Psicanalise ,Religião e Ciencia Entrevista Benilton Bezerra Jr. Adital

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14.10.09 - Mundo Entrevista: Psicanálise, religião e ciência: desafios da sociedade contemporânea IHU - Unisinos Adital Um dia depois de proferir a conferência “ Narrativas de Deus, e a transcendência hoje: uma abordagem a partir da psicanálise” , no último dia 15 de setembro, na Unisinos, durante o X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, o professor da UERJ, Benilton Bezerra Junior conversou por telefone com a IHU On-Line sobre o tema de sua fala e sobre os desafios da sociedade atual impostos à psicanálise. Na visão de Benilton, “ a psicanálise hoje tem um grande desafio que é o de estabelecer um patamar de diálogo, de confronto e de estímulo recíproco com as neurociências e as práticas baseadas no cognitivismo, que são as duas forças emergentes no campo da atenção ao sofrimento” . Sobre a relação entre religião/fé e psicanálise/ciência, o professor esclarece que “ não há uma espécie de competição por uma hegemonia ou por uma hierarquia entre discursos sobre a fé e discursos sobre as ciências. São maneiras diferentes de abordar a vida e o mundo. Sobretudo em uma coisa: a ciência, por mais que descreva em minúcias a realidade, não oferece nenhum tipo de prescrição sobre como viver a vida. E outros discursos, como o religioso, ou discurso da ética, ou o discurso estético são discursos que proveem esse tipo de coisa, que é absolutamente fundamental para que a vida individual e coletiva exista” Benilton Bezerra Junior é graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina Social e doutor em Saúde Coletiva, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é membro do Instituto Franco Basaglia e atua como docente adjunto do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, e pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito) da UERJ. Ele é autor do artigo "Retraimento da autonomia e patologia da ação: a distimia como sintoma social", publicado no livro Inácio Neutzling (org.), O Futuro da Autonomia: Uma Sociedade de Indivíduos? São Leopoldo - Rio de Janeiro: Editora Unisinos - Editora PUC-Rio, 2009. Confira a entrevista. IHU On-Line - Como os psicanalistas em geral veem a religião? Como eles analisam o confronto entre religião e psicanálise? Benilton Bezerra Júnior – Quando deixamos de lado os psicanalistas teóricos e passamos para os praticantes, os que vivem em contextos sociais específicos, é preciso levar em conta a influência que o quadro cultural aonde eles vivem exerce sobre eles. Então, psicanalistas que vivem num mundo anglo-saxão, por exemplo, onde a presença do cristianismo protestante é bastante presente, ao contrário de outros lugares onde a psicanálise é importante, mas não tem essa influência tão forte na cultura, assim como

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  • 14.10.09 - Mundo

    Entrevista: Psicanlise, religio e cincia: desafios da sociedade contempornea

    IHU - Unisinos

    Adital

    Um dia depois de proferir a conferncia Narrativas de Deus, e a transcendncia hoje:

    uma abordagem a partir da psicanlise , no ltimo dia 15 de setembro, na Unisinos,

    durante o X Simpsio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade ps-metafsica.

    Possibilidades e impossibilidades, o professor da UERJ, Benilton Bezerra Junior

    conversou por telefone com a IHU On-Line sobre o tema de sua fala e sobre os desafios

    da sociedade atual impostos psicanlise. Na viso de Benilton, a psicanlise hoje

    tem um grande desafio que o de estabelecer um patamar de dilogo, de confronto e de

    estmulo recproco com as neurocincias e as prticas baseadas no cognitivismo, que

    so as duas foras emergentes no campo da ateno ao sofrimento . Sobre a relao

    entre religio/f e psicanlise/cincia, o professor esclarece que no h uma espcie de

    competio por uma hegemonia ou por uma hierarquia entre discursos sobre a f e

    discursos sobre as cincias. So maneiras diferentes de abordar a vida e o mundo.

    Sobretudo em uma coisa: a cincia, por mais que descreva em mincias a realidade, no

    oferece nenhum tipo de prescrio sobre como viver a vida. E outros discursos, como o

    religioso, ou discurso da tica, ou o discurso esttico so discursos que proveem esse

    tipo de coisa, que absolutamente fundamental para que a vida individual e coletiva

    exista

    Benilton Bezerra Junior graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina

    Social e doutor em Sade Coletiva, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    (UERJ). Atualmente, membro do Instituto Franco Basaglia e atua como docente

    adjunto do Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, e pesquisador do PEPAS

    (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ao e Sujeito) da UERJ. Ele autor do artigo

    "Retraimento da autonomia e patologia da ao: a distimia como sintoma social",

    publicado no livro Incio Neutzling (org.), O Futuro da Autonomia: Uma Sociedade de

    Indivduos? So Leopoldo - Rio de Janeiro: Editora Unisinos - Editora PUC-Rio, 2009.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line - Como os psicanalistas em geral veem a religio? Como eles analisam o

    confronto entre religio e psicanlise?

