Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar

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Estilos da Clínica, 2005, Vol. X, n o 18, 82-107 82 Profa. Dra. do Departamento de Psicologia da Aprendiza- gem, do Desenvolvimento e da Personalidade do IPUSP. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Dossiê PRONTUÁRIOS REVELANDO OS BASTIDORES DO ATENDIMENTO PSICOLÓGICO À QUEIXA ESCOLAR Este artigo tem como ob- jetivo apresentar a análise de prontuários de crianças e adolescentes encaminha- dos aos serviços psicológi- cos por apresentarem difi- culdades no processo de escolarização. Constata-se que a psicanálise é o refe- rencial hegemônico dos psicodiagnósticos; as ques- tões escolares pouco com- parecem nos roteirosde entrevistas psicológicas; os testes são os instrumentos principais de avaliação psi- cológica e os encaminha- mentos desconsideram ações no campo educacio- nal. Tais dados indicam a necessidade de repensar as práticas psicológicas fren- te aos encaminhamentos por problemas escolares. Psicologia escolar; infân- cia; adolescência; psico- diagnóstico PSYCHOLOGICAL RECORDS RE- VEALING THE PSYCHOLOGICAL ATTENDANCE OF CHILDREN AND ADOLESCENTS WITH SCHOOL FAILURE This article aims at introdu- cing a piece of research on psychological reports about children and adolescents who presented school failure and were sent to Psychological ser- vice. The main results of the research are: the Psychoanaly- sis is the hegemonic approach of the psycho-diagnosis; the school problems are not regar- ded in the interviews; the main psychological instruments of assessment are psychological tests and the psychological pro- cedures taken do not consider interventions in the educatio- nal field. These results lead us to conclude that it is necessa- ry to rethink the psychologi- cal psycho-diagnostic approa- ch when we are dealing with school failure. School psychology; infan- cy; adolescence; psycho- diagnosis Introdução Diariamente, centenas de crianças e ado- lescentes são encaminhados às clínicas psicológicas por apresentarem os chamados “problemas de aprendizagem” ou “problemas de comportamen- to” (Ancona-Lopez, 1983; Silvares, 1989; Souza, 1996, 2000). Atitudes agressivas, apatia, dificuldades na leitura e na escrita circulam como os principais motivos de encaminhamento em consultórios par- ticulares, clínicas-escola e na rede pública de atendi- mento à saúde mental. O acompanhamento de vários atendimentos e avaliações psicológicas de alunos de escolas públi-

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Estilos da Clínica, 2005, Vol. X, no 18, 82-10782

Profa. Dra. do Departamento de Psicologia da Aprendiza-

gem, do Desenvolvimento e da Personalidade do IPUSP.

Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia

Escolar e do Desenvolvimento Humano.

Dossiê

PRONTUÁRIOSREVELANDO OSBASTIDORES DOATENDIMENTOPSICOLÓGICO ÀQUEIXA ESCOLAR

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Este artigo tem como ob-jetivo apresentar a análisede prontuários de criançase adolescentes encaminha-dos aos serviços psicológi-cos por apresentarem difi-culdades no processo deescolarização. Constata-seque a psicanálise é o refe-rencial hegemônico dospsicodiagnósticos; as ques-tões escolares pouco com-parecem nos roteirosdeentrevistas psicológicas; ostestes são os instrumentosprincipais de avaliação psi-cológica e os encaminha-mentos desconsideramações no campo educacio-nal. Tais dados indicam anecessidade de repensar aspráticas psicológicas fren-te aos encaminhamentospor problemas escolares.Psicologia escolar; infân-cia; adolescência; psico-diagnóstico

PSYCHOLOGICAL RECORDS RE-

VEALING THE PSYCHOLOGICAL

ATTENDANCE OF CHILDREN AND

ADOLESCENTS WITH SCHOOL

FAILURE

This article aims at introdu-cing a piece of research onpsychological reports aboutchildren and adolescents whopresented school failure andwere sent to Psychological ser-vice. The main results of theresearch are: the Psychoanaly-sis is the hegemonic approachof the psycho-diagnosis; theschool problems are not regar-ded in the interviews; the mainpsychological instruments ofassessment are psychologicaltests and the psychological pro-cedures taken do not considerinterventions in the educatio-nal field. These results lead usto conclude that it is necessa-r y to rethink the psychologi-cal psycho-diagnostic approa-ch when we are dealing withschool failure.School psychology; infan-cy; adolescence; psycho-diagnosis

Introdução

Diariamente, centenas de crianças e ado-lescentes são encaminhados às clínicas psicológicaspor apresentarem os chamados “problemas deaprendizagem” ou “problemas de comportamen-to” (Ancona-Lopez, 1983; Silvares, 1989; Souza,1996, 2000). Atitudes agressivas, apatia, dificuldadesna leitura e na escrita circulam como os principaismotivos de encaminhamento em consultórios par-ticulares, clínicas-escola e na rede pública de atendi-mento à saúde mental.

O acompanhamento de vários atendimentos eavaliações psicológicas de alunos de escolas públi-

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cas paulistas tem revelado um conjunto significativo de psicodiag-nósticos de deficiência mental que não se confirmam no contatocom essas crianças, bem como um desconhecimento por parte dopsicólogo, do processo de aprendizagem escolar, do funcionamentodas escolas e das relações ensino-aprendizagem (Machado & Sayão,1996). Os constantes “erros” diagnósticos conduziram-nos a pes-quisar a formação de psicólogos com relação à queixa escolar,especialmente as práticas de atendimento à queixa escolar ensina-das nos cursos de graduação em Psicologia.

Com o objetivo de compreender mais profundamente aspec-tos dessas práticas, optou-se por analisar prontuários de atendi-mento à queixa escolar em clínicas-escola de quatro cursos de Psi-cologia, na cidade de São Paulo. A análise do conteúdo dos pron-tuários permitiu-nos verificar: o referencial teórico adotado pelopsicólogo supervisor do atendimento psicológico; a abordagemdada à queixa escolar; os instrumentos utilizados para o levanta-mento de dados a respeito da queixa escolar e os encaminhamen-tos realizados pelo psicólogo.

Apresentando os prontuários psicológicos

Os registros de atendimento psicológico recebem a denomi-nação de “prontuários psicológicos”. Cada cliente, ao se inscreverna clínica-escola, recebe um número de inscrição e é aberto umprontuário em seu nome. Durante três meses, foi possível estar emcontato com muitas das histórias de vida neles relatadas, com ointuito de compreender as concepções e as práticas de atendimen-to e encaminhamento da queixa escolar. Escolheu-se, para isso, aleitura de vinte e cinco prontuários de queixa escolar. Para analisá-los, focalizou-se dois momentos do atendimento psicológico: orelato das entrevistas de triagem e o relatório produzido no finaldo processo psicodiagnóstico, descrevendo a síntese do caso e pro-pondo seu encaminhamento.

Para realizar essa análise, considerou-se que as perguntas ela-boradas pelos psicólogos no roteiro de entrevista bem como asíntese do caso e seus encaminhamentos revelam as concepçõesteórico-metodológicas utilizadas pelos profissionais para com-preensão e encaminhamento do caso atendido. Compreender taisaspectos, tornou-se o objetivo central das análises. Apresentam-se,a seguir, algumas dessas observações e considerações.

