PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES DO … · funcionamento dessas organizações e...
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FEAD
MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO
MODALIDADE: PROFISSIONALIZANTE
PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES PRÁTICAS DE FUNCIONAMENTO EM ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA DO TERCEIRO SETOR E OS FUNDAMENTOS DA
DOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITA
Daniella Francisca Soares e Silva
Belo Horizonte 2009
Daniella Francisca Soares e Silva
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DOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITADOUTRINA ESPÍRITA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Administração da FEAD, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Administração.
Área de concentração: Gestão, organização e mudanças
Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Gazzoli
Belo Horizonte FEAD 2009
iii
AGRADECIMENTOS
À Patricia Gazzoli, minha orientadora, que aceitou o desafio de orientar meu projeto, mesmo
estando à distância, e cuja contribuição foi fundamental para a consistência deste trabalho,
indicando caminhos e alertando para situações perigosas ou fora do escopo.
Ao meu pai, que me incentivou a continuar a caminhada em um momento muito tumultuado
em que pensei em desistir.
À minha mãe, pelo enorme carinho e atenção, e aos meus irmãos, pela compreensão nos
momentos de ausência.
Aos colegas da FEAD, especialmente à Jurema Suely de Araújo Nery Ribeiro, Leonardo
Pereira de Andrade e Cristiano Rodrigues Pinho, pelo aporte no atendimento às demandas das
disciplinas cursadas.
Às casas espíritas e à AME da cidade onde se desenvolveu o estudo, cujas contribuições
possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa. Em especial à casa espírita na qual foi
realizada a pesquisa em profundidade, onde dei os primeiros passos no estudo da doutrina
espírita, que é a grande inspiradora do tema deste trabalho.
iv
“Sei que meu trabalho é uma gota no oceano,
mas sem ele o oceano seria menor.”
Madre Tereza de Calcutá
(1910-1997)
v
RESUMO
O presente trabalho, desenvolvido nas organizações do terceiro setor ligadas às casas espíritas
de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, objetivou caracterizar o
funcionamento dessas organizações e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina
espírita em sua gestão. Para atender a esse objetivo foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa,
descritiva, constituída de três etapas: entrevista com o Presidente da Associação Municipal
Espírita; sondagem realizada junto a 12 casas espíritas da cidade e às quatro organizações de
fins sociais a elas ligadas; e um estudo de caso em profundidade em uma dessas organizações
de fins sociais. Os resultados da pesquisa apontam para a inexistência de uniformidade das
atividades sociais desenvolvidas pelas casas espíritas, e aponta também para a influência dos
princípios da doutrina espírita no funcionamento e gestão das organizações de fins sociais a
elas ligadas. Isso é viabilizado através de seus dirigentes, que devem ter vínculo com as casas
espíritas, e através da influência do grupo gestor da casa espírita nas decisões estratégicas da
organização de fins sociais. Percebem-se, nas organizações de fins sociais ligadas às casas
espíritas, práticas que concretizam a codificação kardequiana, sobretudo no que tange às Leis
do Trabalho, Sociedade, Amor, Justiça e Caridade e Liberdade. O poder e a influência das
casas espíritas sobre as organizações não se atrela, dessa forma, ao aporte de recursos
financeiros, que são obtidos, na maioria dos casos, através de parcerias com o poder público,
perante às quais as organizações defendem autonomia.
vi
ABSTRACT
This work, developed at the third sector organizations related to the Spiritist centers located in
a city in the great Belo Horizonte, aimed to describe how these organizations work and to
assess the influence of the fundamentals of the Spiritist doctrine on the way they are managed.
In order to meet this goal, a qualitative and descriptive research was developed which
consisted of three phases: an interview with the President of the Municipal Spiritist
Association; a survey carried out at 12 Spiritist centers of the city and at the 4 social
organizations related to them; and an in-depth case study within one of these social
organizations. The outcome of the research indicates the inexistence of any uniformity in the
social activities developed by the Spiritist centers and the existence of an influence exerted by
the principles of the Spiritist doctrine in the way in which the related social organizations
work and are managed. This influence is conveyed through the organization leaders, who
must have a bond with the Spiritist centers, and through the influence that the managing group
within the Spiritist center exerts on the strategic decisions of the social organization. Within
the social organizations related to the Spiritist centers there were practices in place that
materialize the Kardecist codification, particularly regarding Labor Laws, Society, Love,
Justice and Charity, and Liberty. Thus, the power and influence of the Spiritist centers on the
organizations is not linked to the contribution of financial resources, which in most of the
cases are obtained through partnerships with the public sector, from which the organizations
claim autonomy.
vii
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Organização do movimento espírita no Brasil...........................................39
FIGURA 2 – Organograma do Conselho Espírita Internacional.....................................42
FIGURA 3 – Organograma das organizações de fins sociais..........................................67
FIGURA 4 – Diploma de Honra ao Mérito “Mariinha Moreira”....................................98
FIGURA 5 – Placa referente a Destaque na Ação Social em 1996.................................99
FIGURA 6 – Medalha de Honra ao Mérito de 1996........................................................99
viii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Síntese das características gerais das organizações do terceiro setor ........30
QUADRO 2 – Síntese das particularidades de funcionamento das
organizações do terceiro setor ...................................................................31
QUADRO 3 – Ethos espírita brasileiro no estudo de alguns antropólogos.......................39
QUADRO 4 – Organização de fins sociais x projeto social..............................................47
QUADRO 5 – Instituições e projetos sociais mantidos pelas casas espíritas....................55
QUADRO 6 – Características das organizações do terceiro setor mantidas
pelas casas espíritas....................................................................................57
QUADRO 7 – Requisitos para ser atendido pelas instituições..........................................60
QUADRO 8 – Funcionários contratados e voluntários......................................................63
QUADRO 9 – Dirigente das instituições...........................................................................67
QUADRO 10 – Parcerias.....................................................................................................70
QUADRO 11 – Fonte de recursos financeiros.....................................................................73
QUADRO 12 – Gestão dos recursos financeiros.................................................................74
QUADRO 13 – Projetos sociais mantidos pelas casas espíritas..........................................75
QUADRO 14 – Relação entre atividade social/filantrópica e a doutrina espírita................79
QUADRO 15 – Relação de Projetos da Casa Espírita Cantinho de Amor..........................84
QUADRO 16 – Parcerias do Centro Educacional Viver....................................................103
ix
LISTA DE ABREVIATURAS
AME Aliança Municipal Espírita
APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
CEI Conselho Espírita Internacional
CEM Conselho Espírita Municipal
CEV Centro Educacional Viver
CFN Conselho Federativo Nacional
CLT Constituição das Leis Trabalhistas
CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
COFEMG Conselho Federativo Espírita de Minas Gerais
CRE/BARV Conselho Regional Espírita da Bacia do Alto Rio das Velhas
FEB Federação Espírita Brasileira
FEESP Federação Espírita do Estado de São Paulo
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FIA Fundo para Infância e Adolescência
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização
dos Profissionais da Educação
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
LBA Legião Brasileira de Assistência
MEC Ministério da Educação e Cultura
OSCIPs Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
PCA Programa de Complementação Alimentar
RITS Rede de Informações para o Terceiro Setor
SERVAS Serviço Voluntário de Assistência Social
SESC Serviço Social do Comércio
SETASCAD Secretaria de Estado do Trabalho, da Assistência Social, da Criança e do
Adolescente
x
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
1.1 Objetivos da pesquisa ............................................................................................... 13
1.2 Justificativas da pesquisa ......................................................................................... 14
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .......................................................................... 16
2.1 Terceiro setor ............................................................................................................ 16
2.1.1 Definições e origens ................................................................................................... 16
2.1.2 Gestão no terceiro setor ............................................................................................. 21
2.1.3 Problemas e desafios enfrentados por organizações do terceiro setor ..................... 27
2.2 Doutrina Espírita ...................................................................................................... 31
3 METODOLOGIA .................................................................................................... 49
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS .................................................... 54
4.1 Caracterização das instituições de terceiro setor estudadas ................................ 54
4.1.1 As casas espíritas e as organizações de fins sociais a elas ligadas: caracterização ... 54
4.1.2 Funcionários e voluntários ........................................................................................ 62
4.1.3 Dirigentes e estrutura hierárquica das instituições estudadas .................................. 66
4.1.4 Parcerias e recursos financeiros ................................................................................ 69
4.1.5 Projetos sociais desenvolvidos pelas casas espíritas ................................................. 74
4.1.6 Relação entre doutrina espírita e as atividades sociais das casas espíritas ............. 77
4.2 Constituição e funcionamento do Centro Educacional Viver, mantido pela Casa
Espírita Cantinho de Amor: um estudo de caso .................................................... 82
4.2.1 Histórico do Centro Educacional Viver ..................................................................... 83
4.2.2 Funcionamento e gestão da creche estudada............................................................. 90
4.2.3 Principais dificuldades enfrentadas pelo CEV .......................................................... 97
4.2.4 Relação entre o funcionamento e a gestão da organização e a doutrina espírita ... 107
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 110
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 115
APÊNDICE A ....................................................................................................................... 120
APÊNDICE B........................................................................................................................ 121
11
1 INTRODUÇÃO
O tema terceiro setor tem alcançado destaque na atualidade, sendo constantemente citado pela
mídia nacional, cada vez mais fazendo parte das políticas públicas, mobilizando recursos e
gerando oportunidades de trabalho. Historicamente, a presença do terceiro setor e de suas
práticas são notadas desde os séculos XVI e XVII, na Europa, América do Norte e América
Latina, inicialmente com caráter religioso ou político.
Segundo Fernandes (1997), o conceito de organização do terceiro setor é constituído por duas
negações: trata-se de uma instituição “não-governamental” (que não faz parte do governo, e
portanto não pode ser confundida com instituições de direito público) e que “não tem fins
lucrativos”. Embora essas organizações arrecadem recursos, não são geridas a partir da lógica
de mercado: os dividendos auferidos são reinvestidos nas próprias organizações e seus
dirigentes, muitas vezes, prestam serviços voluntários.
[...] pode–se dizer que o terceiro setor é composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental, que dão continuidade às práticas tradicionais de caridade, da filantropia e do mecenato e expandem o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil (FERNANDES, 1997, p. 27).
Soares (2005) relata que o terceiro setor é uma realidade no Brasil há décadas. Empresas,
igrejas e diversas organizações investem em ações que geram um significativo impacto social
O autor observa o seguinte:
A própria sobrevivência de amplas camadas da sociedade brasileira parece inexplicável, quando lemos os dados relativos à renda e sua absurda distribuição, sem atentar para os laços e canais invisíveis que se estabeleceram e consolidaram, ao longo de anos, propiciando fluxos imperceptíveis de recursos dos mais diferentes tipos, em direções insuspeitas, criando condições mais humanas e suportáveis para muitos grupos marginalizados e redefinindo o pacto social, reinvestindo na sociabilidade, lançando pontos para a integração ecumênica no campo da cidadania, revalorizando redes e conexões transversais, infundindo renovada e oblíqua legitimidade nas instituições públicas (SOARES, 2005, p. 11).
Albuquerque (2006) também chama a atenção para o importante papel desempenhado pelas
igrejas, especialmente a católica, na formação do terceiro setor no Brasil. As Santas Casas
12
representam as primeiras organizações sem fins lucrativos do país. Outras instituições ligadas
“a igrejas protestantes, espíritas e afro-brasileiras também têm desenvolvido papel importante
na conformação do setor no país, ainda que numericamente sejam menores”
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 34).
As organizações do terceiro setor enfocadas neste estudo situam-se em uma cidade da região
metropolitana de Belo Horizonte com aproximadamente 220 mil habitantes (IBGE, 2007), e
são mantidas por casas espíritas. Segundo dados da Aliança Municipal Espírita (AME) da
referida cidade, existem 13 casas espíritas nessa cidade. Algumas dessas casas espíritas
mantêm organizações ou projetos assistenciais; contudo, nem todos estão catalogados e nem
mesmo são conhecidos em sua totalidade pela AME. Devido à acessibilidade e à implicação
da autora no movimento espírita, as organizações do terceiro setor ligadas às casas espíritas
dessa cidade constituíram o objeto de investigação da presente pesquisa.
Para efeito deste estudo, é fundamental distinguir os termos “casas espíritas” e “organizações
do terceiro setor mantidas por casas espíritas”. As casas espíritas são locais onde os
seguidores da doutrina espírita se reúnem com o objetivo de estudar o Evangelho de Jesus e
os fundamentos da doutrina. Embora também exerçam papel assistencial, na medida em que
propiciam auxílio material e consolo espiritual para aqueles que buscam esses locais, essa não
é a sua finalidade principal (BIANCHINI, 2008). Segundo Pires (2008), a casa espírita
funciona como um centro de serviços, tanto no plano material como no plano espiritual, onde
há o esforço permanente de estudo evangélico puro, caracterizado por atividades de preces,
passes e doutrinação dos interessados.
Já as organizações do terceiro setor mantidas por casas espíritas são organizações
estruturadas, com um corpo de profissionais estável, de gestão relativamente autônoma, que
prestam serviços sem fins lucrativos, possuem objetivos sociais, e em grande parte são
mantidas também do ponto de vista material pela própria casa espírita. Essas organizações
são, por exemplo, as creches, escolas, asilos e hospitais que têm o objetivo de atender a
demandas da sociedade, configurando-se como organizações do terceiro setor.
13
Giumbelli1 (1998, apud Sampaio, 2004, p. 172) destaca “o incentivo à prática da caridade
como característico do Espiritismo Brasileiro [...]”. Segundo o autor, “de alguma forma a
atividade assistencial concedeu respeitabilidade ao movimento espírita ante a sociedade e as
instituições brasileiras”. Dentro da temática que envolve o papel das organizações religiosas
no terceiro setor, coloca-se como problema de pesquisa a seguinte questão:
Quais são as características de funcionamento das organizações do terceiro setor
mantidas por casas espíritas e qual a influência dos fundamentos da doutrina espírita
nas práticas adotadas por essas organizações?
1.1 Objetivos da pesquisa
Este estudo tem o objetivo geral de caracterizar o funcionamento das organizações do terceiro
setor mantidas pelas casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte
e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina espírita nas práticas dessas organizações.
O alcance do objetivo geral está diretamente relacionado aos seguintes objetivos
intermediários:
• identificar, na literatura existente, as práticas de funcionamento verificadas em
organizações do terceiro setor de caráter não-religioso;
• identificar as principais práticas de funcionamento adotadas pelas organizações do
terceiro setor mantidas pelas casas espíritas existentes em uma cidade da região
metropolitana de Belo Horizonte (Minas Gerais);
• analisar em profundidade o processo de criação de uma dessas organizações do
terceiro setor, e como ela tem se organizado e funcionado ao longo do tempo;
• estabelecer possíveis relações entre os princípios da doutrina espírita e as
características de funcionamento das organizações estudadas.
1 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998.
14
1.2 Justificativas da pesquisa
Esta pesquisa se justifica na medida em que o terceiro setor tem se destacado no cenário
brasileiro, devido a seu considerável crescimento nos últimos anos. Segundo Corrêa et al.
(2006), houve um aumento de 157% do número de organizações do terceiro setor no período
compreendido entre 1996 (105 mil organizações) e 2002 (276 mil organizações). Muitas
dessas organizações são ligadas à igreja, conforme esclarece Albuquerque (2006, p. 34): “se
considerarmos todas as organizações criadas ou mantidas por igrejas, veremos que elas
representam 38,6% das organizações no Brasil, uma para cada três existentes”.
Em agosto de 2003, o número de organizações do terceiro setor registradas no cadastro do
Conselho Nacional de Assistência Social2 era de 15.311 (SAMPAIO, 2004), mas apenas
6.545 possuíam o certificado de instituições filantrópicas. Dessas últimas, 460 (cerca de 3%)
utilizavam o termo espírita ou kardecista em sua denominação. Analisando esses dados,
conclui-se que as organizações do terceiro setor ligadas a casas espíritas no Brasil têm uma
parcela de participação que não pode ser desprezada, o que impõe um estudo mais
aprofundado sobre possíveis particularidades dessas instituições, o que deve ser objeto do
interesse de acadêmicos que se dedicam ao conhecimento e à exploração do tema “terceiro
setor”.
Acredita-se que este estudo seja relevante para as instituições de financiamento e para os
órgãos associativos e governamentais que trabalham diretamente com a questão do terceiro
setor, uma vez que devem conviver com essas organizações de fins sociais ou mesmo avaliá-
las. Portanto, deve ser de seu interesse compreender melhor tanto o perfil das instituições
ligadas à doutrina espírita como as características de sua gestão e seu modo de
funcionamento.
2 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Entidades registradas no CNAS. Disponível em <http://www.assistenciasocial.gov.br/iframe/cnas/cnas.htm>. Acesso em 21 de setembro de 2003.
15
O estudo é relevante também para as próprias organizações de fins sociais estudadas e para as
casas espíritas envolvidas. Evidenciar traços particulares do funcionamento de organizações
de terceiro setor mantidas por casas espíritas pode ajudar a identificar oportunidades de
melhoria, assim como erros repetidos que seriam prejudiciais ao cumprimento dos objetivos
das instituições sociais e das casas espíritas.
Por fim, o presente estudo contribui igualmente para a academia, na medida em que propicia o
estudo do terceiro setor e de suas práticas de gestão. Dessa forma, a pesquisa aqui apresentada
pode contribuir, do ponto de vista acadêmico, para ampliar o conhecimento sobre essa área do
conhecimento, o que pode ter como conseqüência a proposição de melhorias que venham a
aprimorar as práticas de funcionamento do terceiro setor.
A estrutura do texto é composta da fundamentação teórico a cerca do terceiro setor e da
doutrina espírita, apresentada no capítulo 2; da metodologia, abordada no capítulo 3; da
apresentação e análise dos dados da pesquisa, descritos no capítulo 4; e da conclusão,
apresentada no capítulo 5. O nome das casas espíritas e das organizações de fins sociais a elas
ligadas não foram revelados nesta pesquisa, sendo fictícios os nomes aqui utilizados.
16
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O referencial teórico deste projeto explora dois temas fundamentais para a elucidação do
problema de pesquisa. Primeiramente, como o objeto de estudo são organizações do terceiro
setor, aborda-se esse setor tanto em suas definições e características peculiares, como em sua
dimensão histórica e nos traços particulares de sua gestão e funcionamento, reconhecidos pela
literatura estudada. Em um segundo momento, são apresentados os fundamentos da doutrina
espírita, pois busca-se neste trabalho justamente identificar os traços particulares do
funcionamento de instituições do terceiro setor mantidas por casas espíritas, bem como a
influência da doutrina espírita no funcionamento dessas organizações.
