Qual metafísica para a psicanálise? · 2018-08-18 · ... , durante uma conferência sobre o...

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1 Qual metafísica para a psicanálise? O que vai ter este ano de mais aborrecedor é submeter um certo número de ditos da tradição filosófica a esta prova. Vejam vocês! 1 LACAN, Mais, ainda. Há um par de anos, durante uma conferência sobre o gozo, na USP, eu batia com insistência em duas teclas: "precisamos cuidar do cercado do nosso próprio campo, antes de mexer no campo dos outros", e "Lacan não fazia metafísica mas psicanálise, mesmo e sobretudo quando discutia com os filósofos". Fiquei com a impressão de que minha insistência foi comprendida como uma declarada desistência a aventurar-nos além das quatro paredes dos consultórios (o que era visto, com razão, como empobrecedor) e como uma advertência para manter nossas mãos longe das questões grandiosas como "o ser", "o sentido da vida", "a felicidade" ou "a morte". Eu sugeria, por exemplo, que a interdição de pensar "a origem da linguagem" me parecia um claro posicionamento epistemológico de Lacan, completado pelo cuidado de não tomar jamais os conceitos da psicanálise num sentido ontológico. Depois da palestra, Christian Dunker, meu amigo e anfitrião na ocasião, observou que não bastava recusar simplesmente a metafísica; que eu devia dizer qual era a metafísica da psicanálise, caso contrário meus ouvintes impor-me-iam a própria. Esta aula é uma resposta àquele desafio 2 . 1 Lacan (Mais, ainda] 2 Aula Magna dada na Universidade de Londrina em 4/3/2016

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    Qualmetafsicaparaapsicanlise?

    Oquevaiteresteanodemaisaborrecedorsubmeterumcertonmerodeditosdatradiofilosficaaestaprova.Vejamvocs!1

    LACAN,Mais,ainda.

    Humpardeanos,duranteumaconfernciasobreogozo,naUSP,eu

    batiacominsistnciaemduasteclas:"precisamoscuidardocercadodonosso

    prprio campo, antes de mexer no campo dos outros", e "Lacan no fazia

    metafsica mas psicanlise, mesmo e sobretudo quando discutia com os

    filsofos".Fiqueicomaimpressodequeminhainsistnciafoicomprendida

    como uma declarada desistncia a aventurar-nos alm das quatro paredes

    dos consultrios (o que era visto, com razo, como empobrecedor) e como

    uma advertncia para manter nossas mos longe das questes grandiosas

    como"oser","osentidodavida","afelicidade"ou"amorte".Eusugeria,por

    exemplo,queainterdiodepensar"aorigemdalinguagem"mepareciaum

    claroposicionamentoepistemolgicodeLacan, completadopelo cuidadode

    notomarjamaisosconceitosdapsicanlisenumsentidoontolgico.Depois

    dapalestra,ChristianDunker,meuamigoeanfitrionaocasio,observouque

    nobastavarecusarsimplesmenteametafsica;queeudeviadizerqualeraa

    metafsica da psicanlise, caso contrrio meus ouvintes impor-me-iam a

    prpria.Estaaulaumarespostaqueledesafio2.

    1Lacan(Mais,ainda]

    2AulaMagnadadanaUniversidadedeLondrinaem4/3/2016

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    OPROBLEMA DOCAMPO

    Campo , de modo literal ou figurado, uma zona limitada de algum

    modoequedefineumdentroeum fora.Vocsesto familiarizadoscomos

    camposdefuteboledeplantaodecana,mashcamposfilosficos,lgicos,

    matemticos e fsicos. A primeira providncia que uma disciplina, em

    qualquerreadoconhecimento,precisatomarparaseconstituirdelimitaro

    prpriocampo.Fazerissoequivaleapoderresponderdomodomaispreciso

    queforpossvelperguntasdotipo"dequeseocupa?";"qualasuareade

    atuao?"e"aquem(ouaque)seaplica?"AdisciplinainventadaporFreud3

    nonempodeserumaexceo.Entretanto,muitospraticantesagemcomo

    sefossemcnsulesdoimprioRomanonosculoum:oumbigodomundo.O

    ditado"todososcaminhoslevamaRoma"queriadizerisso:nadaestavafora

    doimprio,poiseleabarcaomundotodo.Eporessaatitudeimperialqueos

    psicanalistasno conseguemmais debater comningum, e cada vezmenos

    gente(n)oslevaasrio.

    Vamoscomeardefinindoumcampopsicanaltico.

    Oquesedenominaintensocomesse,desapo-deumconceitoasua

    definio. A intenso de "brasileiro" seria: "homem ou mulher nascido no

    Brasilouquepossuiacidadaniabrasileira".Onmerodepessoassquaiso

    predicado"brasileiro"seaplicaseriaaextensodoconceito.Elenoseaplica

    a mim, por exemplo, mas sim ao meu filho. Em lgica clssica (quem diz

    "clssico",diz "aristotlico") a "intenso"ou "compreenso" inversamente

    proporcional "extenso". O gnero, digamos, "animal", uma classe com

    maior extenso e menor compreenso que a classe "homem", que uma

    espcieincludanaquelegnero.Ouseja,hmaisanimaisdoquehomensem

    3Snoachamo"cincia"porserumpontopolmico,masvalelembrarqueFreud

    queriamuitoqueasuafosseumacinciaentreascinciaspositivas,bemseparadadamagiaedareligio.

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    quantidade e ao especificar "homens" estamos fornecendomais informao

    do que ao simplesmente dizer "animal". Para comear a delimitar o nosso

    campo, proponho considerarmos com muito cuidado a diferena entre a

    intenso da psicanlise, o conjunto de conceitos denominados por Freud

    "metapsicologia"ouosistemaconceitualcovariantedeLacan4,enfim,oque

    seconhececomo"doutrina"5.Eaextensodapsicanlise,todososelementos

    quecaemoupodemcairdentrodestareaconceitual.Ou,melhor,osobjetos

    queestesistemadeconceitospodeapreender.

    O que chamo de psicanlise pura assim como se diz "matemtica

    pura"otrabalhoconceitual.Ateoria(thesisdiriamosgregos,comooposta

    aphusys,anatureza).Seriaa"psicanliseemintenso".QuandoLacandiscute

    os universais de Aristteles, ou quando afirma que o mtodo freudiano

    consequncia das "meditaesmetafsicas" de Descartes, ou, ainda, quando

    demonstra que o significante um corte e o sujeito uma superfcie, est

    fazendo psicanlise pura, compreensiva. Est fazendo teoria, no est

    aplicandoadoutrinaparainterpretaralgica,afilosofiaouatopologia,que

    tem campos especficos; est ocupando-se de problemas prprios destas

    disciplinasosparadoxoslgicos,porexemplomasquepoderiamconcernir

    psicanlise.

    J psicanlise aplicada s tem uma: o tratamento dos pacientes

    medianteomtododalivreassociao.onicolugaremqueapsicanlise

    purasentaasbasesdoquesedenominaumaexperincia.Note-seque,stricto

    sensu, spodemos falar empraxisdepleno sentidonoplanodapsicanlise

    aplicada. Ali no se trata de demonstrar se verdadeira ou falsa6, mas de

    constatarseusefeitos,quandohouve,ouentendera faltadeles,quandono

    4Co-variantes:mudarumconceitoimplicaemmudartodos.5Doutrina:conjuntodeprincpiosdeumsistema.6Critrio usado por Popper para negar psicanlise o status de cincia: a sua

    experincianopodeserfalseada.

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    houve.Note-sequeestemtodo,quecomeacomainstauraodaregrano

    por nada chamada "fundamental", a realizao prtica de uma teoria da

    linguagem que faz parte do arcabouo doutrinal da teoria psicanaltica. A

    clnica, portanto, resulta da psicanlise pura, no o contrrio. Com efeito,

    dependendo do conceito que eu tiver de inconsciente, vou tratar meus

    pacientesdeummodooudeoutro.Edomododetrat-losdependerotipo

    deinconscientequefaoexistir.

    Ditodeoutromodo,noexisteuminconscientejdado,dentrodecada

    um, que ser analisado por um psicanalista, como um qumico analisa a

    composiodeumfludo,quejeraassimantesdechegaraolaboratrio.O

    analisante e seu analista faro existir entre eles um determinado tipo de

    inconsciente, de sintoma, de fantasia, de pulso... que no preexiste o seu

    trabalhoconjunto.Umpacientemedisseumavez:"desdequemeanalisocom

    voc sonho sonhos curtos". Para seu analista anterior sonhava romances,

    paramim,pequenos contos.Talvez,quando formelhoranalista, elepassea

    sonhar-mehaikus.Asnossasconcepestericasdeterminamaofertadoque

    iremosescutar,eestaofertadecideoquenosoferecidoparaanalisar.

    Mas isto no teoria vazia, porque a aplicao da teoria produz

    consequncias verificveis sobre as vidas das pessoas que se analisaram

    conoscodestemodo.Comodisse,umaanlisenoverdadeiraou falsa,ela

    funciona ou no funciona para algum; muda ou no muda os impasses

    sintomticosdospacientes.Masoquefazpossvelaexperinciaquetertais

    consequnciasateoriaqueaorienta.Oconceitodepraxisfoiinventadopor

    Lukacsparamostrarqueeranaprticapolticaquea teoriamarxistapodia

    ser verificada. Creio que se existe umadisciplina onde o conceito depraxis

    tem pleno sentido na psicanlise clnica, ou seja, aplicada a pessoas que

    estovemnosverparafalardelasconosco.PoderiamosemprestardeKanta

    denominaoereferir-nosaelacomo"psicanlisepuraprtica".

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    Aindasobre"psicanliseemextenso".

    ExtenderocampopsicanalticoeraparaLacanumaestratgiapoltica;

    alargar a rea de influncia da psicanlise. Faz-la ir alm dos limites dos

    consultrios particulares para distintos espaos da sociedade; dissemin-la

    pela cultura. Ele incentivava a ocupao universitria, hospitalar, cultural;

    havia que avanar sobre as famlias, as crianas, os psicticos, os

    psicossomticos... Hoje a histeria, amanh omundo!Quando incentivava os

    analistasanoretrocederemfrentepsicose(comoFreud,queaconsiderava

    forado alcancedomtodo, desenvolvidopara asneurosesde transferncia

    somente), estava ampliando a extenso da psicanlise. Esta operao foi

    confundida com o que se denominava, desde Freud, "psicanlise aplicada",

    como,porexemplo,quandofalamoscomumcineastasobreseufilme7.Lacan

    teve que especificar que no, que a nica aplicao da psicanlise era aos

    pacientes.

    Eu uso este sintagma para dizer outra coisa. Chamo psicanlise em

    extenso tarefa de garimpar nos campos dos outros os conceitos que

    poderiam servir-nos no nosso. Freud fez isso inmeras vezes. Foi buscar na

    fsicadeHelmholtz,porexemplo,oconceitodeenergialivreeligadaeousou

    paraexplicarofuncionamentodaspulses.Foiprocurarnastragdiasgregas

    evoltoucomocomplexonucleardasneuroses,paraconceitualizaraetiologia

    destasltimas.Lacannuncadeixoude fazer isso,eoque faremoshojeao

    falardefilosofia.

    Achei por bem comear apresentando nosso campo porque Lacan

    sempreteveocuidadodesesituardentrodele;dereferiroseudiscursoao

    7QuandoFreudmostrou seu ensaio sobreGradiva! a Jensen, seu autor. Estedisse

    que provavelmente tudo que Freud encontrou estava ali porque ele tinha feito algumasmatriasdocursodemedicina...