O referencial teórico adotado para o atendimento à queixaescolar faz-se presente desde as primeiras perguntas realizadas du-rante a entrevista de triagem. Ou seja, as perguntas revelam a con-

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cepção psicológica a elas subjacente. Das cinco clínicas-escola pes-quisadas, três delas têm um roteiro de entrevista muito semelhante.Analisando as perguntas efetuadas aos clientes, constatou-se que amaioria das entrevistas utiliza roteiros centrados na história de vidada criança (parto, nascimento, doenças, processo de desenvolvi-mento, acontecimentos traumáticos tais como separação dos pais,hospitalização, quedas, por exemplo), em antecedentes de proble-mas mentais na família, bem como em aspectos referentes à situa-ção sócio-econômica familiar.

A leitura dos prontuários da entrevista de triagem não forneceelementos para construir uma imagem da criança encaminhada.Vê-se presente uma série de dados que se somam, tais como: “an-dou aos dois anos, teve convulsão febril aos oito meses, a gravidezfoi indesejada, viveu vários momentos de hospitalização em fun-ção de problemas de saúde”. Essas informações permitem enxer-gar fragmentos da história de vida dessa criança, sem que se articu-lem de maneira a auxiliar a compreensão dos motivos do encami-nhamento.

Outro aspecto recorrente refere-se à utilização de “jargões es-colares”, nos relatos, tais como, “não sabe nada”, “tem problemade aprendizagem”; “é disperso” e de estereótipos sobre o cliente,“está bem cuidada, limpa, roupa adequada, cabelos penteados”,“o pai é negro, a mãe é branca e Mariana é bem mestiça” que,longe de esclarecer a queixa escolar, denotam uma série de valoresa respeito da parcela mais pobre da população que procura o aten-dimento nas clínicas-escola.

Observa-se que os prontuários referentes às entrevistas de tria-gem são os que apresentam as maiores lacunas no entendimentoda queixa escolar. A maneira como muitas entrevistas são conduzi-das mostram ausências quanto: a) às informações mais precisas arespeito dos atendimentos prévios pelos quais a criança tenha pas-sado; b) à clareza do que de fato se passa com essa criança, utilizan-do-se muitas vezes uma linguagem cifrada, com frases curtas, pou-co descritivas, como um receituário médico; c) à percepção dopsicólogo em relação à relevância desse momento de avaliação.

Observa-se no prontuário que, embora a entrevista de tria-gem seja considerada como um importante recurso para o escla-recimento da queixa, sua utilização, de maneira geral, está muitoaquém do esperado para que se atinja esse objetivo, apresentandoconcepções muito próximas ao senso comum. Ou seja, há umpercurso seguido pelo entrevistador que, na maioria das entrevis-tas analisadas, é padronizado, pré-determinado, repetitivo, previ-sível. O “modelo de entrevista” utilizado impede, portanto, queo psicólogo recupere a particularidade do caso atendido, a diver-

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sidade que, sem dúvida, existe entreas crianças com diferentes queixasescolares. Ao ler uma entrevista, tem-se, em muitos momentos, a impres-são de já ter lido todas.

Uma das instituições pesquisadasutiliza um maior número de entre-vistas de triagem (duas a três) e umaabordagem fenomenológico-existen-cial, possibilitando assim que as ques-tões a serem feitas ao cliente partam,principalmente, do próprio relato docliente e esclareçam a história trazida.Nessa abordagem, as perguntas rea-lizadas na entrevista inicial estão dis-tantes, portanto, de considerar ape-nas as etapas do desenvolvimentopsicossexual freudiano e as patologiase hipóteses calcadas em dificuldadesno âmbito estritamente emocional efamiliar. O que por si só demonstraum avanço na maneira de concebero cliente, partindo de suas necessida-des, articulando hipóteses que ve-nham a esclarecer o seu pedido inicial,estimulando-o a analisar os motivosque o conduziram ao atendimento.A entrevista inicial tem, portanto, umcaráter interventivo, de atendimentobreve, em que o cliente se veja impli-cado no processo de compreensãode suas necessidades.

A maneira de conceber o clientee a sua queixa também se faz presen-te no relatório final produzido sobreo caso. Dos prontuários pesquisados,notou-se um cuidado maior quantoà terminologia, menos acadêmica,mais descritiva e analítica, naquelesque utilizam a abordagem fenome-nológica1. Mas, a leitura dos prontuá-rios leva-nos a considerar que, em-bora a maneira de conduzir a entre-vista amplie as questões e o foco do

olhar a respeito do caso, as hipótesesexplicativas, no caso da queixa esco-lar, ainda são centradas em aspectosindividuais ou familiares de naturezafísica ou emocional. Um dos casosapresentados que serve para ilustrarnosso argumento é o de Marivaldo,uma criança de 10 anos:

“A mãe contou que seu filho vaimuito mal na escola e não consegueler e escreve tudo amontoado. Dizque a criança é calma mas é muito‘sonso’ (sic). Na escola, a professorareclama que ele é muito bagunceiroe não deixa os outros prestarem aten-ção. A professora diz ainda que Ma-rivaldo é pouco interessado nas ma-térias. M. teve uma infecção intestinalquando tinha 8 meses e por isso fi-cou muito tempo internado. Ele tevetambém uma pneumonia muito for-te que também o levou ao hospital.M. só andou com 3 anos e sua mãenunca o levou ao neurologista. De-pois que o menino fez 6 anos, nuncamais teve problemas de saúde. A mãediz que M. levou muito tempo parafalar. Terminamos a sessão pedindoque os pais levassem a anamnese pararesponder em casa.

Impressão pessoal: a mãe deMarivaldo nos contou uma históriade muito sofrimento sobre seu filho;apesar disso, não nos pareceu acredi-tar que essas doenças do filho pos-sam interferir no seu desempenho eaprendizagem. A mãe prefere acre-ditar que o filho é preguiçoso e de-sinteressado”.

Nessa entrevista, os fatos desta-cados centram-se em questões esco-lares, no princípio do relato e emcausas orgânicas e aspectos do de-senvolvimento infantil em um segun-

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do momento. A análise da “impres-são pessoal” do psicólogo leva-nosa crer que esta é a sua hipótese cen-tral: doenças sofridas pela criança nosprimeiros anos de vida, seguidas deperíodos de separação materna, cau-saram os problemas escolares. Refor-ça essa crença o fato de o entrevista-dor não ter feito qualquer perguntaposterior sobre a escola. Embora asquestões propostas pelo psicólogonão sejam relatadas, observa-se umatendência a pesquisar os primeirosanos de vida e a acreditar que o queneles se passou seja a causa dos pro-blemas escolares atuais.

Os relatórios finais de atendi-mento dos casos de queixa escolarchegam basicamente ao mesmo diag-nóstico: as crianças necessitam de aten-dimento em ludoterapia e os pais,atendimento psicoterápico, seja elefamiliar ou individual. Mais uma vezas diferenças presentes no início doatendimento dos casos encaminhadospor queixa escolar se transformam,no final do processo de atendimen-to, em semelhanças.

As solicitações de avaliação psi-cológica feitas pelas escolas são aten-didas pelos psicólogos no formatode laudos psicológicos, na maioria,seguindo o padrão proposto pelaSecretaria do Estado da Educação.Em quatro das clínicas pesquisadas,não foram encontradas alternativas deavaliações psicológicas em relação aoprocesso de escolarização centradasna criança e não apenas em questõesemocionais e individuais. Os relató-rios que se diferenciam dos demaissão os produzidos por somente umadas clínicas-escola em que a aborda-gem ao “problema de aprendiza-

gem” centra-se em modelos constru-tivistas e psicanalíticos, descrevendoas atividades e conquistas da criançana relação de grupo de atendimento.