2.1 Terceiro setor
2.1.1 Definições e origens
A definição de terceiro setor não é consenso no meio acadêmico, e mesmo as próprias
organizações desse setor não mantêm uma identificação com o termo (FISCHER;
FALCONER, 1998). Para efeito deste estudo buscou-se identificar conceituações do que seja
o referido setor, objetivando esclarecer a natureza das organizações pesquisadas, bem como
distingui-las do primeiro e segundo setores.
Segundo Resende (2006, p. 24), o primeiro setor (ou Estado) “é o ente com personalidade
jurídica de direito público, encarregado de funções públicas essenciais e indelegáveis ao
particular, tais como legislar; fiscalizar; aplicar justiça; dar segurança geral, etc”. O segundo
setor é “composto por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, encarregadas da
produção e comercialização de bens e serviços, tendo como escopo o lucro e o
enriquecimento do empreendedor” (idem, p. 25). Já o terceiro setor é “aquele que congrega as
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins econômicos (ou sem finalidade lucrativa) e que
prestam serviços de interesse coletivo” (idem, p. 25).
17
Tomando por base a metodologia adotada pelo Handbook in Nonprofit Institutions in the
System of National Accounts, Corrêa (2006, p.viii) define as organizações do terceiro setor
nas mesmas bases. Segundo a autora, são organizações:
privadas, não integrantes, portanto, do aparelho do Estado; sem fins lucrativos, isto é, organizações que não distribuem eventuais excedentes entre proprietários ou diretores e que não possuem como razão primeira de existência a geração de lucros – podem até gerá-los desde que aplicados nas atividades fins; institucionalizadas, isto é, legalmente constituídas; auto-administradas ou capazes de gerenciar suas próprias atividades; e voluntárias, na medida em que podem ser constituídas livremente por qualquer grupo de pessoas, isto é, a atividade de associação ou de fundação da entidade é livremente decidida pelos sócios fundadores.
Silva (2004, p. 38), em sua dissertação de mestrado, fez uma pesquisa sobre as definições de
terceiro setor elaboradas por diversos autores e concluiu, no mesmo sentido, que esse setor é
composto por organizações que possuem as seguintes características:
a) são não-governamentais, independentes do Estado; b) não têm fins de lucro ou benefícios particulares; c) são movidas por objetivos sociais, de transformação da sociedade e de melhoria da vida humana; d) são provenientes da iniciativa da comunidade em benefício da comunidade - ou seja, a iniciativa privada atua em benefício de um bem público; e) buscam o bem-estar da sociedade como um todo; f) utilizam intensamente o trabalho voluntário para concretizar seus objetivos; g) traduzem os valores de solidariedade e participação da comunidade.
Teodósio (2001a, p. 2) cita alguns exemplos de organizações que podem ser definidas como
terceiro setor: “associações comunitárias, organizações não-governamentais, instituições
filantrópicas, projetos de caridade, igrejas e seitas religiosas, fundações, organizações sociais,
projetos sociais desenvolvidos por empresas e sindicatos”. Conceitos como responsabilidade
social, cidadania empresarial e filantropia empresarial também estão associados ao terceiro
setor.
Os primeiros registros de instituições com a finalidade de prestar assistência aos
desamparados no Brasil são encontrados no ano de 1.543, com a Irmandade da Misericórdia,
que se expandiu pelo país como Santa Casa de Misericórdia, com o apoio da Igreja
(THEODORO, 2008). Portanto, a Igreja está diretamente relacionada às primeiras associações
filantrópicas e de assistência social no país (OLIVEIRA, 2005).
18
No período que compreende o descobrimento do Brasil até o século XVIII, a Igreja católica se
envolveu muito mais em ações sociais do que o Estado, e foi responsável pelo fornecimento
de serviços em dois importantes setores sociais: a saúde e a educação. O primeiro setor foi
atendido através das Santas Casas de Misericórdia, instituições filantrópicas renomadas no
país, que implantaram os primeiros hospitais no Brasil. O segundo setor foi contemplado pela
atuação da Ordem da Companhia de Jesus, através da qual os jesuítas implantaram o primeiro
sistema educacional brasileiro, ação que o governo faria apenas no final do século XVIII
(OLIVEIRA, 2005).
Landim3 (1993, apud OLIVEIRA, 2005) esclarece que, além dos católicos, os protestantes
que chegavam da Europa e Estados Unidos também se mobilizaram em organizações de fins
sociais, de forma independente do Estado, através da experiência adquirida em seus países de
origem. Os luteranos desenvolveram o cooperativismo, criando um ambiente de organização e
participação praticamente inexistentes em outras regiões do Brasil. Os presbiterianos,
metodistas, batistas e congregacionais difundiram as idéias do liberalismo, formando líderes
religiosos atuantes no trabalho social e educativo. Os espíritas e as religiões afro-brasileiras
também começaram a exercer ações de cunho social (OLIVEIRA, 2005).
Com a crise do Estado Liberal, aguçada em 1929, essa situação foi alterada, desenvolvendo-se
no país, pelo menos em teoria, o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), que consiste
numa tentativa de reaproximação entre o Estado e a sociedade nos âmbitos econômico, social
e cultural. A orientação do Estado era então a de contribuir para a solução dos inúmeros
problemas locais, regionais, nacionais e mundiais, propiciados pelo “aumento da pobreza, da
violência, de doenças, poluição ambiental e conflitos religiosos, étnicos, sociais e políticos”
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 23), decorrentes de alterações nos centros de poder, da
revolução dos sistemas de comunicação e do aumento da produção agrícola e industrial.
Na América Latina, somente na década de 1970 as organizações do terceiro setor recuperam
sua notoriedade, reemergindo com forte caráter político, voltadas para a redemocratização,
para “políticas sociais de desenvolvimento comunitário e para a execução de atividades de
3 LANDIM, Leilah. A invenção das ONGs: do serviço invisível à profissão. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993.
19
assistência e serviços nos campos de consumo, educação de base e saúde, entre outros”
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 23). De certa forma, a mobilização da sociedade civil (desta vez
contra o Estado autoritário), preparou o terceiro setor para a sua ampla atuação nos países
latino-americanos a partir dos anos 80, quando houve uma alteração significativa da realidade
latino-americana. Fortes crises econômicas e altos índices de inflação, acirrados por uma
política neo-liberal de desenvolvimento adotada pelos governos, agravaram a situação de
pobreza na América Latina. Em paralelo, testemunhou-se o aumento da informalidade na
economia e o descrédito dos governos junto ao Banco Mundial e às instituições internacionais
quanto ao emprego dos recursos destinados aos programas de desenvolvimento social,
situação que tornou não só propícia, mas necessária, a atuação de organizações do terceiro
setor junto às comunidades carentes de serviços.
Além disso, o crescimento do terceiro setor se deve igualmente aos seguintes fatores: à
amplitude e gravidade do que se chamou “crise do Estado”, em sua incapacidade de atender
às demandas sociais; ao aumento do número, da abrangência e das áreas de atuação das
organizações do terceiro setor; à terceira revolução industrial; à revolução nas comunicações;
e à mudança da agenda de financiamento internacional (ALBUQUERQUE, 2006).
Sampaio (2004) afirma que existem diferentes abordagens sobre as origens do terceiro setor:
com relação ao Estado, com relação às empresas, com relação às universidades e com relação
às organizações sem fins lucrativos.
Com relação ao Estado, “o terceiro setor se tornou uma alternativa para uma reforma do
Estado que o pretenda tornar promotor, mais que realizador, de ações sociais” (SAMPAIO,
2004, p. 26). Na realidade brasileira, o terceiro setor contribuiu para a terceirização de mão-
de-obra para a execução de objetivos estatais, com fragilidade de vínculos empregatícios e
redução de encargos previdenciários. Além disso, a terceirização de serviços ao terceiro setor
representa uma maneira menos burocrática de contratação de serviços e cancelamento de
contratos, permitindo maior autonomia aos administradores públicos. Paralelamente, há maior
proximidade dessas organizações com a comunidade, o que facilita a consecução de seus
objetivos. No cenário internacional, as organizações do terceiro setor “ganharam notoriedade
pública e espaços para execução de políticas internacionais” (SAMPAIO, 2004, p.27).
20
No que se refere à relação com as empresas, Sampaio (2004) afirma que o terceiro setor
possibilitou a realização, por parte das empresas, de ações de responsabilidade social e
marketing solidário. A implementação de ações de cunho social por parte das empresas foi
facilitada através das organizações do terceiro setor, seja devido à utilização de benefícios
fiscais ou devido a políticas de destinação de parte do pagamento do imposto de renda a obras
culturais ou sociais. Por outro lado, o terceiro setor passou a ser reconhecido como agente
importante no relacionamento das empresas com os seus diversos públicos: clientes,
parceiros, fornecedores, empregados e comunidade. A atuação junto ao terceiro setor passou a
ser vista pelos empresários tanto como uma forma de promover a imagem institucional das
suas empresas, quanto como uma forma de influenciar de forma positiva o cenário social
brasileiro, que se apresenta repleto de problemas e carente de soluções efetivas.
Para as universidades, o desenvolvimento do terceiro setor abriu espaço para a criação de
cursos de graduação e pós-graduação específicos sobre o tema, assim como para a promoção
de congressos, seminários e para a formação de grupos de pesquisa direcionados ao assunto.
Alunos e profissionais são atraídos por essas organizações, na medida em que elas se
profissionalizam e se fortalecem (SAMPAIO, 2004).
Finalmente, quanto às organizações sem fins lucrativos, foram criados organismos e redes
nacionais e internacionais com o objetivo de consolidar e desenvolver as organizações do
terceiro setor. Foi dirigida aos meios acadêmico e social a demanda para que auxiliassem a
solucionar os problemas vivenciados nessas instituições. As parcerias com o Estado e com as
empresas privadas criaram a necessidade de melhoria da gestão das organizações do terceiro
setor. A instauração de governos de orientação social-democrata no Brasil facilitou a
execução de ações sociais pelo terceiro setor com o auxílio do Estado. Alterações promovidas
na legislação brasileira, como a Lei do Voluntariado (Lei Federal 9.608/98) e a Lei das Oscips
(Lei Federal 9790/99), promoveram a atuação das organizações do terceiro setor no país
(SAMPAIO, 2004).
Em uma perspectiva diferente, Falconer (1999) acredita que entidades internacionais e
multinacionais foram as grandes responsáveis pela introdução do conceito e pela valorização
do terceiro setor no mundo subdesenvolvido. Para o autor, “a construção do terceiro setor
21
brasileiro, pode-se afirmar com segurança, deu-se de fora para dentro: de fora do país e de
fora do setor para dentro dele.” (FALCONER, 1999, p. 4).
O autor cita como exemplo de fundação e instituição americanas e européias a Fundação
Ford, a Fundação W. K. Kellogg e o Banco Mundial. A Fundação Ford apoiou a participação
popular como forma de fortalecer a democracia, principalmente durante o período de regime
militar. “Uma forma comum de fazer isto era através do apoio a projetos de organizações
comunitárias e movimentos populares, principalmente junto a populações carentes.” (idem, p.
5). Quanto à Fundação W. K. Kellogg, o autor afirma que:
Nos anos noventa, outra fundação americana privada, a Fundação W. K. Kellogg, veio a assumir uma posição que pode ser caracterizada como um mecenato do terceiro setor: em praticamente toda a América Latina e outras partes do mundo em desenvolvimento, projetos pioneiros voltados para o “fortalecimento da sociedade civil”, para o estudo do terceiro setor e para temas como o desenvolvimento da filantropia e voluntariado contaram com o apoio financeiro maciço desta instituição. (FALCONER, 1999, p. 5).
No que se refere ao Banco Mundial, o envolvimento do Banco com as ONGs se intensificou
na década de 70 e a partir de então os projetos financiados para as referidas entidades têm
alcançado participações crescentes:
Entre 73 e 88, apenas 6% dos projetos envolviam colaboração de ONGs. Em 93, um terço e, em 94, a cifra alcançou os 50% [...] O Banco Mundial acredita que o trabalho em parceria com ONGs permite incorporar em seus projetos as vantagens características destas organizações: a inovação, devido à escala pequena dos projetos, a incorporação da multiplicidade de alternativas e opiniões diversas; a participação de populações locais e a consulta à população beneficiária; a melhor compreensão dos objetivos dos projetos pela sociedade; o alcance ampliado da ação, atingindo a quem mais precisa; e finalmente, a sustentabilidade, ou continuidade de projetos após a retirada do Banco. (MALENA4, 1995, apud FALCONER, 1999, p. 5).
2.1.2 Gestão no terceiro setor
Teodósio (2001b) destaca algumas das características positivas do terceiro setor: maior
proximidade do cidadão, maior agilidade e desburocratização, melhor utilização de verbas,
4 MALENA, Carmen. Working with NGOs: a practical guide to operational collaboration between the World Bank and nongovernmental organizations. Washington, D.C. Operations Policy Department, World Bank, 1995.
22
desenvolvimento mais profundo da cidadania, valorização de soluções da própria
comunidade, geração de emprego e renda, rompimento com o assistencialismo e possibilidade
de controle sobre o Estado. Segundo o autor, o grande desafio do terceiro setor é aperfeiçoar o
seu gerenciamento, adotando práticas que modernizem o setor, sem perder suas características
básicas: “conciliar eficiência com democracia, alcance de metas com cidadania e respeito ao
público beneficiário com respeito aos colaboradores do projeto social” (TEODÓSIO, 2001b,
p. 6).
Contribuindo com a temática, Falconer (1999) defende que as organizações do terceiro setor,
inicialmente reconhecidas como cronicamente deficitárias e subcapacitadas, têm diante de si a
possibilidade de romper com o ciclo de condições precárias ao buscar o bom gerenciamento,
que permitiria o alcance de resultados positivos, facilitando a captação de recursos financeiros
e de profissionais capacitados.
Nesse mesmo sentido, a Rede de Informações para o Terceiro Setor (RITS, 2008) relata
modificações que vêm sendo observadas: o setor tem alcançado lugar de destaque na mídia
nacional, passou a ser tema de políticas públicas, tem mobilizado mais recursos e gerado mais
oportunidades de trabalho. Toda essa expansão impõe ao setor novos desafios, como o
desenvolvimento da sua capacidade de gerenciamento, que tem ficado aquém das
expectativas.
A cultura do Terceiro Setor no Brasil é forte em voluntarismo e fraca no aspecto profissional. Nos centros religiosos, prevalece o espírito da caridade, como é próprio que o seja. Pouco se aproveita, contudo, da competência presente entre os membros do culto. [...] Resulta que o imenso esforço acumulado pelas boas intenções produz resultados muito aquém do que seria possível e desejável. Resulta, ainda, um acúmulo de frustrações. Cresce a expectativa em relação ao Terceiro Setor, multiplicam-se as oportunidades, mas a resposta não corresponde. (RITS, 2008)
Segundo Salvatore (2004), a deficiência de gestão do terceiro setor no Brasil deve-se ao
histórico do setor no país, focado em aspectos sociais, no atendimento das necessidades de
seu público-alvo, deixando de lado aspectos administrativos e de gestão, considerados
meramente como burocracia para atender às exigências do setor público, seu principal
financiador. Essa herança histórica justificaria, inclusive, a dependência que o terceiro setor
teria do Estado, sem o qual não se sustentaria, de acordo com o autor.
23
Teodósio e Resende (1999) apontam que vários autores defendem a necessidade de
profissionalização dos indivíduos que atuam no terceiro setor, principalmente dos gestores.
Para os autores, os gestores do terceiro setor são vistos como pessoas persistentes e
comprometidas com o objetivo da organização, cabendo a eles a busca de alternativas e
soluções para a sustentação da empreitada. No entanto, os objetivos propostos pelas
instituições do setor seriam mais facilmente atingidos se as pessoas que nelas desempenham
papéis gerenciais tivessem formação sólida e domínio de técnicas administrativas, fazendo
com que as práticas e políticas fossem mais sistematizadas e articuladas.
Desta forma, aspectos relacionados à gestão tornaram-se cruciais para o terceiro setor. Por um
lado, divulga-se a idéia de que o setor deve adotar mecanismos e instrumentos de gestão das
empresas privadas, apontando assim para uma postura que entende que tudo o que é bom para
a empresa privada é bom para as organizações do terceiro setor. Essa idéia – criticada por
Teodósio e Resende (1999) – admite que o primeiro e segundo setores seriam
desenvolvedores de técnicas gerenciais transferíveis para o terceiro setor através dos
profissionais por eles qualificados, ou seja, ex-executivos e consultores, e pela incorporação
de modelos gerenciais adotados pelos patrocinadores/mantenedores.
Por outro lado, autores como Salvatore (2004) chamam a atenção para o risco de não se
considerar que cada setor tem um papel na sociedade e desenvolve uma lógica própria, que
define as características de administração e gestão do setor. O Estado deve se pautar pela
coisa pública, tendo como objetivo o atendimento do interesse do cidadão. Assim, a lógica
que permeia o setor público deve ser baseada no princípio da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, economicidade e eficiência. O segundo setor tem uma lógica voltada
para o interesse econômico, para a obtenção de lucro – baseado em cálculo e alcance de metas
técnicas – e para o aumento de poder social. Já o terceiro setor se baseia em princípios como
“cidadania, emancipação, autonomia, diretos da população em geral e dos excluídos em
especial” (SALVATORE, 2004, p. 28). Segundo o autor, a lógica de gestão do terceiro setor
deve ser de caráter sociológico, baseada na auto-realização, no entendimento, no julgamento
ético, na autenticidade, nos valores emancipatórios e na autonomia, permitindo a inclusão de
uma dimensão qualitativa, emocional e voluntária.
24
Confirmando essa idéia, Falconer (1999) questiona se a capacitação tradicional em gestão é
capaz de apresentar as soluções para os problemas do terceiro setor, e argumenta o seguinte:
Há consenso de que a formação de administradores profissionais para o terceiro setor deve ser modelada pelo perfil e demandas específicas destas organizações, e não meramente pela transposição de modelos e técnicas desenvolvidos no meio empresarial ou na administração pública (FALCONER, 1999, p. 3).
