Predestinacao e Livre Arbitrio - Norman Geisler

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Sou predestinado ou livre?

Se D eus controla tudo, será que as pessoas são realm ente livres? Esta p e rgun ta tem pertu rbado os cristãos há séculos. As respostas abrem -se num leque m uito am plo. Até hoje os cristãos discordam en tre si. Os que enfatizam o livre-arbítrio hum ano, vêem aqui um reflexo do p o d e r d e Deus, que Ele m esm o autolim itou. O utros consideram o livre-arbítrio no contexto do contro le geral exercido p o r Deus.

D avid e R andall B asinger p ropuseram esta velha questão a quatro professores no cam po da teologia e da filosofia. John Feinberg, d a Trinity Evangelical Divinity School, e N orm an Geisler, do Dallas Theological Sem inary, defendem a soberania específica de Deus. Bruce R eichenb ach , do A ugsburg College, e Clark Pinnock, do M cM aster Divinity College, insistem em que D eus precisa limitar S eu controle, a fim de garantir nosso livre-arbítrio. C ad a autor defende sua perspectiva, e aplica sua teoria a dois casos práticos para estudo. Em seguida, os au tores fazem réplicas en tre si, concernen tes aos artigos de cad a um , expondo aquilo que julgam ser falácias, erros e p resunções.

D avid B asinger é professor assistente d e filosofia no Roberts W esleyan College (E.U.A.). S eu irm ão R andall é professor assistente de filosofia no M essiah College (E.U.A.).

EDITORA MUNDO CRISTÃOCaixa Postal 21.257. 04698 — São Paulo, Est. S.P. Sede: Rua A n ton io Carlos Tacconi, 79 Tel.: 520-5011

MundoCristão

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Título do original em inglês:PREDESTINATION & FREE WILLCopyright © 1986 por Inter-Varsity Christian FellowshipPublicado por InterVarsity PressDowners Grove, Illinois, E.U.A.

Tradução: Oswaldo Ramos Capa: Íbis Roxanel s edição brasileira: fevereiro de 1989 23 edição brasileira: agosto de 1996 3"edição brasileira: fevereiro de 2000Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTÃO Caixa Postal 21.257, CEP 04698-970 São Paulo, SP BrasilImpressão e Acabamento OESP GRÁFICA S.A.

MAZINHO RODRIGUES

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Sumário

Prefácio à Edição Brasileira 5

INTRODUÇÃO 19 David Basinger e Randall Basinger

I. DEUS DECRETA TODAS AS COISAS 31John Feinberg RÉPLICASRéplica de Norman Geisler 63 Réplica de Bruce Reichenbach 69 Réplica de Clark Pinnock 77

II. DEUS SABE TODAS AS COISAS 81Norman Geisler RÉPLICASRéplica de John Feinberg 109 Réplica de Bruce Reichenbach 115 Réplica de Clark Pinnock 123

III. DEUS LIMITA SEU PODER 127Bruce Reichenbach RÉPLICASRéplica de John Feinberg 157 Réplica de Norman Geisler 163 Réplica de Clark Pinnock 169

IV. DEUS LIMITA SEU CONHECIMENTO 173Clark Pinnock RÉPLICASRéplica de John Feinberg 199 Réplica de Norman Geisler 207 Réplica de Bruce Reichenbach 213

Colaboradores 216

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Prefácio à Edição Brasileira

S o m o s t o d o s p r e d e s t i n a d o s ? o u t e m o s l i -vre-arbítrio? A fornalha da discussão vem sendo alimenta­da há séculos, desde Agostinho, cuja perspectiva doutriná­

ria foi ampliada e enfatizada por João Calvino (1509-1564), para quem a soberania de Deus predeterminou tudo quanto acontece.

O arminianismo opõe-se ao calvinismo, enfatizando o livre- arbítrio, a responsabilidade humana quanto à salvação, e negan­do que todas as coisas tenham sido predestinadas desde a eterni­dade.

Raízes do Arminianism oAs raízes do arminianismo, dizem alguns teólogos, estão em Pe-̂ lágio, que pregava um tipo de auto-salvação, negava que o homem é depravado, e negava que Deus têm algum plano. Jacobus Armj-

' nius (1560-1609), discípulo de Beza (1519-1605), sucessor de Cal­vino, dedicoü-se com afinco ao estudo das doutrinas calvinistas, a fim de combater mais eficazmente as idéias pelagianas. Entre­tanto, o calvinista Armínio surpreendentemente chegou à conclu­

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são de que o calvinismo estava errado, e passou a defender a po­sição que vinha atacando!

Em 1610, após a morte de Armínio, seus seguidores produzi­ram um memorial constituído de cinco pontos fundamentais — um resumo do arminianismo. Armínio mesmo não deixou um sis­tema doutrinário articulado. Segundo alguns, Simon Episcopius (1583-1643) é quem sistematizou o arminianismo.

Que É o CalvinismoCalvinismo é o sistema teológico das Igrejas Reformadas, cuja ex­pressão doutrinária oficial é a Confissão de Fé de Westminster, redigida por determinação do parlamento inglês. Os trabalhos to­maram cinco anos e meio, terminando em 1648, deles participando 120 ministros ou teólogos, 11 “lords”, 20 “comuns” (alguns eram das universidades de Oxford e Cambridge) e 7 delegados da Es­cócia.

Mas foi o Sínodo de Dort, em Dortrecht, na Holanda, reuni­do em 1618-1619, que teve o objetivo precípuo de contra-atacar o arminianismo. Foi ali que surgiram os “cinco pontos do calvinis­mo”, em resposta aos cinco pontos do memorial arminiano. Ã or- dem desses pontos difere: no documento de Dort, o ponto núme­ro 1 responde ao ponto número 3, do memorial arminiano; o nú­mero 2 responde ao número 1; o número 3, ao número 2 ; o número 4, ao número 4, e o número 5, ao número 5.

Memorial ArminianoEis uma exposição resumida dos cinco pontos do memorial armi­niano:1. O D ecreto divino de predestinação é condicional, não absolu-

to. Deus escolheu as pessoas para a salvação, antes da fundação do mundo, baseado em Sua presciência. Ele previu quem aceitaria li­vremente a salvação, e predestinou os salvos. A salvação ocorre quando o pecador escolhe a Cristo; não é Deus quem escolhe o pe­cador. O pecador deve exercer sua própria fé, para crer em Cristo e salvar-se. Os que se perdem, perdem-se por livre escolha: não qui­seram crer em Cristo, rejeitaram a graça auxiliadora de Deus. Deut. 30:19; João 5:40; 8:24; Ef. 1:5, 6 , 12; 2:10; Tiago 1:14; 1 Ped. 1:2; Apoc. 3:20; 22:17.

ií_ 2. A expiação é universal. O sacrifício de Cristo torna possível a toda e qualquer pessoa salvar-se pela fé, mas não assegura a sal­

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vação de ninguém. Só os que crêem nEle, e todos quantos crêem, serão salvos. João 3:16; 12:32; 17:21; 1 João 2:2; 1 Cor. 15:22;1 Tim. 2:3, 4; Heb. 2:9; 2 Ped. 3:9; 1 João 2:2.

ò̂ ~- 3. Livre-arbítrio, ou capacidade humana. Embora a queda de Adão tenha afetado seriamente a natureza humana, as pessoas não ficaram num estado de total incapacidade espiritual. Todo peca­dor pode arrepender-se e crer, por livre-arbítrio, cujo uso deter­minará seu destino eterno. O pecador precisa da ajuda do Espíri­to, e só é regenerado depois de crer, porque o exercício da fé é a participação humana no novo nascimento. Is. 55:7; Mat. 25:41,46; Mar. 9:47, 48; Rom. 14:10, 12; 2 Cor. 5:10.

4 . O pecador pode eficazmente rejeitar a graça. Deus faz tudo que pode para salvar os pecadores. Estes, porém, sendo livres, podem resistir aos apelos da graça. Se o pecador não reagir positivamente, o Espírito não lhe pode conceder vida. Portanto, a graça de Deus não é infalível nem irresistível. O homem pode frustrar a vonta­de de Deus para sua salvação. Luc./18:23; 19:41, 42; Ef. 4:30; 1 Tess. 5:19.

, r$> 5. Os crentes — regenerados pelo Espírito — podem cair da gra­ça e perder-se eternamente. Embora o pecador tenha exercido fé, crido em Cristo e nascido de novo para crescer na santificação, ele poderá cair da graça. Só quem perse^eraraté o fim é que será sal- vo. Luc. 21:36; Gál. 5:4; Heb. 6 :6 ; 10:26, 27; 2 Ped. 2:20-22.

x Cinco Pontos do CalvinismoEis a resposta calvinista ao memorial arminiano:

1. Total depravação. O homem natural não pode apreciar sequer as coisas de Deus. Menos ainda salvar-se. Ele é cego, surdo, mu­do, impotente, leproso espiritual, morto em seu pecado, insensí­vel à graça comum. Se Deus não tomar a iniciativa, infundindo- lhe fé salvadora, e fazendo-o ressuscitar espiritualmente, o homem natural continuará morto eternamente. Sal. 51:5; Jer. 13:23; Rom.

,3:10-12; 7:18; 1 Cor. 2:14; Ef. 1:3, 12; Col. 2:11-13.^**2. Eleição incondicional. Deus elegeu alguns para a salvação em

Cristo, reprovando os demais. Deus não tem obrigação de salvar ninguém, nem homens nem anjos decaídos. Resolveu soberana­mente salvar alguns homens (reprovando todos os demais) e tor­ná-los filhos adotivos quando eram ainda filhos das trevas. Teve misericórdia de algumas criaturas, e deixou as demais (inclusive

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os demônios) entregues às suas próprias paixões pecaminosas. A salvação é efetuada totalmente por Deus. A fé, como a salvação, é dom de Deus ao homem, não do homem a Deus. Mal. 1:2, 3; João 6:65; 13:18; 15:6; 17:9; At. 13:48; Rom. 8:29, 30-33; 9:16; 11:5-7; Ef. 1:4, 5; 2:8-10; 2 Tess. 2:13; 1 Ped. 2:8, 9; Jud. 1, 4.3. Expiação limitada, ou particular. Segundo Agostinho, a gra­

ça de Deus é “suficiente para todos, eficiente para os eleitos”. Cris­to foi sacrificado para redimir Seu povo, não para tentar redimi- lo. Ele abriu a porta da salvação para todos, porém, só os eleitos querem entrar, e efetivamente entram. João 17:6, 9,10; At. 20:28; Ef. 5:25; Tito 3:5.

4 . Graça irresistível, ou infalível. Embora os homens possam re­sistir à graça de Deus, ela é, todavia, infalível: acaba convencen­do o pecador de seu estado depravado, convertendo-o, dando-lhe nova vida, e santificando-o. O Espírito Santo realiza isto sem coa­ção. É como o rapaz apaixonado que ganha o amor de sua eleita, e ela acaba casando-se com ele, livremente. Deus age e o crente rea­ge, livremente. Quem se perde tem consciência de que está livre­mente rejeitando a salvação. Alguns escarnecem de Deus, outros se enfurecem, outros adiam a decisão, outros demonstram total indiferença para com as coisas sagradas. Todos, porém, agem li­vremente. Jer. 3:3; 5:24; 24:7; Ez. 11:19, 20; 36:26, 27; 1 Cor. 4:7;2 Cor. 5:17; Ef. 1:19, 20; Col. 2:13; Heb. 12:2.

s t L S . Perseverança dos salvos. Alguns preferem dizer “perseveran-- ça do Salvador”. Nada há no homem que o habilite a perseverar na obediência e fidelidade ao Senhor. O Espírito é quem perseve- ra pacientemente, exercendo misericórdia e disciplina, na condu­ção do crente. Quando ímpio, estava morto em seu pecado, e res­suscitou: Cristo lhe aplicou Seu sangue remidor, e a graça salvífi- ca de Deus infundiu-lhe fé para crer em Cristo e obedecer a Deus. Se todo o processo de salvação é obra de Deus, o homem não po­de perdê-la! Segundo a Bíblia, é impossível que o crente regene-^ rado venha a perder sua salvação. Poderá pecar e morrer fisica­mente (1 Cor. 5:1-5). Os apóstatas nunca nasceram de novo, jamais se converteram. Is. 54:10; João 6:51; Rom. 5:8-10; 8:28, 32, 34-39; 11:29; Fil. 1:6; 2 Tess. 3:3; Heb. 7:25.

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Q uadro S in ótico d o M em orial A rm inianoVs.

C inco P ontos do C alvin ism o(O memorial está na ordem original)

Memorial Arminiano1. Deus predestinou a quem Ele previu que aceitaria a Cris­to. A predestinação de Deus depende da aceitação de Cris­to pelo pecador, mediante o li- vre-arbítrio, bastando-lhe crer.

2. A expiação é universal. Cristo morreu por todos os ho­mens, salvos e perdidos, mas Seu sangue não assegura a sal­vação de ninguém, se não hou­ver aceitação pessoal.3. O homem tem livre-arbí- trio. É capaz de responder aos apelos do Espírito. Não é tão depravado que não seja capaz de decidir livre e consciente­mente a aceitação ou a rejeição da graça divina.

4. O pecador pode rejeitar de­finitiva e eficazmente os apelos do Espírito, por ser livre. O Es­pírito nada pode fazer se o pe­cador insistir na rejeição da graça. O pecador pode frustrar os planos de Deus para sua sal­vação.5. Os crentes regenerados pe­lo Espírito não estão livres de cair da graça e perder-se eter­namente.

Cinco Pontos do Calvinismo2. Deus predestinou as pes­soas para aceitarem a Cristo. A aceitação de Cristo pelo peca­dor depende da predestinação de Deus. A graça infunde fé salvadora e nova vida, para que o pecador possa crer.3. A expiação é limitada, ou particular, “suficiente para to­dos, eficiente para os eleitos”. Cristo morreu para redimir Sua Igreja. O convite é univer­sal. A aceitação é limitada.1. O homem natural está mor­to espiritualmente, sendo inca­paz de voltar-se para Deus. O pecador só tem livre-arbítrio para o mal. Não consegue dis­cernir as coisas de Deus. Se Deus não o ressuscitar, conti­nuará morto.4. A graça de Deus é infalível. Embora o pecador possa resis­tir o Espírito, entristecê-lo e ex- tingui-lO, a obra completa se­rá feita nos eleitos. Deus rege­nera, santifica e glorifica o crente, sem violentar-lhe a von­tade livre.5. Os salvos não perdem a sal­vação. A perseverança é do Salvador. Os apóstatas jamais nasceram de novo.

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P rin cip ais O bjeções Calvinistas Contra as D outrinas Arm inianas

Objeção Calvinista1. Se o homem é livre para fa­zer o bem ou o mal, como é que Deus consegue executar Seus propósitos, sem violentar tal liberdade? Nenhuma profe­cia deixou de ser cumprida porque “os homens não coo­peraram”. Deus não está ansio­so, “roendo unhas”, aguardan­do a decisão do homem, para correr com um paliativo e re­mediar uma traquinagem hu­mana. Sal. 33:11; Is. 55:10, 11; Rom. 9:17.2. Se o homem natural pode decidir aceitar a Cristo, isto significa que ele não é total­mente depravado. Está doente, mas não morto! Ele seria o au­tor de sua própria salvação. Ef. 2:8, 9; Fil. 1:6.3. O livre-arbítrio arminiano transforma Deus em rei que não reina. Ei-lO impotente, fervendo de ira, ou chorando de tristeza, diante do compor­tamento humano! Alguns ar- minianos chegam a negar que Deus conhece as ações futuras, livres, dos homens, por serem incertas. Sal. 139; Is. 10:5-7,12, 15; At. 4:27, 28.4. Para que Deus não fosse ar- güido de parcialidade e favori-

Resposta Arminiana1. O homem tem liberdade de ação. Mas Deus limita a exten­são e as conseqüências das más ações, entretecendo-as em Seus propósitos eternos. O homem pode fazer a vontade de Deus, ajudado pelo Espírito. Deus pode levantar homens (por ex.: Faraó, Ciro, Moisés, Paulo) que farão o que Ele determi­nou, sem violentar-lhes a liber­dade.

- 2 . O homem se corrompeu por causa do pecado, mas não perdeu sua liberdade de esco­lha. Deus lhe estende um con­vite para a salvação. A inicia­tiva è de Deus, e o convite tam­bém. A aceitação é do homem.

- 3. Deus não deixa os homens fazerem o que bem entendem. Sendo amor, Deus sofre com a rejeição humana. Mas abre no­vas oportunidades de arrepen­dimento. Nero, Napoleão e Hi- tler fizeram muito mal. Não todo o mal que intentavam fa­zer. Até que Deus lhes deu um “basta”.

4. Algumas pessoas são mais ricas, mais inteligentes, m ais;

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tismo (argumento arminiano comum) seria necessário que todos os seres humanos tives­sem as mesmas oportunidades, sofressem as mesmas ameaças e tentações, recebessem os mesmos dons e castigos, as mesmas bênçãos e agruras, de tal modo que todos tivessem as mesmas condições para decidir salvar-se ou perder-se. Todavia, bens e males são distribuídos desigualmente, segundo os propósitos de Deus. M at. 25:15; Rom. 8:15-21.

5. O crente, segundo o armi­nianismo, não pode saber se vai salvar-se ou não. Sabe, no máximo, que hoje está salvo porque hoje tem fé, obedece ao Senhor, confia em Cristo. Não sabe, todavia, se cairá da gra­ça, dali a algumas horas. Pode­rá ser dominado pelo pecado outra vez, e perder-se eterna­mente. João 10:28, 29; At. 11:31; 1 João 1:9; 2:1-5.

6 . Não existe total livre-arbí­trio. Estamos presos em “gaio­las” psico-culturais que difi­cultam nosso poder decisório. Imaginemos 4 pessoas: o Sr. A é judeu ortodoxo. O Sr. B é bê­bado há 20 anos; o álcool ar- ruinou-lhe a saúde, o lar, as fi­nanças, e o caráter. A Sría C

sadias, mais felizes, ou mais bonitas do que outras, por cau­sa do pecado. Às vezes, Deus determina que diferentes pes­soas tenham diferentes desti­nos segundo Seus propósitos sábios e santos. Contudo, a aceitação de Cristo parece re­querer o mesmo esforço voliti- vo de todos, independente­mente da situação do inventá­rio pessoal.

5. Segundo a Palavra de Deus, o crente pode ter certeza de que pode escolher a salvação, que Deus o acolheu, esperando que ele persevere até o fim. Sabe que Deus é poderoso e miseri­cordioso para ampará-lo e so- corrê-lo, e a todos os seres hu­manos, sem distinção. Segun­do o calvinismo, a pessoa não pode saber se vai salvar-se, porque não sabe se Deus a ele­geu. Sansão, Saul e Judas não se enganaram?

6 . As barreiras psicoculturais, sociais, financeiras, etc., não são intransponíveis. Milhares de pessoas escravizadas de al­guma forma, encontraram li­bertação em Cristo. A Bíblia, a história da Igreja e a expe­riência do dia a dia nos dizem que muitas pessoas têm aceito

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é atriz de teatro e TV, e linda. Ambiciona divertir-se ao m á­ximo e ganhar muito dinheiro. A Sr.a D é católica. Recebeu um ultimato solene de seu ve­lho pai, para “jamais mudar de religião”. Os quatro estão presos a algemas psicoculturais que lhes tolhem as escolhas. São livres até certo ponto. A Bíblia ensina que o homem na­tural só é livre para praticar o mal, embora sua razão e cons­ciência possam dizer o contrá­rio. João 8:34, 36; Rom. 1:24, 26, 28; Rom. 6:18; Col. 1:13.

a Cristo em situações patéti­cas. Um ladrão na cruz; um carcereiro após um terremoto em Filipos; um arrogante fari­seu a caminho de Damasco; um publicano rico, suspeito de ladrão, em Jericó; uma sama- ritana de má vida, em Sicar; um moço depravado chamado Agostinho, em Roma; um monge alemão chamado Lute- ro, na Alemanha; uma atriz de vida pouco recomendável, cha­mada Darlene Glória, no Bra­sil. Eu. Você. Qualquer pessoa! Todas as pessoas que quise­rem? João 7:37; 8:32; Apoc. 22:17.

P rin cip ais O bjeções Q ue os A rm inianos Lançam Contra o C alvinism o

Objeção Arminiana1. Predestinação seria arbitra­riedade e parcialidade de Deus, isto é, um absurdo! Por que Deus predestinaria alguns pa­ra a salvação e outros para a perdição, negando-lhes o direi­to de livre determinação, livre escolha? Deut. 10:17; Ez. 18; Rom. 2:11.

2. Predestinação é fatalismo. Se tudo acontece por decreto eterno, fixo, imutável, somos marionetes, a história um dra- malhão escrito, dirigido, ence­nado e inculcado por um dire-

Resposta Calvinista1. Deus não tem obrigação de salvar ninguém. Todos peca­ram, e estão destituídos da gló­ria de Deus. Deus salva alguns por misericórdia. Os que se perdem, perdem-se por sua própria culpa. Porque um ca­sal adota uma criança de um orfanato, é obrigado a adotar todas as crianças órfãs?2. Fatalismo é crença pagã, em que tudo acontece por força cega, amoral, impessoal, in­sensível, não-inteligente, não- misericordiosa, acoplada à ne­cessidade física, sem propósito

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tor implacável! Deut. 30:15-20; Is. 66:3-4; Jer. 24:15.

3. Predestinação e livre-arbí­trio são doutrinas mutuamente excludentes. Uma ou outra é a verdade. Is. 1:19-20; M at. 12:47-48; Luc. 12:57.

4. Se a predestinação é a ver­dade, por que a Bíblia ordena e exorta os homens? Não está tudo predeterminado? De que servem os apelos? Seriam inú­teis! Gên. 6:9, 10; Is. 1:16-17; Am. 5:15; Rom. 12:17; Heb. 13:16.

que glorifique a Deus. Predes­tinação é decreto de Deus, in­finitamente sábio e santo, se­gundo o qual tudo que aconte­ce obedece ao plano perfeito de Deus, visando Sua glória e o bem de Seus filhos. Neem. 9:6; Jó 14:5; Sal. 37:23; Prov. 21:1; Mat. 6:26, 30; Rom. 8:28; 16:9, 33; Ef. 1:11; Heb. 1:3.3. A Bíblia ensina ambas. Deus nos pede que creiamos, não que as harmonizemos! Os crentes ortodoxos crêem em outros mistérios: (a) Bíblia, Palavra de Deus e palavra do homem; (b) Cristo, Deus e ho­mem ao m esm o tem po; (c) Trindade santa, ou Deus triúno; (d) a natureza material e espiritual do homem. E no mundo físico: ventos, a eletri­cidade, os instintos, etc.4. A Bíblia contém ordens aparentemente impossíveis. Um aleijado recebeu a ordem de estender a mão mirrada, ou­tro recebeu ordem para levan- tar-se, tomar sua cama e andar. Ao defunto Lázaro foi dada a jordem para sair do túmulo. Os judeus eram exortados a cum­prir a lei. Somos exortados a sermos perfeitos como Deus. Os homens são exortados a crer, mas a fé é dom de Deus; a arrepender-se, mas é Deus quem opera o arrependimento; a salvar-se, a santificar-se, mas tudo isso é Deus quem faz no homem.

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5. O poder de escolha entre o bem e o mal honra e dignificao homem. O mundo animal e vegetal, embora tenha uma forma de vida, não tem cons­ciência do mal ou do bem. Gên. 3:22; 1:27; cf. 1 Cor. 10:31; Col. 3:10.

6 . A predestinação faz com que Deus seja o autor do peca­do. A responsabilidade fica nas mãos dEle. João 3:36;1 Cor. 10:13; Tiago 1:13.

7. A crença na predestinação mina e destrói o espírito de lu­ta, a disposição para vigiar e orar, para evitar a tentação, e trabalhar na Seara do Senhor. A salvação torna-se “favas contadas”. Mat. 2:9; 26:41; Fil. 2:12.

5. A decisão racional apenas eleva o homem acima da ani­malidade bruta. Ter de esco­lher entre o bem e o mal é de­feito. Os anjos eleitos não so­frem esse dilema: jamais pe­cam. Os demônios não têm de decidir nada: só pecam. No céu, só se glorifica a Deus. No inferno, só se peca contra Deus.6 . Não nos compete investigar e explicar como Deus extrai o bem do mal. Deus é Santíssi­mo. Permitiu que o mal entras­se no mundo. Ele odeia o peca­do e pune o pecador. E encai­xa o mal em Seu plano eterno. Há passagens escriturísticas que afirmam que determina­dos males foram criados por Deus. Gên. 50:20; Deut. 29:29;2 Sam. 7:14; 1 Reis 12:24; Sal. 76:10; Is. 45:7; Jer. 5:15-19; Am. 3:6; Rom. 9:22; Ef. 2:3.7. Deus determinou os fins e os meios. O crente é exortado a vigiar, sempre alerta. É errô- nea a idéia de que o crente “eleito” pode fazer o que bem entender porque está salvo. Pensar assim é colher conse­qüências dolorosas, até que se corrijam as perspectivas erra­das. Est. 4:14; Ef. 1:11; 2:10; Fil. 1:6; 2:12-13; 1 Ped. 1:10.

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8 . Deus não seria sincero ao mandar profetas, apóstolos, pregadores em geral, anunciar a salvação de graça a todos os homens, se já tivesse escolhido.

9. A predestinação baseia-se na presciência de Deus. Aos que Ele previu que creriam, a esses elegeu para a salvação.

8 . Se Deus já sabia quem se salvaria, e quem se perderia, não os tendo predestinado, não seria sincero ao oferecer o evangelho aos que se perdem, , só para aumentar-lhes a culpae a condenação? Deus é justo, santo e misericordioso. Contu- do, Isaías leva uma mensagem que endureceria os judeus (Is. 6:9-13). Ezequiel é avisado de que Israel não o ouviria, mas deve ir pregar (Ez. 3:4-11). O evangelho deve ser pregado a todos, por ordem de um Deus sincero. Mat. 23:33-37; Rom. 10:13-17.9. Deus previu que Tiro, Si- dom e Sodoma creriam, e se arrependeriam, se nessas cida­des ocorressem os sinais que Jesus operou em Cafarnaum e Betsaida. Porém, Ele não as salvou. Portanto, a presciência não é a base da predestinação. Mat. 11:20.

C onsiderações Finais

Quando os irmãos Basinger decidiram, com acerto, editar um li­vro propositalmente polêmico sobre predestinação e livre-arbítrio, e convidaram quatro gladiadores de renome para apresentar-se na arena, não imaginaram, por certo, todas as conseqüências! Uma delas: o livro seria lançado no Brasil e desafiaria nossos crentes, sacudindo pacatas convicções semi-adormecidas!

Aproximar predestinação do livre-arbítrio é chegar fogo à pólvora — a discussão explode! Vez ou outra o leitor participou de escaramuças quentes, mas inconseqüentes, na Escola Domini­cal, em que os mais exaltados pareciam torcedores de futebol exe-

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crando um juiz ladrão.... De fato, se sua classe estiver modorren­ta, e você quiser inflamá-la, provoque-a com perguntas assim: Deus predeterminou tudo que acontece? Ou deixa Suas criaturas à vontade para tomarem decisões livres? Deus predestina alguns para a salvação e outros para a perdição eterna? Ou será que Ele nos concedeu total liberdade de ação mas de vez em quando “dá um puxão nas rédeas” ou “enfia o aguilhão”, para impedir que “a vaca vá pro brejo”, isto é, que nós frustremos os propósitos eter­nos de Deus? Em havendo total liberdade humana, como é que Deus consegue fazer cumprir Seus planos, sem violar essa liberdade?

Os teólogos brasileiros não parecem muito motivados a ex­por suas idéias nessa área. O Rev. Samuel Falcão, ao apresentar sua tese sobre predestinação, que depois resultaria em livro, indi­ca uma bibliografia de 50 autores, todos americanos e ingleses! Seria isto sintomático das dificuldades encontradas no Brasil pa­ra equacionar e tentar resolver o problema? Ou o assunto polê­mico leva nossos eruditos a manter prudente distância? Ou serão nossos mestres mais sábios que os irmãos anglo-saxões, e não de­sejam especular sobre um dos mistérios de Deus?

Faça o leitor uma pequena investigação. Entreviste um punha­do de pastores e oficiais de igrejas presbiterianas (tradicionalmente calvinistas), e outro punhado de irmãos das igrejas metodistas (tra­dicionalmente arminianas), não esquecendo de incluir pentecos- tais (tradicionalmente avessos a tradições). O leitor verificará que a tendência é para posições moderadas, longe dos extremos. É pos­sível que a maioria dos entrevistados tente criar um jser esdrúxu-lo, híbrido, com cabeça e braços de Calvino, e coração, tronco e pernas de Armínio!' O debate aceso prosseguirá. Alguns discutirão por sentir-se predestinados para isso. Outros, por acharem que têm livre-arbí- trio.

Enquanto o leitor estiver lendo este volume, mantenha em mente que os autores estão preocupados com apenas um dos cin­co pontos que resumem as posições arminiana e calvinista.

— Editora Mundo Cristão

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À memória de nosso pai, Emerson

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IntroduçãoDavid Basinger Randal Basinger

FÉ CRISTÃ APRESENTA-NOS UM D ILEM A. D E UMlado, cremos que Deus nos criou moralmente responsáveis,com a capacidade de tomar decisões morais importantes.

Se não fôssemos capazes de tomar decisões significativas, por que as Escrituras nos exortam a desviar-nos do mal, ou a viver uma vida piedosa? Se não somos responsáveis pela livre escolha de nos­sas ações, de que maneira Deus nos recompensaria, ou nos puni­ria, por essas ações, de maneira justa?

Por outro lado, os crentes crêem, também, que Deus detém controle soberano sobre tudo que concerne ã criação. Ele é o Se­nhor da história, e também o Senhor de nossas vidas. Vamos dor­mir todas as noites com a certeza de que tudo quanto acontece en­quadra-se no plano dEle, preordenado e totalmente abrangente. Nada pode atrapalhar o plano de Deus; tudo quanto acontece está de acordo com a Sua vontade.

O dilema tornou-se claro. Será que estas duas doutrinas cris­tãs básicas expressam a verdade? Se somos realmente capazes de tomar decisões morais relevantes, então não deveríamos ser com­petentes para agir contra a vontade de Deus? Se isto é verdade, co­mo podemos, então, declarar que tudo quanto acontece perma-

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nece no âmbito de Sua vontade? Se os seres humanos são livres, de que maneira Deus é soberano.? Por outro lado, se Deus exerce absoluto controle, de que maneira as decisões humanas são deci­sões verdadeiras? Em que sentido podemos ser responsabilizados por nossas ações, se Deus é responsável por tudo? Podemos ser livres e, ao mesmo tempo, predestinados?

A Tensão PráticaEsta tensão existe, não apenas em teoria, mas também na prática do discipulado cristão. Aquilo em que cremos afeta (e deveria mes­mo afetar) nossa maneira de viver. A forma de os crentes verem o relacionamento entre a soberania divina e a liberdade humana exerce influência direta na maneira como reagirão a várias circuns­tâncias em suas vidas. Entretanto, a vivência de nossas crenças so­bre a soberania divina e a liberdade humana apresenta alguns pro­blemas difíceis. A maior parte dos crentes aceita ambas as dou­trinas, a da soberania divina e a da liberdade humana, mas ao en­frentar situações reais no dia-a-dia, tendemos com freqüência a enfatizar uma delas com exclusão da outra.

Tomemos como exemplo o debate sobre desarmamento nu­clear. Alguns crentes insistem em que devemos fazer ouvir nossa voz, e tomar providências contra a escalada armamentista. Somos advertidos de que se não agirmos depressa e com decisão, o de­sastre nuclear será inevitável. Fica bem clara aqui a premissa: a di­ferença está na escolha e na ação do homem. Até certo ponto as pessoas são responsáveis pelo destino da raça humana. De outro lado, há crentes que não estão convencidos de que é bom lutar­mos pelo desarmamento nuclear, argumentando que Deus exer­ce soberania sobre a história humana. Assim argumenta um au­tor evangélico: “O destino da terra não depende dos caprichos nem das manobras de um homem, ou de uma nação, mas está nas mãos onipotentes de Deus... O plano dEle prevalecerá!’1

Num nível mais modesto, tomemos o exemplo do moco que gostaria de estudar teologia, e apresentar-se como missionário. Ele enfrenta inúmeras dificuldades financeiras, de modo que as pos­sibilidades de preparar-se para a carreira são reduzidas. Ele po­derá julgar que Deus está fechando as portas para esta pretensão,

1 Bruce Dunn, “The World Will End! The World Will End!” MoodyMonthly, junho de 1983, p. 13.

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e tentando conduzi-lo noutra direção. Pensando bem, se Deus o deseja no campo missionário, Ele mesmo resolverá os problemas do moço. Outro rapaz, entretanto, poderá concluir que ainda não fez tudo quanto poderia e deveria fazer para atingir seus objeti­vos, ao enfrentar circunstâncias semelhantes. Este outro moço pro­curará outras soluções, outras alternativas, visando sua vocação missionária e a necessidade de preparar-se intelectualmente. Se as impossibilidades prevalecerem, este segundo moço poderá con­cluir, simplesmente, que as decisões de terceiros prejudicaram o plano de Deus para a sua vida.

Ou imaginemos um seminário evangélico que precisa de mais salas de aulas, de novos dormitórios, de mais salas de reuniões. Está sendo difícil conseguir o dinheiro necessário para tais obras. Alguns administradores do seminário poderiam presumir que se Deus quer que se construam os novos alojamentos, Ele deverá pro­ver o dinheiro necessário. Portanto, se o dinheiro não aparece, as novas edificações não constavam dos planos de Deus. Outros ad­ministradores poderiam enfatizar o elemento humano, nessa si­tuação. Se os recursos não entram, eles poderiam concluir que há urgente necessidade de mudar a diretoria responsável pelo semi­nário. Pensariam, também, em consultar especialistas que ajuda­riam a estabelecer as linhas mestras da campanha financeira, e da estratégia global envolvendo as necessidades do seminário.

Finalmente, vamos considerar um casal sem filhos, em que o marido é portador de um problema genético. Será que esse ca­sal deveria gerar filhos? Algumas pessoas responderiam afirm a­tivamente, alegando que cada criança é uma criação direta, e es­pecial, de Deus. Portanto, se Deus quiser que eles tenham um be­bê sadio, eles o terão; se Ele não o quiser, todavia, os pais deve­rão aceitar alegremente aquela criança especial como sendo uma dádiva de Deus. Outros casais crentes poderiam argumentar, en­tretanto, que em vista da grande probabilidade de terem filhos que herdariam aquele defeito congênito, a decisão mais responsável que deveriam tomar seria a de adotar crianças, ou transformar a ausência de filhos em uma oportunidade de serviço para a igreja.

Entretanto, os crentes não podem ser divididos em dois gru­pos distintos: aqueles que enfatizam a predestinação divina em suas vidas, e aqueles que enfatizam a responsabilidade humana. A tendência é no sentido de os crentes oscilarem de um lado para o outro, isto é, saem da ênfase na soberania de Deus para entrar

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na ênfase sobre o livre-arbítrio, quando enfrentam circunstâncias diferentes. Em determinadas situações, falam e agem (este segundo verbo é mais importante) sob a pressuposição de que Deus está controlando tudo. Interpretam os eventos em suas vidas como ele­mentos de um propósito divino; as coisas são como deveriam ser, realmente. Em outras situações, esses mesmos crentes poderão fa­lar e agir na pressuposição de que as pessoas são responsáveis pelo que está acontecendo. Sentem a necessidade de ajudar a modelar o curso dos acontecimentos no mundo; as coisas podem e devem ser diferentes do que são.

Não é difícil encontrar exemplos dessa aplicação seletiva das duas doutrinas. Ali estão alguns crentes explicando às crian­ças que Deus “decidiu levar o tio João para o céu”, mas ao mes­m o tempo iniciam um programa de exercícios físicos que assegu­re que não venham a morrer prematuramente de um ataque car­díaco, como aconteceu ao tio João. Acolá estão alguns crentes que aceitam o nascimento de um bebê radicalmente deformado e men­talmente retardado como dádiva de Deus, mas advogam o con­trole da natalidade, ou a adoção de crianças, como forma segura de não haver mais crianças excepcionais. Lá está o gerente crente que agradece a Deus o dinheiro que Ele providenciou para deter­minada instituição evangélica; no entanto, no ano seguinte, quan­do os fundos são insuficientes, ele mesmo despede o encarrega­do de angariações e donativos, para contratar uma firma profis­sional que trace uma nova estratégia mercadológica. Alguns pais crentes agradecem a Deus os excelentes empregos que Ele conce­deu a seus filhos adolescentes. Entretanto, sentem-se obrigados a lutar contra as injustiças raciais, ou sociais, acreditando que mui­tos adolescentes das redondezas não obterão bons empregos en­quanto tais injustiças não forem vencidas. Alguns crentes vêem que Deus determinou a hora e o dia em que deverão morrer; contu­do, demonstram sério desacordo com os pais que alimentam a con­vicção de que Deus controla a vida e a morte e, por isso, recusam-se a procurar tratamento médico para seus filhos. Alguns iniciam via­gens com muita oração e plena convicção quanto à segurança de que desfrutam às mãos de Deus; entretanto, certificam-se de que os pneus estão em ordem, e afivelam os cintos de segurança, a fim de melhorar as probabilidades de uma viagem bem segura.

Estes exemplos tornam bem claro para nós que existem, real­

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mente, duas dimensões distintas, mas intimamente relacionadas entre si, no que concerne ao assunto de que vimos tratando. Em nível teórico, precisamos decidir a forma pela qual iremos recon­ciliar nossa crença na soberania de Deus, com nossa crença no livre-arbítrio humano. Então, que significa realmente “soberania de Deus” e que quer dizer “livre-arbítrio humano”? Será que existe um relacionamento lógico entre ambos? No nível prático, preci­samos relacionar nosso esquema teórico à nossa vida. Deveremos viver como se Deus estivesse no controle absoluto, ou deveríamos viver como se os seres humanos fossem totalmente livres e respon­sáveis? Seria possível encontrar u m a justificativa para pôr-se em prática apenas uma destas crenças? Se sim, qual seria ela? É jus­tificável que se caminhe de um lado para o outro, de uma doutri­na para a outra? Se sim, qual é a orientação para tais mudanças? Estas perguntas não são puramente acadêmicas, nem insignifican­tes. Haveremos de encontrar respostas para elas, se não quisermos viver de maneira arbitrária .2

D elineando as AlternativasNão é fácil isolar as várias maneiras pelas quais os crentes tentam responder a essas perguntas. As alternativas apresentadas são mui­tas, e complexas. O propósito deste livro é analisar e explorar qua­tro das perspectivas mantidas pelos crentes, concernentes ao re­lacionamento entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. É a seguinte a pergunta central que proporemos, a fim de apre­sentar estas alternativas: Até que ponto a liberdade do homem co­loca limitações ao controle soberano de Deus sobre os aconteci­mentos? Ao responderem a esta pergunta, os crentes se dividem em dois grandes grupos.

Defensores da Soberania Específica. Alguns crentes acredi­tam que o livre-arbítrio humano não impõe limites à soberania di­vina. Em outras palavras, eles crêem que a liberdade do homem de maneira nenhuma limita a capacidade de Deus de fazer acon­tecer os eventos que Ele deseja que aconteçam. Denominaremos os crentes que se apegam a esta crença de adeptos da soberania específica.

2 Para discussão mais ampla sobre as dimensões práticas deste probiema, veja- se David Basinger e Randall Basinger, “In the Image of Man Create They God- A Challenge”, Scottish Journal o f Theology 34 (1981): 97-107.

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Alguns destes adeptos são deterministas. Os deterministas acreditam que a maneira como agimos é determinada pelo que aconteceu no passado. Todavia, eles se apressam a acrescentar que isto não significa que somos máquinas destituídas de pensamen­to. Nós ponderamos os dados, avaliamos as alternativas e final­mente fazemos nossas escolhas. Ao entrarmos numa sorveteria, por exemplo, não agiremos como robôs programados, isto é, não seremos inconscientemente forçados a pedir determinado sabor. Primeiro nós nos inteiramos dos sabores disponíveis, depois pon­deramos as opções, e finalmente escolhemos o sabor mais atraente. Entretanto, considerados todos os fatores causativos importantes, que precedem a escolha, não poderíamos mesmo ter escolhido di­ferentemente. Os eventos do passado e as circunstâncias do pre­sente determinam que um certo sabor de fato há de ser escolhi­do. Os teólogos deterministas acrescentam a teoria segundo a qual Deus exerce controle sobre todos os eventos, e todas as circunstân­cias que precederam todas as decisões humanas e, assim, é Deus mesmo quem realmente determina o que faremos em todos os casos.

Este ponto de vista faz erguerem-se questões óbvias. Se to­das as nossas escolhas são determinadas por Deus, como pode­mos ser genuinamente livres? E se não podemos escolher livremen­te, como é que Deus poderá responsabilizar-nos pelas nossas ações? Alguns teólogos deterministas ensinam que o determinis­mo realmente exclui nossa liberdade de escolha e, assim, ficam de­vendo uma explicação sobre como Deus pode responsabilizar-nos pelas nossas ações. Tentando responder, afirmam que não pode­mos entender — a partir de nossa perspectiva humana, e finita — a forma pela qual Deus consegue, com perfeita justiça, respon­sabilizar-nos por aquilo para que nos predestinou. Do ponto de vista humano, isto é um paradoxo. Entretanto, visto que as Escri­turas nos ensinam claramente que Deus é justo, e que Ele nos res­ponsabiliza mesmo, não temos base para questionar a justiça de Deus. Devemos simplesmente presumir que do ponto de vista de Deus, o total controle divino é compatível com a responsabilida­de humana. Tirar uma conclusão diferente é colocar a lógica hu­mana acima da revelação divina: Deus teria de curvar-Se diante de um padrão humano de justiça.

Outros teólogos deterministas argumentam que há uma so­lução racional para este dilema. Eles ensinam que Deus determi-

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na todas as escolhas humanas, toda a atividade dos homens, po­rém, negam que isto é incompatível com a responsabilidade e a li­vre escolha humanas. As pessoas que foram “determinadas” ainda podem ser consideradas livres e, desse modo, ser responsabiliza­das por suas ações, assim ensinam esses teólogos, visto que estão fazendo exatamente aquilo que desejam fazer. Imagine, por exem­plo, um ladrão que foi apanhado roubando um banco. Se essa pes­soa não estiver roubando o banco porque quer roubá-lo, mas por­que alguém está apontando uma arma para a cabeça de seu filhi- nho, tal pessoa não estaria agindo livremente. Nós não a consi­deraríamos moralmente responsável, porque foi forçada a agir contra sua vontade; a pessoa não estava fazendo o que queria. En­tretanto, imaginemos que este ladrão esteja pegando o dinheiro porque chegou à conclusão de que esta é a melhor maneira de sa­tisfazer suas necessidades. De acordo com os deterministas a que nos referimos, essa pessoa não poderia ter agido diferentemente, levando-se em consideração os eventos de sua vida. Neste caso, to­davia, a pessoa estaria fazendo aquilo que desejava fazer; portanto, podemos alegar que a pessoa agiu livremente. Por essa razão, a pes­soa poderia ser moralmente responsabilizada por suas ações. O fato de a pessoa ter feito o que Deus decretou que ela haveria de fazer não muda o quadro. John Feinberg defenderá uma variante desta posição.

Outros defensores da soberania específica negam este tipo de determinismo, esta forma determinística de ver a liberdade huma­na. Em outras palavras, eles negam que aquilo que ocorre antes de a pessoa tomar uma decisão determina sempre a decisão que será tomada. Eles negam, por exemplo, que aquilo que aconteceu no passado determinará, necessariamente, que sabor de sorvete eu escolherei. Considerando tudo quanto aconteceu antes de a esco­lha ser feita, poderei muito bem pedir baunilha ou chocolate. Argumenta-se, então, que as pessoas só são realmente livres e res­ponsáveis quando têm a capacidade de agir de forma diferente, na­quele sentido. Os que aceitam este conceito de liberdade humana usualmente são chamados de autodeterministas, ou libertários.

Entretanto, se os seres humanos forem livres, neste sentido, como é que se pode afirmar que Deus controla tudo? Este tipo de liberdade parece limitar o poder de Deus, evidentemente. Alguns autodeterministas que crêem na soberania específica de Deus ar­gumentam com um apelo ao paradoxo. Eles admitem que se os ho­

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mens são livres e, portanto, responsáveis pelo que acontece, pare­ceria que Deus não controla tudo. Mas, as Escrituras nos dizem que sim, que Ele controla tudo. Portanto, devemos concluir que, embora Deus não determine aquilo que vamos fazer, Ele ainda exerce controle total sobre todas as nossas ações. A reconciliação entre a soberania de Deus e a liberdade do homem é simplesmen­te um mistério.

Outros autodeterministas, que afirmam que Deus exerce so­berania específica, crêem que há uma resposta racional para esta questão, e que esta resposta reside na adequada compreensão do que é a onisciência de Deus. Argumentam que DeuS não determina aos homens que ajam de maneira pré-fixada. Contudo, visto que Deus é onisciente, Ele sabe antecipadamente (sabe de modo inde­pendente do tempo) o que é que as pessoas decidirão fazer, usan­do a liberdade com que foram dotadas. Isto permite a Deus orde­nar Sua criação de maneira tal, que aquilo que os homens fazem livremente estará sempre dentro de Seu plano preestabelecido, es­pecificamente traçado. Em outras palavras, Deus determina a rea­lidade de acordo com o que Ele prevê (aquilo que Ele vê indepen­dentemente do tempo), as ações livres praticadas pelos seres hu­manos. Assim sendo, as pessoas são livres num sentido autode- terminístico, mas Deus continua controlando totalmente todos os eventos específicos no mundo. Norman Geisler, outro de nossos colaboradores, defende uma variante deste conceito.

Adeptos da Soberania Geral. Contrariamente a estas opi­niões, alguns crentes negam que Deus exerça uma soberania es­pecífica. Estes crentes acreditam que o livre-arbítrio do homem realmente limita o controle de Deus sobre os acontecimentos ter­renos. Eles concordam com os teólogos deterministas em que se as ações humanas são determinadas por Deus, então Deus pode manter um controle total sobre todos os acontecimentos do mun­do. Eles crêem, contudo, que nossas ações livres não são prede­terminadas. Em outras palavras, pregam a teoria autodeterminís- tica (ou libertária) do livre-arbítrio humano. Dessa forma, afir­mam que Deus não controla os acontecimentos mundiais na me­dida em que Ele nos concede liberdade de ação. Num mundo co­mo o nosso, argumentam, Deus é capaz de atingir objetivos ge­rais. Contudo, Deus não pode garantir que todos os acontecimen­tos específicos estarãq dentro de Sua vontade. A todos quantos

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estiverem neste grupo daremos o nome de adeptos da soberania geral de Deus.

Mas, até que ponto Deus exerce algum controle, num mun­do em que as pessoas são livres? Neste ponto, há vasta gama de opções. Numa das extremidades da faixa variegada estão os que acreditam em que Deus não pode suscitar quaisquer acontecimen­tos na terra por Si mesmo, apenas. Deus tenta persuadir Suas cria­turas a agirem de acordo com Sua vontade. É verdade que esta in­fluência divina exerce alguma diferença, porém, Deus não pode garantir que determinado evento específico vai ocorrer. Os teólo­gos processuais advogam este conceito de Deus.

Na outra ponta da tal faixa variegada de conceitos colocam-se aqueles que vêem a Deus retendo um controle relativamente grande dos acontecimentos mundiais. Eles argumentam que Deus pode anular, e freqüentemente anula mesmo, o livre-arbítrio humano, e até intervém diretamente na ordem natural das coisas, quando julga que isto é necessário. Assim, crêem que Deus pode fazer cum­prir Seus planos mediante intervenção judiciosa, embora tenha si­do Sua vontade de atribuir liberdade aos homens, razão por que Ele não pode controlar todos os acontecimentos humanos.

Nossos dois últimos colaboradores, Clark Pinnock e Bruce Reichenbach, alinham-se entre os que estão nesta faixa denomi­nada soberania geral. Ambos afirmam que Deus pode interferir nos assuntos humanos, mas negam que Ele garante que Seus pro­pósitos específicos são sempre atingidos. Para ambos, a decisão de Deus de atribuir liberdade às pessoas representa uma limitação significativa de Seu controle sobre os eventos terrestres. Eles diver­gem, contudo, quanto ao grau de “limitação” do poder divino so­bre os eventos humanos. Eles não concordam entre si, por exem­plo, na importantíssima questão sobre se Deus sabe com exatidão o que acontecerá no futuro. Reichenbach afirma que Deus tem tal conhecimento. Para ele, Deus jamais é apanhado de surpresa. Ele sabe o que vai acontecer no universo. Pinnock, por sua vez, acre­dita que a liberdade humana é incompatível com a presciência di­vina. Assim sendo, Deus operaria num universo mais “aberto”.

Não nos preocupamos com identificar nossos colaboradores como sendo calvinistas, ou arminianos. Na verdade, os dois pro­ponentes daquilo que arbitramos denominar de soberania espe­cífica consideram-se calvinistas, enquanto os dois proponentes da soberania geral consideram-se arminianos. Entretanto, alguns

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proeminentes pensadores da Reforma colocam-se dentro desta ca­tegoria da soberania geral, enquanto alguns arminianos parecem preferir a soberania específica. Além do mais, dizer-se que uma pessoa é calvinista, ou arminiana, é afirmar muito mais do que expor determinada perspectiva concernente ao relacionamento en­tre a soberania divina e o livre-arbítrio humano.

Devemos mencionar, também, a razão por que não incluímos nenhum colaborador que representasse as posições de paradoxo, que delineamos brevemente, acima. Não é que acreditemos que qualquer uma dessas posições seja menos digna de consideração. É que ao discutir um assunto tão complexo como este que nos de­fronta, torna-se impossível abordar todas as suas facetas. Toma­mos, então, a decisão consciente de discutir apenas aquelas posi­ções em que se afirma que a soberania divina e o livre-arbítrio hu­mano podem ser demonstrados como logicamente compatíveis.

Finalmente, expliquemos brevemente a maneira pela qual o material é apresentado. Como já se mencionou, o problema da so­berania divina e liberdade humana apresenta dois aspectos: o teó­rico e o prático. Atendendo a isto, nossos colaboradores não ape­nas apresentam suas perspectivas teóricas, mas demonstram tam­bém as implicações práticas dessas perspectivas, aplicando-as a dois casos específicos, duas histórias que serão contadas a seguir. Um desses casos relaciona-se com um interesse global significa­tivo, o outro caso relaciona-se com um problema mais pessoal. Ca­da colaborador apresenta seu artigo inicial, ou tese, após o que os demais colaboradores entram com suas réplicas, ou críticas resu­midas.

Cremos que a harmonização entre a soberania divina e o livre- arbítrio humano é um dos problemas mais importantes e funda­mentais, enfrentados pelos crentes conscienciosos. No entanto, achamos que poucos outros assuntos causam mais confusão. Nos­sa esperança é que este livro ajude os crentes a encontrar algumas respostas, ou pelo menos a prover um contexto que traga melho­res perspectivas a essa pesquisa.

Casos de EstudoO Caso de Alfredo. Os empreendimentos familiares melhoraram muitíssimo, depois que Alfredo assumiu a gerência. Sendo um crente consagrado, que sempre acreditou na soberania controla­dora de Deus, Alfredo continuamente agradece a Deus o progres­

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so, e as bênçãos materiais dele decorrentes, para si mesmo e sua família.

Como resultado de algumas leituras, e da freqüência a uma série de palestras na igreja, Alfredo começou a perceber a tremen­da pobreza existente no mundo, e suas causas tão complexas. Aprendeu que as economias globais estão interligadas. Pela pri­meira vez, percebeu que sua riqueza pessoal não é produzida num vácuo; a pobreza em algum canto remoto do mundo não estaria de algum modo relacionada à riqueza de Alfredo? Como resul­tado disto, o moço está achando cada vez mais difícil orar a Deus. Pensa nos milhões que morrem de fome, e suas orações de agra­decimento começam a soar ocas e egoístas. Será que ele deveria ficar agradecendo a Deus sua própria riqueza? Seria realmente Deus o responsável por suas bênçãos materiais? Até que ponto sua riqueza se deve ao fato de ter nascido numa próspera nação oci­dental? De que maneira Deus Se enquadra nessa situação econô­mica? Estas perguntas sobrecarregam a mente e o coração de Al­fredo.

O Caso de Maria. Maria está alegríssima por causa de seu no­vo cargo no corpo de enfermeiras de um dos melhores hospitais da cidade. Essa alegria a tem ajudado a vencer o amargo desapon­tamento que ainda vinha sentindo, após a sucessiva coleção de der­rotas nos vestibulares das faculdades de medicina.

O pastor de Maria sugeriu que o insucesso dela nos vestibu­lares para medicina poderia ter sido a maneira de Deus conduzi- la para algo melhor. De início ela rejeitou tal sugestão; contudo, depois, parecia haver alguma lógica na idéia. É possível que Deus abra e feche portas em nossas vidas. Talvez ela devesse atribuir seu sucesso na escola de enfermagem, e a facilidade com que havia ob­tido seu cargo atual, à direção direta e soberana de Deus. Se as coi­sas assim fossem, Maria poderia pensar, corretamente, que está no centro da vontade de Deus.

Mas, Maria ainda tem pensamentos e perguntas que expres­sam dúvidas. E se ela houvesse estudado mais arduamente para o vestibular? E se ela houvesse tentado mais uma vez, como al­guns amigos e colegas haviam sugerido? E se ela houvesse procu­rado outras faculdades, em outros Estados? Será que as coisas te­riam sido diferentes? Quem sabe se algumas decisões erradas, al­guns preconceitos tolos, ou a falta de persistência contribuíram

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para o insucesso de Maria, no que concerne ao seu objetivo de cur­sar medicina?

Entretanto, se esta linha de pensamento estiver certa, em que ponto Deus Se enquadra? Se houvesse ingressado numa faculda­de de medicina, será que ela estaria fora da vontade de Deus? Se­rá que Maria perdeu as melhores bênçãos de Deus para sua vida? Tais perguntas perseguem a moça, causando-lhe grande tristeza.