Os instrumentos de medida

na avaliação diagnóstica

A análise do conjunto de pron-tuários mostra-nos que os testes sãoo principal instrumento de avaliaçãono psicodiagnóstico infantil de pro-blemas escolares. A questão da utili-zação das medidas de inteligênciacomo o principal instrumento de ava-liação psicodiagnóstica, coloca-nosdiante de situações dramáticas emrelação aos encaminhamentos esco-lares, principalmente de crianças múl-ti-repetentes ou que vivem um pro-cesso de escolarização em que nãose acredita em sua capacidade. Ostestes de inteligência, de maneira ge-ral, utilizam itens que têm muitas desuas respostas baseadas em informa-ções escolares. Ao se perguntar a umacriança: “Quem é Gengis Khan?” ouainda “Onde o sol se põe?”, o testede inteligência solicita noções de his-tória da humanidade ou ainda o con-ceito geográfico de pontos cardeais.Atrelados a esses conhecimentos, hádados de pesquisa que mostram oquanto tais crianças, na escola, vivemsituações diárias de perda de auto-estima, o que se reflete numa situa-ção de avaliação psicológica2.

A observação de como os tes-tes refletem muito mais o processode escolarização vivido pela criançado que a capacidade infantil faz-sepresente em um dos casos atendidos

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em “Psicodiagnóstico”. Trata-se deum menino de 8 anos, Jonas, que, apartir dos três meses de escolariza-ção, foi encaminhado para uma ClasseEspecial para Deficientes Mentais.3

No processo de diagnóstico rea-lizado por aluna de quinto ano do cur-so de Psicologia, sob supervisão, emuma das clínicas-escola pesquisada, foiaplicada a Escala Wechsler de Inteli-gência, sendo o seu diagnóstico oseguinte: Jonas apresentou um rendimen-to muito baixo em todos os sub-testes, fi-cando sempre na média esperada para umacriança de 5 anos.

Mas a longa convivência da alu-na com essa criança, durante as ses-sões lúdicas, não confirmou essa de-fasagem apontada pelo instrumentode medida de inteligência, chegandoo mesmo psicólogo a afirmar, de-pois de alguns meses de contato coma criança: Vemos a necessidade de umamelhor investigação nesse caso, pois supomosque Jonas seja pseudo-deficiente mental .

Ou seja, nesse caso, foi possí-vel, após a convivência, observar quea capacidade intelectual e cognitivadessa criança está muito além daquelasuposta pelo resultado do teste deinteligência. Mas o que se observanos prontuários é que, na maioriadas vezes, o que a criança recebe éapenas o psicodiagnóstico e, de pos-se desse primeiro resultado, obtidopor meio de um único teste de inte-ligência, terá selado o seu destinoescolar e a crença, por parte de seusprofessores e familiares, de que é umdeficiente mental.

As medidas de inteligência sãousadas no caso de crianças que, namaioria das vezes, apresentam umahistória escolar conturbada, repleta de

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maus entendidos, ou até produtorade uma cronificação na relação deaprendizagem em que a criança aca-ba sendo convencida de sua própriaincapacidade para aprender. Essahistória está ausente dos prontuáriosdas clínicas-escola. A relação que seestabelece entre psicólogo e clienteparte do que acontece “aqui e ago-ra”. Todo o processo de escolariza-ção da criança encaminhada não étrazido para o atendimento psico-lógico, é negado, é omitido, criandouma leitura fragmentada e simplistadas causas dos problemas escolares.Desconsidera-se, a priori, a comple-xa história de escolarização da crian-ça encaminhada4.

Os prontuários analisados reve-lam que a hipótese central do psicó-logo sobre o encaminhamento quechega até ele, via escola, é a de que acriança é portadora de um proble-ma emocional com origens na rela-ção familiar. É possível afirmar issoa partir da análise dos testes aplica-dos durante o processo diagnóstico.Os testes na sua maioria são projeti-vos, sendo os mais aplicados o H.T.P.,o C.A.T. e o Desenho da Família.

A Psicologia tem utilizado umsaber que estabelece o seu recortesobre o indivíduo, enfatizando aimportância de seu mundo interno,constituído de fantasias, desejos, ha-bitado por mecanismos de proje-ção e introjeção, determinado pe-las relações vividas no grupo fami-liar primário. Essa observação ficaevidente na apresentação dos mé-todos psicológicos de avaliação depersonalidade como o utilizadopelo C.A.T., quando seus autoresafirmam:

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“As ilustrações foram desenha-das para aliciar respostas especifica-mente a problemas de alimentaçãoe, em geral, a problemas orais; parainvestigar problemas de rivalidadeentre irmãos; para esclarecer atitudesconcernentes às figuras parentais e omodo como estas figuras são aper-cebidas; para aprender o relaciona-mento da criança no tocante aos paiscomo um casal, tecnicamente falan-do, referente ao complexo de Édipo,culminando na cena principal: digamos,a fantasia das crianças, vendo os paisjunto na cama. Com respeito a isso, énossa intenção pelo provocar a fanta-sia da criança, no que concerne à agres-são; sobre sua aceitação pelo mundoadulto e seu medo de ficar só à noite,numa possível conexão com a mas-turbação, seu comportamento no ba-nheiro e a reação dos pais a isso” (Be-llak & Bellak, 1967, pp. 5-6).

Baseado no modelo de desen-volvimento psicossexual de Freud,os autores desse teste procuram nacriança os traumas vividos pelo clien-te em cada uma das fases de seu de-senvolvimento, bem como sua di-nâmica frente a situações em queutiliza sua agressão ou ainda comrelação a temas da sexualidade in-fantil. Os autores são claros quandodescrevem o objetivo de seu instru-mento de avaliação:

“O C.A.T. é clinicamente útil emdeterminar quais os fatores dinâmi-cos que podem estar relacionadoscom as reações infantis num grupo,na escola ou jardim da infância, oucom os acontecimentos de seu lar”(1967, p. 6).

Ou seja, por meio das históriascontadas pela criança no C.A.T., o

profissional, segundo os idealizado-res desse instrumento psicológico,poderia analisar que situações domundo interno do paciente podemestar relacionadas com o fato de senegar a escrever, ou brigar com umcolega na sala de aula, ou negar-se air à escola, ou ainda em que fases dodesenvolvimento psicossexual as re-lações por ela vividas foram traumá-ticas, hostis e vividas como cenas deviolência e agressão.

No caso do processo de escola-rização, essa interpretação desconsi-dera pelo menos dois fatos. O pri-meiro é o de que a relação profes-sor-aluno constrói-se no dia-a-dia dasala de aula e que pode mobilizar sen-timentos e criar novas possibilidadesde representação da criança sobre simesma e sobre a escola. Nesse senti-do, pode-se exemplificar com pelomenos dois trabalhos. Na pesquisa deCruz (1987), mostrando o quanto ascrianças ingressantes vêm para a es-cola com uma série de expectativasque vão sendo desmontadas e mo-dificadas na relação com a professo-ra. No trabalho de Machado (1994)com crianças de classe especial, emque a possibilidade de pensar juntocom elas o lugar de deficientes emque foram colocadas nessa escola fezcom que a maior parte entendesse oque é uma classe especial, reconsti-tuísse o percurso de seu encaminha-mento para essa classe, questionasseo rótulo de deficientes a elas imputa-do. A participação da professora nes-se processo possibilitou mudanças narelação com as crianças, como indi-víduos que pensam, sentem, refletemsobre a sua realidade. Essa nova re-lação resgatou nas crianças o desejo

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e a capacidade de aprender, dife-rentemente do que o rótulo de “es-pecial” possibilitaria que acreditassem.