O autor ressalta ainda que as funções da Teoria Clássica da Administração, que se
caracterizam pelo “planejamento, organização, direção e controle” (TENÓRIO5, 1997, citado
por FALCONER, 1999, p. 16), são válidas para qualquer tipo de organização. Entretanto, há
que se considerar as especificidades do terceiro setor, que requerem de seu profissional
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores específicos.
Conforme explicitado por O’Neill6 (1998), citado por Falconer (1999), existem oito distinções
fundamentais entre as organizações do terceiro setor e as organizações de outros setores, que
devem ser consideradas ao se estabelecer o tipo de qualificação profissional que o terceiro
setor necessita:
Propósito/Missão: Ganhar dinheiro, para as organizações sem fins lucrativos, é subsidiário ao propósito de prover algum bem ou serviço; enquanto para as empresas privadas, a provisão de produtos ou serviços tem por objetivo gerar dinheiro. Valores: Todas as organizações têm valores próprios, mas em nenhum setor os valores são tão centrais ao propósito quanto no terceiro setor. Aquisição de Recursos: Empresas normalmente obtêm recursos através da venda de produtos e serviços; órgãos governamentais obtêm a maior parcela de seus recursos através de impostos. Organizações do terceiro setor recebem dinheiro das mais variadas fontes: vendas de serviços, doações de indivíduos, grants de fundações, empresas e do governo, resultados de investimentos patrimoniais etc. A aquisição de recursos no terceiro setor é, portanto, uma tarefa altamente complexa e demandante de uma variedade de técnicas e conhecimento. Bottom Line (resultado): No terceiro setor não há a mesma clareza existente no mercado quanto ao que representa um bom resultado e quais são os melhores indicadores de eficiência e eficácia. Ambiente Legal: A legislação que incide sobre o terceiro setor difere significativamente das leis dos outros setores, particularmente no que diz respeito à aplicação dos recursos e à tributação.
5 TENÓRIO, Fernando G. (Org.). Gestão de ONGs: principais funções gerenciais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. 6 O’NEILL, Michael; FLETCHER, Kathleen (Eds.). Nonprofit management education: U.S. and world perspectives. Westport: Praeger, 1998.
25
Perfil do Trabalhador: No terceiro setor, uma parcela do trabalho é realizada por voluntários não remunerados. O tipo de atividade realizada, o nível de qualificação dos trabalhadores e a forma de remuneração diferem no terceiro setor da realidade do Mercado e do Estado. Governança: A estrutura de poder e tomada de decisão no terceiro setor atribui um papel importante ao conselho da entidade, formado por voluntários que não devem se beneficiar dos resultados da organização. A relação entre o conselho e o corpo profissional tende a ser mais próxima do que ocorre no Estado e no Mercado. Complexidade Organizacional: O’Neill argumenta que uma nonprofit é tipicamente mais complexa do que uma organização empresarial, no tipo e variedade de serviços prestados, na relação com múltiplos públicos, na dependência de fontes variadas de recursos e outras dimensões.
Teodósio (2001a), por sua vez, também identifica algumas peculiaridades na estrutura e
gestão das organizações do terceiro setor. Tais organizações possuem estruturas mais enxutas
devido à carência de recursos financeiros, o que também potencializa a utilização de mão-de-
obra voluntária que se diferencia por ser altamente motivada pelos objetivos sociais e
engajada no modelo de gestão participativo. A maior proximidade com o beneficiário facilita
a execução de seus objetivos, pois muitas organizações do terceiro setor nasceram da própria
associação dos beneficiários, visando sanar os problemas sociais. Outra particularidade dessas
organizações é a sólida imagem institucional junto à comunidade. Para superar suas
limitações operacionais, as organizações do terceiro setor formam parcerias com outras
instituições que atuam no mesmo setor (ação em rede), trocando informações, recursos e
metodologias. Ao mesmo tempo, a atuação em rede não elimina a alta competitividade entre
elas por busca de recursos financeiros, parcerias e reconhecimento social.
Teodósio (2001a) defende que, ao adotarem técnicas gerenciais oriundas das empresas
privadas, as organizações do terceiro setor devem estar atentas para não perderem o foco nas
transformações sociais mais amplas, perdendo-se na execução de objetivos de curto prazo
como alternativa para seu fortalecimento. Alguns conceitos e pressupostos da gestão privada
podem apresentar distorções quando aplicados na esfera social, como os termos “cliente”,
“usuário” e conceitos como “critérios de rentabilidade operacional”.
Na verdade, no terceiro setor não há cliente ou usuário e sim “cidadão-beneficiário”, o que
incorpora a idéia de cidadania. Por sua vez, critérios que levam em consideração a
metodologia utilizada na intervenção social, tomando como referência o bem público e a
cidadania, ocupam o lugar da rentabilidade operacional (alta utilização/elevado número de
26
atendimentos). Dessa forma, cabe ao terceiro setor conciliar os modelos e ferramentas
gerenciais das organizações privadas com as perspectivas sociais, políticas e legais. A
habilidade de articulação e de negociação desse setor é um seu atributo mais importante do
que a agressividade e a competitividade no alcance de metas.
Os conflitos entre lógicas de gestão próprias aos diferentes setores surgem sobretudo em
parcerias com o Estado ou com empresas, aos quais as organizações do terceiro setor
recorrem a fim de garantir sua sustentabilidade financeira. A dificuldade se apresenta porque
os parceiros de organizações do terceiro setor cobram os resultados segundo suas
perspectivas. Assim, as empresas privadas vêem os projetos sociais como produtos, e os
órgãos da esfera governamental lidam com números, estatísticas, o que é próprio das políticas
públicas. Isso faz com que a mensuração dos resultados no terceiro setor acabe se dando
segundo a visão do parceiro (RITS, 2008), o que pode comprometer e mesmo descaracterizar
o trabalho realizado originalmente por aquela organização de fins sociais.
O exposto acima cria um descompasso na atividade das organizações não lucrativas. Muitas
vezes financiadas por empresas privadas, ou mesmo pelo governo, elas devem reportar o
resultado de suas atividades de acordo com uma lógica econômico-financeira, ao passo que
sua atividade cotidiana é voltada para a promoção social. O resultado é a constatação de uma
grande complexidade na gestão das organizações do terceiro setor, pois a desconsideração dos
parâmetros de avaliação pode comprometer os recursos obtidos para sustentar os projetos
desenvolvidos, ao mesmo tempo em que a desconsideração dos objetivos de promoção social
pode causar atritos entre o corpo gerencial e o corpo voluntário (TEODÓSIO, 2001a).
No entanto, Veltz e Zarifian7 (1993, apud TEODÓSIO; RESENDE, 1999) ressaltam que a
assimilação de tecnologias de gestão não se dá de maneira imutável ou homogênea, pois ela é
construída na interação entre os diversos atores organizacionais, de onde surgem diferentes
percepções, posicionamentos e ações que embasam novos modelos de gestão, que estão
sempre inacabados. Por outro lado, Salvatore (2004, p. 33) afirma que “o terceiro setor é
heterogêneo e complexo”. Por isso ele acredita que não há possibilidade de se definir um
sistema único de gestão apropriado para o setor como um todo, devido à diversidade das
7 VELTZ, Pierre; ZARIFIAN, Philippe. Vers de nouveaux modèles d’organization?, Sociologie du travail, v. 35, n.1, 1993.
27
organizações não governamentais em sua “composição, porte, organização, finalidade e forma
de funcionamento”.
2.1.3 Problemas e desafios enfrentados por organizações do terceiro setor
Os problemas enfrentados pelas organizações do terceiro setor variam de acordo com a
perspectiva de análise. De acordo com Falconer (1999), existem quatro perspectivas que
devem ser consideradas ao se analisar as dificuldades do terceiro setor: stakeholder
accountability, sustentabilidade, qualidade de serviços e capacidade de articulação.
No que se refere à stakeholder accountability, Falconer ressalta a necessidade de
transparência e do cumprimento de prestação de contas aos diversos públicos interessados na
organização do terceiro setor, não apenas através da publicação de relatórios, mas da postura
responsável mantida no cotidiano das organizações, tanto em relação ao público interno
quanto em relação ao público externo. Demonstrar posições claras e resultados concretos faz
com que as organizações se legitimem perante a sociedade, eximindo-se dos escândalos que já
destruíram inúmeras organizações do terceiro setor. “Mais que um valor, a accountability
tende a estabelecer-se com estratégia competitiva” (FALCONER, 1999, p. 18).
Quanto à sustentabilidade, Falconer (1999) esclarece que se trata da capacidade de gerar
recursos financeiros, materiais e humanos suficientes e de forma contínua, bem como geri-los
de maneira eficiente, a fim de garantir o alcance dos objetivos pretendidos e a perpetuidade da
organização. Em conformidade com essa afirmativa, Teodósio (2001a) adverte que uma das
maiores dificuldades encontradas pelas organizações do terceiro setor é a obtenção de
recursos. Aquelas que mantêm maior credibilidade junto à sociedade conseguem mais
autonomia na execução de seus projetos sociais, e geralmente seus recursos são obtidos
através de doações e mesmo através da comercialização de produtos ligados à sua atividade.
Entretanto, Teodósio (2001a) alerta para o fato de que, no caso da comercialização de
produtos, torna-se necessário estar atento para que não se despenda maior energia na
sobrevivência organizacional do que no atendimento das demandas sociais, o que é um
fenômeno muito freqüente nas organizações de fins sociais.
28
A gestão da mão-de-obra voluntária, dificuldade que se relaciona à sustentabilidade do
terceiro setor, particularmente à gestão dos recursos humanos envolvidos em organizações
desse tipo, é ressaltada por Teodósio (2001a). Como solução para os problemas financeiros
que as organizações do terceiro setor enfrentam, parte da mão-de-obra remunerada é
substituída pelo trabalho voluntário. Entretanto, essa é uma solução que apresenta severas
implicações, pois o gerenciamento dos voluntários é muito mais complexo do que o
gerenciamento dos empregados. Além de a organização ter que estruturar suas atividades de
acordo com a disponibilidade dos voluntários, há problemas como o absenteísmo, a falta de
pontualidade, a qualidade do desempenho e a qualificação para o trabalho. Por temerem que o
voluntário abandone suas atividades por não aceitar uma postura de gerenciamento, as
organizações relutam em avaliá-los individualmente e em adotar estratégias de controle.
A presença de trabalhadores voluntários, entretanto, não exclui o emprego de mão-de-obra
remunerada, seja ela parcial, temporária ou “full time”. Alguns autores, conforme aponta
Teodósio (2001a), defendem a idéia de utilizar voluntários apenas em tarefas de menor
exigência quanto à formação profissional, ou em atividades que não comprometam o
funcionamento cotidiano das organizações.
Segundo o ponto de vista da qualidade dos serviços prestados, Falconer (1999) ressalta que
um dos problemas que se coloca ao terceiro setor é que cada vez mais esse setor será chamado
para atender a demandas de caráter público. Deve, portanto, deixar de lado a visão de caridade
e filantropia voltadas a uma parcela reduzida da população, e também abandonar o sentimento
de impotência diante do volume dos déficits sociais, para adotar uma postura de prestação de
serviços a consumidores ou cidadãos conscientes de seus direitos. O aprimoramento da
qualidade deve ser um objetivo contínuo de tais organizações.
Finalmente, ao abordar a capacidade de articulação como um problema enfrentado pelo
terceiro setor, Falconer (1999) ressalta que as organizações desse setor não poderão atuar de
forma isolada, como anteriormente, se pretendem tratar de forma séria os problemas sociais: é
necessário articulação em rede. Falconer (1999), citando Lester Salamon8 (1998), afirma que
o desafio fundamental do terceiro setor não é simplesmente o aperfeiçoamento da gestão, mas
8 SALAMON, Lester M. Nonprofit management education: a field whose time has passed?. In: O’NEIL, Michael; FLETCHER, Kathleen (Eds.), Nonprofit management education: U.S. and world perspectives. Westport: Praeger, 1998.
29
a capacidade de encontrar soluções para os problemas públicos através da interação
colaborativa entre os setores, ou seja, através da intersetorialidade, que tende a ser complexa e
cada vez mais comum no mundo todo.
Através dessa revisão da literatura, é possível resumir as características gerais das
organizações do terceiro setor, assim como as particularidades encontradas no funcionamento
dessas organizações, apresentadas respectivamente no QUADRO 1 e no QUADRO 2 a seguir.
Vale ressaltar que nesses quadros foram descritas as características do terceiro setor que mais
se adéquam ao problema de pesquisa e que serão exploradas nesse trabalho; não sendo,
portanto, os quadros conclusivos e abrangentes no que se refere a todas as organizações
pertencentes ao terceiro setor.
O objetivo desta pesquisa foi justamente verificar se tanto as características gerais como as de
funcionamento persistem em organizações do terceiro setor mantidas primordialmente por
casas espíritas, assim como verificar se essas organizações apresentam traços particulares em
sua criação e funcionamento, traços que possam ser relacionados à doutrina espírita ou à
organização institucional do espiritismo kardecista.
30
QUADRO 1 Síntese das características gerais das organizações do terceiro setor
Fonte: Elaborado pela autora
31
QUADRO 2 Síntese das particularidades de funcionamento das organizações do terceiro setor
Fonte: Elaborado pela autora
Como já mencionado, o presente trabalho se desenvolve em organizações ligadas à doutrina
espírita, sendo portanto, necessário discorrer a cerca da referida doutrina com o intuito de
esclarecer os princípios que norteiam tais organizações de fins sociais.
2.2 Doutrina Espírita
A história da doutrina espírita é reportada por Wantuil (1994) como oriunda de numerosos
percussores que “evidenciaram a comunicação dos supostos mortos com os vivos da Terra”
(WANTUIL, 1994, p. 5), através de visões, profecias e outras maneiras de intercâmbio com o
mundo dos espíritos.
32
Entretanto, conforme esclarecem Wantuil e Thiesen (1990), foi a partir de 1848 que o
espiritismo foi divulgado pela imprensa dos Estados Unidos, quando, na aldeia de Hydesville,
(próxima a Nova York, nos Estados Unidos) começaram a ser ouvidas pancadas à noite, nas
paredes de uma casa onde residia a família de John D. Fox. O Sr. Fox vistoriou toda a casa,
interna e externamente, e nada encontrou. Sua filha mais nova começou a imitar as batidas,
batendo os dedos sobre um móvel, e foram ouvidas pancadas na mesma quantidade das que
haviam sido produzidas pela menina. Definido um critério de comunicação através do número
de pancadas, várias perguntas foram formuladas, sendo respondidas corretamente pelo
“desconhecido”.
Posteriormente, o próprio “desconhecido” indicou outra maneira de comunicação: as pessoas
deveriam se colocar ao redor de uma mesa em cima da qual poriam as mãos; a mesa daria
uma pancada toda vez que fosse dita uma letra do alfabeto que servisse para que o
“desconhecido” formasse a palavra desejada. Esse processo deu origem ao fenômeno
conhecido como “mesas girantes”. Essas manifestações teriam se espalhado em seguida por
diversas partes do mundo (WANTUTIL, 1994).
As insólitas manifestações de Hydesville (Estado de New York), misteriosamente surgidas na residência das irmãs Fox, em fins da metade do século XIX, rapidamente foram tomando terreno e em pouco tempo todo o Velho Continente estava a par do rappings, das mesas girantes e dançantes e de outros fenômenos inabituais. O grande ruído da América comunicou-se à Alemanha, à França, à Inglaterra, à Espanha, à Itália, à Turquia e a outros países, invadindo todas as classes sociais, da choupana ao palácio. Verdadeira época de loucura – comentavam os jornais da época. Revolução inacreditável nas leis físicas. Os objetos pareciam ter adquirido movimento autônomo, nos pontos mais diferentes do mundo. (WANTUIL; THIESEN, 1990, p. 49)
Em 1853, na França, os fenômenos das “mesas girantes” começaram a ser observados e
analisados, o que deu origem ao que se chamou doutrina espírita, espiritismo ou kardecismo.
Segundo relatos da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP, 2006), na época
testemunhavam-se, em várias partes do mundo, fenômenos conhecidos como “mesas
girantes”, em que mesas se movimentavam em todos os sentidos, giravam e alcançavam o
teto. O público fazia perguntas e as mesas respondiam com batidas, o que levaria à suposição
da existência de uma inteligência por trás daqueles fenômenos, e à hipótese de atuação do
mundo espiritual.
33
A história da doutrina espírita apresentada nos seus textos oficiais indica que Hippolyte Léon
Denizard Rivail, cientista e filósofo da época (mais tarde conhecido como Allan Kardec),
interessou-se pelo fenômeno e começou a investigá-lo utilizando uma metodologia precisa.
Rivail, nascido em 1804, em Lyon, na França, faleceu em 1869. Para diferenciar seus
trabalhos como educador dos trabalhos do espiritismo, Hyppolyte Léon adotou o pseudônimo
de Allan Kardec (SAUSSE, 1980).
Desconfortável com a futilidade de perguntas que eram feitas aos espíritos, Kardec elaborou
uma série de perguntas a respeito de filosofia geral, psicologia e natureza. As perguntas eram
encaminhadas para as reuniões onde havia manifestação dos fenômenos e eram respondidas
pela suposta inteligência que produzia os fenômenos, ou seja, pelos chamados espíritos. O
método desenvolvido por Kardec para comunicação com o mundo espiritual consistiu em
fazer as mesmas perguntas para pessoas diferentes com objetivo de confirmar a informação, já
que Kardec não considerava que os espíritos faziam revelações, pois para ele os espíritos eram
fontes de informação; outro objetivo era eliminar a interferência da pessoa que produzia os
fenômenos nas respostas fornecidas (SAMPAIO, 2007).
Ao receber as respostas, Kardec comparava-as, percebendo semelhanças entre elas e
descartando as respostas contraditórias. Assim, as perguntas e respostas foram submetidas ao
método empiricista, empregado por Kardec a fim de somente aceitar e divulgar o que tivesse
sido submetido a testes de lógica racional, ou seja, que não se justificasse somente pela fé ou
pela intervenção do sobrenatural. Por isso a lógica racional é considerada pelos seguidores da
doutrina como a grande legitimadora do espiritismo. Com relação ao uso da razão, Kardec
(1997b, p. 592) esclarece:
Falsíssima idéia formaria do Espiritismo quem julgasse que a sua força lhe vem da prática das manifestações materiais e que, portanto, obstando-se a tais manifestações, se lhe terá minado a base. Sua força está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom-senso. Na antiguidade, era objeto de estudos misteriosos, que cuidadosamente se ocultavam do vulgo. Hoje, para ninguém tem segredos. Fala uma linguagem clara, sem ambigüidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade. Longe de se opor à difusão da luz, deseja-a para todo o mundo. Não reclama crença cega; quer que o homem saiba por que crê. Apoiando-se na razão, será sempre mais forte do que os que se apóiam no nada.