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    campopsicanaltico.Equandodigo"sempre",digoemtodasasaulasdetodos

    os seminrios, durante os 30 anos do seu ensino, assim como em todos os

    textos tericos escritos ao longo desses mesmos anos. Ou seja,

    incompreensvel, a no ser supondo ali uma rejeio, o pouco caso dos

    leitores e ouvintes de Lacan frente a esta insistncia. Outra advertncia

    constante aos analistas que tudo foi retirado da experincia psicanaltica

    (mas aqui, embora tambm se refira clnica, trata-se principalmente de

    experimentos mentais, no sentido de Galileu, Newton e Einstein). Em todo

    caso,norestadvidadequetudoqueelefaladoutrinaquesedestina.A

    maioria dos leitores ignora estas coordenadas epistemolgicas, tratando-as

    comosefossemgirosoufigurasretricas,foradeexpressodoexpositor.O

    problema que ao desconsiderarmos o traado do campo desde o qual

    deveriamostomarapalavra,fazemosdapsicanlisealgoquenodeveriaser:

    uma ideologia.muitocmodocitarFreuddizendoqueasuacinciano

    umaWeltanschauungvisodomundo,paradepoistrat-lacomosefosse.

    Em1974,aoapresentar,emVincennes,oprimeiro"Departamentode

    psicanlise"emumauniversidadenomundo,Lacanespecificaascinciasque

    seriamnecessrias,aseuver,parafundarocampopsicanalticoeexprimea

    sua esperana de que a psicanlise possa vir umdia a contribuir algo para

    ditas cincias8. Quais so elas? A lingstica, a lgica, a topologia e... a

    antifilosofia.

    AantifilosofiaqueLacan tememmente9a incorporaoda filosofia

    dentro do campo psicanaltico: psicanlise em extenso, portanto. Mas os

    resultados da reflexo antifilosfica devem servir teoria psicanaltica a

    psicanlise em intenso. Em 18 de maio de 1980, a menos de um ano de

    8TalvezemVincennes9Houtras.AntifilosofianoumainvenodeLacan,masumapostura filosfica

    queincluinomescomoRousseau,KierkegaardeNietzsche.

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    morrer, o velho mestre, que no parava de polemizar com os filsofos,

    desabafa: "Eume insurjo contra a filosofia!" A que se deve tal insurgncia?

    Aondeseoriginaodioenamorado(hainamoration),queolevaaatormentar

    sem cessar os filsofos, ao mesmo tempo que anuncia que a pesquisa

    psicanalticanovaiavanarsenointerrogarafilosofia,paraconstituirseu

    prprio campo como antifilosofia? Na minha opinio, este incessante

    tormento filosfico caminhademosdadas comodilogo coma cincia. A

    psicanlise seria impossvel de fundamentar se no se mede em relao

    cinciaformalizada,emerefirosjcitadaslgicaetopologiamatemticas,

    no s ditas "cincias do homem", como seria de se esperar. Falo de seu

    projetodeensinarapsicanlisepelo"matema",pelafrmula,nopelorelato

    oupelaintuio.

    Podemoscomearporali,pelascoisasqueLacandizdosfilsofosaos

    psicanalistas. Diz que o amor est no corao da filosofia, o que bvio

    porqueissoquesignificaapalavrafilo,mas,oquenotobvioporque

    acrescentaqueissorepresentaumproblemaaserpensado.Dizqueofilsofo

    um tapado (bouch, rolhado, com a rolha tampando o buraco da garrafa)

    para a matemtica. E conclui que a metafsica tampa, obtura (mesma

    palavra: bouche, rolha), o buraco da poltica10. Deixo para outro momento

    comentarcomoametafsicaobstaculizaapoltica,masdesdejadiantoque

    serefereaodesaparecimentodosignificantesobosignificado.Veremosento

    duasdastrsdeterminaesdaposiofilosficavistaspelapsicanlise,mas

    antes:

    OQUEENTENDERPOR"METAFSICA"?

    Em primeiro lugar, se refere posio dos livros escritos por

    Aristteles nas prateleiras da biblioteca. Nem mais, nem menos. Aqueles

    107/8/73

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    arrumadosnaestanteantes(meta)dosensaiosdeFsicaseriamosdemeta-

    fsica (onomeda coleo foi dadoporAndrnicodeRodas, no sculo IAC,

    nodofilsofo).JocontedodostratadosdeMetafsicaoqueAristteles

    mesmodenominava"filosofiaprimeira"(protphilosofia),oqueestportrs

    (tamet)dascoisasnaturais,oqueseriaprimordialefundamental.Guardem

    isto:oquecaracterizafilosofia,atodafilosofia,aprocuraporumprincpio;

    o princpioqueexplique, sepossvel, tudo.AFilosofiaPrimeira,ouFilosofia

    dosPrincpiostratadosprincpiosqueseaplicamatodasubstncia,ouseja,a

    todo que . Viria, portanto, antes da fsica, como seu fundamento. Ns,

    curiosamente, quando falamos em "metafsica" pensamosno almenono

    aqum da fsica. A definio aristotlica desta filosofia das essncias :

    "cinciaqueestudaoserenquantoser(tooneon)eaquiloquelheprprio."

    Vale observar que existe uma sria controvrsiamedieval sobre se a

    metafsica se refereaoestudodosalicercesdoser (mais tarde, "ontologia")

    ou ao estudo do primeiro-motor-imvel de todas as coisas (mais tarde,

    "teologia",jquedeDeusquesetrata).Encurtandodemaisummuitolongo

    e sinuoso caminho, havera que mencionar a Kant, que tentou pensar a

    metafsicaaristotlicacomointuitodefazerdelaumacincia(amissodas

    trs crticas), e a Heidegger, que elaborou a nica metafsica realmente

    modernaqueh e que, diferentedeKant, tenta resolver os impassesdade

    Aristteles.Emtodocaso,cabelembraraobservaodeBarbaraCassinsobre

    Lacanseronicopensadornoaristotlicodequeelatenhaconhecimento.E

    issodizermuito,porquesignificaquetodos,incluindo-seelamesma,somos

    aristotlicos,saibamosouno.

    Setomarmosaopda letraaexpresso"meta-fsica",a teoradoque

    estaoladoouaqumdofsico,estamosdizendoqueaphusysanatureza,o

    que material no esgota o pensvel. Nem sequer o "cientificamente

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    pensvel"11.Amecnicaqunticarompede talmodocomnossa intuiodo

    que seja a realidade, que os cientistas mesmos se deram conta que no

    conseguiam acreditar nos resultados dos clculos matemticos, sem antes

    abandonartodatentativadefazerencaixaraquelesresultadosnaconcepo

    que tinham do mundo at ento. Einstein e falo no s do homem que

    mudou toda a concepo do que era o universo e as leis da fsica clssica,

    como tambmdo inventordamecnicaqunticaemquesto,Einsteinno

    conseguiu. Seus preconceitos naturalistas e essencialistas o impediram de

    aceitar as consequncias da sua prpria descoberta (inveno?). Morreu

    acreditando que a mecnica quntica era uma teoria falha e devia estar

    errada.Seu famoso"Deusno jogadados"exprimemuitobemasuarecusa

    (verwefung).

    Acontece que a viso do mundo de Newton era bela, consistente e

    tranqilizadora. Os fenmenos naturais estavamdescritos por umpunhado

    de equaesmatemticas que sintetizavam tudoque se sabia a respeito do

    movimento,assimnaterracomonocu,edestemodoelecompsapartitura

    damsicadasesferas,asinfoniadoqueficariaconhecidocomofsicaclssica.

    A forma matemtica da descrio da realidade alinhava-se to

    harmoniosamente com a experincia e fornecia uma ncora to perfeita a

    nossaintuioquespodiaserverdadeira.Seempurrarmosumcarrinhoele

    ganhar acelerao. Se arremessarmos uma pedra com fora seu impacto

    quebraravidraa.Sevocapertarobraodacadeirasentircomoelareage

    comumaforacontrriapressoquevocexercesobreela.Aoereao.

    TudoissoestexplicadodemodocientficonolivroPrincipiaMathematica.11BertrandRussell"Sevocslemostrabalhosdosfsicosveroqueelesreduzema

    matriaacertoselementos-tomos,iones,corpsculos,coisasdotipo.Mas,sejacomofor,oquevocsprocuramnumaanlise fsicadamatria alcanarospedacinhosmnimosdematriaque ainda so comomatriano sentidodequepersistematravsdo tempo, e sedeslocam atravs do espao [...] Coisas desse tipo, eu digo, no so os constituintesderradeirosdamatriaemnenhumsentidometafsicodotermo.Aquelascoisasso...ficeslgicas.

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    Afsicaclssicadeclarasemhesitaes,queopassadoeofuturoesto

    gravados no presente. A relatividade especial e geral compartilham desta

    ideia.Setivermostodososdadosnomomentoatualsaberemoscomexatido

    como as coisas estavam ordenadas na origem, e como estaro no fim dos

    tempos.Seaindanopodemosfazerissodeve-seaquenosfaltamdados,eos

    aparelhos paramedir ainda no foram fabricados.Deus, porm, que possui

    todaainfo,certamenteconheceopresente,opassadoeofuturodetodasas

    partculasdouniverso.AnovidadedeLacanteriasidoligarapergunta"Deus

    sabe?"aoamordivino,novidadedocristianismo.

    Antesdisso,porm,cabeobservarqueamecnicaqunticademonstra

    (entenda-se: matematicamente) que mesmo determinando com a maior

    precisopossveloestadoemqueas coisas seencontramnodiadehoje,o

    mximoquesepodeesperarumaprevisodasprobabilidadesdoestadoem

    que elas estariam em algum momento do passado ou do futuro. Para a

    mecnica quntica, o estado do universo no est escrito no presente.

    Segundoas leisqunticas, ouniverso funciona comoum jogodeazar.Deus

    jogadados,poisno!

    Diziaqueoquepodeserpensadocientificamentedanaturezaoque

    denominamos"fsica",deummodogenrico.Masafsicaclssicanoesgota

    oquepodeserpensado.Ouseja,"hmaiscoisasnocuenaterra,Horcio,

    que o que sonha a tua v filosofia."12E o que est fora da fsica,mas pode

    pensar-se,podeserchamadodemetafsica.AprimeiraobjeoqueLacanfaz

    definioaristotlicadametafsicaquenopodetratar-seda"cinciado

    ser enquanto que ". Ao contrrio, isso mesmo que deveria excluir-se.

    PrimeirogestoantifilosficodoLacan.Mas,vejamoseguinte:deveriaexcluir-

    se caso levarmos em conta as descobertas, os meios, o mtodo e a teoria

    psicanalticos.No se trata de propor outra filosofiamais verdadeira,mais

    12Shakespeare,Hamlet.CenanasalmenasdocastelodeElsinore

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    acorde aos avanos da cincia,mas de servir-nos da crtica filosofia para

    situaroalcanceeapotnciadocampoanaltico13.Estetrabalhocrticoseriaa

    antifilosofia.

    Eisoselementosgeraisparaumametafsicalacaniana:

    1)Seriaaristotlica,naconvicodequeafsicanoesgotatudooque

    podeserpensado.Oquenopodepensar-se,no,simplesmente.Quandose

    fala de algo impensvel14estamos usando uma figura retrica destinada a

    exprimir algo que foge representao, aos significados que sustentam a

    representaoquetenhodemimmesmo.Oquepensveleoquesouma

    eamesmacoisa.Afsica,portanto,noesgotatudoque.

    2) Seria antiaristotlica na recusa a defini-la como "cincia do ser

    enquantotal",ou,ainda,comocinciadasubstncia(nosentidodaquiloque

    subsiste no tempo e no espao). A metafsica lacaniana trabalharia com a

    ideia de que no h outro ser que no os significados produzidos pelos

    significantes, e este ser no tem nenhuma consistncia fora do mundo da

    palavraedafala.Oserseriaimaginrioeproduzidopelosimblico.

    *Vemosperfilar-seaquiumapolticadetransmisso(deensino)paraa

    psicanlise.Elaprecisariairnadireodeumesvaziamentodoser.Tantona

    13Cabeobservarquecommuitafrequncia,Lacanserefereaocampopsicanaltico

    como "discurso analtico". E este no deveria confundir-se com o matema denominado"discursodoanalista".

    14Porexemplo,otamanhodaspartculassubatmicastoabsurdamentepequenoqueresultadifcil imaginarquesejamreais.Edecertomodonoso.Elas temexistnciamatemtica,masmesmoquenosejapossvelv-las,nemagoranemnunca(vistoquesomenores que um fton, e precisamos de luz para ver), os clculos e as leis que as regempermitem experimentos cujos resultados confirmam aquelas leis. Alis, sem isso noteriamosiphones...

