta de compromisso que construirá,

    a meu ver, o futuro.

    21

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     or que e para quê

    Considerem os leitores as perguntas seguintes: Por

    que pássaros constroem ninhos? Para que pássaros cons

    troem ninhos? e Por que tem Marte dois satélites? Para

    que tem Marte dois satélites? óbvio que o primeiro

    grupo de perguntas aquele que tem pássaros e ninhos por

    tema é plenamente significativo no sentido de deixar

    entrever a possibilidade de respostas significativas. Por

    exemplo: Pássaros constroem ninhos porque o seu instinto

    os condiciona para tanto e Pássaros constroem ninhos

    para neles botarem os ovos . Essas respostas são problemáti

    cas e provocam toda uma série de novas perguntas mas são

    juízos significativos. Servem de base para uma conversação

    sistemática digamos para a conversação da biologia. Mas o

    segundo grupo de perguntas aquele que tem Marte e saté

    lites por tema parece conter uma pergunta sem significado.

    Tentemos formular respostas. Por exemplo: Marte tem

    dois satélites porque ao ser expelido do sol destacou-se em

    três pedaços e Marte tem dois satélites para ser agradável

    aos astrônomos que o observam .

    A primeira resposta é significativa no sentido já men

    cionado embora seja provavelmente resposta falsa . O

    propósito do presente artigo é discutir se é significativa a

    segunda resposta.   um problema inquietante e tem a ver

    com a própria estrutura daquilo que chamamos realidade .

     

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    13/87

    Espero poder transmitir aos leitores um pouco do fascínio

    que sobre mim exerce no curso deste artigo.

     

    Não pretendo discutir o aspecto lingüística do proble

    ma. A lógica formal e a análise de símbolos demonstrará

    que os termos por que e para que envolvem dois tipos

    diferentes de relações entre classes. Nem pretendo discutir

    diretamente o aspecto do problema que a teoria do conhe

    cimento ilumina. Essa teoria talvez afirmará que o termo

     por que procura articular o aspecto teleológico das coisas.

    O que procurarei fazer é evocar o clima existencial no qual

    esses dois tipos de pergunta se formulam.

    Para tanto esboçarei, muito sumariamente, duas cos

    movisões, duas descrições do mundo que nos cerca. E para

    restringir o escopo dessa tarefa titânica limitarei essasdes

    crições ao cosmos da astronomia.

    I - O mundo dos astros, aquilo portanto que se nos

    apresenta, nas noites claras, como céu estrelado para inspi

    rar nossos poetas e amantes, e nos telescópios para inspirar

    os cosmonautas, não tem, no fundo, nem poetas, nem

    amantes, nem cosmonautas por finalidade. É, pelo contrá

    rio, um conjunto de fenômenos que resultaram de um pro

    cesso causal e que tendem a transformar-se nesse processo.

    Esse aspecto do mundo dos astros é relativamente recente.

    Antigamente era considerado esse mundo como o exemplo

    por excelência da imutabilidade e da eternidade. Mudanças

    e transformações só as havia no mundo sublunar, mas nas

    esferas acima da luà reinava a harmonia eterna, uma ilus

    tração do puro Ser , um símbolo da Divindade. Hoje ten

    demos mais para uma interpretação diabólica do Inundo

    dos astros. Houve, no início , uma explosão, comparável,

    em sua estrutura, com as nossas explosões atômicas, mas

    cujas dimensões são incomparáveis. O que explodiu? Um

    ponto infinitamente pesado. O ponto

    é

    algo que não tem

    24

    dimensão, que não ocupa espaço. O ponto é a maneira

    geométrica de articular o nada. O peso infinito é algo que

    abrange todas as coisas.   uma maneira um tanto materia

    lista de dizer-se tudo . O mundo dos astros teve início na

    explosão de tudo que era nada. Essaexplosão pôs em movi

    mento uma cadeia de causas e efeitos. Tratava-se de uma

    transformação progressiva e violenta de matéria em ener

    già . O peso infinito tornou-se, em virtude dessa transfor

    mação, peso finito. A dimensão zero tornou-se, em virtude

    dessa explosão, dimensão finita. O mundo dos astros tem,

    no seu estágio atual e fugaz, peso e dimensão finitos e deter

    mináveis.

     

    um algo esse mundo. Esse algo chama-se

     espaço-tempo . Consiste de grande número de entalhos,

    de rugas, de vales, que se chamam campos . O fundo des

    sesvalesé formado pela matéria , e as paredes dos vales são

    formadas por energià . A matéria é energia condensada, a

    energia é matéria diluída. O processo explosivo dilui maté

    ria, diminui seu peso e aumenta a dimensão do campo. Esse

    processo é irreversÍvel (ou pelo menos parece sê-Io). Suas

    diversas fases são, em tese, reversíveis, mas esgota esse pro

    cesso as virtualidades contidas na explosão inicial, pelo

    princípio da entropia .

    As rugas formam bolsas dentro de rugas maiores, que

    por sua vez formam bolsas em rugas ainda maiores. As

    rugas-mães, os campos maiores, são chamados sistemas

    galácticos e são os pedaços que compõem o mundo dos

    astros. Esses pedaços (se

    é

    que podemos recorrer a um

    termo tão arcaicamente materialista) fogem em corrida

    desenfreada a partir de um centro. Distanciam-se, a cada

    segundo que passa, desse centro e uns dos outros. O

    mundo se expande . Fogem em direção ao nada, e o que os

    separa, uns dos outros, é nada. O mundo dos astros consis

    te de pedaços que flutuam no nada, tendem para o nada, e

    perdem peso e ganham dimensão nesse processo. O estágio

    final será um mundo de dimensões infinitamente grandes,

    25

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    14/87

    e com o peso zero. Dimensões infinitamente grandes é a

    maneira geométrica de articular tudo . Peso zero é uma

    maneira de dizer-se nada . O mundo dos astros tende para

    um estágio final no qual tudo será nada. Trata-se de um

    processo que se inicia com o tudo que é nada, e que se com

    pleta com o nada que é tudo. O algo atual do mundo dos

    astros é um estágio efêmero desse processo.