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Deus Decreta Todas as CoisasI

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Deus Decreta Todas as CoisasJohn S. Feinberg

S o m o s r o b ô s o u p e s s o a s l i v r e s ? q u e m é q u emanda neste mundo: Deus ou nós? Se Deus preordena nos­sas ações, de que maneira somos moralmente responsáveis

por elas? Se Deus determinou o que faremos, devemos fazê-lo? Tais questões têm deixado perplexos, durante séculos, filósofos, teó­logos e pessoas comuns. Tais perguntas representam problemas tre­mendos para os crentes ortodoxos, de lealdade inamovível a Cristo e às Escrituras. Pouquíssimos crentes negariam que, de algum mo­do, Deus é soberano e reina sobre todas as coisas, mas, da mesma forma, pouquíssimos negariam a vontade livre do homem. De que forma estes dois conceitos poderiam ser conjugados? Será que este problema tem solução fora do alcance da compreensão humana? Deveríamos, talvez, crer simplesmente na Bíblia, quando nos afir­ma que Deus é soberano absoluto, e que nós somos livres, embo­ra não sejamos capazes de explicar como as duas doutrinas cons­tituem verdades?

Graças a Deus este problema não é insolúvel. Na verdade, há várias maneiras de harmonizar estes dois conceitos. Neste capí­tulo, apresentarei uma forma moderadamente calvinista de recon­ciliar as doutrinas do controle divino com a liberdade humana. Esta perspectiva baseia-se numa avaliação da liberdade, que tem

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natureza determinística. Será que isto lhe parece impossível? Àntes que você comece a amontoar noções de robôs, de universo meca- nicista, e de fatalismo, retenha seu julgamento durante algum tem­po, o suficiente para que eu possa explicar minha posição.

Declaração de PosiçãoOs filósofos freqüentemente utilizam os rótulos de indeterminis­m o e determinismo nos debates a respeito da liberdade humana . 1 De um ponto de vista teológico, os arminianos geralmente ade­rem a alguma forma de indeterminismo filosófico, enquanto os calvinistas em geral são deterministas. Contudo, não existe a de­finição de indeterminismo, nem a definição de determinismo. Ao invés, existem variedades de definições para ambos os conceitos.

Indeterminismo e Determinismo: Noções Básicas. Em seu sen­tido básico por excelência, o indeterminismo insiste em que as ações de uma pessoa são livres se não forem determinadas por uma causa.2 Conseqüentemente, tal pessoa sempre poderia ter escolhi­do outro curso de ação. Embora seja esta uma definição geral de indeterminismo, ela pode redundar em engano. Por exemplo, ela é tomada, às vezes, como afirmativa de que jamais as condições causais influenciam a vontade. Entretanto, a maioria dos indeter- ministas não aceita esta proposição. Ao contrário, eles crêem que há causas que influenciam a vontade, antes de tomar-se uma de­cisão, e que uma variedade de influências causais pode inclinar a vontade numa ou noutra direção, no momento da decisão. Contu­do, os indeterministas negam que qualquer causa ou conjunto de causas seja suficiente para determinar que a pessoa tome esta de­cisão, ao invés daquela. No ponto em que se tomará a decisão, as várias influências chegam a uma paralisação. Umas empurram nu­

1 Isto não representa uma sugestão de que os filósofos chegaram a um acor­do quanto a que conceito de liberdade é o correto. De fato, o debate entre os filósofos parece estar “marcando passo”, de muitas maneiras. Conseqüente­mente, embora haja argumentação filosófica para cada ponto de vista, penso que a decisão final deve ser baseada, como última palavra, nas Escrituras Sa­gradas. Entretanto, o meu ponto focal nesta altura é simplesmente que as Es­crituras ensinam que há liberdade humana, mas não declaram que tipo de li­berdade está em jogo. Portanto, a pessoa precisa voltar-se para a discussão fi­losófica, a fim de buscar uma explicação das várias maneiras pelas quais se pode compreender o livre-arbítrio humano.2 Laurence A. BonJour, “Determinism, Libertarianism, and Agent Causation”, Southern Journal o f Philosophy 14 (1976): 147.

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ma direção, outras em outro sentido, mas, nenhuma empurra com força suficiente para fazer causar ao agente uma determinada es­colha, em detrimento de outra .3

Um segundo erro de conceito acerca do indeterminismo é que ele presume que porque uma escolha livre não é causada, fica des­tituída de base, ou de razão, sendo, portanto, aleatória. As esco­lhas são feitas mediante uma razão. O argumento do indetermi- nista é que não se pode atribuir uma explicação causai sobre o por­quê da ação do agente; por que ele agiu de acordo com uma ra­zão particular ao invés de outra razão qualquer.4

Um último engano a respeito do indeterminismo é que ele en­sina que uma ação causalmente indeterminada não é causada por um agente. Os indeterministas não negam que as pessoas causam suas próprias ações. Os indeterministas meramente negam que ha­ja alguma coisa que leve a pessoa a praticar a ação.5

Esta é, então, a noção básica do indeterminismo. Alguns fi­lósofos referem-se a ela como liberdade contracausal.6 Significa que não importa a direção para onde as causas aparentemente pro­curam inclinar a vontade do agente, a pessoa sempre poderá agir contrariamente a tais causas, visto que estas não inclinam o agente de modo decisivo, nesta ou naquela direção.

Explicado o que é indeterminismo, o determinismo difere substancialmente, como se pode observar. A noção básica de de­terminismo, que cobre todas as suas formas, é “a tese filosófica geral que declara que para tudo quanto vem a acontecer, há con­dições tais, que, estando presentes, nenhum outro fato poderia acontecer”.7 De acordo com esta definição, ou perspectiva,

3 Thomas B. Talbott, “Indeterminism and Chance Occurrences”, Personalist 60 (1979): 254.4 Ibid.5 Ibid.6 Veja-se, por exemplo, a discussão de Talbott (em “Indeterminism and Chance Occurrences”, p. 257), ou o uso que J. J. C. Smart faz deste termo. Outros, como Antony Flew, referem-se a esta posição como sendo Incompatibilismo. Veja- se Antony Flew, “Divine Omnipotence and Human Freedom”, NewEssays in Philosophical Theology, eds. Antony Flew e Alasdair Maclntyre (New York: Macmillan, 1955).7 Richard Taylor, “Determinism”, em The Encydopedia o f Philosophy, ed. Paul Edwards (New York: Macmillan, 1967), 2:359. Outra maneira de enfatizar- se o ponto é a seguinte: para qualquer ação ou evento determinado causalmente existe um estado de coisas imediatamente anterior à ocorrência dessa ação ou evento que, combinado com algumas leis causais, tornam certo que a ação ou evenlo realmente ocorrerá.

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por detrás de cada decisão que uma pessoa tomar haverá condi­ções causais influindo sobre sua vontade, de forma a incliná-la de modo decisivo, e com força suficiente, numa dada direção ao in­vés de outra. Conseqüentemente, o agente não poderia ter agido de forma diferente, dadas as influências causais prevalecentes.8 Além disso, alguns deterministas afirmam que se se conhecerem as condições anteriores à ocorrência de uma ação, ou de um evento, bem como quaisquer leis gerais relacionadas com o caso, pode- se predizer aquilo que não apenas pode mas deve acontecer. Para alguns, pois, a previsão de ações e eventos é concomitante lógica do determinismo.

Embora estas noções gerais bastem para definir o determi­nismo, surgem entre os deterministas algumas diferenças impor­tantes. Por conseguinte, neste ponto é necessário que se faça a dis­tinção que há entre minha forma de determinismo e aquelas de­fendidas por outros autores.

Determinismo nas Ciências Naturais vs. nas Ciências Huma­nas. Em primeiro lugar, o determinismo que se refere às ciências naturais é diferente do determinismo empregado nas ciências hu­manas, ou sociais. Muito freqüentemente, filósofos e teólogos têm interpretado o determinismo em geral, e o calvinismo, em parti­cular, em termos de determinismo nas ciências físicas.9 O mode­lo de Carl Hempel, que propicia uma explicação científica, pres­supondo o determinismo, freqüentemente é mencionado em dis­cussões filosóficas contemporâneas. É um modelo conhecido co­mo dedutivo-nomológico (ou, simplesmente, modelo de lei de co­bertura). De acordo com este conceito, se alguém puder estabele­

8 Peter Van Inwagen, “The Incompatibility of Free Will and Determinism”, Philosophical Studies 27 (1975): 186. Van Inwagen denomina estas leis de leis da física. Com este termo ele denomina e esclarece uma lei da natureza que não se relaciona com o comportamento voluntário de agentes racionais (p. 187). Veja-se também BonJour, p. 145; e A. Aaron Snyder, “The Paradox o f Deter­minism”, American Philosophical Quarterly 9 (outubro de 1972): 353 onde se encontra uma definição semelhante de determinismo causai; também John V. Canfield, “The Compatibility o f Free Will and Determinism”, Philosophi­cal Review 71 (1962): 353-55 quanto a uma definição mais formal do determinismo.9 De fato, alguns dos itens-chaves já mencionados, tais como capacidade de previsão e leis gerais causais, estão intimamente relacionados com o determi­nismo, nas ciências físicas; contudo, só seriam aplicáveis às ciências sociais, trazendo consigo algumas dúvidas.

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cer uma série de sentenças que enunciem condições antecedentes específicas, anteriores a um evento e, em seguida, adicionar ou­tro grupo de sentenças que representem leis gerais que cubram tais eventos, tal pessoa poderá, então, deduzir e predizer que esse even­to particular vai ocorrer. De forma semelhante, se alguém come­çar com o evento, e encontrar as leis relevantes, e as condições an­tecedentes, poderá explicar as razões por que o fato aconteceu. 10

A importância disto reside aqui: muitos filósofos afirmam que este modelo só é apropriado para as ciências físicas, enquan­to outros argumentam que ele mesmo também pode ser usado nas ciências sociais, ou do comportamento. 11 Meu propósito não é apresentar uma refutação de Hempel, nem do modelo de cober­tura legal (embora eu o ache inadequado para uso nas ciências hu­manas) .12 Insisto em que se a pessoa julgar o determinismo em termos das ciências físicas, provavelmente será induzida a um mo­delo de cobertura legal, a fim de explicar a ação humana e, com certeza, será levada a crer que o comportamento humano pode ser predito. 13 Tais idéias nunca foram particularmente atraentes à maioria das pessoas, razão por que rejeita-se o determinismo com­pletamente. Entretanto, o ponto crucial é que o determinismo teo­lógico do tipo que defendo jamais deveria ser confundido com o determinismo das ciências físicas. H á condições antecedentes, an­teriores à decisão da pessoa. Mas, muito freqüentemente, tais con­dições são tão complexas que a pessoa não conseguiria redigir to­das as sentenças necessárias para especificá-las. Além do mais, não parece haver leis gerais cobrindo ações, de maneira que a pessoa pudesse dizer: “Nos exemplos do tipo A, o agente sempre esco­lherá a ação B” Estas leis gerais são possíveis nas ciências físicas, porém, não em relação às ações humanas.

10Carl G. Hempel e Paul Oppenheim, “Studies in the Logic o f Explanation”, separata, de Philosophy o f Science 15 (abril de 1948): 135-14011 Veja-se, por exemplo, Carl Hempel, “Rational Action”, Readings in the Theoiy o f Action, eds. Norman S. Care e Charles Landesman (Bloomington, Ind.: Indiana Univ. Press, 1968).12Compare Alan Donagan, “The Popper-Hempel Theory Reconsidered”, Phi­losophical Analysis and History, ed. William H. Dray (New York: Harper & Row, 1966).13Quanto a uma discussão do assunto referente à capacidade de previsão, vejam-se artigos tais como o de Lawrence D. Roberts, “Scriven and MacKay on Unpredictability and Free Choice”, M ind 84 (1975); Lionel Kenner, “Cau- sality, Determinism and Freedom of the Will”, Philosophy 39 (1964): 233; e J. Kellenberger, “The Causes of Determinism”, Philosophy 50 (1975): 445-446.

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Determinismo vs. Fatalismo. Em segundo lugar, determinismo tampouco é fatalismo. É verdade que algumas posições determi- nísticas duras são equivalentes ao fatalismo, porém, nem todas o são. Determinada posição é fatalística se vindicar uma necessidade inerente na forma como as coisas são, de tal maneira que não po­deriam ser diferentes. Assim, se uma pessoa em nosso mundo usa óculos, não há mundo concebível que Deus pudesse ter criado, em que aquela pessoa não precisasse usar óculos. É inerente nessa pes­soa, como conceito, que ela usa óculos. Para o fatalista, o mes­mo é verdadeiro para tudo quanto acontece. Os fatalistas que crêem em Deus afirmam que nem mesmo Deus teve outra opção senão a de criar o mundo da maneira como Ele o fez. A necessi­dade inerente14 em tudo é de tal ordem, que Deus tinha de criar, e havia uma única opção criativa, aberta para Ele.

Em contraste, creio que todas as coisas são determinadas me­diante uma causa, porém, o determinismo causai não redunda em fatalismo. Não creio que tudo quanto acontece, acontece por ne­cessidade absoluta, no sentido que não haveria outra forma pela qual as coisas deveriam acontecer. Advogo, antes, aquilo que se chama necessidade conseqüente. Acredito que desde que certas de­cisões tenham sido tomadas (por Deus, ou por quem quer que se­ja), determinadas coisas seguem-se como conseqüência. Entretan­to, antes que tais decisões sejam tomadas, não existem necessida­des inerentes ditando as decisões a serem tomadas. Por exemplo: Não foi absolutamente necessário que Adão pecasse, no sentido que não havia outro Adão que Deus poderia ter criado. Conse­qüentemente, não era necessário, de modo absoluto, que Deus de­cidisse mandar Seu Filho, Jesus Cristo, como redentor. Entretanto, tendo escolhido criar Adão sujeito ao pecado, foi necessário que Deus enviasse Cristo como redentor.

Liberdade e Determinismo. Em terceiro lugar, devemos escla­recer o relacionamento existente entre meu conceito de determi­nismo e o livre-arbítrio humano. É claro que os indeterministas afirmam que o determinismo causai automaticamente anula a ação humana livre. Contudo, os indeterministas usualmente não imaginam haver outra definição de livre-arbítrio senão aquela que lhes é peculiar. Tal atitude induz ao erro lógico conhecido como

14É a isto que os filósofos se referem como necessidade de re, ou necessidade absoluta.

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encerrar a questão, ou argumentar em círculo. Também muitos de­terministas declaram que seu ponto de vista anula o livre-arbítrio. Além disso, visto que um agente só é considerado moralmente res­ponsável se for livre, tais deterministas vindicam que nenhum agente é moralmente responsável. 15 Da mesma forma, muitos cientistas sociais argumentam que, desde que somos todos o pro­duto final de nossa hereditariedade e do ambiente, não somos li­vres e, portanto, não somos moralmente responsáveis pelo que fa­zemos. Tais conceitos, entretanto, representam uma forma “du­ríssima” de determinismo.

Infelizmente, alguns calvinistas têm negado que os seres hu­manos são livres, por causa de sua má compreensão da soberania de Deus. No entanto, alguns desses calvinistas sustentam que so­mos moralmente responsáveis pelos nossos pecados, enquanto Deus, que decretou nosso pecado, não é moralmente responsável pelo pecado. Quando se lhes pergunta como é isso possível, res­pondem que se trata de um paradoxo que, não obstante, deve ser verdade, visto que as Escrituras o exigem.

Eu não adoto este paradoxo. Ao contrário, à semelhança de tantos outros deterministas, creio que há lugar para um conceito genuíno de ação humana livre, embora tal ação seja causalmente determinada. É claro que este tipo de liberdade não pode ser in- determinístico. Ao invés, os deterministas que crêem no livre- arbítrio costumam distinguir dois tipos de causas que influenciam e determinam nossas ações. Por um lado, há causas constrange­doras que forçam o agente a agir de modo contrário à sua vonta­de. Por outro lado, há causas não-constrangedoras. Estas são su­ficientes para promover uma ação; contudo, não forçam a pessoa a agir contra sua vontade, ou contra seus desejos. De acordo com os deterministas, entre os quais eu me alinho, qualquer ação é li­vre, mesmo quando causalmente determinada, desde que tais cau­sas não sejam constrangedoras. Freqüentemente há referências a este tipo de determinismo como sendo determinismo suave, ou compatibilismo, visto que uma ação humana genuinamente livre é vista como sendo compatível com condições suficientes, não

l5Taylor, “Determinism”, p. 368. Como observa Taylor, o grande advogado americano Clarence Darrow usou este tipo de argumentação para livrar inú­meros criminosos.

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constrangedoras, que inclinam a vontade decisivamente, de uma forma ou de outra . 16

Esta noção de liberdade parece razoável se o agente é causal­mente determinado para agir da maneira que agiria por si mes­mo. Mas, e se essa pessoa é causalmente determinada a agir, fa­zendo algo contrário a seus desejos? E mais: e se Deus tiver de­cretado que ela fará algo que não queria fazer? Como é que Deus pode garantir que essa pessoa escolherá livremente (segundo o con­ceito de liberdade do compatibilista) fazer algo que Ele decretou, se essa pessoa não quiser fazê-lo? Embora isto pareça constituir uma dificuldade insolúvel, na verdade não é. Uma simples ilustra­ção explicará a resolução do problema.

Suponhamos que eu decida que certo estudante deve sair da sala de aula. Há pelo menos três maneiras pelas quais eu poderia realizar isto. Em primeiro lugar, se eu fosse suficientemente for­te, fisicamente, poderia levantar esse indivíduo e removê-lo da sala. Neste caso, o estudante não quer agir; ele é uma vítima, não um agente. Este é um exemplo de um tipo extremado de constrangi­mento. A saída do estudante de maneira alguma poderia ser con­siderada um ato livre de sua parte.

Em segundo lugar, eu poderia manter um revólver encosta­do à cabeça do estudante, e dizer-lhe que saísse, caso contrário per­deria a vida. Neste caso, o estudante não quer realmente deixar a sala, mas quer continuar vivendo. Neste caso a situação é dife­rente, e ele precisa tomar uma decisão. Sendo sábio, ele prefere sair, embora na verdade quisesse permanecer. Podemos falar, aqui, que o estudante exerceu seu arbítrio, embora tenhamos de admitir que ele o fez sob coerção, ou compulsão. Assim, ele agiu, mas a ação não foi livre. 17

Finalmente, se eu vejo que o estudante não quer sair da sala, tento persuadi-lo, dizendo-lhe que seria mais prudente sair. Esta

16Com respeito a tal liberdade, não estou sugerindo que nenhum agente jamais age sob constrangimento (nem afirma o indeterminista que todas as ações de todos os agentes são sempre livres contracausalmente), mas apenas que as con­dições básicas da vontade resumem-se em agir sem constrangimento, portan­to, com toda liberdade. Entretanto, se o agente é determinado causalmente, me­diante causas constrangedoras, numa ocasião particular, eu diria que esse ato nessa ocasião não foi livre.17Veja -se Antony Flew, “Compatibilism, Free Will and God”, Philosophy 48 (julho de 1973): 234 para mais alguns exemplos.

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persuasão não inclui ameaças, porque neste caso eu estaria cons­trangendo-o. Ao invés, apresento-lhe razões por que lhe seria van­tajoso sair da sala (talvez haja alguém lá fora distribuindo dinheiro para estudantes necessitados, por exemplo). Após ouvir-me, o es­tudante analisará meus argumentos e as circunstâncias de sua vi­da, e concluirá que deverá sair da sala, o que lhe redundará em maior benefício.

De início, ele não tinha o mínimo interesse em sair, nem qual­quer desejo ou intenção. Porém, ao considerar todos os fatores re­levantes, seus desejos mudaram. Agora, ele quer sair da sala, agin­do de acordo com seus desejos mudados. Neste caso, a ação do estudante é causalmente determinada, mas foi praticada de ma­neira livre (compatibilisticamente), visto que o estudante não foi constrangido a agir contra seus desejos. É isto que se intitula de­terminismo suave, ou compatibilismo. 18

Esta noção de liberdade, ou livre-arbítrio, pode facilmente ser aplicada ao relacionamento existente entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. Deus pode decretar todas as coisas e, ao mesmo tempo, nós estaremos agindo livremente, de acordo com o sentido compatibilista de liberdade. Deus pode garantir que Seus objetivos serão atingidos livremente, mesmo quando alguém não deseja praticar um ato, visto que o decreto inclui não apenas os fins escolhidos por Deus, mas também os meios para a consecu­ção desses fins. Tais meios incluem todas e quaisquer circunstân­cias e fatores necessários para convencer a pessoa (sem constran­gimento) de que a ação que Deus decretou é a ação que essa pes­soa deseja praticar. E assim, propiciadas as condições suficientes, a pessoa praticará a ação.

l8Obviamente, esta perspectiva induz à idéia de que as razões podem servir co­mo causas, de alguma maneira. Não desejo debater isto aqui, embora seja um ponto bem discutível. Será suficiente afirmar-se que as razões podem funcio­nar como meio de mudar-se o pensamento da pessoa, de tal maneira que ela fará, em seguida, aquilo que é consentâneo com seu raciocínio (embora isto não signifique que as pessoas sempre ajam racionalmente, mas, apenas, que no caso de um ato voluntário, ao invés de reflexivo, ou involuntário, elas agem de acordo com seu raciocínio). Parece que tal raciocínio se qualifica legitima­mente como sendo uma parte das condições suficientes capazes de inclinar a vontade em dada direção. Quanto a uma perspectiva diferente, veja-se A. C. Maclntyre, “Determinism”, M ind 66 (1957): 37-38; e Charles B. Fethe, “Ra- tionality and Responsability”, Personalist 53 (1972).

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Livre-Arbítrio, Determinismo e a Ação Inteiramente Diferen­te. É preciso discutir um último item concernente à noção de livre- arbítrio. Argumentam os indeterministas que ninguém é livre se não puder agir de maneira inteiramente diferente (para os inde­terministas, isto significa liberdade contracausal). Os indetermi­nistas afirmam, desta maneira, que os deterministas eliminam a liberdade, porque estes negam que o agente poderia ter agido de maneira totalmente diferente. 19 Embora, à primeira vista, isto pa­reça verdadeiro, de fato não o é. Os deterministas suaves, em par­ticular, declaram que quando se houver entendido adequadamente o sentido da frase poderia ter agido de m odo inteiramente dife­rente, ainda haverá espaço para um genuíno senso de livre-arbítrio.

O ponto mais importante, aqui, é o sentido que devemos atri­buir à palavra poderia (ou pode). Poderíamos encontrar pelo me­nos sete significados para este verbo. Primeiramente, pode pode­ria ser interpretado no sentido contracausal segundo o qual ne­nhuma causa, ou conjunto de causas, é suficiente para produzir qualquer escolha particular, da parte do agente. Neste sentido, o determinista afirma que a pessoa não pode agir de modo inteira­mente diferente. Aqui reside o ponto focal de seu desentendimento com os indeterministas. O assunto não pode ser decidido, porém, de maneira simples, mediante a definição contracausal do livre- arbítrio, como muitos indeterministas fazem.

Em segundo lugar, pode é palavra que também se interpreta de maneira condicional. De acordo com esta interpretação, o agen­te poderia ter agido de maneira inteiramente diferente é sentença que significa o seguinte: a pessoa teria agido de maneira inteira­mente diferente, se ela assim tivesse decidido.20 Embora alguns deterministas aceitem esta análise, ela realmente não caracteriza a liberdade determinística, porque apenas ergue nova objeção contra o determinismo, que é: e se o agente não pudesse ter escolhido?21

Em terceiro lugar, há o sentido de “capacidade”, implícito em pode. Determinada pessoa poderá não escolher, nem praticar, certa ação, porém, tem capacidade para praticá-la. Em outras palavras, não há nada errado em sua faculdade volitiva, e nada existe, in­

19Veja-se, por exemplo, Van Inwagen, “Incompatibility”, p. 188; e Susan Wolf, “Asymmetrical Freedom” The Journal o f Philosophy 77 (1980): 154.20Veja-se Wolf, “Asymmetrical Freedom”, p. 154, quanto a esta análise.21 Ibid.

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terna ou externamente, que faça essa pessoa julgar ser impossí­vel escolher, ou praticar, determinada ação. Por exemplo, um pa­raplégico não pode correr um quilômetro, mesmo que ele decida correr, mas uma pessoa não-paraplégica, que esteja em boa for­ma física, será capaz de decidir e efetivamente correr, mesmo que outras condições o levem a fazer o contrário .22

Em quarto lugar, há o sentido de “oportunidade” no verbo pode, segundo o qual a pessoa tem a capacidade e também a opor­tunidade de fazer algo. Por exemplo, uma menina pode ter a ha­bilidade de pular à altura de um metro; se ela estiver ao ar livre, num campo, terá a oportunidade de fazê-lo, mesmo que decida não pular.23

Em quinto lugar, a palavra pode teria uma conotação de lei. Neste sentido, haveria algum regulamento que permite ou proíbe o ato que a pessoa está capacitada a praticar, e tem a oportunida­de de praticar. Assim, se o regulamento permite estacionamento em frente a determinado edifício, o motorista pode estacionar ali, mesmo que algo possa impedir que estacione.24

Pelo sexto significado do verbo poder, o agente não pode fa­zer algo por causa das más conseqüências resultantes dessa ação. Por exemplo, não posso (dadas as conseqüências negativas) con­duzir meu carro precipício abaixo, embora eu obviamente tenha para isso tanto a capacidade como a oportunidade, não existin­do lei que me proíba executar tal ação.25 Nem mesmo uma pes­soa adepta da liberdade contracausal pode efetuar este ato, neste sentido do verbo poder.

22 John Canfield, p. 356-357. Veja-se, também, Max Hocutt, “Freedom and Capacity”, Review o f Metaphysics 29 (1975) quanto à distinção entre livre-ar­bítrio e capacidade. Deve-se observar que há um sentido em que até mesmo um indeterminista, em certas ocasiões, negaria a “capacidade” envolvida em pode. Por exemplo, se se pedir ao agente que efetue uma contradição, nem mes­mo o indeterminista afirmaria que, embora não tenha realizado a contradição, esse agente poderia ter feito outra coisa. Mas, esta negação da habilidade, ou capacidade, do agente em relação a tal ato, dificilmente se identificaria como negação do livre-arbítrio do agente. Assim, só porque A nega que B pode agir diferentemente da forma como agiu, isto não prova que A nega a existência de livre-arbítrio. Conseqüentemente, quando um determinista afirma que um agente não poderia ter agido de maneira diferente, deve-se perguntar o que é que esse determinista quer dizer com isso, ao invés de presumir que ele negao livre-arbítrio.23Ibid„ pp. 357-358.24lbid„ p. 358.25 Ibid., p. 359-360.

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H á um sentido final para o verbo poder, sentido que parece muito apropriado ao determinismo suave: é aquele em que o ver­bo significa “ser razoável”. Neste sentido, quando dizemos que al­guém pode fazer algo, queremos dizer que é razoável esperar-se que a pessoa faça isso mesmo, de acordo com as circunstâncias, ao passo que dizer-se que a pessoa não pode fazer algo, significa apenas que, dadas as circunstâncias, é irrazoável esperar-se que a pessoa faça aquilo.26 Estabeleça-se claramente, pois, que se este for o sentido de o agente poderia (não poderia) ter agido de m a­neira diferente, um determinista suave como eu mesmo pode con­cordar em que o agente poderia (não poderia) ter agido de forma diferente e ainda manter seu senso de liberdade. Visto que segun­do este sentido de poder, a pessoa está falando das razões pelas quais faria uma ou outra coisa, se tais razões forem decisivas (e neste caso parece que são) a ação de que se fala é causalmente de­terminada. Contudo, afirmar-se que seria irrazoável o agente ter agido de forma diferente não significa que suas decisões foram to­madas sob coerção. Na verdade, é a própria racionalidade da de­cisão tomada que valoriza sua ação, visto que ele decidiu de acordo com seus desejos e, portanto, (segundo o determinismo suave) sob livre-arbítrio.

O fato a ser enfatizado é que o determinista suave pode in­terpretar o verbo poder de qualquer maneira, exceto com o pri­meiro sentido, e pode concordar com o indeterminista quanto ao agente poder agir de forma diferente. Se a capacidade para agir de maneira diferente é o critério do livre-arbítrio, o determinista, neste caso, pode falar legitimamente de liberdade. O determinis­ta terá removido o livre-arbítrio do universo apenas no caso de al­guém ser arbitrariamente limitado ao primeiro sentido do verbo poder.

Soberania de Deus e Determ inism oTendo esclarecido o que entendo por livre-arbítrio, ou liberdade humana, é meu desejo discutir, agora, a soberania divina. Para mim, Deus é absolutamente soberano e, deste modo, possui ab­soluta autodeterminação. Com isto quero dizer que a vontade de Deus cobre todas as coisas, e que a base das decisões soberanas de Deus não é aquilo que Ele prevê que acontecerá, nem qualquer

26 Este sentido é apresentado por Winston Nesbitt e Stewart Candlish, “On Not Being Able to Do Otherwise”, M ind 82 (julho de 1973): 327.

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outra coisa à margem de Sua vontade. Ao contrário, os bons pro­pósitos de Deus, e aquilo que Lhe apraz, determinam os fatos que Ele decreta. Acredito, ainda, que Deus já escolheu de vez toda a seqüência de fatos interligados, já ocorridos ou a ocorrer neste mundo. As decisões de Deus não eram absolutamente necessárias (rejeito o fatalismo), mas apenas necessárias em conseqüência de outras decisões que Deus tomou.

Esta perspectiva da soberania de Deus enquadra-se lindamen­te dentro do compatibilismo. Já que os decretos de Deus cobrem todas as coisas, devem incluir os fins objetivados por Ele, tanto quanto os meios, de maneira a evitar a coerção do agente na exe­cução daquilo que foi decretado. Portanto, as ações humanas são causalmente determinadas, mas livres.

Argumentos B íblicos e TeológicosTenho razões de ordem teológica e bíblica, bem como de ordem filosófica, para justificar minha posição. Em face de minha pers­pectiva da autoridade da Bíblia, as razões de ordem teológica e bí­blica devem receber considerações decisivas. Não obstante, apre­sentarei também minhas razões filosóficas.

Efésios 1:11. Em primeiro lugar, sou conduzido até meu con­ceito pelo ensino bíblico a respeito da soberania de Deus. Embo­ra outras passagens ensinem a soberania divina (Sal. 115:3; Prov. 16:9,33; Dan. 4:34,35), Efésios 1:11 é, talvez, a mais clara expres­são dessa doutrina. Este versículo faz parte da doxologia com que Efésios se inicia. O assunto básico, aqui, é nossa salvação (w. 4ss.). No versículo 11, Paulo prossegue no tema da nossa predestinação por Deus, em Cristo, para a salvação. Paulo afirma que esta elei­ção e separação do crente, de antemão, foi feita “segundo o pro­pósito (prothesin) daquele que faz todas as cousas conforme o con­selho da sua vontade (katã tên boulên tou thelêmatos autou)’.’ A cláusula inicia-se com no qual; é cláusula relativa que modificao pronome ele (nele). De acordo com este versículo, os crentes são predestinados para a salvação de acordo com o propósito de Deus, e Deus faz todas as coisas, inclusive a predestinação para a salva­ção, conforme o conselho da Sua vontade. Em seguida, a cláusu­la alarga o escopo do versículo para falar do controle soberano de Deus, não apenas sobre a eleição para a salvação, mas sobre to­das as coisas.

Se Paulo não estiver fazendo distinção entre o propósito de

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Deus, Seu conselho e Sua vontade, este versículo é terrivelmente redundante. Os comentaristas concordam em que ele está fazen­do distinções. A palavra prothesin refere-se ao propósito, ou ob­jetivo que Deus pretende atingir. De acordo com este versículo, o propósito se relaciona com a predestinação para a salvação, e tam­bém com todas as demais coisas.27

Quanto à frase conforme o conselho da sua vontade, os co­mentaristas sugerem que a distinção entre boulê (“conselho”) e thelêma (“vontade”) é que a primeira envolve propósito e delibe­ração, enquanto a segunda simplesmente denota desejo. A ênfa­se maior da frase está em que Deus escolhe, após deliberar a res­peito da mais sábia ação a ser realizada, a fim de alcançar Seu ob­jetivo.28 Assim, neste versículo boulê refere-se a um plano resul­tante de deliberação.29

Este versículo ensina, portanto, que tudo quanto acontece é pré-ordenado por Deus, e nada externamente em relação a Deus, como por exemplo, as ações previstas ou os méritos das criaturas de Deus, nada disso determina Suas decisões.30 Deus delibera, es­colhe e realiza todas as coisas baseado em Seus propósitos. Co­mo é que Deus faz todas as coisas? Algumas são feitas diretamente, e exclusivamente por Deus, sem utilização de agentes, mas a maio­ria das coisas é feita por meio de pessoas, anjos, etc.

De modo claríssimo, este versículo ensina a absoluta sobera­nia de Deus. Da mesma forma clara, e em face de tal noção de so­berania, não consigo ver lugar para a liberdade indeterminística. Concedida liberdade indeterminística, Deus não pode garantir que Suas decisões se cumpram. Não importa o quanto Deus inclina­

27 No contexto geral de Efésios 1, tanto quanto no versículo 11, seria difícil sus­tentar a opinião de que Deus decide todas as coisas segundo Sua deliberação, contudo, apenas tem um propósito com respeito às Suas decisões para salvação.28 B. F. Westcott, Saint Paul’s Epistle to the Ephesians (reimp., Minneapolis: Klock & Klock, 1978), p. 15. Veja-se, também, T. K. Abbott, A Criticai and Exegetical Commentary on the Epistles to the Ephesians and to the Colossians, International Criticai Commentary (Edinburg: T. & T. Clark, s.d.), p. 20; e John Eadie, A Commentary on the Greek Text o fth e Epistle ofPaul to the Ephe­sians (Grand Rapids Mich.: Baker, 1979), p. 60.29Eadie, Commentary on the Greek Text, p. 60.30 Charles Hodge, Commentary on the Epistle to the Ephesians (Old Tappan, N.J.: Revell, s.d.), pp. 57-58. Veja-se, também, B.F. Westcott, Saint Paul’s Epistle, p.9; e F.F. Bruce, The Epistle to the Ephesians (London: Pickering & Inglis, 1974), pp. 29-30.

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rá a vontade de alguém na direção daquilo que Ele decidiu fazer; tal inclinação, segundo a noção indeterminística de livre-arbítrio, jamais seria suficiente para produzir a ação que Deus decretou. Se o indeterminismo é correto, não vejo como Deus poderá estar no controle do mundo, conforme está delineado em Efésios 1:11.31 Por outro lado, se examinarmos o assunto à luz da perspec­tiva determinística suave do livre-arbítrio, não apenas Efésios 1:11 faz sentido, mas também as outras passagens como Provérbios 16:9,33; Atos 2:23; 4:27,28; Filipenses 2:12,13 e Hebreus 13:21 (pas­sagens que tratam da relação existente entre a ação divina e a humana) .32

Em réplica, os teólogos indeterministas poderão fazer uma dentre três coisas. Poderão ignorar Efésios 1:11, e versículos seme­lhantes, o que seria intelectualmente desonesto. Poderão tentar reinterpretar o versículo de modo que ele venha a ter outro signi­ficado, diferente daquele que parece ter.33 Finalmente, poderão admitir que o versículo diz exatamente aquilo que acabei de dizer, e em seguida argumentar que embora Deus mantenha absoluta so­berania, Ele decidiu abrir mão dela, a fim de proporcionar-nos livre-arbítrio indeterminístico. Visto que Deus não abriu mão de

31 David Basinger argumenta de maneira convincente sobre este ponto. Não concordo com sua conclusão de que devemos limitar a onipotência de Deus, porém, concordo com sua análise sobre por que Deus não pode controlar as coisas se for correta a noção do livre-arbítrio indeterminístico. Veja-se David Basinger, “Human Freedom and Divine Providence: Some New Thoughts on an Old Problem”, Religious Studies 15 (1979): 498ss. Outros perguntarão se Deus não pode controlar as coisas mediante a determinação de eventos, deixando livres as ações. Quanto a uma explanação dos problemas envolvidos nesta su­gestão veja-se meu artigo: “And the Atheist Shall Lie Down with the Calvi- nist: Atheism, Calvinism, and the Free Will Defense”, Trinity Journal, s.d., vol.I (outono de 1980).32 A questão não é que todos estes versículos discutem as mesmas atividades, mas, antes, que eles demonstram Deus e o homem operando no mesmo ato, de maneira tal que o homem age genuinamente livre, enquanto a vontade de Deus (até mesmo as ordens de Deus — At. 2:23) é realizada.33 Por exemplo, alguém poderia argumentar que este versículo refere-se ape­nas à predestinação para a salvação, e mais nada. Esta interpretação não fun­ciona, porém, por duas razões. Primeiramente, demonstra falta de compreensão sobre como funcionam as orações relativas, gramaticalmente. Em segundo lu­gar, mesmo sob tal interpretação, o indeterminista ainda precisará explicar de que maneira ele abrirá espaço para este tipo de liberdade, com respçito à sal­vação, em face do ensino do versículo quanto ao controle soberano que Deus exerce sobre a salvação.

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Sua soberania (apenas do exercício dela), e que ninguém O for­çou a conceder-nos tal liberdade, pode-se vindicar legitimamen­te que Deus é soberano absoluto.

É verdade que esta última abordagem mantém a soberania de Deus, sem que se despreze Efésios 1:11; contudo, o problema básico é que nenhuma passagem das Escrituras (de modo espe­cial Efésios 1:11) afirma que Deus um dia tomou tal decisão. Se eu pudesse encontrar pelo menos um único versículo que afirmasse isto, eu me tornaria um indeterminista teológico (arminiano). Os arminianos apresentam, de modo típico, versículos que, assim pen­sam eles, demonstram que os homens possuem livre-arbítrio in­determinístico. Se é verdade que tais versículos afirmam que so­mos livres, nenhum deles afirma, contudo, que somos livres in- deterministicamente. Os indeterministas presumem que esses ver­sículos devem ensinar que somos indeterministicamente livres, porque presumem que este é o único tipo de liberdade que pode existir. Entretanto, esta abordagem encerra a questão arbitraria­mente. Na verdade, nenhum versículo nos diz que nossa liberda­de é indeterminística, ou determinística. Entretanto, em face de versículos tais como Efésios 1:11, eu creio que somos livres num sentido compatibilístico. Não consigo ver nenhuma outra maneira biblicamente aceitável de evitar-se a contradição entre os concei­tos claramente bíblicos da soberania de Deus e do livre-arbítrio do homem.

A Onisciência de Deus. O segundo argumento em defesa de minha posição é a doutrina bíblica da onisciência de Deus. Se o indeterminismo é a verdade, não consigo ver de que maneira se po­derá dizer de Deus: Ele prevê o futuro. Se Deus verdadeiramente sabe o que vai acontecer (não apenas o que poderia acontecer) no futuro, então o futuro está fixo, estabelecido, aplicando-se-lhe um certo tipo de determinismo.34 O conhecimento de Deus não é a

34 Aqui, o conceito se apóia numa definição básica de epistemologia. O co­nhecimento é definido como crença verdadeira, justificada. Conseqüentemente, se alguém pensava que sabia alguma coisa que finalmente se comprovou ser um erro, não se pode falar que neste caso havia conhecimento. Aplicando-se isto à nossa discussão, o ponto focal é que se o indeterminismo for verdadei­ro, Deus não pode garantir que Ele sabe o que vou fazer, visto que eu poderia sempre fazer qualquer outra coisa, diferente daquilo que Ele espera que eu faça. Se Ele realmente sabe, então deverei fazer exatamente o que Ele sabe que fa­rei; contudo, isto é inconsistente com a liberdade contracausal.

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causa do futuro, mas a garantia de que aquilo que Deus sabe de­verá ocorrer, independentemente do modo como ele sobrevirá. É óbvio que se Deus não conhece o futuro, erguem-se perguntas con­cernentes à Sua onisciência.35

Os indeterministas respondem a tais questões com uma dentre três opções. Alguns negam que Deus sabe o futuro, porque este é incognoscível.36 Tal perspectiva é plausível filosoficamente, mas parece inconsistente com o teísmo bíblico. O testemunho avassa- lador das Escrituras é que Deus sabe todas as coisas, inclusive o futuro. Considere, por exemplo, o fenômeno da profecia bíblica.

Outra réplica é a observação de que Deus não se cinge ao tem­po, mas é eterno. Todas as coisas estão presentes diante dEle, num “agora” eterno, desvinculado do tempo. Assim, Deus sabe todas as coisas, sem conhecer o futuro, visto que nada é futuro para Ele. Conseqüentemente, para nós, tudo quanto fizermos no futuro ain­da é coisa indeterminada.37 Embora alguns filósofos, desde Boe- thius, até nossos dias, tenham aceitado esta racionalização, ela nunca me impressionou. Meu ponto focal não é que Deus está no tem­po, ao invés de ser eterno,38 mas que o conceito é confuso. Deus é eterno e onisciente, e todas as coisas certamente estão diante dEle num “agora” eterno. Entretanto, isto não significa que Deus não sabe que tempo é na história humana. Se Ele sabe todas as coi­sas, sabe quais são os eventos que, embora no presente para Ele, para nós estão no futuro, de acordo com nossa perspectiva tem­poral. Entretanto, desde que tal conceito seja admitido, o velho problema reaparece. De que maneira Deus pode conhecer um fa­

35 Como diz Stephen T. Davis (“Divine Omniscience and Human Freedom”, Religious Studies 15 (setembro de 1979: 303), “a onisciência inclui a presciência a qual, podemos dizer, é o conhecimento verdadeiro de proposições acerca do futuro, isto é, do estado futuro das coisas!’36 Helm discute esta opinião, que ele encontra nos escritos de P. T. Geach. Ve­ja-se Paul Helm, “God and Whatever Comes to Pass”, Religious Studies 14 (1978).37 Veja-se, por exemplo, Richard Purtill, “Foreknowledge and Fatalism”, Re­ligious Studies 10 (1974). Ele conclui que se o apelo a Deus, como sendo inde­pendente do tempo, não funciona, resta-nos a assombrosa conclusão de que Deus não sabe infalivelmente o futuro (p. 324).38 Davis (“Divine Omniscience”, p. 315), por exemplo, nega que Deus seja um ser eterno fora do tempo, e argumenta que Deus está no tempo.

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to como sendo presente para Ele, e futuro para nós, sem que esse fato esteja determinado? 39

A outra maneira que alguns encontraram para resolver o pro­blema do livre-arbítrio e presciência é mediante o apelo ao conhe­cimento hipotético. Conhecimento hipotético é o dos contrafatos, isto é, conhecimento daquilo que teria acontecido se algo diferente ocorresse.40 Alguns afirmam que Deus conhece o futuro via co­nhecimento hipotético. Conseqüentemente, podemos exercer livre- arbítrio indeterminístico, porque Deus não sabe o que acontece­rá no futuro, e Deus pode ser onisciente no sentido de saber tudo que poderia acontecer, e o que aconteceria se outras coisas dife­rentes ocorressem.

Embora eu concorde em que Deus tem conhecimento hipo­tético, discordo em que o problema do indeterminista está resol­vido. Conhecimento hipotético (como conhecimento de contra­fatos) é conhecimento de possibilidades, não de realidades. Visto que conhecimento hipotético é conhecimento daquilo que pode­ria ocorrer, ele é irrelevante para a questão de como Deus pode co­nhecer o que vai acontecer, no futuro. Além disso, o conhecimento hipotético não implica em que Deus sabe o que poderia aconte­cer se algo diferente ocorresse, mas, ao contrário, o que aconte­ceria mesmo se esse fato ocorresse. Entretanto, dada a hipótese in-

39 Parece que o único caminho aberto para quem quiser tentar resolver este problema, nesta linha de raciocínio, é a negação da sucessão temporal. Em ou­tras palavras, a pessoa simplesmente argumentaria que embora nos pareça que existe sucessão temporal genuína, de tal forma que uma pessoa poderia falar, racionalmente, a respeito de um passado, um presente e um futuro, a suces­são temporal é uma ilusão. Embora haja pessoas dispostas a argumentar des­ta maneira, poucas achariam este conceito convincente. No mínimo, as impli­cações da negação da sucessão temporal genuína seriam devastadoras.40 Alguns filósofos contemporâneos da religião definem o conhecimento hi­potético não apenas como conhecimento de contrafatos, mas, também, conhe­cimento daquilo que vai realmente acontecer no mundo. Entretanto, se conhe­cimento hipotético for isto, tal conceito não vai ajudar o indeterminista, visto que um “conhecimento hipotético” de tal ordem parece eqüivaler ao pré- conhecimento que Deus tem do futuro; e como temos argumentado, do pon­to de vista indeterminístico do livre-arbítrio, é difícil dizer como Deus pode saber o que realmente vai acontecer no futuro. Assim, se o indeterminista quiser tirar algum proveito do conhecimento hipotético, deverá fazê-lo a partir de uma conceituação desse conhecimento como conhecimento de contrafatos. Con­seqüentemente, meus comentários no texto referem-se àquela noção de conhe­cimento hipotético.

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determinística, como poderia Deus saber, ainda que mediante co­nhecimento hipotético, o que se seguiria após quaisquer eventos, se alguma forma de determinismo não for a correta?41 Por con­seguinte, os apelos ao conhecimento hipotético não resolvem o di­lema do indeterminista.42

Profecia Previsível. O terceiro argumento bíblico que favo­rece minha posição advém da profecia bíblica. Visto que a pro­fecia deve acontecer, torna-se necessária alguma forma de deter­minismo. As Escrituras prevêem as atividades de vários indivíduos e grupos de indivíduos.43 Entretanto, se o indeterminismo é a ver­dade, não há meio de Deus garantir o cumprimento de qualquer profecia a respeito das futuras ações de alguém; Ele não poderia fazer nada que viesse a constituir a causa determinativa, que mo­tiva alguém a fazer o que foi predito.44

Inspiração. Em quarto lugar, em face de dados bíblicos de tais passagens como 2 Pedro 1:21, parece que o compatibilismo é neces­sário para a plena inspiração verbal. O versículo diz: “homens fa­laram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo” (ARA). A

41 Para um esclarecimento excelente deste assunto, remetemos o leitor a Ro- bert M. Adams, “Middle Knowledge”, The Journal o f Philosophy 70 (1973). Veja-se, também, a discussão de Basinger do conhecimento hipotético em seu relacionamento com a teodicéia do livre-arbítrio, e o controle divino sobre o mundo (“Human Freedom”, pp. 506-508).42 Stephen Davis (“Divine Omniscience”) oferece uma quarta solução (pp. 314ss.). Argumenta ele que em face do incompatibilismo, que é correto, Deus não pode conhecer o futuro, no sentido de ver as conexões causais que tornam as coisas determinadas causalmente. Contudo, Deus sabe o que eu, por exemplo, farei (incompatibilisticamente) sendo livre. Ele sabe intuitiva e imediatamen­te. Davis chama isto de “visão do futuro”, dizendo que difere do conhecimen­to por inferência, ou conhecimento inferencial do futuro (que se baseia na per­cepção das conexões causais). Entretanto, a única explicação que ele dá para a visão do futuro é que não se trata de conhecimento inferencial. Repito que o problema é: De que maneira pode Deus “ver” o futuro, ou seja, aquilo que vai acontecer, se a verdade está no indeterminismo?43 Os exemplos incluem Dan. 7; 9:27; 2 Tess. 2:3-4; Apoc. 13:17.44 Deus não pode, por exemplo, garantir que o filho da perdição fará aquilo que está predito a seu respeito, em 2 Tess. 2, ou que os 144.000 judeus de fato aceitarão a Cristo (Apoc. 7:14), se a verdade pende para o indeterminismo. Mes­mo que a pessoa rejeite as interpretações futurísticas destas passagens, que tra­tam de eventos concernentes à segunda vinda de Cristo, ainda terá um problema semelhante, concernente às profecias da primeira vinda de Cristo. Estas já se cumpriram, mas eram profecias acerca do futuro quando seus autóres as es­creveram.

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palavrapheromenoi (“movidos”) contém a idéia de algo ser apa­nhado pelo portador e levado ao seu objetivo. A verdade é que os escritores bíblicos não escreveram senão dirigidos e movidos pe­lo Espírito Santo. Esta direção garantiu que eles haveriam de es­crever as palavras do Espírito Santo. Se os autores tivessem escri­to sem o Espírito Santo, suas palavras retratariam os impulsos e iniciativas deles; contudo, Pedro nega que tal coisa houvesse acon­tecido (2 Ped. 1:20,21). Em face dos detalhes encontrados nesta passagem, devemos aceitar a teoria do ditado, segundo a qual Deus teria ditado exatamente aquilo que os autores escreveram, ou de­vemos aceitar a teoria da inspiração, que é consistente com o com- patibilismo, que permite tanto a Deus quanto ao homem serem ativos no processo, a ponto de garantir que ficasse escrito o que Deus queria comunicar. Em face do significado do livre-arbítrio indeterminístico, e de todas as evidências escriturísticas contra a teoria de uma inspiração baseada em ditado, parece que a única maneira de afirmar-se a inspiração verbal plenária, conforme es­tabelece 2 Pedro 1:21, é ater-se ao compatibilismo.

Segurança Eterna. O último argumento bíblico baseia-se na segurança eterna do crente. Se o indeterminismo for correto, sem­pre; éjpossível_ao_crenterejeitaraJlM^ Nãoim portaquão forte seja a inclinação a favor de uma fé contínua, os crentes ainda estariam sujeitos a desviar-se, pois, do contrário, não seriam livres, no sentido indeterminado. Tradicionalmente, os arminianos clássicos têm percebido este ponto nevrálgico e ensi­nado que o_crente pode perder a salvação. Entretanto, encontro abundante evidênciã"BTblica segundo a qual a apostasia é impos­sível. Passagens como João 6:37-39: 10:28-30: Romanos 8:28-30;1 Coríntios 1:8-9; Filipenses 1:6; e 1 PedroJ :5£pareceml!upòr- tar a doutrina da segurança do crente. Entretanto, isto só pode ser

"garantido por um conceito determinístico de livre-arbítrio.

Argumentos FilosóficosEm adição ao material bíblico, gostaria de apresentar algumas ra­zões de ordem filosófica, além daquelas já mencionadas, que sus­tentam meu conceito doutrinário. Em primeiro lugar, acho o in­determinismo bastante problemático, porque ele afirma que, em­bora não haja razão causai suficiente para um agente decidir uma ação, esse agente decide. Como argumenta Jonathan Edwards em Freedom o f the Will (“Liberdade da Vontade”), as pessoas agem

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de acordo com certas razões. Em particular, elas agem de acordo com aquilo que a razão determina ser o maior bem .45 Assim, se parece que não há um bem maior, o agente deixa de agir. É aqui que está o maior problema para o indeterminista. Por um lado, os indeterministas argumentam que não agimos sem que haja ra­zões para isso. Por outro lado, negam que quaisquer razões, ou outras causas, sirvam como condições suficientes para as decisões tomadas. Mas, se nada constitui condição suficiente para inclinar a vontade de modo a escolher-se uma coisa em detrimento de ou­tra, então, de que forma se processam as escolhas? Se as influên­cias causais estivessem realmente em ponto morto, não escolhe­ríamos. Além do mais, se as influências causais não são suficien­tes para mover a vontade na direção de uma decisão, então que é que a move? Alguns indeterministas dizem que a pessoa apenas faz decisões, ou escolhas. Ótimo, mas com base em quê? Se a res­posta for que a pessoa simplesmente decide, ou escolhe, é eviden­te que isto não constitui uma resposta. Se o indeterminista argu­menta que a decisão é tomada de acordo com aquilo que parece ser a melhor razão (ou razões), então, na verdade, o ato é causal­mente determinado (os motivos funcionaram como causas sufi­cientes para produzir o ato) .46 Deste modo, os indeterministas são apanhados num dilema. Se rejeitam o determinismo, não podem oferecer uma razão suficiente para o ato. Se podem oferecer uma razão suficiente para o ato, o conceito deles eqüivale, então, ao determinismo.

Uma segunda faceta relacionada ao assunto diz respeito à res­ponsabilidade moral de nossas ações. Em geral, os indeterminis­tas reclamam que o determinismo elimina a responsabilidade mo­ral. Contudo, o indeterminismo suscita problemas que são pelo menos tão difíceis como aqueles levantados pelo determinismo. Os filósofos da moral não atribuem culpa ou elogio moral quan­do determinado ato é feito sem propósito, ou por reflexo. Contu­

45 Jonathan Edwards, “A Careful and Strict Inquiry into the Prevailing No- tions of the Freedom of Will”, The Works o f Jonathan Edwards, vol. I (Edin- burg: The Banner of Truth, s.d.).46 Alguns indeterministas apelam para a teoria da causação de agente, o que redunda na mesma problemática: são incapazes de especificar a maneira por que os agentes tomam suas decisões sem serem causalmente determinados. Veja- se, por exemplo, BonJour, “Determinism”, pp. 148-153, quanto a problemas a respeito da teoria da causação de agente.

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do, se alguém pratica uma ação com um objetivo, certamente a pratica por uma razão (ou razões) suficiente, causalmente, para induzi-lo a agir. Portanto, se as únicas ações merecedoras moral­mente de louvor ou de culpa são as ações intencionais, e se tais ações propositais são praticadas de acordo com condições causais suficientes, temos, então, um resultado estranho: se o indetermi­nismo é verdadeiro, as ações propositais são suprimidas e não se lhes pode atribuir responsabilidade moral.47

Objeções Contra o D eterm inism o TeológicoAs objeções mais comuns, e mais cruciais48 contra a posição teo­logicamente determinística concentram-se na responsabilidade moral, na do agente e na de Deus.

Primeiramente, como é que uma pessoa pode ser moralmente responsável por suas ações, se estas forem determinadas? Para que uma pessoa seja moralmente responsável, duas coisas precisam ser verdadeiras. Ela deve ser um agente livre, e deve ser um agente mo­ral (isto é, um agente a quem se aplicam as normas morais).49 De acordo com os indeterministas, as pessoas determinadas podem ser agentes morais, mas não podem ser consideradas livres. E se não são livres, não podem ser responsabilizadas por suas ações.50

Tais problemas são difíceis, mas não insolúveis. As pessoas são moralmente responsáveis por suas ações porque as praticam livremente. Concordo em que ninguém pode ser responsabiliza­do por ações não livremente praticadas. Contudo, como já se ar­gumentou, o compatibilismo permite que o agente aja livremen­te. O ponto crucial não é se os atos de alguém são causalmente de­terminados ou não, mas, de que maneira são determinados.51 Se

47 Veja-se, por exemplo, Wolf, “Asymmetrical Freedom”, p. 153; e Fethe, “Ra- tionality”, p. 196. Há também o problema suscitado por muitos, para quem o indeterminismo significa ações como ocorrências casuais. Entretanto, se nossas ações são aleatórias, de que maneira podem ser livres, e como podemos ser mo­ralmente responsáveis por elas? Veja-se Talbott, “Indeterminism”, para uma réplica interessante a toda esta linha de argumentação.48 Alguns filosófos suscitam o princípio de indeterminação, de Heisenberg, como objeção contra o determinismo. Quanto a uma excelente explanação dos problemas levantados por esta argumentação, veja-se Francis A. Gangemi, “In- determinacy and Human Freedom”, Religious Humanism 10 (1976).49 Wolf, “Asymmetrical Freedom”, p. 151.50 Snyder, “Paradox”, p. 353. Veja-se, também, Fethe, “Rationality”, p. 196.51 Basinger, “Human Freedom” p. 493.