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    teoriacomonaclnica.Eapropsitodistoltimo: "nohumpacienteque

    nosejaumalunodeAristteles"15,soltaLacan.E,commed'habitude,atirada

    permaneceinexplicada.Cabe-nosatarefaelucidativa.Proponhoisto:trata-se

    dacrenanasessncias16.

    Explico-me:aticaasregrasdoagircertosemprerelativaaumfim,

    paraAristteles.Talfinalidadeseria,aomesmotempo,aconclusodaaoe

    a sua razo de ser. O filsofo se refere a ela como o bem do agente. Se

    chamamos "feliz" a um gesto perfeito, acabado, podemos entender que a

    plena realizao de algo, o desenvolvimento completo da razo de ser de

    algumacoisa,sejaditaasuafelicidade17.Aristtelesdiz,comtodasasletras,

    queafelicidadeobemsoberanodetudoqueh,eolugarparaondetodas

    as coisas tendem. Portanto, em busca da felicidade que se justifica e se

    caracteriza a boa ao humana. E todos os outros bens que possamos

    conceber soacessrios;meiosapenasparaatingirobemsupremoquea

    felicidade. Esta ltima, causa de tudo seria um bem em si. E este bem

    soberanonadamais do que a realizaodaminhaessncia. O que realiza

    meu ser. Isto vale para todos os seres, animados ou no. O marceneiro

    encontrarnamarcenariaarealizaodasuaessnciademarceneiroecom

    15Lacan.Unrved'Aristote16Seguramentenonosentidosartreano(talveznohusserliano),masLacaneraum

    existencialista,seportalentendemosadefesadasupremaziadaexistnciasobreaessncia.Nadcadadesessenta,umaafirmaodessasteriasidotomadacomoumelogio;hojeserescutadacomoumdemrito.Mas,deixandodeladoo"ismo"provocativo,nohsombradedvidaqueogestoantimetafsicodeLacansesustentanestainverso.Apenasprecisamosexplicitarmuitobemoqueeleentendiaporexistncia,porquetrataoconceitodeummododiversoa comoera tratadopela filosofia clssica, e comestaabordagemsedistancia semremdio tanto de Aristteles como de Sartre. Veremos mais adiante que define a ex-sistnciatopologicamente,ouseja,apartirdosignificante.

    17Leia-sesobreistoThefragilityofgoodness,deNusbaum.Lacan"traduz"felicidadepor jouissance, gozo, o que levanta inmeras questes que no posso retomar aqui. Issomereceriaumestudotantoetimolgicoquanto filosficodeambasnoes.Mas,enquantoissono for feito, cabeobservarque, tantoemportugus, francs comoemgrego, gozoefelicidadeesto longederecobrir-sesemanticamente.Abordoalgodisto,noqueconcerneestritamente ao campo analtico, no meu comentrio de um pargrafo do seminrio XIIdedicadopulso(cf.infra).

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    ela a sua felicidade. Caso fosse obrigado a dedicar-se a outra tarefa, a sua

    naturezaseriacontrariadaeaquiloseriaumainfelicidade.Masapedraque

    jogada para o alto no sofre melhor sorte: a sua natureza est sendo

    contrariadaeporissoqueteimaemcair,insistindoemdirigir-seaocentro

    da terra, aonde a empurra a suanaturezaptrea. ali que se encontra seu

    bemeondeserealizarasuaessnciadepedra,epralquevai.Umavezl

    no mais haver de mover-se, pois finalmente se encontra em casa. J a

    fumaa, cuja felicidade a aguarda nos cus, v-se levada a subir, como os

    pssaros.

    Ora,olugardobemabsolutoedetodabemaventuranafoicolonizado

    na idade mdia pelo Deus cristo, mas na Grcia clssica ainda estava

    ocupado pelo "primeiro-motor-imvel". Causa de todomovimento, de toda

    transformao,detodamudana.Nadafixosobosol.Tudosemexe,nasce,

    cresceemorre; a gua se congela e se evapora;o rio corre.Emalgmstio

    deveoriginar-setaletamanhaagitao,eestaorigemhdeserlogicamente

    fixa.Lacanbotaali "[...]esteOutro [...], estesersupremo,mticodeummodo

    manifesto em Aristteles, esta esfera imvel de onde procedem todos os

    movimentos,sejamquaisforem,mudanas,geraes,translaes,aumentos,

    diminuies,etc."18Paraofilsofo,apedra"sabe",conheceseubem.Porisso

    cai.Sabernorefletido,claro,sabersemconscincia,massabermesmoassim.

    Saberdeaondedeverdirigir-se;doprpriolugarnavidaenomundo;doseu

    bem,dasuaessnciaedesuarazodeser.

    E nossos pacientes alunos de Aristteles? De um lado, esperam um

    diagnstico, que faa deles o caso particular de um universal. Voc um

    neurtico obsessivo, por exemplo. E de outro, acreditam possuir uma

    essncia desconhecida e nica, um ser verdadeiro, que lhes deveria ser

    revelado.Sesoubessemqual,saberiamqualseubem,epoderiamorientar-

    18Encore

  • 14

    separaafelicidadenavida.oprojetodaticaaNicmaco.Dizemquesev

    aoanalistaporimaginarqueelesabe,oupoderiasaberqualnossobem.E

    nomudanadaacreditar,quandosomos lacanianos,queo terapeuta ignora

    tudo sobre ns,mas podemostrar-nos o caminho das pedras para o nosso

    bem, do qual somos os portadores inconscientes. Em que se converte esta

    teleologiacomomodelodacinciamatematizada?Koyrdizquedesparecem

    avirtude,aperfeio,aharmonia,osentidoeofimdouniverso.Apedracai

    pelaleideatraodoscorposenosabepatavina.Ens?Nsdependemosda

    leiedalgicadossignificantesquedecidenossosdestinosporqueoscriacom

    a nossa ajuda, como demonstra suficientemente dipo realizando a cada

    passooprogramadoorculodeDelfos.

    *

    Emnossocampo,nohoutroserqueodossignificadosproduzidos

    pelos significantes. Estvamos nesse ponto, antes do excursus. A tica do

    psicanalista(enquantotal,comodiriamos franceses)consisteemlevaresta

    ideiaasrioeeliminartodaconsistnciaaoscontedosdasfalas,suspendero

    referente em benefcio de pensar o sentido como efeito do puro jogo dos

    significantes. Porque os significantes podem no ter corpo, mas so

    perfeitamente materiais19. Esta operao de esvaziar o ser imaginrio e

    reduzir o discurso sua materialidade significante a essencia de nossa

    clnica.Ateoriadaprticaseriaomapeamentodosmodoscomosoafetados

    nossos analisantes pela experincia criada pelo discurso analtico. Desde

    sempre foi constatado um efeito despersonalizante desta experincia.

    19Cf.Osincorporaisdosesticos.

  • 15

    Melanie Klein, Ferenczi, Balint e Searles, entre outros, trabalharam, com

    outrosconceitossobreesteefeito,queLacandenominadestre"des-ser"20.

    O des-ser seria o resultado de levar at as ltimas consequncias o

    pressuposto tericoque sustenta a "regra fundamental"daassociaolivre:

    aosefeitosdeumaanlise tudo estnodiscurso;nada foradele.Noexiste

    corpoforadodiscurso;nempai,nemme,nemnamoradoforadodiscurso;

    no existe nem paciente, nem analista fora do discurso. Bem visto, voc

    mesmo no est fora do discurso21. E esta afirmao, dizia eu, no seria

    metafsica mas psicanaltica. Hoje quero elaborar melhor esta noo de

    metafsica,paraacolherumaideiadeAlainBadiou,quemepareceprocedente

    epoderrespondermelhorquelaobjeoquemeforafeitaedaqualfaleino

    comeo.

    AMETAFSICAMODERNA

    Anicametafsica,depoisdeAristteles,nodiriaquerompemasque

    deixa de seguir as suas premissas a de Heidegger22. Figura decisiva da

    filosofia da modernidade a quem Lacan, como o resto da intelligentzia

    20Conceitoa serpensadona teoriaenaclnica, juntocomanoode "destituio

    subjetiva".21Veremos, quando falarmos de Descartes, que Lacan retm dele o mtodo, a

    "dvida hiperblica", mas no as concluses ontolgicas da aplicao deste mtodo. Omtodofreudiano idnticoaocartesianotomadopeloavesso.Por isso,o lugardacertezaest deslocado, do "eu penso" para "(isso)pensa" (no discurso, claro). Uma observao,contudo:istonosignificaqueaclnicasignificalimitarmo-nosfala.Oqueistoquerdizerque tudooquecontece,desdeoapertodemo,passandopelobeijoquevocd (ounod), at o gesto do pagamento ou o livro que vocmostra ou a bala que voc oferece oupede, tudo issoso fatosdediscurso.Tudo,dentrodocampoanaltico,deveser jogadonacontadodiscurso.Tudo.Asala,amoblia,aroupa,asecretria,omalhlito,otrnsitodeSo Paulo... so fatos de discurso e no tem outra natureza, no que diz respeito ao atoanaltico.

    22Kant,porexemplo,tentaporametafsica,adeAristteles,embasescientficas(ouseja, newtonianas), mas no inova fundamentalmente. Outro tanto poderia ser dito deDescartes,antesdele.

  • 16

    francesa de ps-guerra, frequentava. Segundo este filsofo, a cincia

    moderna,quesempre tevea tecnologianohorizonte, seocupariadosentes,

    dascoisasfcticas,emdetrimentodoser,quepermaneceriaocultodetrsdo

    ente,nointerrogado.Algoassimcomoperderaalmaporcausadamatria.A

    metafsica, segundoo filsofoalemo, seriaahistriadesteocultamentodo

    ser, que brilhava no pensamento dos pressocrticos, como Demcrito e

    Herclito,e teriasidosepultadoporParmnidese todososqueoseguiram,

    comeandoporPlato.Hnoinciodahistriadafilosofiadeocidente,pensa

    ele,umaempreitadadecolonizaodosermedianteaIdeia,comoresultado

    dequeoconceitodeente(tant,emfrancs,"o[queest]sendo"traduo

    do grego ti toeon)teria subjugadoode ser.Parmnidespassadoesti ("",

    terceirapessoadosingulardoverbo"ser")atoeon:particpiosubstantivado,

    derivadodoverboseredoravantetema[sujet]daontologia.AIdeiaplatnica

    seriaumaimposiofilosficadopensamentodouno.

    A Ideia (eidos) de Plato a figura da presena de tudo que pode

    pensar-se,e,desdeParmnides,oquepodepensar-se.Eum.Umacoisa

    umacoisa.ComPlato,oserpassaaserpensadocomo"aquilo[ente]que".

    a quididade, palavra da escolstica (ou seja, da leitura medieval de

    Aristteles) que responde pergunta "o que [quid, em latim] isso?". A

    consequnciaque,comPlato,seestabeleceumaposionormativadoser,

    na qual a verdade (aletheia) fica subjugada pela Ideia. Os sofistas,

    terrivelmente combatidos por Plato, privilegiavam a verdade, que decorre

    dafaladaspessoasemutvel,sobreumserimutvelenico,tomadocomo

    essncia.O seruno, a essncia das coisas, estaria na Ideia que, paraPlato,

    temmaisrealidadequeascoisasmesmas,queapenasparticipamdela.AIdeia

    unaenicaestariaportrsdetodasascoisasmutveisdomundosublunare

    quepodemserpensadas.

  • 17

    Heidegger o diz desta maneira: "A preeminncia do ente fixa o ser,

    enquantorazocomumapartirdoUm.Ocarterdistintivodametafsicaest

    decidido.Oumcomounotorna-senormativoparaadeterminaoulteriordo

    ser."Esteserseucavalodebatalha:teriahavidoumtomadadepoderdoser

    peloUm,embasandoasupremaziadoenteeoadventodeumaonto-teologia,

    queesqueceosercomoospressocrticosotematizavam,atravsdanoode

    verdade.

    DUASOBSERVAESINCIDENTAIS.