    É óbvio que num mundo assim a pergunta para que

    tudo isto não cabe. O mundo dos astros é pura absurdida

    de. A contemplação do céu estrelado, longe de inspirar a

    visão do puro Ser , da Divindade, ilustra a ilusão absurda e

    diabólica do mundo que nos cerca. Em momentos de reco

    lhimento podemos admirar-lhe o rigor e a beleza da sua

    estrutura, articulável em poucas proposições matemáticas

    simples. Podemos admirar o mundo dos astros como obra

    de arte, mas como obra de arte inteiramente inútil. É o

    maior exemplo imaginável da arte pela arte . As perguntas

    que esse mundo impõe começam, todas elas, pelo termo

     como? inquisitivo, ou pelo termo por quê? inquisitivo

    ou indignado. O clima desta cosmovisão foi expresso

    magistralmente pela seguinte poesia de Omar Khayyam:

    And that invertedbowltheycallthe sky,

    whereunderwealicrawlingliveand die,

    liftnot thine eyesto it, for it

    movesimpotentlyjust as thou and  

    E aquela tigela invertida que chamam de céu , debai

    xo da qual nós todos nos arrastamos para viver e morrer,

    não eleves os teus olhos até ela, pois ela se move tão impo

    tente quanto tu e eu.)

    II - Limitemos um pouco a visão colossal que nos tem

    preocupado até agora, e contemplemos o sistema galáctico

    do qual a nossa Terra modesta é parte. É constituído de

    astros, isto é, de campos gravitacionais que têm bolas mate

    riais por centro. Essas bolas ilustram as fases reversíveis do

     

    processo irreversível que tentei descrever, tão ingenuamen

    te, acima. São bolas incandescentes em diversos estágios de

    desintegração, estão perdendo peso e emitindo energia.

    Algumas dentre essas bolas estão esgotadas. Mas poderão

    explodir novamente, serão estrelas novas . As dimensões

    dessas bolas variam, mas são consideráveis. Um exemplo

    modesto delas é o sol que nos aquece. Mas será tão modes

    to assim esse exemplo?

    O sol não está só e perdido no nada. Está acompanha

    do de planetas , de rugas que formam bolsas dentro da sua

    ruga. Talvez existam outros sistemas planetários dentro do

    nosso sistema galáctico, mas não temos certeza disto. Essa

    descoberta, se feita, seria existencialmente desinteressante.

    As distâncias entre os astros são de dimensões existencial

    mente proibitivas. Os planetas que acompanham o nosso

    sol são de dois tipos, internos e externos. Os externos estão

    afastados do sol e giram em seu redor envoltos em frio ini

    maginavelmente rigoroso. Praticamente não pode haver

    reação química nesses corpos. Os planetas internos são

    Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Mercúrio é um corpo fer

    vente e fervoroso. Se há reações químicas nele, devem ser

    simples e rápidas e extremamente voláteis. Vênus e Marte

    são Terras frustradas. Não conseguem estabelecer o equilí

    brio precioso e incrivelmente complexo no qual seencontra

    a Terra. Consideremos portanto essa nossa Mãe amorosa

    que é a Terra.

    É

    ela um corpo a um tempo conservador e altamente

    mutável. Tudo nela é moderado. As temperaturas variam

    constantemente, mas dentro de limites muito modestos. Há

    uma pressão quase constante, mas maleável, que sua atmosfe

    ra gasosa exerce sobre a solidez fluida da sua crosta. Suas

    substâncias se encontram em todos os estágios de agregado.

    São sólidas, viscosas, líquidas, emulsões e gases.A mais ínfi

    ma variação de temperatura ou pressão ínfima secomparada

    com os externos que regem o cosmos) transforma sólidos em

    27

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    15/87

    gases ou comprime gases. E, como estágio intermediário,

    incrivelmente improvável e incrivelmente fugaz, correm,

    fluem e derramam-se os líquidos em busca da vida.

    Nossos ventos assopram nossas nuvens, nossos rios

    modelam nossas montanhas, nossos oceanos, inspirados

    por nossa Lua, retocam constantemente nossos continen

    tes. Fazem-no para produzir praias ensolaradas, para criar o

    ambiente daquele milagre indescritível que é o surgir da

    primeira gota daquele polímero viscoso chamado proto

    plasma , da primeira gota da vida. Como se deu essa cons

    piração gigantesca? Como se constelaram galáxias e astros,

    como se conjugaram influências físicas, térmicas,

     l tro-

    magnéticas, óticas, químicas, e incontáveis outras, para

    produzir esse milagre? Como se contorceu esse cosmos

    gigantesco todo, para dar à luz essa ínfima gotinha? E qual

    é a estrutura dessa gotinha? Ela contém, em sua organiza

    ção, o projeto de toda aquela evolução que passa pelos pro

    tozoários, resulta na incrível riqueza de formas das espécies

    vegetais e animais, produz o homem com sua capacidade de

    abranger, de maneira misteriosa, o

     osmos

    inteiro pela sua

    força articuladora, pela língua, e passa, quiçá, além do

    homem para criar seres ainda mais divinos e diahólicos que

    ele. E tudo isto estava contido, em projeto, naquda primei

    ra gotinha? Não podemos crer, por instante scqucr, que

    tudo é resultado de um acaso . Seria uma explicação ,

    cuja inautencidade existencial grita para os céus. Mas, afi

    nal, acaso não é sinônimo de milagre ? Não, o ll1undo

    dos astros tem uma finalidade, e sentimo-Ia dentro da pró

    pria medula dos nossos ossos.Todo esseprocesso aparente

    mente absurdo tem por finalidade produzir o Sol, e a Icrra,

    e a vida, e o homem, e aquele espírito humano que indaga

    por sua finalidade.

    O mundo dos astros tem um propósito, e esse propósi

    to somos nós, são as nossasmentes.   com esta il1l en

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    16/87

     oincidênci incrível

    Quando abro o rádio jorram anúncios; quando abro a

    torneira jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anún-

    cios a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa

    constante: espero constantemente que torneiras jorrem

    água pura água toda a água e nada mais que água. Essa

    minha expectativa não é confirmada pela experiência que

    meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja ou

    pouca água ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos

    não destrói a minha fé nas torneiras. Explicam o compor-

    tamento das torneiras por fatores externos como a hipótese

    da falta de chuva ou a hipótese do encanador ou a hipóte-

    se da Municipalidade. Essas hipóteses provam que elimi-

    nados os fatores externos torneiras jorram água. A evidên-

    cia dos meus sentidos embora prim f ie contrária à

    minha fé nas torneiras fortalece em virtude das hipóteses

    a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o cará-

    ter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrá-

    na em prova.

    Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria

    diferente. Seria não o inesperado mas o inesperável. Cau-

    saria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses

    ousadas. Pela hipótese da alucinação ou pela hipótese do

    rádio portátil escondido na torneira por exemplo. Mas por

    um instante pelo menos a minha fé ficará abalada.