E, em segundo lugar, tal inter-pretação desconsidera a escola histo-ricamente construída, cuja complexi-dade transcende a relação professor-aluno. Embora a escola tenha comoum de seus principais objetivos serum espaço de socialização do saber,a sua inserção se dá numa determi-nada sociedade, com uma organiza-ção política, social e econômica es-pecífica, sendo, no caso brasileiro,fortemente marcada por preconcei-tos sociais, principalmente em rela-ção às famílias mais pobres.

O fato de uma criança perten-cer a determinado bairro, freqüentardeterminada escola, ser consideradacomo incapaz de aprender em fun-ção de sua condição de vida, estámuito mais próximo dos motivosque a levam ao fracasso escolar doque de dificuldades que possa apre-sentar na relação com o aprender. Eo que as pesquisas vêm mostrando éque grande parte dessas dificuldadesse produz na escola, pela inadequa-ção do tratamento conferido a essacriança5.

Não se quer afirmar, no entanto,que não existam problemas emocio-nais graves. Mas sim que estes nãorecaem sobre a maciça maioria decrianças das nossas escolas (públicase privadas) e que mesmo que tais pro-blemas aconteçam, as experiências re-centes mostram a importância do es-paço pedagógico como um elemen-to estruturante do psiquismo e pro-motor de relações mais saudáveis6.

Outro aspecto importante a serpensado é que, mesmo que se cons-

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tatasse por meio de um psicodiag-nóstico que as questões emocionaisde origem familiar estivessem inter-ferindo profundamente na relaçãodessa criança com o conhecimento,impedindo-a de aprender, é funda-mental pensar que ações pedagógi-cas podem ser inseridas nesse con-texto. Pois, simplesmente afirmarpara o professor que o seu alunoapresenta um distúrbio emocional,em geral, paralisa a ação pedagógica.

Chama também a atenção que,embora na formação de psicólogos,os alunos tenham contato com auto-res e concepções que analisam a quei-xa escolar numa perspectiva piageti-ana, como a de Sara Paín (1986), oupsicanalítica, como a de Alicia Fer-nández (1990; 1994), ou ainda façamleituras institucionais (Bleger, 1963;1971; 1984; Saidon, 1987), ao se de-frontarem com uma criança que che-ga na clínica-escola com uma queixaescolar, não utilizam esses instrumen-tos nem para a análise nem para odiagnóstico das queixas escolares quesão a eles encaminhadas.

Pode-se observar esse fato ana-lisando o número de avaliações psi-codiagnósticas que utilizam provas“pedagógicas” ou ainda “piagetianas”ou que apresentem alguma “análiseda instituição escolar”. A leitura dosprontuários mostra a inexistência dequalquer informação sobre a relaçãoinstitucional que tenha produzido aqueixa. Essa constatação permite le-vantar a hipótese de que o que nor-teia o processo psicodiagnóstico nãoé o conhecimento sobre a criançaarticulado por alunos e professores,no decorrer do curso de Psicologiae sim, muito mais, a concepção di-

agnóstica e terapêutica do supervi-sor ou do grupo de supervisores coma qual o aluno acaba não tendo comocontrapor outros saberes acumuladosdurante o curso.

Outra hipótese que se pode le-vantar para explicar a utilização deum único modelo de análise da quei-xa escolar está na cristalização de ummodelo diagnóstico consideradocomo “clássico” e que acaba nãosendo questionado pelo profissional,pois é “algo que todos os psicólo-gos fazem”, demonstrando que aspossíveis críticas são engolidas poruma prática clínica cotidiana. Os tes-tes psicológicos parecem revelar, naverdade, as concepções dos psicó-logos, a maneira como acreditampoder conhecer um sujeito, que,como se viu no caso de Jonas, foireduzido primeiramente a “objeto”,pela padronização de um instrumen-to de avaliação psicológica, para sóentão, após uma longa convivênciaser “re-conduzido” pelo psicólogoao seu lugar de sujeito, que _ malsabia o psicólogo _ ele nunca haviadeixado de ser. Os testes psicológi-cos, portanto, só são usados para daro aval “científico” a explicações (re-lações causais) que preexistem aoexame psicológico7.

Um belíssimo relato das possi-bilidades muito maiores de investi-gação psicológica e que permite quea criança pense sua condição numarelação humana é descrito por Ma-chado (op. cit.). Trata-se do caso deAndressa, uma criança de apenas 8anos e que freqüentava a classe espe-cial. A mudança do referencial teóri-co permite mudar as perguntas e pro-piciar de fato uma análise da situa-

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ção de “objeto” a que sujeitos sãoconstantemente submetidos pelas ins-tituições de ensino e de saúde. Nocaso de Andressa, um psicodiagnós-tico que não levou em conta a crian-ça que ali estava e sim os resultadosdessa mediação por meio de testesde medida, concluiu que tivesse “ida-de mental de 4 anos” e pior do queisso, a maneira como isso foi dito àmãe dela, permitiu que ela ouvisse eentendesse que era portadora de umadoença chamada “idade mental”.

Considerado como o seu segre-do mais íntimo, sua condição passaa ser desvelada à medida que a rela-ção de confiança se estabelece coma psicóloga. Ao contar seu segredoe, ao mesmo tempo, esclarecer parasi mesma algo que havia ouvido atrásda porta ou até numa entrevista “de-volutiva” de um psicólogo, desnudaos bastidores de nossas salas de aten-dimento psicológico, em que sãoproduzidos laudos coerentes com osinstrumentos mambembes de medi-da diariamente utilizados para afir-mar a deficiência.

Como os dados escolares

comparecem nos prontuários

Os dados escolares compare-cem de duas maneiras nos prontuá-rios analisados: por meio de questio-nário respondido pelo professor dacriança encaminhada e por meio davisita escolar.

Nos prontuários de atendimen-to à queixa escolar de uma das clíni-cas que atende especificamente “pro-blemas de aprendizagem”, é condi-

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ção de permanência da criança no atendimento que o professorresponda um questionário com informações detalhadas sobre seualuno. Estas informações são analisadas durante o processo psico-diagnóstico. Observa-se, porém, que, no relato final do caso, amaioria das questões apresentadas baseia-se em situações vividaspela criança com os psicólogos na situação de atendimento, sub-utilizando-se, portanto, em muitos aspectos, a detalhada ficha in-formativa do professor ou, ainda, não estabelecendo um “diálo-go” entre o que foi produzido no atendimento psicológico e asinformações escolares.

Nas clínicas-escola que utilizam a abordagem de psicodiag-nóstico interventivo, os alunos realizam uma entrevista escolar comoparte do processo de avaliação diagnóstica. Embora a inclusão daescola no levantamento de dados para a compreensão da queixaescolar se faça presente, as visitas escolares ainda são consideradaspelo estagiário (e seu supervisor) muito mais como um dado a seracrescentado a respeito da criança. Apenas nesse momento do pro-cesso psicodiagnóstico as perguntas sobre a escola se fazem pre-sentes. Durante todo o processo de entrevista, mesmo que a queixaseja escolar, o que norteia o olhar do psicólogo é principalmente aquestão emocional na relação familiar e no mundo interno infantil.