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tais atos forem constrangidos, não são livres, e o agente não é mo­ralmente responsável por eles. Porém, se os atos estiverem dentro da vontade do agente, isto é, tiverem sido praticados segundo sua vontade, então, mesmo que tais atos sejam causalmente determina­dos, são livres, e o agente é moralmente responsável. A objeção do indeterminista só elimina o determinismo se conseguir provar que o conceito determinístico do livre-arbítrio está errado, ou é impos­sível. Visto que o compatibilismo não é impossível, e nunca foi con­clusivamente refutado, o compatibilista tem uma solução para este problema da responsabilidade moral do agente quanto às suas ações.

A segunda objeção focaliza-se na responsabilidade moral de Deus. Se for verdade a doutrina do teísta determinista de que Deus decreta todas as coisas (até mesmo o pecado), porque é que Deus não é moralmente responsável por tal pecado?52 Parece injusto que quando as pessoas são causalmente responsáveis pelo mal, são, também, moralmente responsáveis, porém, quando Deus é cau­salmente responsável (mediante Sua soberania) pelo pecado hu­mano, Ele não é igualmente moralmente responsável. Por quê de­veria Deus ficar isento? Além disso, como é que um Deus de bon­dade pode decretar o mal?

Esta é a objeção mais difícil. De início, devemos declarar que Deus é santo, e não pode pecar. De acordo com Tiago 1:13-15 Deus não pode nem mesmo ser tentado a pecar. Mais ainda, Deus a nin­guém tenta, nem induz a pecar. O pecado emana da criatura. De maneira alguma Deus pode estar implicado no pecado. Por ou­tro lado, Efésios 1:11 afirma que Deus decretou todas as coisas, até mesmo o pecado. Como pode ser isso?

Muitos teólogos deterministas (calvinistas) têm afirmado que este dilema é um paradoxo. Ensinam que tanto o decreto sobera­no de Deus sobre o pecado, quanto Sua absoluta santidade, de­vem ser verdadeiros, porque as Escrituras ensinam ambos. Entre­tanto, os calvinistas não podem explicar como estas doutrinas se harmonizam.53 Entendo essa posição, e acho-a desnecessária. Há

52 Wolf, “Asymmetrical Freedom”, p. 162, trata deste ponto muito bem.53 Às vezes, apela-se para Rom. 9:18-21, a fim de demonstrar que este proble­ma é um paradoxo, e que o crente não deve esperar resposta. No versículo 19o enigma é apresentado, e nos versículos 20 e 21, Paulo responde. Contudo, a questão apresentada no versículo 19 levanta um problema intelectual, e ou­tro concernente à atitude do inquiridor. Nos versículos 20 e 21, Paulo trata do problema da atitude, mas de maneira alguma isto indica que a indagação in­telectual não deve ser feita, ou que ela é irrespondível. Na verdade, a passa­gem não fornece base para o conceito de paradoxo.

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alguns anos, percebi que esta questão é a mesma relacionada com o problema do mal. Neste caso, pergunta-se por que Deus não é responsabilizado moralmente pela existência do mal, se Ele decre­tou todas as coisas. O problema do mal resume-se nisto: por que existiria o mal num mundo criado por um Deus todo-poderoso, um Deus de amor? Obviamente, se o determinismo teológico for correto, Deus não criaria um mundo sem que antes houvesse de­cretado sua existência. Entretanto, é preciso ficar bem claro que as duas maneiras de apresentar a questão resumem-se em: De que maneira pode Deus ser visto como santo e justo, em face da exis­tência do mal no mundo?54

Em meu livro Theologies and Evil apresento uma resposta de­talhada para esta pergunta.55 Aqui, apenas farei um resumo dos principais pontos. A estratégia básica de minha defesa é a mesma usada pela maioria dos defensores da justiça divina. Inicia-se pela observação de que embora Deus seja onipotente, Ele não realiza contradições. (Por exemplo, Ele não pode fazer um círculo quadra­do.) Acrescentam, então, os referidos defensores que ninguém, in­clusive Deus, pode ser responsabilizado por não ter feito aquilo que não poderia fazer, ou por fazer aquilo que não poderia deixar de fazer. Este é o ponto central: o agente deve ser livre, para ser mo­ralmente responsável por suas ações. Em seguida, o defensor da justiça divina expõe duas coisas valiosas que Deus poderia fazer. Entretanto, ele observa que Deus não pode fazê-las simultanea­mente, visto que ambas se contradizem, e Deus não pode realizar contradições. Finalmente, ele argumenta que a opção tomada por Deus é a de maior valor e, assim, está justificado, embora seja im­possível para Deus remover o mal.

Quanto à minha teodicéia, uso esta estratégia e afirmo que Deus poderia criar o tipo de seres que Ele criou, quando conce­beu os seres humanos (seres que, dentre outras coisas, possuem li­berdade compatibilística) ou, como outra opção, poderia ter man­

54 Enfatizo que não há, aqui, um ponto calvinista em contraposição a um pon­to arminiano. É apenas uma questão concernente à lógica do debate.55 John Feinberg, Theologies and Evil (Washington, D.C.: IJniversity Press of America, 1979), cap. 6.

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tido o mundo perfeito.56 Deus optou pela criação de nosso mun­do.57 Portanto, Ele não poderia decidir, ao mesmo tempo, fazer um mundo perfeito. Visto que Ele não poderia fazer ambas as coi­sas, ao mesmo tempo, Ele não pode ser responsabilizado moral­mente pela existência do mal no mundo. A criação de seres huma­nos é algo do maior valor e, assim, justifica a existência de um mundo em que há o mal.

Aplicações PráticasO Caso de Alfredo. Parece que Alfredo é sensível tanto para com Deus como para com as necessidades alheias. De acordo com mi­nha perspectiva, Deus decreta todas as coisas, inclusive os meios e os fins. Assim, as riquezas de Alfredo, os meios pelos quais fo­ram adquiridas (inclusive o trabalho duro), a pobreza dos outros, e os meios pelos quais essa pobreza instalou-se, são parte do de­creto. Como, então, mediríamos o controle divino em relação ao esforço humano neste caso de economia financeira?

Em primeiro lugar, consideremos a prosperidade de Alfredo. Ele tem razão em crer que parte de sua fortuna advém do fato de ter nascido num país próspero. Mas, tais fatos também estão nos decretos de Deus. Portanto, o fato de Alfredo ser próspero foi de­cretado por Deus. Visto que estes assuntos não são de absoluta ne­cessidade (isto é, este universo não é fatalista e, portanto, Deus não tinha de criar Alfredo rico), a decisão de Deus é expressão de Seu amor gracioso para com Alfredo. Por tudo isso, ele tem razão em ser grato a Deus.

Por outro lado, Deus não fez a riqueza “cair do céu”. Alfredo precisou trabalhar duramente, e como trabalhou! Contudo, segun­

56 A argumentação sobre por que Deus não pode remover o mal e ao mesmo tempo deixar intacta a espécie de ser que Ele criou é apresentada no capítulo6 de Theologies and Evil.57 Alguns perguntarão se Deus não deveria ter escolhido o melhor dos mun­dos possíveis. Certamente, se existisse tal mundo, Ele o teria escolhido; con­tudo, segundo a posição que adoto, na metafísica (chamo-a de racionalismo modificado) não existe tal coisa como o melhor dos mundos possíveis, mas apenas mundos bons e mundos maus. A obrigação de Deus, então, é a de criar um destes possíveis mundos bons; se alguém puder demonstrar que Deus criou de fato um possível mundo bom, terá resolvido o problema do mal que se er­gue no sistema teológico. Para mais minúcias, veja-se meu livro Theologies and Evil.

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do minha perspectiva, o esforço tremendo de Alfredo serviu co­mo o meio designado por Deus para que ele atingisse sua pros­peridade. Além disso, embora se possa elogiar o esforço de Alfre­do, deve ele entender que Deus lhe deu boa saúde e forças, para que pudesse fazer o trabalho. Visto que Deus não deve nada dis­to a Alfredo, e que este universo não é fatalista, esse moço deve agradecer a Deus a capacidade de trabalhar duro, e agradecer-Lhe, também, pela bênção da prosperidade sobre seus esforços. Mui­tos trabalham igualmente com máximo empenho, e nem sempre prosperam. O fato de Alfredo ter sido bem-sucedido indica que Deus tem sido bondoso para com ele. Deus é responsável pela cria­ção de sua fortuha, e o jovem está certo em agradecer ao Senhor.

Em segundo lugar, de acordo com minha perspectiva, a pobreza também é decretada. O que quer que seja que causa essa pobreza também foi decretado como meios conducentes a essa po­breza. Entretanto, o ponto nevrálgico é que tais causas não cons­trangem os indivíduos em questão. Por exemplo, se alguém chama a si a pobreza mediante a preguiça ou a imprudência no uso do dinheiro, esse indivíduo não foi constrangido a agir dessa maneira, e a pobreza serve de punição. Por outro lado, se a pobreza ocorre a despeito da operosidade da pessoa, tal pobreza servirá a algum outro propósito de Deus, como, por exemplo, levar tal pessoa a confiar mais em Deus do que em si próprio. Qualquer que seja a causa de tal pobreza, esta foi decretada por Deus, e será usada por Ele a fim de atingir determinado objetivo, embora não seja exa­tamente o objetivo que tenhamos imaginado.

Se Deus decretou tal pobreza e os meios pelos quais se esta­beleceu, estão os pobres isentos de culpa, quando suas ações, ou sua inatividade, os conduzem à pobreza? Segundo minha perspec­tiva teológica, eles são moralmente responsáveis, desde que tenham agido, ou deixado de agir, livres de qualquer constrangimento. Além do mais, Deus não é culpado da pobreza dessas pessoas. Se as criaturas humanas (agentes) fazem coisas que redundam em sua própria pobreza, ou na pobreza de outros, Deus não pode impedi- las sem contradizer Seus planos ao criar tais pessoas do jeito que são. Igualmente, se a pobreza de tais pessoas ocorre como resul­tado do mal natural, como já argumentamos algures, a questão do mal natural reduz-se a um problema de mal moral, ou ao pro­

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blema religioso do mal.58Finalmente, é possível que as riquezas de Alfredo se relacio­

nem de algum modo à pobreza de outros, mas é duvidoso que se­jam condições suficientes para a pobreza alheia. O fato de Alfre­do ter tudo quanto tem não constitui prova de que ele tomou (di­reta ou indiretamente) alguma coisa de alguém. Portanto, não vejo por que Alfredo haveria de sentir-se culpado pela pobreza alheia (independentemente do que a pessoa pense sobre livre-arbítrio e soberania). Entretanto, é bom que ele esteja interessado na sorte dos outros. Além disso, a informação que recebeu acerca dos ou­tros, e os sentimentos de simpatia que lhe sobrevieram podem ser a orientação de Deus para que faça algo a fim de ajudar os neces­sitados. Em outras palavras, aquilo que ocupa seus pensamentos agora (e aquilo que fê-los surgir) pode ser o meio criado por Deus para induzi-lo a fazer alguma coisa em prol de alguns daqueles necessitados.

O Caso de Maria. Do ponto de vista que considera a vonta­de de Deus como decreto, Maria realmente está dentro da vonta­de de Deus. De fato, neste sentido, tudo quanto acontece está den­tro da vontade de Deus. Porém, é preciso que se faça a distinção entre a perfeita vontade de Deus e aquilo que se denomina, com freqüência, vontade permissiva de Deus.59 A primeira diz respei­to àquelas partes do decreto que estão de acordo com os desejos de Deus e as melhores coisas que Ele almeja para nós. A vontade permissiva de Deus refere-se àquelas coisas que, embora integran­do o decreto, são contrárias aos desejos de Deus e às melhores coi­

5 ̂Veja-se minha dissertação sobre Deus e o mal natural, cap. 7, de Theolo­gies and Evil. Há uma distinção básica entre o problema religioso do mal e o problema filosófico/teológico do mal. O primeiro diz respeito a exemplos es­pecíficos do mal (não mal em geral), que confrontam algumas pessoas, e afe­tam seu relacionamento com Deus. O último é mais geral. Ele levanta a per­gunta: Por que haveria de existir qualquer forma de mal num mundo criado por um Deus de Amor, todo-poderoso? Tal questão é suscitada em abstração de qualquer exemplo de sofrimento, não relacionando-se com algum mal es­pecífico que interrompa o relacionamento de alguém com Deus.59 Não gosto da expressão vontade permissiva, porque deixa a impressão de que Deus “afasta-se” e entrega o controle ao homem. No entanto, é'termo tí­pico muito usado até por teólogos calvinistas mais ferrenhos do que eu, e du­vido que possamos livrar-nos dele.

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sas que Ele almeja para nós.60 Portanto, a pergunta de Maria não é se o que aconteceu pertence ao decreto, mas se ela permanece na perfeita vontade de Deus.

Segundo meu conceito teológico, Maria tem razão em ver nos fatos que aconteceram (reprovação no vestibular de medicina, etc.) os meios decretados por Deus para que ela obtivesse o novo em­prego, e fosse convencida a aceitá-lo. Deus trouxe essas circuns­tâncias à vida dela, a fim de convencê-la (porém, sem constrangê- la) a aceitar o emprego agora oferecido. Se ela não recebesse essa proposta de emprego, ou se o trabalho lhe trouxesse tristeza in- finda, ela poderia ficar imaginando se porventura, ao decidir, fi­cara fora da vontade de Deus. Entretanto, o fato de ter-se saído bem na escola de enfermagem, de ter conseguido um bom emprego e estar indo muito bem nele, tudo isto deveria funcionar como con­firmação de que ela escolheu o que Deus planejara de melhor para ela, pelo menos nesta fase de sua vida.

Que se dirá, então, dos “e se” que Maria fica suscitando o tempo todo? Talvez, se tivesse feito algumas daquelas outras coi­sas mencionadas na exposição do caso, ela teria sido admitida na faculdade de medicina. Entretanto, ela poderia facilmente concluir que não havia sido decretado que ela passaria no vestibular, na­quela época, e por isso, não importando o que fizesse, não entra­ria na faculdade de medicina. Ou poderia concluir que, se tivesse feito aquelas outras coisas, teria passado no vestibular, mas, vis­to que Deus decretara que não passaria, a incapacidade de Maria para fazer aquelas coisas também fazia parte do decreto de Deus, cujos planos a impediam de entrar na escola de medicina. Maria pode discordar, porque ela pensa que o melhor que Deus poderia conceder-lhe era cursar medicina. Mas, medicina poderia ser um erro para ela, embora ela não consiga entender as coisas assim, agora.

Se minhas sugestões não satisfizerem a Maria, há outra opção de raciocínio para ajudá-la a aquietar suas dúvidas. Certamente, há outras faculdades de medicina, além daquela onde ela prestou

60 Embora possa parecer estranho que Deus decretasse algo contrário a Seus desejos, é exatamente assim que acontece. É certo que o pecado é algo contrá­rio aos desejos de Deus; no entanto, é uma realidade, e Ele o decreta, se Efé­sios 1:11 é verdade. Quanto a por que decretaria Deus algo contrário a Seus desejos, levanta-se outra vez a questão da existência do mal, com as respostas cabíveis.

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vestibular. Ela deve tentar essas outras faculdades. Não fará mal que tente outra vez a primeira faculdade. Ela que estude com mais afinco. Ao mesmo tempo, deve orar a Deus e pedir-Lhe (e aceitar bem esta opção) que feche a porta outra vez, se uma faculdade de medicina não for o melhor que Ele tem para oferecer-lhe. Ela de­veria fazer o máximo possível, entendendo que suas ações pode­rão ser o meio decretado por Deus para seu ingresso na faculda­de, e sempre confiar nEle quanto ao resultado, qualquer que se­ja, tomando-o como o melhor que Deus planejou para ela, em res­posta às suas orações. Caso não consiga admissão, deveria ficar contente com o fato de Deus não querer que ela estude medicina, por enquanto (talvez nunca). Deveria procurar saber o que é que Deus está tentando ensinar-lhe através daquela experiência.

E se Maria conseguir passar nos vestibulares? Será que isso significa que Maria esteve todo esse tempo fora da vontade de Deus? Não necessariamente, porque embora haja a vontade de Deus, há também o cronograma de Deus, que faz parte de Sua per­feita vontade para nós. Ela poderia ver a reprovação inicial como uma demora inútil, visto que Deus desejava que ela estivesse na faculdade de medicina. Mas, isto ocorre porque ela não consegue ver um propósito da parte de Deus, que Ele quer realizar na vida dela, permitindo que fosse reprovada na faculdade, e fosse traba­lhar como enfermeira, durante algum tempo. De fato, é bem pos­sível que Deus tenha usado essa demora para ajudá-la a apreciar melhor as oportunidades, e avaliá-las mais seriamente quando es­tivesse na faculdade de medicina. Ou então, Deus poderá ter re­tardado sua entrada na faculdade, por ter uma posição especial para ela, posição que não poderia ter ocupado se fosse admitida na faculdade, formando-se médica mais cedo. Ou, ainda, Deus po­deria ter usado aquele impedimento como meio de fazê-la pon­derar no assunto todo, no que concerne a conhecer e praticar a vontade de Deus. Antes desse incidente, ela poderia ter deixado Deus e Seus planos para sua vida lá fora, ao tomar decisões quanto ao trabalho em que investiria sua vida. Parece que agora ela re­conhece a necessidade de levar em consideração Deus e Seus pla­nos.

Em suma, quer Maria tente outra vez, quer não, ela tem ra­zões para crer que está dentro da perfeita vontade de Deus. Por outro lado, se ela ainda tiver dúvidas, eu a encorajaria a tentar ou­tra vez. Se não conseguir, poderia interpretar isto como confirma­

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ção de que ela está, hoje, onde Deus a deseja. Se conseguir entrar na faculdade, deveria agradecer a Deus e procurar descobrir que é que Ele estava tentando ensinar-lhe ao longo do impedimento. Independentemente do que acontecer, Maria deve agradecer a Deus todos os fatos. Tudo contribuiu para torná-la mais sensível à necessidade de buscar a orientação de Deus, ao enfrentar deci­sões significativas.

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Réplica de Norman Geisler

JOHN FEINBERG E EU CONCORDAMOS E M UMA POR- ção de pontos. Concordamos em que: (1) a providência de Deus controla todas as minudências do universo; (2) Deus conhece, in­falivelmente, todo o futuro; (3) Deus (pré) determinou todos os eventos; (4) Deus não é culpável moralmente pelas nossas escolhas livres; (5) Deus é eterno, isto é, não sujeito ao tempo; (6) Deus é imutável em Seu conhecimento e em Sua natureza; (7) a eleição de Deus ao escolher os santos é eterna e imutável.

Feinberg e eu concordamos, ainda, em que, embora tal Deus exista: (1) somos livres; (2) somos moralmente culpáveis pelos nos­sos atos livres; (3) o verbo “devemos” implica noutro verbo: “po­demos”; (4) os atos livres são incompatíveis com o fatalismo; (5) estes atos livres são feitos por nós.

Prosseguindo ainda, concordamos mais em que: (1) sobera­nia e livre escolha não são contraditórios; (2) as escolhas livres fre­qüentemente são condicionadas, ou limitadas, por fatores exter­nos; (3) Deus jamais exerce coação nas escolhas livres; (4) a de- icrminação de Deus para os atos livres não é como o determinis­mo físico; (5) as escolhas livres que Deus prevê são prérdetermi-

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nadas; (6) Deus não pode criar seres livres e ao mesmo tempo eli­minar todo o mal.

Além de tudo quanto ficou concordado, acima, nós ambos estamos de acordo em que: (1) Deus é absolutamente livre, não ten­do nenhuma necessidade de criar (p. 44); (2) as ações livres de Deus são “autodeterminadas” (p. 44); (3) Deus pode “decretar algo con­trário a Seus desejos” (vontade) (p. 60, nota 60).

Entretanto, a despeito desta larga faixa de concordância, pa­rece que há importantes áreas de diferenças entre nossas perspec­tivas. Meu problema básico com a perspectiva de Feinberg é que, pela lógica, ele chega à negação da livre escolha humana e, deste modo, faz Deus jponsável pelo mal.

O primeiro problema que vejo é que Feinberg crê que Deus pode tomar uma decisão (escolher) contrária a Seus desejos, mas nós não podemos. Se isto é verdade, então Deus é livre e nós não. Feinberg rejeita a perspectiva de que um agènte pode “agir con­tra sua vontade, contra seus desejos ou preferências” (p. 39). Ele afirma que ainda que “inicialmente, ele não tinha a intenção nemo desejo de sair... seus desejos mudaram” (mediante a causalida­de de Deus). Assim, Feinberg insiste em que o agente “não foi constrangido a agir contra seus desejos” (p. 41). Para ele, as coisas são realmente assim, embora ele admita que a pessoa “na verda­de não deseja” fazê-lo, em primeiro lugar. Assim, para Feinberg, determinado ato está sempre de acordo com os desejos do agen­te, ainda que tal ato seja causalmente determinado por Deus (p.

t> 52). Contudo, se Deus determinou causalmente o ato, contra o que o agente “realmente” deseja, então, como poderemos culparo agente por ter praticado aquele ato?

Feinberg identifica sua pósiçãõ^õmo sendo a de Jonathan. Edward.s, acrescentando que, a menos que Deus concedali mudan­ça de desejo (vontade), não há “condições suficientes para inclinar a vontade para escolher uma coisa em detrimento de outra” (p. 53). Estas condições funcionam como “causas suficientes para produzir o ato” (p. 53). Feinberg crê que, a menos que haja tais condições causais suficientes, nada haverá que cause a ação. Con­tudo, se este raciocínio estiver certo, nem mesmo Deus poderia agir livremente. Não há condições causais suficientes, além de Sua von­tade, para Suas decisões. Contudo, Feinberg admite que Deus pode agir livremente. Portanto, a perspectiva de Feinberg é inconsistente. Considerando que liberdade significa a mesma coisa em cada ca­

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so, deve ele admitir ou que os atos de Deus não são livres, ou que nossos atos livres, à semelhança dos de Deus, são autodetermina- dos. Obviamente, Feinberg poderia corrigir esta deficiência apli­cando seu conceito de liberdade autodeterminativa de Deus para nós, que somos feitos à Sua imagem e semelhança.

Em segundo lugar, Feinberg acredita que todos os atos devem ser causalmente determinados por Deus; entretanto, ele acredita também que Deus não nos coage. Mas, é isto possível? A dificul­dade fica escondida por detrás de alguns eufemismos tais como “inclinar decisivamente” (p. 40), “desejo mudado” (p. 41) e “ga­rantir” o resultado (p. 41). Contudo, como pode Deus garantir os resultados, decisivamente, sem forçar ou coagir o indivíduo? E se a pessoa rejeitar o impulso não-coercitivo proporcionado por Deus? E se ela decidir que não permitirá que esse novo desejo a domine? Feinberg responde em outro lugar que Deus “não criou as próprias ações dos homens”. 1 Quer dizer que Deus concede aos homens o poder da decisão, mas deixa o desempenho das ações com eles mesmos. Mas, se as coisas fossem assim, seriamos livres para rejeitar a persuasão, ou os desejos que Deus nos oferece. Se Feinberg admitir que nós podemos contrariar estes desejos susci- lados por Deus, o conceito dele entrará em colapso.

Se Feinberg responder que o desejo despertado por Deus é coercitivo, terá caído na perspectiva do determinismo duro que ele rejeita. Contudo, se se tomar uma decisão livre, no sentido de não se aceitar a sedução, motivação ou racionalização suscitada por Deus, não haverá base, segundo o conceito de Feinberg, para que Deus “garanta” os resultados, sem forçar o ato livre. Contudo, Feinberg admite que a liberdade forçada é uma contradição. En-I ão, para evitar esta contradição, Feinberg teria de aceitar um con­ceito em que a predestinação funcionaria mediante persuasão, sem coerção, de acordo com as livres escolhas do homem. Esta é a pers­pectiva que eu adoto.

Em terceiro lugar, a maior parte dos argumentos de Feinberg baseados em dilemas (isto ou aquilo), entre o determinismo e o indeterminismo, são resõlvI35spelo seu próprio reconhecimento de uma terceira categoria de liberdade (a autodeterminada), que ele aplica a Deus. Mas, se existem três categorias, seus dilemas sãol alsos, e destituídos de conclusões. Feinberg não refutou a perspec­

1 lrinberg, Theologies and Evil, p. 123.

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tiva apresentada, de que as decisões humanas são autodetermina- das. Na verdade, qualquer argumento contra o autodeterminismo tentaria provar demais. Provaria que o conceito de Feinberg so­bre o autodeterminismo de Deus também está errado.

É óbvio que Feinberg poderia sempre negar que haja qual­quer similaridade entre a liberdade de Deus e a liberdade do ho­mem. Contudo, se o termo liberdade é usado enganosamente a res­peito de Deus e a nosso respeito, por que diríamos que somos li­vres? Por que não admitir-se, simplesmente, como o fazem os hi- percalvinistas, que realmente não somos livres? De fato, a despeito da descrição que ele faz de si mesmo como sendo “um calvinista moderado”, Feinberg apresenta conceitos que se reduzem a um for­te determinismo calvinista, pelo qual não somos livres de modo nenhum. De acordo com este conceito, não poderíamos decidir contrariamente aos desejos que Deus nos concede. Na verdade, os crentes não podem fazer outra coisa senão o que fazem. Só po­dem fazer o que desejam, e só Deus concede esses desejos.

Finalmente, parece que Feinberg confunde causalidade efi­ciente com causalidade final. Ele presume (erradamente) que a causa do livre-arbítrio é uma “razão”. Mas, o agente (a própria pessoa) é a causa eficiente de um ato livre, e não a razão ou pro­pósito (causa final). Por exemplo, quem criou o mundo (causa efi­ciente) é uma questão diferente de por que (causa final) o Cria­dor o criou. O propósito (razão) para a ação não causa o ato mais do que o desejo de ter uma cadeira produz a cadeira. É preciso um marceneiro (causa eficiente) para que se produza uma cadeira, não apenas o desejo de sentar-se. Além disso, tanto as Escrituras (Rom. 7) como a experiência demonstram que as pessoas são livres para rejeitar até mesmo o melhor dos desejos, ou das razões.

Outra maneira de enunciar o problema é que Feinberg con­funde condições e causas (condições suficientes). Ele demonstra corretamente que Deus condiciona as escolhas humanas. Contu­do, ir além disto e declarar que Deus é “causalmente determina- tivo” da escolha é o mesmo que dizer que a nossa escolha não é nossa. É necessário que se diga que Deus está determinando ações morais mediante Seu conhecimento daquilo que nós, através de escolha totalmente livre, faremos acontecer. Neste caso, nossas ações são autocausadas (isto é, causadas por nós), embora Deus soubesse determinativamente (e por pré-conhecimento determi­nasse) que é que escolheríamos. Mas, Feinberg rejeita esta opção

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e, assim, confunde as pré-condições de um ato livre com suas cau­sas, o agente livre. Contudo, as condições não são as causas, co­mo as folhas secas não são a causa de um incêndio na floresta. Elas representam meramente uma pré-condição. Da mesma forma, os desejos suscitados por Deus, bem como o raciocínio e a persua­são, podem ser as condições de uma livre escolha. Contudo, não sào a causa. Isto significa que não constituem a condição causai suficiente de nossa ação. Se constituírem, o agente humano dei­xa de ser a causa eficiente da ação, mas apenas a causa instrumen- lal através da qual a ação de Deus é exercida. Neste caso, porém, a culpa moral recai sobre Deus. E neste caso, a perspectiva de Fein­berg realmente não é diferente da perspectiva hipercalvinista que ele tanto deseja evitar.

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Réplica de Bruce Reichenbach

O ESPAÇO CONCEDIDO À S NO SSAS RÉ PLIC AS NÃO PO- de fazer justiça à apresentação cheia de argumentações claras, de Feinberg. O leitor deverá consultar os capítulos que eu e Clark Pin­nock elaboramos, a fim de apanhar o sentido completo dos argu­mentos que sustentam o outro ponto de vista, que é contrastante. Entretanto, gostaria de dizer algumas palavras a respeito da po­sição dele, e dos argumentos que usa como apoio ao seu conceito.

A posição de FeinbergFeinberg argumenta, por um lado, que o determinismo é a verda­de. Isto é, para tudo quanto acontece, ou existe, para todos os even­tos (p. 37) e para todas as coisas (p. 55), há suficientes condi­ções causais. Por outro lado, deseja ele estabelecer o fato de que, embora nossas decisões sejam determinadas, visto que há condi­ções causais que “inclinam (a vontade) decisiva e suficientemen­te em dada direção, ao invés de outra” (p. 36), há ocasiões em que somos livres. Somos livres quando não somos constrangidos por estas causas a agir de modo contrário aos nossos desejos. Isto quer dizer que embora haja uma causa que nos impele a agir da forma

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como agimos, somos livres com respeito a determinado ato se, e apenas se, esse ato é aquilo que teríamos praticado, ou decidido praticar, ainda que as causas suficientes não estivessem presentes.

Além disso, Feinberg afirma que Deus decreta (deseja) tudo que acontece. Seus decretos seguem os propósitos e desejos que só Deus pode determinar. Quando a ação praticada por nós é, si­multaneamente, algo que Deus decretou e que nós almejamos, agi­mos livremente. Mas, e se nossos desejos não estão de acordo como decreto de Deus? Feinberg ensina que Deus, tendo decretado tu­do, sabe que fatores e circunstâncias nos persuadirão, sem coer- ção, a escolher aquilo que Deus decreta.

Vários problemas sérios se levantam mediante esta posição. Em primeiro lugar, como pode a persuasão garantir que a pessoa vai desejar agir de acordo com os decretos de Deus? Esta garan­tia não pode ser obtida mediante alguma forma causalmente coer­citiva, visto que tal fato eliminaria a liberdade. Ela deve operar, então, de maneira não constrangedora. Feinberg nos diz que a ga­rantia advém através de razões que, dentre outras coisas, apelam para nosso interesse próprio.

Entretanto, será que as boas razões, até mesmo as que ape­lam para o interesse próprio, são sempre eficientes para alterar nos­sos desejos? Feinberg deverá responder afirmativamente, pois, do contrário Deus disporá apenas de ferramentas coercitivas para mu­dar nossos desejos. Contudo, reflita-se nos inúmeros exemplos de situações nas quais as pessoas simplesmente não são persuadidas a mudar de opinião, nem pela razão, nem pelo apelo às emoções e nem mesmo pelo interesse próprio. Feinberg deverá afirmar que todas as pessoas, de forma final e não coercitiva, poderão ser per­suadidas a aceitar a perspectiva de Deus (de acordo com Seus de­cretos), e que, sendo onisciente, Deus saberia que é que será per- suasivo, naqueles casos em que as pessoas rejeitam o decreto de Deus.1 Contudo, se todas as pessoas podem ser persuadidas a aceitar o decreto de Deus em qualquer ponto, por que é que Deus

1 Esta posição pressupõe que Deus sabe o que faríamos, se acontecesse algo diferente daquilo que realmente aconteceu; em outras palavras, Deus tem co­nhecimento das condicionantes contrafactuais do livre-arbítrio. No capítulo de minha lavra, neste livro, argumento contrariamente: nem Deus, nem a hu­manidade possuem tais conhecimentos. Veja-se a explanação do assunto nes­se capítulo.

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não decreta que todas as pessoas não apenas farão o bem, sem­pre, mas também O reconhecerão como Deus?

De fato, muitas pessoas praticam o mal, e nem todas serão salvas. E essas que praticam o mal? Segundo a doutrina de Fein­berg, depreende-se que é possível que Deus tenha de persuadir al­guém a praticar o mal. Isto parece um absurdo, mas considere o que se segue, a partir da perspectiva dele sobre a autoridade. De acordo com Feinberg, houve um momento em que Deus decretou tudo quanto vai acontecer. Isto significa que Deus decretou tan­to o bem como o mal. Além disso, tal decreto ocorreu antes e in­dependentemente de qualquer ação humana. Suponha, então, que alguém deseje praticar o bem, ao invés do mal que Deus decretou (que tal pessoa há de fazer), ou que aceitará a Deus, ao invés de rcjeitá-lO, (como também Deus decretou). Visto que tudo há de acontecer segundo o Seu decreto, Deus é colocado na delicada si-l uação de persuadir tal indivíduo que ele deverá fazer o mal, ao invés do bem, ou rejeitar a Deus, ao invés de aceitá-lO, e isto se­ria racional, para satisfazer os melhores interesses dessa pessoa. A soberania de Deus foi protegida, mas às custas de Sua sabedo­ria e bondade.

Em segundo lugar — e isto fere o cerne do conceito compa-i ibilístico — se todos os eventos e coisas são causados, minhas pró­prias escolhas, minhas crenças e desejos são causados. Entretan­to, se minhas escolhas e meus desejos são causados por causas que, finalmente, descobre-se terem origem anteriormente à existência de minha própria pessoa, não poderei desejar, escolher ou deci­dir outra coisa senão aquilo que faço porque há uma causa que me compele a fazer. Nesse caso, a liberdade apregoada por Fein­berg é uma ilusão, visto que não há lógica na análise dele de uma liberdade descrita em termos do que a pessoa teria feito, ou deci­dido fazer, se as causas não estivessem presentes, visto que não existem eventos onde não existem causas suficientes em ação.

E mais: de acordo com o compatibilismo teísta de Feinberg, o meu desejar e o meu escolher devem ser decretados por Deus, desde que meus desejos e minhas escolhas são eventos. Dessa ma­neira, não existe um único exemplo em que eu desejo algo dife­rente daquilo que foi decretado por Deus. Se eu desejasse outra coisa que não o que foi decretado por Deus, esse mesmo desejo contrário teria sido decretado por Deus. Outra vez o livre-arbítrio torna-se uma noção vazia, visto não haver desejo independente do decreto de Deus.

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Finalmente, não haveria necessidade da persuasão divina, se todas as atitudes e todos os desejos não fossem outra coisa senão a expressão dos decretos divinos, já que tudo ocorre segundo Deus decretou.

O quadro que Feinberg pinta nos casos de estudo é desnor- teante. Ele sugere que Maria pode pedir a Deus que lhe feche as portas da faculdade de medicina, se submeta a Deus, e fique con­tente com aquilo que já obteve, como se o fato de ela pedir, sub- meter-se, e outros atos mentais, como desejar estar de conformi­dade com a vontade de Deus, de alguma forma dependessem de­la. Mas, se tudo está determinado por condições causalmente an­tecedentes, aquilo que ela deseja depende dessas condições, não dela. E se tudo é decretado por Deus, não pode acontecer algo con­trário aos Seus decretos. Assim, o livre-arbítrio dela para pedir, submeter-se, ficar contente, e desejar estar dentro da vontade de Deus é uma ilusão. Se Deus decretou que ela fique contente, ela só poderá estar contente; se Deus decretou que ela se submeta, não há outra escolha para ela senão a submissão. Não existe uma si­tuação contrária, de que ela deve ser tirada mediante persuasão; ou, se houver, essa situação contrária e essa persuasão foram de­cretadas por Deus. Mas, nesse caso, não haveria situação indepen­dente para Maria (como desejar, submeter-se e assim por diante), a partir da qual poder-se-ia avaliar os decretos de Deus, e ver se realmente ela é livre. Dessa forma, o livre-arbítrio dela é uma ilu­são.2

2 A sugestão do professor Feinberg para que ela tente outra vez o vestibular da faculdade de medicina, a fim de obter “confirmação de que ela está onde Deus quer que ela esteja” é algo bem complicado. Por que deveria ela tentar apenas mais uma vez? Será que ela não deveria tentar uma terceira vez, para confirmar as duas primeiras? Deus poderia ter decretado que ela seria bem-su­cedida na terceira tentativa. E se ela fracassasse na terceira tentativa, não se­ria bom que ela tentasse pela quarta vez, a fim de confirmar as três primeiras tentativas... e assim indefinidamente? Por quê é que ela deveria ficar conten­te, que “Deus não a quer na escola de medicina agora”, ao invés de fazer nova tentativa? Em resumo, contrariamente às idéias de Feinberg, o insucesso de Ma­ria no vestibular não diz nada a ela, concernente às relações dela com a von­tade de Deus, nem com o melhor que Deus planejou para ela, nem sobre o que ela deve fazer em seguida. Tal insucesso só lhe diz que Deus decretou que des­ta vez ela não passaria nos exames.

Além do mais, é preciso rejeitar-se a distinção que Feinberg faz entre a von­tade perfeita de Deus e a vontade permissiva de Deus. Por um lado, somos en­sinados que os decretos de Deus derivam de Seus propósitos e arbítrio (p. 46);

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Argumentos de FeinbergFeinberg desenvolve cinco argumentos teológicos e dois filosóficos, em apoio à sua posição compatibilística. O primeiro argumento teo­lógico é que esta perspectiva particular da soberania de Deus encon­tra-se nas Escrituras, especialmente em Efésios 1:11. Admitimos que se esta fosse a única passagem que tivéssemos sobre a soberania di­vina, já se estabeleceria uma forte posição favorável à predestinação. Mas, há muitas outras passagens além desta. Os leitores farão o fa­vor de consultar o capítulo de minha autoria, neste volume.

Todavia, outros dois pontos poderão ser levantados. Em pri­meiro lugar, há outras passagens no Novo Testamento que baseiam a eleição na presciência divina.3 Em segundo lugar, quando Efé­sios 1:11 declara que em Deus “fomos também feitos herança, pre­destinados segundo o propósito daquele que faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade”, há uma ambigüidade críti­ca que Feinberg despreza. Será que essa passagem ensina que Deus faz ou suscita todas as cousas segundo Seus propósitos, ou será que ela ensina que todas as cousas que Deus faz, Ele as faz segundo Seus propósitos? A sintaxe gramatical da sentença não nos obriga a ado­tar uma interpretação ao invés de outra. Por exemplo, uma pessoa pode dizer: “João faz todas as coisas muito devagar!’ Não pode­mos inferir daí que João faz todas as coisas, mas apenas que to­das as coisas feitas por João são feitas devagar. De modo semelhan­te, não se pode inferir deste versículo que Deus faz ou suscita to­das as coisas; é igualmente razoável interpretar esta passagem co­mo afirmando que todos os atos de Deus provêm de Seu conselho.

O segundo argumento de Feinberg é que, em face da perspec­tiva indeterminista do livre-arbítrio humano, Deus não pode prever o futuro. A razão disto, de acordo com a posição indeterminista, é que o futuro é indeterminado, em qualquer porção definida de tempo. A pessoa poderia praticar determinada ação, ou deixar de

por outro lado, somos ensinados que Deus decreta coisas contrárias a Seus de­sejos, e contrárias aos nossos melhores interesses. Não se pode encontrar uma boa razão por que Deus haveria de decretar algo contrário àquilo que Ele de­seja para nós, e que é o melhor para nós.3 Romanos 8:29; Atos 2:23. Em Atos 2:23 há ambigüidade quanto à relação existente entre o propósito determinado de Deus e Seu prévio conhecimento, ou presciência. Naturalmente, presciência nestas passagens não significa sim­plesmente conhecimento intelectual, visto que, como tem sido salientado com freqüência, o conhecimento nas Escrituras é experimental. Não obstante, es-i e fato não invalida o relacionamento estabelecido nestas passagens.

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praticá-la. Só se o futuro estiver estabelecido é que Deus pode co­nhecê-lo

Mas, isto só seria verdade se negássemos que o conhecimen­to de Deus é, efetivamente, presciência, isto é, conhecimento pré­vio. Ter presciência é saber o que ocorrerá antes de sua ocorrên­cia, no tempo. Se o conhecimento for definido segundo a suges­tão de Feinberg, a saber, crença verdadeira e justificada, então eu e você exercemos presciência. Por exemplo, eu sabia ontem que me levantaria, hoje, entre 7 e 8 horas. Ontem eu tinha este conheci­mento, e o mesmo era verdadeiro (de fato, eu me levantei às 7hl5, hoje de manhã), e minha idéia se justificava — baseada numa boa inferência indutiva sobre meu comportamento passado, nas ma­nhãs dos dias úteis. Entretanto, não havia uma causa fazendo-me levantar a essa hora (embora eu tivesse razões para agir assim); eu poderia ter-me levantado noutra hora, ou poderia não levantar- me. Eu poderia ter agido de modo diferente de como agi hoje de manhã (no sentido indeterminístico de poderia ter feito algo di­ferente daquilo que fiz).

A presciência de Deus difere da minha, é lógico, não quanto a ser presciência, mas na base do conhecimento de Deus. Minha presciência baseia-se em inferências da experiência passada, en­quanto a presciência divina fundamenta-se no próprio fato. Assim, Deus sabe os fatos, e o que Ele sabe é aquilo que efetivamente as pessoas fazem. Entretanto, este conhecimento não determina as ações que praticamos. Esse conhecimento baseia-se nas próprias ações. Dessa forma o futuro, como diz Feinberg, está “estabele­cido”, contudo, não de maneira trivial: faremos aquilo que Deus sabe que faremos, o que significa que faremos aquilo que realmen­te faremos. Entretanto, isso ainda nos deixa perfeitamente livres (no sentido indeterminista) para fazer ou não fazer.

O terceiro argumento de Feinberg diz respeito a profecias. De que maneira, pergunta ele, Deus pode garantir o cumprimento das profecias, no futuro, se este está aberto para nós, para fazermos ou deixarmos de fazer as coisas? A resposta deriva da presciên­cia de Deus. O que é preciso garantir, contrariamente a Feinberg, não é o evento profetizado, mas a profecia. E a profecia é garan­tida por causa da presciência dos eventos, da parte de Deus.

Em quarto lugar, argumenta Feinberg, baseado em 2 Pedro 1:21, que a plena inspiração verbal requer uma perspectiva com- patibilística do livre-arbítrio humano. Objetamos, porém, que é

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de duvidar-se que 2 Pedro 1:21 ensine a plena inspiração verbal. O que a passagem diz é que a profecia (não as Escrituras todas) tem origem em Deus, e não no homem. Ela não afirma que a ex­pressão da profecia em linguagem humana teve tal teor, que Deus controlou cada palavra. De modo mais generalizado, porém, po- der-se-ia argumentar que as Escrituras não ensinam essa perspec­tiva particular de inspiração advogada por Feinberg. A Bíblia cer­tamente ensina a inspiração (2 Tim. 3:16), mas a doutrina da ins­piração pode ser entendida em termos da revelação de Deus aos escritores a quem Ele moveu para escrever. Como tal, em muitos casos a atividade reveladora de Deus, e o controle dos resultados estabelecem-se em termos de condições necessárias, e não suficien­tes. A revelação não precisa incluir as palavras usadas, ou o esti­lo empregado, mas, antes, as verdades apresentadas.

Finalmente, Feinberg afirma que a doutrina da perseveran­ça eterna implica em que a perspectiva indeterminista é falsa. Se o crente é capaz de fazer o que bem entende, ele poderia aposta- tar, após ter recebido a graça de Deus. Mas, será que a doutrina da perseverança eterna é verdadeira, ou bíblica? Não há espaço pa­ra discutir-se este ponto, contudo, inúmeras passagens das Escri­turas ensinam que a apostasia é possível, e contra ela devemos estar alertas (Heb. 6:4-6; 10:26-29; Luc. 8:6-7; João 15; Rom. 11:22; Apoc. 3; At. 5:1-11).4

Quanto à argumentação filosófica de Feinberg, ela se baseia na tese de que o indeterminista pode prover nenhuma razão sufi­ciente, e causai, para nossas escolhas ou ações. Conseqüentemente, não existe uma explicação para nossas ações, nem qualquer ma­neira de atribuir-se responsabilidade moral pelos nossos atos. Mas, por que todas as explicações das ações humanas precisam ser cau­sais? Asseverar que precisam ser causais eqüivale a criar um cír­culo vicioso.

Contrariamente a Feinberg, é legítimo dizer-se que uma pes­soa pode ter uma razão suficiente para fazer determinada coisa, sem que essa suficiente razão funcione causalmente. Quando vou à mercearia comprar um litro de leite, essa compra do leite não cau­sou minha ida, embora seja a razão de minha ida.

4 Quanto a um tratamento cuidadoso, extenso, deste tópico, veja-se Robert Shank, Life in the Son (Springfield, Mo.: Westcott, 1960).

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Em suma, o compatibilismo tenta reconciliar o determinis­mo com o livre-arbítrio — sem sucesso. Sob esse ângulo, o livre-ar­bítrio torna-se uma ilusão. De modo semelhante, a tentativa de re­conciliar um determinismo divino de todos os eventos com o livre- arbítrio destina-se ao fracasso. Devemos abandonar a idéia segun­do a qual Deus é visto como um romancista cósmico; Deus não procura determinar os eventos de nossa existência, mas amar-nos, numa aceitação livre de Sua graciosa salvação, e num relaciona­mento significativo, aprofundado e cheio de realizações.

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Réplica de Clark Pinnock

M EDIANTE LEITU RAS DE LIVROS, SEMPRE SOUBE QUE existem calvinistas inamovíveis. Contudo, jamais pensei que po­deria topar um do tipo de Feinberg, em fins do século vinte. Que artigo interessante o dele! Tão admirável na coerência lógica, mas tão funesto naquilo que efetivamente propõe. Temos, aqui, um re­médio pior do que a doença. É melhor deixar a soberania e o livre- arbítrio sem solução, do que explicar seu relacionamento à ma­neira de Feinberg.

Eu, em meu artigo, e Feinberg no dele, expomos algumas coi­sas muito claramente. Ele reconhece que a total onisciência divi­na, ou conhecimento de todas as situações futuras, elimina a li­berdade genuína. Ele sente que a abstração do tempo não funciona como solução. Então, tragicamente, ele se apega ao modelo de- terminístico da soberania de Deus, e joga fora toda a contingên­cia e novidade do universo. Ao invés de reconsiderar a frieza de seu teísmo, prefere (causalmente determinado, presumo!) culpar a Deus por todo o mal que Ele, deliberadamente, decretou, e negar- nos a liberdade que torna nossa vida na terra distintiva e precio­sa. Há uma coisa, pelo menos, pela qual o leitor pode ser grato.

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A apresentação do autor é tão honesta e direta, que ele virtualmen­te refuta sua própria posição, ao falhar em oferecer soluções con­vincentes para os problemas brutos que, ele mesmo admite, infes­tam sua posição.

O grande erro de Feinberg consiste em seguir Agostinho, e deste modo, julgar que Deus decreta e controla tudo quanto acon­tece na história, até os mínimos detalhes. Ele até mesmo evita di­zer que Deus apenas “permite” algumas atrocidades como o H o­locausto (morticínio de 6 milhões de judeus, durante a segunda guerra mundial, também conhecido como genocídio nazista — N. do T.), como fazem alguns calvinistas menos duros, mas incon­sistentemente, visto que tal opinião sugeriria que o fato originou-se fora da soberana vontade de Deus. Longe dos calvinistas negar a Deus a glória de causar todas as coisas! Deveria ficar bem claro para o leitor as razões por que o número de calvinistas rigorosos é tão pequeno, relativamente. O calvinismo envolve a pessoa em dificuldades agonizantes de primeira grandeza. Faz com que Deus se transforme num tipo de terrorista que vai por aí distribuindo tortura e desastre, e até mesmo exigindo que as pessoas façam coi­sas que a Bíblia diz que Deus aborrece. Há alguns anos, um lou­co assassinou vinte pessoas numa das casas de lanches McDo- nald, perto de San Diego. De acordo com Feinberg, embora Deus não goste de coisas desse tipo, Ele a decretou assim mesmo. Não seria mais simples dizer que Deus não gosta disso, e deixar as coisas envoltas em mistério? Feinberg diz que a exigüidade do espaço não lhe permite dar uma resposta completa, e pede-nos que consulte­mos seu livro. Ele terá de desculpar-me por eu pensar que isso é desculpa esfarrapada, e que não importa a extensão de seu livro, não há maneira de limpar a reputação de Deus, num caso assim. Não é preciso a pessoa pensar muito para responder por que muita gente torna-se descrente, ou ateu, ao defrontar-se com tal teolo­gia. Um Deus assim teria muita coisa por que responder.

Na minha opinião, a Bíblia não ensina isto. É lógico que Deus persegue energicamente a causa do estabelecimento de Sua von­tade para o mundo, em todas as áreas, como diz o texto de prova mencionado por Feinberg (Ef. 1:11). Mas, isto não significa que a vontade de Deus seja feita, de fato, em todos os casos. Bem ao contrário, Jesus deixou claríssimo que os fariseus “rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus” (Luc. 7:30). Não esta- vam numa posição em que poderiam impedir’ ã consecução da

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vontade de Deus para o mundo todo, mas podiam rejeitá-la total­mente, para si mesmos. Deus não quer que alguém se perca — en­tretanto, alguns se perdem. Deus não quer que os maridos batam em suas esposas — entretanto, algumas esposas apanham. Deus quer que todos se salvem, mas nem todos se salvam. Jesus alme­java juntar os judeus como uma galinha junta seus pintinhos, mas eles não quiseram. Deus não queria que eles resistissem ao Ês~pT- rito, mas eles resistiram. É difícil, para mim, imaginar as razões por quéTembêrg"aceita uma teoria da soberania de Deus que con­tradiz o tema geral das Escrituras. De acordo com a Bíblia, ho­mens e mulheres rejeitam, e podem rejeitar, a vontade e o plano de Deus. Deus, em Sua soberania, concedeu-lhes este terrível po­der. Contrariamente a Calvino e a Agostinho, a vontade de Deus não é sempre feita.

O preço que Feinberg está disposto a pagar pela sua perspec­tiva errônea da soberania divina é ainda mais alto do que apenas arruinar a reputação de Deus. Ele é compelido a aceitar um con­ceito do livre-arbítrio humano que poucos leitores, imagino, se­rão capazes de aceitar. Em todos os momentos das decisões, diz ele, há um jogo de circunstâncias que tornam certa a direção que a escolha tomará. Os indivíduos estão determinados a seguir o de­sejo mais forte que abrigam em si mesmos. São causalmente de­terminados e, apesar disso, livres! Podem sentir que diante deles amontoam-se alternativas, e que há alguma indefinição no ar, mas a verdade é outra. Aquilo que foi decretado desde a eternidade é o que vai inevitavelmente acontecer.

Suponho que muitos leitores concordarão comigo em que es­tamos sendo enganados aqui. O que Feinberg se agrada em cha­mar de livre-arbítrio não merece este nome. Vamos usar um exem­plo para esclarecer a questão. José rouba um banco. Ele não pre­cisava fazer isso. Ninguém o forçou a fazê-lo. Mas, ele queria rou­bar. O currículo e os desejos de José eram de molde a tornar ine­vitável, naquele momento, o assalto ao banco. Não havia outra saí­da para José. Era uma vítima de fatores causais sobre os quais não podia exercer o mínimo controle. Um médico poderia tentar re- programá-lo, porém, nenhum juiz tem o direito de condená-lo por fazer algo que ele não podia evitar. Todo o senso de responsabili­dade moral voou pela janela fora, em face do conceito de Fein­berg de livre-arbítrio. A Bíblia nos apresenta um mundo bem di­ferente desse. Nela, as pessoas tomam decisões que determinam

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o futuro, mediante caminhos não determinados no passado. To­mam decisões de peso, que as envolverão em séria responsabili­dade moral. Tudo isto é claro, tanto na Bíblia como na vida co­mum. Mas, Feinberg está disposto a abandonar tudo isso, apenas para apegar-se a um conceito de soberania divina em si mesmo en­ganoso. É um tributo que ele paga, suponho, por sua tenacidade em aderir à velha teologia agostiniana±

As implicações práticas do conceito de Feinberg para Alfre­do e Maria são predizíveis. Nenhum dos dois, na verdade ninguém no mundo todo, precisa preocupar-se quanto a estar, ou não, den­tro da vontade de Deus. Em face de tal visão da soberania deter- minística, como é que alguém poderia deixar de estar dentro da vontade de Deus? Aqui está o ponto central do conceito de Fein­berg concernente ao mundo. A vontade de Deus é feita sempre. O milionário em seu castelo, o mendigo à sua porta, Deus decretou que a história decorresse desse jeito. Deus quis que acontecesse, seja o que for que esteja acontecendo. Seria irracional preocupar-se a respeito de qualquer fato, no universo calvinista. Simplesmente submeta-se à vontade determinística de Deus! Se Deus quiser sal­vá-lo, Ele certamente o fará, sem que você tenha de levantar um dedo para ajudá-lO. Se Ele quer que você seja pobre, é melhor você ir-se acostumando, porque você não poderá mudar nada. Alfre­do não precisa preocupar-se com a moralidade de sua fortuna, uma vez que a realidade da responsabilidade moral voou pela ja ­nela fora. M aria não precisa alimentar dúvidas, porque tudo quanto vem acontecendo foi planejado para acontecer mesmo.

Segundo meu ponto de vista, é óbvio, Alfredo e Maria têm razão em sentir que a vontade de Deus é assunto dinâmico, não algo feito de pedra. Estão certos em achar que as coisas poderiam ter ocorrido de outra maneira. É bom que estejam pensando de que maneira a vontade ideal de Deus para eles poderia concretizar- se de modo mais perfeito. O pensamento calvinista a respeito des­ses assuntos está longe da verdadeira experiência das pessoas de carne e osso, até mesmo quando essas pessoas são calvinistas, sen­do esta outra razão para suspeitar-se que o calvinismo é um erro.

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Deus Sabe Todas as CoisasNorman Geisler

FAMOSO EX ISTE N C IALISTA FRANCÊS JE A NPaul Sartre dizia: Se Deus existe, o futuro está determi­nado e eu não sou livre. fcu~sõuíivre; portanto, Seus não

existe.1 Em contraste, o grande teólogo puritano Jonathan Ed­wards dizia: Se todos os acontecimentos têm uma causa, ás esco- lfias humanas livres também têm: Deus é a Causa Primeira de tu­do^ portanto, Deus deve ser a causa de nossas escolhas livres.2 Sartre usou o livre-arbítrio para eliminar Deus, e Edwards, apa­rentemente, usou Deus para eliminar a liberdade, ou o livre-arbí­trio. Visto que o cristão bíblico crê tanto na soberania de Deus co­mo na responsabilidade do homem, quanto às suas decisões livres, permanece o problema de como reconciliar as duas doutrinas.

Dados B íblicosSoberania Divina. A Bíblia ensina claramente que Deus controla o universo inteiro, inclusive os acontecimentos humanos. A sobe­

1 Jean Paul Sartre, Being andNothingness, trad. Hazel E. Barnes (New York: Washington Square Press, 1966), parte 4, cap. 1.2 Jonathan Edwards, “Freedom of the W ill” em Jonathan Edwards, ed. Cla- rence H. Faust e Thomas H. Johnson (New York: Hill e Wang), 1962, p. 305.