    Benilton Bezerra Jnior Quando deixamos de lado os psicanalistas tericos e

    passamos para os praticantes, os que vivem em contextos sociais especficos, preciso

    levar em conta a influncia que o quadro cultural aonde eles vivem exerce sobre eles.

    Ento, psicanalistas que vivem num mundo anglo-saxo, por exemplo, onde a presena

    do cristianismo protestante bastante presente, ao contrrio de outros lugares onde a

    psicanlise importante, mas no tem essa influncia to forte na cultura, assim como

  • na Frana, na Argentina, no Brasil, exercem uma relao de tolerncia, de aproximao,

    de ausncia de necessidade de demarcao muito grande entre os campos da psicanlise

    e da religio. Podemos ver mais facilmente psicanalistas que tm prticas religiosas.

    Num contexto onde isso um pouco diferente, como a Frana, por exemplo, a tendncia

    que se encontre uma resistncia maior temtica da aproximao entre um campo e

    outro. No caso do Brasil se tem um contexto sincrtico muito particular e uma

    facilidade muito grande de transpor fronteiras simblicas em todos os campos. No

    campo religioso isso muito claro. Para a maioria dos catlicos a questo em si menos

    relevante do que em outros contextos. Da mesma forma que os catlicos podem

    frequentar um centro de umbanda, os psicanalistas podem batizar seus filhos e coloc-

    los em escolas catlicas. No caso do Brasil a religio que mais levada em conta neste

    tipo de discusso o catolicismo. Sinteticamente, o que acontece isso, quando se fala

    das pessoas, dos homens e mulheres psicanalistas, estamos falando de seres histricos

    marcados pela cultura em que vivem, pelo tipo de relao que aquela cultura estabelece

    com as religies, a necessidade de naquela cultura haver uma demarcao muito grande

    entre religio e cincia, ou a frouxido com que isso colocado. Se interpelamos o

    indivduo como um psicanalista, ele volta a ser um profissional que vai se ancorar em

    uma teoria que o define como tal. Para milhes de brasileiros, a adeso a um grupo

    religioso uma das poucas formas de construo de laos de pertencimento, de

    afirmao de uma identidade que reconhecida por muitos como vlida, de insero

    social e reconhecimento de vrias pessoas. Sem isso, no conseguimos compreender

    vrios desses fenmenos religiosos de massa no campo brasileiro.

    IHU On-Line - Qual a importncia do valor afetivo da prtica religiosa para o sujeito e

    como isso se relaciona com a psicanlise?

    Benilton Bezerra Jnior Essa questo do valor afetivo da prtica religiosa vem de

    Freud. Apesar de ser bastante crtico s religies de forma geral, e de ser pessoalmente

    um ateu, um judeu sem deus nenhum, Freud via a inevitvel necessidade de todo o

    sujeito construir a sua experincia com base em afetos que sustentem a sua experincia

    de maneira positiva. Se houve uma coisa que Freud ajudou a desmontar foi a ideia que

    se constituiu muito fortemente no sculo XVIII, de que o sujeito um ser de razo, ou o

    sujeito da razo universal o que definiria o ser humano. E Freud foi um dos que disse

    no bem assim . Ele dizia que o homem um ser de razo, sim, mas tambm um

    ser de afeto, de paixo. Nesse sentido, qualquer questo de abordagem do sofrimento

    no podia ser contemplada sem se perceber que elementos o indivduo traz para poder,

    de alguma maneira, configurar, estabilizar, transformar, ampliar a sua experincia

    afetiva do mundo, da vida. Nesse sentido, muitos elementos que ele no considerava

    com simpatia, para muitas pessoas eram absolutamente essenciais.

    IHU On-Line - Como o confronto religio x psicanlise se relaciona com o confronto

    evoluo das espcies (Darwin) x f?

    Benilton Bezerra Jnior O campo da f e o campo da cincia, o campo do mistrio e

    o campo das coisas que so objetivveis para fins de produo de conhecimento, e

    conhecimento produzido para que possamos viver uma vida melhor, so campos

    distintos. Isso faz com que as tentativas, por exemplo, dos cientistas ateus militantes,

    que tentam desmontar o valor da religio (ou tentam provar a inexistncia de Deus, ou

    apontar para a falta de evidncias conclusivas da perspectiva da cincia da existncia de

    Deus ou provar que a f ou a experincia do sagrado nada mais do que, como Freud

  • dizia, respostas neurticas ao sofrimento do desamparo morte) so equivocadas.

    Assim como seria equivocado um telogo tentar explicar com argumentos teolgicos a

    razo de ser da psicanlise e as motivaes dos psicanalistas. No h uma espcie de

    competio por uma hegemonia ou por uma hierarquia entre discursos sobre a f e

    discursos sobre as cincias. So maneiras diferentes de abordar a vida e o mundo.