Embora parte dessas afirmações seja trazida pelos pais e pro-fessores aos psicólogos, pouco se faz durante as entrevistas paraesclarecê-las. A concepção de que na entrevista o foco deve ser oaspecto emocional do cliente, impede que perguntas a respeito doque se passa na escola sejam feitas, que se esclareçam situações ab-surdas constatadas nas queixas apresentadas inicialmente.

São constantes, por exemplo, os casos em que a criança nãofreqüenta a escola e isso ocorre em várias idades e em diversassituações. Um dos casos é de uma menina de 14 anos. Essa adoles-cente, dos 4 aos 13 anos foi medicada pelo neurologista, por serconsiderada “nervosa e brava”. Segundo sua mãe, aos quatro anos,Cláudia “quebrava tudo, rasgava a roupa do corpo, chorava, mor-dia o braço”. Aos 14 anos fez um eletroencefalograma e “não deunada”, ou seja, não apresentou nenhuma alteração nas ondas cere-brais que indicasse a necessidade de medicação. Durante todos es-ses anos, Cláudia ficou fora da escola, pois, segundo o relato damãe, “a escola também achava que ela era nervosa e brava”. Em-bora a mãe a considerasse normal, a sua volta à escola não aconte-ceu. A mãe apresenta essa situação, mas não há qualquer interferên-cia da psicóloga a respeito de um fato tão inusitado. A entrevista detriagem segue com o psicólogo perguntando a respeito da organi-zação familiar, de dados do desenvolvimento infantil, do lugar queessa criança ocupa na familiar, enfim, não esclarecendo a própria

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queixa ou ainda procurando enten-der as explicações referentes à nãoescolarização.

Outro caso é de uma criança de7 anos, Rogério, que, segundo relatasua mãe:

« foi à escola mas a professora não oqueria, tentaram por uma semana e foi reti-rado. Durante essa semana que permaneceuna escola andava por baixo das cadeiras.A professora escrevia na lousa e ele logoapagava, todos os alunos prestavam atençãonele, menos na aula, por isso foi convidado ase retirar ».

Com apenas uma semana deaula, esse aluno é considerado comouma criança impossível de ser con-trolada. Nenhuma das perguntasque vêm em seguida na entrevistade triagem esclarecem o que se pas-sou na escola, ou levanta hipótesesa respeito da impossibilidade depermanência dessa criança em salade aula. Antes de entender maisdetalhadamente o que se passou narelação escolar, ou ainda perguntarà mãe se essa atitude também ocorreem casa e em que condições, porexemplo, essa criança foi encami-nhada para o neurologista.

Neste caso, também, o psico-diagnóstico realizado não considerouqualquer aspecto a respeito da histó-ria de escolarização dessa criança, queexpectativas levava para os primei-ros dias de aula, como era a escolaque o recebeu. Muito menos se fa-zem presentes questões relativas à in-constitucionalidade da exclusão des-sa criança da escola, sendo responsa-bilizados nesse caso a direção da es-cola e os pais. O mínimo que se es-pera do psicólogo é que esclareça osdireitos que os pais têm nesse mo-

mento, dizendo a quem recorrer numcaso em que a escola se nega a man-ter a matrícula de um aluno em ida-de escolar. O que se observa é que aconcepção de que o problema estáno aluno, em seu psiquismo e em suasrelações impede que tais direitos bá-sicos sejam considerados e inseridosno atendimento psicológico.

Uma grande parte dos prontuá-rios não indica sequer o nome dasescolas que os encaminham, reforçan-do mais uma vez o argumento deque a questão individual e familiarsuplanta qualquer concepção críticasobre o que se passa na escola.

Esse relato, assim como outrosa ele somados, permitem observar aimportância das concepções presen-tes na formação do psicólogo e oquanto os processos patológicos,quer orgânicos, quer emocionais, sãoevocados para explicar o chamado“problema de aprendizagem”.

Em algumas clínicas-escolas,chamou a atenção também a exis-tência de vários prontuários da mes-ma escola. Um dos grupos de pron-tuários era de quatro alunos todosda mesma classe, com um pedidode avaliação para freqüentarem aclasse especial. O encaminhamentodessas crianças foi feito pela profes-sora substituta, pois a titular adoe-cera e havia se afastado para cuidarde sua saúde. Os casos foram trata-dos separadamente e a questão dasubstituição do professor e as difi-culdades de adaptação, que certa-mente advêm numa situação comoessa, não foram consideradas pelopsicólogo e os encaminhamentos fo-ram tratados como problemas in-dividuais.

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Nesse sentido, constatou-se queuma das clínicas pesquisadas come-çou a dar atenção a essa questão. Oprocedimento adotado é organizaras queixas por escola e encaminhá-las para a área de Psicologia Escolar,com o objetivo de realizar algum tra-balho de atendimento à escola, res-ponsável por tantos alunos para ava-liação psicológica. Esse fato mostrao início de um outro enfoque à quei-xa escolar, abrindo espaço para aten-dimento clínico a outras demandas.

O desconhecimento pelo psicó-logo do processo de leitura e escritabem como a ausência de atenção aoprocesso de escolarização têm pro-duzido uma série de equívocos gra-ves no atendimento às queixas esco-lares. Em muitos trechos dos pron-tuários analisados, observa-se que asquestões escolares passam a ser tra-tadas como meros problemas indi-viduais, familiares e de natureza físi-ca ou emocional.

Esse é o caso do encaminhamen-to de Artur, um adolescente de 12anos que cursava a segunda série.Com histórias sucessivas de repetên-cia, é um aluno que, segundo sua mãe,“ainda gosta da escola”. Aos trêsanos, teve uma encefalite e emboranão apresente seqüelas, foi encami-nhado pela escola para atendimentopsicológico. Em seu prontuário, Ar-tur escreve a seguinte frase « Eu sitoupedito para saber poque eu nau cosigo misaibei na sicola ». Embora esse aluno tra-ga um pedido explícito _ quer saberporque não se sai bem na escola _mais uma vez o seu pedido foi frus-trado, pois contrariamente ao quedeseja, o seu psicodiagnóstico afir-ma: Artur está comprometido intelectual-

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mente devido a suas questões afetivas. Nãoconsegue se desenvolver intelectualmente poisapresenta dificuldades emocionais, no sentidode paralisar toda e qualquer produção.

Na continuidade do diagnóstico,a psicóloga (aluna do quarto ano dePsicologia e sua supervisora) analisaas dificuldades de elaboração de con-flitos relacionados com as figurasparentais. No caso de M., foram apli-cados a Escala Wechsler de Inteligên-cia - WISC, o Teste de ApercepçãoTemática-Infantil - C.A.T. e Casa, Ár-vore, Pessoa - H.T.P.; como de pra-xe, o adolescente foi encaminhadopara psicoterapia e os pais para tera-pia familiar.