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rania geral de Deus revela-se em inúmeras passagens. Por exem­plo, Jó declarou o seguinte, a respeito de Deus: “Bem sei que tu ­do podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42:2, ARA, usada aqui, e em todo o volume). O salmista reconhecia que “tudo quanto aprouve ao Senhor ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sal. 135:6). Disse Salomão: “Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do Senhor; es­te, segundo o seu querer, o inclina” (Prov. 21:1).

A exultação de João, no Apocalipse, reconhecia o seguinte, a respeito de Deus: “Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as cousas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Apoc. 4:11). Disse Paulo aos colossenses: “Ele é antes de todas as cou­sas. Nele tudo subsiste” (1:17). Deus controla não apenas o que vem à existência, ou continua a existir, mas dirige de fato o curso das coisas que existem. De acordo com as Escrituras, Deus “faz to­das as cousas conforme o conselho da sua vontade” (Ef. 1:11). Dis­se Deus para o Faraó: “Mas, deveras para isso te hei mantido, a fim de mostrar-te o meu poder, e para que seja o meu nome anun­ciado em toda a terra” (Êx. 9:16). Este mesmo controle divino é exercido sobre toda a criação, inclusive anjos bons ou maus (Jó 2:1; Fil. 2:10).

A soberania de Deus não se exerce apenas de modo genéri­co, sobre a criação, mas é manifestada em questões particulares, como a redenção e salvação dos homens. Até mesmo Cristo, o úni­co meio de salvação (At. 4:12; 1 Tim. 2:5), foi “entregue pelo de­terminado desígnio e presciência de Deus” (At. 2:23). A carta aos efésios diz que Deus “nos escolheu nele (Cristo) antes da funda­ção do mundo” (1:4). Lucas declara: “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At. 13:48). E na passagem mais forte, talvez, de todas quantas tratam da soberania divina, o apóstolo Paulo declara, atrevidamente, que a salvação “não de­pende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia”. Portanto, “tem ele misericórdia de quem quer, e também endurece a quem lhe apraz” (Rom. 9:16,18).

Responsabilidade Humana. A Bíblia também declara que as pessoas, individualmente, são responsáveis por suas decisões mo­rais e até mesmo por seu destino eterno. Adão e Eva receberam a ordem de não comer do fruto proibido (Gên. 2:16,17). Quando de­sobedeceram, Deus perguntou: “Que é isso que fizeste?” (Gên.

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3:13). Adão admitiu: “Eu comi” (v. 12). Prosseguiu Deus, dizen­do: “Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste...” (v. 17).

Através de toda a Bíblia, Deus convoca as pessoas para to­marem uma decisão. Josué desafiou a Israel: “Escolhei hoje a quem sirvais” (Jos. 24:15). Elias vergastou a Israel ao perguntar: “Até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1 Reis 18:21). Na verdade, Jesus responsabilizou o povo ao clamar: “Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram en­viados! quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a gali­nha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o guises- tes!” (Mat. 23:37).

De fato, até mesmo nosso estado de ignorância e depravação é atribuído à nossa vontade. Disse Pedro: “Porque deliberadamen­te (por sua própria vontade) esquecem (o que Deus disse)” (2 Ped. 3:5). Em Romanos está declarado o seguinte: “... desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça” (Rom. 6:16). Até mesmo o mundo pa­gão que conhecia a verdade acerca de Deus mediante a revelação geral foi responsabilizado e tido como “homens... indesculpáveis” diante de Deus, porque “detêm” a verdade (Rom. 1:18-20). Sobre os “incrédulos” caiu uma cegueira espiritual por terem escolhido a incredulidade (2 Cor. 4:3-4). De acordo com Paulo são “obscu- recidos de entendimento” e vivem na “ignorância” da verdade, mas tal estado é devido à dureza de seus corações (Ef. 4:18). Até mes­mo as passagens fortes que dizem que Deus “endureceu” o cora­ção de Faraó vêm apenas depois de o próprio Faraó ter endureci­do seu coração (Êx. 7:13,14,22; 8:15,19,32). De fato, o último ver­sículo diz: “mas ainda esta vez endureceu Faraó o coração, e não deixou ir o povo!’ E quando Paulo fala, em Romanos 9, dos “va­sos de ira, preparados para a perdição”, deixou implícito que isto resultava de livre escolha, da teimosa rejeição que Deus “supor­tou com muita longanimidade” (v. 22). É como Pedro declarou: “Ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pe­reça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Ped. 3:9).3

Soberania e Responsabilidade. As Escrituras declaram enfa­ticamente que Deus controla tudo quanto acontece, inclusive a sal­

3 Quanto a um tratamento profundo das passagens bíblicas que tratam da pre­destinação, veja-se Roger T. Forster e V. Paul Marston, G od’s Strategy in Hu­man H istory (Wheaton, 111.: Tyndale, 1973).

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vação ou a condenação das pessoas. Entretanto, as Escrituras tam­bém enfatizam que a responsabilidade pelas ações morais perma­nece totalmente com os agentes morais, livres, e não com Deus. De fato, às vezes a tensão destas duas verdades é expressa na mes­ma passagem. Considere a misteriosa relação existente entre a so­berana vontade de Deus e a escolha humana, livre e culpável, na seguinte passagem: “Sendo este (Jesus) entregue pelo determina­do desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando- o” (At. 2:23). Ambos os lados da moeda, o da soberania divina e o do livre-arbítrio humano, manifestam-se na declaração de Je­sus: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (Jo. 6:37).

Há outra passagem interessante, em Atos, que declara que “creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At. 13:48). Entretanto, bem pertinho desta passagem Lucas diz o seguinte: “Falaram de tal modo que veio a crer grande multidão, tanto de judeus como de gregos” (At. 14:1). É assim que a Bíblia ensina tanto a soberania divina como a responsabilidade huma­na, às vezes na mesma passagem.

Perspectivas TeológicasCristãos evangélicos têm tentado explicar o relacionamento exis­tente entre a soberania de Deus (predeterminação soberana, ou predestinação) e o livre-arbítrio humano de três maneiras básicas. Estas três perspectivas são representadas pelos arminianos, pelos calvinistas extremados, e pelos calvinistas moderados.

A predeterminação de Deus baseia-se em Sua presciência. Al­guns crentes acham que Deus sabe antecipadamente (por Sua onis- ciência) todas as decisões que as pessoas vão tomar. Por exemplo, se aceitarão ou recusarão a salvação. Daí, com base na escolha li­vre, pré-conhecida, que essas pessoas farão, aceitando a Cristo, Deus escolhe (elege) tais pessoas para salvá-las. Assim, os seres hu­manos são inteiramente livres para aceitar ou rejeitar a Deus, não sofrendo qualquer coerção da parte dEle. Por outro lado, visto que Deus sabe todas as coisas, Ele Se mantém no controle de todo o universo, porque sabe exatamente o que cada pessoa decidirá fa­zer, antes mesmo de ter criado o mundo. Em suma, as pessoas são absolutamente livres, e apesar disso Deus está no pleno controle do universo. Todavia, o “controle” não se baseia na coerção dos eventos, mas no conhecimento daquilo que os agentes livres vão fazer.

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Esta perspectiva enfrenta diversos problemas. Em primeiro lugar, parece que a Bíblia diz mais do que simplesmente que Deus sabia o que haveria de acontecer. Parece que as Escrituras ensinam que Deus na verdade determinou aquilo que haveria de acontecer, e que Ele até mesmo assegura o cumprimento dessa determina­ção, trabalhando eficazmente a fim de realizar Seus intentos. Paulo estava “plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Fil. 1:6). E acres­centa: “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fil. 2:13).

Em segundo lugar, se a escolha de Deus para salvar se baseas­se naqueles que O escolhessem, então a salvação não se basearia na graça divina, mas no esforço humano. Isto se choca contra to­do o ensino bíblico a respeito da graça (compare Ef. 2:8,9; Tito 3:5-7). E contraria o ensino claro de várias passagens das Escri­turas, segundo as quais a salvação não depende da vontade hu­mana. João disse que os crentes “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (João 1:13). Paulo acrescenta que a salvação “não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericór­dia” (Rom. 9:16).

Finalmente, a idéia de haver seqüência cronológica, ou mes­mo lógica, nos pensamentos de Deus torna-se grave problema para a teologia evangélica. Choca-se contra a doutrina tradicional da simplicidade de Deus, da absoluta indivisibilidade, sustentada por Agostinho, Anselmo, Aquino, e legada aos crentes de nossos dias através dos reformadores. É como Agostinho disse: “Tampouco a atenção dEle (Deus) passa de pensamento para pensamento, por­que o conhecimento dEle abarca tudo, numa única esfera espiri­tual!’4 Se Deus é simples, Seus pensamentos não são seqüenciais, mas simultâneos. Ele não sabe as coisas por inferência, mas por intuição.5 Se Deus não é simples, Ele pensaria numa sucessão temporal. Além do mais, se Deus é temporal, Ele é, também, es­

4 Agostinho, Cidade de Deus 11.21. Vejam-se outras passagens selecionadas por Agostinho em What St. Augustine Says, ed. Norman L. Geisler (Grand Ra- pids, Mich.: Baker, 1982), cap. 3.5 Tomás de Aquino, Summa Theologiae 1.14.7. Trad. de Thomas Gornall (New York: McGraw-Hill Book Co., 1964), 4:27-28.

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pacial.6 Na verdade, um Deus assim deveria ser até mesmo mate­rial (o que contraria as Escrituras, e.g., João 4:24). E se Deus é li­mitado pelo mundo espaço-tempo, não poderia pensar em velo­cidade superior à da luz.7 Assim sendo, Ele não seria capaz de co­nhecer o universo todo num dado momento, para não mencionar- se o fato de Ele ter (ou não) um conhecimento infalível do futu­ro. Além disso, se Deus é tão limitado, fica sujeito à desordem e à entropia (esgotamento da energia utilizável).

Esta é a teologia processual, para a qual convergem muitos problemas. Entretanto, não é necessário, nem útil, uma perspec­tiva processual, porque lhe falta um embasamento bíblico. O Deus da Bíblia sabe todas as coisas, do princípio ao fim (Is. 46:10). É um Deus que não pode mudar (Mal. 3:6), nem mesmo nas míni­mas coisas (Tiago 1:17).

Predeterminação a despeito da presciência de Deus. Outro modo de relacionar-se a soberania divina com o livre-arbítrio hu­mano é que Deus opera com uma soberania tão inabordável que Ele toma Suas decisões com desinteresse total pelas decisões hu­manas. Por exemplo: Deus determina salvar qualquer pessoa que Ele queira salvar, independentemente de a pessoa decidir crer ou não.

Há um importante corolário desta perspectiva. Se o livre-ar­bítrio não foi levado em consideração, de modo algum, quando Deus fez a lista dos eleitos, segue-se que existe a graça irresistível agindo sobre os que não querem salvar-se. As pessoas não teriam ação nenhuma em sua salvação. Conseqüentemente, o fato de al­guns (talvez todos) decidirem não amar, nem adorar, nem servir a Deus não faria a mínima diferença jamais para Deus. Ele simples­mente os forçaria, com Seu poder irresistível, e os levaria gritan­do e esperneando, para dentro de Seu reino, contra a vontade de­les. Parece que tanto Agostinho como Calvino criam assim. Vis­to que Agostinho cria que os hereges poderiam ser coagidos a crer

® Paul Helm, “God and Spacelessness”, Philosophy 55:212 (março de 1980): 211-21.7 Veja-se a excelente crítica da teologia processual, de Royce Gruenler, The Inexhaustible God: Biblical Faith and the Challenge o f Process Theism (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1983).

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contra sua vontade, ele não via problema nenhum em Deus fazer isso com os eleitos.8

Esta posição está inçada de problemas. Primeiramente, ela encerra a negação do livre-arbítrio. Como o próprio Agostinho afirmara, anteriormente, “aquele que quer está livre da compul­são”.9 Em última análise, os homens não têm escolha em sua sal­vação. É como afirmava Jonathan Edwards: “livre-arbítrio” é a capacidade de fazermos o que queremos, mas é Deus quem nos dá o desejo (salvífico). Contudo, visto que Deus só concede tal de­sejo a alguns (não a todos), isto nos conduz a outro problema. A graça irresistível (?) operando sobre os que não querem (a salva­ção) é uma violação do livre-arbítrio. Isto porque o verdadeiro amor é persuasivo, mas nunca coercitivo. Não pode haver “casa­mentos sob canos de revólver”, no céu. Deus não é um B. F. Skin- ner cósmico, que modifica estruturalmente os seres humanos, con­tra a vontade deles.10 Não obstante uma metáfora infeliz, a res­peito de sua própria conversão (na qual afirma que foi “levado pa­ra o reino gritando e esperneando”), C. S. Lewis apresenta-nos duas passagens magníficas contra o emprego de força irresistível coagindo incrédulos. Em A s Cartas do Coisa-Ruim Lewis conclui que o “ Irresistível e o Indiscutível são duas armas que a própria natureza de Seu esquema O proíbe de utilizar. Subjugar simples­mente a vontade humana... não Lhe serve. Ele não pode arreba­tar. Pode apenas convidar”.11 Em O Grande Abism o Lewis demonstra-nos como Deus em última instância respeita o livre- arbítrio com que dotou Suas criaturas: “Só há duas espécies de pessoas no final: as que dizèína Deus: ‘Seja feita a Tua vontade’, e aquelas a quem Deus diz: A tua vontade sejaleita. Todos os que estão ho inferno foi porque o escolheram. Sem essa auto-escolha não haveria jnferno” 12

à despeito de alguma aparente inconsistência neste ponto da parte de Calvino (consulte-se o comentário dele sobre Luc. 14:23), ele enfrenta honestamente o ensino bíblico de que o Espírito Santo pode ser resistido. Disse Estêvão a respeito dos judeus: “Homens

8 Geisler, What Augustine Says, cap. 7.9 Ibid., p. 158 (de Two Souls Against the Manicheans 10.14).10 Veja-se Norman L. Geisler, “Human Destiny: Free or Forced?” Chrístiao Scholar’s Review 9, n“ 2 (1979): 99-100.11 C. S. Lewis, As Cartas do Coisa-Ruim (Edições Loyola, 1982), p. 42.12 C. S. Lewis, O Grande Abismo (Ed. Mundo Cristão, 1983), p. 53.

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de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sem- pre resistis ao Espírito Santo, assim como fizeram vossos pais, tam­bém vós o fazeis” (At. 7:51). Comentando esta passagem, assim expressou-se Calvino: “Finalmente, são acusados de resistir ao Es­pírito, ao rejeitar teimosamente aquilo que o Espírito diz pelos pro­fetas” 13 Calvino descreve esta resistência com frases assim: “re­jeitar teimosamente”, “rebelar-se intencionalmente” e “guerrear contra Deus”.

O uso de força irresistível da parte de Deus contra Suas cria­turas livres seria uma violação tanto da caridade de Deus como da dignidade dos seres humanos. Deus é amor. O verdadeiro amor jamais abre caminho à força. Amor forçado é rapto, e Deus não é um raptor!14

Em segundo lugar, é lógico que esta perspectiva parece ne­gar a “onibenevolência” (amor total) de Deus. A Bíblia diz que “Deus é am or” (1 João 4:16) e que Ele ama o mundo (João 3:16). De fato, “para com Deus não há acepção de pessoas” (Rom. 2:11), não apenas no que concerne à Sua justiça, mas em todos os Seus atributos, inclusive Seu amor (Mat. 5:45). De fato, se Deus é sim­ples, Seu amor estende-se por toda Sua essência, e não apenas em parte. Daí decorre que Deus não pode amar parcialmente. Mas, se Deus é todo-amor, de que maneira pode Ele amar apenas a al­guns, de modo a conceder-lhes, e somente a eles, o desejo de salvar- se?

Suponhamos que um fazendeiro descubra três garotos afo­gando-se numa lagoa de sua propriedade, onde há cartazes indi­cando claramente que é proibido nadar ali. Em seguida, perceben­do a patente desobediência, diz ele consigo mesmo: “Eles viola­ram a proibição, e trouxeram sobre si mesmos as conseqüências merecidas pela desobediência.” Poderíamos, talvez, concordar como raciocínio, até este ponto. Contudo, se o fazendeiro prosseguir, dizendo: “Portanto, não farei qualquer esforço para salvá-los”, imediatamente imaginaríamos que está faltando alguma coisa em seu amor. Suponhamos, então, que por qualquer capricho inex­plicável ele diria o seguinte: “Não tenho a mínima obrigação de

13 João Calvino, Calvin’s New Testament Commentaries, trad. A. W. Morri- son (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1972), 6:213.14 Norman L. Geisler, The Roots o fE vil (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, (1978), pp. 85-88.

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salvar um deles, mas por mera bondade de meu coração salvarei um deles e deixarei os outros dois afogar-se” Em tal caso, certa­mente diríamos que o amor deste homem é parcial.

É certo que não é este o quadro que encontramos na Bíblia, concernente a Deus, que “amou o mundo” (João 3:16), e enviou Seu Filho para ser sacrifício não apenas pelos nossos pecados, “mas ainda pelos do mundo inteiro” (1 João 2:2), tendo Ele mor­rido “pelos ímpíõs” -(nIo apenas pelos eleitos). Na verdade, o Deus da Bíblia “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tim. 2:4). Pedro fala, até, da­queles que chegam ao ponto de “renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição” (2 Ped. 2:1).

Até mesmo João Calvino acreditava que Cristo morreu por todos os pecados do mundo (Col. 1:15), querendo dizer com isso, claramente, “a salvação da raça humana”.15 Comentando a pala­vra “muitos”, pelos quais Cristo morreu, em Marcos 14:24, assim se expressou Calvino: “a palavra ‘muitos’ não significa uma par- te apenas, do mundo, mas toda a raça humana”.1̂

'Ã predeterminação de Deus está de acordo com Sua presciên­cia. Há uma terceira maneira de relacionar-se a soberania divina ao livre-arbítrio humano. Talvez a predeterminação de Deus não se baseie em Sua presciência das livres decisões humanas, e nem a despeito dessa presciência. As Escrituras declaram, por exem­plo, que fomos “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai” (1 Ped. 1:2). Em outras palavras, não existe prioridade cronológica, ou ló­gica, de eleição e presciência. Sendo um Ser simples, todos os atri­butos de Deus formam uma unidade com Sua essência indivisível. Daí decorre que tanto a presciência quanto a predeterminação são uma unidade, em Deus. Assim sendo, seja o que for que Deus sa­be, Ele o determina. Seja o que for que Ele determina, Ele o sabe.

Mais adequadamente, deveríamos falar de Deus como A l­guém que determina sabendo e sabe determinando, d esd e a eter­nidade, tudo quanto acontece, inclusive nossos atos livres. É co­mo John Walvoord perspicazmente comentou, a respeito de 1 Pe­dro 1:2: “não ensina a ordem lógica da eleição, em relação à pres-

15 João Calvino, Institutes o f Christian Religion 3.1.1.16 Calvino, Calvirís New Testament Commentaries, 3:139. Veja-se, também, os comentários de Calvino sobre João 1:29, Romanos 5:15 e 1 João 2:2.

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ciência, pelo fato de ambas serem coextensivas!’ Em outras pala­vras, todos os aspectos do propósito eterno de Deus são igualmente desvinculados do tempo.17 Porque se Deus é um Ser eterno e sim­ples, Seus pensamentos devem ser coordenados e unificados.

Seja o que for que Deus pré-escolhe, não pode basear-Se na­quilo que Ele sabe de antemão. Nem pode aquilo que Ele prevê ser baseado naquilo que Ele escolhe de antemão. Tudo isto é ação simultânea e coordenada de Deus. Assim sendo, Deus conhece- doramente determinou e determinadamente soube, desde a eter­nidade, tudo quanto haveria de acontecer, inclusive todos os atos livres. Daí decorre a existência de ações verdadeiramente livres, as quais o próprio Deus determinou que haveriam de ser livres. En­tão, Deus é totalmente soberano, no sentido de verdadeiramente determinar o que acontece, enquanto os seres humanos são com­pletamente livres e responsáveis por aquilo que escolhem.

Determ inism o e Livre-ArbítrioAceitando-se a conclusão acima, defrontamo-nos com o mais per­sistente problema filosófico, que é a alegada contradição, na pres­ciência infalível de Deus, de eventos que os seres humanos efetuam livremente. O argumento pode ser enunciado como segue:

1. Seja o que for que o Deus onisciente prevê no futuro, de­verá acontecer (de outra forma, Ele estaria enganado quanto ao que sabe).

2. Deus sabia por antecipação que Judas haveria de trair a Cristo.

3. Portanto, Judas devia trair a Cristo. (Se ele não o traísse, Deus estaria enganado em Sua previsão.)

4. Porém, se Judas devia trair a Cristo, ele não era livre para não traí-lO (visto que o livre-arbítrio implica em que ele poderia ter agido de outra maneira, diferente).

5. Portanto, se Deus prevê o futuro, o futuro não é livre (e vice- versa).

Historicamente, os crentes têm sempre afirmado a verdade da primeira premissa, de que Deus sabe tudo, inclusive o futuro todo do universo. Recentemente, sob a influência devastadora da teologia processual, alguns teólogos têm-se aventurado além dos

17 Lewis Sperry Chafer e John Walvoord, M ajor Bible Themes (Grand Rapids Mich.: Zondervan, 1980), p. 233.

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limites da ortodoxia histórica, adentrando pela sugestão radical de que Deus talvez não conheça todo o futuro, com absoluta cer­teza. Tal conceito significaria, como expressou-se um pensador processual, bem ousadamente, que “Deus está observando, com a respiração suspensa”.18

A segunda premissa também é fundamentada na teologia bí­blica. Deus afirma: “Desde o princípio anuncio o que há de acon­tecer” (Is. 46:10). E Jesus sabia de antemão que Judas haveria de traí-lO, como as Escrituras afirmavam (João 13:2; At. 1:20).

O que muitas pessoas não conseguem perceber é que a pre­missa número quatro decorre logicamente das três primeiras. Se Deus não pode estar enganado a respeito daquilo que Ele sabe, e se Ele sabe que Judas trairá a Cristo, então as coisas não poderão ocorrer de outra forma — Judas deverá trair a Cristo. Se Judas houvesse decidido que não trairia a Cristo, então Deus estaria enganado.

A premissa 5, entretanto, não decorre logicamente das pri­meiras quatro. Não é necessário achar que Judas não era livre em sua traição a Cristo. Em primeiro lugar, o fato de que o ato de trai­ção era necessário, do ponto de vista da presciência de Deus, não significa que tal ato não era livre do ponto de vista de Judas. Dis­se Aquino que “as coisas conhecidas por Deus são contingentes em face de suas causas contingentes (escolhas livres), embora a causa primeira, o conhecimento de Deus, seja necessária”.19

A Confissão de Westminster (1646) interpreta bem este pon­to quando diz: “Embora, em relação com a presciência e o decre­to de Deus, a causa primeira, todas as coisas aconteçam imutável e infalivelmente, pela mesma providência, entretanto, Ele ordenou que essas coisas acontecessem, de acordo com a natureza das cau­sas secundárias, necessária, livre, ou contingentemente!’20

Em suma, Deus determinou que Judas trairia a Cristo, livre­mente. Não há contradição lógica entre o determinismo e o livre- arbítrio. Haveria contradição apenas no caso de Deus forçar Ju­das a livremente trair a Cristo. Liberdade forçada é uma contra­

18 Veja-se Bernard Loomer, “A Response to David Griffin”, Encounter 36, n®4 (outono de 1975): 365.19 Tomás de Aquino, Summa Theologiãc 1.14.13, Réplica 1. Também Loomer, “Response to Griffin”.20 The Westminster Confession (“Confissão de Westminster”) (1646; reimpres­são, Atlanta: John Knox Press, 1963), 5.2.200.

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dição de termos. Porém, se Deus simplesmente determina que Ju­das livremente trairá, inexiste contradição. Deus pode determinar, com a mesma certeza, através da escolha livre e sem a escolha li­vre. Uma mente onisciente não pode enganar-se.

Em segundo lugar, só porque um certo fato foi determinado, isto não significa que esse fato não é livre. Os eventos do passado estão determinados, não podem ser mudados. Entretanto, reco­nhecemos que muitos deles resultaram de livre escolha. Por exem­plo, ontem eu decidi ouvir um pouco de música (coisa que rara­mente faço). Esse fato pertence, agora, ao passado. Já não posso mais decidir não fazer o que fiz. Está determinado para sempre. Entretanto, quando eu o fiz, estava inteiramente livre. Daí, não existe contradição entre um evento resultar de uma escolha total­mente livre e, ao mesmo tempo, ser totalmente determinado. Mas Deus sabe todas as coisas, pode saber o futuro, com a mesma cer­teza que sabe o passado. Assim, o futuro pode ser absolutamente determinado, e alguns eventos, totalmente livres.

Em terceiro lugar, não há problema em a presciência de Deus predeterminar eventos, num sentido ainda mais preciso. Visto que Deus é um Ser eterno, Ele na verdade não prevê as coisas. Ele sim­plesmente sabe eternamente. Só recentemente é que surgiram des­vios sumamente perigosos no que tange ao pensamento proces­sual, através de pensadores situados na crista do movimento, mas os cristãos ortodoxos, desde Agostinho, passando por C. S. Le- wis, têm ensinado firmemente que Deus é um Ser eterno, não- temporal.21 A despeito de muitos antropomorfismos que retra­tam a Deus em termos temporais, a natureza não-temporal de Deus é sustentada por inúmeras passagens das Escrituras (por exemplo: Êx. 3:14; João 8:58). É como afirmou Judas: Deus exis­te desde “antes de todas as eras” (v. 25). Na verdade, Hebreus de­clara que Deus “fez o universo” (1:2). Uma tradução de Knox, men­cionada pelo autor, diz: “criou este mundo de tempo” — N. do T.).

Contudo, se admitirmos que Deus não passa por sucessões temporais, aquilo que Ele pensa terá pensado para sempre. O pen­samento dEle é perfeito e absoluto; não precisa de progresso, nem de melhoria. Assim, Deus apenas sabe (Ele não antecipa o saber) aquilo que faremos com nosso livre-arbítrio. Aquilo que temos,

!21 Veja-se Norman L. Geisler, “Process Theology and Inerrancy”, em Chal- lenges to Inerrancy: A Theological Response, ed. Gordon Lewis e Bruce De- marest (Chicago: Moody, 1984), pp. 247-284.

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aquilo que somos e aquilo que decidiremos está presente diante de Deus em Seu eterno AGORA.22 Assim sendo, não existe pro­blema sobre como um certo ato pode ser verdadeiramente livre, se Deus determinou por antecipação tudo quanto há de aconte­cer. A presciência de Deus não significa, para Ele, preordenação de qualquer coisa que ocorrerá mais tarde. Toda a extensão do tem­po está presente na mente de Deus, por toda a eternidade. Na ver­dade, Deus não prevê os fatos; Ele os conhece, por estarem em Sua eterna presença. Daí, Deus não está realmente preordenando as coisas que vê, mas Ele simplesmente ordena aquilo que os seres humanos fazem livremente. Deus vê tudo quanto fazemos livre­mente. Aquilo que Ele vê, Ele conhece. Aquilo que Ele conhece, Ele determina. É assim que Deus determinadamente conhece e conhecedoramente determina tudo quanto nós por livre-arbítrio decidimos.

Além do mais, não é o determinismo que é contrário ao livre- arbítrio, mas a coerção. Não é a presciência que elimina o livre- arbítrio, mas a força. A necessidade e a liberdade não são incom­patíveis, mas a irresistibilidade e a responsabilidade humana são.

A Natureza do Livre-ArbítrioAté aqui deixamos implícito, mas não explicamos o que significa livre-arbítrio. Pode-se evitar muita confusão mediante a definição clara deste importante conceito. Primeiramente, vamos delinear as três principais perspectivas: indeterminismo moral, determinis­mo moral e autodeterminismo moral. Com estes termos, quere­mos simplesmente dizer que um certo ato humano, moral, é não- causado, causado por outrem, ou causado pela própria pessoa.

Primeiramente, examinaremos o indeterminismo moral. Quando o indeterminismo é definido adequadamente, torna-se di­fícil asseverar que as ações morais são de fato indeterminadas, isto é, que não têm causa eficiente. Um ponto fundamental do pensa­mento racional é que cada evento tem uma causa adequada. As coisas não acontecem sem que haja um propósito. Acreditar que as coisas pulam do nada para a existência espontaneamente, sem que haja condições suficientes e necessárias, é ir contra a experiên­

22 Agostinho, Confissões 11.6-27. Veja-se, também, Geisíer, “Process Theo- logyl’ pp. 57-70.

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cia regular. Nem mesmo o cético David Hume jamais negou o princípio da causalidade.23

Se o indeterminismo fosse verdadeiro, haveria eventos sem causas. O universo seria irracional, e seria impossível viver aqui. De fato, seria um universo amoral, porque não haveria forma de determinar quem é responsável por uma ação que não tem causa eficiente.

Algumas pessoas tomaram, erroneamente, o “princípio da in- determinalidade”, de Heisenberg, em apoio para a perspectiva que aqui descrevemos como sendo o indeterminismo. O princípio de Heisenberg declara que uma partícula subatômica ocupa uma po­sição determinada, ou tem determinada velocidade, porém, não tem ambas ao mesmo tempo. Um dos fatos é indeterminado quan­do o outro é determinado.

Não é certo tirar conclusões filosóficas a partir da obra de Heisenberg, pelo menos por dois motivos. O princípio de Heisen­berg descreve a área subatômica, a qual não pode ser conhecida sem a interferência do investigador. Os instrumentos mediante os quais a área subatômica é observada bombardeiam as partículas subatômicas a fim de “vê-las”. Daí, o comportamento impredi- zível poderá resultar, em parte, da própria tentativa de observá-las.

Além disso, o princípio de Heisenberg não diz que não há causa para os eventos mas, simplesmente, que não podemos pre­dizer onde estará determinada partícula num determinado mo­mento. Portanto, tal princípio não haverá de ser entendido como princípio de não-causalidade, mas de imprevisibilidade. Mesmo que a posição de uma partícula não possa ser prevista, o padrão geral, todavia, pode ser previsto. De qualquer maneira, não há evi­dências científicas que apóiem a idéia de que os eventos, ou os pa­drões, na área subatômica, são destituídos de causa. Além disso, mesmo que tais evidências estivessem disponíveis, isto por si mes­mo não justificaria que se estendesse tal “indeterminalidade” da área física (subatômica), para a área moral. Por definição, a físi­ca trata daquilo que é, enquanto a moral, daquilo que deveria ser.

A segunda maneira possível de entender-se o livre-arbítrio é mediante o determinismo moral. De acordo com este conceito, a pessoa não é a causa eficiente de uma ação moral. Num contexto

23 David Hume, The Letters o f David Hume, ed. J. Y. T. Greig (Oxford: Cla- rendon Press, 1932), 1:187.

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teístico, a causa última seria Deus. O agente humano, então, quan­do muito seria apenas uma causa instrumental (através da qual flui a causalidade), não a causa eficiente (através da qual a causalidade se efetua).

Este conceito suscita problemas sérios para o crente. Não obs­tante, pensadores importantes, de Jonathan Edwards a Gordon Clark, têm esposado algumas formas derivadas deste conceito. 0 primeiro problema é que, pela lógica, tal conceito torna Deus a causa eficiente de todas as decisões livres, inclusive as más ações. Se os seres humanos, agentes individuais, não são as causas efi­cientes reais do mal, é Deus, então, quem pratica os raptos, os as­sassinatos, e outras crueldades, usando seres humanos. Tal con­ceito é biblicamente herético, e moralmente repugnante.

Em segundo lugar, esta perspectiva teológica do livre-arbítrio elimina toda a responsabilidade moral. Ela enseja que o homem não é a causa eficiente de suas ações mas apenas o instrumento. Assim, por exemplo, um assassino não poderia ser mais culpado do que o revólver ou a faca (instrumentos do assassinato). De mo­do semelhante, não se pode culpar racionalmente um carro diri­gido por um péssimo motorista, como criminoso, visto que foi apenas o instrumento que causou o dano. O responsável é o mo­torista. Em suma, o determinismo moral faz Deus imoral, e o ho­mem amoral.

A última perspectiva concernente à liberdade de ação é o au- todeterminismo moral. Segundo este conceito, os atos morais não são não-causados, nem causados por outrem. Ao contrário, são causados pela própria pessoa (agente). Este conceito enquadra- se melhor dentro dos critérios bíblicos e racionais. Perguntou Deus a Eva: “Que é isto que fizeste?” (Gên. 3:13). Até mesmo pelas de­cisões tomadas após a queda, Jesus responsabilizou os judeus, quanto à condenação deles, visto que “vós não o quisestes”(Mat. 23:37). Assim continua sendo através das Escrituras e na vida quo­tidiana.

Vamos considerar, brevemente, os problemas que têm sido le­vantados contra esta perspectiva teológica. Há várias objeções fi­losóficas. A primeira diz respeito à causalidade — cujo princípio determina que cada evento tem uma causa adequada. Se isto é ver­dade, diríamos, então, que até mesmo o livre-arbítrio de um ho­mem tem uma causa anterior. Se o livre-arbítrio da pessoa tem uma causa anterior, a ação não pode ser causada pela própria pes­

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soa. Daí decorre que o autodeterminismo seria contrário ao prin­cípio da causalidade que ele abraça.

Nesta objeção há uma confusão básica. Tal confusão resul­ta, em parte, de uma expressão infeliz do conceito de autodetermi­nismo. Os defensores do autodeterminismo moral às vezes falam do livre-arbítrio como se este fosse a causa eficiente das ações mo­rais. Isto induziria alguém, naturalmente, a perguntar: Qual é a causa do livre-arbítrio da pessoa? Contudo, uma descrição mais precisa do processo de uma ação livre evitaria este problema. Tec­nicamente falando, o livre-arbítrio não é a causa eficiente de um ato livre; livre-arbítrio é apenas o poder mediante o qual o agen­te desempenha o ato livre. A causa eficiente do ato livre é, real­mente, o agente livre, não o livre-arbítrio. Não costumamos dizer que as pessoas são vontade livre mas, apenas, que elas têm von­tade livre. De maneira semelhante, não costumamos dizer que os seres humanos são pensamento, mas, que detêm o poder de pen­sar. Assim sendo, não é o poder de exercer o livre-arbítrio que cau­sa o ato livre, mas a pessoa que detém esse poder.

Então, se a verdadeira causa de um ato livre não é um ato, mas um autor, não faz sentido procurar a causa do autor, como se es­te fosse outro ato. A causa de um desempenho é o desempenha- dor. Não tem o mínimo sentido perguntar qual o desempenho que causou o desempenho. Semelhantemente, a causa de um ato livre não é outro ato livre. Ao contrário, é um agente livre. E uma vez que tenhamos chegado ao agente livre, não tem sentido pergun­tar que é que causou seus atos livres. Se alguma outra coisa cau­sou suas ações, o agente não é, então, a causa delas e, por isso, dei­xa de ser responsável por elas. O agente moral livre é a causa de suas ações morais livres. É tão irracional procurar a causa que mo­tivou o agente livre a agir, quanto perguntar quem é que fez Deus. A resposta é a mesma em ambos os casos: nada pode causar a pri­meira causa, porque ela é a primeira. Nada existe antes da primei­ra. Semelhantemente, o homem é a primeira causa de suas pró­prias ações morais. Se o homem não fosse a primeira causa de suas próprias ações livres, tais ações não seriam suas.

Se se argumentar que é impossível vindicar e provar que o ho­mem pode ser a causa primária de suas ações morais, também se­ria, então, impossível ser Deus a causa primária das Suas ações morais. Fazer a primeira causa dos atos humanos recuar até Deus não resolve o problema de encontrar-se uma causa para cada ato.

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Isto apenas empurra o problema cada vez mais para o fundo. Mais cedo ou mais tarde os teístas deverão admitir que um ato livre é autodeterminado, não causado por outrem. Em última análise, reconhecer-se-á que todos os atos provêm de autores, mas tais au­tores (agentes livres) são a primeira causa de suas ações, as quais, portanto, não têm uma causa anterior.

A verdadeira questão, então, não é se há agentes que causem suas próprias ações mas, se Deus é o único e verdadeiro agente (isto é, pessoa) no universo. Os cristãos têm sempre declarado (como0 panteísmo) sua convicção de que, definitivamente, há somente um agente (ou pessoa) no universo. Porém, a negação do homem como agente livre implica naquela assertiva.

Há um segundo problema filosófico a respeito da afirmação de que o homem é a primeira causa de suas próprias ações: ela vio­la o princípio da causalidade. Se dissermos que as ações de uma pessoa não são causadas, não estaremos admitindo que há even­tos não-causados no universo? Esta alegação baseia-se numa com­preensão deficiente da diferença existente entre atos não-causados e atos autocausados. Os autodeterministas morais não afirmam existir quaisquer atos morais não-causados. Na verdade, eles crêem que todos os atos morais são causados por agentes morais. Con­tudo, diferentemente dos deterministas morais, que crêem que to­das as ações humanas são causadas por outrem (por exemplo, por Deus), os autodeterministas acreditam que existem outros agen­tes morais, além de Deus. Não obstante, os autodeterministas crêem que há uma causa para todas as ações morais, e que essa causa é um agente moral, seja ele Deus ou alguma criatura moral.

Contudo, será que esta conclusão não nos conduz a um ter­ceiro problema? Será que os atos autodeterminados não são au­tocausados? Não seria impossível uma pessoa autocausar-se? Te­mos aqui, outra vez, uma confusão entre ato e autor. Nenhum au-1 or (agente) pode causar sua própria existência. Uma causa é (em seu ser) anterior a seus efeitos. Mas, ninguém pode ser anterior a si mesmo. Um ser (autor) autocausado é impossível. Mas, uma ação autocausada não é impossível, visto que o autor (causa) de­ve ser anterior à sua ação (efeito). Assim sendo, é impossível a exis­tência autocausada, mas a formação autocausada é possível. Nós determinamos aquilo em que nos tornaremos, moralmente. Con-l udo, só Deus determina aquilo que somos. Assim sendo, as pes­

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soas não podem causar sua própria existência, mas podem cau­sar seu próprio comportamento.

Talvez se pudesse eliminar muito da confusão reinante nesta área se não nos referíssemos ao autodeterminismo como se esti­véssemos determinando a nós mesmos. O autodeterminismo mo­ral não se aplica à determinação de si próprio, mas à determina­ção por si próprio. Portanto, seria mais apropriado não se falar de uma ação autocausada, mas de uma ação causada por si pró­prio. Contudo, mesmo sem esta distinção, há uma significativa di­ferença entre um ser autocausado e uma ação autocausada. Aque­le é total impossibilidade, esta, não. Nenhum ser pode ser ante­rior a si mesmo, porém, um autor deve ser anterior ao seu ato.

O quarto problema filosófico concernente à perspectiva au- todeterminística da liberdade é este: De que maneira pode Deus determinar o futuro sem violar o livre-arbítrio? Uma das dificul­dades em ater-se a um determinismo forte (em que Deus infalivel­mente sabe e determina tudo quanto acontece) está exatamente em como é que Deus consegue fazer isso. Não é difícil entender co­mo Deus consegue atingir um objetivo necessário, mediante meios necessários (como, por exemplo, determinar por antecipação que a última peça de dominó, numa série de peças que estão caindo, também deverá cair). Contudo, de que maneira consegue Deus atingir um objetivo necessário através de meios contingentes (tais como decisões livres)?

Comumente, os que adotam este conceito dizem que se trata de um mistério. Certamente há um mistério, aqui, mas será útil explicar-se que tipo de mistério é, e por que esta situação é miste­riosa. Seguindo-se a distinção tradicional, entendemos que mis­tério é algo que não contraria a razão, ficando porém além da ra­zão. Com isto, queremos dizer que ambas as verdades (a sobera­nia de Deus e o livre-arbítrio humano) não são contraditórias, mas incompreensíveis. Podemos apreender ambas as verdades, mas não podemos compreender como ambas se relacionam entre si. Sabe­mos que ambas são verdade, mas não sabemos como.

Agora que já descrevemos o que quer dizer o mistério do livre- arbítrio humano e o determinismo divino, pergunta-se: por que é um mistério? Ou, perguntando a mesma coisa com outras pala­vras, por que não podemos saber como as duas doutrinas se en­caixam uma na outra? Por que não podemos saber a maneira co­mo Deus determina os atos livres, sem violar a liberdade deles?

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Creio que a razão por que não podemos saber como Deus deter­mina as coisas, é que não há um “como” a ser conhecido. As per­guntas que envolvem um “como” implicam em mecanismo, um “modus operandi”, ou uma força intermediária. Entretanto, se a interação entre a soberania divina e o livre-arbítrio humano é ime­diata, não há elementos intermediários.

Pela própria natureza do caso, não há elementos intermediá­rios entre Deus (causa eficiente primária) e os homens (causa efi­ciente secundária) no que concerne às ações livres. Deus é a cau­sa do livre-arbítrio, e os homens são a causa dos atos livres. Deus fez o agente, e os agentes causam as ações. Deus dá às pessoas o poder (da livre escolha), e elas o exercem sem coerção. Assim sen­do, Deus é responsável por conceder livre-arbítrio, e os homens são responsáveis pelo seu comportamento dentro dessa liberdade.

Esta perspectiva poderia ser denominada determinismo “sua­ve”, em contraste com o determinismo “duro”. Este ensina que Deus não apenas concede aos homens o poder do livre-arbítrio, mas tam­bém desempenha Ele mesmo o livre-arbítrio, mediante as pessoas. No determinismo “duro”, os agentes livres são, na verdade, apenas causas instrumentais, e não causas eficientes de suas próprias ações. Deus causou o fato da liberdade humana e, na verdade, também de­sempenha os atos da liberdade humana. Em suma, os seres huma­nos não são humanos, mas apenas bonecos, ou robôs.

Voltemos, então, à questão principal: Se não há causa inter­mediária entre a determinação de Deus e o livre-arbítrio do ho­mem, a questão do “como” se evapora. A única resposta à per­gunta: Como é que Deus fez isso é: Mediante Seu infinito poder e sabedoria. Por que (causa final) Deus fez isso é respondível (por exemplo, para Sua glória), porém, como Ele o fez só é respondí­vel pelo Seu poder e sabedoria (causa eficiente), e não por qual­quer outro meio (causa instrumental). Isto porque não existe qual­quer causa instrum ental entre a soberana vontade de Deus e a li­vre vontade humana. Aquela age sobre esta de modo direto, des­de toda a eternidade. Embora Deus aja no tempo, age não obstante desde a eternidade. Em outras palavras, Deus agiu desde a eter­nidade, embora os resultados de Suas ações ocorram no mundo em épocas diferentes. Assim como o médico decide que seu paciente deverá tomar um a pílula diariamente, durante 14 dias, Deus de­cretou simultaneamente, desde toda a eternidade, tudo quanto acontece seqüencialmente ao longo do tempo.

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Há, também, um problema bíblico com o autodeterminismo moral. Como pode a salvação ser totalmente oriunda da graça, se ela depende de nosso livre-arbítrio? A Bíblia ensina que todos os regenerados (justificados) serão salvos (Rom. 8:29). Nenhum de- les perecerá (João 10:26-30), nem mesmo serão separadosTle Ork:ír> (RõmT8:36-39). Na verdade, todos os crentes estão em Cristo (2 Cor. 5:17; Ef. 1:4), sendo parte de Seu corpo (1 Cor. 12:13). Daí, se alguém fosse separado de Cristo, isto significaria que Cristo es­taria separado de Si mesmo! Õs homens podem ser infiéis para com Deus, contudo, Deus não pode negar-se a Si mesmo (2 Tim. 2:13). A salvação não depende dos homens, mas de Deus. Portanto, não sepõde perderTsalvaç¥d^'s^üvãcão não é obtida pélãvon- tede humana (Jo lo TTOT Rõm. 9:16), portanto, não provém das obras, para que ninguém se glorie (Ef. 2:8-9).

Contudo, se a salvação está condicionada totalmente à gra­ça de Deus, e não à nossa vontade, de que maneira nossas deci­sões livres exercem qualquer efeito em nossa salvação? A respos­ta a esta pergunta encontra-se numa importante distinção entre os dois sentidos da palavra condição. Não há condições para a con­cessão da salvação, da parte de Deus; ela é inteiramente de graça. Mas, há uma condição (e apenas uma) para a recepção desta dá­diva — a verdadeira fé salvadora.

Nada há, em absoluto, no homem, que constitui base para a ação salvífica de Deus. Mas, havia algo em Deus (amor) que constitui a base para nossa salvação. Não foi por causa de qual­quer mérito, mas apenas por causa da graça, que a salvação foi estendida até nós. Nós não damos início à salvação (Rom. 3:11), tampouco podemos atingi-la. Mas, podemos e devemos recebê- la (João 1:12). A salvação é um ato incondicional de Deus, que ele­ge. Nossa fé não é condição para que Deus nos conceda a salva­ção, mas para que possamos recebê-la. Não obstante, o ato da fé (livre-arbítrio) pelo qual recebemos a salvação não é meritório. É o doador que recebe o crédito pelo dom, não quem o recebe.

Aplicação PráticaCerta vez um professor de psicologia observou, sabiamente, que uma boa teoria é uma coisa muito prática. Assim acontece com a boa teologia. As boas doutrinas dão origem a boas obras. Por conseguinte, a adequada compreensão da soberania divina servi­rá de base para uma compreensão adequada da responsabilida­

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de humana. Agora, vamos relacionar isto com a ilustração a res­peito de Alfredo.O Caso de Alfredo. Em primeiro lugar, Alfredo deve reconhecer que tudo quanto ele tem é dom de Deus. “Toda boa dádiva e to­do dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação, ou sombra de mudança” (Tiago 1:17). É como disse Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei” (Jó 1:21).

Alfredo deveria, em segundo lugar, ser agradecido por tudo quanto tem. “Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1 Tess. 5:18). Isto inclui agrade­cimentos pelo alimento diário, pelo vestuário e pela moradia (1 Tim. 6:8). Na verdade, a Bíblia fala de alimentos “que Deus criou para serem recebidos, com ações de graça, pelos fiéis e por quan­tos conhecem plenamente a verdade” (1 Tim. 4:3). As próprias ri­quezas são uma dádiva de Deus (Ecl. 5:19).

Em terceiro lugar, visto que Deus “tudo nos proporciona ri­camente para nosso aprazimento” (1 Tim. 6:17), Alfredo deve usu­fruir tudo quanto Deus lhe dá. Deus não é um “pão duro” celes­tial, nem um “desmancha prazeres” cósmico. Ele quer que goze­mos a vida. Na verdade, Ele “nenhum bem sonega aos que andam retamente” (Sal. 84:11). Eclesiastes repetidamente nos exorta a “comer, beber e fazer que a (sua) alma goze o bem do (seu) traba­lho” (2:24, compare com 3:13; 5:19; 8:15). O fato de que alguns es­tão famintos não deveria impedir aquele que não é egoísta de usu­fruir seu alimento. A dor não deveria exercer poder de veto ao prazer.

Em quarto lugar, Alfredo deve repartir o que tem com aque­les que nada têm. Diz Provérbios: “O generoso será abençoado, porque dá do seu pão ao pobre” (22:9). Paulo acrescenta isto, pa­ra os ricos: “Que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, ge­nerosos em dar e prontos a repartir (1 Tim. 6:18). A igreja primi­tiva tinha o cuidado de lembrar-se “dos pobres” (Gál. 2:10). João nos traz à memória: “Aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1 João 3:17). Na verdade, Jesus disse: “Sempre que o fizestes a um destes (os po­bres, os famintos, os despidos, os presos) meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mat. 25:40).

Alfredo deve saber que Deus soberanamente nos deu a res­

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ponsabilidade humana de ajudar aos outros. A obrigação de de­sempenhar atos de amor é determinada soberanamente. Como dis­se Paulo, aos efésios: “(Deus)... nos escolheu (elegeu) nele... pa­ra sermos santos e irrepreensíveis perante ele” (Ef. 1:4). Quanto aos crentes, Deus “os predestinou para serem conformes à ima­gem de Seu Filho” (Rom. 8:29). H á um propósito prático na pre­destinação. Deus nos escolheu para sermos vasos transportado­res, não meramente receptáculos, de Suas riquezas, tanto mate­riais como espirituais (2 Cor. 4:7). Por outro lado, ser rico não é pecado. Inúmeros grandes homens de Deus (incluindo Abraão, Jó e Salomão) foram muito ricos. Nada há de errado na posse de bens. O pecado reside em o rico ser possuído por suas possessões. Porque a “vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui” (Luc. 12:15).

Em resumo, Alfredo deveria reconhecer que um Deus sobe­rano e cheio de graça o tem abençoado com muitas riquezas ma­teriais. Ele deveria agradecer tais bênçãos, desfrutá-las e reconhe­cer sua obrigação moral de reparti-las com os necessitados. Por outro lado, os pobres deveriam permanecer contentes com aqui­lo que têm (Fil. 4:11). Não deveriam cobiçar, nem roubar os bens de seu próximo (Êx. 20:15). Deveriam trabalhar duramente, a fim de melhorar sua situação (1 Tess. 4:11,12). Mas, devem reconhecer, também, que Deus em Sua soberania graciosamente concedeu a cada um, conforme Seu querer, dons espirituais (1 Cor. 12:21,22) e materiais também (Ecl. 5:19).

Os pobres deveriam, além disso, ser gratos porque são aben­çoados de modo especial com riquezas espirituais (Luc. 6:20). Deus os vem poupando das tentações das riquezas (1 Tim. 6:9). Assim sendo, deveriam reconhecer que “grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento” (1 Tim. 6:6).

Por mandamento divino, devemos trabalhar no sentido de ali­viar as necessidades dos pobres. Mas, por descrição do próprio Cristo, “os pobres sempre os tendes convosco” (Mat. 26:11). An­tes de Cristo voltar, não terá “cada um da sua própria vide e da sua própria figueira” (Is. 36:16).

O Caso de Maria. Vontade de Deus é frase problemática, por­que, primeiramente, está sobrecarregada de ambigüidades. Em certo sentido, tudo quanto acontece, acontece pela vontade de Deus, isto é, pelo decreto soberano mediante o qual Ele governa o universo. Em outro sentido, tudo quanto é pecado é contrário à vontade de

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Deus, isto é, Seus mandamentos que regem a nossa conduta. De modo semelhante, Deus quer apenas, em certo sentido, a salva­ção dos eleitos, porque só eles foram escolhidos em Cristo, de acor­do com “o conselho da sua vontade” (Ef. 1:11). Entretanto, nou­tro sentido do termo, Deus é descrito como “não querendo que nenhum pereça” (2 Ped. 3:9).

Em suma, há uma diferença entre aquilo que Deus decreta e aquilo que Ele almeja. Ele decreta tudo, tanto o bem como o mal. Mas, Deus deseja apenas o bem. De modo que Deus almeja ape­nas o ótimo para Maria. Ele desejou que ela estudasse duramen­te (Mat. 22:36,37), que ela atingisse seu potencial total, e que ela maximizasse seus talentos para glória dEle (1 Cor. 10:31; Fil. 1:10). Entretanto, o fracasso de Maria, não atingindo estes objetivos, não apanhou Deus de surpresa. Deus conhece nossos altos e baixos. Não depende de nós, nem está esperando, com a respiração sus­pensa, vendo o que é que vamos fazer. Na verdade, Ele incluiu nos­sos fracassos em Seu programa geral de sucesso, desde a eterni­dade, “pois, até a ira humana há de louvar (a Deus)” (Sal. 76:10).

Há três diferentes aspectos da vontade de Deus, detectáveis na Bíblia: a vontade determinativa de Deus, a vontade permissiva de Deus e a vontade providencial de Deus. Todas elas formam a von­tade soberana (decretos) de Deus para o universo.

Primeiramente, temos a vontade determinativa de Deus. Deus havia prometido a terra de Canaã para Abraão e seus descenden­tes, como herança (Gên. 12). Ele lhes ordenou que morassem na terra, e a vindicassem como sua herança. De acordo com isto, or­denou Deus a Isaque: “Não desças ao Egito” (Gên. 26:2). Aqui estava a vontade determinativa de Deus. É o que Ele havia dese­jado para Seu povo. Este sentido determinativo da vontade deI )eus envolve apenas o bem. Isto porque Deus é tão santo que não pode nem mesmo olhar para o pecado com algum ar de aprova­ção (Hab. 1:13).

Apenas mediante o sentido permissivo da vontade de Deus é que Ele permite que ocorra algum mal. Abraão e seus descen­dentes deixaram de confiar em Deus, quando sob provação (fo­me), e saíram da terra prometida à procura de “pastos mais ver­des”, no Egito. Deus permitiu, mas não determinou isto. Deus só dá ordens para o bem, mas às vezes permite o mal. Ele jamais en­coraja o mal, embora lhe conceda alguma manifestação. Assim sendo, finalmente disse Deus a Jacó: “Desce agora ao Egito!’ Não

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era esta a vontade perfeita, nem o desejo permanente de Deus; Ele aprovou a ida ao Egito pela Sua vontade permissiva para aquele momento, a fim de atingir Seus objetivos últimos para as vidas da­quelas pessoas. É como Jesus disse aos fariseus: “Por causa da du­reza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres” (Mat. 19:8). Não foi por estar de acordo com a vonta­de ideal de Deus, mas por acomodação dEle à nossa vontade teimosa.

Finalmente, temos a vontade providencial de Deus. A despeito do fracasso de Israel em viver ali, e reivindicar a terra para si, o soberano propósito de Deus para Seu povo não poderia ser frus­trado. A vontade determinativa de Deus era que o povo não fosse ao Egito. Sua vontade permissiva foi permitir que fossem ao Egi­to. Contudo, no fim, a vontade providencial de Deus se cumpriu quando Ele declarou: “do Egito chamei o meu Filho” (Os. 11:1).

De maneira semelhante, a vontade determinativa para nos­sas vidas é que não pequemos. Entretanto, a vontade permissiva de Deus é a permissão para que pequemos, de tal maneira que em Sua vontade providencial Ele possa suscitar o bem até mesmo de nosso pecado. Assim dissera José a seus irmãos: “Vós, na verda­de, intentastes o mal contra mim; porém, Deus o tornou em bem” (Gên. 50:20). Entretanto, oxalá jamais pecássemos! Não devería­mos prescrever a alguém que sua cabeça fosse batida contra uma parede, porque tal pessoa se sentiria muito bem quando essa vio­lência cessasse. Contudo, deveremos permitir a dor na cadeira do dentista, para que o dente fique melhor, após o tratamento.