    Sobretudo em uma coisa: a cincia, por mais que descreva em mincias a realidade, no

    oferece nenhum tipo de prescrio sobre como viver a vida. E outros discursos, como o

    religioso, ou discurso da tica, ou o discurso esttico so discursos que proveem esse

    tipo de coisa, que absolutamente fundamental para que a vida individual e coletiva

    exista.

    IHU On-Line - Como a psicanlise caracteriza o sujeito religioso contemporneo?

    Benilton Bezerra Jnior Essa uma pergunta um pouco difcil de responder, porque

    ela supe que exista o sujeito religioso contemporneo. E essa uma abstrao.

    Existem muitas maneiras dos sujeitos contemporneos se vincularem religio.

    Algumas so bastante prevalentes no mundo atual. Ento, temos os sujeitos que se

    filiam a alguma religio de maneira ainda pr-moderna, se pensarmos nesses nichos de

    religies totalizantes, onde o todo da vida do sujeito governado pela lei sagrada. Alm

    de existir ainda esse tipo de ligao, temos aqueles indivduos cuja relao com a

    religio caracterizado por aquilo que se constituiu nos ltimos 200 anos: so sujeitos

    que vivem a sua prtica religiosa como uma matria de ordem privada, no tm

    ambies de fazer da religio uma espcie de ordenamento da vida pblica, porque ela

    , por definio, laica. Ento, a separao entre Estado e Igreja adotada sem nenhum

    problema, o que faz com que haja comunidades religiosas que convivam

    democraticamente numa sociedade onde a governana geral pe em segundo plano as

    adeses religiosas e as convices, crenas. Esse um modelo esquematicamente criado

    pela modernidade. E h toda uma outra religiosidade ou prticas que se reivindicam

    espirituais que, na verdade, so mais caractersticas desse movimento chamado de ps-

    modernidade. Um psicanalista como eu lida com as pessoas, que individualmente

    contam como foi sua experincia. E tem de tudo. Tem tanto aqueles que vivem a

    religio da forma como Freud descrevia, apenas como consolo e desvio da vida para

    poder suportar o que se vive aqui com vistas a um outro tipo de consolo final mais

    adiante, ou aqueles que aderem s prticas religiosas como quem adere bolsa de

    valores, ou seja, investem para poder depois receber de volta. E tem aquelas pessoas que

    so sinceramente tocadas pela experincia do mistrio, pela experincia da

    transformao que ultrapassa em muito a individualidade. Alm disso, ainda temos

    aquelas outras prticas de origem mais gnstica ou vinculada s religies ou prticas

    espirituais orientais.

    IHU On-Line - Quais so os temas que mais desafiam a psicanlise na sociedade

    brasileira contempornea? A violncia pode ser apontada como um deles?

    Benilton Bezerra Jnior De uma maneira geral, no mundo inteiro, a psicanlise hoje

    tem um grande desafio que o de estabelecer um patamar de dilogo, de confronto e de

    estmulo recproco com as neurocincias e as prticas baseadas no cognitivismo, que

    so as duas foras emergentes no campo da ateno ao sofrimento. De um jeito ou de

    outro, as descries biolgicas cerebrais dos estados mentais, e o desenvolvimento de

    descries de tcnicas de interveno baseadas no cognitivismo, nos ltimos 30 anos,

    cresceram muito na produo de conhecimento, e na crtica muito cida, muito feroz

  • teoria e prtica psicanaltica. Mas alm desse confronto e da tentativa de reduzir a

    importncia da psicanlise, h efeitos inesperados. Por exemplo, para muitos

    neurocientistas Freud se tornou um autor importante, ineliminvel das discusses para

    as pesquisas cerebrais. Alm disso, temos os desafios vinculados crtica social a partir

    de uma perspectiva psicanaltica, ou seja, de compreender as determinaes que

    configuram os processos de subjetivao na sociedade atual que , em muitos aspectos,

    muito diferente da que era quando Freud criou a psicanlise, da que era no ps-guerra,

    quando Winnicott escreveu o que escreveu, diferente, inclusive, de quando Lacan

    produziu a sua obra. A histria no para. E no sculo XXI vivemos em uma sociedade

    que j diferente, que aponta para diferenas enormes, com a produo de

    biotecnologias que deslocam as fronteiras do possvel para muito mais longe do que

    eram h algum tempo. Quais so as consequncias disso na produo dos modos de

    construir identidade do sujeito, dos modos de sofrimento, na maneira como os

    indivduos se relacionam uns com os outros, na maneira como se relacionam, ou no,

    com ideais simblicos, como aderem a ideais imaginrios? Toda essa economia

    psquica, assim como a economia financeira, mudou muito. E este um campo de

    desafio para os psicanalistas, que precisam oferecer descries desse quadro e oferecer

    maneiras de lidar com ele que sejam capazes de sustent-lo como uma teoria e uma

    prtica relevantes para os dias atuais.

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