34
As perguntas e respostas de Kardec foram objeto da publicação, em 1857, do primeiro dos
cinco livros da codificação da doutrina: O Livro dos Espíritos (FEESP, 2006). A esse livro
seguiram-se: O Livro dos Médiuns, publicado em 1861; O Evangelho Segundo o
Espiritismo, publicado em 1864; O Céu e o Inferno, publicado em 1865; e A Gênese,
publicado em 1868 (SOUTO MAIOR, 2003).
Embora Kardec tenha sido o codificador da doutrina espírita, não foi seu criador, seu
idealizador. Os fenômenos espíritas remontam à antiguidade, sempre ocorreram na história da
civilização. Sobre o assunto, o próprio Kardec escreve:
O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém pode inculcar-se como seu criador, pois tão antigo é ele quanto a criação. Encontramo-lo por toda parte, em todas as religiões [...] Que faz a moderna ciência espírita? Reúne em corpo de doutrina o que estava esparso; explica, com os termos próprios, o que só era dito em linguagem alegórica; poda o que a superstição e a ignorância engendraram, para só deixar o que é real e positivo. Esse o seu papel. O de fundadora não lhe pertence. Mostra o que existe, coordena, porém não cria, por isso que suas bases são de todos os tempos e de todos os lugares (KARDEC, 1997b, p. 593).
Popularmente existe uma confusão entre doutrina espírita (espiritismo ou kardecismo),
espiritualismo, candomblé e umbanda, mesmo porque muitas casas de culto trabalham de
forma sincrética com essas seitas. Portanto, antes de se apresentarem os fundamentos da
doutrina espírita, é essencial esclarecer o que exatamente é a doutrina que esta pesquisa
entende como espírita.
Kardec (1997a) afirma que espiritualismo é toda doutrina filosófica que tem como princípio
básico a existência de algo mais além da matéria, do corpo físico; portanto, é oposta ao
materialismo, que defende que a alma é atrelada ao princípio da vida material orgânica, não
tendo existência própria e se aniquilando com a vida. Dessa forma, tanto o candomblé quanto
a umbanda, o espiritismo e todas as demais religiões são espiritualistas. No entanto, as origens
e o desenvolvimento histórico da doutrina espírita ou espiritismo, assim como seus pontos de
vista filosóficos, diferenciam-no do candomblé e da umbanda.
O candomblé é originário da África e chegou ao Brasil juntamente com os negros no período
da escravidão, instalando-se na Bahia do século XIX (PRANDI, 2008). Em seus cultos, os
negros utilizavam a camuflagem de altares com imagens de santos católicos, aos quais
correspondiam figuras sagradas da cultura africana. Daí a inserção de imagens e santos do
35
catolicismo no candomblé, forjando um sincretismo. Já a umbanda surgiu no século XX,
síntese do candomblé (que veio da Bahia para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX
para o século XX) e do kardecismo (chegado da França no final do século XX).
A principal diferença do ponto de vista filosófico reside no fato de que a umbanda e o
candomblé são considerados “religiões mágicas”, pois o conhecimento e o uso de forças
naturais e sobrenaturais se fazem presentes em ambas as religiões para se interferir no mundo.
São assim identificados ritos e segredos iniciáticos nessas religiões. O espiritismo, por outro
lado, se reconhece enquanto filosofia e acredita estar embasado em princípios científicos,
segundo os textos da doutrina, e conseqüentemente procura buscar uma “explicação lógica”
para os fenômenos (PRANDI, 2008).
Com relação à distinção entre espiritismo e práticas das religiões afro-descentes, como o
candomblé e a umbanda, a Federação Espírita Brasileira (FEB, 2008a)9 esclarece a respeito da
prática espírita:
• Toda a prática espírita é gratuita, como orienta o princípio moral do Evangelho: “Dai de graça o que de graça recebestes.” • A prática espírita é realizada com simplicidade, sem nenhum culto exterior, dentro do princípio cristão de que Deus deve ser adorado em espírito e verdade. • O Espiritismo não tem sacerdotes e não adota e nem usa em suas reuniões e em suas práticas: altares, imagens, andores, velas, procissões, sacramentos, concessões de indulgência, paramentos, bebidas alcoólicas ou alucinógenas, incenso, fumo, talismãs, amuletos, horóscopos, cartomancia, pirâmides, cristais ou quaisquer outros objetos, rituais ou formas de culto exterior. • O Espiritismo não impõe os seus princípios. Convida os interessados em conhecê-lo a submeterem os seus ensinos ao crivo da razão, antes de aceitá-los. • A mediunidade, que permite a comunicação dos Espíritos com os homens, é uma faculdade que muitas pessoas trazem consigo ao nascer, independentemente da religião ou da diretriz doutrinária de vida que adotem. • Prática mediúnica espírita só é aquela que é exercida com base nos princípios da Doutrina Espírita e dentro da moral cristã. • O Espiritismo respeita todas as religiões e doutrinas, valoriza todos os esforços para a prática do bem e trabalha pela confraternização e pela paz entre todos os povos e entre todos os homens, independentemente de sua raça, cor, nacionalidade, crença, nível cultural ou social. Reconhece, ainda, que “o verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza.” (FEB, 2008a)
Notícias sobre as mesas girantes chegadas ao Brasil datam de 1853 e foram publicadas no
Jornal O Cearense (CRE/BARV, 2001). A nova doutrina encontrou campo fértil no Brasil,
pois a elite intelectualizada vivia sob forte influência européia, região onde a doutrina espírita
9 http://www.febnet.org.br/apresentacao/content,0,0,3167,0,0.html
36
tomava corpo (SILVA, 2007). Além disso, desde 1840 havia no país dois homeopatas, neo-
espiritualistas, Bento Mure e João Vicente Martins, que, antes mesmo da chegada da doutrina
dos espíritos compilada por Kardec, já se comunicavam com os espíritos (ABREU, 1987).
Sete anos mais tarde, em 1860, foram publicados os dois primeiros livros espíritas em
português: Os tempos são chegados, do professor Casimir Lieutaud; e O espiritismo em sua
expressão mais simples, tradução do professor Alexandre Canu (CRE/BARV, 2001).
A primeira instituição jurídica do espiritismo no Brasil, a Sociedade Grupo Confúcio, foi
fundada em 1873, com estatutos impressos e divulgados na imprensa nacional e estrangeira. O
Reformador, revista espírita existente até os dias atuais, foi fundada em 1883, pelo jornalista
Augusto Elias da Silva, e “propunha-se a renovar os costumes. Tinha uma secção “consagrada
a todas as corporações científicas, filosóficas e literárias”, e outra para o Espiritismo”
(ABREU, 1987).
Em 1884 foi fundada, no Rio de Janeiro, a Federação Espírita Brasileira – FEB, que
encampou a revista O Reformador e a mantém ainda hoje. A missão da FEB é:
Promover o estudo, a prática e a difusão do Espiritismo, com base nas obras da Codificação de Allan Kardec e no Evangelho de Jesus; a prática da caridade espiritual, moral e material, dentro dos princípios espíritas; e a união solidária e a unificação do Movimento Espírita, colocando o Espiritismo ao alcance e a serviço de todos (FEB, 2008b)10.
Um marco importante para o movimento espírita no Brasil, considerado um escândalo para a
época, ocorreu em 1886, quando o deputado e médico católico Dr. Adolfo Bezerra de
Menezes assumiu a tribuna na sala de honra da Guarda Velha, no Rio de Janeiro, diante de um
auditório com 2.000 pessoas, e divulgou sua conversão ao espiritismo.
Nesta ocasião, conforme explicitado em entrevista pelo Presidente da AME, havia uma
divergência quanto às práticas e ao futuro da doutrina espírita no Brasil. Diversos grupos se
formaram, como “os místicos” (que consideravam o espiritismo como religião), “os
científicos” (que defendiam o aspecto filosófico e científico da doutrina) e os “espíritas puros”
(que valorizavam apenas O Livro dos Espíritos). Como presidente da FEB, em 1890,
Bezerra de Menezes tentou unificar o movimento espírita, sem sucesso (ABREU, 1987).
10 http://www.febnet.org.br/apresentacao/content,0,0,265,0,0.html
37
Além da FEB, havia outro órgão destinado à unificação do movimento espírita no Brasil: a
União Espírita do Brasil, que mais tarde se tornou o órgão federativo estadual do Rio de
Janeiro.
O novo Código Penal Brasileiro, aprovado no mesmo ano, incluía a prática do espiritismo
como transgressão à lei, fato que fez com que as duas facções da doutrina se unissem para
defenderem a nova doutrina.
Paralelamente, como tentativa de unificar o movimento espírita, o Dr. Polidoro Olavo de São
Thiago teve a iniciativa de criar a assistência aos necessitados em moldes espíritas, o que foi
amplamente aceito tanto pelos “místicos” quanto pelos “científicos” e “espíritas puros”,
fazendo com que finalmente houvesse um ponto em comum entre as duas facções, o que
também favoreceu a unificação do movimento.
Bezerra de Menezes, que faleceu em 1900, deixou a FEB consolidada, com certa influência
em todo o território nacional. Um ano mais tarde, o estatuto da FEB foi revisto para favorecer
a adesão das instituições espíritas, fortalecendo o movimento de unificação. Multiplicaram-se
então os atos de adesão, que não comprometiam, no entanto, a autonomia administrativa e
patrimonial das entidades que haviam aderido à FEB (CRE/BARV, 2001).
As Bases da Organização Espírita, documento que passou a orientar o movimento no
Brasil, foram aprovadas em 1904, durante a comemoração de 100 anos de Allan Kardec, em
evento organizado pela FEB que teve a participação de 11 estados brasileiros. Previu-se, nesse
documento, a criação das federações estaduais, dentro da intenção de unificação do
movimento espírita. Mas foi em 1949 o marco decisivo na história do espiritismo brasileiro: a
instituição do Pacto Áureo. O referido acordo, celebrado entre a FEB e os representantes das
federações de diversos Estados brasileiros, visando a unificar o movimento a nível nacional,
previa a democratização da FEB, com a efetiva participação e delegação de poder de voz e
voto para todos os representantes estaduais.
Um dos maiores responsáveis pelo fortalecimento e expansão do espiritismo no Brasil foi
Francisco Cândido Xavier, popularmente conhecido como Chico Xavier, que é autor de 412
38
livros sobre a doutrina espírita, livros que venderam mais de 25 milhões de exemplares
(SOUTO MAIOR, 2003).
Toda a renda dos livros era cedida a editoras espíritas e os direitos autorais doados a obras
assistenciais, pois Chico Xavier alegava que os livros não eram dele, eram de seus “amigos
espirituais”, e ele apenas os transcrevia. O sustento de Chico Xavier sempre foi garantido
pelo próprio trabalho: quando criança vendendo verduras, e posteriormente atuando como
tecelão, faxineiro, vendedor de um armazém e finalmente escriturário do Ministério da
Fazenda. Faleceu em 2002, aos 92 anos de idade, dos quais 74 foram dedicados aos trabalhos
da mediunidade, que é o intercâmbio entre os vivos e os mortos (LEWGOY, 2001).
Ao levantar dados sobre o movimento espírita brasileiro, Sampaio (2004) constatou que não
havia informações sobre as atividades das casas espíritas ou sobre as organizações de fins
sociais a elas ligadas. Na ocasião, houve a iniciativa, por parte dos órgãos representantes do
movimento espírita, de coletar os dados junto às casas espíritas, mas houve pouca adesão à
pesquisa realizada. Segundo Sampaio (2004), os representantes da União Espírita Mineira
entendiam o seguinte:
Além da pouca preocupação em se levantarem dados institucionais, há alguma desconfiança com essa federativa (a União), alguns centros fantasiam que os dados possam ser utilizados para algum tipo de controle (informação fornecida pelo representante dessa organização). (SAMPAIO, 2004, p. 162-163).
O autor recorreu então a estudos acadêmicos para obter dados sobre as casas espíritas e
encontrou apenas informações sobre os Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul
(CAVALCANTI11, 1983; GIUMBELLI12, 1998; LEWGOY13, 1998, apud SAMPAIO, 2004).
É a partir desses estudos que Sampaio elabora o QUADRO 3, que sintetiza aspectos do ethos
espírita.
11 CAVACANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 12 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998. 13 LEWGOY, Bernardo. Etnografia da leitura e da fala num grupo de estudos espírita. In: JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, VIII, 1998, São Paulo, Anais... São Paulo, 1998.
39
QUADRO 3 Ethos espírita brasileiro no estudo de alguns antropólogos
Fonte: Sampaio, 2004, p. 173
Devido à escassez de informações sobre o movimento espírita no Brasil, a FEB e a AME da
cidade onde se localizam as casas espíritas foram contatadas durante esta pesquisa. O
representante da AME foi entrevistado, a fim de se conhecer melhor a estrutura do
Movimento Espírita Brasileiro, que está organizado como mostra a FIG. 1.
FIGURA 1 - Organização do movimento espírita no Brasil
Fonte: Presidente da AME
40
Segundo informações fornecidas pelo Presidente da AME, a FEB é a organização federativa
nacional brasileira. É gerida pelo Conselho Federativo Nacional - CFN, composto por
representantes das Sociedades Estaduais. No caso de Minas Gerais, a Sociedade Estadual se
intitula União Espírita Mineira. As Sociedades Estaduais são geridas pelos Conselhos
Estaduais (no caso de Minas Gerais, o Conselho Federativo Espírita de Minas Gerais -
COFEMG), que são compostos pelos presidentes de Alianças Municipais Espíritas – AMEs.
As AMEs, por sua vez, são geridas pelos Conselhos Espíritas Municipais – CEMs, compostos
por representantes das casas espíritas. Há ainda o CRE, Conselho Regional Espírita, que é a
reunião de um conjunto de AMEs de determinada região e tem por objetivo auxiliar as AMEs
na execução das atividades propostas pelo movimento espírita naquela região.
No entanto, vale salientar que embora o movimento espírita se organize de forma centralizada
em teoria, o que sugere certa uniformidade, na prática não há regras ou imposições que
normatizem o funcionamento das organizações federativas ou mesmo das casas espíritas.
Conforme esclareceu o Presidente da AME, a adesão de uma casa espírita à AME
correspondente não é obrigatória. O interesse em aderir à AME se deve à troca de
informações e à participação dos representantes das casas em encontros espíritas para melhor
capacitação. Para se associar, a casa espírita deve simplesmente encaminhar uma carta à AME
solicitando sua adesão. Dessa forma, o Presidente da Casa passa a ser votante no CEM.
Não existe igualmente nenhuma forma de controle sobre as atividades desenvolvidas pelas
casas espíritas que aderem à AME ou sobre as organizações filantrópicas ou projetos sociais
por elas mantidos. O controle sobre o modo de funcionamento das casas espíritas ou sobre a
divulgação da doutrina se dá unicamente a partir de denúncias. Assim, havendo alguma
denúncia de descumprimento dos preceitos da doutrina kardecista, a AME faz uma
averiguação e, constatado o descumprimento, solicita o desligamento da casa espírita daquela
AME.
Como mencionado, não há regras pré-estabelecidas para o funcionamento das casas espíritas
ou das organizações de fins sociais a elas ligadas. Isto porque as bases da doutrina espírita são
consideradas como descritas nos cinco livros básicos da codificação espírita, já citados
anteriormente. Portanto, esses textos são o guia das casas espíritas, que organizam suas
atividades a partir dessas bases filosóficas. A AME simplesmente as orienta quanto à
41
legislação vigente no Brasil, no que tange às casas espíritas ou às instituições por elas
mantidas.
No entanto, a FEB (2008c), através do documento A adequação do Centro Espírita para o
melhor atendimento de suas finalidades, elaborado pelo Conselho Federativo Nacional em
reuniões ocorridas no período de 1 a 3 de outubro de 1977, faz algumas recomendações às
casas espíritas. No referido documento, o CFN:
RESOLVE, por unanimidade, RECOMENDAR que os Centros Espíritas observem no seu funcionamento as seguintes diretrizes: [...] II) ATIVIDADES BÁSICAS: [...] h) - promover o serviço de assistência social espírita, assegurando suas características beneficentes, preventivas e promocionais, conjugando a ajuda material e espiritual, fazendo com que este serviço se desenvolva concomitantemente com o atendimento às necessidades de evangelização; [...] III) ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS: a) - Manter organização própria, segundo as normas legais vigentes, compatível com a maior ou menor complexidade de cada Centro e estruturada de modo a atender às finalidades do Movimento Espírita; b) - estabelecer metas para o Centro Espírita em suas diversas áreas de atividade, planejando periodicamente suas tarefas e avaliando seus resultados; c) - facilitar a efetiva participação dos freqüentadores nas atividades do Centro Espírita; d) - estimular o processo de trabalho em equipe; e) - dotar o Centro Espírita de locais e ambientes adequados, de modo a atender, em primeiro lugar, às atividades prioritárias; f) - zelar para que as atividades exercidas em função do Movimento Espírita sejam gratuitas, vedada qualquer espécie de remuneração; g) - não envolver o Centro Espírita em quaisquer atividades incompatíveis com a Doutrina Espírita; h) - aceitar somente os auxílios, doações, contribuições e subvenções, bem como firmar convênios, de qualquer natureza e procedência, desvinculados de quaisquer compromissos que desfigurem o caráter espírita da Instituição ou que impeçam o normal desenvolvimento de suas atividades, em prejuízo das finalidades doutrinárias, preservando, assim, a total independência administrativa da Entidade. [...] V) ATIVIDADES DE UNIFICAÇÃO: a) - Participar efetivamente das atividades do movimento de unificação; b) - conjugar esforços e somar experiências com as demais Instituições Espíritas de uma mesma localidade ou região de modo a evitar paralelismo ou duplicidade de realizações.
Em âmbito mundial existe o Conselho Espírita Internacional14 (CEI), que é o organismo
resultante da união das associações representativas dos Movimentos Espíritas Nacionais. Esse
Conselho tem como objetivo promover a união solidária e fraterna das instituições espíritas de
todos os países e a unificação do movimento espírita mundial; promover o estudo e a difusão
14 <http://www.spiritist.org/portugues/cei.html>
42
da doutrina espírita em seus três aspectos básicos: científico, filosófico e religioso; e
promover a prática da caridade espiritual, moral e material, à luz da doutrina espírita. O
organograma do CEI está apresentado na FIG. 2.