    A ao poltica de transmisso da psicanlise feita por Lacan 23

    aconteciaemdoisfronts.Oestrado(oplpito?)eodiv.Nesteltimocaso,a

    transmissoaconteciadefacto,masnodejure.Fazemosaexperincia,junto

    comnossosanalistas,dosacontecimentosdediscursoquenosrevelamnossa

    prpria diviso; podemos descobrir-lhes a lgica, mas isso se passade um

    modoquenopodesercalculadodeantemonemcolocadoemfrmulasde

    valoruniversal.DiferentedaIPA,Lacannoacreditavaquesepudessefazer

    uma anlise com o intuito de aprender a analisar outros. Quando diz que

    "toda anlise didtica", est contestandoomodeloda formao freudiana

    padro,baseadonaidiadequesepodeaprenderaanalisarcomoumarteso

    aprendeoexercciodasuaarte,deummestremaisexperiente.Oensinode

    jureacontecenoSeminrio,ealiaestratgiadeLacanaviadomatema.E"a

    viadomatema"(nosentidodetao)teriaacinciaformalizadacomomodelo,

    maspassadacomumaretricaquenada temdecientfica.antes sofstica,

    23Transmitircomunicarumcontedodedoutrinamas, fundamentalmente, fazer

    passaraoutremumaexperinciaquese teveequenobastadescrever.Nessesentido,adita"transmisso",termodaliturgiacatlica,dizrespeitopsicanliseemextensoecolocaempautadomodomaisagudoasrelaesentreouniversal,oparticulareosingular

  • 18

    como muito bem diz Barbara Cassin24. Nesse sentido, se o matema visa a

    psicanlise em intenso, o Seminrio faz uma prtica de psicanlise em

    extenso.Acrticadafilosofiaseencaixanestaduplicidadematema/poema25.

    Pode-se identificar dois conceitos estratgicos nesta poltica de

    transmisso:orealeogozo.Elesnoserotematizadosfilosoficamente,mas

    antesmediantealgicaeatopologia26.Realegozonoso,naminhaopinio,

    um fim em si mesmo, mas ummeio para introduzir a noo de impossvel

    comoumoperadorcentraldapsicanlise.Vocspodemnoentenderaquese

    refere,masdparasentiraimportnciadissoquandolemqueLacandefine

    ofimdaanliseouseja,tantootermoquantoafinalidadecomo"passarda

    impotnciaimpossibilidade".

    Queria dizer, neste ponto, que esta poltica de ensino (ou de

    transmisso) que se serve como alavanca do conceito de impossvel, tem

    comoobjetivodesontologisarapsicanlise.Em197027Lacandiz,apropsito

    dalingstica,comocinciadalinguagem,oseguinte:

    Osignificadoserounoserpensvelcientificamenteconformetenhaouno um campo de significantes28, que na sua materialidade mesma, sejadistingveldequalquercampofsicoobtidopelacincia.

    24CassinBarbara,Jacqueslesophiste.25Chamogenericamentearetricade"poema"paraquesevejaumaoposioque

    nonempodeserdialtica.Ouseja,noaspiraanenhumasntese.Oquedeixaamaioriamuito frustrada.Pareceriaquedevemosescolherumcaminhoououtro, oquemeparecetofalsoquantoquererfazerasntese.

    26Umalgicaeumatopologia"lacanianas",sobreaqualmuitosetemescrito,oquenoatornamuitomaisacessvel,nemaosespecialistasdascinciasexatas,queemgeraladesconsideram, nem aos leigos psicanalistas que em geral se contentam com repetirfrmulas que no entendem. Digamos que a topologia e a lgica adequada para nossocampo est sempre um pouco na Twilight zone (me refiero a la serie La dimensindesconocida, de Rod Sterling), na zona crepuscular entre fico e realidade. AlfredoEidelszteintrabalhaintensamenteparafundamentarestaviadeummodoconsistentecomomtodocientfico.

    27LacanJacques.Radiofonia28 Aqui "campo" est sendo usado no sentido da fsica moderna: "campo

    eletromagntico",porexemplo.Nessesentido,uncamporepresentaadistribuioespacial

  • 19

    Como psicanalista, ele advertiu que se distingue da lingstica (e da

    cincia) e afirma fazer "linguisteria"29 . Mas aqui se refere lingstica

    estrutural,aquelaquedeveriatratar,precisamenteparasercientfica,arede

    simblica (o corpo do simblico30) como um campo de significantes que

    permitiria pensar cientificamente (como oposto a "psicologicamente") o

    significado.Note-sequeoproblemaontolgicodalingsticanoosignoou

    o significante mas o significado: aonde est o significado e qual a sua

    natureza?Mas,oqueaquicabesalientarqueocampodossignificantesno

    seriaumcampofsico.Oumelhor,seriaumcampono-fsico.Nofsico,mas

    material31.Paraestud-loprecisamosrecorrerlgicaetopologia.

    Isso implica continua Lacan uma exclusometafsica a ser tomada comofato de des-ser. Doravante nenhuma significao ser concebida comoevidente [ne sera dsormais tenue pour aller de soi: no ser tida comocaindodoseuprpriopeso].

    H pelo menos duas leituras desta passagem, habilitadas pelo estilo

    calculadamente anfibolgico do autor. Uma, que a metafsica (no sentido

    filosfico) deve ser excluda, precisamente por no haver um ser da

    significao ("excluso [da]metafsica").Entendendo-sepor "significao"o

    efeito de sentido produzido pelos significantes encadeados quando se fala.

    de uma magnitude fsica que mostra certa variao numa regio do espao.Matematicamente, os campos so descritos mediante uma funo que os define.Graficamente,costumamrepresentar-semediantelinhasousuperfciesdeigualmagnitude.Histricamente, a noo foi introduzida para explicar a ao distncia das foras degravidade,eletricidadeemagnetismo,masseuusotemseextendidosubstancialmente,paradescrevervariaesdetemperatura,tensesmecnicasnoscorposepropagaodeondas.

    29RecadodadoaJakobson,presentenaqueledianoSeminrio:a lingsticaparaolinguista;a linguisteriaparaopsicanalista(AulatrsdeMais,ainda).Mas,valeperguntar:quando pratica a psicanlise faz linguisteria; ora, ser que isso se aplica tambm para aelaboraoterica?E,searespostafor"sim",emquetermosdialogao"linguisteiro"comolinguista?

    30Lacan.Op.cit.Radiofonia.31Deixo entreparnteses apergunta "dequematria so feitos os significantes?",

    que requer estudar o conceito estico de "incorporal". Creio que a psicanlise lacanianaprecisasedefendermelhordeoutraacusaofilosficadepeso:adeseridealista.Entendoque sadas como dizer (Mais, ainda, aula 3 da verso no estabelecida por Miller) quefazemos "linguisteria", no lingustica, visam a um posicionamento epistemolgico, mashaveriaqueesclarec-loumpoucomelhorparaquenovireumapetiodeprincpio.

  • 20

    Outra, que Lacan realiza aqui uma operao metafsica antifilosfica, que

    consisteemagirdetalmodoqueasignificaonopossaconsistirporsis.

    Quenuncaseconstituaumserdesignificao.Seriao intuitodesteestilode

    insuportvel ambiguidade da retrica lacaniana: que seja impossvel

    determinardeummodounvocooqueele"quisdizer".Aprimeiraleituraera

    aminha. A segunda, de Badiou. Para pensar cientificamente a produo de

    significadosprecisa, como condioprvia,excluirametafsica, pensava eu;

    realizarumaoperaometafsicadeexcluso,pensaBadiou.Segundoele,esta

    exclusodoserdasignificaoseriaametafsicadeLacan. Badiou filsofo:

    precisa defender a filosofia para no ficar fora do jogo. Eu pratico a

    psicanlise,noprecisosalvarafilosofia.Odebatepermaneceaberto...

    Notem,emtodocaso,oseguinte:quandooquedigofazsentido,aquilo

    viraumarepresentao.Constituiumagestalt;afiguraacabadaefechadaque

    poderia ser ilustradamediante uma esfera. Parece que, aquilo que disse (e

    vocs entenderam), . Se disser "chove", basta olhar pela janela para

    constatarseverdadeouno.Mas,mesmosemconferiroreferente,achuva

    declaradaadquire imediatamenteum"serdesignificao".Depois entramos

    noproblemade saber se as palavras coincidemouno comas coisas.Mas,

    antesdisso,bastaeudizerparaqueseconstituaotal"serdesignificaco"de

    quefalavahpouco.aissoquesereferiaHeideggerquandodissequepor

    culpadePlatoa Ideia (o efeitode significaodos significantes) subjugaa

    verdade. Porque na verdade e no na Ideia que reside a singularidade

    daquele que fala. Mas no na verdade como correspondncia entre as

    palavras e as coisas, mas na verdade em relao posio enunciativa do

    locutor.Seeudisserquechove,numdiadesol,meuinterlocutorpodepensar

    "eleseengana"ou"elequermeenganar".Mas,mesmoqueestejacaindoum

  • 21

    aguaceiro,elepodeperguntar-se:"Paraquelemedizoqueelesabequeeu

    sei(quechovelfora)?

    Voltando"exclusometafsica":paraqueasignificaosejapensvel

    (filosfica ou cientificamente) necessrio previamente, como condio,

    subtrair-lhetodoser, toda ideiadeumserdosignificado.Haveriaumcampo

    consistentedesignificantes,quepodeserestudadoobjetivamente,epermite

    pensaressefenmenoestranhoqueofatodeofalar"fazersentido",querer

    dizer alguma coisa para quem entende a lngua32 . Quando escuto dois

    chineses conversando, aquilo no faz sentido para mim, mas creio sem

    problema que faz para eles. No so como dois macacos grunhindo. Eu

    suponho que no caso dos chineses h realmente sujeitos. No caso domeu

    iphone, quando o Siri33que tem voz de mulher porque assim escolhi

    conversa comigo, aquilo faz sentido,mas no creio que haja realmente um

    sujeito.Talvezhajaumefeitosujeito,emmim,mas,atnovaordem,nono

    meu celular. O filme de Spike Jonze,Her, est baseado precisamente nesta

    ideia, da inteligncia artificial produzindo um sujeito. Um psiquiatra

    surpreendeuasuavizinhaconversandocomasplantas,enquantoasmolhava,

    na sacada do apartamento. Embaraada, ela fez um gracejo: "Falar com as

    plantasgrave,doutor?"Eele: "No,masquandoelas responderem,venha

    mever."isso.

    CONTRAQUEMVOCFALA?

    Vale notar que, embora Lacan fale contra os filsofos, aos

    psicanalistasquesedirige[s'adresse].Sempre34.Casotenhamlidoalgunsdos

    32Umavezparticipeideumsimpsiochamado"Oquefalarquerdizer?"33Oaplicativodeinstruesporvozdocelular.34"Eufalavaparapessoasaquemaquilointeressavadiretamente,pessoasprecisas

    que se chamam psicanalistas. Aquilo dizia respeito experinciamais direta deles, mais

  • 22

    seminrios,teronotadoqueeleosinjuriaconstantemente.Oraincrepaseus

    alunos ali presentes, ora censura os analistas em geral, ora repreende ou

    satiriza tal ou qual analista em particular. Alain Badiou faz umas

    consideraes a este respeito assaz interessantes35. Primeiro, observa que

    antifilosofiasexistemvrias,noapenasuma.AdeLacanseriaaltima,mas

    no certamente a nica. A palavramesma, "antifilosofia", foi cunhada no

    sculoXVIII.Badiounoapenasnomeaosantifilsofoscomodedicaumano

    decursoacadaumdeles.SoPaulo,oprimeiro,avantlalettre,seguidopor

    Pascal,RousseaueKierkegaard,osclssicoseporNietzscheeWittgenstein,

    osmodernos.Lacanserianossoantifilsofocontemporneo,eBadiouotem

    em alta estima. Ele diz, nem mais nem menos, que o grande desafio da

    filosofiacontemporneamedir-secontraaantifilosofiadeLacan

    Emsegundolugar,observaalgosobreosantifilsofosquemechamou

    profundamente a ateno, sobretudo por coincidir com uma caraterstica

    minha.Eupensocontra.Penso"contra",nomesmosentidoemquesedizde

    algumqueseapoiacontraumaparede.Eparecequeumantifilsofotambm

    um pensador adversrio. Cada um deles se opunha a algo ou a algum

    especfico. Pascal argumentava contra os libertinos. Rousseau se dirige aos

    malvadosIluministasaoshomenssemcorao,comoVoltaireouHume.J

    Nietzsche fala para homens livres, aqueles que no tem uma moral de

    escravos.Kierkegaard,doseulado,pensapara,porecontraamulher.Enfim,

    o homem a quem Lacan se dirige36 o psicanalista. Lacan fala e pensa

    "contra"opsicanalista37.

    cotidiana,maisurgente.Eraexpressamente feitoparaeles,nunca fora feitoparaningummais."Lacan.Meuensino.p.71.Rio:Zahar,2005.