A afirmação psicológica de queesse aluno tem “toda e qualquer pro-dução paralisada” por problemasemocionais não se confirma com afrase escrita pelo próprio cliente du-rante o processo psicodiagnóstico.Ao escrever uma frase, demonstra oseu nível de produção escrita, o quan-to consegue se expressar por meiodesse instrumento de comunicação, acomplexidade do texto produzido, aestrutura correta utilizando sujeito,predicado e complementos, a utiliza-ção da letra maiúscula no início dafrase, o ponto final, utilizando inclu-sive a conjunção porque, ou seja, co-nhecendo esse recurso da língua paraligar duas frases que se relacionam.As trocas de letras que comete (“se-cola” em vez de “escola”), ou aindaa junção de palavras (“misai” em vezde “me sair”) mostram que o alunonão dominou ainda alguns aspectosdo processo de aquisição da escritaque precisam ser mais trabalhados emclasse pelo professor, assim como aquestão ortográfica8.

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Por outro lado, o pedido em siaponta um movimento para modi-ficar o que existe, entender o que sepassa em relação à escola. Contrário,portanto, ao diagnóstico de paralisiaou de comprometimento intelectualafirmado no relatório de avaliação.

Há ainda um grande desconhe-cimento a respeito do que se passana escola, incluindo informações le-gais, fundamentais para um profis-sional. Isto ocorre em relação às clas-ses especiais, por uma parte dos su-pervisores que orientam os atendi-mentos de avaliação psicodiagnósti-ca com a finalidade de encaminha-mento para salas de educação espe-cial. Esse é o caso de Paulo, um me-nino de oito anos que cursa pelo se-gundo ano consecutivo uma classeespecial. Esse menino foi conduzidoa essa sala por apresentar epilepsia,embora seja medicado e não apre-sente manifestações convulsivas, se-gundo seu prontuário.

Essa criança é atendida na clíni-ca-escola e em nenhum momento dorelatório se faz qualquer referência aofato de esse menino freqüentar essasala. Não há qualquer questionamen-to sobre o “encaminhamento” arbi-trário dessa criança para uma sala es-pecial. Considera-se o procedimen-to arbitrário, pois a decisão para queuma criança passe a freqüentar umaclasse especial era regida, na ocasiãoem que tais prontuários foram anali-sados, pela Resolução da Secretariado Estado da Educação9, devendoser observados os seguintes critérios:ter no mínimo dois anos de escolari-dade, uma avaliação psicológica dedeficiência mental leve e um parecerpedagógico. No caso em exame, Pau-

lo passou a ser aluno dessa “sala es-pecial” no início do seu processode escolarização, a partir de suposi-ções provavelmente baseadas em suahistória neurológica, mesclada com ospreconceitos que tais distúrbios car-regam, sem que houvesse qualquermenção dessa questão durante o aten-dimento psicológico.

Esses mesmos profissionais co-nhecem ou imaginam uma classeespecial hipotética com professoresidealizados, muito diferentes daque-les que existem na realidade da esco-la pública. Os próprios testes psico-lógicos em seus manuais defendemessa mesma hipótese.

O desconhecimento do queacontece na escola faz com que mui-tos psicólogos dêem pouca impor-tância à força do laudo psicológicono meio educacional. Como analisouPatto (1990), nos estudos de casos demúlti-repetentes, a avaliação de umprofissional de Psicologia “sela des-tinos”. O laudo psicológico é umparecer técnico, ele é entendidocomo um instrumento definitivo querevela as verdadeiras causas psíquicas.As conseqüências da utilização desseinstrumento na escola são as maisdiversas, mas em geral, todas elascontrárias ao fortalecimento doaprendizado e reforçadoras da estig-matização que as crianças vêm sofren-do na escola.

Os prontuários levam a consi-derar uma outra questão, não menosgrave que as anteriores: um númeromuito grande de crianças é encami-nhado às clínicas-escola com a solici-tação de avaliação psicológica para aclasse especial para deficientes men-tais. O que se pode observar é que

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em praticamente nenhum prontuário se faz presente a história deescolarização dessas crianças e/ou adolescentes. A análise dos pron-tuários permitiu observar que o quadro muitas vezes confuso apre-sentado pela escola e/ou os argumentos pouco convincentes apre-sentados pelos professores, em geral, não são questionados pelospsicólogos, reforçando os maus entendidos a respeito do encami-nhamento e mantendo a criança numa sala de aula em que minima-mente ela irá se beneficiar 10.

Todavia, alguns profissionais começam paulatinamente a seapropriar da discussão em torno das classes especiais e iniciam umprocesso de inclusão com, pelo menos, uma visita a essas classes.Ou seja, saem da posição de considerar uma sala de aula idealizadae pensada para atender às necessidades das crianças mais lentas oudaquelas que precisariam de uma atenção individualizada do pro-fessor, para de fato conhecer o que se passa nessa sala, para a qualele pretende encaminhar uma criança que seria portadora de umadeficiência mental.

Nas entrevistas realizadas com profissionais, tanto da área clí-nica quanto da área escolar, há relatos de que pelo menos estáimplantada a dúvida quanto ao encaminhamento. Mas, ainda seespera muito dos pais em relação a mudanças na escola, sem quese vislumbre a possibilidade, como psicólogos, de também parti-cipar da discussão do que tais classes efetivamente estão produzin-do no processo de escolarização das crianças consideradas comopessoas com necessidades especiais.

Outra questão em relação aos encaminhamentos para a classeespecial refere-se à inexistência do acompanhamento dessa criançaem sala de aula pelo psicólogo. Na maioria dos casos, o psicólogopede para que os pais façam esse trabalho, desconhecendo as difi-culdades do relacionamento entre escola e pais, principalmentequando a escola não permite a participação deles em seu dia-a-dia.As práticas existentes atualmente não prevêem acompanhamento.O profissional, desconhecendo o que irá acontecer com o seu en-caminhamento no interior da escola e não realizando outra avalia-ção posterior que revise aspectos apontados como dificuldades ouainda que analise as vantagens desse lugar educacional para essacriança está compactuando com a manutenção e a cristalização derelações educacionais que acabam por excluir a criança da possibi-lidade de pensar (Machado, op.cit.).

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A relação entre problema emocional e

aprendizagem escolar

A explicação de que problemas emocionais causam o não apren-dizado na escola é uma concepção corrente entre professores e psi-cólogos. Dos psicodiagnósticos analisados, a grande maioria partede uma hipótese de caráter emocional para analisar o caso, utilizandoinstrumentos que visam a explorar mais profundamente essa hipóte-se e chegam a conclusões que referendam a hipótese inicial. Emboranas entrevistas, os supervisores dêem ênfase na construção de um“raciocínio clínico” com seus alunos, o que se observa nos prontuá-rios é um “raciocínio circular”, em que se parte de um ponto (hipó-tese de que o problema é emocional), chegando a ele ao final dopercurso psicodiagnóstico11. Ilustrando nossa análise, verificam-seconstantemente nos prontuários as seguintes afirmações: Criança comum nível intelectual adequado para a idade, com fatores emocionais e dedinâmica familiar prejudicando seu comportamento e comprometendo suainteração social.

Os tratamentos propostos são coerentes com essas afirma-ções e concluem: Torna-se necessário um trabalho psicoterápico individualpara que este menino possa ter seu ego fortalecido, adquirindo desse modo maisconfiança em seu potencial, tornando-se desse modo mais seguro e menos defendidoem seu relacionamento com o outro e com o mundo (Diagnóstico de umacriança encaminhada para a classe especial, com 8 anos de idade eque cursava a segunda série do primeiro grau).