    31

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    17/87

    ---~

    Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocor

    rem. Antigamente eram chamados milagres. Hipóteses

    ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual

    continuava fortalecida por eles. Das Wunder ist des Glau

    bens schoenstes Kind (o milagre é o filho mais belo da fé)

    diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam

    pelo inesperável, pelo milagre. Atualmente, embora conti

    nuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem mila

    gres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automatica

    mente surpresas. É o mecanismo do faça-de-conta .

    Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era

    esperado. É graças a este mecanismo que nada nos sur

    preende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anún

    cios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto.

    Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não

    passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do

    presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de

    fé profunda. Que somos uma época que espera por mila

    gres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé funda

    mental na tecnologia. De uma esperança portanto que é

    fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com tor

    neiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto.

    Se digo: Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo de

    Minas para iluminar a Terrà , terei dito uma absurdidade.

    Mas sedigo: Ontem nasceu um queijo deMinas e iluminou

    a Terra , e se milhares confirmam esta minha observação,

    terei articulado uma banalidade.

    É

    óbvio que o queijo de

    Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavampelo nascer

    do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos

    incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se

    reformuladas

    à

    luz dos acontecimentos de ontem, provam

    essasteorias que o nascer do queijo de Minas era um aconte

    cimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O

    queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo

    contrário, a eficiência do método científico como captação

     

    j

     

    da realidade . Todo fenômeno novo se enquadra nesse

    método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver,

    a forma como funciona a féna atualidade.

    É a fé na coincidência do pensamento de um determi

    nado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo

    dessa fé reza: O pensamento lógico coincide com a reali

    dade . O segundo artigo reza: A expressão mais perfeita

    do pensamento lógico são os enunciados da matemática

    pura . O credo conclui: A realidade tem a estrutura da

    matemática pura . Isto não é, como parece, racionalismo

    puro. A tecnologia prova, empiricamente, que nossa fé é a

    fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são

    fé aplicada, são obras no significado teológico do termo.

    E nossas máquinas e instrumentos funcionam. Provam

    nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por

    exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também,

    que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto

    prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira.

    Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empÍrico:

    é uma fé completa.

    A coincidência entre pensamento lógico e realidade é

    incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivênciado mundo a

    desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essacoin

    cidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque

    crê qui bsurdum Mas ao dizer que a coincidência é incrível,

    coloquei o presente argumento em terreno estranho

    à

    fé da

    atualidade. A nossà fé não é a fé do presente argumento.

    Como consegui essaironia? Evidentemente porque nossa fé

    permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu

    fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argu

    mento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e

    perigosa.

    É

    incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus

    aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigo

    sa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína.

    [)uas são as possibilidades que uma situação destas oferece:

    33

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    18/87

    procurar fechar as fendas, ou procurar construir uma fé nova.

    Com efeito, é o que estamos fazendo todos.

    E, como somos seres confusos, estamos tentando as

    duas possibilidades simultaneamente. A mente humana é

    construída assim: não pode existir desabrigada. As tentati

    vas de reconstrução e as de construção nova têm uma coisa

    em comum: procuram ambas descobrir os fundamentos do

    edifício ameaçado.   a pergunta: Como surgiu a fé da qual

    todos participamos ainda, embora precariamente?

    Jaspers publicou um livro que muito bem poderá ser o

    seu último: Nikolaus Cusanus (Cusano).   uma análise

    existencial desse pensador que se coloca entre a Idade Média

    e a Moderna (1401-1464). Obviamente Jaspers procura des

    cobrir um dos fundamentos da fé moderna. Não pretendo

    seguir-lhe os passos no livro mencionado. Chamarei, no

    entanto, a atenção dos leitores para um conceito fundamen

    tal de Cusano:

    coincidentia oppositorum

    A coincidência

    pressupõe uma oposição, e essaoposição é o fundamento do

    pensamento moderno.

     

    uma cosmovisão inteiramente

    diferente da medieval a moderna. Houve, no Renascimento,

    uma virada fatídica, pela qual o homem se colocou em opo

    sição ao mundo. O homem tornou-se sujeito , e o mundo

    seu objeto . Desde então o homem encara o mundo.   por

    tanto absolutamente necessário que haja coincidência, entre

    homem e mundo, por incrível que seja. Do contrário, seria

    o homem um ser totalmente alienado. Esta é, em resumo, a

     explicação históricà da nossa fé periclitante.

    Em virtude da virada contra o mundo tornou-se o

    homem, na palavra de Cusano, o segundo Deus Ainda havia

    um primeiro. Em Cusano a fémedieval emDeus ainda secon

    fundia com a fémoderna. Mas já em Descartes essafémedie

    val empalidecia. A função do primeiro Deus era a de ajudar o

    segundo Deus a estabelecera coincidência incrívelentre elee o

    mundo.

     

    graçasao concursusDei que o pensamento humano

    se adequa às coisas extensas. A fé moderna conseguiu, mais

    34

    tarde, superar essanoção pálida do primeiro Deus. Transferiu

    separa a coincidência mesma.Tanto racionalistascomo empi

    ristas colaboraram nessa transferência que é, com efeito, o

    endeusamento do pensamento humano de um tipo determi

    nado. Se, no curso do pensamento moderno, a noção de Deus

    parece acompanhar parte do argumento filosófico, é, no

    entanto, uma noção organicamente alheia. O pensamento

    moderno pode passar, perfeitamente, sem essa hipótese de

    Deus. Dispõe de inúmeras outras. Mas da coincidência entre

    pensamento e mundo não pode passar, e esta não é hipótese,

    mas artigo de féportanto.   redo in coincidentiam unam

    A conseqüência deste tipo de féé a tecnologia. Os nos

    sos instrumentos estão contidos, em germe, já no projeto

    de Cusano. Os instrumentos são produtos da oposição

    entre homem e mundo. Surgiram pela graça da coincidên

    cia entre ambos. Por coincidir o pensamento lógico com o

    mundo extenso, surgem instrumentos. Instrumentos são

    obras da graça.   pelos instrumentos que o homem se inte

    gra na totalidade da graça.   por eles que se realiza . O

    mundo dos instrumentos que nos cerca testemunha a pro

    cura da graça da humanidade moderna.

    A torneira é o equivalente do Ídolo de épocas passadas.

    Ídolos podem ser vorazes.O Moloch devora os fiéis que

    o adoram. Isto prova que funciona. Confirma e fortalece a fé

    dos fiéis portanto. A bomba H fortalece a fé moderna. De

    certa forma prova, ao destruir a humanidade, que o homem é

    Deus. Não é por este aspecto ético da tecnologia que nossa fé

    periclita. Os que pensam assim, estão enganados. A razão

    disto é outra. Está no próprio fundo da nossa féna coincidên

    cia incrível. Não acreditamos mais tão firmemente que nossos

    pensamentos lógicos coincidem com a realidade .