    35L'antiphilosophie36Talvez vocs tenham reparado, no prefcio dos Escritos, que Lacan completa o

    aforismodeBouffon"oestiloohomemmesmo"com"ohomemaquemnosdirijimos".37Daliopesodasuapergunta:hpsicanalista?(ilyadupsychanalyste?)

  • 23

    Oespantoso,observaBadiou,quenenhumadversriodapsicanlise

    teriaacoragemdedizermetadedoqueLacanproferecontraosanalistas.Eo

    diz em todos os tons do diapaso. Que so homens perdidos, aos quais ele

    deve reconduzir para o caminho certo, como um pastor. Que no so

    confiveis.Queviramascostasaoseuprprioato,doqual temhorror.Que

    ignoram ou desprezam aquilo de que depende a sua prpria formao (se

    refere matemtica e lgica). Que no entenderamnada do que ele vem

    lhes dizendoh 20 anos.Que fala para as paredes, porque eles so surdos.

    Que est completamente s, clamando no deserto. E, last butnot least, que

    est ali para... envergonh-los! Lacan se d a misso de envergonhar os

    psicanalistas.fenomenal!

    Quando comea a falar sobre o ser, diz que o faz como um "sem

    vergonha"[toutehontebue,depoisdeterengolidotodaavergonha],porque

    nunca se curvou tirania do sentido. Seu estilo de exercer a psicanlise e

    ensin-laseriamaprovadisso.Noapenasumabrincadeiramasumponto

    centraldetica,vistoquechegaaopontodechamaraontologie[ontologia]

    dehontologie[dehonte,vergonha].Aontologialhepareceumavergonha.No

    nasmosdosfilsofos:umavergonhaqueosanalistassesubmetamaela.E

    pior,ainda,quandoofazemsemsaberou,sabendo,ficamorgulhososdisso.

    ali que declara a suamisso de envergonhar colegas e alunos. Ele no vai

    deixarbarataestaposio,jquelheparecevergonhosoqueumpsicanalista

    enchaodiscursodaanlisecomsentido.Eesperaaborrecertodosquefazem

    isso, descaradamente ou no. Foi esta condena feroz e nada ambgua da

    ontologia, alis, que me levou a afirmar que Lacan pretendia erradicar a

    metafsica do campo psicanaltico, visto que tanto na histria da filosofia

    como no sentido comum, ontologia e metafsica so quase sinnimos. Isso

    quandoapalavrametafsicanousadasimplesmenteparadizer"filosofia".

  • 24

    Maisumavez, conquantoele critiqueseriamenteos filsofos,noa

    elesquesedirige,masaosanalistas.Equandoosmandacominsistncialer

    filosofia por considerar que o psicanalista est ameaado, como analista,

    pelafilosofia.Tantomaisameaadosquantoque,nasuaignornciafilosfica,

    nopodemsequerperceberoperigoqueestarepresentaparaapsicanlise.

    obrigatrioqueosanalistasleiamosfilsofosporqueprecisamdelesparapor

    odiscursopsicanalticoaprovafrentefilosofia.Devemsaberoqueelestem

    para dizer, no para fazer outra filosofia diferente ou melhor, mas para

    separar-se, para destacar-se dela. E qual o risco iminente que enxergana

    filosofiaenosfilsofos?Aameaadeapsicanlisevirarumahermenuticado

    sentido. Apsicologia hoje operigo do psicanalista. O psiclogo, vindo das

    filasdafilosofiaedareligio,cheiodeamor(edesentido)paradar.Porque

    "da religio"?Porqueo sentido sempre religioso, vistoque faz consistir o

    ser.O sentidodavida,dodestino,dosdiscursosdeLula,da felicidade... E a

    hermenuticaconsisteemaplicarsentidoaoqueopacientediz.o fim(no

    sentido de sua caducidade) do ato analtico. "A interpretao vai contra a

    significao",escreveem197338.

    TRSQUESTESDIFCEIS

    Naminha leitura,existemtrsquestesmuitodifceisdeelucidarem

    Lacan.OstemasdoUm,doAmoredoGozo.OUmconcerneaoser.Oamordiz

    respeitoaodois.Eogozo,aotemadocorpoedoindivduo(eporextenso,ao

    real).Ostrsestointimamenterelacionados.

    OUMEOUNO.

    38L'tourdit

  • 25

    umproblemadelgica,paraAristteles.Osgnerossouniversaise

    abstratosenoalcanamosindivduos,quesonicos;contam-seumporum

    enofazemumaclasse.Sedisserdohomemqueum"animalracional"[zoon

    logon], isso vale para todos. Poderia no haver homens e o predicado

    continuaria valendo, assim como a definio "cavalo branco com chifre na

    testa" vlida ainda que no existam unicrnios. Declarar-me um caso

    particular da espcie "animal racional" no me alcana. Como tampouco

    suficiente declarar-me um caso particular de histeria, diagnosticado pelo

    mdico.Oparticularentranalgicadeclasses,osingular,no.

    Para o estagirita, os gneros e as espcies so substncias segundas.

    Elas no existem "realmente". O que realmente existe so as substncias

    primeiras, os indivduos "de carne e osso", como se diz. o outro tigre do

    Borges,oquenoestnoverso.Lacanconfinaeste indivduonoimaginrio

    (aopontodeafirmarqueaconsistncia,isto,amaterialidade,imaginria,

    no real39). Se Plato comea com a Ideia, a essncia abstrata, para depois

    chegar at a coisa em si; Aristteles comea com a substncia primeira,

    concreta e fsica, e no consegue verdadeiramente eliminar o vo que a

    separa do conceito universal. Ele denomina ousia (traduzido ora como

    "essncia"oracomo"substncia",oquedeixatudomuitoconfuso)aoestofo

    dequeest feitoumcorponatural. Nessesentido,asubstnciaestemum

    sujeito[hypokeimenon,outrapalavracheiadehistria40].

    Emalgumlugarda"Metafsica",escreve:

    Hmais unidade naquilo que um todo e que est configurado por umaforma,especialmenteseessetodoonaturalmente,enocomoaquiloquese juntapelacolaoucomumpregoouporumvnculoqualquer,resultadodeumacoero.Ouseja,seessetodocarregaemsimesmoacausadasuacontinuidade[oprincpiodasuaunidade].

    39 Para o real reserva a "ex-sistncia", escritura que indica tratar-se de uma

    operaofeitaapartirdosimblico.Nohreal,portanto,semosimblico.40Cf.oapndice1

  • 26

    Est falando do organismo, da unidade do corpo vivo. Mas esta

    unicidade imaginria. a diferena, muito bem conotada pelo nosso

    portugus,entreoumcontveldaunidadenumrica,eounodacompletude

    daesfera,dotodounificado,doconjuntooudaclasse.

    Quandoumseranimadosedeslocaporseusprpriosmeiosdizemos

    queeleautnomo,quetememsimesmooprincpiodoseumovimento(no

    omovemaspilhas,nemos fiosdeummarionetista41) e supomosneleuma

    inteno (com c-cedilha)42. Em "O movimento dos animais", que est na

    Fsica, Aristteles escreve: "O animal se move e se desloca sob a ao do

    desejoedaescolhapensada,depoisdetersofridoumaalterao[excitao]

    debidapercepoouimaginao."Oimportanteaquisalientarquepara

    ofilsofooqueestalojadodentrodaunidadecorporalquepodemosvero

    serdobichooudacoisa(omesmovaleparaapedraquecai).Esteserseu

    princpiomotor.nestepontoqueLacanseseparadoestagirita:paraeleno

    hnenhumsernaaparnciacorporaloudentrodocorpomesmo.

    Istotrardificuldadesnahoradepensarasrelaesentreaalma,que

    est em mim, autnoma e sede das minhas intenes, e a unidade

    ontolgica do corpo quemovimento com ela. Por que seria um problema?,

    porqueAristtelesnoDescarteseosersendounoehomogneonopode

    estaraomesmo temponomeucorpoe naminhaalma,que so claramente

    duassubstnciasheterogneasentresi.Lacanserefereaissoem197343:

    "O homem pensa com instrumento a sua alma, quer dizer, com osmecanismossupostosnosquaissesuporta[sustenta]seucorpo44."

    41Pensandobem,nofaoideiaoqueAristtelesteriapensadodeum"autmato",

    umcachorrinhomovidoapilhas,poresemplo.Haveriaquedecidirseasbateriasestonele,"comonumsujeito",ouestonelecomoumartifcio,semfazerpartedele.

    42Todoestetema,"oquemovealgum",oassuntodoTriebfreudiano,tematizadocomo"tendncia"(tendance)pelosanalistasfranceses,includoLacan.

    43Encore.44Caberecordarque"suposto", "suporte", "sustentao"e "substncia" (e tambm

    "sujeito")so,emgrego,amesmapalavra.Ouseja,pensacomosmecanismosquetornam

  • 27

    EAristteles45:

    comaalma inteira que pensamos, nosmovemos, sentimos e assim pordiante [...] A alma o princpio das faculdades e se define por elas: asfaculdadesnutritiva,sensitiva,pensanteemotriz.

    Ou sou um ou sou mltiplo (como uma matilha, mas a matilha

    abstrata,noexisteemrealidade;oqueexisteemrealidadeumaporode

    cachorros correndo, latindo e mordendo), as duas coisas juntas no

    procedem. Por isso ser to difcil para o filsofo grego conceitualizar o

    nmero,vistoqueo"dois",primeironmero(o"um"noumnmerojque

    umdosnomesdo"ser"),aomesmotempoumaunidadeumnmeroe

    umapluralidadeoconjuntodeduasunidades.Onmerodoiscolocaparaele

    umproblemaontolgico.

    Lacan sobre isso observa que "a lio platnica [aprendida por

    Aristteles]queonmeroonmerodois.Oumnoumnmero."46Para

    ns, que temos o um como um nmero, a dificuldade grega difcil de

    entender.Paraeles, tanto"omesmo"quanto"odiferente"sopropriedades

    doUm,porquesopropriedadesdoSer.EoUm(oSer),anterioraonmero

    e sua condio.Masonmero compostodeunidades idnticas, cadauma

    dasquaisalojaoSer.EoSernopodeserumemltiploaomesmotempo.A

    dificuldade grega comodoisportanto a seguinte: comopode serpossvel

    queumnmeroqueumacoisa estejacompostodeduasoumaiscoisas?

    Comopodeumacoisaser,aomesmotempo,umaemltiple?

    Lacan faz uma festa com este impasse grego, porque lhe serve para

    avanaratesedequeadadaqueobstaculizaainstauraodoser-uno.Isso

    dar no famoso aforismo "noh relao sexual": no se pode completar o

    seucorposubstancial.Refere-se,claro,aossignificantesestruturados.Masquese tratadeuminstrumento,calro,umailusodoeu.

    45Deanima46Lacan.Problemascruciais

  • 28

    Uno pela presena irredutvel do Outro (heteros).Mesmo reconhecida na

    polticaenanatureza,adiferenadossexoscontinuavaumapedranosapato

    da Lgica, por no submeter-se dialtica e ao Uno. Em outras palavras,

    enquantooum no fosse tematizado comonmero,nohavia comochegar

    atodois.TeriasidonecessrioesperarporFregepararesolveroproblema

    colocado pelo conceito de um, e isso s foi possvel recorrendo ao zero,

    desconhecido para os gregos. Vale observar que como concerne ao ser, o

    obstculoqueemperraalgicanoseriaapenaslgicomasontolgico.