Um caso que exemplifica essa questão é o de um menino, Carlos(9 anos) que cursa a terceira série, repetente na primeira e “muitofraco”, segundo o relato de sua mãe. Após sua primeira reprova-ção, consta em seu prontuário que foi considerado como uma crian-ça com deficiência mental leve: (...) dependente da mãe, vendo-se a necessi-dade de dar continuidade ao atendimento de terapia psicomotora, com o objetivode trabalhar seus conflitos internos, para dar-lhe apoio para desprender-se darelação estabelecida intensamente com a mãe, possibilitando a busca de maiorautonomia em seu desenvolvimento.

Conclusão: O paciente demonstra sua dificuldade em manter relaçõessaudáveis em sua vida, e mesmo com o trabalho em cima da questão, faz-senecessário a continuidade do atendimento em terapia psicomotora para queelabore uma imagem mais íntegra de si mesmo, o que favorecerá sua relaçãocom o mundo, sem que este seja persecutório, onde C. tem que ser problemapara se defender desse mundo tão ameaçador e superior a ele.

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Encaminhamento: continuidade no

ano seguinte

O desconhecimento da importância das relações institucionaisna produção do chamado “problema de aprendizagem” é umadas mais sérias lacunas na formação do psicólogo atualmente.Embora a queixa seja a dificuldade na leitura e na escrita, todo oencaminhamento feito pelo psicodiagnóstico e pelo atendimentopsicoterápico centra-se em aspectos emocionais, acreditando-se que,ao modificar sua relação com a mãe ou conseguir “lidar melhor”com seus conflitos internos, a criança melhorará sua “performan-ce” escolar. O que se percebe é que as questões escolares parecemestar circunscritas às disciplinas de Psicologia Escolar, quando mui-to. Ou seja, há uma dicotomia na formação profissional entre asáreas, utilizando-se muito pouco do conhecimento produzido arespeito de uma questão tão relevante quanto o processo de esco-larização e o que este envolve.

Algumas conseqüências do processo

psicodiagnóstico

Um importante debate iniciado em 1989 no Conselho Regio-nal de Psicologia-06 colocou o psicodiagnóstico em questão pormeio de uma pergunta bastante instigante: Psicodiagnóstico: instru-mento de revelação? Nessa ocasião, participaram do debate trêspsicólogos, professores de cursos de Psicologia, discutindo a rele-vância desse instrumento de avaliação. Para finalizar a análise dosprontuários, serão utilizados trechos desse debate por se conside-rar que a profundidade das discussões presentes é extremamenteatual e relevante para a questão: como a queixa escolar é entendidae atendida no curso de Psicologia.

Uma das afirmações feitas pelo psicanalista Telles (Camillo et.al. 1989:204):

“Quando se impõe um caminho prévio de pesquisa a umobjeto que acaba de ser instaurado como um campo a ser obser-vado faz-se necessariamente um recorte apriorístico do mesmo, detal modo que as conclusões obtidas têm mais a ver com a especifi-cidade do método do que com o objeto propriamente dito”.

É possível verificar a veracidade dessa afirmação, quando sefaz a leitura das entrevistas de triagem e dos relatos de psicodiag-nósticos infantis, com tendência à repetição das perguntas, das aná-

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lises, dos diagnósticos e dos encaminhamentos propostos. Todosapresentam uma linguagem monocórdica que leva fatalmente a umdiagnóstico também previsível. O método de abordagem da quei-xa escolar acaba apresentando um modelo único que nos fala mui-to mais daquele que o criou e o utiliza do que do próprio sujeitoobjeto da análise psicológica. Como afirma Camillo (1989):

“O psicodiagnóstico e seu produto final, que é a descriçãodiagnóstica, permite identificar, entre outros atributos, o tipo deorientação ideológico-científica a respeito da causação do com-portamento humano que o diagnosticador adota” (p. 201).

No caso dos prontuários analisados, constata-se fortementeaquilo que o autor denomina de correntes do idealismo subjetivo,em que “as formas e os movimentos visíveis exteriores dos corposem geral têm interesse apenas secundário, como indicadores ousintomas do funcionamento de substratos imaginários internos”,representado pelo modelo “médico-mentalista” em que se consi-dera possível realizar um “diagnóstico da mente”, em que os deter-minantes sociais e históricos apenas são aspectos secundários à com-preensão do indivíduo.

As análises dos atendimentos de psicólogos frente à queixaescolar têm mostrado um modelo teórico predominante em rela-ção às crianças que apresentam dificuldades de escolarização: umaconcepção que entende a queixa escolar como um problema indi-vidual ou familiar, pertencente à criança encaminhada e à sua famí-lia, no qual a escola tem pouca ou nenhuma parcela de participação.A causa da queixa escolar, na maioria das práticas psicológicas, éentendida como um problema de âmbito emocional que se revelano início do processo de escolarização em função dos desafiosapresentados nessa etapa do desenvolvimento da criança. Ou ain-da, o que se passa com a criança na escola é um sintoma dos con-flitos vividos internamente por ela ou tem sua origem em proble-mas neurológicos ou no rebaixamento intelectual, evocando paratanto, termos extraídos de autores da psicanálise.

Com base nessas crenças, as práticas psicodiagnósticas estrutu-ram-se em um conjunto de avaliações que dariam, segundo seusseguidores, um quadro mais completo do que se passa no psiquis-mo e nas diversas áreas mentais do indivíduo com ele relacionado.Os testes psicológicos (de nível intelectual, de percepção viso-mo-tora, projetivos) são o principal instrumento psicológico utilizadonesse processo avaliativo.

A principal conseqüência das concepções mencionadas resideno fato de se manter uma Psicologia a serviço da exclusão socialdessas crianças. Ao considerar que as causas da queixa escolar en-contram-se no psiquismo (problemas emocionais), ou no rebaixa-

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mento intelectual (deficiência mental), que _ é importante ressaltar_ a maioria das vezes as crianças não têm, continua-se eximindo osistema escolar da participação e/ou produção dessas dificulda-des. Desconsiderar a produção do fracasso no conjunto de rela-ções do processo de escolarização, dificulta propor ações que ve-nham a modificar, pelo menos minimamente, as relações escolares.Comparando-se as taxas de reprovação das escolas particulares nacidade de São Paulo com as taxas de reprovação nos bairros peri-féricos, fica claro que não é possível atribuir essa discrepância atantos problemas emocionais das crianças mais pobres. Seria comoafirmar que entre as crianças aprovadas das escolas particularesnão existissem problemas e conflitos psicológicos.

Chama a atenção o tema da “deficiência mental leve”, defi-ciência essa que, segundo as padronizações de testes de inteligência,parece ser endêmica entre as crianças das classes populares. Comofoi discutido anteriormente, há vários fatores que permeiam a ava-liação de tal “deficiência”, destacando-se o conjunto de desencon-tros presentes na história escolar dessas crianças12.

Um aspecto apontado anteriormente em pesquisas em rela-ção ao discurso dos pais frente ao fracasso escolar de seus filhos(Patto, op.cit. e Kalmus e Paparelli, 2004) reproduz-se também nosprontuários das clínicas-escola: os pais, de maneira geral, chegamao psicólogo convencidos de que seus filhos sejam portadores dealguma problema por não aprenderem a ler e escrever. O discursoda escola vai paulatinamente sendo assimilado pelos pais, deposi-tando sobre o aluno a incapacidade para o aprendizado. Observa-se tal processo na medida em que, em muitos prontuários analisa-dos, os pais apresentam hipóteses orgânicas ou calcadas em episó-dios de queda, fraturas em partes do corpo, hospitalização, doen-ças infecto-contagiosas como pneumonia ou diarréia e suas rela-ções com o não aprendizado da leitura e da escrita. E aqueles paisque ainda não estão convencidos da incapacidade de seus filhos oudos problemas emocionais e cognitivos ou o fazem no decorrerdo processo psicodiagnóstico ou são considerados pelos psicólo-gos como “resistentes ao tratamento”.