    Não o acreditamos mais tão firmemente, a despeito de

    evidências tão palpáveis como o é a bomba H (ou a tornei

    ra), porque somos incapazes de sorver a vivência da graça

    nos instrumentos. Já nos causam tédio e nojo. Não nos

    35

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    19/87

    causam mais admiração e medo, e se o fazem, fazem-no de

    forma tediosa. É, com efeito, um círculo o pensamento

    moderno, um círculo que sefecha atualmente. O círculo se

    abre com a oposição entre homem e mundo, e fecha-se ao

    começarmos a perceber que ambos não coincidem. E que,

    com efeito, a coincidência é incrível.

    Essa sensação que os instrumentos nos causam é talvez

    o sintoma do despertar de um novo senso de realidade.

    Começamos a perceber que a realidade com a qual o pen

    samento supostamente coincide, não é mais a nossa realida

    de. Trata-se de um novo tipo de dúvida que surge. Uma

    dúvida eguivalente

    à

    cartesiana, talvez, mas com intenção

    inversa. E a tentativa de superar a oposição que a dúvida

    cartesiana estabelece. A tentativa de reintegração portanto.

    É

    cedo ainda querer articulá-Ia rigorosamente. A arte

    moderna e a filosofia da língua por serem análises do pen

    samento e da realidade) são as primeiras articulações tenta

    tivas.

    Ainda participamos todos, com a grande maioria dos

    nossos pensamentos e atos, da fé moderna. Ainda acredita

    mos todos na torneira. Weizsaecker cita, em die Tragweite

    der Wissenschaft  O âmbito da ciência), o seguinte exemplo:

    Um autor de livro anti-tecnológico telefona ao seu editor

    para saber do manuscrito. O exemplo é significativo. Exem

    plifica a fé do autor na tecnologia telefone), e exemplifica a

    tentativa de superá-Ia livro). A transição na qual estamos é

    um processo difícil, penoso, e cheio de contradições inter

    nas. Não era outra, no entanto, a situação dos pré-renas

    centistas. ]aspers é talvez nosso Cusano. Ao tornar incrível a

    coincidência entre pensamento e realidade , talvez torne

    crível, ele e os que lhe seguirão os passos, uma realidade

    nova. A esta fé está dedicado o presente artigo.

    36

    i

    1

     

    r

     ens mento e reflexão

    O Instituto Brasileiro de Filosofia, tendo me honrado

    com o convite de proferir esta conferência de encerramenro

    do seu ano letivo, proporciona-me a oportunidade de expor

    algumas considerações um tanto heterodoxas em torno

    daquele processo chamado pensamento . Agradeço a opor

    tunidade e proponho, como ponto de partida dessas consi

    derações, a distinção cartesiana entre

    res cogitans

     coisa pen

    sante) e res extensae  coisas extensas). Podemos duvidar das

    coisasextensas, mas a coisa pensante é indubitável. E a rela

    ção entre esses dois mundos, entre o mundo duvidoso da

    matéria e o mundo indubitável do pensamento, pode ser

    estabelecida somente com o concursus ei com a ajuda divi

    na. A cosmovisão cartesiana, opondo o pensamento ao

    mundo dos corpos, estabelecendo portanto uma relação de

    sujeito-objeto entre eles, e relegando essa relação à fé em

    Deus, é uma das fontes, senão a fonte principal, da civiliza

    ção ocidental tal como a conhecemos. De certa forma pode

    mos dizer que a Idade Moderna, essa época do triunfo do

    Ocidente, não passa de uma realização progressiva da visão

    cartesiana. A coisa pensante, o sujeito, investe durante essa

    época contra o mundo dos corpos que é o seu objeto, com a

    dupla finalidade misteriosa de compreendê-Io e modificá-lo.

    A ciência é o método pelo qual o pensamento se precipita

    sobre os corpos para compreendê-Ios, e a tecnologia é o

    37

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    20/87

    método pelo qual o pensamento se agarra às cOIsas para

    modificá-ias.

    O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do

    Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade

    Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Oci

    dente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a

    ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a

    dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele opera

    da pela tecnologia é portanto fútil .

    Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éti

    cas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo

    dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses méto

    dos, o concursus Dei Há algo fundamentalmente errado na

    visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela.

    progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da

    matéria é o pensamento, já que os elementos da matéria se

    revelam como sendo mais símbolos do pensamento que outra

    coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos hm

    damentais não é possível fazer-se a distinção entre observador

    e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na

    física como método do conhecimento. E se a tecnologia

    modificou o mundo dos corpos a ponto de tornar perfeita

    mente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que

    com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo erra

    do na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro funda

    mental devemos buscá-Io, ao meu ver, no conceito do pensa

    mento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado

    pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.

    A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e

    pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubi

    tável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser

    ela de superação muito difícil. Porque essa dicotomia, longe

    de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos

    primordiais que deram origem à civilização ocidental e que

    encontraram a sua expressão ritualizada no cristianismo.

    38

     fI

    ~

    l

     g

    íl

    I

    I

    1I

    fi

     

    11

    Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicitação

    do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos

    com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e

    o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-maté

    ria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica,

    como parece ser se a formos considerar a partir de Descartes,

    mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual par

    ticipamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que

    existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imagi

    narmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão

    matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras

    civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a

    ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas cha

    madas primitivas (que vivem em mundos pré-Iógicos, isto é,

    anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existen

    cialmente esses projetos alheios ao nosso.

    Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para

    fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar

    que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civil ização

    com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justa

    mente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possí

    vel esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso

    projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o

    qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daque

    las origens nas quais se deu, in illo tempore a divisão entre pen

    samento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto,

    para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele

    ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do

    paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento.

    Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei

    de reflexivo? Para iluminá-Io, voltemos por um instante a con

    siderar o processo do pensamento tal como o descrevi há

    pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos

    para compreendê-Ios, e que se agarra a eles para modificá-Ios.

    O pensamento é portanto um processo explosivo que se

    39

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    21/87

    expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-Ios.

    O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe

    outro movimento do pensamento, um movimento oposto.

    Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si

    mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra

     reflexão indica a direção desse movimento, já que denota

    um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspon

    dente alemã Nachdenken pensar atrás ou depois) indica a

    função desse movimento, já que denota controle .