FIGURA 2 – Organograma do Conselho Espírita Internacional Fonte: CEI – Conselho Espírita Internacional
É importante ressaltar que doutrina espírita e movimento espírita são conceitos distintos. A
doutrina espírita consiste na codificação feita por Kardec. Movimento espírita é a estrutura
através da qual se pretende difundir a doutrina espírita. Ou seja, o movimento espírita consiste
na interação entre os estudiosos/praticantes da doutrina espírita, que estão organizados nas
AMEs, CREs, Federações Estaduais e Federais e no Conselho Internacional.
Sendo uma doutrina cristã, todos os princípios do espiritismo têm fundamento em Deus e em
Jesus Cristo; Deus é concebido como a “inteligência suprema, causa primária de todas as
coisas” (KARDEC, 1997b, p. 51) e Jesus como o guia e modelo mais perfeito para o homem e
o espírito de maior evolução que Deus já ofereceu aos homens. A doutrina espírita segue o
Novo Testamento, onde são narrados os ensinamentos de Jesus Cristo e as leis morais
necessárias à evolução do espírito, segundo o espiritismo (KARDEC, 1997b).
A doutrina espírita baseia-se no conceito de que o espírito é o ser inteligente da criação, que
sobrevive à morte do corpo físico, e corresponde ao que os católicos chamam de alma. Para o
espiritismo, todos os espíritos são imortais e são todos criados simples e ignorantes por Deus,
43
devendo buscar a própria evolução. Para que o espírito evolua, ele deve passar por várias
experiências, a fim de provar o que já aprendeu ou expiar o mal que tenha feito a outrem,
cumprindo dessa maneira a Lei de Justiça, que será comentada mais à frente. Essa é a idéia de
reencarnação, que consiste em admitir para o espírito muitas existências sucessivas, já que
numa só vida seria impossível vivenciar todas as experiências necessárias para seu
aprimoramento (KARDEC, 1997b).
Segundo KARDEC (1997b), no espiritismo o progresso intelectual e o progresso moral nem
sempre caminham juntos. Na maioria das vezes, primeiro acontece o desenvolvimento da
inteligência, o progresso intelectual, no qual o homem reduz sua ignorância e conquista a
sabedoria. Em seqüência vem o progresso moral quando, através da compreensão do bem e do
mal, o espírito desenvolve seu livre arbítrio. O progresso moral e o progresso intelectual são
desenvolvidos ao longo das encarnações, ou existências sucessivas dos espíritos. Ao afirmar
que o espírito é responsável por sua própria evolução, o espiritismo se apóia em outro
princípio básico: o livre-arbítrio, pois a doutrina incorpora a idéia de que todo homem tem a
liberdade de pensar e de agir.
No espiritismo, o processo evolutivo do espírito está fundamentado em “leis morais divinas
ou naturais”, que devem reger todas as ações do espírito. Essas leis estão impressas na
consciência do espírito e regem a dimensão moral do ser. Segundo a doutrina espírita, essas
leis são estabelecidas por Deus e, por isso mesmo, são invioláveis. Tais leis são apresentadas
por Kardec (1997b) em O Livro dos Espíritos. São elas: a Lei da Adoração, a Lei do
Trabalho, a Lei da Reprodução, a Lei da Conservação, a Lei da Destruição, a Lei de
Sociedade, a Lei do Progresso, a Lei de Igualdade, a Lei de Liberdade e a Lei de Justiça,
Amor e Caridade. Essas leis foram apresentadas pelos espíritos através das respostas às
perguntas feitas por Kardec.
Segundo a doutrina, se um espírito viola alguma dessas leis, o faz usando seu livre-arbítrio e,
portanto, está submetido a uma punição, como resultado da infração à lei. No entanto, essa
punição é feita pela consciência de cada um, pois não há, como no catolicismo, um tribunal
onde todos serão julgados e condenados. Segundo Kardec (1997b), quando o espírito vive
num corpo físico, ou seja, quando está encarnado, não se lembra de suas vivências anteriores.
Suas atitudes e decisões são conseqüência de seu progresso moral, que está impresso na
44
consciência do espírito. Ao morrer, ou desencarnar, o espírito se recorda das vivências pelas
quais passou e ele próprio é capaz de analisar se agiu conforme as leis divinas ou não. Por
isso, o julgamento e o sentimento de céu e inferno são pertencentes a cada espírito. É um
estado de alma, íntimo, de dentro para fora, e não um julgamento externo.
Para efeito deste estudo, considerou-se importante abordar em maior detalhe as leis divinas,
na medida em que elas regem a doutrina espírita. A identificação de cada uma das leis é tirada
diretamente do texto escrito por Kardec (1997b), O Livro dos Espíritos.
A Lei da Adoração consiste em louvar, agradecer e pedir a Deus através da prece, que deve
ser oriunda do coração, deve ser verdadeira, sentida, vivida. A adoração deve ser um
sentimento inato, assim como o da certeza da existência de Deus. “A consciência de sua
fraqueza leva o homem a curvar-se diante daquele que o pode proteger.” (KARDEC, 1997b,
p. 316). Entretanto, embora a adoração seja de extrema importância dentro da doutrina
espírita, isso não significa que o homem tenha que dedicar sua vida a adorar a Deus, pois o
objetivo da reencarnação, que é o progresso intelectual e moral do homem, não se dá apenas
através da adoração.
Na Lei do Trabalho o espiritismo chama a atenção para a necessidade do trabalho como
meio de aperfeiçoamento da inteligência do homem. Sem ele, o homem permaneceria na
infância da inteligência. “Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar
dependem do seu trabalho e da sua atividade.” (KARDEC, 1997b, p. 329). Por trabalho
entende-se toda ocupação que torna o espírito útil, seja ele o trabalho material ou o trabalho
intelectual. Dessa maneira, a Lei do Trabalho é válida tanto para o rico quanto para o pobre.
Para que possa se desenvolver, como já dito anteriormente, o espírito precisa passar por várias
experiências, o que é possível através da reencarnação. Para que o espírito possa reencarnar é
necessário um pai e uma mãe. Daí resulta a Lei da Reprodução, pois sem a reprodução
biológica o mundo corporal pereceria. Sabedor da importância da vida corpórea para sua
jornada espiritual, o espírito desenvolve, instintivamente, o senso de conservação (Lei de
Conservação).
45
Por outro lado, existe a Lei da Destruição, que afirma que é necessário que ocorra a
destruição para que haja o renascimento e a regeneração. Para se alimentar, os animais
reciprocamente se destroem, fenômeno que tem dois objetivos: manter o equilíbrio da
população e utilizar os despojos para a conservação e a manutenção (alimento e segurança) do
ser vivente. Há que se considerar, no entanto, que as guerras, os assassinatos, as crueldades,
bem como a pena de morte, existem não como integrantes da Lei da Destruição, mas como
conseqüência das escolhas feitas por homens ainda pouco evoluídos moralmente, que querem
satisfazer sentimentos e desejos inferiores.
A vida em sociedade constitui um meio de crescimento para o espírito (Lei de Sociedade).
Como nenhum homem possui faculdades completas, lhes é necessária a vida em sociedade,
para que os homens possam se completar e assegurar seu bem-estar e progresso. Os laços
familiares são os primeiros com que o espírito tem contato, e o lar é de fundamental
importância na educação para a vida em sociedade.
A convivência em sociedade é uma das leis que conduz o homem ao progresso (Lei do
Progresso). Alguns indivíduos progridem mais rapidamente ou de maneira diferente, e os
mais adiantados devem auxiliar o progresso dos mais atrasados através do contato social. O
fato de uns progredirem mais rapidamente do que outros não significa que esses sejam
privilegiados, pois Deus criou todos iguais (Lei de Igualdade). Significa que, ou são mais
experientes, já tendo passado por mais reencarnações, ou se dedicam mais à própria evolução,
através das escolhas que fazem com o uso de seu livre-arbítrio. As desigualdades sociais e
materiais existentes no mundo são assim frutos do orgulho e do egoísmo da humanidade.
Através da Lei de Liberdade a doutrina chama a atenção para o dever de respeitar os direitos
alheios. Não existe liberdade absoluta porque o homem convive em sociedade e, assim sendo,
deve respeitar direitos alheios ao mesmo tempo em que tem os seus direitos respeitados.
Todos, no entanto, têm direito de liberdade de pensamento e de consciência, o que é exercido
através do livre-arbítrio.
No que se refere à Lei de Justiça, Amor e Caridade, a doutrina espírita afirma que o
sentimento de justiça está na natureza, de tal sorte que o homem se revolta com a simples
idéia de injustiça. O caráter do verdadeiro justo, segundo o espiritismo, é aquele que pratica o
46
amor ao próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça. A lei de amor tem
como efeito o aperfeiçoamento moral do homem e a sua felicidade durante a vivência terrena.
Amar é ser honrado, leal e consciencioso, é fazer aos outros o que se deseja para si mesmo, e
é também levar aos sofredores uma palavra de esperança, apoio, alívio, olhando a grande
família humana como sua própria família (KARDEC, 2002).
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec (2002) afirma:
Caridade e humildade, tal a senda única da salvação. Egoísmo e orgulho, tal a da perdição. Este princípio se acha formulado nos seguintes precisos termos: "Amarás a Deus de toda a tua alma e a teu próximo como a ti mesmo; toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos." E, para que não haja equívoco sobre a interpretação do amor de Deus e do próximo, acrescenta: "E aqui está o segundo mandamento que é semelhante ao primeiro", isto é, que não se pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar a Deus. Logo, tudo o que se faça contra o próximo o mesmo é que fazê-lo contra Deus. Não podendo amar a Deus sem praticar a caridade para com o próximo, todos os deveres do homem se resumem nesta máxima: “Fora da Caridade não há Salvação” (KARDEC, 2002, p. 312).
Para maior aderência ao problema de pesquisa, as leis morais enfocadas neste estudo são as
seguintes: a Lei de Sociedade, a Lei do Trabalho, a Lei de Igualdade e a Lei de Justiça, Amor
e Caridade, vistas como passíveis de influenciar o funcionamento das organizações do terceiro
setor ligadas a casas espíritas. Através dessas leis descritas por Kardec, pode-se observar que
o espiritismo se baseia na convivência em sociedade como maneira de exercer o sentimento
de justiça, amor e caridade, a fim de restaurar a igualdade no progresso, ao mesmo tempo em
que defende a idéia de trabalho para que o indivíduo se torne útil na sociedade e vivencie o
sentimento do amor.
Para tornar essa proposta concreta e contribuir para a prática das leis universais, as casas
espíritas, em sua maioria, oferecem espaço para o estudo da doutrina espírita, para o exercício
da mediunidade (comunicação com os espíritos desencarnados com o objetivo de auxiliá-los)
e para o exercício da assistência social aos mais necessitados. Corroborando essa idéia,
Sampaio (2004, p. 167) ressalta o seguinte:
Há duas arenas privilegiadas para a ação social espírita: o cotidiano, uma vez que a proposta ética espírita propõe a transformação do homem na sociedade, e o centro espírita, que possui, pelo menos, um triplo caráter, o de espaço privilegiado para a comunicação com os espíritos, o de lugar dedicado, mas não exclusivo, de estudo da doutrina, e o de exercício da caridade em sua dupla dimensão: moral e material.
47
Com relação ao exercício da caridade, salienta-se o fato de que muitas casas espíritas estão
ligadas a organizações e projetos assistenciais nas quais acolhem idosos, crianças, jovens e
adultos. Como o objeto deste estudo são as organizações de fins sociais (organizações do
terceiro setor) e não os projetos assistenciais, houve a necessidade de definir parâmetros para
que uma atividade social fosse considerada inequivocamente como estruturada em uma
organização, tal como apresentado no QUADRO 4. Ressalta-se que os parâmetros
tradicionais, como a prova de existência jurídica (constituição de pessoa física - CNPJ) ou a
autonomia administrativa, não se aplicavam em algumas das organizações identificadas, que
utilizam o mesmo CNPJ da casa espírita ou que apresentam limites fluidos em relação à sua
autonomia administrativa em relação à casa espírita à qual estão ligadas.
QUADRO 4 Organização de fins sociais X Projeto Social
Fonte: Elaborado pela autora
Assim, para ser caracterizada como uma organização do terceiro setor e ser reconhecida como
objeto desta pesquisa, a atividade social ligada à casa espírita deve ter finalidade social,
envolver funcionários contratados, funcionar pelo menos três dias na semana por mais de
quatro horas, ser realizada continuamente ao longo do tempo, ter local definido para
48
funcionamento distinto daquele da casa espírita e ter funções definidas para os participantes,
havendo algum tipo de hierarquia vertical.
49
3 METODOLOGIA
A presente pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa, que “parte de interesses amplos, que
vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve.” (GODOY, 1995a, p. 58). A pesquisa
qualitativa envolve a obtenção de dados através de pessoas, lugares e processos interativos.
Nessa abordagem, o investigador tem contato direto com a situação estudada, procurando
entender os fenômenos segundo a perspectiva do pesquisado (GODOY, 1995a). Ao realizar a
investigação, o pesquisador interfere na realidade estudada, almejando entender o
comportamento dos indivíduos, focando o seu significado e não a sua mensuração (COLLIS;
HUSSEY, 2005).
Quanto aos fins, a pesquisa é descritiva porque visa a estudar as características de um
fenômeno (VERGARA, 2005), ou seja, as características das organizações do terceiro setor
mantidas por instituições espíritas.
Para atingir o objetivo pretendido, a pesquisa foi realizada em três etapas. A primeira etapa,
que complementou a pesquisa bibliográfica que fundamenta o referencial teórico deste estudo,
foi constituída por uma pesquisa de campo, através de entrevista realizada com o Presidente
da Associação Municipal Espírita (AME) da cidade onde se localizam as casas espíritas
pesquisadas. O objetivo dessa etapa foi o levantamento de dados a respeito da estruturação do
movimento espírita no Brasil e no mundo, bem como o entendimento dos mecanismos de
controle exercidos pelos órgãos representativos do espiritismo sobre as casas espíritas e as
instituições por elas mantidas. Essa etapa se fez necessária, pois não foram encontradas
referências bibliográficas sobre a estrutura do movimento espírita, cujo conhecimento, no
entanto, era pré-condição para a realização da pesquisa pretendida.
Na segunda etapa da pesquisa foi realizada uma pesquisa de campo, através da aplicação de
sondagem nas casas espíritas existentes na cidade, no período compreendido entre 13 de
setembro e 18 de outubro de 2008. A sondagem é viabilizada através de um questionário, que
compreende uma seqüência de perguntas apresentadas por escrito, conforme define Vergara
(2005). Nesse caso, um grupo de pessoas é submetido a uma série de questões com o objetivo
de responder ao problema de pesquisa proposto. O intuito de realização da sondagem foi
50
mapear as instituições sociais mantidas pelas casas espíritas da cidade, assim como identificar
as características dessas instituições e algumas das práticas de funcionamento por elas
adotadas. Para a construção desse questionário (apresentado no APÊNDICE A), foi utilizada
como subsídio a teoria produzida sobre o terceiro setor.
Foram submetidas a esse questionário doze das treze casas espíritas da cidade cadastradas na
AME. Quando a casa espírita se encontrava ligada a alguma organização de fins sociais,
responderam ao questionário os dirigentes máximos das respectivas organizações de fins
sociais. No caso das casas que não se encontravam diretamente ligadas a organizações do
terceiro setor, os dirigentes das casas responderam a uma parte do questionário (apenas uma
das casas não foi contatada, por dificuldade de acesso através do cadastro da AME). A
princípio pensou-se em submeter os dados coletados a análises estatísticas descritivas simples.
Mas devido ao número reduzido de instituições mantidas pelas casas espíritas (apenas quatro),
optou-se por uma análise qualitativa das respostas obtidas através do questionário, que foi
aplicado, em todos os casos, em entrevistas pessoais com os respondentes.
Um aspecto que merece ser ressaltado é o fato de que o entrevistador foi bem recebido em
todas as casas espíritas, não havendo resistência ao fornecimento das informações solicitadas,
mesmo em uma das casas em que o entrevistado declarou não concordar com a escolha do
tema da pesquisa. Segundo ele, não seria característica da doutrina espírita a manutenção de
programas de assistência social, sendo que a atividade espírita deveria se concentrar no estudo
das obras de Kardec e no Evangelho de Jesus. Na visão dessa casa espírita, este estudo
deveria ter sido realizado em instituições do governo.
Em nenhuma casa houve solicitação de comprovação de vínculo do pesquisador com a
instituição de ensino ou com a doutrina espírita, embora o entrevistador tenha se apresentado
como participante ativo em uma das casas espíritas da cidade e mencionado que o contato
com aquela instituição foi favorecido pelo presidente da AME, o que pode ter contribuído de
certa forma para essa receptividade.
Na terceira etapa da pesquisa foi realizado um estudo de caso, em uma das instituições sociais
mantidas por uma casa espírita da cidade, a fim de conhecer particularidades da gestão dessa
organização, bem como seus processos de criação e funcionamento. Essa etapa fez-se
51
necessária para maior aprofundamento do tema pesquisado, já que a sondagem possibilitou
uma visão mais abrangente da gestão das instituições, mas não permitiu uma análise mais
detalhada e rica do histórico de funcionamento dessas organizações ao longo do tempo.
Yin (2005) afirma que um estudo de caso é realizado em resposta ao desejo de compreender
fenômenos sociais complexos. O estudo de caso caracteriza-se como sendo uma investigação
empírica que investiga um fenômeno em seu contexto de vida real, sendo que o limite entre o
fenômeno e o contexto não é bem definido. O estudo de caso baseia-se em diversas fontes de
evidências e beneficia-se de aspectos teóricos para conduzir a coleta e análise de dados.
De acordo com Ludke e André (1986, p. 17), o estudo de caso “é sempre bem delineado,
devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo”. Tais autores
afirmam que os estudos de casos revelam experiência vicária, permitem generalizações
naturalísticas, visam à descoberta e enfatizam a interpretação em contexto, retratando a
realidade de forma completa e profunda, utilizando para isso de diversas fontes de
informação.
No estudo de caso proposto, a coleta de dados foi realizada no período de 13 a 27 de outubro
de 2008, através de entrevistas semi-estruturadas – conforme roteiro apresentado no
APÊNDICE B – e análise documental.