    Aotrazeroimpassedalgicaclssicaparaonossocampo,contudo,me

    parecequeLacansecontradizquandojogaadiferenadossexosnacontada

    ontologiaaristotlica.Jque,seforconstatadaumafalhanoraciocniogrego,

    nasualgica,eestafalhadesignaorealdosexo,istonotemnadaavercoma

    diferenadossexos,queimaginriaou,sesequer,"emprica",nolgica47.

    Voltando para o drama grego: o indivduo assim chamado porque

    conserva aunidadeda sua forma,mas aomesmo tempodeve-sepostular a

    diferenaqueodistinguedequalqueroutro indivduo.E este oproblema

    metafsicodasingularidade.Sobreisso,opsicanalistacomenta48que

    noevidentequehajaoUm[a ne va pas de soi qu'il y ait de l'Un em espanhol diriamos: "no cae de su peso que haya lo Uno", usando o neutro "lo" e no o artigo determinante masculino "el" O problema aqui est em o que fazer com o partitivo "de l'Un", que no existe em nossas lnguas e que estimo conceitual?];issoparecebvio[a a l'air d'aller de soi] porque, por exemplo, h seres vivos e vocs,vocs tem toda a aparncia, cada um de vocs a, bem acomodados emvossascarteiras,deserembemindependentesunsdosoutros,deconstituirissoquehojeemdiasedenominauma'realidadeorgnica',desustentarem-

    47Aquiesttodaadificuldadecomoconceitolacanianoderealstrictosensu:elese

    deduzda lgica, no vice-versa. Eumesmo tento avanar,mas adiante, um caminhopararesolveristo:nosetrataria,paraLacan,dadiferenadossexos(imaginria),masdosexo(real).Isto,noentantomerecetodoumdebate,jqueorealqueinteressaanossocamposedefinedesdealinguagemeodiscurso,jamaisdesdeosorganismos.

    48Lacan.OuPire,19/4/1972

  • 29

    secomoindivduos.bemdali,claro,quetodaumafilosofiaprimeiratomouseuapoiomaiscerteiro."

    Est falando, sem dvida, de Aristteles (a filosofia primeira a

    metafsica).Edizoqu?,queimaginrioacreditarquehajaindivduoseque

    elesestejamvivosqueasrealidadesorgnicascompropriedadesrealmente

    diferenciadas no passam de uma aparncia (semblant) 49 . Mas esta

    precisamenteaideiadeAristteles:hrealidadesorgnicas.ELacandizquea

    metafsicaestemestaideiabemapoiada.

    Qualaposturadopsicanalistaemrelaoaestaconcepo?

    "Osersequeremqueuseotermoaqualquercustooseroserda

    significncia."50Isto parece contraditrio com a excluso metafsica de que

    falavaantes,masdizexatamenteamesmacoisa:noexistenenhumserfora

    dalinguagem;nohoutroserqueoverbo"ser".Acreditarqueascoisasde

    quefalamosestoaliaoalcancedamo,comoestoaoalcancedoconceito,

    uma iluso que se produz necessariamente na e pela fala. O mtodo

    psicanalticosebaseianoprincpiodequesuspendemosestacrenaimediata

    no ser em si das coisas. Baseia-se na aplicaometodolgica do princpio

    tericodequetodaacenaanalticaacontecenalinguagem,nafala,eapenas

    ali. Ela e apenas ela todo o universo de que precisamos para fazer uma

    anlise.

    MasAristtelesnopsicanalistae,paraele,oindivduo,voceeu,

    impredicvel. Qualquer predicado ser universal e o indivduo, que real e

    concreto, no sentido ingnuo dos termos, precisamente o que escapa

    apreenso dos predicados. Lacan se refere ao "lado esperto de Aristteles,

    quenoquerqueosingularjoguenasualgica."Emaisadiante:

    49Mesmoque se tratedasmesmas vacas, omapados cortespara fazer churrasco

    delas,noBrasildiferentedaArgentina.Portantonohcorrespondnciabiunvocaentreoscortesdaquieoscortesdel.Um"bifedechorizo"nouma"picanha".

    50Encore

  • 30

    "[...] esta estria de essencialismo e unicidade : 'o Princpio oUm?'ouento: ' o ser?' [so as perguntas de Aristteles] Como precisa aqualquerpreoqueoUm sejaequeoSer sejaum(uno),anosperdemos.Justamente,omododenoseperdersepar-losseveramente."51

    Eis a operao antifilosfica: separar o um do ser, que Aristteles

    juntou.Eestapropostadecorredeumaoutraconcepodalinguagem.nica,

    alis,quefazpossvelaexperinciapsicanaltica."Quehajaoum[yadel'un]

    noquerdizerquehajaindivduos"52

    ODOIS(OAMOR).

    Comodisse,adadalevaofilsofoaumimpassemetafsicoinsolvel.E

    opsicanalistaabordaeste impassepelo ladodoamor.Omaismalucoque

    no Lacan quem junta estas duas coisas, o amor e o nmero, mas

    Aristteles!, paraquemoamorum temadaFsica(captulo IXdo livro I),

    no naMetafsica. Suponho que pensava naquilo que muito mais tarde foi

    tematizado como "instinto reprodutivo", mas seja como for, do encontro

    sexual entremachos e fmeas que se trata. Ele j tinha falado do casal na

    Poltica (a diferena dos sexos seria natural e dada, e a sua finalidade

    consistiria em reproduzir o mesmo: fazer um segundo corpo, igual ao

    primeiro. Esta reproduo humana teria como funo fornecer cidados

    Cidade). Torna a falar do casal na fsica, a propsito da forma, completa e

    ativa,edamatria(hyl),incompleta,informeepassiva.Ambas"copulam",e

    o resultadouma totalidade inseparvelde "formatria", digamos.Apartir

    daliAristtelesdeduzumasriedeequivalnciasquesoaomesmo tempo

    lgicaseontolgicas:arelaoentreoprincpioativo,daformaepassivo,da

    matriaamesmaqueexisteentreovisveleoinvisveleentreomasculinoe

    5118/11/7552Op.cit.Oupire.Porqueoum(osuns)sodaordemdosignificanteeoindivduo,

    no.

  • 31

    ofeminino.danatureza(quandoAristtelesdiz"natureza",diz"essncia"e

    "ser")dohomemcomandaredamulhersercomandada,porexemplo,assim

    comodanaturezadoamo,mandaredoescravo,obedecer.Sodiferenas

    que existem nas almas respectivas, no nos corpos. Nada tem a ver com a

    anatomia. Em todo caso, que umamulher pretenda comandar vai contra a

    ordemdascoisas,antinatural,umaaberrao.

    LembrodeondeseoriginaoproblemadeAristtelescomoindivduo,

    denominadopor ele substncia[ousia]-primeira: do colapsodo ser sobre o

    um53:

    Noqueconcernessubstnciasprimeiras,incontestvelmenteverdadeiroque elas significam um ser determinado, pois a coisa exprimida umindivduoeumaunidadenumrica.

    Haquidoistiposdeumque,graasaoportugus,podemosdiferenciar

    claramente, enquanto em francs Lacan precisa fazer cambalhotas para

    explicaradiferena.Oportugus,comovenhomostrandodesdeoincio,tem

    umeuno.Oum,dey'ad'l'un,aunidadenumrica,oumecontar"um,dois,

    trs". Lacan especifica que essa unidade numrica, o nmero 1, especifica

    tambmosignificanteconsideradocomounidade.Umentreoutros54.Mas,e

    aqui est a diferena com o filsofo, a unidade numrica no designa o

    indivduo. "Y'ad'l'unneveutpasdirequ'ilyaitde l'individu"55"Hunsno

    significaquehajaindivduos".nestepontoqueLacanlanamodeFrege.

    53Fiz observar acima que Lacan esvazia o singular de substncia e o aborda

    medianteoutralgica.Eleochamade"real",masrealnoquerdizerparaeleo indivduoconcreto da realidade material, como a maioria pensa. Se assim fosse, estaria dizendo omesmoqueAristteles,equalseriaanovidadequeanuncia?

    54Nesteplanodeanliseossignificantesso indiscernveis.Cadaumapenasum

    entreoutros.Nadaoespecifica.TalvezanoodeessaimenxameparanomearoS1serefiraaoconceitodesignificanteemsuauniversalidade.

    55Oupire.

  • 32

    Toma dele que o nmero 1 o zero marcado como um elemento. O

    psicanalistadiztratar-sedo"umreal".Eoumrealseriaosignificante,noo

    indivduo. O significante, definido ao mesmo tempo pela diferena e pela

    unicidade. este significante (e no outro), e o no-Outro. Ao mesmo

    tempo,positivoenegativo.Note-sequetantooumcomoadadaoumeo

    Outro;omesmoeodiferentesesustentamambosdosignificanteemsentido

    lato. Mas cabe acrescentar que para poder eliminar o ser da jogada era

    necessriodemonstrarqueumsignificantenosebastaasimesmo:eleao

    menosdois56.NohUmsemOutro;nohumsemdois.

    Adadaoriginrianalinguagem,noseengendra.Platotinharazo,

    oprimeironmeromesmoodois,masnopeloqueeleacreditava.Neste

    sentido,pode-selerjemPlatoo"umoperatrio",oumde1,2,3,enquanto

    queemParmnidesestamossvoltascomoUno,daglobalidade.Opassofora

    dametafsica(aqueBadioudenomina"posiometafsicasubstrativa")seria

    aoperaododes-ser.Ocontrriodisso,aafirmaoL'unest,"oUno",seria

    o suspiro metafsico de que Heidegger se queixava. Trata-se de parar com

    isso,no de responder ou resolver, mas suspender a pergunta pelo ser do

    Um/uno (do mesmo modo que se tratava de suspender a pergunta pela

    origem da linguagem). Na clnica, a operao de des-ser da interpretao

    significa retirar do traumadopaciente qualquer ser ouunicidade.De certo

    modo,parardeacreditarnotrauma.NestepontopensoqueLacanseafasta

    deFreud.

    56Noseriadiferencialsepudessesernico.S1eS2,escreveLacan.Sodoiseso

    demasiados para a linguistica. Saussure, por exemplo, pensa um significante preso a seusignificado e ambos devidamente englobados no conceito de signo. "O um-bi-visto" ainspiradatraduodeMagnodoUnebvuedeLacan(porsuavez,aliteraodeUnbewusste,inconsciente, em alemo). Bem visto, o significante um dois: l com cr (e esta umaafirmaotantolgicaquantoclnica).

  • 33

    Que para Lacan o amor seja uma questo com o nmero dois, no

    resultanadaevidente, vistoqueparaFreuderaprecisamenteumproblema

    comonmeroum:oamornarcisistaerecusaodoisemfavordouno(acara

    metade, junto com a qual fazemos um). E a diferena dos sexos (que no

    teriamos nenhuma razo para supor que seja natural, do ponto de vista de

    Lacan) parece impor naturalmente o bvio da sua binariedade, que Freud

    trata mediante o falo (que precisamente um e nico). A binariedade

    intuitiva das oposies imaginrias dependem da lgica opositiva do

    significante:formaecontedo;masculinoefeminino;ativoepassivo;xxexy;

    pintado edespintado; yin e yang; etc.Os seus crticos atacammenosFreud

    queAristteles, cuja lgica est ancorada no binrio dos gneros.Quanto a

    Lacan,noconseguemsequerentenderoqueeleprope.A saber,pensaro

    real(conceitoabsolutamenteequvoco,setemalgum)queestariaemjogono

    sexo(osexo,noossexos)comoutralgicaquenoaformalbivalenteeque

    eledenominalgicadafantasia.armadocomelaqueconvidaaultrapassar

    o limite real da lgica clssica. O real do sexo: limite real da lgica

    aristotlica57.Lacanchamaestelimitederapportsexuel(relaosexual,mas

    tambm "proporo", no sentido de logos, "razo"). Concedo que no fica

    claroseLacanpensaqueexisteumaimpossibilidadeinerentelgicamesma,

    ouconsideraoimpassedestaumaconsequnciadanossacondiosexuada.

    Mas,mesmoseesteforocaso,precisamosinsistiremque,noqueconcerne

    ao campo analtico, dizer "condio sexuada" indicar um problema de

    discurso,nodepausebucetas,peitosepelos.