    E a palavra correspondente tcheca rozmyslení pensar

    analít ico) indica o resultado desse movimento, já que denota

    a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o

    movimento inverno do pensamento, que o controla e o

    decompõe em seus elementos. O método desse compreender

    se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é

    portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia.

    As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo

    pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar cient ífi

    ca a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total

    do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentati

    va de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e

    da futil idade, devemos recorrer à reflexão, t inha eu em mente

    exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência

    e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnolo

    gia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontra

    mos mas com mais filosofia se é que sairemos).

     

    verdade

    que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tec

    nologia aparecem como as tendências progressivas do pensa

    mento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é ver

    dade que a grande maioria continua valorizando

    positivamente o progresso como herança dos dois séculos pas

    sados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas exis

    tem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua

    fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um

    recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos

    40

    caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimis

    tas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnolo

    gia pela fi losofia pode ser portanto encarada como um

    ré uler

    pour mieux s uter

    mesmo por aqueles que não crêem, como

    eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo.

    Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve

    conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades

    portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso.

    Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa

    e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do

    pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lan

    çados para cá porque comemos do fruto proibido da dist inção

    entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portan

    to. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de

     antimescalina . A expulsão do paraíso, o qual pode ser descri

    to como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão

    para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da

    dúvida, não é um acontecimento de um passado histórico

    remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um aconteci

    mento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo.

    Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distingui

    mos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de

    distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente

    de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro,

    já que zweifeln duvidar) conduz ao verzweifeln perduvi

    dar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do

    paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um dis

    tinguir , um dividir , um ordenar portanto.

    Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do

    progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indis

    t inção e da ingenuidade, e estam os sendo lançados, impiedo

    samente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é,

    como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do

    mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por

    Heidegger na frase: fomos lançados para cá e estamos aqui

    41

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    22/87

    para a morte . Mas esse duvidar, que é um distinguir e um

    ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o

    próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinô

    nimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato. A

    coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela

    é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não

    pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento,

    distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma

    ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-Io e se torne indu

    bitável. O pensamento é portanto um processo absurdo.

    Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa,

    o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspec

    tos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo

    mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar

    essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensa

    mento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende

    matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o

    mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto

    mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a

    sua absurdidade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pen

    samento a expulsão do paraíso.

    Duas perguntas se impõem ao contemplarmos a imagem

    do pensamento que acabo de lhe propor: de que duvida o

    pensamento? e como duvida o pensamento? Reformulando: o

    que é duvidoso? e qual é a ordem à qual o pensamento o sub

    mete? A primeira pergunta me parece ser uma típica pergunta

    falsa, e o problema por ela posto um típico pseudoproblema.

    Porque toda resposta que a ela possamos dar por exemplo a

    resposta cartesiana: o duvidoso são as coisas externas ) já será

    uma transformação do duvidoso em pensamento, portanto

    em dúvida indubitável. Não se pode definir o duvidoso, por

    que a definição acaba com ele. A definição do duvidoso é jus

    tamente a meta de todo o processo do pensamento, uma meta

    absurda. Porque se fosse alcançada essa definição, não somen

    te acabaria o duvidoso, mas a própria dúvida acabaria, o

    42

    r

    I

    I

    pensamento acabaria, já que não teria mais assunto. Estaría

    mos de volta ao paraíso. Devemos portanto simplesmente

    dizer que o duvidoso é a direção na qual o pensamento se

    expande. Como o pensamento se expande em todas as dire

    ções, tal qual o cosmos da astronomia, devemos dizer que o

    duvidoso é o horizonte do pensamento. É a situação fronteiri

    ça do pensamento, na qual este se expande para chocar-se

    com o nada e abrir-se para ele. Pensar a respeito do duvidoso

    é expandir os horizontes do pensamento, e a dicotomia carte

    siana entre pensamento e coisa extensa é falsa.

    A segunda pergunta: qual a ordem à qual o pensamento

    submete o duvidoso? deve ser portanto reformulada como

    segue: qual a ordem na qual o pensamento se expande? Esta

    sim é uma pergunta autêntica e admite resposta clara. O pen

    samento se expande de acordo com as regras da língua. Com

    efeito, o pensamento é uma corrente de frases que seformulam

    de acordo com as regras lingüísticas e seguem, uma à outra, de

    acordo com essas regras. O pensamento, sendo um distinguir e

    um ordenar, é um articular do duvidoso de acordo com as

    regras da língua. Devemos imaginar o pensamento como teia

    que seexpande em todas as direções, cujos fios são as regras lin

    güísticas, e em cujas malhas impera o indizível. A teia não é

    uniforme. Em certos lugares ela se apresenta densa, como por

    exemplo na física moderna, em outros lugares ela é frouxa. Na

    física, as regras da língua, em forma de matemática, encobrem

    quase totalmente o indizível, e é justamente por isto que nessa

    região o pensamento se revela aquilo que

    é:

    transformador do

    duvidoso em língua. Em outros lugares esse caráter puramente

    lingüístico do pensamento não é tão evidente. Nesses lugares

    ainda persiste a esperança, desesperada conforme creio, que o

    conhecimento não é uma simples f çon de p rier

    Voltemos, para interpretar a teia lingüística que é o pen

    samento, ao mito da expulsão do paraíso. Essa expulsão é por

    tanto equivalente a uma expressão, a um grito. Cada palavra é

    um grito assim, e com cada palavra que pensamos, com cada

     

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    23/87

    conceito que formulamos, estamos sendo expulsos do paraíso.

    A corrente das palavras, a conversação, é o rio que nos arrasta

    das nossas origens, e pelo indizível que se esconde entre as

    palavras estamos sempre nas proximidades das nossas origens.

    Desse indizível, dessas aberturas que a língua conserva para o

    nada, é que brotam sempre novas. palavras, novos pensamen

    tos. Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingê

    nuo que é o paraíso. Com efeito, essas nossas aberturas para o

    silêncio ingênuo, essa nossa capacidade para o espanto ante o

    nada, essa nossa capacidade de gritar o nosso espanto, é sinal

    da nossa autenticidade. É sinal que ainda estamos na proximi

    dade misteriosa do nada. Somente quando a teia da língua se

    fechar inteiramente em nosso redor, quando se tornar tão

    densa e não permitir mais aberturas, é que perderemos essa

    capacidade para o espanto. Então não poderão surgir palavras

    novas nem pensamentos novos. Estaremos presos da conversa

    fiada repetitiva e decairemos, inautenticamente, rumo à

    morte. Essa decadência tem aspectos individuais e coletivos.

