quimica.literatura
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26 | CIÊNCIA | PÚBLICO, SÁB 1 NOV 2014
O amorvisto à luzda químicae da literatura
Chega hoje às livrarias um livro que faz uma viagem a exemplos da presença da química na literatura, como o Amor de Perdição ou Os Lusíadas, agrupados em temas como o amor e a paixão, o sono e o sonho, os venenos e crimes ou os novos mundos dados ao mundo pelos Descobrimentos portugueses. Foi escrito por um químico português, que é professor na Universidade de Coimbra e também gosta de divulgação científi ca, e este é o seu primeiro livro
Romeu e Julieta, escri-
to entre 1591 e 1595
pelo dramatur-
go inglês William
Shakespeare, é o
protótipo de uma
história de amor
trágica. Este li-
vro envolve, co-
mo muitos outros
do mesmo autor, venenos e po-
ções, assim como a “química” do
amor. Os venenos e poções em
Shakespeare foram já tratados por
vários autores e serão referidos
num outro capítulo. Neste, trata-
remos da química do amor.
Na obra mais famosa de Camilo
Castelo Branco, Amor de Perdição
(com o subtítulo Memórias de Uma
Família), escrita em 1862 em cer-
ca de 15 dias na Cadeia da Rela-
ção, no Porto, não há referências
directas à química, embora o ro-
mance seja considerado por vezes
(especialmente por quem não o leu)
como um paradigma da repetida
metáfora da “química do amor”.
Não é bem assim, quanto mais não
seja porque, paralelamente ao de-
senrolar do drama amoroso, o livro
tem uma componente de roman-
ce de aventuras ao mesmo tempo
negro e cómico, além de ser uma
crónica de costumes, mostrando
com crueza as arbitrariedades das
classes dominantes e as condições
de vida do povo na época em que
se situa.
Também o drama amoroso do li-
vro continua hoje em dia a ter, na
minha opinião, bastante interes-
se. Do ponto de vista da tomada
de consciência dos mecanismos
químicos do amor e da atracção,
as narrativas românticas vêm trazer
algo de novo: a atracção amorosa é
desenvolvida egocentricamente por
aqueles que estão envolvidos nela,
sem que esta seja provocada (apa-
pessoais e processos psicológicos
individuais.
Dos gregos antigos aos roman-
ces modernos, o amor, que é um
fenómeno eterno, não muda, em-
bora mude a interpretação do que
é a atracção amorosa. Actualmente,
acreditamos que a química do cé-
rebro e das hormonas substituiu o
controlo por divindades e as poções,
assim como outros factores exterio-
res. Continuamos, claro, a não ser
totalmente livres, mas somos nós e
as nossas circunstâncias que fazem
a “prisão” em que fi camos.
No Amor de Perdição, a fi xação
amorosa de Teresa Albuquerque
por Simão Botelho e deste por Te-
resa começou, obviamente, como
processo químico cerebral e hormo-
nal. A manutenção de uma atracção
amorosa duradoura entre as pesso-
as tem algumas semelhanças com
a fi xação instintiva das crias à mãe
nos animais e do amor entre pais
e fi lhos nos humanos. Para isso,
concorrem as hormonas ocitocina
e vasopressina. Mas, antes de che-
gar a essa fase, a atracção amorosa
tem de passar por várias fases tu-
multuosas. Na adolescência surge
o desejo por um parceiro amoroso
provocado, nos homens, pela hor-
mona testosterona, e, nas mulhe-
res, pelos estrogénios. Depois, na
presença de um parceiro desejável,
a atracção, ou paixão, desenvolve-
se com a ajuda dos neurotransmis-
sores [substâncias que funcionam
como mensageiros químicos entre
os neurónios] norepinefrina, feni-
letilamina, prolactiva e serotonina.
Simão e Teresa são apresentados
como muito desejáveis aos olhos
um do outro: ele forte, belo e cora-
joso, ela bonita, elegante e delica-
da, mas os dois também carentes.
Na ausência de vida social e con-
tactos com outros jovens, um pro-
blema que a família de Teresa ten-
ta resolver demasiado tarde, Teresa
apaixona-se facilmente por um rapaz
galante, bonito e saudável, pratica-
mente o único que vê como possível
rentemente) por acções exteriores:
poções, fi ltros ou manipulações de
divindades.
Na Odisseia, de Homero, Helena
e Páris foram manipulados pelos
deuses, sem que pudessem resis-
tir. Na história lendária do Tristão e
Isolda, o amor incondicional resulta
de uma poção. Mesmo no Romeu e
Julieta, que é por vezes comparado
ao Amor de Perdição, a situação é
ainda relativamente ambígua. Em-
bora o amor de Romeu e Julieta não
resulte das poções e fi ltros amoro-
sos que encontramos noutras pe-
ças de Shakespeare, nem pareçam
existir manipulações realizadas por
divindades, Cupido é referido vá-
rias vezes. E também nesta obra o
amor é comparado a um veneno
irresistível para o qual não há tra-
tamento.