Podemos concluir que no sentido determinativo da vontade de Deus, Maria deveria ter sido obediente a todas as ordens das Escrituras, dirigidas a ela, inclusive aquelas concernentes ao dili­gente uso de seus talentos (Mat. 25:28), e de seu tempo (Col. 4:5) na obra de Deus. Neste sentido, ela poderia ter perdido o ótimo que Deus reservara para ela, embora o que ela conseguiu foi bom. É errado, todavia, sacrificar o ótimo no altar do bom. Ela é res­ponsável pelo seu livre-arbítrio neste assunto, porque Deus ape­nas soberanamente lhe permitiu fazer o que ela de fato fez, erran­do. Os atos dela foram autodeterminados e Deus não pode rece­ber a culpa pelas decisões erradas que ela tomou em sua vida (presumindo-se que ela devesse estudar medicina).

Por outro lado, Deus é cheio de graça e de perdão: Maria não precisava atravessar a vida toda com um sentimento de culpa e de

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inutilidade. Deus pode, literalmente, redimir sua vida mediante Sua providência graciosa, e fazer dela uma enfermeira boa e útil. De fato, assim como os ossos tornam-se mais fortes após uma fratu­ra, os crentes podem amadurecer mais depois de ter Deus permi­tido que saiam da vontade determinativa dEle. Assim, às vezes, Deus, em Sua providência, restitui “os anos que foram consumi­dos pelo gafanhoto” (Joel 2:25), enquanto o crente esteve sob Sua vontade permissiva. Entretanto, nada neste universo, nunca, nem por um segundo, sai da soberana vontade de Deus. Deus determi­nou tudo (até mesmo nossas decisões livres), e Seus propósitos úl­timos não podem ser frustrados.

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Réplica de John Feinberg

À MEDIDA QUE LEIO O ARTIG O DE N O R M A N GEISLER, vou ficando feliz pela sua forte posição quanto à soberania de Deus. De fato, verifico que estou virtualmente de pleno acordo com ele, em suas primeiras páginas. Entretanto, descubro que o artigo dele de modo geral é extremamente problemático. Há pro­blemas na maneira como ele apresenta as opções quanto a assuntos como a natureza do livre-arbítrio, e a relação existente entre o de­terminismo e a presciência, pois, parece que Geisler apresenta uma caricatura de conceitos, ao invés de apresentar seus próprios con­ceitos. Por exemplo, que indeterminista descreveria sua posição co­mo Geisler o faz, nas páginas 95,96? De maneira semelhante, sua forma de demonstrar como Deus conhece o futuro é, basicamen­te, a adoção da problemática resposta boethiana. Entretanto, há dois grandes problemas cruciais para nossa discussão, sobre os quais focalizaremos nossa atenção.

O primeiro grande problema deriva de uma afirmativa que, de início, parece bastante inofensiva, até vermos o que Geisler faz com ela. Diz Geisler que, porque Deus é simples, Seus pensamen­tos não são seqüenciais, mas simultâneos (p. 87). Mais tarde,

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Geisler aplica este conceito à relação entre presciência e predeter­minação. Assim escreve ele: “Em outras palavras, não existe prio­ridade cronológica, ou lógica, de eleição e presciência. Sendo um Ser simples, todos os atributos de Deus formam uma unidade com Sua essência indivisível” (p. 91). Esta é a resposta de Geisler pa­ra o problema da relação existente entre a preordenação de Deus e Sua presciência. Ao invés de afirmar que Deus preordena aqui­lo que Ele pré-conhece (ou sabe com antecipação) — como afir­mam muitos arminianos — ou que Deus pré-conhece porque Ele preordena, como afirmam muitos calvinistas, Geisler não esco­lhe nenhuma destas duas opções. Ele argumenta, baseado na sim­plicidade de Deus, que a presciência e a preordenação são simul­tâneas, igualmente desligadas do tempo, porque Deus é eterno. Ne­nhuma das duas é, nem temporal nem logicamente, anterior à ou­tra. Este conceito apresenta vários problemas.

O problema fundamental de Geisler deriva de sua compreen­são dos atributos de Deus na medida em que se relacionam com os atos de Deus. Dizer que Deus é simples significa que Seu Ser não é divisível, não é formado de partes. Contudo, os pensamen­tos e atos mentais de Deus, como Seus decretos, Sua presciência, e assim por diante, não são partes de Sua essência, ou de Seus atributos, como também Seus atos neste mundo, tais como o de criar e preservar o universo, não são partes de Sua essência, nem de Seus atributos. Geisler trata dos pensamentos de Deus como partes de Sua essência e /o u atributos, e visto que a essência de Deus é simples, Geisler conclui que os pensamentos de Deus não devem ser separáveis em partes seqüenciais. Este é um erro de pri­meira grandeza!

Ao avaliar os conceitos de Geisler, posso concordar que tu­do quanto Deus sabe, Ele o sabe de vez, e sempre o soube, como também concordo que Deus preordenou tudo, todas as coisas, de uma só vez. Entretanto, tais fatos são verdadeiros a respeito de Deus não em virtude de Sua simplicidade, mas por causa de Sua onisciência e vontade soberana. Contudo, afirmar que Deus pos­sui este tipo de conhecimento não significa que Ele desconhece a seqüência lógica e as relações existentes entre os itens que Ele co­nhece. Mais ainda, a afirmação de que Deus preordena todas as coisas simultaneamente não significa que não há ordem lógica na­quilo que Ele preordena. Por exemplo, Deus sempre soube que Cristo haveria de nascer e que haveria de morrer. Mas, Ele enten­

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deu também que logicamente (tanto quanto cronologicamente) um desses eventos deveria antecipar-se ao outro. Isto não significa que Deus conhecia um destes eventos antes de conhecer o outro. Sig­nifica, apenas, que ao saber de ambos simultaneamente, Ele sabe o relacionamento lógico e cronológico entre os dois eventos. Além do mais, Deus preordenou ambos os eventos simultaneamente, mas isto não significa que Ele não reconheceu a questão lógica de que ninguém pode ser preordenado para morrer, se não foi preor- denado para nascer. Apresentar vindicações como as que acabei de fazer só elimina a simplicidade de Deus, se a pessoa confundir Seu ser e Seus atributos com Seus atos (mentais).

Vamos aplicar o que foi dito acima ao problema em foco. Se a pessoa concorda que o ato de Deus de prever não precede tem- poralmente Seu ato de preordenar, tal pessoa ainda pode pergun­tar acerca da relação lógica entre os atos de Deus de previsão e de preordenação, sem eliminar nada da simplicidade de Deus. Nou­tras palavras, é legítimo e muito importante saber se Deus esco­lhe em função daquilo que Ele prevê, ou se Ele prevê porque preor­denou. Parece que Geisler rejeita a primeira opção, mas ele não responde nos termos da segunda. Na verdade, Geisler recusa-se a responder à pergunta porque, argumenta, ficará comprometido e forçado a afirmar que há uma seqüência nos pensamentos de Deus, e segundo seu julgamento, isso elimina a simplicidade de Deus. Entretanto, desde que se reconheça o erro de confundir-se os atos de Deus com Seus atributos, não deveria haver a menor hesitação na resposta à pergunta. No entanto, Geisler não lhe res­ponde, embora seja de crucial importância para a compreensão total da soberania de Deus e seu relacionamento com o livre- arbítrio humano. Conseqüentemente, o estudo de Geisler sobre a relação existente entre a presciência e o determinismo nada resol­ve, e ficamos imaginando se ele é arminiano/indeterminista ou calvinista / determinista.

O segundo grande problema diz respeito ao conceito de Geis­ler de liberdade. Ele opta pelo que denomina de autodeterminis­mo, mas sua perspectiva nada resolve no debate entre o determi­nismo e o indeterminismo. O problema básico é sua recusa a dis­cutir um assunto-chave, e isso decorre da recusa a responder a duas questões separadas. Trocando isto em miúdos, é preciso que se res­ponda a estas duas perguntas: (1) qual é a causa de um ato? (2) que é que causa o agente a agir? Todas as idéias de Geisler focalizam

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a primeira pergunta, mas a segunda permanece ignorada. Geis­ler argumenta longa e pesadamente que é o agente que causa o ato; certamente a maior parte dos deterministas, e todos os indetermi- nistas, concordariam com isto, porque a assertiva parece quase au- to-evidentemente verdadeira: Se eu ajo, sou a causa de minha ação. Entretanto, colocar toda a ênfase apenas nesse ponto não explica por que os deterministas e indeterministas, que concordam com Geisler nesse particular, discordam entre si quanto à noção de li­vre-arbítrio. A razão disso é que respondem à segunda pergunta de maneiras diferentes. O indeterminista argumenta que aquilo que causa o agente a agir não pode ser algo que decisivamente lhe fa­ça dobrar a vontade. O determinista argumenta ao contrário. Geis­ler rejeita a questão (pp. 98-100).

A despeito das vindicações de Geisler, a questão não é absur­da, mas crítica, no contexto geral da soberania de Deus e livre- arbítrio humano. Não é absurda, porque se alguém aponta aqui­lo que induziu o agente a agir da maneira como agiu, isto não sig­nifica que outra pessoa diferente, ou outra coisa, praticou a ação. A ação ainda é ação do agente! Tal ponto é crucial para nossa dis­cussão, porque sem uma resposta àquela pergunta, torna-se im­possível ver como a soberania de Deus se relaciona com o livre- arbítrio humano. Será que Deus soberanamente faz que nós, de modo determinado mas sem constrangimento, façamos aquilo que Ele preordenou? Será que Ele faz que nós constrangidamente obe­deçamos ao Seu mandar? Ou será que Ele Se recusa a exercer Seu poder a fim de certificar-Se de que escolheremos uma coisa ou ou­tra? Sem respostas para estas perguntas, não saberemos que é que determinado teólogo pensa acerca da natureza do livre-arbítrio, ou sobre a relação existente entre a soberania de Deus e essa liber­dade. Geisler deixa de lado tais questões, e enfatiza a causa do ato, indiferente àquilo que causa o agente a agir e, assim, recusa-se es­sencialmente a responder à principal questão de que trata este li­vro. Neste volume oferecem-se três respostas. Cada uma delas é possível, independentemente de qual for aceita. Mas, desde que

„cada uma delas é possível, não há necessidade de chegarmos à con­clusão de Geisler, que a resposta à pergunta: Como é que Deus po­de determinar todas as coisas e não obstante manter a liberdade humana, em última instância é um mistério.

Em suma, embora haja inúmeros itens problemáticos no ar­tigo de Geisler, a dificuldade fundamental reside na recusa a res­

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RÉPLICA DE JOHN FEINBERG 113

ponder a duas questões: (1) Deus prevê porque Ele preordena, ou Ele preordena porque prevê? (2) o agente age por causa de fato­res causais que de modo decisivo inclinam a vontade, ou age sem quaisquer fatores que decisivamente inclinem sua vontade? A re­cusa de Geisler a responder a tais perguntas deriva de outros pro­blemas que já abordei. O ponto-chave, contudo, é que sem uma resposta a estas questões torna-se impossível saber de que modo o teólogo concilia a soberania de Deus com a livre vontade hum a­na. Por isso, embora o artigo de Geisler seja interessante, é pou­co útil na resolução de questões substanciais com respeito ao as­sunto diante de nós.

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Réplica de Bruce Reichenbach

N O RM AN GEISLER D IZ QUE A H ARM ONIZAÇÃO DA SO- berania divina com o livre-arbítrio humano é um mistério. Afirma ele que, num mistério, temos duas ou mais verdades conhecidas, mas não sabemos de que maneira elas se entrosam.1 Contudo, não obstante sua lógica consistente estar além da razão humana, no infinito essas duas verdades são consistentes (para Deus).

Contudo, será que a soberania divina e o livre-arbítrio, da es- pecialíssima maneira como Geisler os entende, poderiam ser con­siderados mistério, ou seriam, na verdade, inconsistentes? Antes de responder a estas questões, verifiquemos primeiro o que é que Geis­ler diz a respeito do significado de cada um daqueles conceitos.

Embora ele jamais defina a soberania, ele a caracteriza bem, ao dizer que Deus controla tudo quanto vem a existir, e tudo quan­to acontece, dirige o curso dos eventos, e determina tudo quanto

1 Geisler não afirma que estas duas verdades parecem (ou não) inconsisten­tes, embora aparentemente isto seja exigido, para que se tenha uma aura de mis­tério.

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ocorre e, efetivamente, faz que tudo aconteça. Determina direta­mente as atividades humanas, isto é, age imediatamente sobre se­res humanos como a causa primária das ações deles (p. 101).

Geisler caracteriza o livre-arbítrio de três maneiras. Um ato livre jamais é forçado, ou coagido. É um ato causado pelo agente (é autodeterminado). Fica bem implícito que a pessoa poderia ter agido de maneira totalmente diferente.

Consideradas tais caracterizações, podemos agora perguntar se a soberania divina e a liberdade humana, como Geisler as vê, são realmente consistentes. A fim de explorarmos o conceito, apa­nhemos cada característica do livre-arbítrio e apliquemo-la a um exemplo que Geisler sugere, o de Judas traindo a Jesus. Comece­mos com a afirmativa de Geisler de que os atos livres são autode- terminados. Diz ele que o ato de Judas de trair a Cristo foi ao mes­mo tempo determinado por Deus (tudo quanto acontece é deter­minado por Deus) e um ato livre determinado por Judas, não por outrem (autodeterminado). Contudo, tudo isto é contraditório. Se o ato de traição é determinado por Judas e não por outrem, não pode ser determinado por Deus, e vice-versa.2

Além disso, se a pessoa é livre, é capaz de agir de modo dife­rente, naqueles casos em que age livremente. Se a traição de Ju­das foi um ato livre, Judas poderia ter agido de modo diferente, poderia ter feito outra coisa. Poderia ter decidido não trair a Je­sus. Contudo, desde que todos os acontecimentos foram determi­nados por Deus, de acordo com Seu plano eterno, o ato de trai­ção era necessário, e Judas não poderia ter feito coisa diferente da que ele fez, porque, segundo nos diz Geisler, Deus executa Seus planos com total certeza (p. 93). Também isto é uma contradi­ção. Se o ato era necessário, não poderia ter sido executado de ma­neira diferente de como aconteceu, e vice-versa.

Geisler replicaria que só parece contradição, porque fizemos confusão com dois pontos de vista: o de Judas e o de Deus. Do ponto de vista de Judas, a traição não precisava ocorrer. Judas po­deria não ter traído o Senhor. Do ponto de vista de Deus, a trai­ção era necessária. Tinha sido determinada por Deus, e nenhum

2 É lógico que as outras duas opções são, igualmente, inaceitáveis para ele. Seo ato é parcialmente determinado por Deus e parcialmente por Judas, o ato não é só de Judas, não sendo ele o único responsável. A responsabilidade é com­partilhada com Deus. Se a traição foi determinada por Deus, Judas não era livre.

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outro fato poderia ter acontecido em seu lugar. Será que isto fun­ciona? Não, porque se Judas pudesse ter decidido não trair Jesus, o fato de que sua decisão coincidiu com o plano atemporal de Deus foi um acontecimento casual para Deus. Tal perspectiva deixa de corroborar o conceito de Geisler sobre a soberania divina, segundo a qual Deus é visto como supremo controlador de tudo, determi­nando com absoluta certeza todas as coisas. Por outro lado, se o ato tinha de ocorrer, o fato de Judas ter desejado praticá-lo foi uma circunstância favorável. Para que as coisas corressem diferente­mente, presume-se que Deus deveria ter agido de alguma forma para concretizar a traição, visto fazer parte de Seu plano eterno. Aceita a posição de Geisler, Judas mantém sua liberdade para fa­zer o que bem entende, porém, apenas se suas decisões estiverem de acordo com o plano de Deus, o que não é liberdade, de modo nenhum. Ele não poderia ter agido de maneira não consistente com o plano determinado de Deus.

Voltemo-nos, agora, para a característica do livre-arbítrio que se relaciona à coerção. Ergue-se aqui, também, uma contradição, embora não tão óbvia. Por um lado, não há evidências de que Ju­das foi coagido a trair. Foi algo que ele escolheu livremente. En­tretanto, que é que Geisler tem em mente, quando afirma que Deus determinou que Judas traísse Jesus? Infelizmente, Geisler não de­fine o que ele chama de determinar. Entretanto, em seu artigo, ele iguala a autodeterminação com a autocausação (pp. 98-100). Se assim é, determinar significa causar, e se Deus determinou que Ju­das traísse a Jesus, Ele causou que Judas traísse a Jesus e, outra vez temos uma contradição. Judas não foi coagido a agir, entre­tanto, Deus causou que Judas agisse da forma como agiu.

Mais uma vez Geisler poderia argumentar que entendemos mal sua posição. Ele poderia alegar que nossa crítica confunde-o com aquilo que ele chama de determinista duro. Posteriormente, em seu artigo, ele sugere que, de acordo com seu determinismo sua­ve, Deus determina porque Ele cria os agentes, e estes, por si mes­mos, de modo inteiramente livre, decidem e causam as ações (pp. 100, 101).

Contudo, esta caracterização não se enquadra em seu concei­to de soberania divina. Se tudo quanto Deus faz é criar pessoas livres, não faz sentido afirmar que Deus determina, controla e di­rige todas as ações. Se os agentes são livres, embora criados e sus­tentados por Deus, eles são responsáveis por seus atos, fato que

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poderia contrariar os planos e propósitos de Deus. Definitivamen­te não: Se Deus é quem determina, controla e dirige cada ação, ne­nhuma ação, então, poderá contrariar a determinação de Deus, e, por esta razão, as ações não são o resultado do livre-arbítrio do agente.

Geisler sugere que, embora nossas ações sejam determinadas por Deus, elas são livres porque nós desejamos ou quisemos pra­ticá-las. Judas de fato desejou trair a Cristo. Contudo, isto não sal­vará sua posição, visto que querer ou desejar algo em si mesmo é um ato, um evento. Já que todos os eventos são controlados por Deus, e por Ele determinados, o fato de Judas ter desejado dinhei­ro é, em si mesmo, um fato determinado ou controlado por Deus. Assim sendo, Judas não poderia ter querido ou desejado outra coi­sa senão a traição de Jesus.

Em suma, se Deus meramente determina que existam pessoas livres, então tais pessoas podem autodeterminar suas ações e são, portanto, livres. Deus não pode controlar soberanamente as ações das pessoas, no sentido que Ele pode garantir com certeza abso­luta tudo quanto tais pessoas farão. Se, por outro lado, Deus soberanamente determina e controla cada ação, as pessoas não po­dem agir de maneira diferente daquela como agem e não são, portanto, livres. A posição de Geisler não constitui um verdadei­ro e genuíno mistério; ao invés, envolve duas contradições.

Visto que a posição dele é autocontraditória, precisamos manter suspeição sobre os argumentos que usa. Dois desses argu­mentos merecem escrutínio. Em primeiro lugar, alega Geisler que as ações de uma pessoa, uma vez praticadas, tornaram-se deter­minadas, embora à época em que a pessoa as praticou, fossem li­vres. Daí tira Geisler a conclusão de que “não existe contradição entre um evento resultar de uma escolha totalmente livre e, ao mes­mo tempo, ser totalmente determinado” (pp. 94,95). Contudo, tal conclusão não é lógica, porque a ação não foi determinada à época em que foi praticada. Tornou-se determinada apenas após ter sido praticada. Tornou-se determinada no sentido que não pode alterar-se desde que foi praticada.3 Portanto, o apelo de Geisler ao fato de que as ações passadas já não podem mais ser alteradas é irrelevante para demonstrar que um ato pode ser, ao mesmo tem­po, determinado e livre no momento em que fo i praticado.

3 Observe-se que a palavra determinado, aqui, tem um sentido diferente do uso que dela se fez anteriormente. Ela significa, aqui, imutável, ou inalterável.

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No segundo argumento (p. 91), Geisler alega que, em vista de Deus ser simples, todas as características de Deus formam uma unidade com Sua essência. Assim, as características de (pré) co­nhecimento e de (pré) determinação são uma unidade em Deus.4 Em outras palavras, são coextensivas. Aquilo que Deus determi­na e aquilo que Ele conhece são coisas idênticas. Mas, não se po­de concluir, a partir da simplicidade de Deus, que ambas as ca­racterísticas têm o mesmo conteúdo. Por exemplo, a vontade de Deus é também um atributo essencial de Deus. Mas, se Geisler es­tiver correto, aquilo que Deus quer seria coextensivo daquilo que Ele conhece e determina. Então, visto que Deus sabe tudo quan­to fazemos, Ele quereria que praticássemos o mal, o que contra­diz frontalmente a bondade de Deus, como também a distinção que Geisler posteriormente faz entre o decreto divino e o desejo divino.

Em suma, a posição de Geisler é contraditória, e os argumen­tos que ele usa para sustentá-la, defeituosos.

Finalmente, a posição de Geisler levaria Alfredo a preocupar- se ainda mais, com outros pensamentos. Em primeiro lugar, se aju­dar aos outros é uma obrigação soberana, Alfredo poderá ficar imaginando por que é que Deus mesmo não se torna mais ativo na tarefa de aliviar a sorte dos pobres. Afinal, segundo Geisler, Deus determina e controla cada acontecimento. Se as duas coisas, as riquezas de Alfredo e a pobreza das pessoas que estão morren­do de fome, vieram de Deus, é lógico esperar-se que o próprio Deus consertasse a situação. Se Deus almeja o bem para todos, e quer

4 Geisler cunhou a frase determina conhecedoramente e sabe determinadamen­te, para explicar sua posição. Embora seja uma frase intrigante, que é que ela significa? Deus determina conhecedoramente é frase ambígua. Parece signi­ficar que Deus determina as coisas com base em Seu conhecimento, mas Seu conhecimento de quê? Em certo ponto, diz Geisler que é na base daquilo que Deus vê as pessoas fazendo (pp. 94,95). Entretanto, noutra parte Geisler re­jeita o conhecimento como base para a determinação (pp. 91,92,100). Então, que é que significa determinar conhecedoramente, se o conhecimento não é a ba­se? E que quer dizer conhecer determinadamente? Não pode significar o mesmo que na primeira frase, porque na primeira, o verbo determinar refere-se aos atos de Deus, enquanto aqui refere-se ao conhecimento de Deus. Será que sig­nifica que o conhecimento de Deus está definitivamente estabelecido mediante aquilo que Ele quer? Então, o conhecimento dEle é daquilo que Ele quer, ou daquilo que Ele decide, sendo, pois, baseado de modo subjetivo, e não objeti­vo. Será que quer dizer que Deus conhece definitivamente e com certeza? En­tão, temos aqui uma tautologia, porque quanto Deus sabe, Ele sabe com cer­teza.

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que todos se salvem, e se Deus efetivamente atinge Seus objetivos, Alfredo poderia começar a duvidar da existência de Deus, ou da natureza de Deus, ou mais provavelmente, duvidaria da interpre­tação particular de Geisler quanto à soberania de Deus e o livre- arbítrio dos homens.

Geisler tenta evitar esta conclusão infeliz estabelecendo uma distinção entre o decreto de Deus e o desejo de Deus. O primeiro diz respeito à soberania de Deus. Ele decreta tudo. O último diz respeito à bondade de Deus. Ele só almeja o bem. Mas, será que esta distinção funciona? Vejamos: bem no início do artigo foi-nos dito que Deus faz aquilo que Lhe agrada, e que nenhum plano dEle é frustrado. Se uma pessoa faz tudo quanto Lhe agrada, ela faz o que deseja fazer. E se Deus só deseja o bem, seria lógico con­cluir que daí só resultaria o bem. Então, de onde procede o mal?

Em segundo lugar, será que esta distinção faz sentido? Fazer um decreto é determinar que algo deverá ocorrer de certa manei­ra. Visto que o decreto de Deus faz parte de Sua soberania, cada acontecimento deveria ocorrer e de fato ocorrerá conforme foi de­cretado. Mas, que é que um Deus de bondade haveria de decretar para acontecer? Certamente o que Ele decreta deve derivar tanto de Seus desejos (porque de outra forma Ele agiria irracionalmente) como de Seu caráter moral (de outra forma Ele não seria bom). É impossível que Deus decrete algo que Ele não deseje, e que seja inconsistente com Sua bondade. Porém, se Deus é bom, e só al­meja o que é bom, Ele só poderá decretar o que é bom, e não o bem e o mal. Se assim é, de onde então vem o mal, e o pecado? Como pode Maria perder o que de melhor Deus determinou pa­ra ela?

Geisler tenta evitar este problema fazendo uma distinção entre diferentes tipos de vontades de Deus: determinativa, permissiva e providencial. Contudo, a primeira não faz sentido, a menos que as pessoas sejam livres, e é exatamente isto que verificamos ser im­possível no conceito de Geisler. Quanto à segunda, de que maneira um Deus que é soberano, segundo o conceito de Geisler, poderia permitir o pecado? Se Deus determina e controla todas as coisas, e Seus propósitos não podem ser frustrados, Deus não permitiria, na verdade Ele não pode permitir, uma coisa assim. Isto nos leva ao terceiro tipo de vontade de Deus — e também ao determinis­mo duro que Geisler tentou evitar.

Alfredo teria sido justificado se duvidasse desta interpreta­

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ção da soberania divina, um conceito que atribui a Deus suas ri­quezas, e a esse mesmo Deus, a pobreza e a fome dos necessita­dos; simultaneamente, segundo esse conceito, Alfredo, deverá es­forçar-se para aliviar a fome dos pobres com seus bens. Maria nem acreditaria, quando lhe dissessem! Como pode um Deus, que lhe planejou o bem, determinar que ela perca o melhor que Ele mes­mo planejou para ela? Alguma coisa não funciona bem: Não é a soberania de Deus, nem o livre-arbítrio. Acho que é a própria aná­lise de Geisler!

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Réplica de Clark Pinnock

A BOA NOVA É QUE GEISLER , COMO REICHENBACH E eu, defende um conceito forte da liberdade humana, e um conceito suave da soberania divina. As pessoas escolhem livremente tudo quanto fazem, até mesmo a importantíssima decisão de aceitar ou não a salvação. Deus nos criou com livre-arbítrio, e permite que o usemos. Geisler é arminiano.

A notícia ruim é que Geisler tenta combinar este conceito com a metafísica tomista, pondo o livre-arbítrio em sério perigo. Eu e Reichenbach procedemos a algumas revisões no teísmo que se deriva de Agostinho, a fim de preservar o livre-arbítrio humano; Geisler deixou de fazer isto, pondo nossa liberdade sob risco. O Deus de Geisler elimina o livre-arbítrio da mesma forma como o faz o Deus de Edwards, com ligeira diferença.

Que diferença é essa? Geisler, seguindo seu mentor Tomás de Aquino, associa idéias bíblicas e idéias gregas, numa síntese que tende a eliminar a contingência genuína. Pode-se tentar descobrir o livre-arbítrio em tal contexto, porém, a realidade desse livre-ar­bítrio se desvanece à medida que se percebem as implicações do teísmo tomista.

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Primeiramente, segundo a teologia natural tomista, Deus pre­cisa ser a base totalmente imutável do mundo contingente e cheio de mudanças. Embora isto possa servir como boa explicação pa­ra a existência do mundo, cria um problema sério quanto ao rela­cionamento de Deus com a história. Se Deus é imutável, isto é, se Ele de modo nenhum pode mudar, de que maneira pode intera­gir com pessoas livres, a ponto de ser afetado por elas, como o afir­ma a Bíblia? Como pode Ele contemplar um cenário histórico cambiante, sem correr o risco de aprender algo de novo? Ele po­de fazer isso tão-somente se os acontecimentos não forem genui­namente contingentes e, assim, não puderem produzir novo co­nhecimento. O teísmo de Geisler está em guerra com sua doutri­na acerca do livre-arbítrio humano.

Para ter livre-arbítrio, a pessoa precisa ter alternativas genuí­nas. Um indivíduo não pode ser culpado de roubo se ele não ti­nha outra escolha. Entretanto, de acordo com o teísmo de Geis­ler, a história inteira, até às mínimas minúcias, está toda fixada e determinada na mente de Deus, não podendo ser mudada em ab­solutamente nada, nem por algo que eu ou você venhamos a fa­zer. A realidade temporal está solidificada, é imutável. Se houvesse alguma novidade genuína nessa realidade, como resultado de ações realmente livres, a imutabilidade de Deus estaria arrasada. Por­tanto, não deve haver novidade e, assim, não deve haver livre- arbítrio. Geisler, à semelhança de Aquino, quer manter o bolo in­tacto e comê-lo, ao mesmo tempo. Isto não pode ser. Se Deus é imutável em todos os aspectos de Seu Ser, e sabe a história, não pode existir verdadeira liberdade. Se há contingência real e Deus a conhece, Deus não pode ser imutável em todos os aspectos. A filosofia de Geisler se contradiz.

Em segundo lugar, Geisler tem esperança de que a difícil ca­tegoria da inexistência do tempo venha salvá-lo de seu dilema. Tal­vez, se dissermos que Deus independe do tempo, possamos manter tanto a soberania como o livre-arbítrio, a imutabilidade e a mu­dança. Oh! Nada ganharemos mediante este passe! Trazer o conceito de Platão sobre o tempo para os domínios da teologia apenas piora as coisas. Por um lado, de que modo um Deus independente do tempo deverá agir da maneira como o Deus bíblico age? Um ser abstraído do tempo não pode deliberar, nem antecipar, nem lembrar-se. Não faz nada, não responde a nada. Não pode haver antes, nem depois. Em suma, não pode haver o Agente di­

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vino a Quem amamos e adoramos. Pior ainda para a proposta de Geisler é o fato de que a abstração do tempo destrói as distinções temporais e elimina a novidade genuína resultante do livre-arbítrio. É um mistério para mim que alguém possa supor que a abstração do tempo o ajudaria a defender o livre-arbítrio humano. Seria mais fácil usar a abstração do tempo para condenar o livre-arbítrio. As decisões futuras são fixas, tanto quanto as decisões do passado, porque todas elas existem num presente, independente do tempo, em algum lugar. É melhor esquecer as alternativas genuínas exi­gidas pelo livre-arbítrio. A solução de Geisler é um a pseudo-so- lução.

Em terceiro lugar, a despeito de sua tentativa de resolver o problema mediante uma pseudo-explanação, a perspectiva de Geisler quanto à onisciência divina elimina seu próprio conceito de livre-arbítrio. Se Deus conhece a verdade a respeito do univer­so de modo absoluto, até a mínima minúcia, incluindo todas as decisões que você e eu haveremos de tomar no futuro, não pode­remos falar de um livre-arbítrio verdadeiro. O futuro deve ser in­teiramente determinado, e nossas decisões já fixadas, e certas. Adeus livre-arbítrio, de nossa parte! Se Deus conhece o futuro até as minúcias, aquilo que vai acontecer está fixo e é totalmente imu­tável. Obviamente, esta perspectiva tem implicações sobre a teo- dicéia também — ela perturba a defesa da assim chamada liber­dade de ação, de que dependem Agostinho e Tomás de Aquino. Adão não poderia ter agido de outra forma, diferentemente de co­mo agiu, se aceitarmos a onisciência nesse sentido forte. A que­da em pecado era fato certo antes de Adão ter nascido.

Felizmente, conforme argumentei noutra parte, neste livro, a onisciência de Deus, ou completo conhecimento de todas as con­tingências futuras, não faz sentido nem é exigida pela Bíblia. Deus sabe todas as coisas que podem ser conhecidas, tanto quanto po­de fazer tudo que pode ser feito. Mas, Ele não sabe aquilo que não é conhecível, e não pode fazer aquilo que não é factível. As futu­ras decisões a serem tomadas livremente não são conhecíveis por nenhum ser, pela simples razão que nada há ainda para ser conhe­cido. As decisões futuras são do futuro — não existem, em nenhum sentido, até serem tomadas e realizadas. Portanto, o fato de Deus não conhecê-las não implica em deficiência na onisciência de Deus. Ele sabe tudo que é cognoscível. Fiz um estudo do concei­to bíblico do conhecimento de Deus em meu artigo, e em minha

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réplica a Reichenbach. A Bíblia apresenta-nos um Deus que en­cara o futuro como sendo uma possibilidade aberta. Um pouco do futuro é determinado pelo que já aconteceu, mas, a maior parte dele está aberta para a ação de Deus, e para o livre-arbítrio huma­no. Isto significa que podemos ser coparticipantes na determina­ção de tudo quanto vier a ocorrer.

Se Geisler quiser afirmar a perspectiva do livre-arbítrio que ele defende, precisará de um teísmo mais escriturístico e dinâmi­co. Sei que ele quer identificar o conceito tomista com o conceito ortodoxo, e colocar outras pessoas, como eu mesmo, que discor­dam dele, no limite extremo (ou mesmo fora dos limites) da ver­dadeira fé. Contudo, não podemos aceitar tal dogmatismo. O fa­to é que o teísmo de Geisler apresenta defeitos bíblicos e filosófi­cos. O modelo grego da divindade imutável adotado por ele não concorda com o personalismo bíblico. O Deus da Bíblia é um Deus de amor que interage com Suas criaturas, numa situação cambian- te. A experiência que Ele tem do mundo é aberta, jamais fecha­da. Ele vai aprendendo sobre nossas decisões à medida que vão acontecendo, não antes de acontecerem. O caráter de Deus per­manece o mesmo, mas Sua experiência do mundo está aberta; es­tá envolvido no contínuo fluxo de eventos. Filosoficamente falan­do, é impossível manter uma divindade estática comandando um universo dinâmico. Quando se tenta unir a metafísica grega à his­tória da salvação hebraica, vê-se que “não grudam”.

O conselho de Geisler para Alfredo e Maria é perfeitamente idôneo, porque Geisler não introduz nele o problema que seu teís­mo cria, quanto ao livre-arbítrio das criaturas humanas. Ele acre­dita na liberdade das pessoas, e aconselha-as nessa base. Infeliz­mente para tais pessoas, a base teísta do aconselhamento de Geisler está inçada de dificuldades, logo perceptíveis quando os aconse- lhandos refletem nesse teísmo. Todas as coisas acontecem exata­mente da maneira como necessariamente devem acontecer, de mo­do que não há por que alimentar tais ansiedades.

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IIIDeus Limita Seu Poder

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Deus Limita Seu PoderBruce Reichenbach

S QUEBRA-CABEÇAS SÃO M AGNÉTICOS E ENIG-máticos ao mesmo tempo. Ficamos excitados ao contem­plar todas aquelas peças de variados formatos, espalha­

das por sobre a mesa. Não se pode olhar aquele acervo de peças atiradas ao acaso, sem sentir uma compulsão para juntar algumas delas em suas conexões próprias. E assim, acabamos “fisgados”, sentindo a obrigação de justapor “só mais uma pecinha”.

Os quebra-cabeças também apresentam enigmas. Quando compramos um deles, não consideramos meramente a beleza, ou arte, do desenho da caixa-embalagem, mas também o desafio que o brinquedo representa. Selecionamos quebra-cabeças com grande número de peças, grandes áreas de colorações semelhantes, ou de desenhos repetitivos. O quebra-cabeça apresenta um problema que cativa, desafia e, às vezes, frustra as pessoas. É óbvio que todas as peças devem encaixar-se com perfeição; o objetivo do jogo é conseguir encaixá-las.

O problema discutido neste livro é semelhante a um quebra- cabeça. É magnético e ao mesmo tempo enigmático. Teólogos, fi­lósofos e crentes em geral têm sido atraídos constantemente para o problema do relacionamento entre a soberania de Deus e o livre- arbítrio humano. Alguns tocaram de leve no problema; outros tra­

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taram dele em profundidade, indo às minúcias. Tem sido objeto de amarga disputa teológica, como por exemplo, entre Agostinho e os pelagianos, entre calvinistas e arminianos. Cada erudito de- mora-se quanto pode sobre o quebra-cabeça, na esperança de en­caixar “mais aquela pecinha” no conjunto. É possível que o lei­tor esteja nessa posição, afirmando que encostará este livro após ter dado atenção a só “mais uma perspectiva” do assunto.

O problema da soberania divina e do livre-arbítrio humano também é enigmático. Até parece que não se trata de mero quebra- cabeça, composto de várias peças diferentes, mas desconfia-se que tais peças não se encaixam bem entre si.

Nas páginas seguintes, desejo verificar se podemos construir um quadro completo, e coerente, juntando todas as peças. Estas chegaram até nós numa sacola, sem pelo menos uma foto do pro­duto acabado. Só o Criador do quebra-cabeça conhece a solução do enigma. Assim, limitados às peças soltas, desconjuntadas, ini­ciamos nossa tentativa de construir um todo unificado. Para al­guns, nossa solução parecerá um tanto torcida, como se houvés­semos deixado de lado algumas peças, ou forçado outras a encai­xar-se a muque. Outros dirão que fizemos um bom começo. Ca­da um decidirá por si mesmo.

Quais são as peças do quebra-cabeça? Penso que são seis: o livre-arbítrio humano, a soberania de Deus, a onipotência de Deus, a onisciência de Deus, o relacionamento de Deus com o tempo, o envolvimento de Deus nas atividades dos homens (providência). Nas páginas que se seguem, desejo virar todas as peças mostran­do o anverso para cima, examinar detidamente cada uma delas, para verificar o que significam, pôr em jogo a genuinidade de cada uma delas do ponto de vista cristão, e apresentar minha sugestão sobre a maneira como tais peças se enquadram melhor num con­junto.

O Livre-ArbítrioA primeira peça do quebra-cabeça diz respeito ao livre-arbítrio. Dizer que uma pessoa é livre é a mesma coisa que afirmar que, em face de determinadas circunstâncias, tal pessoa poderia ter agido (o verbo indica passado, de propósito) de maneira diferente da­quela como agiu. Ela não teria sido compelida a agir assim por causas internas próprias (estrutura genética ou compulsões irre­sistíveis), nem externas (outras pessoas, Deus). Embora estejam

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presentes certas condições causais, as quais na verdade são neces­sárias a fim de que as pessoas tomem decisões ou ajam, se tais pes­soas são livres, essas condições causais não são suficientes para determinar-lhes as decisões e atos. O indivíduo é a condição sufi­ciente para o curso de ação escolhido.

Vamos ilustrar este ponto. Suponhamos que haja uma fatia de bolo de nozes coberto com chocolate, à minha frente. Se sou livre, posso decidir entre comer e não comer o bolo, dadas as cir­cunstâncias causais do momento. É natural que certas condições precisam estar presentes para que haja a possibilidade de eu vir a comer o bolo: o bolo tem de ser de nozes, deve estar aqui, deve ser apetitoso, devo ter uma boca, e assim por diante. Contudo, nos casos em que eu sou livre, embora o bolo de nozes esteja presen­te, e embora eu goste demais desse bolo, não é sua mera presen­ça, nem minha especial predileção por nozes que causarão minha decisão de comê-lo. Por outro lado, se houvesse algo em minha constituição genética que me tornasse compulsória a ingestão de bolo de nozes, uma compulsão tal que a mera presença de uma fatia desse bolo me levasse a devorá-lo, não importando qual fosse minha deliberação, nesse caso, então, eu não seria livre. De ma­neira semelhante, se houvesse alguém empurrando o bolo pela mi­nha garganta dentro, ou de outra maneira qualquer, obrigando- me, ou coagindo-me a comer o bolo, eu não seria livre.

Não estou descrevendo, nem advogando uma liberdade radi­cal, em que nossas escolhas são feitas de modo completamente in­dependente de condições causais, ou quando nenhuma restrição é impingida contra nós. Liberdade não significa ausência de in­fluências externas ou internas. É preciso que o bolo esteja presente para que eu possa comê-lo. Ao invés, ser livre significa que as in­fluências causais não determinam minha escolha ou ação. A li­berdade é um conceito relativo, segundo nossa experiência: Há vá­rios graus de liberdade. Contudo, quando somos livres, podemos fazer algo diferente daquilo que realmente fazemos, mesmo que seja extremamente difícil fazer essa mudança (como para mim é difícil resistir aos bolos de nozes).

Em segundo lugar, esta perspectiva de livre-arbítrio não sig­nifica que nossas escolhas são arbitrárias, nem que os atos que exe­cutamos são o produto do acaso. Freqüentemente há razões que podem ser apresentadas para explicar nossos atos, as quais variam quanto à lógica e ao apelo de que se revestem, mas, sempre são ra­

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zões. Podem incluir os objetivos almejados. Por exemplo, a com­pra de um pão seria uma boa razão para eu ir à padaria. As ra­zões poderiam incluir os gostos e aversões da pessoa. Por exem­plo, eu compro uma taça de sorvete de creme russo, porque gosto de creme russo. O fato de eu gostar de determinado tipo de sor­vete não foi a causa de eu tê-lo comprado, embora fosse um fator que influenciou minha decisão não apenas de comprar sorvete, mas aquele sabor particular, também. As pessoas livres podem aceitar razões lógicas e racionalmente persuasivas, ou podem re­jeitar as razões mais óbvias, para aceitar outras. Seja qual for o caso, a ação ou decisão pode ser explicada. Não é arbitrária pela simples razão de ser tomada livremente.

Há dois tipos de evidências que sustentam o livre-arbítrio hu­mano. Por um lado há a evidência universal, introspectiva. Sen­timos que podemos tomar decisões. Eu poderia ter escolhido ir ao clube, hoje, ao invés de trabalhar neste artigo; poderia ter pedido sopa de tomate, ao invés de macarrão, na lanchonete. Entretan­to, uma tomada de decisão só faz sentido se pudermos, significa­tivamente, escolher entre duas ou mais opções, se pudermos agir de maneiras diferentes.

O outro tipo de evidência é mais filosófico. As pessoas são essencialmente capazes de desempenhar atos que são certos ou er­rados (são chamados atos moralmente significativos), e tais pes­soas são responsáveis moralmente por seus atos. Contudo, para que as pessoas possam ser responsabilizadas moralmente por suas ações, precisam ser capazes de agir livremente, tomando decisões diferentes. Para que determinada pessoa seja responsabilizada por um roubo, é preciso que tal pessoa tenha tido a possibilidade de não roubar, sob aquelas circunstâncias. Generalizando: se ser li­vre significa que poderíamos ter agido de maneira diferente da­quela como agimos, as pessoas precisam ser livres, então, a fim de poderem agir moralmente. É diferente o caso da pessoa que teve de agir coagida. Nenhuma pessoa é livre se um ato desempenha­do por outra pessoa — humana ou divina — empurra-a para pen­sar, desejar ou agir de determinada maneira.

Verifica-se esta abordagem do comportamento moral em ou­tra esfera. A lei faz distinção entre assassinar uma pessoa (o as­sassino poderia ter agido de maneira diferente) e matar uma pes­soa (quando fatores relevantes, críticos, estavam além do contro­le da pessoa que mata, como quando um motorista não pode evi­

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tar atropelar uma criança que surge correndo à sua frente, sain­do dentre carros estacionados). H á também o caso da alegação de insanidade mental, para desculpar pessoas que cometem assas­sinato. O que se discute não é se a pessoa cometeu ou não o ato. Discute-se se a pessoa o praticou livremente, ou se seu estado psi­cológico era de tal ordem que não poderia ter feito outra coisa se­não matar.

As Escrituras não discutem o livre-arbítrio em si mesmo (em­bora discutam-no em relação a outros aspectos de nossa vida, co­mo por exemplo, a lei e o pecado). Contudo, elas estão cheias de exemplos de decisões bem estudadas que pressupõem o livre- arbítrio. Na opção de Adão e Eva para obedecer ou não (Gên. 3); na apresentação que Moisés fez de opção semelhante para Israel (por exemplo, Êx. 32 e 33); no famoso discurso final de Josué, concernente ao serviço (Jos. 24); na apresentação que Jesus fez do caminho largo e do caminho estreito (Mat. 7:13,14), há apelos para uma decisão bem ponderada. Além disso, como crentes, nós es­tamos sob certas obrigações morais, sendo a maior delas amar a Deus acima de tudo, e ao nosso próximo como a nós mesmos. En­tretanto, as ordens no sentido de agirmos adequadamente, e as san­ções impostas à conduta inadequada, não fazem o mínimo senti­do se as pessoas não têm livre-arbítrio. Deus coloca Suas deter­minações diante de nós; Ele nos criou livres, a fim de aceitá-las ou rejeitá-las.

Soberania de DeusA segunda peça a ser montada em nosso quebra-cabeça denomina- se soberania divina. Soberania traz à memória o relacionamento político governamental. Implica em que há, pelo menos, dois ti­pos de indivíduos: governo e governados, entre os quais paira um relacionamento regido por leis. O governo, ou soberano, tem au­toridade e poderes. A autoridade é legislativa ou executiva. Em seu papel legislativo, o soberano cria leis mediante as quais os gover­nados se mantêm em ordem. O soberano pode criar leis básicas (por exemplo, redigir a constituição), ou pode emitir leis subse­qüentes que apóiam determinadas leis anteriores (as quais pode­riam ser denominadas leis secundárias, ou reguladoras). Em sua função executiva, o soberano faz cumprir tais leis. O soberano tam­bém possui poderes, limitados ou ilimitados. O relacionamento do soberano com as leis fundamentais, e a fonte da autoridade des­

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se soberano ajudam a determinar que tipo de poderes ele detém, quais são seus limites, e até que ponto podem ser exercidos. Se houver um corpo orgânico de leis, os poderes do soberano são determina­dos e limitados por estas leis. Se os poderes do soberano deri­vam do voto dos governados, tais poderes serão, então, limitados pelos governados, cuja delegação de poderes poderá ser retirada sob certas circunstâncias. Historicamente, impostos e recrutamen­tos militares não autorizados são exemplos de tais circunstân­cias.1

Ser soberano não significa que tudo quanto acontece está de acordo com a vontade do soberano, nem que este pode fazer acon­tecer qualquer coisa que deseje. A habilidade do soberano na de­terminação dos fatos depende, em parte, da liberdade concedida aos governados. Se as pessoas submissas ao soberano tiverem li­berdade, este poderá fazer que aconteçam algumas coisas. Por exemplo, o soberano não pode obrigar seus súditos a reconhece­rem livremente sua soberania. O soberano pode compelir seus sú­ditos a inclinar-se em sua presença, porém, não pode compeli-los a inclinar-se livremente. Quanto mais liberdade o soberano con­ceder a seus súditos, menos poderá controlar o comportamento deles, sem retirar-lhes a liberdade concedida. Ao conceder liber­dade significativa a seus súditos, o soberano faz que seja possível que sua autoridade e vontade enfrentem resistência. Se o sobera­no ordena a seus súditos que façam algo, sendo eles inteiramente livres, poderão recusar-se a obedecer, embora, ao mesmo tempo, devam arcar com as conseqüências de sua desobediência. O sobe­rano poderá exigir que seus súditos ajam como ele quer, mas ao custo elevado de outros aspectos de sua soberania. Por exemplo, se o soberano procurar eliminar certos males que resultaram di­retamente da concessão da liberdade de expressão (por exemplo, escrever e distribuir material pornográfico), ele poderia simulta­neamente limitar de algum modo a disseminação de pensamen­tos e idéias.

Os crentes ortodoxos crêem que Deus é soberano; Ele exerce autoridade e poder sobre Sua criação. Encontramos afirmações disto tanto no Velho Testamento (1 Crôn. 29:11; Sal. 115:3) como

1 Soberania também tem conotações de excelência, de glória e majestade, que não são, contudo, parte da definição. Um soberano poderá ser supremamen­te cruel, mau, ou viver em pobreza e imundícia.

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no Novo (a parábola do dono de casa rico, de Mat. 20:1-6, e a ana­logia do oleiro, em Rom. 9:19-24). O alicerce da posição de Deus não está num contrato social, mas no fato de ser Ele o criador e mantenedor do universo. Deus fez todas as coisas e continua a sus­tentar o universo “pela palavra do Seu poder” (Heb. 1:3; veja-se, também, Neem. 9:6; Sal. 104:29; Col. 1:17). Uma noção elevada da soberania divina fundamenta-se num tipo de contrato social. Deus determinou que haveria de celebrar um pacto com certo po­vo. Todas as nações da terra haveriam de ser abençoadas através daquele povo. Todas as leis desse estado teocrático eram de ori­gem divina. Assim, a soberania divina era exercida mais diretamen­te sobre aqueles que se colocavam sob aquele pacto. Quando os israelitas quiseram um rei mortal reinando sobre eles, de tal ma­neira que passariam a ser como as nações ao seu redor, Deus ex­primiu Sua insatisfação, porque só Ele deveria ser rei em Israel (1 Sam. 8:7-9). A igreja, como o novo Israel, permanece num rela­cionamento semelhante quanto à soberania especial de Deus, sob o novo pacto (Gál. 6:15,16; Heb. 7:22).

É preciso máxima clareza para distinguir um soberano de um romancista. Este cria seus próprios personagens, o enredo, a am- bientação e o desenrolar da história. Todos os participantes da no­vela fazem exatamente aquilo que o autor determinou. Todos eles possuem traços predeterminados, não tendo existência à parte: são o produto do autor. O enredo encaminha-se inexoravelmente para o fim determinado pelo autor. Ocorre apenas aquilo que ele quis que acontecesse, com precisão; não pode haver variação.

Deus, em Sua função de soberano, freqüentemente tem sido confundido com um autor de novelas. Tem-se afirmado que Deus tem a habilidade privativa de determinar as pessoas que serão cria­das, de que modo o serão, o que farão, o que falarão, qual será o enredo em detalhes, de que maneira os fatos acontecerão, e não de modo geral, mas em particular, para cada indivíduo.

Entretanto, tal perspectiva da soberania divina dificilmente poderia considerar-se adequada. Sobre quem é Deus soberano? Se­gundo tal perspectiva, Ele não é soberano sobre criaturas que po­dem livremente reportar-se a Ele. Na verdade, neste cenário não existe liberdade nenhuma. Como num romance fictício, os parti­cipantes, na melhor das hipóteses, exercem apenas um livre- arbítrio aparente ou ilusório. Pensam que são livres, e que suas es­colhas realmente são suas. Na verdade, Deus já predeterminou que

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os personagens não poderão escolher senão de acordo com um pa­drão. Conseqüentemente, a criação transforma-se numa novela muito bem coordenada, mas bastante enganadora, visto dar a ilu­são de livre-arbítrio, ao invés de ser a história da soberania divi­na sobre criaturas responsáveis, capazes de comunicar-se.

OnipotênciaA terceira peça do quebra-cabeça une-se à segunda, e é concernente a outro atributo que crentes ortodoxos atribuem a Deus, isto é, a onipotência. Literalmente, onipotente significa “todo poderoso”. Costuma-se dizer que um ser onipotente é capaz de realizar qual­quer coisa. Entretanto, há boas razões para não aceitarmos isto como definição adequada de onipotência, visto que há certas coi­sas impossíveis para este ser — qualquer ser — realizar. Entretanto, tal incapacidade não impugna sua onipotência. Por exemplo, um ser onipotente não poderia criar um círculo quadrado, nem cau­sar que uma pessoa execute um ato livre. O primeiro caso é óbvio, porque a redondeza é logicamente incompatível com a figura qua­drada. No segundo caso, semelhantemente, há uma contradição, visto que um ato não pode ser livre e, ao mesmo tempo, causado por outrem. Em suma, há coisas cuja natureza é absurda, ou auto- contraditória, que nem mesmo um ser onipotente pode realizar. En­tretanto, tais impossibilidades não oneram a onipotência, porque dizem respeito a coisas que ninguém absolutamente pode fazer.

Conseqüentemente, pode-se afirmar que uma pessoa é oni­potente se satisfizer duas condições: (1) puder realizar qualquer ato que não seja contraditório, nem absurdo; e (2) nenhum ser com maior poder puder ser concebido.2

Embora as Escrituras não contenham uma declaração explí­cita concernente à onipotência de Deus3 nem discutam o assun­

2 Quanto a uma análise mais minuciosa de onipotência, veja-se minha obra Evil and a Good God (New York: Fordham Univ. Press, 1982), cap. 8.3 O termo shaddai do Velho Testamento deve ser entendido como todo- poderoso, ao invés de onipotente. De modo semelhante, o termo neotestamen- tário pantokrator ou “Senhor de todas as coisas” refere-se “não tanto às ati­vidades de Deus na criação, mas principalmente à Sua supremacia sobre to­das as coisas (contra poder sobre todas as coisas). A descrição é mais estática que dinâmica. Daí ter apenas uma conexão fraca com o conceito dogmático da onipotência divina, usualmente ligada à onicausalidade de Deus”. Gerhard Kittel, ed., Theological Dictionary o f the New Testament, vol. 3 (Grand Ra- pids, Mich.: Eerdmans, 1965), p. 915. Veja-se, também, P.T. Geach, “Omnipo- tence,” Philosophy 48 (1973): 7-9.

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to de maneira filosófica, há alguns versículos que parecem apoiar a idéia de que Deus preenche a primeira condição para a onipo­tência. Por exemplo, “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42:2) e “Tudo quanto aprouve ao Senhor, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abis­mos” (Sal. 135:6).4 É menos claro se as Escrituras afirmam a se­gunda condição. Deus Se revela declarando que só Ele é Deus, e que não há outros deuses além dEle. Por exemplo: “Vede agora que eu sou, eu somente, e mais nenhum Deus além de mim: eu ma­to, e eu faço viver; eu firo, e eu saro; e não há quem possa livrar alguém da minha mão” (Deut. 32:39).5 Embora se mencione sim­plesmente que não existe outro ser com mais poder (e visto que Deus é o eterno Eu sou, e sempre será), pode-se racionalmente es­tender a comparação feita com pretensos deuses a todos os seres possíveis. Não há outro ser, além de Iavé, que seja Deus, e jamais haverá. Nenhum pretenso deus poderia jamais ser Deus, nem i- gualar-se a Deus. Em suma, um conceito justo do Deus bíblico se­ria que não existe outro ser semelhante a Ele, em poder, e além dis­so, não pode existir tal ser. Deus é onipotente.

A peça chamada onipotência possui um importante apêndi­ce que a liga a outra peça, denominada livre-arbítrio humano. Em outras palavras, não há inconsistência no fato de Deus limitar-Se a Si mesmo, ou limitar Suas atividades. De modo particular, Deus Se limita ao criar indivíduos que são livres. Deus não pode con­trolar-nos, ou compelir-nos a agir de modo a estarmos de acordo com Sua vontade ou com Seus planos, sem, com isso, destruir nos­sa liberdade. Se Deus nos criou livres, a fim de decidirmos por nós mesmos que O amaremos e O serviremos, Ele não poderá causar que ajamos assim. Depende exclusivamente de nós aceitarmos ou rejeitarmos Sua graça, que nos é oferecida pelo ato redentor de Cristo. Não somos ferramentas que Deus manipula, ou que ou­tras pessoas manipulam, para atingir Seus objetivos. Ao invés, so­mos seres conscientes que precisam ser persuadidos a viver de acor­do com a vontade de Deus, e de acordo com Suas ordens, mas li­vremente.