A pesquisa documental, segundo Vergara (2005, p. 48) é “realizada em documentos
conservados no interior de órgãos públicos e privados de qualquer natureza, ou com pessoas”.
Segundo Guba e Lincoln15 (apud LUDKE; ANDRÉ, 1986), os documentos constituem uma
fonte rica, estável, natural, não-reativa e poderosa de informação, de onde se podem tirar
evidências que fundamentem as declarações e afirmações do pesquisador, fornecendo
informações sobre um determinado contexto. No presente estudo, a pesquisa documental
beneficiou-se da leitura de documentos relativos à constituição da casa espírita.
De acordo com Collis e Hussey (2005, p. 160), “entrevistas são um método de coleta de dados
no qual perguntas são feitas a participantes selecionados para descobrir o que fazem, pensam
15 GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Effective evaluation. San Francisco, Ca: Jossey-Bass, 1981.
52
ou sentem”. Os autores afirmam ainda que as entrevistas semi-estruturadas são apropriadas
nos seguintes casos:
− [quando] é necessário entender o construto que o entrevistado usa como base para suas opiniões e visões sobre determinada questão ou situação; − [quando] um objetivo da entrevista é desenvolver um entendimento do “mundo”do respondente, de modo que o pesquisador possa influenciá-lo, de modo independente e colaborativo (como pode acontecer na pesquisa ação).
COLLIS; HUSSEY (2005, p. 160)
Uma das doze casas espíritas participantes da segunda etapa de pesquisa, a Casa Espírita
Cantinho de Amor, foi o foco desse estudo de caso. Essa casa foi escolhida por acessibilidade
e por ser a instituição mais antiga da cidade. Três sujeitos de pesquisa foram entrevistados: a
fundadora da casa espírita, Sônia Bitencourt Vieira, que foi dirigente da creche mantida pela
casa, o Centro Educacional Viver (CEV) por 25 anos; a atual dirigente dessa organização de
fins sociais e irmã da sua fundadora, Sueli Bittencourt Drummond; e uma das dirigentes
anteriores, Patrícia Bitencourt Vieira, filha da fundadora, que ficou à frente da organização
por apenas um ano, mas acompanhou de perto a gestão de sua mãe. Essas pessoas
acompanharam o processo de criação do CEV, podendo assim reconstituir seu histórico desde
a fundação, e podendo igualmente depor sobre seu funcionamento e gestão. Depois de
redigido o capítulo da análise dos dados, uma nova entrevista foi realizada com a fundadora
da casa, a fim de esclarecer dúvidas e complementar informações.
A análise dos dados coletados foi realizada através da análise de conteúdo das entrevistas
transcritas, cada uma com aproximadamente 1 hora e meia de duração. A análise de conteúdo,
à qual foram submetidas as entrevistas transcritas, de acordo com Bardin16 (apud GODOY,
1995b, p. 23), “consiste em um instrumental metodológico que se pode aplicar a discursos
diversos e a todas as formas de comunicação, seja qual for a natureza do seu suporte”.
Segundo Goulart (2002), a utilização da análise de conteúdo para a interpretação dos dados é
um recurso valioso, mas há que se definir claramente o objeto de análise para que se reúnam
informações passíveis de serem combinadas a analisadas.
Goulart (2002) descreve três etapas da análise de conteúdo: pré-análise, exploração do
material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise, o pesquisador
faz uma leitura flutuante dos documentos; escolhe os documentos que deseja analisar e,
16 BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 60, 1977.
53
finalmente, formula as hipóteses e objetivos. Na etapa de exploração do material, o
pesquisador faz a codificação dos elementos do texto analisado e faz uma categorização do
conteúdo. No tratamento dos resultados, o pesquisador realiza a síntese e seleção de
resultados, inferências e interpretações. “O objetivo final e mais importante da análise de
conteúdo é produzir inferências válidas.” (GOULART, 2002, p. 172).
54
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
4.1 Caracterização das instituições de terceiro setor estudadas
4.1.1 As casas espíritas e as organizações de fins sociais a elas ligadas: caracterização
A fim de mapear as organizações ou projetos sociais mantidos pelas casas espíritas de uma
cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, bem como identificar as características
dessas organizações do terceiro setor e as práticas de gestão por elas adotadas, 12 das 13 casas
espíritas da cidade responderam a um questionário fechado, aplicado em entrevistas pessoais
realizadas pela própria pesquisadora com o responsável pela casa espírita. Nas casas espíritas
ligadas a organizações de fins sociais, onde o dirigente da casa espírita e o da organização não
eram a mesma pessoa, a entrevista foi realizada apenas com o dirigente da organização.
Como pode ser observado no QUADRO 5, apenas quatro casas mantêm organizações de
cunho social, conforme os critérios definidos por esta pesquisa: Casa Espírita Cantinho de
Amor, Grupo de Fraternidade Espírita Luz e Paz, Grupo Espírita Maria João de Deus e Grupo
Espírita André Luiz. Todas essas casas espíritas estão ligadas a organizações de fins sociais
onde se constata a presença de funcionários contratados, todas elas funcionam mais de três
dias da semana por mais de 4h / dia, apresentam atividade contínua ao longo do ano, realizam
as atividades em locais apropriados, distintos da casa espírita, e apresentam algum tipo de
hierarquia.
55
QUADRO 5 Instituições e projetos sociais mantidos pelas casas espíritas
Fonte: Elaborado pela autora
Três das casas espíritas às quais estão ligadas instituições do terceiro setor têm mais de 20
anos de funcionamento, e uma quarta casa tem 15 anos; ou seja, são todos centros que
perduraram ao longo do tempo, sendo por isso considerados sólidos e possuidores de
reconhecimento social estabelecido.
Acredita-se que a solidez e o reconhecimento da casa espírita possam estar ligados ao fato de
que a casa manter uma organização do terceiro setor. No entanto, parece estabelecer-se uma
dinâmica de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que a organização de fins sociais fortalece
a reputação da casa espírita, a solidez e a reputação da casa espírita favorecem sua dedicação
à gestão de uma instituição filantrópica, como se verá adiante. No caso da organização de fins
56
sociais estudada em profundidade, essa foi chamada a gerir uma creche, devido justamente ao
reconhecimento de suas ações junto à comunidade.
Apesar da longa permanência das casas espíritas que mantêm organizações de fins sociais,
observa-se que não há relação determinante entre o tempo de existência das casas espíritas e a
manutenção de organizações do terceiro setor, visto que o Centro Espírita Allan Kardec
funciona há 28 anos, foi a segunda casa espírita a ser fundada na cidade, e não mantém
instituição filantrópica ou social. O contrário se constata a respeito do Centro Espírita Padre
Germano: uma casa espírita relativamente nova, de 15 anos, à qual está ligada uma
organização do terceiro setor.
Percebe-se que todas as casas espíritas mantêm projetos sociais (inclusive aquelas que
mantêm organizações de cunho social). Através desses projetos, as casas declararam que
acreditam aplicar as Leis Morais preconizadas por Kardec (1997b), como a Lei de Amor
Justiça e Caridade, onde é enfatizado que amar, ser caridoso e justo é levar consolo aos que
necessitam, tendo-os como parte integrante da grande família humana. A prática social das
casas espíritas responde também à Lei de Sociedade, segundo a qual Kardec defende que é a
convivência em sociedade que faz com que os homens se complementem e assegurem o bem-
estar e o progresso. Fortalecendo essa idéia, Giumbelli17 (1998, apud Sampaio, 2004) afirma
que o espiritismo brasileiro se destaca pela prática da caridade, o que foi corroborado pela
entrevista realizada junto à AME, segundo a qual a prática da caridade se revela como
característica marcante, aglutinadora do movimento espírita e diferenciadora do espiritismo
brasileiro em relação à doutrina espírita praticada na Europa.
As questões que se colocam são as seguintes: em primeiro lugar, por que algumas casas
espíritas mantêm organizações e projetos sociais e outras mantêm apenas projetos sociais, e
em segundo lugar, por que a predominância da realização de projetos sociais em relação à
manutenção de organizações. A presença de diferentes maneiras de se colocar em prática os
fundamentos da doutrina espírita pode ser explicada pela inexistência de diretiva a respeito e,
conseqüentemente, de controle por parte dos órgãos integrantes do movimento espírita
brasileiro, como a AME e a FEB. Acredita-se também que as diferentes práticas podem ser
17 GIUMBELLI, Emerson. Caridade, assistência social, política e cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. In: LANDIM, Leilah (Org.) Ações em sociedade: militância, caridade, assistência, etc. Rio de Janeiro: NAU, 1998.
57
explicadas pela Lei de Liberdade, explicitada pela doutrina espírita, e pelo princípio do livre-
arbítrio, que defendem que todos têm direito à liberdade de pensamento e consciência, o que
se aplica também às decisões e às atividades das casas espíritas.
Finalmente, é inegável a maior dificuldade da manutenção de uma organização de terceiro
setor em relação à prática de projetos sociais pontuais, mesmo que esses se repitam com
freqüência e apresentem certa perenidade. A estrutura necessária a uma organização, a
presença de funcionários contratados, o planejamento a curto e médio prazos, a
sustentabilidade financeira e a dedicação intensa e mesmo exclusiva de voluntários dificultam
ou mesmo impossibilitam a fundação e a manutenção de instituições filantrópicas ou sociais
por todas as casas espíritas.
Como o objeto de estudo da presente pesquisa são as organizações do terceiro setor mantidas
pelas casas espíritas de uma cidade da grande Belo Horizonte, a partir deste ponto as análises
serão restritas às quatro organizações identificadas no QUADRO 6. A análise dos projetos
sociais será retomada posteriormente.
QUADRO 6 Características das organizações do terceiro setor mantidas pelas casas espíritas
Fonte: Elaborado pela autora
As quatro organizações do terceiro setor objeto deste estudo são três creches e uma casa de
repouso para idosos. Portanto, não há público-alvo específico de instituições ligadas às casas
espíritas, mas constatou-se certa preferência pelo trabalho com crianças.
58
Como apresentado no QUADRO 6, todas as organizações foram fundadas por casas espíritas.
Isto leva a crer que o ideal de fundação de uma organização de fins sociais ou filantrópica
corresponde aos preceitos defendidos pelo espiritismo. Duas dessas instituições têm CNPJ
próprio e duas utilizam o mesmo CNPJ da casa espírita. O interessante é que as duas
instituições que não têm CNPJ próprio são as mais antigas: Centro Educacional Viver,
mantida pela casa espírita mais antiga da cidade, a Casa Espírita Cantinho de Amor (objeto da
terceira etapa dessa pesquisa), e a mais nova, Casa de Repouso Amor, mantida pelo Grupo
Espírita André Luiz, a segunda casa mais nova da cidade. Dessa forma, a idade das
instituições não se relaciona à manutenção ou não de CNPJ próprio. Na pesquisa não foi
identificado o motivo que levou as duas instituições a se distinguirem juridicamente das casas
espíritas às quais estão ligadas.
Outro fato que merece destaque é o tempo de atuação dessas organizações do terceiro setor.
Uma delas existe há mais de 20 anos, e outras duas há mais de 15 anos, o que demonstra que
as instituições sociais se organizaram de tal forma que foram capazes de enfrentar desafios ao
longo do tempo, mesmo não estando legalmente definidas.
Ao observar o horário de funcionamento das organizações, constata-se que as creches
funcionam em tempo integral, abrigando as crianças durante todo o dia. As atividades
desenvolvidas nas creches incluem alimentação (café da manhã, lanche leve na metade da
manhã, almoço, lanche leve na metade da tarde e jantar), higiene pessoal (banho e escovação
de dentes), atividades educacionais direcionadas, repouso, lazer, comemoração de datas
especiais (como Dia das Crianças e Natal) e excursões. São também realizadas atividades para
a transmissão de princípios morais cristãos, comuns a todas as religiões cristãs, e atividades
específicas relacionadas à doutrina espírita, tais como a evangelização e o culto espírita.
A divulgação dos princípios da doutrina espírita para as crianças é uma característica peculiar
das creches espíritas, que se preocupam com a formação moral das crianças, nas quais
desejam ver enraizados os conceitos relacionados aos princípios cristãos. Não se abordam
questões mais polêmicas, como a reencarnação, mas são discutidos vários dos princípios
adotados pelo espiritismo que estão presentes em todas as religiões cristãs, como a existência
de um Deus único, a imortalidade da alma, o amor ao próximo, a figura de Jesus, as penas e
os gozos futuros. Apesar de existirem críticas a esse respeito por aqueles que defendem a
59
educação laica, as creches entrevistadas defendem a idéia de que as crianças devem ter uma
formação moral e religiosa, independentemente da religião adotada pela família.
As três creches controlam os resultados obtidos, ainda que de maneira informal. No Centro
Educacional Viver - CEV, ao fazer o acompanhamento das crianças ao longo do tempo, os
monitores e a diretora do Centro avaliam se as crianças desenvolveram hábitos salutares
(como a cordialidade), se apresentam o comportamento esperado (sentando-se à mesa para
fazer as refeições, escovando os dentes e tomando banho) e se respeitam as regras de
convivência. Verifica-se se as crianças que chegam à creche desnutridas ganham peso, e se as
crianças que têm dificuldade na fala obtêm progressos com o passar do tempo.
Este tipo de avaliação é muito subjetiva e só é possível quando se acompanha de perto o
assistido, atendendo às suas necessidades individuais. Tal prática, presente no CEV, reforça a
afirmação de Teodósio (2001b) de que as organizações do terceiro setor estão mais próximas
do cidadão, o que facilita a execução dos objetivos propostos (TEODÓSIO, 2001a).
Na Creche Futuro, a mensuração dos resultados é feita pelas pedagogas em relação às crianças
maiores de seis anos que têm necessidade de reforço escolar. É também acompanhada a
melhoria do desempenho dessas crianças na escola regular. Não foi mencionado
acompanhamento para as crianças menores.
Na Creche Esperança, cada criança tem uma ficha onde é anotado seu rendimento. É feita
uma análise trimestral da ficha pelo pedagogo da creche, pelos professores e pelos pais. Em
2009 essa ficha será também encaminhada para a escola regular, para que a escola tenha
conhecimento das crianças que estão recebendo. Este será o primeiro ano em que essa medida
será adotada. É nessa creche, portanto, que o controle dos resultados é mais formalizado e
realizado com regularidade pré-determinada.
É interessante notar que em todas as creches entrevistadas, quando se pergunta sobre o
controle de resultados, os respondentes citam espontaneamente o controle dos efeitos
qualitativos do trabalho da creche sobre sua clientela, as crianças. Não foram mencionados
controles administrativos, parciais ou quantitativos (como número de assistidos, horas
trabalhadas, horas de freqüentação ou número de crianças que atingem determinado nível de
60
escolarização), o que demonstra a percepção particular que esses dirigentes têm dos resultados
atingidos por suas organizações, que se voltam ao acompanhamento qualitativo, contínuo e
individual do desenvolvimento das crianças.
A quarta organização estudada é uma casa de repouso. Sendo um local para a residência de
idosos, ela funciona 24 horas por dia. As principais atividades desenvolvidas são higiene,
alimentação, fisioterapia, serviço médico, fornecimento de remédios de acordo com
prescrição médica, além de atividades de lazer, como assistir televisão e ouvir música. Não foi
citada nenhuma forma de mensuração de resultados.
Todas as instituições impõem requisitos que devem ser atendidos por seus assistidos. No caso
das creches, uma exigência feita por todas elas é que as mães das crianças devem comprovar
vínculo de trabalho. Em duas delas devem também comprovar baixa renda, e na creche que
atende crianças acima de seis anos através do reforço escolar, há exigência de que as crianças
estejam devidamente matriculadas em escola regular (QUADRO 7).
QUADRO 7 Requisitos para ser atendido pelas instituições
Fonte: Elaborado pela autora
Acredita-se que o impacto social visado pela exigência de que as mães estejam trabalhando,
embora aparentemente pequeno, não pode ser desprezado, o que foi comprovado na entrevista
semi-dirigida realizada na terceira etapa desta pesquisa. Por outro lado, tal prática possibilita o
rompimento de tais organizações de fins sociais com o assistencialismo, uma das
características positivas do terceiro setor tal como ele se configura na atualidade, conforme
elucida Teodósio (2001b).
61
Ainda sobre as creches, o Centro Educacional Viver atende a 60 crianças que contribuem
mensalmente com R$20,00 cada. A Creche Futuro atende 70 crianças que contribuem com
R$10,00 cada. Já a Creche Esperança é menor, atende 30 crianças e tem uma contribuição
mensal de 10% do salário mínimo. Considerando que o salário mínimo em 2008 é de
R$415,00, o valor dessa contribuição corresponde a R$41,50, ficando portanto acima do valor
das demais creches.
Já que não foram destacadas diferenças nas atividades desenvolvidas com as crianças que
justifiquem a diferença entre os valores das contribuições mensais, explicações para esse fato
podem ser a quantidade de funcionários contratados por assistido, a remuneração dos
dirigentes ou a dificuldade de se obter recursos junto aos parceiros, elementos que serão
comentados mais à frente.
No entanto, deve-se destacar que a contribuição mensal das crianças representa um valor
simbólico, pois somente essa quantia não seria capaz de cobrir os custos de manutenção das
atividades das creches. Por outro lado, a contribuição mensal tem um valor substancial
quando observada sob o ponto de vista do comprometimento dos pais com a creche. Os
entrevistados acreditam que a mensalidade imposta pelas creches é uma forma de fazer com
que as mães valorizem o trabalho desenvolvido e se interessem pelos assuntos que dizem
respeito à manutenção de seus filhos na creche. A obrigatoriedade de que as mães trabalhem
faz com que haja um compromisso de mão dupla: a mãe busca o sustento da família enquanto
a creche cuida dos filhos pequenos.
A casa de repouso atende 27 idosos, que, para serem aceitos na instituição, devem ter: idade
acima de 60 anos, boa saúde mental, capacidade de se alimentar sem uso de sonda, e
capacidade de respirar sem uso de balão de oxigênio. Cada idoso contribui mensalmente com
um salário mínimo. Entretanto, existem exceções, pois em alguns casos os familiares recebem
a aposentadoria do idoso e não a repassam para a instituição ou a repassam parcialmente,
devido a dívidas contraídas com base no benefício do idoso. Em outros casos os idosos
encaminhados para a casa de repouso não têm família nem condições financeiras de arcar com
suas despesas.