Outra questão que chama a atenção é a distância entre o tem-po clínico e o tempo escolar. Para o atendimento clínico, o temporeal é algo que não se problematiza, quando se trata de queixaescolar, ou seja, acredita-se estar respeitando o tempo da criançadurante o tratamento, seu ritmo, seu processo de elaboração. En-quanto isso, a defasagem série/idade da escola continua se apro-fundando. No caso de um aluno da classe especial, entre a data doencaminhamento para o psicodiagnóstico, o atendimento em lu-doterapia e seu posterior encaminhamento para o atendimento psi-

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copedagógico, passaram-se dois anose meio até que sua saída da classe es-pecial fosse aconselhada pelo psicó-logo. Isto significa que esse aluno re-tornou à classe comum aos 10 anose meio, com uma defasagem de apro-ximadamente três anos de escolari-dade, tempo necessário para termi-nar a quarta série do primeiro grau.

A análise do processo psicodiag-nóstico e de suas conseqüências per-mite refletir também sobre o “po-der do psicólogo” ao utilizar um ins-trumento de avaliação, sobre o signi-ficado da produção de um laudopsicológico, sobre o que significa darum parecer psicológico a respeito deum indivíduo, objeto de avaliação.

Essa reflexão remete a Foucault(1989), quando analisa a mudançadas relações de poder na História.Segundo ele, na Idade Média, a for-ma de poder se baseava no inquéri-to, ou seja, a verdade era produto detestemunhos de indivíduos conside-rados como os que detinham o sa-ber sobre o fato (ou porque o pre-senciaram ou por possuírem legitimi-dade social). No século XVIII, a for-ma de organização do poder socialcorrelaciona-se à forma de se orga-nizar o espaço (a separação do cri-minoso, do doente mental, do doen-te físico), bem como vigiar os indiví-duos e seus comportamentos. Nocaso das Ciências Humanas, instau-rou-se a prática do “exame”, isto é,passava a ser possível que um deter-minado profissional, com legitimida-de social, avaliasse o indivíduo, basea-do em normas, regras, padrões pré-estabelecidos.

Frayze-Pereira (Camillo et. al.,1989:215) analisa o poder do psico-

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diagnóstico, utilizando-se da concep-ção foucaultiana da sociedade disci-plinar:

“Trata-se de um saber sobre osindivíduos que nasce da sua observa-ção, da sua classificação, da análise deseus comportamentos, da sua com-paração etc. O exame transformacada indivíduo num caso e, portanto,num objeto de conhecimento. O exa-me opera uma transformação nomodo de manipulação do poder.(...)O poder disciplinar inverte essas re-lações; é ele que busca a invisibilida-de, impondo a seus objetos o máxi-mo de visibilidade que é correlata àvigilância.”.

É essa “invisibilidade” que sepretende questionar, ou seja, as açõespsicológicas são visíveis por meio dasconseqüências que operam nos indi-víduos, nas crianças e em seus pais,participando da exclusão, da estigma-tização e da desigualdade social, im-possibilitando que tais crianças e ado-lescentes tenham acesso à cidadania,aos direitos sociais mínimos garanti-dos e reconhecidos como legítimosem todo o mundo.

No caso específico da queixaescolar, a visibilidade se expressa namanutenção de uma escola sabida-mente excludente13. Não questionara origem do encaminhamento, nãoconsiderá-la na prática de atendimen-to, apesar das melhores intenções quepossam ter os psicólogos, é partici-par do processo de exclusão escolarde nossas crianças e adolescentes.

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NOTAS

1 O prontuário contém todas as entrevistas etestes (procedimentos) utilizados para aten-der o caso. Ao final de cada entrevista, oestagiário escreve a sua “impressão pessoal”sobre o caso, momento em que elabora suasprimeiras observações e hipóteses sobre o queacontece a partir da queixa relatada.2 A respeito do processo de perda da crençana própria capacidade de aprender, ver Sil-via Vieira Cruz (1987 e 1994).3 Neste caso, a questão mais grave é que osupervisor que acompanha o atendimento nãoorientou seu aluno para levantar junto à es-cola os motivos desse encaminhamento paraa classe especial já que, do ponto de vistalegal, ele não poderia ser feito. Só depois de,no mínimo, dois anos de escolaridade.4 Machado (1996), em sua tese de doutora-do intitulada Reinventando a avaliação psicológi-ca, discute a importância do resgate da histó-ria escolar desses alunos, demonstrando oquanto o processo de escolarização forjouuma incapacidade nessas crianças que na ver-dade elas não têm.5 Pesquisas realizadas por Silvia Helena Vi-eira Cruz (1987) (op. cit.), Adriana Marcon-des Machado (1996) (op. cit.), Maria HelenaSouza Patto (1990), dentre outras.6 Trabalho realizado nesse sentido acontecena “Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida”,do Instituto de Psicologia da Universidadede São Paulo, sob a coordenação de MariaCristina Machado Kupfer e uma grande equi-

Page 26: Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar

Dossiê

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Aceito em setembro/2004.Recebido em junho/2004.

pe de psicólogos, alunos da graduação e dapós-graduação, em que são atendidas crian-ças com distúrbios globais no desenvolvi-mento (crianças com distúrbios emocionaisgraves).7 Excelentes textos que problematizam ostestes psicológicos e o pensamento psicomé-trico foram escritos por Maria Helena SouzaPatto (1997) e Maria Aparecida Moysés/Cecília Collares (1997).8 As contribuições de Emília Ferreiro (1982,1983, 1985) a respeito da construção da lei-tura e da escrita são valiosas para compreen-der processos como o apresentado neste en-caminhamento.9 Trata-se da Resolução SE no. 247 de 30/09/86. Essa resolução somente foi revogadaem 2000, por meio da Resolução no. 95/2000 que implantava a política de educaçãoinclusiva de pessoas com necessidades espe-ciais pela Secretaria do Estado da Educação,Departamento de Educação Especial.10 Um dos trabalhos que analisa as classesespeciais é a dissertação de mestrado de Bea-triz Beluzzo Brando Cunha: Classes de educa-ção especial para deficientes mentais: intenção erealidade.11 Vera Stella Telles em “Psicodiagnóstico:instrumento de revelação”, in Anais - I CONP-SIC, analisa essa questão em relação à utili-zação de testes psicológicos de personalida-de, cuja base de interpretação é psicanalítica,bem como as hipóteses psicológicas subja-centes ao ato de observar o cliente.12 A esse respeito ver a dissertação de mes-trado de Jaqueline Kalmus intitulada A pro-dução social da deficiência mental leve,IPUSP, 2000.13 Dados educacionais recentes reafirmam aprodução diária da exclusão escolar princi-palmente pelos altíssimos índices de repro-vação e de evasão escolares. A esse respeito

ver os trabalhos de Sergio da Costa Ribeiro(1992) e Otaviano Helene (1990, 1994).