Isto não quer dizer que Deus (ou um ser humano) jamais de­veria compelir ou coagir outros a agir; que o relacionamento que

4 Veja-se, também, Gên. 18:14; Sal. 115:3; Jer. 32:27; e Mat. 19:26.s Veja-se, também, Deut. 4:35, 39; Is. 43:11; 44:8; 45:5-7.

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temos com os outros não pode jamais limitar, restringir ou mes­mo negar o livre-arbítrio dos outros. Às vezes, Deus restringe o livre-arbítrio humano. Por exemplo, quando libertou Pedro da pri­são, Ele restringiu a liberdade do carcereiro. De modo semelhan­te, restringimos a liberdade de outras pessoas. Quando fecho a por­ta da sala, restrinjo a movimentação de minha filhinha Raquel, de dois anos. Contudo, quando as pessoas precisam ser manipu­ladas, ou restringidas (por exemplo, quando precisamos restrin­gir à força, certa pessoa, para que não fira alguém), é preciso re­conhecer que tal manipulação e interferência podem destruir a per­sonalidade do indivíduo. Assim, as interferências que restringem a liberdade humana não podem ser apoiadas sem que haja uma razão justa e uma causa boa. Por outro lado, as interferências que chegam a remover totalmente a liberdade moral, significativa, a liberdade de tomarmos nossas próprias decisões morais, são to­talmente inaceitáveis, porque promovem a desumanização do ser humano. A humanização integral e o crescimento moral só ocor­rem quando existe liberdade.6

O nisciênciaA quarta peça do quebra-cabeça é a onisciência de Deus. Ser onis­ciente é saber toda a verdade. Dependendo do particular relacio­namento de Deus com o tempo, este conhecimento é concorrente (simultâneo) com todos os eventos (se Deus transcende o tempo, ou independe do tempo) ou anterior aos eventos (se Deus estiver no tempo, experimentando a duração, ou a seqüência temporal). Neste último caso — que é aquele que discutirei — faz sentido fa- lar-se da presciência de Deus, isto é, que Deus sabe de um aconte­cimento antes mesmo que aconteça.

A onisciência de Deus está belamente descrita no Salmo 139. O salmista escreve que Deus sabe todas as coisas concernentes à sua pessoa, desde quando estava no útero de sua mãe, até seus pen­samentos, antes mesmo de serem formulados. O salmista não pode refugir deste conhecimento — fugas, escuridão, nem mesmo a morte podem interferir nele. “Tal conhecimento”, confessa o sal­mista, “é maravilhoso demais para mim!’

Algumas pessoas têm afirmado que a onisciência, interpre­

6 Quanto a uma discussão sobre por que a autolimitação não compromete a onipotência de Deus, veja-se minha obra Evil and a Good God, pp. 165-168.

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tada no sentido de presciência, é incompatível com o livre-arbítrio humano. Argumenta-se que visto que Deus em todas as épocas sa­be toda a verdade, Ele conhece nossas decisões e ações antes que ocorram. Mas, se Deus conhece o que vai acontecer antes que aconteça, aquilo que acontece não é diferente daquilo que Deus sabe. De outra forma, Deus saberia falsidades, o que é impossí­vel, porque contradiz Sua onisciência. Todavia, se não podemos fazer outra coisa senão aquilo que Deus sabe, então não somos livres.

Argumentar nesta linha é confundir a ordem das causas (que é que faz acontecer um fato) com a ordem do conhecimento (a base sobre a qual chegamos a saber algo). Deus conhece o evento em si. Assim sendo, Deus saberá o evento se, e apenas se, esse evento ocorrer. Isto é, Deus terá certa crença a respeito de um evento se, e apenas se, tal evento realmente ocorrer. Deus acredita que o even­to ocorre porque o evento realmente ocorre (num sentido não-cau- sal, relacionado com nosso conhecimento). Contudo, não pode­mos inverter as coisas, e fazer o evento depender do conhecimen­to que Deus tem desse evento, como faz meu oponente, que diz que a presciência de Deus determina o fato. Na verdade, a presciência depende do acontecimento, e não vice-versa. Por exemplo, Deus crê que eu escrevo esta sentença porque é verdade que eu a escre­vo. É verdade que eu a escrevo por causa do fato que eu a escrevo. Num sentido trivial, é verdade que se Deus crê que eu a escreve­rei, então eu a escreverei mesmo. Contudo, o conhecimento de Deus não causa o fato de eu escrever. Ao invés disso, o fato de eu escrever, faz com que seja verdadeira a crença de Deus em que eu escreverei. Em suma, devemos ter cuidado para não confundir as condições que provêem a base de nosso conhecimento daquilo que acontece, com as condições que causam o fato vir a acontecer. Sa­ber que algo é verdade não faz com que o evento aconteça.

Podemos discutir este argumento de outra maneira. O opo­nente argumenta que ninguém tem o poder de agir, de tal forma a fazer que o passado seja diferente do que foi. Embora isto seja verdade num sentido não-relacional — não se pode alterar fatos do passado que não tenham relação intrínseca com o presente — não é verdade num sentido relacionai. Por exemplo, eu tenho o po­der de agir de tal modo que Martinho Lutero nasça exatamente 502 anos antes de eu escrever este parágrafo, ao escrevê-lo em 10 de novembro de 1985. Também tenho o poder de agir de tal mo­

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do que Martinho Lutero não tenha nascido exatamente 502 anos antes de eu escrever isto, mediante um atraso de minha parte. Te­nho, aqui, o poder de agir de modo que o passado fique diferen­te, porque aquilo que faço acontecer relaciona-se dependentemente do presente. É evidente que meu poder é limitado. Não tenho o po­der de agir de tal maneira que, ao escrever este parágrafo agora, Martinho Lutero tenha descido na Lua 502 anos antes de eu es­crever. Meu poder relaciona-se àquela parte dos fatos que me con­cernem. É isto que está envolvido com respeito à presciência de Deus. Aquilo que Deus sabe a respeito dos atos de uma pessoa de­pende relacionalmente daquilo que a pessoa (que é objeto da pres­ciência) faz. Assim, neste sentido relacionai, uma pessoa tem o po­der de agir de tal maneira que o passado é como ele se apresenta, isto é, Deus verdadeiramente crê em algo concernente ao presen­te. Conseqüentemente, não existe contradição entre meu livre- arbítrio humano e a presciência divina.

Linhas atrás fizemos uma distinção entre Deus como o so­berano criador, e Deus como um romancista. Tal distinção tam­bém tem relevância aqui. Freqüentemente se afirma que Deus prevê tudo que eventualmente poderia ter acontecido, e todos os indi­víduos que poderiam eventualmente ter existido e, com base nes­te conhecimento, pode decidir criar um mundo em que tudo se har­moniza, e onde Seus propósitos e intenções são realizados.

É bem verdade que o romancista possui este tipo de conhe­cimento. Ele sabe o que faria cada um de seus personagens, em cada situação. Mas, isto ocorre porque seus personagens não têm livre-arbítrio; o que eles “escolherem” terá sido previamente de­terminado pelo autor. Contudo, Deus não é um romancista de nos­sa história. Embora conheça todas as verdades, inclusive as ver­dades a respeito do que as pessoas livres escolhem, Ele não sabe o que as pessoas livres escolheriam se as condições fossem dife­rentes das condições reais, nem que escolhas seriam feitas por in­divíduos que poderiam ter existido, mas que jamais existiram. A razão disto é que as declarações acerca do que as pessoas decidi­riam fazer sob determinadas condições que jamais existiram (as quais são denominadas condicionais contrafactuais do livre-ar­bítrio) não são verdadeiras. Por exemplo, não há meios de se sa­ber se eu teria ido almoçar no Restaurante do Jorge, se eu tivesse ido a São Paulo hoje. Visto que eu não fui a São Paulo, ninguém pode dizer qual teria sido minha decisão, embora pudesse fazer

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conjecturas sobre onde eu teria ido almoçar, com base em meu ca­ráter ou em decisões passadas. Entretanto, a fim de que possam fazer parte da presciência de Deus, as condicionais contrafactuais do livre-arbítrio devem ser verdadeiras. Não são verdadeiras por não corresponderem àquilo que verdadeiramente acontece, por­que, como contrafactuais, descrevem fatos que jamais acontece­rão. Na verdade, não fui a São Paulo, nem almocei no restauran­te do Jorge. Visto que decisões desse tipo jamais serão tomadas por pessoas reais, as quais jamais existirão a fim de tom ar essas decisões, tais fatos deixam de pertencer à presciência de Deus. Tampouco são verdadeiras por decorrerem necessariamente de de­terminadas condições, porque isto é inconsistente com o fato de serem acerca de escolhas ou ações livres e factíveis. Tampouco são verdadeiras porque corresponderiam (ou se seguiriam) ao próprio caráter ou intenções da pessoa, porque uma pessoa livre pode agir independentemente de seu caráter, ou mudar suas intenções; se ti­vesse ido a São Paulo, poderia não ter tido grande apetite para co­mer um bom bife, e teria preferido, talvez, um lanche no MacDo- nald’s. Em suma, o conhecimento de Deus a respeito dos carac­teres de Sua criação não constitui paralelo ao conhecimento do romancista, porque as condicionais contrafactuais concernentes a ações livres de pessoas que existem, ou de pessoas simplesmen­te “possíveis”, não podem ser verdadeiras e, daí, não podem fa­zer parte da presciência de Deus.

Isto significa o seguinte: Imagine um quadro que mostra Deus sentado nos céus, sabendo não apenas o que vai acontecer, mas também, como teriam sido as coisas se as pessoas houvessem to­mado outras decisões, diferentes das que realmente tomaram, ou se existissem outras pessoas (que jamais existiram); tal quadro é completamente errado. Ao conceder-nos livre-arbítrio, Deus tam­bém nos concedeu a habilidade de reagir às diferentes possibili­dades, e Ele sabe o que vai acontecer. Entretanto, Ele não sabe, nem pode saber, que é que teria acontecido se houvéssemos agi­do de maneira diferente daquela como agimos de fato. Isto signi­fica que Deus não sabe que decisões você tomaria amanhã se ho­je você houvesse agido de modo diferente. Isto não ocorre porque Deus é limitado, mas porque não há maneira de determinar-se o que teria acontecido. A verdade dos fatos não ocorridos não po­de ser aquilatada.

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Deus e o TempoA quinta peça do quebra-cabeça liga-se à peça chamada onisciên­cia, e relaciona-se a Deus em face do tempo. Deus não pode ser o tipo de Ser que entra e sai da existência. Ele é essencialmente eter­no. Contudo, de que maneira haveremos de entender essa eterni­dade? Na história da teologia cristã, tem-se entendido a eternidade de duas maneiras. Alguns têm entendido que Deus existe fora do tempo, e que Ele jamais experimenta duração. Outros, todavia, crêem que Deus existe no tempo, experimentando duração inter­minável, isto é, a existência de Deus estende-se indefinidamente para trás e para a frente, no tempo.

A perspectiva de que Deus não tem duração (abstrai-se do tempo) entrou na teologia cristã a partir do pensamento grego. In­troduziu-se porque alguns eruditos julgavam-na mais consisten­te com o fato de ser Deus imutável e perfeito. Visto que a mudan­ça exige que o objeto que está mudando seja diferente em dois mo­mentos do tempo, um ser independente do tempo é incapaz de mu­dar. Isto se aplica não somente à natureza de Deus fora do tempo (em que nenhum de Seus atributos essenciais pode ser alterado, ou perder-se) mas, a todos os Seus atributos. Podemos chamar isto de imutabilidade máxima.

Entretanto, este Deus que Se abstrai do tempo é o Deus da fi­losofia grega, não da Bíblia. As ações produtivas são necessaria­mente dependentes do tempo, e seqüenciais. Há uma época, an­teriormente ao evento causativo, em que a pessoa ainda não ha­via agido a fim de produzir um efeito, e há uma época subseqüente, em que a pessoa age para produzi-lo. De outra forma, não se po­de explicar a produção de um efeito num dado tempo. Conseqüen­temente, a imutabilidade máxima e a total abstração do tempo são atributos incompatíveis com um ser que é produtivo.7 O Deus ju- deu-cristão é produtivo, tanto em termos de Sua criação original como de Sua atividade criativa contínua. Numa determinada épo­ca, Ele fez surgir o universo pela Sua palavra. Ele continua a tra­balhar criadoramente nesse mundo mediante atividades que de­nominamos de miraculosas. De modo particular, Ele responde às petições de Seu povo, uma ação necessariamente seqüencial, vis­to que Ele age após as petições. Ele também Se revela, e a Sua von­

7 Nelson Pike, God and Timelessness (New York, Shocken Books, 1970) pp. 104-110.

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tade, de modo seqüencial (Ef. 3:1-12). De forma importantíssima isto mesmo ocorreu quando Deus Se encarnou num tempo deter­minado (Gál. 4:4), isto é, no tempo certo.

Além do mais, um Deus abstraído do tempo é incompatível com a descrição escriturística de alguns atos mentais de Deus.8 Çonsideremos apenas um exemplo: as Escrituras declaram que Deus Se lembra de nossos pecados, ou esquece-os (Sal. 25:7; 79:8; 86:5; Luc. 11:4). Ou, para dizê-lo de maneira mais teológica, a re­denção conseguida por Cristo altera nossa posição diante de Deus, de tal maneira que, embora em certa ocasião nos considerasse pe­cadores, agora Ele não o faz (Rom. 5:8,9). Contudo, lembrar-se ou esquecer-se e perdoar, são atos sem sentido se a pessoa que se lembra, ou se esquece e perdoa não experimenta o que seja antes e depois.

Alguém poderia argumentar, naturalmente, que tal linguagem contém antropomorfismos, ou analogias. Entretanto, se se trata de antropomorfismo, sobra pouquíssimo na revelação para infor­mar-nos a respeito do caráter de Deus, visto que a maior parte dos atributos que as Escrituras atribuem a Deus relacionam-se com o tempo. Se se trata de analogias, alguém deverá mostrar-nos que Deus e os seres humanos não compartilham o aspecto temporal da analogia. Contudo, não existe uma boa razão para esta mudan­ça, visto que os atributos temporais que não podem ser facilmente removidos encontram-se em outros contextos. Por exemplo, Deus não poderia ter presciência de um evento num ponto do tempo que antecedesse sua ocorrência (Rom. 8:29), nem poderia ter-nos es­colhido antes da fundação do mundo (Ef. 1:4), se Ele não existis­se no tempo. Mas, o mais importante de tudo isto é que nos pare­ce inteiramente impossível que se possa eliminar o aspecto tem­poral de Deus, sem que se altere o significado essencial dos ter­mos usados para descrevê-lO. Que poderia significar, então, por exemplo, que Deus Se lembra, perdoa, ou Se revela a menos que

8 Um Deus que Se abstrai do tempo é capaz de saber toda a verdade, e tudo quanto acontece, porque o ato de conhecer não é, essencialmente, um ato orien­tado para o tempo. É evidente que conhecer algo pode ser um fato localizável no tempo: Por exemplo, uma pessoa pode dizer que eu sei algo hoje, embora não o soubesse ontem. Contudo, o saber não é essencialmente orientado quanto ao tempo. Entretanto, outros atos mentais que as Escrituras atribuem a Deus são essencialmente orientados para o tempo.

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Deus, à semelhança de quem se lembra, se esquece ou se revela, experimenta a duração seqüencial?

Em suma, a total abstração do tempo é inconsistente com o Deus escriturístico. Deus, soberana e providencialmente, intervém na natureza e nas atividades humanas, e esta intervenção é seqüen­cial.

Que se dirá, então, da imutabilidade de Deus? Será que esta doutrina deve ser negada por alguém que acredita que Deus ex­perimenta a duração? Não o creio. Deus é imutável, mas Sua imu­tabilidade deve ser entendida corretamente. Por um lado, Deus é imutável em Sua natureza e caráter básicos. Ele era, é e será um Espírito divino, eternamente existente, onisciente, bom, misericor­dioso, amoroso e justo (Sal. 102:27; Tiago 1:17). Visto que Ele ja ­mais muda de caráter, pode-se confiar nEle (Mal. 3:6).

Por outro lado, Deus muda em Sua natureza conseqüente; isto significa que Deus muda pela maneira como estes atributos divi­nos se manifestam no mundo. Deus está em relacionamento cons­tante e criativo com o mundo. Interage com indivíduos livres a quem criou, a fim de manter Seu senhorio sobre esse mundo. As­sim, à medida que o mundo e as pessoas mudam em relação a si mesmos, e entre si e Deus, assim também Deus muda em relação a eles. Com respeito à Sua onipotência, Deus voluntariamente li­mitou Seu poder quando criou criaturas livres. No que concerne ao amor, Ele demonstrou isto de várias maneiras, em diversas épo­cas, às vezes mediante a piedade (Joel 2:18; Sal. 103:13; Is. 63:9), às vezes mediante a disciplina (Sal. 118:18; Heb. 12:6), e às vezes, mediante bênçãos (Sal. 23:5). Com respeito aos Seus propósitos, permanecem os mesmos em essência, embora quanto às minúcias e à maneira como Deus opera para realizá-los, Ele esteja em cons­tante diálogo com as pessoas a quem procura persuadir, a fim de que transformem Seus objetivos em realidade, aqui na terra. Va­mos mencionar apenas dois exemplos. Em várias ocasiões, Deus arrependeu-Se da ação punitiva que havia decidido executar con­tra Seu povo, porque este não obedecera à Sua orientação, e re­jeitara Sua direção. Em tais casos, Deus escolheu outros veículos para realizar Seus planos (1 Sam. 15-16). Em outros casos, Deus determinou que tomaria algumas decisões retributivas. Porém, quando os transgressores se arrependem, Deus exprime Sua tris­teza por ter pensado em puni-los, e assim perdoa aos que se arre­pendem (Êx. 32:12, 14; Sal. 106:45; Jon. 3:10).

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Em tudo isto, as Escrituras revelam um Deus imutável em Seu caráter, envolvido dinamicamente na criação, procurando execu­tar Seus planos e propósitos. Ele persuade, pune, recompensa, pro­move pactos e novas alianças, tudo isto para realizar Seus objeti­vos. Estas coisas todas nos unem, de certa forma, à últim a peça de nosso quebra-cabeça: a providência de Deus. Vamos discuti- la em seguida.

ProvidênciaOriginalmente, providência queria dizer “prever”. Entretanto, apli­cada a Deus, a providência refere-se à Sua orientação e cuidado quanto à criação. A providência divina inclui dois aspectos. De um lado, envolve a sabedoria de Deus revelada em Seus planos e propósitos, mediante a qual Ele nos dirige para aquilo que é bom para nós. De outro lado, refere-se ao poder de Deus, pelo qual Ele tenta executar Seus propósitos, mediante Suas ações no cosmos e, de modo especial, nas atividades dos homens.

Contudo, quando dizemos simplesmente que Deus tem pro­pósitos e planos, nada dizemos sobre o escopo desses objetivos. (Será que cada minúcia da história humana, e de nossa experiên­cia, teve um propósito, ou constitui parte desses objetivos?) De mo­do semelhante, nada dizemos sobre o governo, ou o modo pelo qual estes propósitos e planos serão executados (por exemplo: Será que Deus os realizará de modo direto, ou indireto?) Nada dizemos, tampouco, sobre se os propósitos serão necessariamente realiza­dos (ou se os propósitos de Deus'podem ser frustrados). E nada dizemos, ainda, sobre se Deus pode alterar Seus planos a fim de levar em conta determinados fatores. A resposta a estas questões solucionará o quebra-cabeça.

As Escrituras nos revelam que Deus tem propósitos que en­volvem tanto o universo, no todo, como também as pessoas, in­dividualmente. Quanto ao cosmos, Deus pretende unificar todas as coisas nos céus e na terra, em Cristo (Ef. 1:10). Quanto aos se­res humanos, Ele deseja que todos se salvem (2 Ped. 3:9), de ma­neira a ficarem semelhantes a Cristo (Rom. 8:29), para que Ele pos­sa “mostrar nos séculos vindouros a suprema riqueza de Sua graça, em bondade para conosco” (Ef. 2:7). Ele tem propósitos e voca­ções especiais para certas pessoas. Jeremias foi escolhido como profeta a fim de comunicar a palavra do Senhor (Jer. 1:5-9); Pau­lo havia sido escolhido para ser mensageiro de Deus aos gentios

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(At. 9:15-16); Pedro foi escolhido para pastorear o rebanho de Cris­to (João 21:15-17). Deus também tem intenções ou propósitos para grupos de indivíduos, para nações e para Sua igreja. Por exemplo, Ele pretende trazer os gentios para a família de Deus, a fim de se­rem co-herdeiros juntamente com Israel (Ef. 2).

Para concretizar Seus propósitos, Deus estabelece certos pla­nos de ação, os quais podem envolver pessoas individualizadas, ou nações. Através de Abraão, Ele pretendeu formar uma nação mediante a qual todas as nações seriam abençoadas (Gên. 12:1-3). Deus providenciou, através de Faraó, a libertação de Israel do ca­tiveiro (Êx. 9:16); através de Nabucodonosor e dos babilônios, pu­niu Judá por ter este povo abandonado a Deus; e através de Ciro, restaurou a Israel, levando-o à sua terra (Is. 44:28). Deus encarnou- Se a fim de redimir a humanidade e destruir as obras do diabo (1 João 3:8).

Pode-se ver, nestas ações, a atuação direta e indireta de Deus. Por um lado, Deus freqüentemente trabalha mediante as leis na­turais que Ele mesmo estabeleceu para Sua criação. Às vezes, Ele opera (e tem poder para isto) de maneiras que se superpõem às leis naturais. Entretanto, se Deus consistentemente estivesse interrom­pendo tais leis naturais, o mundo logo se tornaria um caos, no qual a ação moral humana seria impossível. Sem a regularidade e a or­dem, não poderíamos planejar nem calcular racionalmente as ações que deveríamos executar, a fim de atingir nossos objetivos. Seria impossível predizer os resultados de nossas ações, e de ou­tras pessoas. Suponhamos que estamos vendo uma pessoa num lago, gritando por socorro. Devemos agir? Se sim, de que manei­ra? Se não houvesse leis naturais, ou se tais leis fossem freqüente­mente violadas pela intervenção divina (e direta) não saberíamos se deveríamos ou não pular na água para tentar salvar a pessoa. Não saberíamos se a pessoa se afogaria ou não naquele lago, se ela seria capaz ou não de erguer-se e caminhar por sobre as águas, ou se ela flutuaria como uma rolha. Como deveríamos agir depen­de de como podemos agir, e como podemos agir depende de nos­so conhecimento. Neste caso, depende de nosso conhecimento das propriedades naturais da água e como se relacionam com o cor­po humano. Contudo, sem este tipo de conhecimento, nossa pró­pria atividade moral se torna impossível. Embora isto não signi­fique que Deus não pode agir diretamente sobre a natureza, cer­tamente significa que Deus não pode agir de maneira que redun­

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daria na destruição da ordem natural e, conseqüentemente, em nossa própria incapacidade para agir de modo racional, pruden­te e moral. Isto seria um indício de que Deus age, em geral, atra­vés da natureza e suas leis, a fim de executar Seus propósitos.

Deus também Se envolve direta e indiretamente nos assuntos humanos. Exatamente como nós fazemos, Deus também às vezes compele as pessoas a agirem de determinada maneira, limitando a importantíssima liberdade moral de tais pessoas, isto é, parece que Deus, nesses casos, intervém diretamente. Por exemplo, Êxo­do registra que Deus endureceu o coração de Faraó (9:12), embo­ra não fique bem claro se aqui houve uma ação direta de Deus, ou se se trata da conseqüência indireta das decisões anteriores de Faraó. Entretanto, não se pode crer que Deus sempre opera dire­tamente a fim de atingir Seus objetivos. Fazer isto seria equiva­lente a eliminar a liberdade humana, o que tornaria impossível pa­ra nós achegarmo-nos a Ele de boa mente em amor e, com a aju­da do Espírito Santo, escolher o bem por nós mesmos. É através da persuasão que as intenções de Deus se concretizam, na m aio­ria das vezes, visto que a persuasão é bem consistente com o livre- arbítrio humano, e com o desenvolvimento moral e espiritual que ela mesma induz. Deus nos chama, nos seduz, nos estimula, nos disciplina, nos inspira e nos ama. É assim que temos a história con­tada por Jesus, a parábola do fazendeiro que continuamente en­via mensageiros e, finalmente, envia seu próprio filho, a fim de per­suadir seus arrendatários a fazerem sua vontade. É claro que, no fim, o próprio fazendeiro vem julgar os arrendatários. Mas, o ju l­gamento se faz quanto ao fato de terem sido livres na maneira de tratar seus mensageiros.

Deus é soberano, não um romancista. Ele não determina, nem faz acontecer todas as coisas; os propósitos dEle são gerais e ao mesmo tempo específicos, porém não incluem todas as minúcias da existência humana.9 Ele não apenas opera através de Suas leis

9 As implicações disto para a experiência humana quanto à dor e ao sofrimen­to são significativas. Embora Deus nos permita sentir dor e sofrimento, isto é, embora nem sempre intervenha a fim de prevenir o mal, isto não significa que Deus determinou, ou pretendeu, que o sofrêssemos. Quanto aos males mo rais, este conceito significa que embora Deus permita que cometamos males morais, e nos tenha concedido livre-arbítrio mediante o qual possamos esco­lher dentre o bem e o mal, Ele não planejou que viéssemos a usar rrlal nossa liberdade a fim de pecar. Com respeito aos males naturais, isto significa que

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naturais, criadas por Ele mesmo, como também (e isto é sumamen­te importante) Ele confiou Seu programa, em parte pelo menos, às pessoas. Isto significa, naturalmente, que às vezes os planos e propósitos de Deus são frustrados. Antes do grande dilúvio, Deus expressou exasperação em face daquilo em que a humanidade se havia tornado, e se propôs a reiniciar tudo outra vez, senão no to­do, pelo menos através da linhagem de Noé (Gên. 6:5-8). O rei Saul demonstrou que era desobediente, desacatando as ordens divinas, e Deus determinou que estabeleceria nova linhagem, começando com Davi (1 Sam. 15 e 16). Até mesmo o propósito último de Deus, que todas as pessoas O reconheçam como Senhor, parece irreali- zável. Deus está tomando providências para a separação das ove­lhas e dos cabritos, e para uma espécie de julgamento final que implica na separação eterna de Sua presença (Mat. 25:31-46; 2 Tess. 1:7-9). Estas passagens, e muitas outras mais, sugerem que os pro­pósitos imediatos de Deus, bem como Seus planos, nem sempre são executados e realizados, porque Ele os confiou a mãos huma­nas. 10 Assim sendo, em épocas diferentes, Deus precisa adotar planos e estratagemas diferentes, de tal maneira que Seu propó­sito último, a unificação do cosmos sob Cristo, possa ser atingi­do. Embora os planos de Deus para o estabelecimento real de Seus propósitos sejam diferentes, em épocas diferentes, em reação aos atos das pessoas com quem Ele estabeleceu alianças, existe um fio de eternidade ligando Seus propósitos, baseados em Sua onisciên­cia (At. 2:23; Ef. 3:8-11). “Deus jamais fica perplexo diante da re­cusa da parte do homem para cooperar. Há coisas que Deus po­

embora Deus tenha permitido que experimentássemos dor e sofrimento, ten­do criado um mundo governado por leis naturais que tornam tais aflições pos­síveis, Ele não intencionou para nós essas aflições. Embora Ele intervenha a fim de eliminar os males naturais, Ele não pode intervir para eliminar todos os males naturais sem que, ao mesmo tempo, destrua a ordem natural, neces­sária para calcular as ações morais. Quanto a um desenvolvimento mais am­plo deste conceito, veja-se minha obra Evil and a G ood God, caps. 4 e 5.

Podemos ver Paulo lutando com este problema em Romanos 9. Por um la­do, ele vê que Israel não permaneceu fiel à aliança, frustrando o plano de Deus de salvação, através desse povo. Por outro lado, ele não quer ver nisto um fra­casso da Palavra de Deus. Assim, Paulo faz o relacionamento da aliança de­pender da descendência espiritual, ao invés da física. Nem todos os que des­cendem de Israel são israelitas. Isto nos conduz ao seu segundo ponto: a im­plementação dos propósitos de Deus é feita através de uma seleção de Seus ser­vos, não com base em seus méritos, mas, unicamente com base na escolha do próprio Deus.

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de fazer, a fim de produzir o bem a partir do mal — sendo o pa­radigma disto a encarnação e a cruz de Cristo. Contudo, em tudo e por tudo percebemos que Deus não brinca de faz-de-conta, na história de cada indivíduo, e na história humana. Ele poderá, no fim, assumir soberanamente as obras dos homens, mas Ele o fa­rá mediante o perdão, a redenção e a graça!’11

Em resumo, Deus está envolvido neste mundo por vários meios, os quais promovem Seus propósitos providenciais e esca- tológicos. Contudo, Deus está simultaneamente envolvido com métodos que usam as leis naturais. Tais métodos são consistentes com o livre-arbítrio que Ele nos concedeu; na verdade, empre­gam o livre-arbítrio.

O Quebra-Cabeça MontadoO enigma deve estar resolvido, por esta altura. Deus é soberano em autoridade e poder. Entretanto, Ele resolveu, por Si mesmo, limitar Seu poder e criar-nos dotados de livre-arbítrio, para que pudéssemos escolher entre o bem e o mal, entre Deus e nós mes­mos. É necessário que haja um mundo em que sejamos livres, para que haja ações morais e atendimento significativo aos apelos de amor, da parte de Deus. Ele procura agora concretizar propósi­tos e intenções através de nós. É claro que Deus não está limitado a tais métodos; Ele pode agir, e realmente age, diretamente, em Sua criação. O crente pode muito bem argumentar que se Deus não es­tivesse agindo diretamente em Sua criação, este mundo seria um lugar muito pior para viver-se do que é hoje. Entretanto, visto que muitos dos principais propósitos de Deus relacionam-se com nosso desenvolvimento moral e espiritual, e nossa reabilitação, Deus ope­ra através de leis naturais, e por nosso intermédio, a fim de atin­gir Seus objetivos. A soberania de Deus não exige, por necessida­de, que todo ato humano ou não seja predeterminado, faça parte de Seu plano, ou seja muito desejado. O soberano não pode or­denar a obediência livre. E assim é que Deus resolveu agir de mo­do tanto direto como indireto (ao enviar Seu Filho), chamando as pessoas ao arrependimento, para tornarem-se Seus servos na obra de implantar Seu reino.

11 Brian Hebblethwaite, “Some Reflections on Predestination, Providence and Divine Foreknowledge”, Religious Studies 15, n° 4 (dezembro de 1979):437.

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Deus precisa existir dentro do tempo, para ser capaz de agir significativamente. Visto que Deus está no tempo, pode agir no tempo, e operar criativa e persuasivamente para a concretização de Seus objetivos. O mais significativo é que Ele pode operar na plenitude do tempo, a fim de reconciliar pessoas humanas que, em face de sua livre vontade, pecaram e se alienaram entre si e de Deus. Contudo, a despeito do máximo esforço humano no sentido de quebrar alianças, desobedecer a Deus e perseguir objetivos egoís­tas, podemos ter plena certeza de que Deus, em Sua onisciência, conhece nosso beco sem saída, e por isso, continua a agir nas es­feras humanas. Continua a responder às petições humanas, a con­ceder Sua graça e, finalmente, a chamar todos a Si mesmo.

Antes de voltarmo-nos para a crítica dos casos de estudo, per- mitimo-nos uma nota de advertência. A tentativa de aplicar ra­ciocínio teológico e filosófico a casos concretos está inçada de pe­rigos. Na verdade, as conseqüências práticas de uma teoria depen­dem dos fatos específicos do caso individual e, freqüentemente, fica difícil catalogar todos os fatos relevantes concernentes a ca­da caso. Quais têm sido as relações de Alfredo com as pessoas, no que concerne às riquezas que ele acumulou? Qual é o verdadeiro potencial intelectual de Maria? Por outro lado, os planos especí­ficos de Deus para determinada pessoa são conhecidos apenas por Deus, a menos que Ele os revele. Pode-se, é claro, falar a respeito dos planos gerais de Deus: que todos venham a conhecê-lO e amá- ÍO. Mas, Seus propósitos para pessoas específicas são menos cla­ros. Em certo sentido, é este o ponto central quanto ao segundo caso para estudo. De que maneira se consegue decifrar as inten­ções de Deus, ou mesmo delinear Sua vontade? Sejam quais fo­rem as respostas, as expectativas de respostas definitivas provavel­mente encontrariam desapontamentos. Só Deus pode conceder a Maria aquela certeza e convicção íntimas que eliminarão a dúvi­da que ela sofre: está ela servindo ao reino no lugar onde as cir­cunstâncias a levaram? Nestes dias de turismo moderno, espera­mos que a vida nos seja como uma excursão, em que a estrada foi pavimentada por Deus, e por Ele bem guarnecida e protegida, com todas as sinalizações e todos os confortos em seus devidos luga­res e, à semelhança do “Guia do Turista”, que essa excursão turís­tica contenha indicações quanto à melhor rota para atingirmos nosso destino. Ora, a vida humana é uma peregrinação. A estra­da, embora corte inúmeros caminhos, não foi aberta nem percor­

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rida antes, as sinalizações são alguns vagos acidentes da própria paisagem, e tanto a viagem como o destino final não são claros em seus detalhes. O que necessitamos não é um mapa definitivo, mas a certeza de que Deus é nosso companheiro durante todo o trajeto, e “quem efetua em (nós) tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fil. 2:13).

Alfredo e as RiquezasAlfredo deveria agradecer a Deus as bênçãos materiais que rece­beu, e atribuir sua fortuna ao fato de ter nascido numa próspera nação do ocidente, e a ter trabalhado diligentemente. Tais coisas não são incompatíveis. Por um lado, as bênçãos materiais que ele possui resultam dos bens gerais que Deus concedeu como bênção à Sua criação. O mundo que Deus criou, em virtude da ordem e natureza com que foi dotado, torna possível a Alfredo a obten­ção de bens. Deus permitiu que Alfredo existisse, que ele tomas­se decisões livremente, podendo pensar, agir e ponderar e, assim, Deus tornou possível a Alfredo (e a outros) a prosperidade que ob­teve. Assim, neste sentido bem geral, Alfredo tem muita coisa que agradecer a Deus. Por outro lado, é difícil determinar se Deus es­teve mais diretamente envolvido na prosperidade de Alfredo. É possível que, a fim de atingir Seus objetivos, Deus tenha usado cau­sas diretas ou indiretas para levar a prosperidade a Alfredo, da mesma forma como nós usamos as leis da natureza para produ­zir o bem mútuo entre nós. É ensino bíblico que Deus realmente abençoa aqueles que O amam, e buscam Sua vontade. Entretan­to, Alfredo precisa despir-se do erro de julgar que sua prosperi­dade material é um sinal definido, uma indicação clara da bên­ção de Deus. O sol brilha e a chuva cai sobre justos e injustos (Mat. 5:45). Visto que as bênçãos de Deus são um ato de graça, e não dependem de méritos, não existe uma conexão necessária entre a riqueza material e o estar bem com Deus.

H á vários aspectos a serem discutidos. Em primeiro lugar, ser filho de Deus não é sinônimo de repousar em pétalas de rosas, nem material, nem psicológica nem espiritualmente. Um estudo dos “gigantes” da Bíblia torna evidente este fato. José passou um bo­cado de tempo num poço vazio, e numa prisão escura, tanto quan­to num palácio lindo. Moisés, que sofreu a angústia de liderar um povo que se mostrou rebelde contra seu próprio líder, e contra Deus, jamais entrou na terra prometida. Davi enfrentou perigos

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físicos, arriscou a própria vida e sofreu a traição da parte de seu próprio filho. Paulo faz uma lista de seus sofrimentos, que inclui perigos em rios, entre ladrões, entre seus próprios patrícios, no mar, sentindo frio e fome (2 Cor. 11:24-27). Nossa peregrinação inclui tanto o vale da sombra da morte como o cume das monta­nhas, a pobreza e privações tanto quanto riquezas e abundância. O favor de Deus para conosco não deve ser considerado sinal de aprovação, mediante tempos de refrigério e prosperidade material.

Da mesma maneira, a pobreza não deve ser considerada des­favor da parte de Deus. Deus não quer que as pessoas sofram dor, nem quaisquer formas de degradação. Entretanto, as pessoas so­frem. Em alguns casos, trata-se da punição de Deus por suas más ações; Deus disciplina Seus filhos. Entretanto, mesmo nesta fun­ção judicial, Deus não deseja seu sofrimento, tanto quanto não desejou o pecado deles. Contudo, se Deus não punisse a prática do mal, poder-se-ia questionar o caráter dEle. Mas, com muita fre­qüência, o sofrimento humano e a degradação moral são devidos aos males que as pessoas infligem-se mutuamente. As causas dos males que a humanidade traz sobre si mesma são complexas. Va­mos considerar apenas um exemplo, que Alfredo deveria ponde­rar bem: Há inúmeros fatores que resultam na subnutrição e morte pela fome, como superpopulação, guerras, corrupção (no sistema distributivo e no governo), preguiça, exploração, desperdício, má vontade para compartilhar, e outros males morais. Freqüentemen­te, são as próprias pessoas que trazem tais males sobre si mesmas, ou sobre o próximo, ou são moralmente culpáveis por não tenta­rem resolver os problemas, por agirem ou deixarem de agir.

Alfredo poderia, com muita razão, perguntar por que Deus permite isto. A resposta é que Deus considera muito mais impor­tante que haja pessoas livres que possam praticar o bem, e achegar- se a Ele em amor, do que não haver ações boas (ou más) moral­mente, e não haver amor responsivo. Como vimos, ações morais exigem que as pessoas sejam livres. Contudo, a concessão de livre- arbítrio a nós, seres humanos, torna possível que façamos o bem, e nos acheguemos a Deus, e ao nosso próximo, em amor, mas per­mite, também, que pratiquemos o mal, e demonstremos nossa lu- xúria, nosso egoísmo e nosso caráter explorador do próximo.

De que maneira, então, Deus Se envolve nesta situação em que jaz o mundo? Às vezes, Ele age diretamente. Há ocasiões em que Deus age de modo direto a fim de alterar o curso da natureza e,

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assim, beneficiar o homem, ou atingir Seus propósitos. Entretanto, como sugerimos acima, esta não pode ser a maneira normal da operação divina, visto que, do contrário, seria eliminada a rele­vante liberdade moral com que Deus nos dotou. É mais freqüen­te Deus usar, indiretamente, as mãos e os pés de Seus servos, que atenderão de modo específico às necessidades das pessoas. Assim, Alfredo deveria agradecer a Deus as oportunidades e a prosperi­dade que recebeu. Contudo, Alfredo está sob a obrigação de usar seus bens na ministração efetiva àqueles que, por esta ou aquela razão, não são afortunados.

Contudo, pergunta Alfredo, será que Deus não poderia pro- videncialmente eliminar pelo menos os piores males? Ele deu o maná aos israelitas: por que não o dará também aos esfomeados nativos da Somália? H á inúmeras respostas a esta pergunta, mas, devido à falta de espaço, vamos mencionar apenas duas delas. A primeira já foi discutida. Se Deus decidisse intervir com regula­ridade na ordem natural, a fim de remover o sofrimento, o mun­do deixaria de ser um teatro de ação moral. Não poderíamos pro­por objetivos a serem atingidos, nem calcular nossas ações, com o propósito de atingir esses objetivos. Aceitemos o fato de que Deus intervém; Sua intervenção em geral é consistente com Sua permissão para que as pessoas determinem racionalmente suas ações, de tal maneira que estas sejam respostas morais e espirituais perante Deus e o próximo. Em segundo lugar, vamos salientar o princípio que sublinha essa dúvida: Deus, sendo bom, deveria in­tervir para eliminar os piores males do mundo. Mas, o termo “pio­res males” contém uma noção comparativa. Suponhamos que Deus eliminasse todos os males da magnitude 107. Ainda assim, haveria exemplos de “piores males” em nosso mundo, a saber, aqueles da magnitude 106. O mesmo raciocínio, então, se aplica­ria a tais males, e se exigiria que Deus os eliminasse também. Em seguida, porém, os males de magnitude 105 seriam os “males pio­res”, e o mesmo princípio deveria ser aplicado. Sumarizando: se aplicarmos consistentemente o princípio de que um Deus bondoso estaria sob a obrigação de intervir, a fim de remover os piores ma­les, chegaríamos à conclusão de que Deus precisaria eliminar to­dos os males. Contudo, isto exigiria a remoção do livre-arbítrio humano, tornando impossível, como conseqüência, a prática de ações morais e a consecução do bem moral. Entretanto, temos vis­to que Deus considera a ação moral e a realização do bem coisas

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intrinsecamente valiosas. Deus decidiu que haveria de operar atra­vés das pessoas que criou, inspirando-as, persuadindo-as, enco­rajando-as e ordenando-lhes que façam Sua obra na terra. Ele de­cidiu assim, porque esta é a única maneira pela qual as virtudes morais e espirituais podem ser convertidas em realidades.

Maria na Segunda-feira Pela ManhãTodos nós sofremos a síndrome da segunda-feira pela manhã. Se tudo vai bem, ficamos imaginando se algo que poderíamos ter fei­to teria tornado as coisas ainda melhores. Se alguma coisa não vai bem, ficamos igualmente imaginando: “E se..;’ Na verdade, as per­guntas que se iniciam por “e se..!’ são importantes, visto que nos permitem analisar com maior cuidado as causas de tudo quanto acontece. Há um truísmo segundo o qual os que deixam de pres­tar boa atenção ao passado estão condenados a repetir seus erros. Assim sendo, é importante que Maria reflita bem nas várias con­dições causais que a conduziram circunstancialmente a ser repro­vada no vestibular da Faculdade de Medicina. Assim proceden­do ela aprenderá a tornar-se uma estudante mais eficiente, a tomar decisões mais sábias, e a descobrir onde estão seus verda­deiros talentos.

Por outro lado, há a tirania do “e se..!’. Provavelmente Maria jamais saberá com exatidão por que foi reprovada nos exames. E mesmo que viesse a conhecer as circunstâncias que resultaram em sua reprovação, as tirânicas questões do tipo “e se...” permanece­rão irrespondíveis, visto que nem ela, nem mesmo Deus, jamais saberão as condicionais contrafactuais acerca do que teria acon­tecido se... Existe uma conexão (contudo, não se trata de conexão de necessidade) entre estudar duramente, haver muitas vagas pa­ra determinado curso, e a pessoa conseguir classificação nos vestibulares.

Então, qual é o lugar de Deus neste quadro? Penso que faz sentido dizer-se que Deus abre e fecha portas, ao orientar-nos na consecução daquilo que nos realizará, e que servirá bem ao reino de Deus. Deus pode fazer isso de modo direto, como no caso de Paulo (embora até nesse caso Ele tenha operado através de pes­soas). Ou pode operar indiretamente, mediante os talentos com que Ele nos dotou, mediante as oportunidades que nos são ofe­recidas ou negadas, pelas pessoas ao nosso redor, ou mediante eventos naturais que experimentamos, e pessoas que encontramos.

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É lógico que podemos aceitar ou rejeitar essa orientação, em qual­quer ponto ao longo de nossa peregrinação. E se decidirmo-nos por tomar uma direção diferente, a orientação de Deus se ajusta­rá automaticamente (como aconteceu com Balaão e Jonas).

Seria devastador para Maria passar o resto da vida olhando para trás, para um fato do passado, imaginando qual teria sido “o melhor que Deus havia reservado para ela”. Mediante uma com­binação de suas próprias ações, as ações de terceiros, e as circuns­tâncias em que ela se encontrou na ocasião, ela atravessou uma porta, dentre inúmeras outras que lhe estavam abertas. Ela não pode voltar atrás; ela está, agora, num lugar novo. Abrem-se-lhe agora novas oportunidades para desenvolvimento de seu poten­cial, e para serviço a terceiros. É verdade que ela, talvez, tenha per­dido algumas oportunidades que a teriam conduzido a um cres­cimento maior, e que teriam influenciado e afetado outras pessoas de maneira muito mais significativa. Contudo, Maria não pode permanecer parada atrás das portas não escolhidas, imaginando coisas. Ela tem, agora, diante de si, novas oportunidades que Deus direta e indiretamente lhe proporciona, as quais ela deve agarrar e, desse modo, ficar aberta à orientação de Deus para sua vida.

Tapeçaria HumanaA oração dominical contém as seguintes palavras candentes: “Seja feita a tua vontade!’ É assim que oramos. Parece-nos claro que nem sempre é feita a vontade de Deus, talvez nem mesmo de vez em quando. Isto, porque quando voltamos nossas costas a Deus, e ao nosso próximo, ao recusarmo-nos a amar à maneira ensina­da e exemplificada por Cristo, ao fracassar na produção do fruto do Espírito, rejeitamos aquilo que Deus quer que façamos. Assim sendo, as palavras daquela oração incitam-nos a alterar nosso es­tilo de vida, de tal maneira que aquilo que fazemos, pensamos e dizemos esteja em harmonia com as expectativas de Deus para Seus filhos. Por outro lado, Deus é soberano. Ele tem autorida­de, e exige respeito e obediência, e tem poderes para fazer cum­prir Seus propósitos, mediante Sua sabedoria eterna, mas utilizan­do métodos consistentes com a criação de pessoas livres que vi­vem sob a ordem natural. O objetivo final de Deus é uma peça de tapeçaria intrincada, tecida por bilhões de pares de mãos. Deus conhece os tecelões individuais — os talentos deles, os defeitos que apresentam, e sabe que peça artesanal irregular, multivariegada,

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pequenina, acabarão tecendo. Compondo miríades de peças, Deus está criando uma grande peça de tapeçaria. Esta apresentará man­chas da imperfeição e do vício humanos, e também a beleza dos dons e das virtudes humanas, transformada em obra-prima que toma forma vagarosamente sob a mão orientadora de Deus, até aquele dia quando Ele a terminar, mostrando-a em todo seu es­plendor, nos novos céus e na nova terra.

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Réplica de John Feinberg

BRUCE REICHENBACH APRESENTA UMA AN Á LISE D A soberania divina e do livre-arbítrio humano sob uma perspectiva indeterminística. Visto que grande parte daquilo que ele diz não difere, substancialmente, das perspectivas de Pinnock, vou concentrar-me num pequeno punhado de itens.

Como ocorre no caso de Pinnock, tenho problemas com o conceito de Reichenbach de livre-arbítrio em relação ao controle de Deus. Reichenbach afirma que Deus pode executar Seus p ro ­pósitos últimos (p. 149), mas fico imaginando como é que Deus p o ­de garantir que Seus objetivos sejam atingidos, em face da liber­dade contracausal. Concedida tal liberdade, sempre será possível que alguém frustre os planos de Deus ao escolher outro curso de ação, diferente daquele desejado por Deus.

Outra preocupação minha é a afirmação de Reichenbach de que Deus limitou Seu poder, a fim de conceder-nos livre-arbítrio (liberdade contracausal, é lógico). Entretanto, como no caso de Pinnock, fico aguardando, em vão, um versículo que afirme tal coisa. Naturalmente, Reichenbach julga que já provou tal conceito, ao mencionar alguns versículos que ensinam o livre-arbítrio. Coti-

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tudo, eles só constituem prova se se presumir que a noção de li­berdade de Reichenbach é a única espécie de liberdade que exis­te; e tal idéia, evidentemente, encerra a questão, para ele.

Esta minha última afirmativa levanta outro problema que te­nho com Reichenbach. Ele encerra a questão quanto ao signifi­cado de livre-arbítrio, injustificadamente. Ao definir livre-arbítrio, assim escreve Reichenbach (p. 131): “Ao invés, ser livre significa que as influências causais não determinam minha escolha ou ação!’ Ao explicar seu conceito de onipotência (p. 136), afirma que Deus não pode fazer coisas contraditórias, explicando, em seguida, que o fato de alguém causar que outra pessoa execute um ato livre é uma contradição, visto que “um ato não pode ser livre e, ao mes­mo tempo, causado por outrem”. Poderíamos mencionar outros exemplos, mas estes bastam. As assertivas de Reichenbach seriam verdadeiras, inquestionavelmente, se, e unicamente se, o livre-arbí- trio contracausal for o único tipo possível de livre-arbítrio. Entre­tanto, sendo contraditórias as afirmativas de Reichenbach sobre liberdade e determinismo, verifica-se que ele se recusa a permitir a possibilidade de um determinista poder falar, legitimamente, so­bre liberdade. Como já demonstrei, uma forma de determinismo suave envolvendo o livre-arbítrio não é uma impossibilidade. É as­sim que Reichenbach encerra a questão arbitrariamente.

A argumentação anterior faz levantar outro ponto, com que mantém alguma relação. Parece que Reichenbach julga que ou a pessoa é livre (de acordo, é claro, com a definição dele) ou a pes­soa é causalmente determinada (não livre, de acordo com sua de­finição). Entretanto, quando leio suas palavras a respeito do livre- arbítrio humano, encontro inúmeros pontos com os quais concor­do. A razão disto é que a argumentação de Reichenbach a favor de sua forma de liberdade é argumentação contra uma forma dura de determinismo, de acordo com a qual todas as ações humanas são coagidas e compelidas. Como resultado, os deterministas desta faixa usualmente admitem que seu conceito não tem lugar reser­vado para a liberdade. Visto que não é esta a posição que mante­nho, concordo com Reichenbach na rejeição do determinismo du­ro. Contudo, o problema é que nada do que Reichenbach diz em seu artigo contém uma prova sequer contra uma noção suave do determinismo no que tange ao livre-arbítrio (na verdade, Reichen­bach nem sequer cogita desta noção), pois seu artigo bombardeia apenas o determinismo duro.

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Outro motivo de preocupação minha é: de que maneira uma pessoa toma decisões, segundo a noção contracausal de livre- arbítrio? A explicação fornecida por Reichenbach contém mais substância que a de Pinnock, mas eu a acho problemática. Ao ex­plicar que a pessoa não toma uma decisão sem razões, Reichen­bach diz que “as pessoas livres podem aceitar razões lógicas e ra­cionalmente persuasivas, ou podem rejeitar as razões mais óbvias, para aceitar outras” (p. 132). À página 149, Reichenbach explica que Deus pode executar Seus propósitos, de maneira a manter a liber­dade das pessoas, mas persuadindo-as a agir da forma que Ele quer. É isto, basicamente, que eu próprio diria. O problema resi­de no fato de Reichenbach não achar, aparentemente, que tais ações são determinadas. Entretanto, quer-nos parecer, pela pró­pria explanação dele, que as razões a que faz menção formam uma parte da explicação causai que o próprio Reichenbach proporia quanto a por que se praticou determinada ação, ao invés de ou­tra qualquer. Se isto não for determinismo, precisamos de uma ex­plicação sobre suas diferenças. É provável que Reichenbach diria que não, visto que razões não são causas. Sem dúvida esse é um assunto para discussão, não uma questão que poderíamos resol­ver aqui. Entretanto, chamo a atenção para o seguinte ponto: Pa­rece que tais razões inclinam a vontade de modo decisivo na dire­ção de certo ato, ao invés de outro qualquer. Se isto é verdade, pa­rece-nos claro que esse ato é determinado. Se Reichenbach respon­der que tais razões não influem de modo decisivo na vontade, de­vo, então, pedir-lhe uma explicação sobre como as pessoas che­gam a uma decisão! Se a resposta for que as pessoas simplesmente decidem, desejo saber como, e quero uma resposta que não dê en­sejo ao determinismo. Não vejo tal resposta em Reichenbach.

O último ponto, que tem algum significado, é a forma como Reichenbach trata da presciência divina. Reichenbach afirma que Deus não tem presciência de eventos futuros. Ele nos dá uma ex­plicação de como a presciência harmoniza-se com sua noção de liberdade, mas não acho que funcione. A maior parte do artigo de Reichenbach (pp. 140,141) preocupa-se com negar que Deus te­nha conhecimento hipotético, porém esta preocupação apenas de­monstra que Reichenbach não iria tentar resolver o problema. A explanação dele aparece nas páginas 138-140.

Reichenbach dá tremenda ênfase à distinção entre á ordem das causas e a ordem do conhecimento. Conforme observa esse

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autor, o fato de Deus ter presciência de um evento não é a causa que faz tal evento acontecer. Deus não pode saber de um evento se este não ocorrer, porém, isso não significa que o conhecimen­to da ocorrência do fato faz com que este aconteça. Assim sendo, “devemos ter cuidado para não confundir as condições que pro­vêem a base de nosso conhecimento daquilo que acontece, com as condições que causam o fato vir a acontecer. Saber que algo é verdade não faz com que o evento aconteça” (p. 139).

A distinção acima é o cerne da explicação de Reichenbach a respeito do livre-arbítrio e da presciência, sendo uma distinção de grande importância. Contudo, será que funciona? Creio que não. O primeiro problema suscitado por esta explanação é que ela er­ra o alvo completamente. Reichenbach tem razão, é claro, quan­do afirma que o conhecimento que alguém possui (incluindo-se o próprio Deus) de algo que vai acontecer não faz com que esse algo aconteça, e o calvinista/determinista concorda com isto. A questão proposta pelo calvinista/determinista é a seguinte: Co­mo pode Deus realmente saber (no forte sentido epistemológico) que algo vai acontecer, se esse fato ainda não está estabelecido? Obviamente, o fato não foi estabelecido, ou causado, pelo conhe­cimento que alguém possui dele; contudo, o fato de alguém ter co­nhecimento dessa ocorrência sugere que ela verdadeiramente vai acontecer. Aqui jaz o problema do livre-arbítrio contracausal, por­que Deus não pode garantir que algo aconteça mesmo, se o livre- arbítrio contracausal for o conceito correto. Se Deus não pode ga­rantir o fato, na melhor das hipóteses, Ele pensa que o fato não acontecerá, mas não sabe se acontecerá. Assim, a distinção feita por Reichenbach é extremamente importante, de modo geral, mas bem irrelevante para a discussão em pauta.

Um exame mais cuidadoso da perspectiva de Reichenbach de­monstra que seus problemas são mais graves. Ele afirma reitera- damente (pp. 139,140) que o que torna verdadeira a crença de Deus é a ocorrência do fato. “Deus conhece o evento em si. Assim sen­do, Deus saberá o evento se, e apenas se, esse evento ocorrer. Isto é, Deus terá certa crença a respeito de um evento se, e apenas se, tal evento realmente ocorrer” (p. 139). Na verdade, este conceito é muito problemático. Dizer que Deus somente crê que algo vá acontecer, e não sabe que ocorreu enquanto não ocorrer, é a mes­ma coisa que dizer, então, que Deus não tem presciência a respei­to dos eventos futuros.