    Os aspectos individuais são por demais conhecidos para

    serem mencionados. Um exemplo do aspecto coletivo de con

    versa fiada é a física moderna. Tão afastada está ela das origens

    do pensamento, tão densa é nela a rede da língua, que está se

    aproximando rapidamente do círculo vicioso e tedioso das

    equações reduzíveis a zero. Está adquirindo, rapidamente, o

    clima existencial da inautenticidade, e os próprios físicos são

    os primeiros a confessar esse fato.

    O pensamento é portanto um processo lingüístico que se

    expande, a partir do silêncio paradisíaco, em direção de sua

    própria superação, de um novo silêncio portanto. O pensa

    mento é a expulsão do paraíso em busca de outro.

    Mas o paraíso secundário que o pensamento busca

    começa a revelar o seu caráter no estágio atual do desenvolvi

    mento. Demonstra ser inautêntico e tedioso.

    A soma dos conhecimentos que o pensamento está acu

    mulando está se revelando como sendo reduzível a zero. E a

    44

     

    t

    ~I

    civilização tecnológica perfeita que será o resultado desses

    conhecimentos está se revelando, já muito antes de ser alcan

    çada, como sendo tediosa. O paraíso em direção do qual o

    pensamento nos impele será indistinguível do inferno. Com

    efeito, será o fim da dúvida, o fim do pensamento, será a

    morte. E aí o pensamento revela o seu aspecto mais absurdo.

    O pensamento é empolgante, é exuberante, é aventuroso,

    enquanto aberto para o nada, enquanto imperfeito. O pensa

    mento perfeito, o pensamento bem sucedido, seria o tédio

    mortal, o círculo nojento do

    i em per i em

    Mas, dirão os

    senhores, esse pensamento perfeito não representa perigo, já

    que nunca será alcançado. O paraíso secundário não represen

    ta perigo, já que nunca será realizado. Não posso concordar

    com esse argumento.

    Defini o pensamento como processo lingüístico. A civili

    zação ocidental, tal como se apresenta atualmente, reduz esse

    processo a umas poucas camadas lingüísticas, caracterizadas

    pelas palavras ciêncià e tecnologià , que são, por sua vez,

    reduzíveis à camada da matemática e da linguagem do simbo

    lismo lógico. Essas poucas camadas pobres são perfeitamente

    realizáveis, como o nosso progresso o prova. Pelo empobreci

    mento da conversação ocidental esta se aproxima, rapidamen

    te, do estágio da conversa fiada. Dentro em breve não terá mais

    assunto. Graças a esse empobrecimento, o Ocidente terá reali

    zado, dentro em breve, o paraíso na terra. Trata-se a meu ver,

    de um perigo real e quase iminente, um perigo que pode ser

    evitado somente com a abertura de novas conversações, mais

    próximas da origem, e portanto mais capazes do espanto ante

    o mistério do nada. Essas aberturas são possíveis, estão previs

    tas no projeto que nos lançou para cá, porque esse projeto é

    inesgotável. Mas é somente, a reflexão metódica, é somente a

    filosofia, que pode abrir para nós essas aberturas novas, é

    somente a filosofia que pode mudar o rumo do progresso.

    Disse que, além da expansão, conhece o pensamento

    também a fase reflexiva, na qual procura conhecer-se a si

    45

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    24/87

    mesmo, e modificar-se a si mesmo. A dúvida que é o pensa

    mento pode duvidar também de si mesma, pode, ela própria,

    tornar-se duvidosa. Neste ponto discordo, como vêem os

    senhores, da análise cartesiana da dúvida, que me parece pecar

    por insuficiente radicalidade. Essa dúvida da dúvida, esse

    refluir do pensamento sobre si mesmo, esta é, ao meu ver, a

    definição de filosofia. E, tendo identificado pensamento com

    processo lingüístico, posso definir a filosofia como reflexão da

    língua sobre si mesma. Nessa reflexão a língua revelará a sua

    força produtiva e a riqueza inesgotável dos seus temas. O

    papel da filosofia na conversação que é a história) sempre era

    este: descobrir reflexivamente os temas projetados na conver

    sação e propô-Ios à realização pela conversação em progresso.

    Foi assim que surgiram as ciências a partir da filosofia, e será

    assim que devem surgir, a partir da mesma filosofia, novos

    temas a formar novas conversações e novas realizações por ora

    inimagináveis. E é assim que se me afigura evitável a queda da

    nossa conversação no abismo do silêncio inautêntico que a

    ameaça.

    O processo do pensamento é absurdo. Pensamos para

    não pensar mais, falamos para podermos calar-nos. Mas é essa

    absurdidade do pensamento que faz com que sejamos

    homens. Ser homem é ser absurdo.

    É

    inalcançável para nós a

    ingenuidade paradisíaca, o estado anterior à dúvida, a integra

    ção portanto. Somos, como homens, seres alienados, seres

    expulsos. Aceitemos a absurdidade do desterro. Duvidemos o

    mais possível, e duvidemos num máximo de camadas possí

    veis. Ao expulsar-nos do seu seio, nossa origem nos arriscou

     Rilke). Aceitemos esse risco. Não nos deixemos enjaular pelas

    poucas camadas agora em vias de realização pela conversação

    do Ocidente. Não tenhamos medo de novas palavras e de

    novos pensamentos. Abramos novas aberturas e experimente

    mos novos espantos. Assim, e somente assim, seremos dignos

    de sermos homens, isto é, res cogit ntes coisas pensantes.

    46

     

    dúvid

    A dúvida é polivalente. Significa o fim de uma certeza.

    Significa a procura de certeza. Significa ainda, se levada ao

    extremo, ceticismo, isto é, certeza invertida. Em doses

    moderadas estimula o pensamento. Em doses excessivas

    paralisa o intelecto. Como experiência intelectual é um dos

    prazeres puros. Como experiência moral é tortura. O ponto

    de partida da dúvida é a fé. A fé como aceitação ingênua

    dos dados Wahrnehmen ) é o estado intelectual primor

    dial e primitivo. A dúvida destrói essa ingenuidade de

    forma irrevogável.

    As certezas que o método da dúvida fornece nunca

    serão tão autênticas quanto o é a certeza primitiva. Conser

    varão sempre a marca da dúvida que lhes era parteira. A

    dúvida é um método que procura criar certezas inautênticas

    pela destruição de certezas genuínas. A dúvida como méto

    do é absurda. Surge a pergunta: Por que duvido?