62
O valor da contribuição mensal dos assistidos não difere do de outras instituições similares,
não espíritas, que acolhem idosos. É um valor elevado em relação ao valor cobrado pelas
creches, mas deve-se levar em consideração que os gastos envolvidos também são maiores.
Por outro lado, são muito divulgadas as parcerias do Governo para aprimorar a educação de
crianças, mas raramente se fala em auxílio para instituições que assistem idosos.
A casa de repouso se responsabiliza por todos os gastos dos idosos, como alimentação, fraldas
geriátricas, médicos, exames e remédios. Uma das dificuldades financeiras enfrentadas por
essa organização se deve ao fato de que, embora na época da admissão seja exigido que o
idoso possa se alimentar e respirar adequadamente, caso haja necessidade de cuidados
médicos especiais ou a necessidade da utilização de instrumentos especiais, a casa não pode
“devolver” o idoso para a família, já que essa não lhe dedicou a atenção necessária nem
mesmo enquanto o idoso possuía boas condições de saúde. Nesses casos, a organização acaba
por também absorver as despesas com esses cuidados especiais.
Kardec (1997b), quando aborda a Lei do Trabalho, faz referência àqueles que precisam
trabalhar para sobreviver e não podem fazê-lo – como é o caso dos idosos –, cujas
necessidades devem ser supridas pela sociedade. Nesse ponto observa-se aderência do
trabalho desenvolvido pela casa de repouso à Lei de Sociedade.
4.1.2 Funcionários e voluntários
Em todas as organizações de fins sociais pesquisadas trabalham funcionários contratados e
voluntários, como pode ser observado no QUADRO 8. A presença de mão-de-obra voluntária
é uma característica do terceiro setor, sendo que, como elucida Teodósio (2001a), a existência
de voluntários não exclui a existência de mão-de-obra contratada em tais organizações.
63
QUADRO 8 Funcionários contratados e voluntários
Fonte: Elaborado pela autora
Nas três creches, os funcionários são contratados de acordo com a Consolidação das Leis
Trabalhistas – CLT, tendo, portanto, carteira assinada, encargos como INSS e FGTS
recolhidos pelas instituições, bem como direito a férias, 13° salário e demais direitos
determinados pela CLT. Na casa de repouso trabalham funcionários contratados que não
possuem carteira assinada. Provavelmente esse fato se deve aos custos envolvidos na
contratação de funcionários de acordo com a CLT. A manutenção da casa de repouso, como já
mencionado, implica em um maior número de funcionários e em grandes despesas, no que
essa se diferencia das creches, prevalecendo igualmente uma grande dificuldade em se
estabelecer parcerias com o setor público.
Nas instituições do terceiro setor estudadas, aparentemente não existe uniformidade no que se
refere à participação de contratados e voluntários nas atividades espirituais propostas pela
casa espírita. Em duas creches não há vínculo dos contratados com a casa espírita, mas todos
os voluntários freqüentam a casa espírita ligada à creche em que trabalham, embora essa não
seja uma exigência da creche. Na outra creche pesquisada acontece a situação contrária:
apenas os contratados freqüentam a casa espírita. Na casa de repouso, nem contratados nem
voluntários participam das atividades espirituais da casa correspondente.
Assim, exclui-se a possibilidade de que o controle das atividades exercidas pelos contratados
e pelos voluntários se realize unicamente (ou fundamentalmente) pela casa espírita à qual a
organização de fins sociais está ligada. A pressão simbólica, espiritual ou religiosa pode
64
contribuir para o controle das atividades desempenhadas pelos contratados e voluntários, mas
não é, nos casos estudados, sua a principal forma de controle. Assim, a questão colocada é a
seguinte: como as organizações estudadas fazem com que os que ali trabalham cumpram suas
tarefas, de maneira efetiva?
Os funcionários contratados nas creches são professores, monitores, cozinheiros e faxineiros.
Em uma das instituições (Creche Esperança), o dirigente também é contratado. O controle
formal do desempenho dos funcionários é praticamente inexistente em todas as organizações.
Faz-se controle de presença através de livro de ponto e, em duas organizações, (Centro
Educacional Viver e Creche Esperança), há acompanhamento das atividades realizadas com
as crianças, acompanhamento esse efetuado por pedagogas. Não existe controle formal das
tarefas dos contratados na casa de repouso.
No entanto, a perenidade das instituições ao longo do tempo, administrando tanto
funcionários contratados como voluntários com tarefas aparentemente definidas, leva a crer
na existência de controles informais que garantem que as diretrizes traçadas pelo dirigente da
instituição sejam cumpridas. Assim, acredita-se que as atividades desses funcionários sejam
controladas, sobretudo por supervisão direta, realizada pelos dirigentes das instituições (e, no
caso das duas creches, pelas pedagogas), assim como por pressão dos pares, que também
transmitem seus conhecimentos aos novos funcionários e voluntários na prática cotidiana. Os
pares acabam por impor, uns aos outros, um padrão de comportamento. A clareza das
determinações do dirigente foi mencionada na entrevista em uma das creches como definidora
do sucesso do trabalho desempenhado pelos voluntários. Acredita-se também que os
treinamentos e reciclagem periódicos, presentes em duas creches e na casa de repouso,
contribuam igualmente para o controle do comportamento dos trabalhadores dessas
instituições.
No momento de realização das entrevistas, a Casa Espírita Cantinho de Amor e o Grupo
Espírita André Luiz constataram que há necessidade de se aprimorar o controle nessas
organizações, já que as informações existem, mas não estão organizadas de maneira que
possam ser rapidamente consultadas. Nessas duas organizações os dirigentes mencionaram
que é seu desejo criar mecanismos que transformem os dados em informação, permitindo
análises para identificar oportunidades de melhoria. Como exemplo, foi citada a necessidade
65
de um maior controle sobre a evolução mensal dos gastos da organização, e ainda a
elaboração de estatísticas sobre as crianças atendidas. Essa observação, feita pelos dirigentes
das organizações estudadas sobre a necessidade de melhorar o controle e garantir a
transparência das informações, é também abordada por Falconer (1999) com base no princípio
da stakeholder accountability, que consiste na manifestação de posições claras e apresentação
de resultados concretos que legitimem a organização de fins sociais perante a sociedade,
protegendo-a dos escândalos oriundos das organizações fraudulentas existentes no terceiro
setor.
Os funcionários contratados das organizações de fins sociais estudadas participam de
treinamentos que são oferecidos pela Prefeitura ou por outras instituições, como o SESC e a
APAE. No Centro Educacional Viver é realizado um treinamento introdutório quando da
contratação dos funcionários, e anualmente, antes de iniciadas as atividades, é feita uma
reciclagem com o corpo de funcionários. Além disso, periodicamente são feitas reuniões
administrativas entre o dirigente e os funcionários. Na Creche Esperança são oferecidas
palestras, ministradas por professores de educação física, que ensinam aos funcionários
atividades com brincadeiras direcionadas e métodos de reciclagem de material pedagógico.
Na casa de repouso os funcionários exercem tarefas como medir pressão, fazer exame de
glicose, dar banho, cortar unha, auxiliar os idosos nas refeições e na ingestão de remédios,
fazer atividades relativas à faxina, lavanderia e manutenção da horta. Como grande parte dos
funcionários não freqüentou cursos na área de saúde, tais como formação em auxiliar de
enfermagem, é oferecido treinamento a esses funcionários sobre como lidar com idosos e
realizar práticas simples, como medir pressão e glicose.
Os voluntários, tanto nas creches quanto na casa de repouso, exercem tarefas como auxílio na
limpeza, auxílio na cozinha, auxílio às monitoras do maternal, suporte pedagógico e
psicológico, evangelização, tarefas administrativas (relacionadas à gestão da organização) e
serviços de cabeleireiro.
Na casa de repouso não existe controle formal das atividades exercidas pelos voluntários. No
entanto, eles devem seguir as normas gerais da instituição, não havendo distinção entre as
normas dos funcionários e dos voluntários. Tais normas se referem, por exemplo, ao cuidado
66
com os idosos, que não devem ser obrigados a nada: por exemplo, não são obrigados a cortar
o cabelo, a fazer a barba, a comer o que não gostam, nem a receber visitas de representantes
de religiões que não a sua (já que existem idosos de diferentes credos na instituição). Também
não existe treinamento para os voluntários, que se interam das normas da organização e
aprendem a desempenhar seu trabalho na casa de repouso na prática cotidiana.
Nas creches, é feito o controle de presença dos voluntários e o dirigente é quem determina as
atividades a serem desenvolvidas por eles. As normas a serem seguidas pelos voluntários
diferem entre as instituições. Na Creche Futuro, há exigência da assinatura do “termo do
voluntário”; na Creche Esperança é solicitado que o voluntário avise com antecedência
quando precisar faltar; e no Centro Educacional Viver os voluntários têm que participar do
treinamento e da reciclagem anual e assistir semanalmente a uma reunião evangélica na casa
espírita.
Teodósio (2001a) e Moretti (2007) esclarecem que alguns autores defendem a utilização de
voluntários apenas em tarefas de menor exigência profissional e em atividades que não
comprometam o funcionamento das organizações. Entretanto, embora essa possa ser a
situação ideal, não é o que se constatou na pesquisa, pois os voluntários exercem atividades
fundamentais nas instituições estudadas, como suporte pedagógico e gestão administrativa e
financeira das instituições. Os voluntários também auxiliam na cozinha, na limpeza e no
cuidado com as crianças e idosos. No entanto, é fato que a regularidade do funcionamento
cotidiano das instituições é garantida por professores, monitores e cuidadores contratados, que
lidam diretamente com as crianças e com os idosos.
4.1.3 Dirigentes e estrutura hierárquica das instituições estudadas
Com relação aos dirigentes das organizações, conforme explicitado no QUADRO 9, em todos
os casos estudados eles são indicados pela casa espírita e devem ser trabalhadores atuantes na
mesma, o que indica a influência da casa espírita (e da doutrina) na direção e na gestão das
instituições. Inclusive, em todos os casos, o órgão máximo no organograma das organizações
do terceiro setor é a diretoria da casa espírita, seguida pelo dirigente da organização e pelos
67
funcionários contratados e voluntários (FIG. 3). O administrador financeiro da organização de
fins sociais também é o tesoureiro da casa espírita, embora sua atuação, no que se refere à
organização, esteja subordinada ao dirigente de cada organização de fins sociais.
QUADRO 9 Dirigente das instituições
Fonte: Elaborado pela autora
FIGURA 3 – Organograma das organizações de fins sociais Fonte – Elaborado pela autora
A estrutura hierárquica das organizações estudadas tem apenas três níveis: como um deles é a
diretoria da casa espírita, dentro da organização de fins sociais propriamente dita existem
68
apenas dois níveis hierárquicos, além dos funcionários de staff, como tesoureiro ou
pedagogos. Portanto, constata-se em todos os casos a presença de uma estrutura simples
(MINTZBERG, 2003), centralizada na figura do dirigente, sem grande especialização de
tarefas. Estudos realizados por Teodósio (2001b) e Sampaio (2004) endossam como
característica de organizações do terceiro setor a presença de estruturas mais enxutas, mais
ágeis e desburocratizadas do que em outros setores.
Em uma das instituições, o Centro Educacional Viver, foi citado como requisito para a
escolha do dirigente que ele tenha noções de pedagogia e administração. Esse é um fato que
se destaca nessa organização em relação às demais, já que, conforme elucidam Salvatore
(2004) e Teodósio (2001b), a gestão é o principal desafio a ser enfrentado pelo setor. O
requisito demonstra o amadurecimento da organização e sua atenção para a necessidade de
aprimorar não apenas a parte pedagógica, mas também sua gestão.
Em duas organizações, o Centro Educacional Viver e a Creche Esperança, não existe mandato
pré-definido para o dirigente. Na Creche Futuro e na Casa de Repouso Amor, o mandato é de
dois anos.
Os dirigentes são responsáveis pela coordenação geral das organizações (incluindo a educação
infantil), supervisionam as atividades dos funcionários e voluntários, realizam o controle de
almoxarifado, dirimem assuntos relativos às crianças e constituem o canal de comunicação
entre a instituição e as mães das crianças. Na Creche Esperança o dirigente também é
responsável pela cozinha e faxina, e apenas nessa organização, dentre as estudadas, o
dirigente é remunerado.
Apesar de as organizações de fins sociais estudadas serem formalmente ligadas às casas
espíritas, inclusive em sua hierarquia, tal como apresentado pelos entrevistados, elas gozam
de relativa autonomia de gestão, devendo, no entanto, prestar contas à diretoria das casas
espíritas (a autonomia de gestão nos leva inclusive a reconhecê-las, em si mesmas, como
organizações de fins sociais pertencentes ao terceiro setor). Em todos os casos estudados, os
dirigentes das organizações definem onde serão aplicados os recursos e têm poder de decisão
de compra de produtos e serviços necessários para a manutenção da organização de fins
sociais. No Centro Educacional Viver observou-se que as decisões sobre a aplicação de
69
recursos no dia-a-dia são feitas pelo dirigente da organização, mas as decisões de gastos que
fogem à rotina da organização, como reformas e aquisição de móveis e equipamentos, são
submetidas aos dirigentes da casa espírita.
4.1.4 Parcerias e recursos financeiros
Para explorar a questão da sustentabilidade financeira das organizações de fins sociais
estudadas, foram abordadas nas entrevistas as parcerias que essas organizações mantêm
presentemente. Dentre as parcerias das organizações, apresentadas no QUADRO 10, destaca-
se a Mesa Brasil SESC, que é parceira de todas as quatro organizações de fins sociais.
Essa parceria com o SESC fornece orientação nutricional e fornece alimentos quinzenalmente
às organizações. O SESC recolhe excedentes de alimentos de produtores em pontos
comerciais e os redistribui. Esses alimentos são próprios para o consumo, mas não apresentam
valor comercial. Em contrapartida, as organizações beneficiadas devem apresentar a
documentação solicitada e encaminhar representantes para participar dos cursos de orientação
nutricional que são ofertados pelo SESC.
70
QUADRO 10 Parcerias
Fonte: Elaborado pela autora
Além da parceria com a Mesa Brasil SESC, as três creches têm parceria com o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação - FUNDEB e com o Fundo para a Infância e a Adolescência - FIA. O FUNDEB é
mantido pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC – e sua participação consiste em um
repasse mensal de verba do Governo Federal para a educação infantil. Essa verba é
encaminhada para a Prefeitura, que então a repassa para as instituições. Para se beneficiar
dessa parceria, as creches devem oferecer pré-escola (ou seja, admitir crianças de 3 a 6 anos
de idade), empregar profissionais formados ou em formação e prestar contas dos recursos
recebidos. O objetivo do MEC é regulamentar, em três ou quatro anos, todas as instituições
brasileiras dedicadas à pré-escola. Para tanto, algumas exigências são feitas às organizações,
como a presença de uma pedagoga na instituição, a presença de monitoras formadas ou em
71
formação, a adoção de um regimento interno com cláusula de inclusão social e a
regulamentação da situação burocrática da instituição de ensino junto ao MEC.
A parceria com o FIA consiste no repasse anual de verba para a execução de pequenas
reformas nas instalações das creches. Essa verba é oriunda da parcela do imposto de renda
que pessoas físicas e jurídicas direcionam para o Fundo através da Renúncia Fiscal. Para
terem acesso a essa verba, as creches devem elaborar um Plano de Aplicação, que é
submetido à avaliação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente,
responsável pela destinação da verba do FIA. As creches também devem ter executado o
Plano de Aplicação aprovado no ano anterior, caso exista.
Foram identificados outros quatro parceiros das organizações estudadas, entre eles somente
uma empresa privada, a CERNE Engenharia, que fornece mensalmente cesta básica e material
de construção para a Creche Futuro. Semestralmente a Caixa Econômica Federal fornece
sucata para a Casa de Repouso Amor; o SERVAS (organização do terceiro setor) também
fornece alimentos e material de construção anualmente para a casa de repouso. Três outras
casas espíritas (Casa Espírita Cantinho de Amor, Grupo Espírita Joana de Ângelis e Centro
Espírita Maria Nunes), oferecem apoio material e administrativo para a Creche Esperança.
Nessas parcerias não há contrapartida das organizações de fins sociais estudadas, além da
apresentação da documentação jurídica da organização.
Neste estudo foram constatadas, portanto, parcerias do terceiro setor com organizações dos
três outros setores: governo, empresas privadas e organizações sem fins lucrativos, o que
revela que as organizações mantidas por casas espíritas tendem a recorrer à intersetorialidade,
o que caracteriza atualmente outras organizações do terceiro setor (COMERLATTO et al.,
2007; JUNQUEIRA, 2004).
Por outro lado, apenas uma organização abordada possui parcerias com outras casas espíritas,
o que mostra que o fato de serem espíritas não faz com que as várias casas tenham uma
relação articulada, como foi apontado, aliás, na entrevista realizada com o representante da
AME. Também não foram constatadas parcerias com outras creches ou casas de repouso, o
que contradiz os estudos de Teodósio (2001a), que afirma que, para superarem seus desafios
72
operacionais, as organizações do terceiro setor tendem a formar parcerias com outras que
atuam no mesmo setor, formando uma rede de relacionamento.
Embora seja necessária uma investigação mais aprofundada sobre o assunto, pode-se dizer,
inclusive, que há disputa por recursos, já que as três creches têm basicamente os mesmos
parceiros, recorrendo aos mesmos fundos. Nesse ponto, pode-se afirmar aderência ao
argumento de Teodósio (2001a) sobre a disputa de recursos financeiros, parcerias e
reconhecimento entre as organizações do terceiro setor.
Os recursos financeiros mensais (QUADRO 11), necessários para a manutenção das
atividades das organizações do terceiro setor estudadas, giram em torno de 6 mil reais por
mês. A Creche Esperança, que apresenta uma estrutura menor, tem gastos mensais em torno
de 4 mil reais, e na Casa de Repouso Amor esses gastos atingem os 8 mil reais mensais. Os
recursos financeiros são oriundos de parcerias, da contribuição dos associados, de campanhas
de coleta de fundos, alimentos ou bens materiais realizadas pelas casas espíritas, de doações
dos participantes da casa espírita e de doações da comunidade.
Cerca de 70% das despesas das creches são financiadas pelos parceiros. Como a maior parte
de seus parceiros são órgãos públicos, observa-se a dependência de recursos públicos para a
sobrevivência dessas instituições, como sustentado por Salvatore (2004) em relação às demais
organizações do terceiro setor. Em alguns casos, as parcerias impõem às creches
flexibilizações e contrapartidas que podem inclusive ir de encontro às diretivas estabelecidas
pelas próprias organizações ou pelas casas espíritas às quais elas estão ligadas, como foi
constatado na terceira parte desta pesquisa.