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RÉPLICA DE JOHN FEINBERG 161

Para sermos justos para com Reichenbach, ele não usa lin­guagem temporal, como as palavras quando e enquanto, embora pareça que este seja o sentido. Alguém poderia interpretar suas pa­lavras atemporalmente, mas minha opinião é que se interpretar­mos seus argumentos atemporal ou temporalmente, de qualquer modo Reichenbach continua com o problema. Afirma ele que Deus sabe um determinado fato se este ocorrer. Isto faz sentido, mas nega que Deus tenha presciência de fatos futuros. Por outro lado, vamos interpretar a afirmativa de maneira atemporal. Tal in­terpretação pareceria presumir que Deus na verdade conhece o fu­turo (esqueçamos, por enquanto, as discussões sobre quando Deus o conhece). Entretanto, se é isso que Reichenbach tem em mente, devo perguntar como é que Deus pode saber o futuro, em face do livre-arbítrio contracausal defendido por Reichenbach. Ele pode­ria ter uma explicação sobre como Deus pode saber o futuro se a teoria do livre-arbítrio contracausal for correta. Porém, náda disso aparece em seu artigo.

Em suma, os conceitos de Reichenbach enfrentam o seguin­te dilema: Ou interpretamos seus argumentos temporalmente, e Deus não sabe o futuro enquanto este não ocorrer (o que signifi­ca que Ele não sabe o futuro enquanto for futuro), ou interpreta­mos suas afirmativas atemporalmente e, nesse caso, Deus realmen­te exerce presciência, sabe o futuro. Então, o livre-arbítrio contra­causal de Reichenbach se vê em apuros.

Por causa de considerações semelhantes a estas, devo concluir que, a despeito de Reichenbach afirmar que crê na presciência di­vina quanto aos eventos futuros, suas palavras e argumentos não explicam de modo satisfatório a forma como ele encaixa esta no­ção em seu conceito de livre-arbítrio. Minha avaliação geral do ar­tigo de Reichenbach é a seguinte: Trata-se de peça muitíssimo bem redigida, com muitos argumentos cuidadosamente concatenados, das melhores encontráveis, partindo da posição arminiana/inde- terminista; contudo, ainda não estou convencido por sua argumen­tação.

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Réplica de Norman Geisler

A Á R E A BÁSICA E M QUE M AN TEN H O CONSONÂNCIA com Feinberg é seu conceito de Deus. Quanto a Reichenbach, mi­nha área de consonância é o livre-arbítrio. Ambos concordamos em que: (1) o livre-arbítrio implica em que poderíamos ter agido de modo diferente; (2) uma decisão, ou escolha livre, está livre de compulsão interna ou externa; (3) há influências sobre os atos li­vres; (4) o agente humano é a causa do ato livre; (5) nenhum ato é feito ao acaso, ou fortuitamente. Isto é o que chamo de ato au- todeterminado (causado por outrem), ou indeterminado (não cau­sado).

As áreas de maior diferença entre meus conceitos e os de Rei­chenbach estão na natureza de Deus. Primeiramente, por r a z õ e s já discutidas anteriormente, não concordo com seu conceito de que soberania “não significa que tudo quanto acontece está de a c o r ­do com a vontade do soberano” (p. 134).

Em segundo lugar, embora eu concorde com ele em que Deus “não pode compeli-los (os súditos) a inclinar-se livremente”, d is­cordo em que “quanto mais liberdade o soberano conceder a seus súditos, menos poderá controlar o comportamento deles” (p. 134).

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Um Deus soberano e onisciente pode determinar as coisas tão bem, mediante Seu conhecimento das decisões livres, como de outra ma­neira qualquer. Ele não pode estar errado acerca daquilo que sa­be, mesmo que saiba que tais fatos ocorrerão livremente.

Em terceiro lugar, discordo da perspectiva de Reichenbach se­gundo a qual Deus não tem tanto controle sobre Seus súditos li­vres, quanto um romancista sobre seus personagens. Do ponto de vista eterno de Deus, a história está tão estabelecida, ou determi­nada, como o enredo de uma novela. Entretanto, as ações morais da história foram todas livres. Um Deus onisciente vê “para a fren­te” com a mesma certeza com que vê “para trás”. Assim sendo, para uma mente onisciente que conhece toda a história, num “ago­ra” separado do tempo, todos os atos e eventos livres também es­tão determinados. Usando uma ilustração do próprio Reichen­bach, o dia do aniversário de Martinho Lutero jamais mudará, não importa quão longe no tempo e no espaço estejamos desse even­to. Está fixo para sempre, embora seus pais possam ter exercido decisões livres para que esse fato ocorresse.

Em quarto lugar, Reichenbach enfraquece consideravelmente a doutrina evangélica tradicional da onipotência divina, quando a reduz a algo em que “nenhum ser (tem) maior poder” (p. 136). Tal conceito não dá a Deus o maior poder possível, mas apenas o maior poder real. Reichenbach julga que a onipotência de Deus significa que “não existe outro ser semelhante a Ele, em poder,... não pode existir tal ser” (p. 137). Mas, isto pode significar que Deus não pode ter iguais, e não que Seu poder não pode ter limi­tes. Se assim for, esta não é a compreensão histórica de onipotên­cia, nem calvinista nem arminiana.

Reichenbach não nos oferece uma boa razão por que deve­ríamos desistir do forte sentido de onipotência que está no cerne da teologia ortodoxa. Ainda que esteja na moda rejeitar o clássi­co conceito ortodoxo de Deus, muitos ainda não perceberam as de­sastrosas conseqüências que isto terá na teologia cristã, como um todo.

Em quinto lugar, Reichenbach redefine o conceito tradicio­nal da onisciência de Deus. Ao invés de mostrar-nos um Deus que sabe tudo, inclusive aquilo que acontecerá, ele conclui que “Deus saberá o evento se, e apenas se, esse evento ocorrer” (p. 139). Con­tudo, tal Deus está severamente limitado em Seu conhecimento, por eventos contingentes, por depender de eles ocorrerem, a fim

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RÉPLICA DE N O R M A N GEISLER 165

de poder adquirir a verdade quanto a esses eventos. Contudo, tal limitação não se coaduna com a assertiva de que Deus é ilimita­do no conhecimento, como está implícito na onisciência de Deus.

Em sexto lugar, levanto uma objeção contra a afirmativa de Reichenbach, segundo a qual um ato livre ou é causado pelo co­nhecimento de Deus ou o conhecimento de Deus é causado pelo ato livre (p. 139). Esta é uma disjunção falsa. Existe uma terceira alternativa: o conhecimento eterno de Deus pode determinar que o ato seja causado livremente. Neste caso, nem Deus produz o ato, nem o ato produz o conhecimento de Deus. Deus simplesmente sabe (eterna e determinadamente, que decisões tomaremos. Assim sendo, o ato pode ser ao mesmo tempo determinado, do ponto de vista do conhecimento de Deus, e livre, do ponto de vista da deci­são do agente.

Em sétimo lugar, discordo também de Reichenbach, quando ele afirma que o conhecimento de Deus pode ser mudado, da mes­ma maneira que podemos mudar verdades a respeito do passado (relacionalmente). Essa conclusão se baseia em sua falsa idéia de que “aquilo que Deus sabe... depende relacionalmente daquilo que a pessoa... faz” (p. 140). Contudo, um Ser independente, a causa de tudo quanto existe, ou existirá, não depende de Suas criaturas para absolutamente nada. Elas é que dependem dEle. Como até mesmo Reichenbach admite, tudo que é necessário para que um evento seja determinado é que Deus tenha presciência infalível de que esse evento acontecerá. Seria necessário provar que Deus não pode ter presciência infalível de atos livres. Tal conceito ainda não foi provado. Portanto, se é possível a um Deus onisciente conhe­cer os futuros atos livres, é impossível provar que Ele não pode de­terminar o futuro. E não faz a mínima diferença se Deus pode co­nhecer aquilo que poderia vir a ser, visto que Ele sabe o que virá a ser. Se Ele sabe o que vai acontecer, isso mesmo acontecerá, visto que um Deus onisciente não pode enganar-Se a respeito daquilo que sabe que vai acontecer livremente.

Em oitavo lugar, discordo da implicação de que a perspecti­va teísta clássica de um Deus independente do tempo está errada, porque é “do pensamento grego” (p. 142). O ensino de um C ria­dor eterno do mundo temporal (Gên. 1), o Eu Sou de Moisés (Êx. 3) surgiram muito antes dos filósofos gregos. Além disso, a lógi­ca também foi desenvolvida pelos gregos. Tenho certeza, porém, de que Reichenbach não está disposto a jogar fora a lógica, só por­

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que tem origem grega. Rejeitar algo simplesmente por causa de sua origem é falácia genética. Entretanto, não se apresentou ne­nhum argumento que prove que a essência de Deus subordina-se ao tempo. Quando muito, tudo que Reichenbach e outros conse­guiram demonstrar é que “as ações produtivas são necessariamente dependentes do tempo, e seqüenciais” (p. 142). Eles não consegui­ram demonstrar que, por essa razão, o Autor e Produtor também deve depender do tempo.

Parece que Reichenbach também deixa implícito (erronea­mente) que Deus cria em épocas diferentes (para Deus). Mas, se Deus é eterno Ele não criou em épocas diferentes (para Ele). Deus age no tempo, mas age desde a eternidade. Daí, o Deus que criou o tempo não pode estar preso ao tempo. Se o Criador deve com­partilhar a natureza de Sua criação, Ele deveria, então, ser cria­tura, porque Ele criou. Ou teria que ter começo, porque o mun­do que Ele fez teve começo.

Em nono lugar, quanto a que elementos nos antropomorfis- mos e analogias aplicam-se à essência ilimitada de Deus, e que ele­mentos não se aplicam, eu surgeriria o seguinte: seja o que for que Deus tenha criado, que necessariamente implica numa limitação, não pode aplicar-se a um Deus ilimitado; mas, quaisquer perfei- ções que tenha produzido que não implicam em limitações a Ele, aplicam-se-Lhe. Assim sendo, mesmo que Deus crie seres finitos, mutáveis, Ele próprio não pode mudar de modo nenhum, nem ter elementos limitados, como braços, ouvidos e olhos. Contudo, Deus é bom, verdadeiro, santo, justo, inteligente e poderoso, vis­to que tais atributos constituem perfeições que não implicam, ne­cessariamente, em limitações. Assim, pois, Deus é uma essência, mas muitos títulos (atributos) são verdadeiros a respeito dEle. Da mesma forma como todos os raios são um, no centro do círculo, assim também os inúmeros atributos diferentes de Deus referem- se à Sua essência absolutamente singular. Nada do que se pode di­zer a respeito de Deus exaure a profundidade de Sua natureza in­finita. Assim, inúmeros atributos são mencionados a respeito de Deus, mas, na verdade, são apregoados com respeito a Deus ape­nas analogicamente.1 Desta maneira, Deus pode ser absolutamen­te um e, assim mesmo, ter muitos nomes. A menos que se possa demonstrar que há uma contradição real entre a definição de um

1 Veja-se nossa discussão sobre analogia em Philosophy ofReligion (Grand Ra­pids, Mich.: Zondervan, 1974), cap. 12.

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atributo e a definição de outro atributo (coisa que não se fez), não existe inconsistência em afirmar-se mais de uma coisa, analogi- camente, da essência absolutamente simples de Deus.

Em décimo lugar, não concordo com a assertiva de Reichen­bach segundo a qual desde que “o mundo e as pessoas mudam em relação a si mesmos, e entre si e Deus, assim também Deus muda em relação a eles” (p. 144). É a falácia da conversão ilícita. Só por­que todos os cavalos têm quatro pernas, não significa que todas as criaturas de quatro pernas são cavalos! Quando uma pessoa muda em relação a um pilar, o pilar não muda. Semelhantemen­te, quando mudamos em relação Deus, Deus permanece imutável.

Por último, um Deus absolutamente simples não pode ser “imutável em Seu caráter” (p. 145) e, ao mesmo tempo, mutável em Sua essência. O caráter de Deus e Sua essência são um. Entre­tanto, Reichenbach deixa implícito que Deus não é absolutamen­te um, mas possui duas naturezas opostas, uma “natureza primor­dial”, que é imutável e não temporal, e uma “natureza conseqüen­te”, que é mutável e temporal (p. 144). Entretanto, esta posição não é, de maneira alguma, uma posição histórico-cristã, mas uma pers­pectiva neoclássica de um Deus processual. Um Deus que pode mudar em Sua essência, na verdade não é Deus; trata-se de um ser contingente, composto, que necessita de um Criador. É um ser que pode vir a ser, ao invés dAquele QUE É, o grande “EU SOU”. Um Deus que está ainda no processo de tornar-se não é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, nem o Deus de Agostinho, de An­selmo, de Tomás de Aquino, de João Calvino e de M artinho Lu­tero. De fato, tal Deus não é o Deus do cristianismo, que nos fez à Sua imagem. Trata-se de um conceito não-cristão de um deus que nós fizemos à nossa imagem.

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Réplica de Clark Pinnock

CERTAMENTE ESTE É O M ELH OR DE TODOS OS ARTI- gos, segundo meu ponto de vista; e merecedor de meus aplausos. O autor está no caminho certo, tendo produzido um modelo que poderíamos considerar correto. Ele preconiza um livre-arbítrio sig­nificativo, define soberania e onipotência de maneira consistente e bíblica, e apresenta uma perspectiva da eternidade de Deus e Seu governo providencial muito sensata. Todavia, num determina­do ponto sua lógica falha.

Tal ponto é nossa compreensão da onisciência de Deus. Rei­chenbach continua a pensar na onisciência em termos clássicos, como que envolvendo um conhecimento exaustivo de todas as con­tingências futuras, coisa que não funciona, simplesmente. Usemos a imagem que ele criou, a de um quebra-cabeça: cinco peças har­monizam-se e enquadram-se com perfeição, porém, a quarta pe­ça, a onisciência, tom ada segundo o conceito de Reichenbach, é esquisita e não se encaixa bem. O artigo é coerente, no seu todo, menos neste ponto. Minha sugestão, que repensemos o que signi­fica a onisciência divina, fará com que o modelo de Reichenbach funcione.

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Todos os outros três articulistas concordam entre si, e con­tra mim, atribuindo a Deus conhecimento exaustivo de todos os eventos futuros, inclusive aqueles que resultam das escolhas de­cisivas de pessoas livres. Feinberg e eu enxergamos as implicações disto, mas Reichenbach e Geisler não. Se Deus vê todo o futuro, este, então, é fixo, imutável, e estamos errados em crer que temos a liberdade de escolher um ou outro caminho. Deus já sabe o que Reichenbach fará com seu pedaço de doce. Assim, o futuro não é como ele pensa, um reino de possibilidades abertas no qual ele pode, mediante sua liberdade, determinar a verdade. Esta não pode aparecer de jeito diferente daquele em que Deus, desde a eterni­dade, sabe infalivelmente como será. Reichenbach só pode esco­lher a prática daquelas ações que Deus sempre soube que ele ha­veria de praticar. Portanto, ele não pode agir de modo diferente daquele a que está destinado. Ao enunciar seu conceito de onis­ciência, o autor estragou uma exposição sobre a soberania divina e o livre-arbítrio que, de outra forma, seria promissora.

Para mim, o assunto é perfeitamente claro, tanto filosófica como teologicamente. Em termos de lógica, é óbvio que uma de­cisão futura, definida à maneira que Reichenbach e eu a defini­mos, não pode ser conhecida antes da horà, nem por Deus, nem por outro ser qualquer. Sendo uma decisão que deverá ainda ser tomada, nada existe para Deus conhecer. As futuras decisões não existem em parte alguma, para serem “pinçadas” por alguém, mes­mo que seja um Ser onisciente. A idéia toda de um ato livre é que o futuro está aberto para ser determinado por aquela escolha de­cisiva, quando ela for feita. Se o futuro é conhecido à exaustão, não está aberto no sentido exigido, sendo o livre-arbítrio apenas uma ilusão. Ao assumir o conceito que exprimiu, Reichenbach de­lineia um futuro fixo, imutável em todos os sentidos, o que arrui­na toda sua argumentação.

Falando teologicamente, concordo com os calvinistas neste ponto. Aquilo que Deus sabe por presciência é tão fixo e certo co­mo aquilo que Deus determina por predestinação. Tanto um co­mo outro se opõem à genuína contingência e ao livre-arbítrio. A preordenação faz com que os eventos sejam certos, enquanto a presciência pressupõe que os eventos sejam certos. Aquilo que Deus sabe por presciência não pode vir a ocorrer de maneira di­ferente, mas, a liberdade implica em que as coisas poderão ser di­ferentes. Concordo com os calvinistas estritos em que os arminia-

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nos, se quiserem ser consistentes, precisam rever a doutrina tra­dicional da onisciência bem como da onipotência de Deus. É o que Reichenbach se recusa a fazer.

Entretanto, a solução não está muito longe. Com respeito à onipotência, o autor observa que não significa poder para execu­tar coisas impossíveis, como fazer um quadrado redondo. Pois bem, o mesmo ocorre com a onisciência. Onisciência não pode sig­nificar conhecimento de coisas que não podem ser conhecidas. Deus sabe todas as coisas que podem ser conhecidas, contudo, as decisões livres, futuras, não são conhecíveis nem mesmo para Deus. Assim sendo, o fato de Ele não saber coisas não conhecí­veis, de antemão, jamais seria uma imperfeição de Sua onisciên­cia. O fato de Deus não conhecer o que não é pré-conhecível re­presenta, simplesmente, uma situação criada pelo próprio Deus, de criar um mundo com um futuro aberto. Eu admoestaria Rei­chenbach e outros arminianos a serem mais corajosos intelectual­mente, e assumir uma posição nesta direção.

Infelizmente, alguns não farão isso, porque o costume tradi­cional de ler a Bíblia, concernente à onisciência divina, é forte de­mais. Pode-se verificar isso no próprio artigo de Reichenbach. Ele julga que o salmo 139 fecha a questão, forçando-nos a ficar na po­sição incômoda que Reichenbach propugna. Ainda que o leitor possa atribuir-me altas notas para minha clareza, poderia rejei­tar a clareza, favorecendo aquilo que ele concebe como sendo fi­delidade bíblica. Admiro muito isto.

Contudo, considere o leitor algo que pareceria uma possibili­dade quase herética. Eu afirmaria que a Bíblia não nos apresenta um Deus que possui conhecimento exaustivo de todas as contingên­cias futuras. Ao contrário, ela nos apresenta Deus como um Agente dinâmico, que lida com o futuro como se este fora uma questão aberta. Pode-se ver isso claramente no livro de Jonas. Deus pre­tendia destruir Nínive; porém, algo inesperado aconteceu: Níni- ve arrependeu-se. Nem Deus, nem Jonas, sabiam que isto have­ria de acontecer. Deus aprovou a cidade, mas Jonas desaprovou- a. Como resultado, Deus mudou Seus planos, e decidiu não mais destruir a cidade. Encontra-se o mesmo padrão em toda a Bíblia. Deus planeja punir Israel, mas Moisés intercede pelo povo, e Deus relaxa Sua determinação (Êx. 32). Ele diz a Jeremias que se o po­vo se arrepender, acontecerá uma coisa; mas, se ele não se arre­pender, outra coisa bem diferente acontecerá. Agora eu lhe pergun­

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to, leitor: faz sentido supor que Deus já sabia, o tempo todo, o que finalmente aconteceria nestas situações? Não faz sentido nenhum. De fato, estraga o ponto central das narrativas, e a realidade da história. Penso que a perspectiva tradicional da onisciência de Deus é filosoficamente inviável, e biblicamente mentirosa.

O leitor poderia perguntar, então: E a profecia bíblica que contém previsões? Muito bem, se olharmos cuidadosamente es­tas profecias, vamos descobrir que a maior parte delas é explica­da facilmente: Deus predisse — com base naquilo que Ele sabe — o que vai acontecer. Ou Deus anuncia, antecipadamente, o que Ele planeja fazer em tal e tal circunstância, ou usa uma combinação destes dois fatores. Afinal, profecia é algo profundamente condi­cional, estando condicionada à nossa resposta a Deus. Não esta­mos acorrentados a uma corrente de acontecimentos, em que aqui­lo que decidimos fazer nada tem a ver com os resultados finais.

Ao tratar dos casos de Alfredo e Maria, Reichenbach faz um excelente trabalho, visto que sua exposição total é, como já disse, quase perfeita. O único problema decorre da inconsistência que vimos discutindo. Se Alfredo e Maria descobrirem que a perspec­tiva de Reichenbach, sobre a onisciência de Deus, implica numa fixidez maior dos eventos futuros, mais grave do que ele mesmo quer admitir, teriam toda razão para ficarem preocupados, e pre­cisariam pensar seriamente no assunto. Assim sendo, esperemos que Alfredo e Maria não venham a ler meu artigo neste livro.

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l>eus Limita Seu ConhecimentoIV

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Deus Limita Seu ConhecimentoClark Pinnock

P AR EC E QUE A BÍBLIA APRESENTA UMA ABOR- dagem pré-teórica do relacionamento entre a soberania di­vina e o livre-arbítrio humano. Algumas passagens pare­cem apoiar a idéia de que Deus determina as coisas. Porém, ou­

tras passagens, com a mesma força, enfatizam um livre-arbítrio muito significativo para os seres humanos. Certa tensão permeia os textos bíblicos; em parte alguma se vê uma tentativa de resolu­ção definitiva.

Deveríamos então tentar, pelo menos, uma resolução? Alguns teólogos acham que não. Dizem eles que o relacionamento entre a soberania divina e o livre-arbítrio humano é um mistério impe­netrável que transcende a lógica humana; portanto, deveríamos reprimir as exigências imperiosas da razão e submeter-nos à anti­nomia. Num apelo aos evangélicos conservadores, J. I. Packer con­clui dizendo que, em face de a Bíblia ensinar ambas as verdades, sem perigo de erro, o crente deve aceitar ambas, baseado na au­toridade da Bíblia.1

1 J. I. Packer, Evangelism and the Sovereignty o f God (Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1961), cap. 2.

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Infelizmente, é mais fácil dizer que fazer — até mesmo neste caso. Em diversos níveis vem à tona a necessidade de tentar-se re­lacionar a soberania e o livre-arbítrio — necessidade que não se pode submergir. Num dado nível, há os crentes pensantes, não acostumados a aceitar contradições na Bíblia; eles poderiam per­guntar se devem aceitar esta aparente contradição, como se lhes exige. Ficam imaginando se os termos foram devidamente defi­nidos, ou se foram já bem exploradas todas as possíveis manei­ras de relacioná-los.

Num segundo nível situam-se os céticos, que perguntarão se o teísmo cristão é coerente, ao afirmar a soberania de Deus e o li­vre-arbítrio humano, ambos ao mesmo tempo. Não se impressio­narão, se lhes dissermos que se trata de uma antinomia. Os apo­logistas da fé perguntarão se é necessário sacrificar a credibilida­de do evangelho quanto a esse ponto. Nas mentes de alguns ateus, a crença na divina soberania elimina a liberdade humana, tornan­do impossível a explicação do mal neste mundo. Será alto o pre­ço a ser pago, em termos de evangelismo, se não pudermos ofere­cer uma hipótese racional que explique a soberania em face do livre-arbítrio.

Num terceiro nível, encontramo-nos face a face com as im­plicações práticas que este livro focaliza. Os crentes querem saber por que Deus planejou tragédias que os atingiriam, e por que o mundo está cheio de misérias. Perguntarão eles: Que liberdade te­nho eu, se Deus sabe todas as coisas que decidirei fazer? O comi­chão para entender melhor a relação porventura existente entre a soberania de Deus e o livre-arbítrio do homem não vai desapare­cer.

Contudo, não nos desesperemos. Há maneira de entender esse relacionamento, de modo a satisfazer os dados bíblicos e as exi­gências da inteligência, uma teoria que não precisa postular uma contradição básica entre soberania e liberdade. Vou resumi-la ago­ra, e expô-la em detalhes, em seguida.2

Como Criador do mundo, Deus é soberano, no sentido fun­damental. Ele decidiu trazer à existência um mundo cheio de agen­

2 Outro teólogo que adota o conceito que estou defendendo, e fornece-nos uma exposição mais longa sobre o assunto, é Richard Rice. The Openness o f God: The Relationship o f Divine Foreknowledge and Human Free Will (Minnea- polis: Bethany Pub., 1985).

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tes significativamente livres. De acordo com Sua decisão, Deus go­verna o mundo de maneira a sustentar, e jamais negar, o caráter e as estruturas desse mundo. Visto que o livre-arbítrio foi criado, está aberta a realidade, e não fechada. O relacionamento de Deus com o mundo é dinâmico, não estático. Embora isto exija de nós que repensemos os aspectos do teísmo clássico, ou convencional, receberemos ajuda para relacionar a soberania e o livre-arbítrio mais coerentemente, na teoria, e mais satisfatoriamente, na prá­tica.

A Soberania de DeusDeus é soberano, de acordo com a Bíblia, no sentido de ter o po­der de existir por Si próprio, e o de chamar o universo à existên­cia, a partir do nada, pela Sua Palavra. Contudo, a soberania de Deus não precisa significar o que alguns teístas e ateístas afirmam, a saber, que Deus tem o poder de determinar cada minúcia da his­tória do mundo. Antony Flew está errado ao dizer que qualquer criador soberano deve controlar todos os pensamentos e ações de seu universo dependente.3 Ao contrário, soberania quer dizer o poder de criar qualquer universo possível, inclusive um universo que envolve agentes significativamente livres. Tal universo deve­ria sua existência inteiramente à vontade de Deus, mas, o que acon­tecesse poderia conformar-se, ou não, com os valores e intenções de Deus. Deus poderia criar um mundo em que Ele determinasse cada minúcia, porém, Ele não é obrigado a fazer isso; no caso de nosso mundo, Deus não o criou assim.

Quando dizemos que Deus criou o mundo, queremos dizer que Deus existe por Si próprio, independentemente da criação, e que Ele chamou o mundo à existência mediante um ato livre e so­berano. Isto significa que acreditamos ser Deus ontologicamente outro: o mundo depende de Deus, Deus não depende do mundo. A essência de Deus é existir; Ele existe por necessidade. Contudo, o mundo existe pela graça, e deve sua existência a Deus. Ficaria reduzido a nada, se Deus decidisse deixar isso acontecer. Assim sendo, rejeitamos o dualismo — a idéia de dois princípios funda­mentais, Deus e o mundo. No mundo antigo, Platão afirmava que Deus tinha de enfrentar um universo que Ele não criara. No mun­do atual, Whitehead concorda com essa assertiva. Entretanto, de

3Antony Flew, God and Philosophy (London: Hutchinson, 1966), p. 47.

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acordo com a Bíblia, toda a realidade depende de Deus, o Cria­dor, e não há limites ao poder de Deus, exceto aqueles que o pró­prio Deus decidiu aceitar. Todos os seres, menos Deus, receberam sua existência do próprio Deus, como uma dádiva, sendo que qual­quer autonomia que porventura possuam devem-na também co­mo dádiva.4

Dizer que Deus é o soberano Criador significa que Deus é a base da existência do mundo, e a fonte de todas as suas possibi­lidades. Contudo, Ele não é necessariamente um manipulador de bonecos fantoches, que fica puxando os barbantes. É perfeitamen­te possível para Deus criar um mundo em que haja alguma rela­tiva autonomia, para si mesmo, mundo esse com certas estrutu­ras inteligíveis, racionalmente independentes, e agentes finitos que tenham a capacidade de tomar decisões livremente. Assim, Deus concede à criação certo grau de realidade e poder, não retendo mo­nopólio de poder para Si mesmo. Sua soberania não é do tipo que determina tudo, mas do tipo que é competente em tudo. Certamen­te Deus é capaz de manejar quaisquer circunstâncias que possam surgir, e nada, ninguém, tem a capacidade de destruir ou derrotar a Deus. Contudo, Ele não controla tudo quanto acontece. Deus honra o grau de relativa autonomia que concede ao mundo.

Mas, de que maneira pode Deus fazer cumprir Sua vontade num mundo em que seres finitos são livres para resistir-Lhe? Ele pode fazê-lo por causa de Sua habilidade para antecipar as obs­truções que as criaturas podem atirar em Seu caminho e, assim, resolver cada novo desafio de maneira eficiente. Israel pode resistir e rebelar-se contra os propósitos de Deus, contudo, ao longo dos anos, os planos de Deus terão sucesso real. Um indivíduo pode op­tar por rejeitar o plano de salvação proposto por Deus, e entris­tecer o coração divino, mas isto não impedirá a vinda do reino de Deus. É possível conceder-se uma faixa de livre-arbítrio signifi­cativo à humanidade, sem temer-se que os planos de Deus não se­jam executados. Nada jamais aconteceu, ou acontecerá, que Deus não tenha antecipado, ou que Ele não saiba como manejar.

Antes de passarmos à análise do livre-arbítrio e da sobera­nia de Deus, comentemos três outros tópicos. Em primeiro lugar, a criação é uma expressão da atividade cheia de propósito, de

4 Um excelente livro a respeito da criação é Maker o f Heaven and Earth, de Langdon Gilkey (New York: Doubleday, 1959).

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Deus, no tempo. Deus projetou uma obra e, em seguida, executou-a. E importante que notemos não apenas que a criação é um even­to, e não um mito, mas também que Deus age no tempo, não se abstraindo temporalmente. Uma coisa que jamais deveríamos fa­zer, se quisermos entender o livre-arbítrio de Deus e nosso próprio livre-arbítrio, é pensar em Deus como um Ser que Se abstrai do tempo. Voltarei a este assunto mais tarde.5

Em segundo lugar, Deus não é independente do mundo em todos os sentidos. Ele não é, por exemplo, como o Deus de Aristóte­les, que foi descrito como estando preocupado consigo mesmo, não sendo cognoscível pelas pessoas. De acordo com a Bíblia, é certo que Deus Se interessa pelo mundo, e dele cuida. Portanto, Ele é dependente do mundo, pelo menos no sentido de conhecê- lo. Deus registra o que está acontecendo no mundo e age de mo­do apropriado. Assim, em certo sentido, Deus depende do mun­do quanto às informações sobre o que acontece. Contudo, não se muda a natureza de Deus por causa disto. Muda apenas o conteú­do de Sua experiência sobre o mundo. Tal dependência cogni­tiva é algo aceito por Deus, desde que Ele criou um universo sig­nificativo fora de Si mesmo. Deus continua a amar o mundo e a odiar a injustiça, mas a maneira de Ele expressar Seu amor e Sua santidade varia de forma apropriada, de acordo com as circuns­tâncias. Surgem novas informações, e Deus as registra. Neste pon­to, o teísmo convencional precisa ser corrigido. Também voltarei a este assunto, mais tarde.

Em terceiro lugar, a fim de afastar a suspeita de que eu seja um teísta processual, vamos esclarecer a situação. Tenho simpa­tia por algumas facetas do teísmo processual. Eu também vejo a realidade como estando aberta, jamais fechada. E penso em Deus como um Ser que Se relaciona com os eventos à medida que acon­tecem, e não independente do tempo. Contudo, afirmo também com o teísmo clássico a doutrina da criação e da independência ontológica de Deus em relação ao mundo. Creio num teísmo di­nâmico que aceita o retrato de um Deus que opera seqüencialmen­

5 Gordon D. Kaufman trata com muita profundidade do assunto de Deus co­mo Agente cheio de propósitos na história do mundo, em sua obra Systema- tic Theology: A Hístoricist Perspective (New York: Scribner’s 1968).

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te, num processo temporal que não constitui simples ilusão.6

Livre-Arbítrio das CriaturasDe acordo com a Bíblia, não foi apenas possível a Deus criar um mundo com agentes finitos, livres, importantes: Deus o fez exa­tamente assim. Torna-se isto aparente ao lermos duas asserções bí­blicas, básicas, a respeito dos seres humanos: (1) são agentes his­tóricos que podem achegar-se a Deus, em amor; e (2) são peca­dores que deliberadamente rejeitaram o plano de Deus. Nenhu­ma destas duas declarações teria sentido se não postularmos a dá­diva do livre-arbítrio, em seu sentido mais forte.

A Bíblia nos apresenta a criação dos seres humanos à ima­gem e semelhança de Deus, e fala deles como sendo agentes mo­rais que deveriam exercer domínio sobre o mundo, e atender livre­mente às ordens de Deus (Gên. 1:27,28; 2:15-17). São como Deus no sentido de refletir Sua capacidade criadora, na capacidade de traçar planos e executá-los. Têm a capacidade de transformar o mundo, e a si próprios, e de agir conscientemente para a glória de Deus. Significa que é possível um relacionamento pessoal, a maior maravilha deste universo, entre estas criaturas e seu Criador. O ho­mem é capaz de achegar-se (ou de rejeitar) a seu Criador, em amor, e celebrar uma comunhão com Deus. Esta aliança de comunhão, por sua própria natureza, não pode ser coagida, mas trata-se de algo celebrado voluntariamente por ambas as partes. À luz desta possibilidade, devemos concluir que o livre-arbítrio humano é algo significativo e real. A obediência em fé e amor não pode ser for­çada. Embora a liberdade humana seja limitada e finita, quando comparada à liberdade de Deus, ainda assim é uma realidade pre­ciosíssima. O futuro todo jaz aberto, diante de nós, e podemos de­cidir por nós mesmos se caminharemos ao lado de Deus.7

O livre-arbítrio das criaturas não deixa de ter, evidentemen­te, seus limites e restrições. Nossa liberdade vai chegando gradual­

6 Royce G. Gruenler criticou o teísmo processual da perspectiva do teísmo clás­sico. Tenho mais simpatia que este autor pelo teísmo processual. Veja-se sua obra The Inexhaustible God: Biblical Faith and the Challenge o f Process Theism (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1983).'Sobre a humanidade como história, veja-se Wolfhart Pannenberg, What is Man? (Philadelphia: Fortress, 1970). Sobre a humanidade como tendo capa­cidade para achegar-se a Deus, veja-se Hendrikus Berkhof, Christian Faith (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1979), cap. 25.

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mente, tomando forma nos primeiros cinco anos de vida. Somos amoldados, em grande escala, por nossos pais, que tomam por nós a maior parte de nossas decisões, no começo. E prosseguimos, sen­do afetados pelas demais pessoas, e afetando-as também. Pode­mos trancar-nos dentro de situações em que nosso livre-arbítrio fica sensivelmente diminuído, ou podemos tomar decisões que ex­pandem a faixa de alcance de nossa liberdade. O passado exerce influência sobre nós, e somos levados por uma onda de história que não podemos controlar. Muitos fatores e variáveis determi­nam as decisões que tomamos. Assim sendo, o livre-arbítrio é, de­finitivamente, algo limitado e finito. Contudo, no final das con­tas, a maravilha resultante é que não somos um bloco de pedra tra­balhado inteiramente por fatores externos. Somos agentes da his­tória, podemos contribuir significativamente para a história, e fazê-lo para a glória de Deus.

Certamente é óbvia a razão por que Deus tomaria a arrisca­da decisão de criar seres como nós. É que alguns valores de gran­de importância só existiriam se Ele nos criasse assim. Qualidades tais como o amor e o heroísmo só podem existir se houver criatu­ras livres, para assumi-las. Não haveria muito sentido num ani­mal que fosse programado para amar, e não pudesse deixar de amar. Exige-se livre-arbítrio finito para amar no sentido total. Diz C. S. Lewis, num trecho bem conhecido: “Por que Deus deu en­tão o livre-arbítrio? Porque o livre-arbítrio, apesar de tornar o mal possível, é também a única coisa que faz com que todo amor, bon­dade ou alegria valham a pena. Um mundo de autômatos, de cria­turas que trabalhassem como máquinas, não valeria a pena ser criado.”8 As pessoas precisam ser livres, a fim de poderem aden­trar aquele relacionamento salvífico com Deus, o qual o próprio Deus planejou para nós. Devemos admitir que foi arriscada para Deus a decisão de criar um mundo como o nosso. Suponho que Deus sabia que esse risco valia a pena, em face dos benefícios que colheria. Era preciso conceder-se liberdade ao homem a fim de vir a existir a possibilidade de uma aliança pessoal entre ele e Deus. Nenhuma outra coisa proporcionaria esta aliança.9

8 C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (ABU Editora S /C , 1979), p. 26.9 John Hick, Evil and the God o f Love (New York: Harper and Row, 1966), pp. 311-313.

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De acordo com a Bíblia, os homens são criaturas que rejei­taram a vontade de Deus e desviaram-se de Seus planos. Este fa­to constitui outra prova importante de que Deus fez os homens ver­dadeiramente livres. É evidente que os homens não são marione­tes presas a um barbante. São livres até o ponto de lançar suas von­tades contra a vontade de Deus. Na verdade, nós nos desviamos do plano que Deus esboçou, ao criar-nos, e atravessamo-nos diante dos propósitos de Deus, bloqueando-os. Obviamente somos livres, porque agimos como uma raça, de maneira a quebrar a vontade de Deus, e destruir os valores que Deus considera altíssimos para nós. Certamente não nos é possível acreditar que Deus planejou em segredo nossa rebelião contra Ele. É certo que nossa rebelião é prova de que nossas ações não são determinadas, mas signifi­cativamente livres. Embora não sejamos dualistas, devemos ad­mitir que a história, hoje, se nos apresenta à semelhança de uma luta entre forças conflitantes, ao vermos as criaturas em franca re­belião contra Deus. De acordo com a narrativa bíblica, o confli­to entre Deus e os homens é muito real. Podemos não ser capazes de frustrar os planos de Deus para o mundo, mas, é certo que po­demos arruinar o plano que Ele traçou pessoalmente, para nós, e, semelhantemente aos escribas, podemos rejeitar os propósitos de Deus para nossas vidas (Luc. 7:30).10

As evidências bíblicas conduzem-me, então, a uma forte de­finição de livre-arbítrio. Não é suficiente dizer-se que uma esco­lha livre é aquela que não sofreu compulsão externa, mas foi de­terminada pelo estado psicológico do cérebro do agente, ou pela natureza dos desejos do agente. Dizer-se que José roubou o doce porque ele o desejava é coisa óbvia; a questão é se ele poderia ter- se reprimido, abstendo-se de roubá-lo, a despeito de seu desejo. A idéia da responsabilidade moral exige que acreditemos que as ações não são determinadas, nem interna nem externamente. A Bíblia concorda com nossas intuições a respeito de nossas deci­sões e nosso comportamento moral. O amor que Deus deseja de nós é um amor que não somos obrigados a dar. O pecado pelo qual Deus nos condena é aquele que não tínhamos de cometer. Trata- se de ações para as quais não havia condições anteriores que as tornassem certas e determinadas ações resultantes de escolhas ge­nuínas de agentes históricos.

10 Veja-se Roger T. Forster e Paul Marston, G od’s Strategy for Human His- tory (Wheaton, 111.: Tyndale, 1973).

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Naturalmente, há condições que existiam antes de tomarmos nossas decisões, e que as afetaram, e nossas ações não são todas livres por igual. Mas, o ponto central é que temos realmente a ca­pacidade, no momento de decidir, de executar atos que poderiam ter sido substituídos por outros, e tomar decisões para as quais ha­via outras alternativas. O verdadeiro amor implica na possibili­dade de não cometer-se pecado. Não faz sentido afirmar-se que agimos livremente se, de fato, estamos fazendo aquilo que Deus, desde a eternidade, nos predestinou para fazer. Tanto a Bíblia co­mo a razão não vêem sentido em tal proposição.11

Uma importante implicação desta forte definição de livre- arbítrio é que a realidade permanece, em certa extensão, aberta, e não fechada. Isto significa que uma novidade genuína pode apa­recer na história, que não poderia ser prevista por ninguém, nem mesmo por Deus. Se à criatura foi concedida a habilidade de de­cidir por si própria como serão determinadas coisas, estas não po­derão ser conhecidas de antemão, de modo infalível. Tal conceito implica em que o futuro realmente está aberto, e não disponível à exaustiva presciência nem mesmo da parte de Deus. Fica bem claro que a doutrina bíblica do livre-arbítrio humano exige de nós que reconsideremos a perspectiva convencional da onisciência de Deus.

Como foi que Agostinho conseguiu manter a doutrina do livre-arbítrio humano, como sendo sua resposta para o problema do mal, sem precisar, no entanto, fazer uma revisão em sua dou­trina da onisciência e da onipotência de Deus? Ouso dizer que a razão é que Agostinho não foi inteiramente coerente neste assun­to. É verdade que ele julgou que poderia absolver a Deus da res­ponsabilidade do mal, ao enfatizar a queda de Adão em pecado pelo mau uso do livre-arbítrio. Entretanto, a fidelidade de Agos­tinho a certo tipo de teísmo ameaçou a defesa que ele preparou para a justiça de Deus. À semelhança de Filo, que o antecedeu, Agostinho se prendera a um retrato bíblico de Deus, pintado com certas tintas gregas, ou pressuposições a respeito da perfeição di­vina, de modo especial a imutabilidade divina. Isto fez com que Agostinho ficasse impossibilitado de pensar num Deus que apren­

11 Estou ciente de que calvinistas como Donald A. Carson acham que isto faz sentido para eles. Veja Divine Sovereignty and Human Responsability (Atlanta: John Knox, 1981), pp. 206-209.

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deria alguma coisa (que já não soubesse desde a eternidade), ou que fosse capaz de mudar, reagindo a novas circunstâncias. Ele imaginou um Deus que existia além da possibilidade da mudan­ça e do tempo, que sabia todo o passado, todo o presente e todo o futuro, como se houvera apenas um presente desligado do tem­po. Todavia, se a história é conhecida de modo infalível e certo des­de a eternidade, segue-se que o livre-arbítrio é uma ilusão. Por exemplo, não haveria outra alternativa para Adão, senão pecar, e ele pecou. Mas, de acordo com o pensamento bíblico, se não ti­vesse havido uma genuína possibilidade para Deus ter agido cor­retamente, naquela circunstância, ele não teria sido, de forma al­guma, um agente livre.12

Ao dizer isto, coloco-me contra o teísmo clássico, que vem tentando provar que Deus pode controlar e prever todas as coisas num mundo em que os homens são livres. Todavia, a liberdade só pode existir, neste contexto, num sentido verbal apenas. Não existe lugar para o tipo de livre-arbítrio de que a Bíblia nos fala, se hou­ver um Deus que sabe e /o u controla todas as coisas, num presente desligado do tempo. Livre-arbítrio significa que a realidade está aberta, mas não aberta para tal tipo de teísmo clássico.13

Governo de DeusSe Deus criou agentes finitos com certo grau significativo de li­berdade, segue-se que Ele haveria de levar tal fato em considera­ção ao exercer Seu governo no mundo. Na verdade, é isto mesmo que a Bíblia sugere.

A Bíblia nos apresenta Deus como sendo a força superior que não se fixa em Seu direito de dominar, mas recua para dar lugar às Suas criaturas. Ele nos convida para dominar o mundo, mas vê-nos tentando subtraí-lo do próprio Deus. Chama Israel para ser Seu servo, a fim de mostrar ao mundo o caráter de Deus, mas a nação fracassa, errando cada vez mais. Quando Deus enviou Seu próprio Filho, fez o papel de um servo, e não empurrou as pessoas na direção da obediência. O Espírito de Deus pode ser entristeci­do, extinguido e resistido. A Bíblia não nos fornece o retrato, de um Deus determinador de todas as coisas, mas de um Deus que

12 Veja-se Langdon Gilkey, Reaping the Whirlwind: A Christian Interpreta- tion o f H istory (New York: Seabury, 1976), cap. 7.13 Concordo com a posição de David R. Griffin em God, Power and Evil: A Process Theodicy (Philadelphia: Westminster Press, 1976).

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abre espaço para os seres humanos, e aceita as conseqüências, boas e más, dessa decisão. Até mesmo quando nos rebelamos contra Deus, Ele permite que trilhemos esse mau caminho. Todavia, Ele nos chama de volta, e vigia nosso retorno (Luc. 15:11-32). Deus abre mão de parte de Seu poder, a fim de ganhar nossa participação voluntária, coisa que Ele almeja ardentemente. Podemos falar de uma autolimitação voluntária de Deus, quando Ele decidiu criar o tipo de mundo que de fato criou.14

O reino de Deus é a expressão chave usada por Jesus para exprimir a soberania de Deus. O Senhor proclamou a vinda do rei­no, uma época em que a vontade de Deus será feita na terra como no céu. Ele contemplava ao longe, como o fizeram os profetas an­tes dEle, aquele período de paz e justiça. O governo de Deus re­cebia resistência selvagem e destrutiva. O reino estava presente de forma misteriosa, porém não em pleno poder, ainda. A sobera­nia integral seria algo que se estabeleceria no futuro, após muita luta. O reino de Deus demonstra a natureza do governo de Deus: permite oposição, e opera em meio aos desafios que vai encontran­do.15

A oração também ilustra meu conceito. Deus promete ouvir nossas orações e lhes responder. Tiago o diz ousadamente: “Na­da tendes, porque não pedis” (4:2). A oração pode mudar o futu­ro. Por causa da oração, as coisas podem ser diferentes do que se­riam sem ela. “Pedi, e dar-se-vos-á” (Mat. 7:7). Isto deve querer dizer que Deus nos chama para exercer nossa coparticipação, ao Seu lado, no governo do universo. O plano de Deus está aberto. Verdadeiramente, Deus aceita a influência de nossas orações pa­ra as decisões que Ele vai tomar. A oração é prova de que o futu­ro está aberto, e jamais fechado. Demonstra que os acontecimen­tos futuros não estão predeterminados e fixos. Se você crê que a oração muda as coisas, todo o meu conceito já está estabelecido. Se você não crê, é que você está longe da religião bíblica.

A soberania de Deus, então, não deve ser considerada plan­ta arquitetônica de tudo quanto vai acontecer, um decreto pré- temporal, singelo, que fixa tudo, cada coisa em sua posição, an­

14 Veja-se Langdon Gilkey, Message and Existence: An Introduction to Chrís- tian Theology (New York: Seabury, 1979), cap. 5, especialmente pp. 91-93.15 Dois mais proeminentes teólogos de nosso tempo, Wolfhart Pannenberg e Jürgen Moltmann, crêem firmemente que a soberania de Deus virá a ser efe­tiva no futuro.

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tes mesmo de a história iniciar-se. A soberania de Deus refere-se, ao invés, à atividade de Deus, o qual estruturou o mundo, e está desenvolvendo Seu plano salvífico na esfera da história. Os obje­tivos do plano são imutáveis (por exemplo, convocar as pessoas para virem ter comunhão com Deus). Todavia, a execução desse plano é flexível, e adapta-se aos acontecimentos. Deus está cons­tantemente tomando decisões relacionadas com a implantação de Sua vontade. Deus reage aos eventos no tempo e faz com que to­das as coisas cooperem para o bem. Porém, não se trata de uma situação controlada, em que nada inesperado acontece, e tudo sai exatamente como Deus quer. Seria relativamente simples adminis­trar um mundo em que Deus pudesse contar com todas as coisas acontecendo conforme Ele as decretou. Trabalhar num mundo em que as criaturas são livres exige um bocado a mais da atenção de Deus.16

Mas, é Deus onipotente mesmo? Alguém certamente objetará que Deus seria finito, se Ele não controlasse cada detalhe deste mundo. É claro que Deus é onipotente. O poder para criar um mundo com agentes livres certamente é um “poder onipotente” ! Só um ser onipotente, como disse Kierkegaard, teria o tipo de po­der necessário para concretizar tal projeto. O poder da tirania pode fazer que as pessoas obedeçam sob ordens, mas exige-se um tipo de poder muito superior, para criar-se a delicada flor do livre- arbítrio humano, e com ele trabalhar.17

Deus exerce o tipo de onipotência compatível com a decisão tomada por Ele próprio, de criar um mundo de agentes livres. Ja­mais os teístas afirmaram que Deus poderia fazer coisas impos­síveis, ou contraditórias. Deus usa Seu poder para sustentar o mun­do que Ele criou, e para promover a salvação dos homens, mas de maneira não-coercitiva. Onipotência quer dizer que Deus po­de fazer aquilo que Ele decidiu que fará. Ele poderia criar uma raça de autômatos, se Ele assim o desejasse. E poderia criar seres capazes de praticar atos de livre-arbítrio. Ao decidir-Se por esta

16 Richard Swinburne, TheExistence o f God (Oxford: The Clarendon Press, 1979), caD. 10; Michael J. Langford, Providence (Londres: SCM Press, 1981).17 Sõren Kierkegaard, Journals (New York: Harper and Row, 1958), p. 113.

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última alternativa, Ele revelou — não negou — Sua onipotên­cia.18

Entenda-se que minha perspectiva não nega a onipotência, quando adequadamente definida, mas nega a onipotência que tem sido aceita pela teologia ocidental, tradicional, desde Agostinho. Embora falasse em livre-arbítrio humano, Agostinho era durís­simo ao afirmar que a vontade de Deus sempre é feita, e que a cria­tura humana nada pode fazer para contrariá-la. Diz Agostinho, numa de suas muitas sentenças sobre o assunto: “Deus não é ver­dadeiramente o Todo-Poderoso, se Ele não puder fazer tudo quan­to quiser, ou se o poder de Sua vontade onipotente for prejudica­do pela vontade de qualquer criatura, em qualquer tempo!’19 O teísmo clássico presume que a vontade de Deus é sempre e inva­riavelmente feita. Contudo, tal presunção não é escriturística. E introduz problemas enormes, de todo tipo, na teologia e na vida. Tal conceito implica em que o mal não é mal, porque Deus o quis. Implica em que o livre-arbítrio não é livre, porque não existem al­ternativas genuínas. Esse conceito nos diz que tudo quanto vier­mos a decidir, no futuro, já havia sido decidido. Reconheço que esta crença na forte onipotência dá à pessoa forte senso de segu­rança, mas comunica, também, a negação da realidade dinâmica das vidas que vivemos. Fico perplexo ao pensar que os eruditos conservadores são tão relutantes em abandonar a estrutura clás­sica teísta, nesta questão, preferindo continuar lutando inutilmen­te.20

Natureza de DeusSe se começa a explorar este assunto da soberania divina e livre-

18 Concordo inteiramente com Axel Steuer, “The Freedom of God and Hu- man Freedom”, Scottish Journal o f Theology 36 (1983): 163-180; e Richard Swinburne, The Coherence o f Theism (Oxford: The Clarendon Press, 1977), cap. 9.19 Agostinho, The Enchiridion, cap. 96, em Nicene and Post-Nicene Fathers, vol. 3, ed. Philip Schaff (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1956), p. 267.20 Por exemplo, excelentes teólogos como Bloesch, Erickson, Fackre, e até mes­mo Packer fazem concessões que exigem que eles rompam com a onipotência forte de Agostinho e de Calvino, mas eles se recusam a fazê-lo. Atribuo esta timidez à posição privilegiada que o calvinismo desfruta entre os adeptos do evangelicalismo (como eles mesmos se definem). Veja-se Harry Buis, H isto­rie Protestantism and Predestination (Philadelphia: Presbyterian and Refor- med, 1958).

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arbítrio humano, termina-se discutindo a doutrina de Deus. Em úl­tima análise, o debate neste livro gira em torno da natureza do teís­mo cristão.

O perfil de Deus que traço a partir de minhas leituras da Bí­blia se caracteriza pela flexibilidade e dinamismo. Deus é o Deus vivo que age e reage a favor de Seu povo. Ele não existe longe de nós, retirado em esplêndido isolamento, abstraído do tempo e das mudanças, mas relaciona-Se com Suas criaturas e compartilha suas vidas. Poderíamos comparar o Deus de Aristóteles a Satanás, na narrativa bíblica, pois, vive isolado, solitário, não Se relacionan­do com nada, e contemplando-Se apenas a Si próprio. Que ironia, o Deus de Aristóteles, tão isolado, ter sido capaz de influenciar a doutrina cristã de Deus, causando-lhe tanto mal. Eu creio que Deus Se relaciona com Suas criaturas em todas as dimensões de suas vidas. Esta perspectiva, longe de constituir negação da trans­cendência e do poder de Deus, ao contrário, explica a maneira por que o poder e a transcendência de Deus se manifestam. Numa pa­lavra, Deus é amor. Ele não jaz inativo e impassível, mas constan­temente envolvido no tempo e na história.

A Bíblia está cheia de versículos que retratam Deus reagin­do sensivelmente àquilo que acontece na terra. Os teístas clássi­cos inclinam-se a torcer as passagens sobre tal fato, dizendo que tais expressões são apenas quadros antropomórficos, ou infantis, que não devem ser tomados literalmente. Na verdade, estão fazen­do isto: estão tentando evitar o que a Bíblia ensina. A Bíblia apre­senta Deus de forma muito dinâmica, mas eles querem negar es­se fato. Tomemos, por exemplo, Jeremias 18. Deus é comparado a um oleiro lidando com o barro. Visto que o modelo se estraga­ra, Deus pensa em começar tudo de novo. Dirigindo-se a Israel, através de Jeremias, Deus diz que o que fará com o povo é ques­tão aberta. Se o povo se arrepender, haverá bênçãos; se não se ar­repender, Ele o abandonará, e enviará o julgamento. Isto nos pa­rece muitíssimo um Deus dinâmico que estrutura Sua vontade, em reação àquilo que acontece na história, nada havendo parecido com um Deus encerrado na total abstração do tempo, incapaz de mudar, seja no que for.

Segue-se, então, que se quisermos conhecer o Deus da Bíblia, teremos de desenvolver novo modo de pensar, no que tange aos atributos de Deus. Gostaria de apresentar quatro sugestões que são, ao mesmo tempo, necessárias e intrigantes.