    PARMNIDES

    57Ooutro limiteda lgicaamorte,eLacan juntaambos,seguindonistoaFreud,

    diga-se.(Cf,todososdesenvolvimentossobreosilogismoaristotlico:"todososhomenssomortais")

  • 34

    PorquetudocomeacomParmnides.Comalonguissimaalegoriaque

    escreveuedaqualnoschegaramapenasalgunsfragmentos.OSeroheri

    destasaga.ViajantenumatravessiaquetemoUnocomodestinofinal.Paraa

    maioriadosfilsofos,estepoemaestnaorigemdametafsicadeocidente.Da

    filosofia parmendea reteve-se apenas duas afirmaes to fundamentais

    quantoespetaculares.Amaisconhecida:"Oser eonoserno-".Besta

    comosoa, isto fenomenal.Aoutra,"pensar e ser omesmo".Heidegger

    comenta:

    Apreeminnciadoentefixaoser,enquantorazocomumapartirdoUm.Ocarter distintivo da metafsica est decidido. O Um como Uno torna-senormativoparaadeterminaoulteriordoser.

    H um dilogo de Plato denominado "Parmnides" (no confundir

    comopoemadoprprio),queconsistenumacrticadasposiesdofilsofo

    pressocrtico.AconclusoqueoUmnopoderser:

    Assim,ento[termina o dilogo], seoUm for,quer seja comparadoa siprprio quer aos outros, o Um seria todos, logo no seria mesmo Um Concordo.

    O que est dizendo Plato? que o um-ser, distribuido entre todas as

    formas aomesmo tempo igual a simesmo e aos outros e diferente de si

    mesmoedosoutros.OUmnoUNO.

    NoseminrioXIXdenominadooupire, lacanglosaestascoisasdoseu

    jeito: "Ceuxquejedsignedes'...oupirer,c'esta l'unquealesporte."A frase

    diz"aquelesaquemmerefirocomosuspirosos,aounoqueissoosleva."

    Massedeixaouviraliumjogohomofnico,comoverbo"piorar",quepermite

    entender que aqueles que suspiram, que anseiam pela completude, so

    arrastadosaopior.LacanrejeitaesselugarimaginriodoUno."Nosuspirar

    minhahonra."["d'autress'oupirent,jemetsnepaslefairemonhonneur"].

    a honra de um pensamento que no se deixa arrastar pelo fascnio da boa

    formaedatotalidade."Unefemmenes'oupirepasdel'un,tantdel'Autre."

  • 35

    Nuncaentendereiporquasmulheresserecusamaouviroelogioque

    opsicanalistalhesfazcomestaafirmao.Comopodemcontinuarafirmando

    quemilita pela ideologia do falo (do Uno, portanto), quando diz que "uma

    mulherno suspirapeloUno, sendoeladoOutro"?Queela sejadoOutroa

    deixa do lado da diferena pura e, em tese, no pede nem espera nada da

    identidade.Diferentedens,homens,passariamuitobemsemofalo.

    FaonotarqueLacannotratataisquestescomateoriadaspulses

    oudaidentificao,comoseriadeseesperar,mascomalgicamodernaea

    topologia.Efaonotar,tambm,quenovejoumafeminilidadetalverificar-

    senavidacotidiana,napolticaounaclnica,ondeasmulheresemgeral (e

    cadavezcommaiorvirulncia)nofazemsenoreivindicarofaloemtodas

    assuasformasefiguras.

    OAMORAOSABER

    Eoamor?

    "O amor: h tempos que no se fala de outra coisa. Preciso salientar

    queeleestnocoraododiscursofilosfico?"58Umdiscursoamoroso,ento.

    Este amor do saber se exerce excluindo o dizer e amarrando o dito ao

    significado,comoareligio.Nessesentido,amatemticainstrumentalpara

    Lacan,precisamenteporquesecolocaforadosentido:operacompurasletras

    vinculadas por axiomas e leis de composio; funciona semque isso faa o

    menorsentido.Eomaisespantosoqueumsatliteaprovaexperimental

    dajustezadasleisdenewtondegravitao,quesomatemticas.

    "A estabilidade da religio vem do fato de que o sentido sempre

    religioso [...] donde a minha obstinao na via dos matemas."59Menon: a

    figuramesmadoquadradodesenhadooperaareminiscncia.Afigura"sabe".

    58Encore59Cartadedissoluo,1980

  • 36

    Para Descartes, a matemtica mtodo para tratar de assuntos no

    matemticos, metafsicos (more geometrico): "longas cadias de razo", diz

    Descartes.Oqueumaxioma?Algoqueenunciado,ditoepostonaorigem

    deumacadeiaderazes.Nadavindodeforajustificaumaxioma.Osfilsofos

    procuramprimeirosprincposqueexpliquemaorigemdetudo.apartirde

    umprincpioinicialinteligvelqueadialticaavana.Amatemticapartede

    hiptesesdasquaisnopodedar conta.Odesejodomatemtico seriaode

    colocar um puro dizer (umaxioma) na origem de uma cadeia fiel de ditos,

    masodizeroriginalinsensato.Eissoseriainadmissvelparaumfilsofo.A

    tentao filosficaa tentaodoUno,a"fiscalizaodoserpeloUno".Por

    issosotapadosparaamatemtica.

    O que a experincia analtica demonstra que o nico correlato

    subjetivodosaberoamorenohoutro.Asuposiodequealgumsabe

    de mim enamora, com tudo que isso comporta de sintomas. A relao

    professor-alunoantesdemaisnadaumarelaoamorosa.Podeserdedio

    epodedescambarparaoerotismo,massetratadevariaessobreotemado

    amor desencadeado pelo saber que o aluno supe ao seu mestre. O

    psicanalistaoperadeoutromodoqueumprofessor comeste amor,mas se

    tratadomesmoamor.

    InsistoinsisteLacan"oamorquesedirigeaosaber.Nadadedesejoali.Paraowisstrieb, tenhatidoeleoselodeFreudouno,podemosdeixarpral,noexisteomnimo!bemnessepontoquesefundaapaixomaiordoserfalante:quenonemoamornemodio,masaignorncia."60

    Ouseja,noexistedesejodesaber.AcrticaaFreudexplcita: teria

    confundido o amor provocado pelo saber com um desejo do paciente. O

    paciente no quer saber nada. Ou, melhor, como as crianas, quer saber

    sempre...outracoisa.Ainterminvelcadeiadosporqusdascrianas?isso.

    Em todo caso, haveria uma correlao entre um desejo de no saber e a

    60IntroedioalemdosEscritosinScilicet5

  • 37

    paixodeignorar.Afilosofiapregaoamorpelosaber,ouseja,aignornciado

    desejotravestidadeamorpelaverdade.Doqueofilsofoouocientistano

    queremsaber?Doslimitesedoimpossvel.Paraacinciaeafilosofiaanda

    semprenaretranca,algoimpossvel...ainda.

    Empdocles, citado por Freud, dizia queDeus era ignorante por no

    conhecer o dio. "dodio edo amor [ou seja, do conflito] que se formou

    tudooque foi, e ser jamais". Pareceque fazemosqualquernegciopara

    evitarperceberqueocampodoOutro,olugardatranscendncia,oparaso,o

    lugardivino,poderiaestarvazio,enocheiodeamoroudesaber.Deusseria

    como esse olhar estpido do urso que devorou Treadwell: ele no te quer

    bemnemmal;elemovidopelaleiestpidadoinstintoquefazcomquevoc

    no passe, aos seus olhos, de comida (" pasto!"61). A suposio de amor

    d(n)osursosestavatodanacrenadeTreadwell,isto,nasuafantasiafalo

    dodocumentriodeWernerHerzog,chamadoGrizzlyMan,sobreTreadwell,

    umimbecilquefoidevorado,juntocomanamorada,pelosursosdoCanada,

    porimaginarqueestesoamavam.

    Osescolsticos,especialmenteSantoToms,ficaramtodesesperados

    em contra-argumentar com Empdocles que transformaram o no-dio de

    Deusemummardeamor,noqual seafogamos fieis.Comamatemtica, a

    lgicae,especialmente,comatopologia,podemoschegarasaberqueoOutro,

    ouseja,Deus,nopassadeumlugareumlugarnoamanemodeia,nemsabe

    nada de nada. Em todo caso, Lacan fez da trade amor/odio/ignorancia o

    quadrotericopararepensarateologiacristoriginadaemAristteles.Eno

    atoaqueestepensadordanoontologiadenomineaquelastrs:"paixes

    do ser". So paixes para fazer consistir o ser, o sentido, o finalismo e a

    61OsTits

  • 38

    harmonia e provocam o dio de qualquer coisa que venha atrapalhar tal

    projeto.Talvezoprojetoneurticoporexcelncia.

    PARATERMINARCOMDESCARTES

    No queria deix-los sem mostrar o que Lacan quer dizer quando

    afirmaqueFreudnopoderiaterinventadoummtodocomoopsicanaltico

    antesdas "Meditaesmetafsicas".AsMeditaes tambmsoummtodo.

    Destinado a encontrar alguma certeza, para poder conduzir-se bem nesta

    vida. E o mtodo freudiano, a associao livre, mede-se em relao ao

    cartesiano.NovoucomentarasMeditaes,aindaquevalesseapenafaz-lo.

    Comento apenas a objeo lacaniana: o passo inadmissvel deDescartes foi

    ter passado do cogito res cogitans do "penso" "coisa que pensa"

    ("substnciapensante").

    "O inconsciente,sev,apenasumtermometafricoparadesignarosaberquessesustmapresentando-secomoimpossvel,paraquedestafeita[dea-disso,apartirdisso]eleseconfirmecomosendoreal."62

    Aindasetratadaoposioentreoy'ad'l'un,dopsicanalistaeol'unest,

    do filsofo. No existe nenhum inconsciente, o que h em um conjunto de

    significantes articulados a que Lacan denomina "saber". Mas um saber

    impossvelparaosujeitoquesomoscomoconscincia,oquenoimpedeque

    ele esteja ali operando sobre nossas subjetividades, de ummodo anlogo a

    comoaleidegravitaooperasobreoscorpos.

    "Edestafeita,orealsediferenciadarealidade.Isso,noparadizerqueeleincognoscvel, seno que no questo de conhec-lomas de demonstr-lo."63

    Estaquiindicadaaviadomatema,noapenasparaoscientistas,mas

    tambm para os psicanalistas. O real relativo demonstrao lgica ou

    62Radiofonia63Radiofonia

  • 39

    matemtica, no natureza. Est fora tanto dos sentidos como do

    conhecimentoconsciente.

    Mas, o que Lacan retm do gesto cartesiano? A "dvida hiperblica"

    como uma experincia metdica de pensamento. Qual seja, aplicar

    sistematicamente a dvida a tudoque existe.Nemmais, nemmenos. Como

    seria senadaexistisse,anosermeuspensamentos?Nada,querdizernem

    mundo, nem universo: nada. No existem as ideias matemticas, ou o que

    acreditosentirouperceber,tampoucominhaslembranas.Nemmesmomeu

    corpoexiste.Oqueresta?O fatodequeestouaquiaduvidarde tudo.Disso

    nocabemdvidas.Minhanicacertezaminhadvida,donde...souaquele

    queestaduvidar.Istobemconhecidoesechamaocogitoo"penso"em

    latim. A frmula (porque uma frmula, no um silogismo) :Cogito, ergo

    sum.Emfrancs: jepense,doncjesuis.Eemportugusmaltraduzido:penso,

    logoexisto.Bemtraduzido:penso,logosou.