    É

    mais

    fundamental que a outra: De que duvido? Subentende a

    pergunta: Duvido mesmo? Trata-se de duvidar da dúvida

    portanto. Trata-se de um último passo.

    Descartes e com ele quase todo pensamento moder

    no) aceita a dúvida como indubitável. Essa fé ingênua na

    dúvida caracteriza, com efeito, a Idade Moderna cujos últi

    mos instantes presenciamos. A fé na dúvida cabe, durante a

    Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus

     

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    25/87

    em épocas anteriores. Essa fé resultou em mentalidade e

    civilização idealista . Em meio de um mundo duvidoso a

    dúvida indubitável. A dúvida como núcleo e como último

    refúgio da realidade.

    O intelecto como única realidade portanto. A dúvida

    da dúvida seria um assalto a esse último reduto da realida

    de. Seria o fim da Idade Moderna.

    A dúvida da dúvida é um movimento do intelecto difí

    cil. Oscila entre dois pólos: Tudo pode ser posto em dúvi

    da, inclusive a dúvida mesma e Nada pode ser duvidado

    autenticamente . Oscila entre um ceticismo radical e um

    positivismo extremo. Kant afirma que o ceticismo é um

    descanso para a razão, embora não sejalugar de moradia. O

    mesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo. A dúvida

    da dúvida impede o descanso.   ela uma indecisão funda

    mental que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra. A

    dúvida da dúvida, se mantida, lança a mente na situação

    sisífica da pura absurdidade.

    Duvido = penso. Penso: sou cadeia de pensamentos.

    Um pensamento segue outro. Por quê? Porque um pensa

    mento não basta a si mesmo. Exige outro para certificar-se.

    Duvida de si mesmo. Sou cadeia de pensamentos que duvi

    dam de si mesmo. Duvido, portanto sou. Duvido que sou,

    portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto

    torno duvidoso que sou. Por que sou? Porque duvido. Por

    que duvido? Porque sou. Portanto duvido que sou. Portan

    to duvido que duvido.

    É

    um beco sem saída.

    É,

    com efeito, o beco reservado

    a Sísifo pelos Antigos.   uma forma de loucura.   o suicí

    dio do intelecto.

    Somos a primeira ou segunda geração que experimen

    ta esse tipo de niilismo vivencialmente.   a perda total da

    fé, a loucura do nada todo-envolvente. Os sintomas abun

    dam.   a lógica formal que reduz os pensamentos à tautolo

    gia.

     

    a clara noite da angústia do nada do existencialismo.

    48

      a manipulação consciente de conceitos divorciados da

    realidade pela ciência pura.   a produção de instrumentos

    destruidores da humanidade, portanto autodestruidores,

    pela ciência aplicada.   a arte que se significa a simesma.  

    o   rpe diem individual e coletivo, fruto do esvaziamento

    dos valores. O clima da absurdidade é resultado dessa

    dúvida extrema. Nada tem significado. Poderá ser supera

    do esse clima? Poderá sobreviver a nossa civilização

    à

    Idade

    Moderna.

    I -   o intelecto Certos exercícios do Ioga ultrapas

    sam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam

    vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamen

    tos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas

    continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova

    a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma

    fé humanista no eu que se infiltra, sub-repticiamente, no

    argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercí

    cios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquanto

    proporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos.  

    o ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos se

    apresentam como tecido entreposto entre o eu e o mundo

    dos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta e

    representa vorstellt na palavra de Schopenhauer) o

    mundo externo. Chamemos esse tecido de intelecto .

    Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocor

    rem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma,

    com o eu que tem pensamentos, e com o mundo a quem

    os pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa fé

    ingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essas

    ligações são justamente o significado do intelecto. Mas essas

    ligações não podem ser pensamentos, dada a nossa defini

    ção do intelecto. Do contrário, eu e mundo externo

    seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelecto

    ao eu e ao mundo externo não são, portanto, pensa

    mentos. Eu e mundo externo são impensáveis. Sendo

    49

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    26/87

    impensáveis são paradoxalmente indubitáveis. Serão em

    conseqüência eliminados do presente argumento.

    O intelecto definido como campo no qual ocorrem

    pensamentos é uma visão que resultou de um ponto de

    vista.   um ponto de vista externo ao intelecto. O intelecto

    é deste ponto de vista objeto. Pode ser investigado objeti

    vamente . Tornou-se despsicologizado. Os pensamentos

    que compõem o intelecto não são vivências mas objetos de

    conhecimento. Uma dificuldade ontológica se esconde

    neste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos de

    pensamentos. Essa dificuldade é conseqüência da dúvida da

    dúvida que fundamenta o ponto de vista.

    Passemos relutantes por Cimadessa dificuldade.

    O intelecto como campo no qual ocorrem pensamen

    tos torna a pergunta o que é intelecto? pergunta sem sig

    nificado. Um campo não é um algo.   um como algo se dá.

    O campo gravitacional da Terra é como se comportam cor

    pos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamen

    tos ocorrem. Para ocorrerem os pensamentos devem ocor

    rer de uma forma ou outra. O intelecto é essa forma ou

    outra . Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto

    dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos.

    Os pensamentos como objetos são formações comple

    xas. Consistem de elementos chamados conceitos ligados

    entre sipor elos chamados regras . Pelo menos é assim que

    pensamentos ocorrem em campos chamados intelectos do

    nosso tipo .

    Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Por

    exemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl Nesses

    intelectos os pensamentos talvez não consistam de concei

    tos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto.

    Os pensamentos como conceitos ligados por regras

    são processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. A

    meta é chamada significado . Um pensamento significati

    vo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos

    50

    incompletos são insignificativos. Alcançado o significado

    surge pensamento novo. Pensamentos significativos são

    produtores de pensamentos novos. O significado do pen

    samento é outro pensamento. Pensamentos sem significa

    do não produzem pensamentos novos. O critério do signi

    ficado é a capacidade para a produção de pensamentos.

    Um pensamento significativo pode produzir mais que um

    pensamento novo.

    Quanto mais significativo o pensamento tanto maior o

    número de pensamentos novos por ele produzidos. For

    mam-se assim cadeias de pensamentos chamadas argu

    mentos . Estes discorrem por sua vez em busca de signifi

    cado do qual o significado do pensamento individual é

    apenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentos

    forma a totalidade do discurso. Este flui por sua vez em

    direção de um significado. Pelo próprio caráter do processo

    esse significado é inalcançável. Está ele naquele eu e

     mundo externo que eliminamos do nosso argumento. Pelo

    seu próprio caráter portanto é o discurso um processo frus

    trado; Carece de ulterior significado. Isto não invalida no

    entanto os significados parciais dos pensamentos e dos

    argumentos. O seu significado está no discurso e não no

    além dele. Somente aqueles que não seconformam com essa

    limitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem no

    antiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.