Depois dos clássicos, em que as
personagens são manipuladas por
divindades e drogas, com os român-
ticos e os realistas o amor aparece
como resultado de circunstâncias
Pré-publicaçãoSérgio Rodrigues
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PÚBLICO, SÁB 1 NOV 2014 | CIÊNCIA | 27
objecto amoroso. É também plausí-
vel que, numa situação particular
como a do romance, em que existe
um grande desamparo e solidão de
Teresa e Simão, por razões diversas
(Teresa tem pais distantes e Simão
acha que os pais não gostam dele),
essa paixão evolua para um amor
duradouro que resista a ser contra-
riado e leve as pessoas envolvidas a
renunciar a tudo o resto. Também
a fi xação de Mariana se foi desen-
volvendo, primeiro com a gratidão
devida ao salvamento do pai, depois
com a galhardia de Simão Botelho
a bater nos criados perto da fonte
e, fi nalmente, com a proximidade
do jovem herói. Do ponto de vista
da química amorosa, não deixa de
ser relevante a hesitação de Simão
quanto à atitude a tomar em relação
ao amor de Mariana.
Os mecanismos hormonais e a
química do cérebro, que condi-
cionam em boa parte as nossas
sensações, sentimentos e atitudes
perante as circunstâncias, têm mui-
e a serotonina controlam em parte
a excitação e o prazer, com o apoio
do monóxido de nitrogénio. A sero-
tonina, associada à depressão e aos
mecanismos do vício, está também
envolvida no mecanismo de fi xa-
ção no ente amado, apresentando
níveis tão baixos nos apaixonados
que os aproxima dos doentes e vi-
ciados. Com o tempo, a exaltação
vai dando lugar à estabilidade, a
terceira fase do amor, na qual a oci-
tocina tem um papel importante.
Esta hormona, que induz o traba-
lho de parto nas grávidas, é tam-
bém libertada durante o orgasmo.
A vasopressina, uma hormona que
participa no controlo da retenção
de água e formação das memórias,
parece estar ligada à fi delidade.
De uma forma mais sucinta, na
paixão, a norepinefrina e a fenile-
tilamina exaltam-nos, a serotonina
prende-nos e a dopamina diz-nos
que devemos fi car felizes com isso.
Finalmente, a festa acalma com a
ocitocina e a vasopressina, mas na-
da disto tira poesia ao amor, nem
rouba a alma e a liberdade aos se-
res humanos. Embora a química
contribua para o funcionamento
do amor, não o pode explicar com-
pletamente. O conhecimento das
causas químicas e dos mecanis-
mos bioquímicos não é sufi ciente
para determinar as vontades, nem
controlar o acaso.
Uma outra história de amor
bastante explorada de um modo
científi co é a de Tristão e Isolda.
A composição do fi ltro do amor
foi, por alguns autores, associada
a solanáceas causadoras de efei-
tos anticolinérgicos que coinci-
dem com os sintomas do transe
amoroso apresentado na ópera
homónima de Wagner e descrito
nos vários livros que nos contam
esta história de amor. No entan-
to, outros autores contestam esta
interpretação. É assim a ciência,
feita de contradições e discussões
que contribuem para aumentar a
precisão dos resultados.
ALI JAREKJI/REUTERS
tas falhas que reinterpretamos para
dar sentido às nossas vidas. As tra-
gédias são simultaneamente tão co-
muns quanto raras. Os bons livros
apresentam-nos situações que não
têm de ser vulgares, mas que nos
interrogam e ajudam a encontrar
sentido para a existência.
De uma forma pormenorizada,
o amor romântico segue essencial-
mente três fases. A primeira fase,
denominada fase do desejo, é de-
sencadeada pelas hormonas testos-
terona, nos homens, e estrogénios,
nas mulheres. A circulação destas
hormonas no sangue, que se inicia
na adolescência, conduz ao início
do interesse por parceiros sexuais
ou amorosos. Na fase da atracção,
ou da paixão, ocorrem processos
de exaltação amorosa e fi xação no
objecto de desejo. Os neurotrans-
missores norepinefrina e fenileti-
lamina (molécula que existe natu-
ralmente no chocolate) estão rela-
cionados com a exaltação amorosa,
enquanto a dopamina, a prolactina
Jardins de Cristais: Química e LiteraturaAutor: Sérgio RodriguesEditora Gradiva276 páginas; 13,05 €