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Primeiramente, rejeitemos o modelo grego de imutabilidade. Embora seja Deus imutável em Sua essência e caráter, Ele é m u­tável em Seu conhecimento e em Suas ações. Um Deus imutável em todos os sentidos não pode ser o Deus da revelação, que reage dinamicamente diante de cada nova situação. Se Ele fosse imutá­vel, segundo o sentido de Platão, o retrato bíblico de um Deus ativo estaria em frangalhos. É claro que Deus é amor; isto jamais mu­dará. Contudo, o amor de Deus em ação está continuamente mu­dando em relação ao Seu povo. Louvamos a Deus por Suas obras maravilhosas, feitas a nosso favor. Esta capacidade para mudar não significa que Deus é caprichoso, ou volúvel. Significa, sim­plesmente, que Deus é capaz de operar na história cambiante, rea­gindo a tudo quanto vai acontecendo. Glória a Deus pela Sua imu­tabilidade que está sempre mudando!21

Em segundo lugar, devemos tomar com ceticismo a afirm a­tiva de que Deus é impassível — outro axioma da teologia platô­nica. Este atributo significa que Deus não pode experimentar tris­teza, dor ou amor. Até mesmo H. P. Owen admite a precariedade desta posição, como se o teísmo clássico tentasse equilibrar-se num fio de aço. Como é possível afirmar-se que Deus é amor, e que em Cristo Ele sofreu pelos nossos pecados, se Deus é impassível? Owen esforça-se demais, sugerindo que Deus pode imaginar o que deve ser a dor para Suas criaturas, todavia, esse erudito enfrenta enorme problema tentando convencer até a si próprio.22 O fato é que o teísmo estava errado ao impor esta noção tão especialmen­te inútil à teologia cristã, e é necessário que alguém o diga. Gosto dos esforços de Moltmann nesse sentido.23

Em terceiro lugar, devemos admitir que a categoria grega da ausência ou abstração do tempo, embora aparentemente ofereça algumas vantagens ao teísta cristão, encerra muito mais proble­mas do que vantagens. A Bíblia diz meramente que Deus é eter­no, não tendo começo nem fim. Isto significa que Ele é capaz de

21 Karl Barth estava no caminho certo em Church Dogmatics I I /I (Edinburg- T. & T. Clark, 1957), pp. 490ss.22 H. P. Owen, Concepts o f D eity (New York: Herder and Herder, 1971) pp 23-25.23 Jürgen Moltmann, The Crucified God (Londres: SCM Press, 1974), cap. 6. Deus não é imutável em Sua essência, no sentido que Ele é triúno — um dína­mo de amor e atividade. Veja-se também de Moltmann: The Triníty and the Kingdom (San Francisco: Harper and Row, 1981).

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envolver-Se no tempo, e na história. Deus planeja e executa Seus planos. Deus executa atos e assegura suas conseqüências — tudo numa seqüência temporal. Pensar em Deus como Alguém que se abstrai do tempo é ameaçar todo o conceito bíblico.24 Sugere que Deus não pode ser agente que trabalha seqüencialmente, no tem­po, e que a mudança temporal é uma ilusão. Se Deus conhece a história como sendo presente, fora do tempo, nossa impressão de que algumas coisas pertencem ao passado e outras ao futuro é me­ra ilusão. Aquilo que aconteceu no ano 1240 A.D., e aquilo que vai acontecer no ano 2097 A.D. ficam igualmente no presente, em al­gum lugar na terra onde não existe o tempo. Não gosto deste con­ceito por duas razões: primeira, porque é destituído de sentido; e segunda, porque destrói a mensagem da Bíblia.25

Em quarto lugar, precisamos reconsiderar o que significa a onisciência de Deus. Alta porcentagem dos crentes acredita que Deus sabe todas as coisas, até mesmo o futuro, exaustivamente, em minúcias. Isto significa que tudo quanto você e eu fizermos já foi registrado no livro das coisas que certamente haverão de acontecer. Assim sendo, a idéia de que de fato estamos fazendo escolhas, ponderando ações alternativas, é um erro, uma ilusão. Se Deus sabe que amanhã você vai escolher a alternativa A, e não a B, a idéia que você tem, então, de que estará tomando uma de­cisão genuína é errada. Concordo com os calvinistas tradicionais em que a onisciência forte pressupõe uma predestinação forte, e concordo também com Lutero, que dizia exatamente isto a Eras­mo.26 Não há ajuda no apelo à abstração do tempo, como o fa­zem C. S. Lewis e Tomás de Aquino. Se Deus sabe eternamente que

24 Alegro-me de poder compartilhar esta convicção com um filósofo evangé­lico que muito admiro, Nicholas Wolterstorff, “God Everlasting”, em Contem- porary Philosophy o f Religion, ed. Steven M. Cahn e David Shatz (New York: Oxford Univ. Press, 1982), pp. 77-98.25 Stephen T. Davis concorda, em sua Logic and the Nature o f God (Grand Rapids, Mich.; Eerdmans, 1983), cap. 1. Ronald H. Nash é tentado a concor­dar, também, em The Concept o f God (Grand Rapids, Mich.; Zondervan, 1983), p 83.

Concordo com Loraine Boettner em que a presciência presume pré- ordenação. E preciso questionar ambas, juntas e separadamente. Veja-se The Reformed Doctnne o f Predestination (Philadelphia: Presbyterian and Refor- med, 1965), pp. 42-46. Lutero atou este rigoroso nó em Bondage o f the Will. Veja-se Harry J. McSorley, Luther: Right or Wrong? New York: Newrtian Press, 1969).

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a decisão será A, e não B, subsiste então a ilusão de que há uma genuína alternativa, no momento da tomada de decisão. Parece- me que as ações que são pré-conhecidas infalivelmente, ou que in­dependem do tempo, mas pertencem à presciência, não podem ser livres de acordo com o sentido bíblico.27

Se assim é, em que sentido é Deus onisciente? Deus é onis­ciente no sentido que Ele sabe tudo que pode ser conhecido, da mesma forma que Deus é onipotente, no sentido que pode fazer tudo que é factível. Contudo, atos livres não são entidades que po­dem ser conhecidas antecipadamente. Não existem, literalmente, e por isso não podem ser conhecidos. Deus pode conjecturar so­bre o que você fará na próxima sexta-feira, mas não saberá com certeza, porque você ainda não agiu.

Apelo ao leitor que leia o texto bíblico com este conceito em mente. O problema é que os leitores dificilmente lêem assim, em­bora no meu entender, o desenrolar da história na Bíblia presu­me meu conceito. De acordo com a Bíblia, Deus antecipa o futu­ro de maneira semelhante à nossa. Deus testa o patriarca Abraão para ver o que ele fará e, em seguida, diz através de Seu mensa­geiro: “Agora sei que temes a Deus” (Gên. 22:12). Deus ameaça des­truir Nínive, e depois cancela a ameaça, quando a cidade se arre­pende (Jon. 3:10). Ao ler a Bíblia, não fico com a impressão de que o futuro está todo estabelecido, e no domínio da presciência. O futuro é visto como um campo em que importantes decisões ain­da poderão ser tomadas, as quais poderão mudar o curso da história.28

Mas, que diremos das profecias, das previsões de aconteci­mentos futuros? Será que elas não provam que Deus sabe tudo a respeito do futuro? Não, não provam. Alta porcentagem das pro­fecias pode ser explicada mediante um dentre três fatores: anún­cio antecipado daquilo que Deus pretende fazer, profecias condi­

27 Concordo com Nelson Pike, “Divine Omniscience and Voluntary Action” em Cahn and Shatz, Contemporary Philosophy, pp. 61-76.28 Eruditos evangélicos que têm tido coragem suficiente para afirmar este con­ceito (alguns dirão: que têm sido tão tolos) incluem os seguintes: L. D. McCabe, Divine Nescience o f Future Contingencies (New York: Phillips e Hunt, 1882) e The Foreknowledge o f God and Cognate Themes in Theology and Philosophy (New York: Hitchcock e Walden, 1878)/ Gordon C. Olson, “The Foreknow- ledge of God”, artigo não publicado, 1941; Roy Elseth, D id God Know? A Study o f the Nature o f G od (St. Paul: Calvary United Church, 1977); e Rice, Openness.

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cionais que deixam os resultados em aberto, e predições baseadas no exaustivo conhecimento de Deus sobre o passado e o presente. Acho que essa variedade de onisciência divina denominada “bo­la de cristal” não tem origem bíblica, nem foi cogitada pelos au­tores bíblicos. Portanto, não devemos pressupor tal tipo de onis­ciência. Precisamos ler a Bíblia mais literalmente.

O vigoroso tom de meu artigo dará a entender, ao leitor, que eu penso ser urgente que os crentes reconsiderem os vários aspec­tos de seu teísmo. Se vamos pregar a Bíblia, e relacioná-la de mo­do eficaz às necessidades das pessoas, torna-se imperativo, então, que salientemos a amorosa relatividade de Deus perante um mun­do em mudança, e que diminuamos nosso apego à noção de uma divindade imutável, implícita na filosofia grega. O teísmo clássi­co tentou combinar estes dois ideais de perfeição e não conseguiu fazê-lo de forma coerente, entregando-nos uma série enorme de problemas desnecessários.29

Concluindo, a Bíblia contém vários milhares de versículos. Não estou afirmando que nenhum deles poderia ser mencionado de modo a perturbar meu conceito, ou qualquer outro conceito a respeito da soberania de Deus e o livre-arbítrio humano. Estou apenas afirmando que a tremenda impressão que a Bíblia nos dei­xa é que existe um livre-arbítrio humano significativo, im portan­te e uma soberania de Deus muito dinâmica. Deus nos concede es­paço para tomarmos decisões genuínas, enquanto vai trabalhan­do a nosso lado, no processo temporal. Deus Se interessa pelo que somos, e pelo que fazemos. Deus reage para conosco, da mesma maneira que um dançarino diante de sua parceira: o rapaz vai mo­vimentando-se em perfeito sincronismo, em perfeita coordenação e equilíbrio, acompanhando o ser vivo que é sua companheira. Gordon Kaufman diz o seguinte: “A capacidade de Deus de corresponder-Se conosco com perfeição é a qualidade que Lhe pos­sibilita tratar de cada novo acontecimento, na ordem da criação, com frescor e criatividade, conduzindo-a na direção de Seus ob­jetivos fundamentais, mas sem violentar a própria integridade des­

29 Já afirmei coisas semelhantes num artigo: “The Need for a Scriptural, and Therefore a Neo-Classical Theism”, em Perspectives on Evangelical Theology, ed. Kenneth S. Kantzer e Stanley N. Gundry (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1979), pp. 37-42. Minhas atuais idéias foram antecipadas, também, em Grace Unlimited (Minneapolis: Bethany Fellowship, 1975), que eu próprio editei.

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sa criação!’30 Contudo, se quisermos capacitar-nos para pensar na soberania e livre-arbítrio desta maneira bíblica, atraente, não po­deremos deixar de reconsiderar a doutrina de Deus, de modo a e- levarmo-nos à altura daquela compreensão.31

Aplicação PráticaO Caso de Alfredo. Em minha opinião, o grande número de difi­culdades práticas que as pessoas enfrentam, nesta área, deve-se a uma estrutura teológica defeituosa. Se a pessoa crê que Deus é imutável, onipotente e onisciente, no sentido forte destes termos, criam-se-lhe todos os tipos de dificuldades práticas. Por que é que Deus quis esta tragédia? De que maneira Deus nutre alguma sim­patia por mim, em minhas lutas? Como é que eu sou livre, se tu ­do quanto eu vier a decidir, já está fixo e estabelecido no presente desligado do tempo, de Deus, ou por Seu decreto eterno? Como é que Deus me ama, se Ele não pode sentir coisa alguma? Pergun­tas deste tipo só podem ser respondidas com imensa dificuldade, e na base do teísmo convencional.

Por outro lado, se a pessoa crê que Deus é um agente dinâ­mico, interessado, que opera no tempo, tais dificuldades não se er­guem. O livre-arbítrio é real, e o futuro jaz aberto. Deus permite tragédias que Ele próprio não deseja; na verdade, Ele Se entriste­ce com tais tragédias. Aquilo que constitui minhas decisões não está fixado num decreto desligado do tempo. Deus é capaz de sentir alegria e tristeza, e reajusta Seus planos em resposta às circuns­tâncias cambiantes.

Nenhum dos dois casos para estudo que nos foram apresen­tados contém alguma dificuldade maior, no que concerne à mi­nha compreensão de Deus, de Sua soberania e de nosso livre- arbítrio. No caso de Alfredo, ele está certo, de início, em agrade­cer a Deus por tê-lo colocado na América do Norte (creio que es­tá implícito), onde há condições apropriadas para pessoas produ­tivas e operosas de progredirem. Refiro-me às condições de uma atitude protestante concernente à vocação secular da pessoa, e à liberdade política e econômica. Tal combinação de fatores vem

30 Kaufman, Systematic Theology, p. 239.31 Nash, Concept, cap. 2. Ronald Nash discute dois tipos de teísmo, o clássi­co e o processual, e verifica que está faltando algo, no meio. Tentei expressar qual poderia ser essa posição intermediária.

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produzindo tremendas riquezas, onde quer que tenham existido, nos últimos dois séculos, e Alfredo beneficiou-se por viver sob tais bênçãos. Por ser amigo da poupança, dedicado e operoso, nesse contexto favorável, é natural que Alfredo tenha prosperidade. Não estou certo quanto à crença de Alfredo, no que respeita ao con­trole soberano de Deus. Em minha opinião, o que explica a pros­peridade dele é a estrutura criativa geral, estabelecida por Deus, a qual atribui recompensas a determinado tipo de comportamento, e penaliza outros tipos. Deus concedeu prosperidade a Alfredo, de modo miraculoso e arbitrário, porém, mediante a forma como Ele criou o mundo. Alfredo deveria ser grato, por ter nascido e sido educado num lugar onde seus próprios esforços poderiam flores­cer, e jamais serem esmagados por fatores além de seu controle.

A certa altura, em sua vida, Alfredo tornou-se ciente da po­breza de outras pessoas, em outros lugares. Sendo discípulo de Je­sus, ficou perturbado e interessado, tentando imaginar como po­deria ajudar. Parece que lhe disseram que a pobreza em outros lu­gares de alguma forma se devia à sua própria prosperidade. É bem compreensível que ele ficasse confuso, perturbado, e começasse a sentir muita culpa. Na minha opinião, o problema básico de Al­fredo é que ele estava mal informado. É mentira, simplesmente, que as riquezas da América do Norte foram adquiridas mediante a injustiça, ou às custas dos países mais pobres. Ao contrário, a América do Norte obteve sua riqueza porque, como cultura, al­mejou o progresso material, e possuía os elementos político-eco- nômicos que produzem riquezas, de modo dinâmico, e isto de for­ma inusitada na história da humanidade. Creio que Alfredo leu, talvez, certos materiais evangélicos, de orientação esquerdista, que o levaram a crer na hipótese da culpa do ocidente; tal conceito foi proposto, primeiramente, por Marx e Lenin, constituindo uma teo­ria que é bem o oposto da verdade. P. T. Bauer vem argumentan­do há décadas, de modo eficiente, penso, que os países mais po­bres são justamente os que não tiveram qualquer contato (ou mui­to pouco) com a cultura ocidental, enquanto os que não estão tão mal, são os que mantiveram algum contato. Um fato contristador é que grande número de países do assim chamado Terceiro M un­do, mantém atitudes culturais, ou religiosas, e sistemas políticos que impedem seu desenvolvimento econômico. Costumam culpar os Estados Unidos, porque isto é mais fácil do que enfrentar a rea­lidade dos fatos. Além disso, têm inveja dos Estados Unidos, pe­

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lo enorme sucesso deste país, em relação a si mesmos, como paí­ses mais pobres. Meu conselho para Alfredo seria que leia litera­tura sadia, não envenenada, e que pare de autotorturar-se desne­cessariamente.32

Que é que Alfredo deverá fazer, em seguida? Primeiramen­te, procurar conhecer melhor os fatos quanto à pobreza mundial e suas causas reais. Em segundo lugar, deverá abrir seu coração aos necessitados e pesquisar as possibilidades de praticar carida­de — contribuindo ou agindo. Em terceiro lugar, ele deveria apoiar o tipo de teologia da libertação que não estiver ligada a pseudo- soluções marxistas, teologia que prega a Cristo como a única m a­neira de transformar a cultura moral-religiosa, que encoraja a li­berdade empresarial nas esferas econômicas e políticas. Tal con­ceito de teologia da libertação nos apresenta pouca esperança de progresso. A teologia da libertação atualmente em voga oferece apenas promessas vazias, e quando consegue sucesso, acaba em tirania e pobreza socializada.

O Caso de Maria. Tudo que Maria precisa compreender é que a vontade de Deus, à semelhança da própria vida, é dinâmica e fle­xível. Ela precisa descartar a idéia que teístas convencionais im­plantaram em sua cabeça, de que a vontade de Deus é uma plan­ta arquitetônica aprovada pelas autoridades municipais, na qual está previsto tudo quanto se fará. Se existisse tal planta aprova­da, é claro que ela não precisaria preocupar-se com nada — o que estiver para acontecer, há de acontecer, e terá o selo da aprovação de Deus. Deus deve ter decidido que Maria não passaria nos ves­tibulares de medicina, em Sua soberana sabedoria. Não existe, de forma alguma, um expediente pelo qual a pessoa possa evadir-se de qualquer aspecto de uma vontade certa, e irresistível. (Até mes­mo meus argumentos contra a predestinação estavam predestina­

32 Veja-se Peter T. Bauer, Dissent on Development (Cambridge: Harvard Univ. Press, 1976), e seu famoso artigo “Western Guilt and Third World Poverty”, em Commentary 61 (1976): 31-38. Um economista evangélico que tem a mesma perspectiva é Brian Griffiths, Morality and the Market Place (Londres: Hod- der and Stoughton, 1982), cap. 5. Só posso especular, isto é, conjecturar, que Alfredo estaria lendo demais os escritos provenientes [da ala progressista da Igreja Católica, as obras de Boff, os artigos dos mancomunados com o Parti­do dos Trabalhadores, com os partidos comunistas, e alguns que aparecem no Expositor Cristão.(N.T.)]. Ele poderá ter lido, inclusive, alguns artigos que eu próprio escrevi, antes de ver os erros em que vivia.

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dos!) Entretanto, este retrato da vontade de Deus não é escriturís- tico. Não existe, em parte alguma, uma planta aprovada na qual está determinado que Maria deverá ser uma enfermeira, e não mé­dica. A vontade de Deus para Maria é que ela deverá crescer à se­melhança de Cristo, e trazer à realidade seu potencial máximo, dentro das circunstâncias que a cercam.

Pode ser que Maria não tivesse conseguido entrar na Facul­dade de Medicina porque lhe faltou a devida motivação para es­tudar bastante, talvez lhe faltem os talentos necessários a uma mé­dica. Pode ser, também, que havia um número extraordinário de excelentes candidatos ao curso de medicina, muito mais talento­sos que Maria, os quais ocuparam todas as vagas das várias Fa­culdades, sobrando, pois, os menos talentosos. O pastor de Ma­ria revelou-se um teísta dinâmico e sábio, que a aconselhou a não culpar a Deus pela sua frustração, mas empenhar-se ao máximo de suas possibilidades em enfermagem. Ele poderia ter adiciona­do que se, de alguma forma, alguma injustiça fora cometida contra ela, certamente Deus cuidaria com afeto de seu pedido de justi­ça. Estou contente porque ele não disse: “Maria, Deus deve ter de­sejado que você fracassasse no vestibular de medicina.” Só os de­terministas poderiam ter certeza assim, porque para eles tudo quanto acontece tinha de acontecer. Quem sabe, talvez, um dia, Maria terá outra chance de prestar o vestibular e ser bem-sucedida, e tornar-se médica. Visto que a realidade está aberta, sempre, qual­quer coisa que envolva decisões livres pode vir a ocorrer.

Há uma perspectiva adequada que Maria, e todos nós, deve­ríamos assumir, nesta área de busca e conhecimento da vontade de Deus: confiança. Deus está conosco enquanto estamos plane­jando, e à medida que progredimos. Ele enxerga muitíssimo me­lhor do que nós as coisas que estão acontecendo, pois somos se­res finitos. Talvez não consigamos enxergar o bem que pode ser resgatado após um desastre, em face dos desencontros que sofre­mos ao longo dos anos. Contudo, nós nos colocamos nas mãos de um Perito, que pode fazer as coisas cooperarem juntamente pa­ra o bem de todos nós e, por isso, não precisamos ficar ansiosos. Os caminhos de Deus são melhores do que os nossos caminhos, e podemos colocar todos os nossos fardos sobre o Senhor. Maria precisa ver sua vida no contexto dos propósitos amorosos de Deus,

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delineados para ela, e dessa forma, poderá liberar-se de preocu­pações que hoje a perturbam.33

33 Gary Friesen está no caminho certo ao ver a vontade de Deus e descrevê-la em termos dinâmicos, e de desenvolvimento. Contudo, ele estraga todo o efeito, em minha opinião, ao prender-se à idéia de uma planta arquitetônica aprova­da, mas escondida de nós. Veja-se Decision Making and the Will o f God: A Biblical Alternative to the Traditional View (Portland: Multnomah Press, 1980)- Oxalá fosse outra alternativa mais consistente!

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Réplica de John Feinberg

CLARK PINNOCK APRESENTA-NOS UM EXEM PLO DE posição indeterminista. De forma global, seus conceitos poderiam ser caracterizados como arminianos, embora o conceito que ele faz de Deus evidentemente afasta-se das noções que em geral os arminianos mantêm. Embora eu discorde de grande parte do que ele diz em seu artigo, vou concentrar-me nos pontos mais críticos.

Um dos maiores problemas que sublinham todo o artigo é que a forma como Pinnock entende o livre-arbítrio, e a forma como ele o apresenta, constituem declaração sem comprovante, uma questão fechada pela presunção da verdade. Pinnock fala reitera- damente de “verdadeiro livre-arbítrio”, “livre-arbítrio significati­vo”, e “genuíno livre-arbítrio”, expressões com que ele define, é cla­ro, sua própria noção contracausal de livre-arbítrio, ou liberda­de. Ele se recusa a reconhecer qualquer outra noção de livre-ar- bítrio, nem mesmo como uma possibilidade. Assim, julga ele que o conceito de determinismo causai, automaticamente e por defi­nição, contradiz o conceito de livre-arbítrio (isto, no sentido em que emprego a palavra impossível no texto a seguir). Todavia, a explanação de Pinnock constitui um arrazoado sem provas, pois,

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como demonstrei, há uma forma de os deterministas falarem de livre-arbítrio. Minha intenção não é a de cometer o m esm o erro, isto é, afirmar que só minha noção de livre-arbítrio é a correta e a única possível; desejo, apenas, observar que ninguém tem o di­reito de monopolizar um debate, recusando-se a admitir que possa haver qualquer outra noção possível de livre-arbítrio, senão a sua própria noção, antes que as provas que favorecem outros concei­tos de livre-arbítrio tenham sido apresentadas.

Será que Pinnock de fato comete este erro de lógica? Vários exemplos bastarão para demonstrar que ele o comete mesmo. À p. 182. Pinnock apresenta, como prova do livre-arbítrio humano, o fato de as pessoas serem capazes de rebelar-se contra Deus. As­sim escreve ele: “Certamente não nos é possível acreditar que Deus planejou em segredo nossa rebelião contra Ele. É certo que nossa rebelião é prova de que nossas ações não são determinadas, mas significativamente livres” (grifo meu). Aqui está uma ilustração ób­via do problema. De acordo com Pinnock, se as ações forem de­terminadas (não importa que haja várias formas de determinis­mo), tais ações não podem ser significativamente livres. Mas, de acordo com Pinnock, que é livre-arbítrio significativo? Obviamen­te, nada que se relacione com o determinismo causai, mas, isto vem justamente demonstrar meu ponto de vista: Pinnock encerra a questão arbitrariamente! Mais adiante, às páginas 182 e 183, Pin­nock argumenta que não podemos ser moralmente responsáveis por nossas ações, a menos que tais ações “não sejam determina­das, nem interna nem externamente” (p. 182). Quando Deus nos condena por nossos pecados, é que cometemos “ações para as quais não havia condições anteriores que as tornassem certas e de­terminadas — ações resultantes de escolhas genuínas de agentes his­tóricos” (p. 182). Aqui, outra vez, o mesmo problema é evidente. Pinnock deixa bem claro que se as ações forem determinadas por um fator interno, ou externo, em relação ao agente, de tal manei­ra que as condições prévias tornem as ações certas, o agente não pode ter livre-arbítrio genuíno. Outra vez a questão é fechada ar­bitrariamente, visto que, como demonstrei, é pelo menos possível que a noção de livre-arbítrio do determinista seja uma noção ge­nuína de livre-arbítrio. Finalmente, ao resumir seu conceito de li­berdade, Pinnock argumenta que se Deus controla e prevê todas as coisas, não pode haver livre-arbítrio para as criaturas. Depois, ele escreve o seguinte: “Não existe lugar para o tipo de livre-arbítrio

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de que a Bíblia nos fala, se houver um Deus que sabe e /ou con trola todas as coisas, num presente desligado do tempo” (p.Estas declarações giram em círculo, de duas maneiras. Primeira mente, é óbvio que para Pinnock o determinismo causai não p0_ de misturar-se com o livre-arbítrio, razão pela qual afirma que não pode haver livre-arbítrio e controle de Deus, simultaneamente. To­davia, a argumentação de Pinnock gira em círculo, porque presu­me que o conceito do determinista sobre o livre-arbítrio é algo im­possível. Em segundo lugar, ele presume que a noção bíblica de livre-arbítrio é o livre-arbítrio contracausal. É certo que isto está implícito na afirmação que citei. Todavia, visto que os escritores bíblicos apenas dizem que as pessoas têm livre-arbítrio, mas não especificam o tipo de livre-arbítrio, por que alguém haveria de con­cluir que se trata do livre-arbítrio contracausal, a menos que esse alguém já haja presumido que este tipo é o único tipo existente de livre-arbítrio? Tenho certeza de que Pinnock não percebe, de m a­neira nenhuma, que vai encerrando a questão em seu artigo, açam- barcando a verdade arbitrariamente, como também tendo certe­za de que, não sendo seu conceito de livre-arbítrio o único con­ceito possível, Pinnock comete reiteradamente o erro de argumen­tar em círculo.

O segundo problema que encontro no artigo de Pinnock é seu relacionamento com as Escrituras. Por exemplo, afirma Pinnock que Deus voluntariamente decidiu autolimitar o exercício de Seu próprio poder, a fim de conceder-nos o tipo de livre-arbítrio que desfrutamos (p. 185). Leio a declaração, e fico esperando, em vão, que ele indique a passagem bíblica que diz que Deus fez tal coisa. Talvez Pinnock pense que a realidade do livre-arbítrio humano seja uma prova de que Deus deve ter limitado Seu próprio poder. To­davia, é claro que quando uma pessoa afirma que temos livre- arbítrio, tal pessoa não informa automaticamente que tipo de livre- arbítrio, nem prova que Deus tenha autolimitado Seu poder, a me­nos que presuma que se de fato temos livre-arbítrio, este deva ser do tipo indeterminístico. Seja como for, este é apenas um exem­plo em que o apoio escriturístico específico teria ajudado muito; porém, nenhum apoio é dado.

Por outro lado, há casos em que parece que Pinnock deixa de lado algumas passagens importantíssimas das Escrituras. Por exem­plo, nas pp. 184 e 185 Pinnock escreve o seguinte: “A Bíblia não nos fornece o retrato de um Deus determinador de todas as coisas, mas

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de um Deus que abre espaço para os seres humanos, e aceita as conseqüências, boas e más, dessa decisão.” Onde encontramos is­so na Bíblia? É certo que não em Ef. 1:11! Posteriormente, Pin­nock afirma (p. 187) que “o teísmo clássico presume que a von­tade de Deus é sempre e invariavelmente feita. Contudo, tal pre­sunção não é escriturística. E introduz problemas enormes, de todo tipo, na teologia e na vida”. S e , ao dizer vontade de Deus, Pinnock quer dizer vontade preceptiva de Deus, concordo que nem sem­pre a vontade dEle é feita. Por outro lado, se o que Pinnock quer dizer (e estou certo de que é isso mesmo que ele tem em mente, pelo conteúdo geral de seu artigo) é que a vontade decretatória de Deus nem sempre é feita, então, eu discordo. Meu ponto central é que se Pinnock está se referindo a um decreto de Deus que está sendo executado, como pode afirmar que tal idéia é anti-escriturística, em face de passagens como Efésios 1:11? Francamente, gostaria de vê-lo analisar tais passagens escriturísticas, mas ele não o faz.

Em terceiro lugar, tenho um problema fundamental com to­dos os conceitos de livre-arbítrio, e o indeterminismo de Pinnock não o resolve. Pinnock afirma (p. 181) que muitos fatores e variá­veis entram no processo de tomada de decisão. Entretanto, é bem claro para Pinnock que tais fatores não influem de modo decisi­vo na orientação da vontade nesta ou naquela direção, porque tal ocorrência, na opinião dele, elimina o livre-arbítrio. Nas páginas 182 e 183 explicitamente declara que a responsabilidade moral é eliminada, se as ações são determinadas de modo interno, ou ex­terno, e que para um ato ser livre ele não pode ser considerado cer­to (que acontecerá) por nenhuma condição que lhe antecede. So- mando-se tudo isto, chego à compreensão de seu significado: Em­bora haja fatores que influem na tomada de decisões, nenhum de­les influencia tanto, a ponto de determinar tais decisões, ou de fa­zer com que sejam consideradas fatos reais. Tudo isto é bagagem padrão arminiana/indeterminista e constitui, sem dúvida, uma explanação do livre-arbítrio. Meu problema é que jamais pude compreender como é que a vontade escolhe algo, se ela não esti­ver decisivamente inclinada numa determinada direção. Se me dis­serem que nós simplesmente escolhemos, sem uma razão decisi­va, gostaria de saber como isso acontece. Será que agimos a es­mo? Então, nesse caso, que é do “precioso” livre-arbítrio? Será que agimos movidos por uma razão desconhecida? Então, no fim de contas, somos causalmente determinados. Não encontro em Pin-

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nock uma explicação sobre como um agente chega a escolher al­go, sem que haja uma razão decisiva para essa escolha, isto é, um motivo para tomar esta ou aquela alternativa. Só encontro decla­rações de que a realidade é assim.

Em quarto lugar, preocupa-me muito o conceito que Pinnock tem sobre Deus; o espaço exíguo permite apenas um breve comen­tário sobre um aspecto apenas desse conceito. Afirma Pinnock (veja-se, por exemplo, p. 178) que embora os planos específicos de Deus possam ser frustrados pelo livre-arbítrio humano, Deus pode ter certeza de que Seus planos gerais não serão frustrados. Toda­via, levando em consideração o conceito de Pinnock de livre- arbítrio contracausal, Deus jamais pode garantir que Seus pla­nos específicos e Seus planos gerais venham a ser executados, visto que qualquer coisa que fosse necessária para a execução de tais planos (gerais ou específicos) eliminaria o livre-arbítrio. Levan­do em consideração o livre-arbítrio contracausal, uma pessoa, ou um grupo de pessoas podem sempre fazer algo diferente daquilo que Deus quer que seja feito e assim transtornar os planos de Deus, quer sejam específicos ou gerais.

Para terminar, fico perturbado diante da negação que Pin­nock faz da presciência de Deus, quanto aos acontecimentos fu­turos, embora ele consiga ver, penso eu, de modo correto, as im­plicações do livre-arbítrio contracausal no que tange à presciên­cia. Embora se possa dizer muita coisa a respeito desse assunto, comentarei apenas a afirmação de Pinnock segundo a qual as pre- dições proféticas não comprovam a presciência divina do futuro. Argumenta Pinnock que tais profecias não comprovam que Deus sabe tudo a respeito do futuro, porque “alta porcentagem das pro­fecias pode ser explicada mediante um dentre três fatores: anún­cio antecipado daquilo que Deus pretende fazer, profecias condi­cionais que deixam os resultados em aberto, e predições baseadas no exaustivo conhecimento de Deus sobre o passado e o presente” (pp. 191 e 192). Examinemos cada menção individualmente. Quan­to à primeira, mesmo que muitas das profecias são anúncios de Deus daquilo que Ele pretende fazer, de que forma esse fato com­prova a afirmativa de Pinnock? Se Deus nos diz o que Ele pretende fazer, então o que Ele disse não se cumprirá? E se Deus pretende fa­zê-lo, por que não saberia Ele de antemão o que pretende fazer? Se aquilo que Deus pretende fazer não será feito, então, que é que Pinnock quer dizer ao afirmar que Deus pretende fazer algo? Se­

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rá que quer dizer que Deus está apenas manifestando Seu desejo a respeito de algo que poderia acontecer? Se assim for, fica difí­cil crer que quando Deus predisse, através dos profetas, o primei­ro advento de Cristo, por exemplo, que Ele estava apenas mani­festando algo que Ele esperava viesse a acontecer. Se Deus nos diz o que pretende fazer, Ele está nos dizendo o que acontecerá, e se Ele pretende fazê-lo, sabe que o fato acontecerá. A primeira indi­cação de Pinnock não nos leva a parte alguma.

Tenho diversas objeções contra a segunda sugestão de Pin­nock. Fica difícil concordar com sua declaração, visto que ele não fornece exemplos de profecias condicionais que deixam os resul­tados em aberto. O argumento dele fica ainda mais difícil de se engolir em face de todas as profecias que não parecem conter quaisquer elementos condicionais. Por exemplo, onde estão as con­dições que deixaram em aberto (acontecerá ou não?) o segundo advento de Cristo, ou o julgamento final? Quando Pinnock afir­ma que grande parte das profecias é condicional, dependendo seu cumprimento daquilo que vai acontecer, fico imaginando que pro­fecias tem em mente.

Além do mais, se as profecias são condicionais, dependen­do seu cumprimento daquilo que ainda vai acontecer, de que for­ma podem ser consideradas profecias do futuro? Se o resultado é deixado em aberto, como se poderá dizer, então, que o resulta­do foi profetizado? E ainda há mais: Meu problema fundamen­tal é saber o que significa a expressão “as profecias são condicio­nais”, porque Pinnock não nos explica. Se significa que é preciso que as condições ocorram, para que o evento profetizado possa acontecer (nesse caso, o resultado final, a partir do evento, fica em aberto), a coisa tem sentido. Contudo, nem assim há prova de que Deus não sabe de antemão o evento que vai ocorrer, nem os meios (condições) determinantes de sua ocorrência. Se, por profecia con­dicional, Pinnock quer dizer que certo evento vai ocorrer, o qual em seguida estabelecerá condições, a partir das quais inúmeras al­ternativas de resultados poderão ocorrer (o resultado ficou em aberto), tal conceito também deixa de ajudar a argumentação de Pinnock. Será que isto não indica, pelo menos, que Deus conhe­ce determinado evento futuro, que foi profetizado, o qual estabe­leceria condições para qualquer fato que viesse a acontecer?

Pinnock afirma que o terceiro grupo de profecias pode ser ex­plicado pelo conhecimento exaustivo de Deus quanto ao passa­

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RÉPLICA DE JOHN FEINBERG 205

do e o presente. Esta opinião enfrenta dois problemas. Em primei­ro lugar, mesmo que isto fosse verdade, será que tal fato torna o futuro menos certo, ou menos conhecido por Deus (coisas consi­deradas impossíveis, segundo o ponto de vista de Pinnock sobre o livre-arbítrio)? Todavia (este é o segundo problema), será que esta sugestão não implica, essencialmente, em que o futuro emerge das condições do presente e do passado? E não é isto que subs­tancia a tese de algumas das mais severas formas de determinis­mo? Assim sendo, se Pinnock estiver certo quanto a esta terceira categoria de profecias, na verdade ele arranjou um argumento fa­vorável a uma forma de determinismo forte.

Resumindo: Embora eu aprecie o fato de Pinnock ter enca­rado honestamente as implicações decorrentes de seu ponto de vis­ta sobre o livre-arbítrio, em relação à presciência divina, perma­neço completamente não convencido de que suas afirmações a res­peito das profecias eliminam quaisquer problemas decorrentes de sua opinião de que Deus não conhece o futuro. Além de tudo, em face de minhas outras convicções doutrinárias, permaneço não convencido no que concerne à posição global de Pinnock.

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Réplica de Norman Geisler

E M PRIM EIRO LUGAR, CONCORDO COM PINNO CK quando ele observa que “em última análise, o debate neste livro gira em torno da natureza do teísmo cristão” (p. 188). Em segun­do lugar, ele está certo ao observar que “o teísmo clássico presu­me que a vontade de Deus é sempre e invariavelmente feita” (p. 187). Isto porque o teísmo clássico, como era aceito pelos teólo­gos medievais e reformados, aceita os atributos da natureza de Deus negados por Pinnock, os quais incluem a imutabilidade, a simplicidade, a eternidade e a infalibilidade da presciência. Em ter­ceiro lugar, Pinnock manteve alguns elementos do conceito clás­sico de Deus. Concordo com ele, de fato, em que “Deus existe por Si próprio, independentemente da criação, e... chamou o mundo à existência mediante um ato livre e soberano” (p. 177). Em quar­to lugar, dou pleno apoio ao julgamento de Pinnock, segundo o qual a aceitação de qualquer hipótese de antinomia supra-racional, para explicar-se o livre-arbítrio e a soberania, é um preço elevado demais a ser pago. Em quinto lugar, concordo com o entendimento básico da natureza de uma decisão livre, como sendo autodeter- minativa, a qual se opõe à forma de determinação divina (causa­lidade), proposta por Feinberg.

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A maior parte de minhas diferenças com Pinnock resulta de sua rejeição do conceito clássico de Deus. Em primeiro lugar, is­to explica por que ele é dissidente do ponto de vista historicamente ortodoxo da infalibilidade (e inerrância) das Escrituras.1 Se o fu­turo não pode ser conhecido infalivelmente, de antemão, por Deus, como acredita Pinnock, então nem mesmo as predições bíblicas feitas por Deus são infalíveis. E mais, se Deus não puder co­nhecer o futuro com certeza, até mesmo o arminianismo tradicio­nal se torna algo impossível, porque os arminianos acreditam que a predestinação se baseia na presciência infalível de nossas ações livres. Assim sendo, se a noção de Pinnock estiver correta, no sen­tido histórico, quanto à natureza de Deus, ele não pode ser, en­tão, nem mesmo um arminiano!

Em segundo lugar, a opinião de Pinnock a respeito de Deus rejeita o teísmo clássico, por uma perspectiva mais neoclássica, na tradição de Whitehead, Hartshorne e Ogden.2 De acordo com es­ta perspectiva, Deus é temporal, mutável, falível e complexo, em Sua natureza. Entretanto, quando se aceitam tais mudanças tão radicais no conceito clássico de Deus, toda a estrutura interrela- cionada da teologia historicamente ortodoxa entra em colapso. É minha profunda convicção que este preço é elevado demais para aquilo que o próprio Pinnock chamou de “namoro temporário com um Deus temporal”.

Em terceiro lugar, há problemas sérios na perspectiva neo­clássica de Deus. Se Deus é temporal, Ele deve ser também espa­cial, visto que tempo e espaço estão interrelacionados. Se Deus é um Ser no tempo-espaço, está sujeito à entropia (degeneração), como está todo o universo no tempo-espaço. Além disso, se a na­tureza de Deus estiver limitada pelo espaço e pelo tempo, Seus pen­samentos não podem viajar, então, mais rápidos do que a luz — a velocidade máxima de qualquer ser no universo delimitado pe­

1 Veja-se Rex A. Koivisto, “Clark Pinnock and Inerrancy: A Change in Truth Theory”, Journal o f the Evangelical Theological Society 24, n° 2 (junho de 1981): 139-151.2 Quanto a uma crítica do teísmo neoclássico (teologia processual) veja-se o que escrevi em “A Teologia de Processo”, em Stanley N. Gundry, Teologia Con­temporânea (São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1983), pp. 193-220; e em “Pro- cess Theology and Inerrancy”, em Challenges to Inerrancy: A Theological Res­ponse, ed. Gordon R. Lewis (Chicago: Moody Press, 1984), pp. 247-284.

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RÉPLICA DE N O R M A N GEISLER 209

lo espaço-tempo.3 Todavia, se as coisas são assim, Deus não po­deria nem mesmo dar orientação geral (menos ainda providência específica) ao universo. Ele não seria capaz de abranger todo o uni­verso num dado momento, como os teístas neoclássicos inconsis­tentemente afirmam que Deus pode fazer. Para coroar tudo isto, se Deus é identificado com o universo do espaço-tempo, Ele deve ter tido, então, um começo, visto que se pode demonstrar cienti­ficamente que o universo do espaço-tempo teve um começo.4 Fi­nalmente, se este Deus neoclássico teve um começo, Ele não é um Criador, mas apenas uma criatura. Contudo, visto que Pinnock crê que Deus criou o mundo do nada, deveria logicamente rejei­tar este conceito neoclássico de Deus, inclusive o atributo da tem- poralidade. Se Deus criou o mundo temporal, isto significa que Deus está além do tempo. Por outro lado, se Deus é temporal, por natureza, Ele não criou, então, o universo temporal todo. Ele não pode criar a Si mesmo!

Em quarto lugar, Pinnock argumenta que a oração é compro­vante de que o futuro está aberto, e não fechado. Todavia, isto ape­nas confunde a visão eterna de Deus (que é completa) com nossa visão (que não é completa). Deus determinou todas as coisas, po­rém determinou também que a oração seria um meio para atingir- se alguns fins. Tal fato não prova, de maneira alguma, que não es­tamos livres para orar. Deus sabia quem iria orar livremente, quan­do Ele determinou de antemão, que iria usar a oração para exe­cutar Seus planos, e atingir Seus fins. Dessa forma, está aberta diante de nós a oportunidade de mudar o mundo através da ora­ção, porém, não pegaremos Deus de surpresa, quando orarmos.

Em quinto lugar, a afirmativa de Pinnock de que, em vista de Deus saber o tempo, Ele deve ser temporal, é confusa. Se isto fosse verdade, poder-se-ia também argumentar (erradamente) que em vista de Deus conhecer as criaturas, Ele deve, então, ser cria­tura. Deus sabe a sucessão temporal, mas isto não significa que Ele sabe como os seres temporais o sabem. Trata-se de um antro- pocentrismo injustificável. Além disso, é impossível que um Ser independente, como Pinnock diz que Deus é, saiba as coisas de modo dependente. Deus deve saber as coisas de acordo com Seu

3 Veja-se Royce Gruenler, The Inexhaustible God (Grand Rapids, Mich.: Ba­ker, 1983), pp. 75, 764 Robert Jastrow, God and the Astronomers (New York: Norton, 1978), p. 14.

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próprio Ser, que até mesmo Pinnock admite tratar-se de um “Ser ontológico”, diferente do mundo temporal (p. 177). Assim, Deus sabe o que os seres dependentes, temporais, sabem, porém, sabe- o de maneira bem diferente.

Em sexto lugar, a confusão na perspectiva neoclássica de Deus parece causada pela incapacidade de fazer distinção entre os atri­butos de Deus e as atividades de Deus. A natureza de Deus está acima do tempo, porém, os atos de Deus estão no tempo. Deus é eterno, porém, Ele realiza coisas temporais. Daí dizer-se que Deus age desde a eternidade, mas os resultados aparecem no tempo.

Além do mais, visto que as ações do Deus eterno ficam con­tinuamente manifestas no mundo temporal, é inteiramente falsa a declaração de que um Deus independente do tempo não é pro­dutivo nem dinâmico. As ações de Deus são perpetuamente pro­dutivas. Todavia, um Deus eterno não pode ser reduzido às Suas ações temporais, como um Criador não pode ser reduzido à Sua criação. Pinnock admite que Deus é o Criador não-criado de um mundo que não é não-criado. Se assim é, Deus pode ser a causa eterna daquilo que não é eterno. É lógico que Deus age no tem­po; isto, porém, não faz que Sua essência fique dependente do tem­po, como também, a criação de seres dependentes não faz que Deus Se torne um ser dependente.

Em sétimo lugar, por ironia, Pinnock não evita o dualismo grego que desaprova. O moderno pai desse conceito neoclássico, Alfred North Whitehead, admitia que sua perspectiva era apenas uma atualização de Platão.5 Em face da reconhecida origem gre­ga deste conceito, é bastante estranho, na verdade, que Pinnock rejeite a conceituação clássica, só porque é grega! Esta queixa é um velho fantasma freqüentemente solicitado, quando alguém de­seja rejeitar algum aspecto de teologia ortodoxa. Contudo, já che­gou o momento de banir os estereótipos “ad hominem”, as cari­caturas e fantasmas que procuram atacar a perspectiva clássica, ortodoxa, de Deus, e revelar a dissidência radical que estas pers­pectivas neoclássicas oferecem, contra o EU SOU de Moisés, de Jesus, de Agostinho, de Aquino, de Calvino, de Lutero e de Wes- ley. As pessoas têm o direito, todo o direito, de desviar-se quanto queiram do conceito ortodoxo, contudo, não têm o mínimo direito de auto-considerar-se ortodoxas.

5 Veja-se Alfred North Whitehead, Process and Reality (New York: Harper and Row, 1960), pp. 63, 68, 70, 129.

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RÉPLICA DE N O RM AN GEISLER 211

Em oitavo lugar, há outros problemas envolvendo a perspec­tiva clássica. Pinnock acredita na vitória final de Deus sobre o mal. Entretanto, sua perspectiva neoclássica de Deus coloca limitações estritas sobre aquilo que Deus pode predizer e realizar. De fato, Deus não pode predizer infalivelmente nenhum evento futuro que envolva criaturas dotadas de livre-arbítrio. Então, como é que Pin­nock pode ter certeza de que Deus vencerá o mal, no fim? De que maneira isso poderá ser algo mais que uma esperança, ou um de­sejo (freudiano)? Disse uma vez William James: “O mundo é mui­to mais rico por haver nele um diabo, desde que mantenhamos um pé em seu pescoço? 6 Todavia, se Deus não é onipotente, e se Deus não é amor, no sentido clássico, não pode haver qualquer garan­tia. Um articulista admitiu que o Deus neoclássico “precisa ficar esperando, com a respiração suspensa, até que a decisão (huma­na) seja tomada”.7 Pinnock e todos quantos adotam esta perspec­tiva devem suspender a respiração, também, enquanto todos quan­tos abraçam o Deus que conhece tudo: “Desde o princípio anun­cio o que há de acontecer” (Is. 46:10), podem livremente dar um longo suspiro de alívio.

O que está em jogo, aqui, não é um debate intramuros, a res­peito de predestinação e livre-arbítrio. De fato, toda a estrutura doutrinária do cristianismo ortodoxo, seja calvinista ou arminia- na, está revestida com estas verdades a respeito da natureza do Deus dos cristãos. Em vista disto, ficamos estarrecidos em face de um Pinnock que se diz perplexo porque “eruditos conservadores são relutantes em abandonar a estrutura clássica” (p. 187). Na ver­dade, a razão é muito simples: abandonar o teísmo clássico sig­nifica abandonar a verdadeira base das doutrinas ortodoxas. Pin­nock deveria preocupar-se com isto, bem como todos quantos le- rem este diálogo.

6 William James, Varieties ofReligious Expeiience (New York: Mentor Books, 1958), p. 55.7 Bernard Loomer, “A Response to David R. Griffin”, Encounter 36, n“ 4 (ou­tono de 1975): 365.

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Réplica de Bruce Reichenbach

H Á BEM POUCA COISA COM QUE DISCORDO, N A APRE- sentação teológica de Pinnock, excetuando-se a forma como esse autor trata a presciência de Deus. Ele apresenta de modo claro e direto a perspectiva da soberania de Deus, como algo que não pode ser entendida segundo a analogia do dono de fantoches, que ma­nipula os barbantes. Ele enxerga, corretamente, que embora seja imutável em Sua essência, Deus Se relaciona dinamicamente com o mundo que criou, mundo que permanece verdadeiramente aber­to ã ação humana, e à importantíssima intervenção divina.

Quanto ao ponto teológico em que discordamos, não se tra­ta de má definição da onisciência de Deus, da parte de Pinnock. Ele observou, com acerto, que a onisciência de Deus deve ser de­finida paralelamente à onipotência de Deus. Assim como Deus é onipotente, no sentido que Ele pode fazer tudo que não seja ab­surdo, ou contraditório, Ele é onisciente no sentido que sabe tu­do quanto é cognoscível. Nossa divergência relaciona-se com aqui­lo que é cognoscível. Pinnock afirma que em face de os atos livres, futuros, não poderem ser conhecidos, o fato de Deus ignorá-los não

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compromete Sua onisciência. Mas, por que os atos livres, futuros, não podem ser conhecidos? Pinnock argumenta como segue:

1. Atos livres, futuros, são eventos que ainda não aconteceram.2. Tudo quanto ainda não aconteceu não pode ser conhecido antecipadamente.3. Portanto, os atos livres não podem ser conhecidos antecipa­damente (p. 191).

Contudo, a declaração número 2 não é verdadeira. O mero fato de um certo evento não ter ainda ocorrido não significa que não possa ser conhecido antecipadamente. Por exemplo, o eclipse so­lar de amanhã ainda não ocorreu; entretanto, o astrônomo sabe antecipadamente que ele vai ocorrer.

Pinnock poderia refazer sua argumentação, levando em con­sideração eventos que podemos conhecer de antemão, porque de­correm necessariamente de leis naturais que conhecemos. Pode­ria argumentar, por exemplo, como segue:

4. Ações livres, futuras, são eventos que ainda não aconteceram, e que não decorrem, necessariamente, de condições causais an­teriores, ou de leis naturais.5. Os eventos que ainda não aconteceram, e que não decorrem necessariamente de condições causais prévias, nem de leis na­turais, não podem ser conhecidos antecipadamente.6. Portanto, as ações livres, futuras, não podem ser conhecidas antecipadamente.

Infelizmente, a declaração número 5 também é falsa, como pre­missa. Por exemplo, o fato de eu ter decidido tomar meu desje- jum em casa, hoje pela manhã, não é decorrente, necessariamen­te, de condições causais prévias, nem de um jogo de leis físicas ou naturais; entretanto, eu ainda poderia ter sabido, ontem, que isto haveria de ocorrer, com base nas evidências de meus padrões com- portamentais do passado. Tais padrões de comportamento, toda­via, não constituem causa para que eu tome o desjejum em casa, nem lei natural concernente à minha decisão e escolha de um certo lugar para comer, embora provejam uma justificativa para minha crença em que eu iria tomar o desjejum em casa.

Em suma, Pinnock não embasou sua declaração de que não se pode conhecer as ações futuras de pessoas livres e, por isso, não demonstrou que este tipo de conhecimento é inexeqüível para Deus.

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RÉPLICA DE BRUCE REICHENBACH 215

Pinnock apresenta outro argumento em apoio à sua carac­terização particular da presciência divina: há contradição, diz ele, entre a presciência divina e o livre-arbítrio humano. Argumentei em algum lugar, neste livro, que tal declaração é falsa; que pen­sar que existe contradição traz confusão entre a ordem das cau­sas (aquilo que faz surgir o evento) e a ordem do conhecimento (aquilo em que se baseia o conhecimento do evento). Visto que Pinnock não elabora argumentação para demonstrar esta contra­dição, simplesmente remeto o leitor ao meu artigo sobre o assunto.

Para finalizar, toco noutro tópico: Pinnock caracteriza a so­berania de Deus em termos da auto-existência de Deus, de Seu ato de criação (tanto o ato original como o de sustentação), e do es­tabelecimento final do Seu reino. Diz ele que Deus inclina Sua cria­ção de maneira a ser capaz de atingir Seus objetivos últimos. Co­mo é que Deus a inclina, e até que ponto? Pinnock rejeita, acer- tadamente, a perspectiva da soberania em que Deus determina, sem perigo de falha mas com toda certeza, tudo quanto aconte­ce, em obediência a uma espécie de planta arquitetônica eterna. Todavia, talvez se pudesse dizer muito mais acerca dessa linha fi­níssima que separa o Deus ativo na criação — um Deus que dese­ja, que planeja, que tem poder para executar Seus planos — e a hu­manidade, criada livre, a fim de cooperar com Deus, ou a resistir a esse Deus.

Mais especificamente, a perspectiva escriturística também es­tende a soberania de Deus ao indivíduo, em sua existência atual. Parece que Pinnock reconhece isto ao observar que Deus colocou Alfredo na América do Norte (p. 193), num país onde a prospe­ridade é possível. De modo semelhante, sugere que Deus tem pro­pósitos plenos de amor, para Maria, e que ela pode colocar-se “nas mãos de um perito” (p. 196). Isto levanta a questão quanto ao grau em que Pinnock vê Deus em atividade, de maneira soberana e pro­videncial, em nossas vidas aqui.

O leitor poderia replicar que pedir especificações mais cla­ras é pedir muito. Penso que não. Nós, crentes, procuramos conhe­cer a vontade e os planos de Deus para nossas vidas, e pedimos- Lhe que nos conduza por caminhos que sejam consistentes com tais planos. A discussão deste fato é o que transforma a mera teo­logia abstrata na teologia viva que guia nossa existência.

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COLABORADORESDavid Basinger atualmente é professor assistente de filosofia, no Roberts Wesleyan College, em Rochester, Minnesota. Obteve seu M.A. e Ph.D. em filosofia na Universidade do Nebraska. Escre­veu inúmeros artigos para vários órgãos e revistas, sendo co-autor, com seu irmão Randall, de um novo livro sobre milagres.

Randall Basinger exerce, agora, funções de professor assistente de filosofia no Messiah College, em Grantham, Pennsylvania. Ob­teve seu M.A. em filosofia da religião no Trinity Evangelical Di- vinity School, e seu Ph.D. em religião na Northwestern Univer- sity. Escreveu inúmeros artigos para vários órgãos e revistas, sen­do co-autor, com seu irmão David, de um novo livro sobre mila­gres.

John S. Feinberg é professor assistente de Teologia Bíblica e Sis­temática na Trinity Evangelical Divinity School de Deerfield, Il­linois. Formou-se pela University of Califórnia, Los Angeles (B.A.), pelo Talbot Theological Seminary (M. Div.), pela Trinity Evangelical Divinity School (Th.M.), e pela University of Chica­go (M.A., Ph.D.). Escreveu inúmeros artigos para vários órgãos teológicos, e várias antologias e publicou um livro: Theologies and EviLNorman L. Geisler é autor, ou co-autor de mais de vinte livros, incluindo Introduction to Philosophy, Philosophy ofReligion, Mi- racles and Modern Thought, The Roots o fE vil e Christian Apo- logetics. Obteve seu B.A. e M.A. do Wheaton College, seu Th.B. do William Tyndale College, e seu Ph.D. (em filosofia) da Loyola University. Trabalhou como Chefe do Departamento de Filoso­fia da Religião no Trinity Evangelical Divinity School, sendo, atualmente, professor de teologia no Dallas Theological Seminary.

Clark H. Pinnock atualmente é professor de teologia no McMaster Divinity College, em Hamilton, Ontario. Anteriormente, lecionou no Regent College, no Trinity Evangelical Divinity School, no New Orleans Baptist Theological Seminary, e na University of Man-chester, onde obteve seu doutorado em Novo Testamento. Publi-

’ i ■ ■ - — ,--------------------------------------------- --------------------------------------------;---------------------------.-------cou vários livros, inclusive Biblical Revelation, Reason Enough e The Scripture Principie. Já foi calvinista.

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COLABORADORES 217

Bruce R. Reichenbach é professor de filosofia no Augsburg Col­lege, em Minneapolis. Terminou seus estudos, formando-se pelo Wheaton College, tendo obtido seu doutorado na Northwestern University. Trabalhou como professor visitante no Morija Theo­logical Seminary de Lesotho, África, e no Juniata College. Além de vários artigos em vários órgãos e periódicos, publicou The Cos- mological Argument: A Reassessment, Is Man the Phoenix? A Study o f Immortality e Evil and a Good God.

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