    A procura de significado é sinônimo de dúvida e a

    dúvida

    é

    portanto o declive do discurso.

     

    a força que pro

    pele o discurso. O significado parcial é a superação parcial

    da dúvida e o significado total inalcançável é a garantia de

    ser a dúvida inesgotável.   a garantia da continuidade do

    discurso. Ao discorrer propelido pela dúvida o discurso se

    ramifica e amplia. O número dos significados parciais

    alcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultado

    até aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente da

    dúvida em discurso.

    51

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    27/87

    11 -

      a frase

    O que é conceito? Temos a tentação de

    responder que conceito é aquilo que dá origem à palavra.

    Palavra seria símbolo de conceito. Mas seria significativa

    esta resposta? Não representa simplesmente a introdução de

    um termo novo, em tudo idêntico ao antigo, de um sinôni

    mo com efeito? Podemos argumentar que há conceitos sem

    palavras, e palavras sem conceitos. Que os dois termos não

    são idênticos portanto. Mas o argumento não pode ser

    mantido. Conceitos sem palavras é uma contradição de ter

    mos, porque um conceito sem palavra, um conceito inarti

    culado, não poderia participar do pensamento discursivo.

    Não seria portanto conceito. E palavra sem conceito é,

    igualmente, contradição de termos, porque toda palavra,

    por ser palavra, participa do discurso. O termo palavra

    sem conceito exprime apenas a desconfiança na função de

    uma determinada palavra, no conjunto do pensamento, e

    não, como aparentemente faz, a confiança em duas cama

    das ontológicas: palavra e conceito. Os termos palavra e

     conceito são sinônimos para todos os efeitos formais,

    embora possivelmente não o sejam para a psicologia. O

    ponto de vista deste argumento é despsicologizante, isto é,

     objetivo . Usará os dois termos como sinônimos portanto.

    E eliminará, pela regra da navalha de Occam, o termo con

    ceito . Redefinirá o pensamento como complexo de pala

    vras organizadas por regras. E redefinirá o intelecto como

    campo no qual ocorrem palavras organizadas por regras.

    Com esta reformulação deslocamos o argumento de

    terreno. Localizamos a consideração do pensamento no ter

    reno da língua. No terreno adequado. A preocupação com

    o pensamento é uma disclplina da língua. O pensamento

    passa a ser um fenômeno lingüístico chamado frase . As

    regras que ordenam as palavras na frase passam a ser gra

    mática

    sensu ato

    Intelecto como campo no qual ocorrem

    pensamentos passa a ser língua como campo no qual ocor

    rem frases.

    52

    Uma palavra de cautela: as ciências que investigam a

    língua estão empenhadas na análise das línguas faladas e

    escritas. A língua na concepção do presente argumento é o

     falar baixo . Línguas faladas e escritas são articulações

    secundárias da língua pura . As ciências da língua não dis

    tinguem rigorosamente entre língua pura e aplicada .

    Por exemplo: tratam ora de problemas de gramática aspec

    to de língua pura ), ora de problemas fonéticos aspecto de

    língua aplicada ). A distinção rigorosa urge. Investigações

    da língua aplicada pertencem ao campo das ciências da

    natureza ou da sociedade. Investigações da língua pura

    constituem o fundamento da ciência do espírito Geistes

    wissenschaft), no sentido Diltheyano, embora de uma ciên

    cia do espírito despsicologizada. O presente argumento se

    enquadra no segundo contexto.

    A frase consiste, grosso modo, de cinco partes:  1)

    sujeito, 2) objeto, 3) predicado, 4) atributo, e 5) advér

    bio. Atributo e advérbio são complementos. Serão descon

    siderados no presente argumento. Sujeito é o grupo de

    palavras no qual o processo da frase se inicia. Objeto é o

    grupo de palavras para o qual o processo da frase se dirige.

    Predicado é o grupo de palavras que une sujeito e objeto.

    Esta descrição é de uma frase padrão, sobre a qual todas as

    frases podem ser, em tese, reduzidas. Nessa frase padrão

    sujeito e objeto são os horizontes, entre os quais o predica

    dos se projeto. A frase é um processo do tipo chamado

     projeto . Tem a forma Gestalt ) do tiro ao alvo. Sujeito é

    o fuzil, objeto é o alvo, predicado é a bala.

    Esta forma da frase é a estrutura do nosso tipo de lín

    guas, portanto do nosso tipo de intelecto. Tudo que nos

    ocorre, ocorre nesta forma. A filosofia tradicional comete o

    erro de projetar essa forma sobre o mundo externo . Crê

    que a estrutura da língua do intelecto) espelha a estrutura de

    uma realidade externa. Mas existem línguas de estrutura

    inteiramente diversa. Se podemos dizer algo com referência

    53

  • 8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade

    28/87

    ao mundo externo , é isto: dada a diversidade de tipos de

    língua, a estrutura da língua não espelha a estrutura do

     mundo externo . A soit dis nt estrutura do mundo externo

    é chamada por Wittgenstein de Sachverhalt , isto é, relação

    entre coisas. Mas o próprio termo revelaque o Sachverhalt

    não passa da estrutura das nossas frases. Estrutura da frase e

     relação entre coisas são sinônimos, e o resto é tentativa

    metafísica e desesperada de romper as limitações do intelec

    to. De romper as grades da língua. O que não pode ser fala

    do, deve ser calado. A análise gramatical da frase é, de manei

    ra categórica, a análise ontológica da realidade.

    Sujeito, objeto e predicado são as formas de ser que

    perfazem a nossa realidade. Mais exatamente: as virtualida

    des que se realizam na frase. O sujeito se realiza ao emitir

    predicado. O objeto se realiza ao ser atingido pelo predica

    do. O predicado, ao relacionar sujeito com objeto, estabele

    ce um Sachverhalt , isto é, uma situação de realidade. O

    sujeito, considerado isoladamente, é a procura e a demanda

    da realidade. Subjaz sub-jectum ) ao projeto da realidade.

    O objeto, considerado isoladamente, é a oposição a esse

    projeto ob-jectum ).

    Mas sujeito e objeto, considerados isoladamente, não

    são seres realizados. Adquirem realidade efetiva Wirldich

    keit ) na situação da frase. O predicado, que estabelece a

    situação, comfere realidade ao sujeito e objeto. Sujeito e

    objeto transcendem a situação, na medida em que não são