    Lacan falou ene vezes sobre o assunto e tirou dele asmais variadas

    concluses.Ocomumdenominadordetodaselasqueestaquiogermeda

    descoberta do inconsciente. Vou citar uma delas. Em A lgica da fantasia

    lemosque:

    O cogito de Descartes tem um sentido, substituir a essa relao dopensamento com o ser [a de Parmnides], pura e simplesmente, ainstauraodoserdoeu[je].Ocoelhoquedesejotirardacartolaparavocseste:namedidaemqueaexperinciaelamesmasequnciaeefeitodeumfranqueamento do pensamento, que representa algo que poderiamoschamar rejeio da questo do ser, na medida em que essa rejeioengendrou esta sequncia, esta abertura na abordagem domundo que sechama a cincia, algo foi produzido no interior dos efeitos destefranqueamento e que se chama a descoberta freudiana ou ainda, seupensamento,opensamentosobreoatravessamento[sapense,parlapensesur la perce seu pensamento, pelo pensamento sobre "o furo" / o"rompimento" / "o franqueamento"]o ponto essencial que isto denenhummodosignificaumretornoaopensamentodoser.Queopensamentonoatuenosentidodeumacincia,anosersupostoaopensar,querdizer,queosersejasupostopensar,oquefundaatradiofilosficaapartirdeParmnides.

    Aquivaioutra:

  • 40

    "ParmnidesestavaerradoeHerclitocerto:'OmestrecujoorculoestemDelphosnorevelanemesconde,significa'."

    Deve-se opor a doutrina heracliteana da significao doutrina

    parmendeada identidadeentreo sereopensamento.Do ser-pensa ao isso

    pensa(emmim).Umpensamentodofluxoedodeviraumpensamentodoser

    imvel. Este devir, este fluxo, este futuro do pretrito do sujeito do ato

    analtico o des-ser da significao. Como disse uma vez uma paciente ao

    terminar uma sesso, invertendo o tempo e afirmando o que queria negar:

    "entro como sa".Oquevai teresteanodemaisaborrecedor submeterum

    certonmerodeditosdatradiofilosficaaestaprova.Vejamvocs!Edeque

    prova [preuveexperincia, provao, teste, rito de passagem] se trata?, a

    provapeloatoanaltico(comosedizaprovapelofogo).

    Eraisso.Muitoobrigado.

    Londrina,4demarode2016

    ResumodaoperaoantifilosficadeLacan:desacreditarafilosofia, desconstruir o procedimento filosfico. Proporumnovoato.Oatoanaltico..

    Apndice1

    OPROBLEMADOSUJEITOEDOOBJETO(AFANTASIA):

    Hypokeimenonquerdizeremgrego, literalmente,"postoembaixo"e

    viaderegratraduzidopor"sujeito".Aristtelesabordaesteconceitodoponto

    de vista ontolgico, gramatical e lgico. Do ponto de vista ontolgico, a

    matriadeterminadapela forma (o sujeitoda forma amatriahyl); a

    substnciacomseusacidentes(osujeitodoacidenteasubstnciaousia:a

    madeira da mesa). Do ponto de vista lgico e gramatical, o suporte dos

  • 41

    predicadosquelhesoatribuidos(osujeitodopredicado...oprprio!).Em

    suma,osujeitogregocarregadoissentidos:uminerente,ontolgicoeoutro

    atribuidooulgico.Sejacomofor,trata-sedoquehojechamariamos"objeto".

    Se o subiectum o "posto embaixo", o objectum o "jogado na frente"

    (Gegenstand).

    As palavras "sujeito", "suporte", "suposto" e... "substncia", embora

    tenhamconotaessemnticasdiferentes,por teremtidohistriasdiversas,

    temtodasmaisoumenosamesmadenotao:colocadosob,sustentadoem,

    apoiadosobre.Emsuma,fazrefernciaoraaoapoio,oraoqueapoiado.Em

    todo caso, sujeito, para os gregos e os escolsticos conota passividade,

    recepo, suporte ou carga, jamais ao, atividade ou agncia. Heidegger

    chama a ateno para o deslizamento medieval que fez com que o X sub-

    jacentedeixassedeserapenassustentao lgicadospredicadosatribuidos

    em uma funo do tipo F(x), e passasse a estar dotado de uma ousia, um

    estofo, uma substncia, um enchimento, uma matria, at tornar-se

    finalmente um ente, uma coisa concreta. "O ser", escreve Heidegger64 ,

    "designaapresenaconstantedoqueestali;oquesemantmdebaixo:sub-

    stans(ousia)".Lacandirqueesta suposiodeumseroudeumaessncia

    almdafala,almdosuportepuramentelgicodoenunciado,narealidade

    resultadonotantodeumafantasia,masd'Afantasia[fantasme].

    "Quando amparada numa articulao terica [a psicanlise] revela em umcomportamento o funcionamento da pulso oral, da pulso anal [...], dapulso escoptoflica ou da pulso sadomasoquista65, bem para dizer quealguma coisa se satisfaz ali. Com relao a isso bvio que no podemosdesign-lo de outra maneira a no ser como aquilo que est debaixo, umsujeito,umhypokeimenon.Comadivisoquedevenecessariamenteresultardissoparaele,emnomedequeelenoalioutracoisaqueosujeitodeuminstrumento em funcionamento, deumorganon o termoempregado aquimenosemseuacentoanatmico,deprolongamento,apndicenaturalmaisoumenosanimadodeumcorpo,quenoseusentidooriginal,aqueleusado64Heidegger.Nietzsche65Interessanteobservarquechamasadomasoquistapulso invocante,gnesedo

    super-eu.

  • 42

    porAristteles em sua lgica, de aparelho, instrumento. [...]Algunsrgosporoutroladodiversamenteambguos,difceisdepegarnessecorpo,jque demasiado evidente que alguns deles no passamde dejetos domesmo,encontram-sesituadosnestafunodesuporteinstrumental.

    Vamosanalisarestepargrafo?

    Como a psicanlise tem uma teoria das pulses, os analistas podem

    escutar pulses no discurso dos seus pacientes. Ele diz "revelar em um

    comportamento".Opacientetemataquesdediarreiaqueoimpedemdefazer

    viagens longas, de ir nabaladaoumesmode convidarumanamoradapara

    jantar. Chegou ao ponto de ele se privar de sair de casa por medo do

    "estmago" levar amelhor. Isso importante, o nome do responsvel pelo

    sintoma que o tiraniza : "o estmago". Acabei de descrever um

    comportamento,mas a bem da verdade, trata-se de uma narrativa que um

    analistapoderiaanalisar,nodeumcomportamentoemsi."Algosesatisfaz

    nesse comportamento", continuaLacan.Eacrescenta: "bvioque issoque

    alisesatisfazestporbaixo,subjacente,nosentidogregodehypokeimenon."

    O sujeito seria a base, o suporte de uma satisfao tal. Mas, disso que se

    satisfaz, e que Lacan denomina "sujeito", decorre necessariamente uma

    divisoparaopaciente(digo"paciente"porqueaquiLacan jestusandoa

    palavra sujeito no sentido corriqueiro do termo, e tudo se torna muito

    confuso). Se vocs preferirem, o eu do analisante, que est ali associando

    livremente e nos conta seu comportamento parasitado pela disfuno

    digestiva que qualificamos de "pulsional", se divide. E por que se divide?

    Porque ali ele se descobre no um agente desta "satisfao" mas paciente

    desta (quando batemos punheta podemos manter a iluso de que somos

    agentes intencionais do gozo que nos provocamos self abuse, dizem os

    americanos "auto-abuso"; no assim, mas como a diviso no aparece

    podemos pens-lo, e de fato o pensamos). "Ele se descobre como sendo o

    sujeitodeumrgo",dizLacan,"masnonosentidoanatmicodapalavrae

    simnosentidogregodeorganon:mtodo,manual,aparelhoouinstrumento."

  • 43

    Ouseja,estehomemsedescobreinstrumentodoseuestmago:o"estmago"

    mandanele;elesujeitodoestmagonomesmosentidoemqueeminglsse

    diz "subject to the king", servo do rei. Depois disso, acrescenta Lacan, sim

    podepensar-sequesetratadergoscorporais,masnemsempresorgos

    quereconhecemosdecaracomotais;muitodelessoestranhosedifceisde

    localizarno corpo.QueremverdoqueLacan fala?AssistamNakedLunch, o

    filme de Cronenberg, ("Mistrios e paixes", em portugus). Vero o que

    uma pulso no sentido lacaniano. Cronenberg um gnio! o escritor que

    no consegue parar de escrever, mas enquanto escreve, impassvel, o que

    voc v que ele est fazendo gozar sua mquina de escrever (a est

    masturbandoaobaternas teclas),quenoumser inanimadomasumser

    vivo,meiohbrido,misturadeaparelhocomorganismo, cheiodesecrees,

    fludosemucosasequefalaparapedirmaisatalcanar"seu"orgasmo(de

    quem?).Masofundamentalaqui:amquinaquegoza,orgo(bempoderia

    seropinto),noseusujeito,oescritoremquesto.Eleestdivididoporque

    osujeito,osuportedeuminstrumento.Percebem?afrmuladafantasia.

    Apndice2

    FREGE66

    DizemdeFregequefoiomaiordetodososfilsofosdamatemticae,

    como lgico, foi comparvelaAristteles.Seudesgnio foi fundaronmero

    exclusivamente sobre bases lgicas. A questo a que, acima de tudo, queria

    responder, era esta: ser que as demonstraes da aritmtica assentam na

    lgicapura,baseando-sesomenteemleisgeraisvigentesemqualqueresfera

    do conhecimento, ou precisam do suporte de fatos empricos? Frege

    respondeuqueerapossvelmostrarqueaprpriaaritmticaeraumramoda

    66FregeGotlob.1848-1925)

  • 44

    lgica,no sentidoemquepodia ser formalizadausandounicamentenoes

    ouaxiomaslgicos.EmOsfundamentosdaaritmtica,observaque"ozeroeo

    umsoobjetosquenosodadosdemaneirasensvel."Noporquevemos

    quatromas que contamos quatromas. porque contamos quatro que

    vemosquatromas.Anooabstratadenmeroede srie vemprimeiro.

    FregenoPiaget.

    Oasnamangafoisubstituiranooaritmticadenmeropelanoo

    lgica de classe: os nmeros cardinais podem ser definidos como classesde

    classescomomesmonmerodemembros;assim,onmerodoisseriaaclasse

    dos pares, e o nmero trs a classe dos trios. Apesar das aparncias, esta

    definionotautolgica,porquepermitedizeroquesignificaduasclasses

    terem omesmo nmero demembros, semrecorrernoodenmero. Um

    criadopodesaberqueexistemnumamesa tantas facasquantospratos sem

    saberoseunmero:bastaobservarquehexactamenteumafacadireitade

    cada prato. Duas classes tm o mesmo nmero de membros se for possvel

    estabelecerentreelasumarelaobiunvoca;taisclassessoconhecidascomo

    classes equivalentes. Um nmero ser, ento, a classe das classes

    equivalentes. Posso definir o nmero quatro pela classe das classes

    equivalentes ao Fab Four? No, porque os Beatles no tem uma definio

    puramentelgica,vistoquesedefinemcomoumabandadequatroindivduos

    existentes,eacaemosaindaumavezmaisnoimpassedeAristtelescomos

    singularesexistentes.Fregefoiobrigadoaencontrar,paracadanmero,uma

    classecujadimensofosse,almdeadequada,asseguradapelalgica.

    Resolveucomeardezero.

    Como os gregos no o conheciam, jamais teriam podia pensar

    semelhante demonstrao. O zero um nmero que pode ser definido em

    termospuramente lgicoscomo"aclassede todasasclassesequivalentes

  • 45

    classedeobjetosquenosoidnticosasimesmos".bomnotarumdetalhe

    capital: a coluna mestra de todo este edifcio o princpio de identidade

    aristotlico:"A=A",tomadocomoaxioma.Comoimpossvellogicamenteque

    existamobjetosdiferentesdesimesmos,essaclassenotemelementos.Uma

    vezqueduasoumaisclassescomosmesmoselementossoamesmaclasse,

    existesumaclassesemelementos,a"classevazia".Eofatodesexistiruma

    classevaziafoiachaveusadaparadefinironmeroum."Oumaclassedas

    classesequivalentesclassevazia".Eodoispode,ento,serdefinidocomo"a

    classedasclassesequivalentesclassecujoselementossozeroeum".Otrs,

    como"aclassedasclassesequivalentesclassecujoselementossozero,um

    e dois", etc. A srie dos nmeros naturais constri-se a partir das noes

    puramente lgicas de "identidade", "classe", "pertena a uma classe" e

    "equivalnciaentreclasses".