Na casa de repouso, o volume de recursos advindos das parcerias é irrisório. A
sustentabilidade financeira da instituição, ao que tudo indica, é assegurada pela contribuição
mensal dos assistidos. Nesse aspecto, aparentemente a casa de repouso sofre menor ingerência
dos órgãos públicos em comparação com as creches.
73
QUADRO 11 Fonte de recursos financeiros
Fonte: Elaborado pela autora
O QUADRO 12 revela que em duas das instituições estudadas a contabilidade é feita por um
profissional externo; nas outras duas, não há separação entre a contabilidade da instituição e
aquela da casa espírita. A prestação de contas da instituição é feita aos responsáveis pela casa
espírita, pelos parceiros e pela diretoria da instituição.
Em todos os casos estudados, a captação dos recursos financeiros e materiais é feita em
conjunto com a casa espírita, que se configura por isso como parte mantenedora das
organizações de fins sociais a elas vinculadas. Justifica-se assim parte da influência das casas
espíritas sobre as organizações estudadas.
74
QUADRO 12 Gestão dos recursos financeiros
Fonte: Elaborado pela autora
4.1.5 Projetos sociais desenvolvidos pelas casas espíritas
Devido à grande importância que os projetos sociais assumem nas atividades desempenhadas
pelas 12 casas espíritas estudadas, julgou-se necessário abordar esse tópico, pois os projetos
sociais parecem constituir uma alternativa mais flexível e igualmente eficaz de atuação social
dessas casas, que objetivam cumprir, na prática, os princípios da doutrina. Projetos sociais,
em contraposição com as organizações de terceiro setor, foram aqui definidos de acordo com
os seguintes critérios: não envolvem funcionários contratados, têm atuação em menos de três
dias na semana, envolvem uma carga horária menor do que quatro horas por dia, podem ou
não se repetir periodicamente, não apresentam estrutura hierarquizada e não dispõem de local
próprio, distinto da casa espírita, para sua concretização.
A seguir é apresentado o QUADRO 13, onde são descritos esquematicamente os projetos
sociais que são mantidos pelas 12 casas espíritas entrevistadas.
75
QUADRO 13 Projetos sociais mantidos pelas casas espíritas
Fonte: Elaborado pela autora
Todos os projetos são desenvolvidos a partir de doações de alimentos, de roupas e de demais
itens necessários para sua execução. Todos os projetos são realizados nas dependências das
casas espíritas. Dentre os projetos destacam-se:
• Almoço/sopão: projeto adotado por nove casas espíritas. Consiste no fornecimento de
refeição, normalmente aos sábados ou domingos, para a comunidade carente atendida
pela casa espírita. Em algumas casas é servido sopa; em outras é servido almoço com
arroz, feijão, macarrão, carne e salada. Foram identificados três objetivos desse
projeto: suprir necessidades de alimentação, promover a integração dos membros da
comunidade e promover a divulgação da doutrina espírita para a comunidade.
76
• Bazar: realizado por quatro casas espíritas. O bazar consiste no repasse de roupas,
calçados, brinquedos, móveis, eletrodomésticos e todos os tipos de mercadorias que
são doados para as casas espíritas. Além de oferecer à população carente a
oportunidade de aquisição de mercadorias a baixo custo, o bazar tem o objetivo de
angariar recursos para sustentar outros projetos da casa espírita. Cada casa espírita
define uma periodicidade que considera adequada para o bazar, sendo encontradas as
seguintes freqüências: duas vezes na semana, uma vez ao mês ou de dois em dois
meses.
• Distribuição de cesta básica: mantido por oito casas espíritas. O projeto tem o objetivo
de suprir necessidades de alimentação, além de divulgar os trabalhos de evangelização
da casa. A freqüência é variada conforme o tipo de cesta. As cestas que envolvem
leguminosas e verduras são distribuídas semanalmente por duas casas espíritas; as
cestas que envolvem itens não perecíveis são distribuídas por cinco casas
mensalmente, e por uma casa sob demanda.
• Distribuição de marmitex e de pão com café com leite: realizado por uma casa, com o
objetivo de suprir necessidades de alimentação. Consiste na distribuição de alimentos
aos pacientes dos postos médicos da cidade onde se localiza e de Belo Horizonte.
• Distribuição de roupas: realizada por duas casas espíritas, consiste na distribuição de
roupas, agasalhos e cobertores para suprir as necessidades da comunidade. Não tem
freqüência definida.
• Doação de enxoval para bebês/curso para gestantes: quatro casas espíritas oferecem
esse projeto social, sendo que a Casa Espírita Cantinho de Amor, além do enxoval
para o bebê, oferece orientações à gestante sobre as precauções necessárias durante a
gravidez e sobre os primeiros cuidados com o recém-nascido. Esse projeto acontece
sob demanda, exceto na Casa Espírita Cantinho de Amor, que oferece o curso e
distribui os enxovais de bebês bimestralmente.
• Oficina de artes/curso de pintura: oferecido pelo Centro Espírita Allan Kardec e pelo
Grupo Espírita Chico Xavier. Tem o objetivo de inclusão social dos participantes,
77
através do ensino de ofícios que possam contribuir para o aumento da sua renda
mensal. Tem freqüência semanal e em uma das casas, Centro Espírita Allan Kardec,
há cobrança de contribuição dos participantes.
• Reforço escolar: realizado duas vezes na semana, no Grupo Espírita Emmanuel e três
vezes na semana no Grupo Espírita Amizade. Tem o objetivo de auxiliar as crianças
que têm dificuldade de aprendizado. Além das atividades pedagógicas, as casas
espíritas oferecem também auxílio psicológico e alimentação para as crianças que
freqüentam o reforço. Em uma das casas, Grupo Espírita Amizade, estão incluídas
atividade de higiene, como banho e escovação de dentes. Essa atividade específica não
foi qualificada como estruturada em uma organização porque é executada apenas por
voluntários, sendo que, na ocasião da pesquisa, havia sido iniciada há apenas dois
meses no Grupo Espírita Amizade.
• Tratamento de saúde/distribuição remédios: objetiva o tratamento físico e psicológico
das pessoas que buscam auxílio na casa espírita. O tratamento de saúde, oferecido pelo
Grupo Espírita Leon Denis, acontece aos domingos e consiste na utilização da
medicina alternativa, como acupuntura. A distribuição de remédios é feita pelo Grupo
Espírita Joana de Ângelis, sob demanda e com apresentação do receituário médico.
Portanto, é possível observar que não existe uniformidade nem no objeto nem na freqüência
dos projetos sociais realizados pelas casas espíritas. Cada casa adota o projeto e a freqüência
que julgar mais adequados, sendo que mesmo entre os projetos há diferenças também em seu
formato e amplitude, em termos do número de assistidos. Além do mais, quase todos os
projetos são voltados exclusivamente à assistência social, com exceção do reforço escolar, da
oficina de artes/curso de pintura e do curso para gestantes. Nesses últimos é possível
distinguir um objetivo mais amplo, possibilitando também o desenvolvimento da cidadania.
4.1.6 Relação entre doutrina espírita e as atividades sociais das casas espíritas
78
Ao final de todas as entrevistas realizadas, foi perguntado aos entrevistados sobre a relação
existente entre a doutrina espírita e as atividades sociais desenvolvidas pelas casas espíritas,
através de projetos sociais ou por meio de uma organização do terceiro setor. O objetivo
dessa pergunta foi detectar qual a percepção dos entrevistados sobre o tema central desta
pesquisa, a fim de cotejar a percepção desses indivíduos com a análise do pesquisador.
Os representantes de todas as casas espíritas, com exceção do Centro Espírita Allan Kardec,
acreditam que a assistência social está diretamente relacionada aos princípios propostos pela
doutrina espírita. Os entrevistados reforçaram que a doutrina espírita sem caridade não é
doutrina espírita e chamaram a atenção para a necessidade de conciliar teoria e prática
espírita, auxiliando os mais necessitados e aumentando sua autoconfiança, que eles acreditam
ser uma forma de praticar a fraternidade. A síntese dos depoimentos feitos pelas casas
espíritas está descrita no QUADRO 14.
79
QUADRO 14 Relação entre atividade social/filantrópica e a doutrina espírita
Fonte: Elaborado pela autora
Kardec (1997b) defende, através da Lei do Trabalho, a importância da realização de uma
atividade útil para o progresso do homem. Nas casas espíritas, essa atividade útil poderia ser
traduzida pelas atividades sociais exercidas nas organizações do terceiro setor e através dos
projetos sociais. Por outro lado, a atividade social das casas também está diretamente
relacionada com a Lei de Sociedade e com a Lei de Amor, Justiça e Caridade. Isso porque,
conforme esclarecimentos de Ângelis (2004, p. 142), “a convivência cristã se caracteriza pelo
clima de convivência social em regime de fraternidade, no qual todos se ajudam e se
socorrem, dirimindo dificuldades e consertando problemas”.
80
Efetivamente, foi observado que no meio espírita existe uma grande preocupação com a
assistência social, o que pode ser comprovado através da presença das organizações do
terceiro setor e dos projetos sociais mantidos pelas casas espíritas. Apenas o representante de
uma das casas espíritas acredita que o trabalho de assistência social não faz parte da doutrina
espírita, e enfatiza que a casa espírita tem o objetivo de estudar o evangelho e os ensinos da
doutrina espírita, e que não se deve misturar assistência social com doutrina espírita.
Dessa forma, além do alinhamento teórico das casas espíritas, através da adoção dos
fundamentos da doutrina espírita, constatou-se que existe um alinhamento também quanto à
prática assistencial, uma vez que as opiniões dos representantes da maioria das casas
estudadas são muito similares.
Embora não haja um órgão regulador do movimento espírita, de alguma forma existe uma
coesão entre os princípios, práticas e objetivos das várias casas espíritas. A questão que se
coloca é como esse alinhamento perdura há tanto tempo, e se ele pode ser tributado única e
exclusivamente à crença nas idéias apresentadas por Kardec, ou se a prática assistencial
também promove o alinhamento das casas espíritas, como afirmou o representante da AME,
entrevistado igualmente no quadro desta pesquisa, relativamente ao espiritismo kardecista no
Brasil.
O estudo realizado junto às casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo
Horizonte permitiu conhecer as atividades assistenciais por elas desenvolvidas, sendo que
todas as casas têm projetos sociais, mas apenas quatro casas mantêm organizações, de acordo
com os critérios estabelecidos nesta pesquisa. As quatro organizações de fins sociais, três
creches e uma casa de repouso, têm mais de 10 anos de funcionamento, o que testemunha sua
perenidade.
Não há uniformidade no que se refere ao público atendido, à estruturação formal dessas
organizações e ao vínculo de funcionários contratados. Em dois dos quatro casos há separação
jurídica (CNPJ) da casa espírita e da organização de fins sociais. Apenas na casa de repouso
os funcionários não são contratados no regime CLT. Da mesma forma, não há uniformidade
em relação ao vínculo dos funcionários contratados e voluntários com a casa espírita, uma vez
81
que esse vínculo pode existir ou não. Tal quadro se justifica, entre outros aspectos, pela
inexistência de controle por parte do movimento espírita quanto às práticas adotadas pelas
casas espíritas, seja em relação às atividades que concernem o estudo e o desenvolvimento das
práticas espíritas, seja em relação à gestão das organizações do terceiro setor a elas ligadas.
Como ponto concordante em todas as organizações de fins sociais estudadas, aponta-se que a
escolha dos dirigentes das organizações é feita pela casa espírita, sendo que em duas
instituições não há mandato pré-definido. A hierarquia dessas organizações é bastante enxuta
e centralizada, estando os funcionários e voluntários subordinados diretamente ao dirigente da
organização. Apesar de gozarem de autonomia de gestão, todos os entrevistados foram
unânimes em afirmar que o dirigente da organização responde à direção da casa espírita,
estando a organização de fins sociais, portanto, atrelada diretamente à casa espírita e a ela
devendo prestar contas.
A obtenção de recursos financeiros difere segundo o tipo de organização de fins sociais. No
caso das creches, 70% dos recursos necessários são obtidos através de parcerias com o poder
público, destacando-se os seguintes parceiros: Mesa Brasil SESC, FUNDEB e FIA. Em
muitos casos, tais parcerias impõem contrapartidas às creches, que devem se adequar às
exigências dos parceiros, e por isso têm sua autonomia limitada. Já no asilo, a maior parte dos
recursos é obtida através da contribuição mensal dos assistidos e de doações da casa espírita e
de outras entidades públicas ou do terceiro setor. Não foram detectadas parcerias relevantes
das organizações de fins sociais com outras casas espíritas ou com outras organizações do
terceiro setor voltadas a um público similar, o que denuncia a fraca atuação em rede das casas
espíritas.
Finalmente, ressalta-se que os entrevistados se referem sempre, em relação às atividades
sociais desenvolvidas através das organizações e projetos sociais ligados às casas espíritas, a
uma prática assistencial, filantrópica e caritativa, e não a uma prática de promoção social. No
entanto, quando analisado o trabalho desenvolvido pelas organizações de fins sociais ligadas
às casas espíritas (o que é amplamente reforçado pela pesquisa junto à instituição estudada em
maior profundidade), essa prática social revela uma intenção transformadora, de
desenvolvimento social e cidadão (preparar as crianças para a escola regular, inserir as mães
no mercado de trabalho, promover a condição econômica das famílias e promover a
82
solidariedade social em relação aos idosos), o que é também defendido pela Lei do Trabalho,
pela Lei de Sociedade e pela Lei de Amor, Justiça e Caridade, apresentadas por Kardec.
4.2 Constituição e funcionamento do Centro Educacional Viver, mantido pela Casa
Espírita Cantinho de Amor: um estudo de caso
A realização desse estudo de caso foi considerada necessária a fim de colher dados
qualitativos e informações de maior profundidade, que por um lado melhor esclarecessem as
particularidades de uma organização de fins sociais mantida por uma casa espírita, a partir do
conhecimento do seu processo de criação e funcionamento, e que por outro lado também
permitissem uma melhor compreensão da influência da doutrina espírita no funcionamento
dessas organizações. Como objeto do estudo de caso, foi escolhida a Casa Espírita Cantinho
de Amor, por ser a casa espírita mais antiga da cidade e aquela que oferecia maior facilidade
de acesso para o pesquisador.
Foram realizadas entrevistas com três pessoas: Sônia Bitencourt Vieira – Dona Sônia,
fundadora do Centro Educacional Viver e da Casa Espírita Cantinho de Amor; Sueli
Bittencourt Drummond, atual dirigente da creche e irmã de Dona Sônia; e Ayla Patrícia
Bitencourt Vieira, ex-dirigente do Centro Educacional e filha de Dona Sônia.
A análise dos dados foi subdividida em quatro sessões. Na primeira sessão é feita a
apresentação da história do Centro Educacional Viver, na segunda sessão são abordados
aspectos relativos ao funcionamento e gestão da creche estudada, na terceira sessão são
relatadas as principais dificuldades enfrentadas pelo CEV e na quarta sessão destaca-se a
relação entre o funcionamento da organização de fins sociais e a doutrina espírita.
83
4.2.1 Histórico do Centro Educacional Viver
O conhecimento da história do Centro Educacional Viver permitiu analisar o processo de
criação dessa organização sob o ponto de vista da influência dos princípios espíritas nesse
processo. Além disso, permitiu analisar a participação da comunidade e da gestão pública
municipal ao longo da história da creche.
A Casa Espírita Cantinho de Amor foi constituída em 25 de agosto de 1972, por Dona Sônia.
É uma associação civil, religiosa, sem fins lucrativos, localizada em uma cidade da região
metropolitana de Belo Horizonte, que tem por finalidade proporcionar gratuitamente
assistência espiritual, moral, social, educacional e cultural. Além de presente em sua
denominação, o caráter caritativo da casa espírita se expressa formalmente no Art. 2º do seu
estatuto social, segundo o qual é uma das finalidades da instituição:
“criar e ser mantenedora de obras de caráter filantrópico e beneficente de natureza educacional, cultural, assistencial, tais como as de amparo à velhice, às crianças, atendimento e transporte de enfermos, a todos assistindo sem distinção de classe, sexo, raça, cor, nacionalidade ou religião.”
De acordo com as definições de projetos e organizações de fins sociais estabelecidas nesta
pesquisa, a casa espírita Cantinho de Amor pratica atividades assistenciais através de quatro
projetos sociais (apresentados no QUADRO 15) e mantém uma organização de fins sociais: o
Centro Educacional Viver. A casa espírita também manteve, por dois anos e meio, outra
organização de fins sociais além da creche: um abrigo para crianças que eram recolhidas na
cidade pelo Conselho Tutelar. Mas essa organização teve suas atividades encerradas há
aproximadamente sete anos, devido a conflitos com o poder público municipal, seu principal
financiador. As atividades sociais se apresentam, segundo o próprio estatuto da casa, como
uma oportunidade de realização de uma das finalidades da casa espírita, a saber, a oferta de
serviços filantrópicos.
Os projetos identificados foram: sopão, servido aos sábados para os participantes da
evangelização da casa espírita; bazar, que funciona duas vezes por semana nas dependências
da creche e atende à comunidade carente em geral; distribuição de cestas básicas
mensalmente, para participantes da evangelização ou pessoas necessitadas indicadas pelos
84
trabalhadores da casa espírita; e curso para gestantes, realizado bimestralmente, no qual são
fornecidas informações sobre os cuidados com o bebê nos primeiros meses de vida, a futuras
mães carentes, além de ser ofertado um pequeno enxoval para o bebê.
Como pode ser observado, os projetos são primordialmente assistenciais e dois deles se
vinculam diretamente à evangelização espírita. A exceção pode ser notada em relação ao
curso de gestantes que, além de apresentar cunho assistencial, revelado pela doação do
enxoval ao bebê, apresenta também uma preocupação educativa, sendo fonte de informação e
instrução para as futuras mães cuidarem dos recém-nascidos de forma adequada.
QUADRO 15 Relação de Projetos da Casa Espírita Cantinho de Amor
Fonte: Elaborado pela autora
Como o objetivo desta pesquisa é a análise do funcionamento das organizações mantidas
pelas casas espíritas, todo o desenvolvimento da análise foi focado no CEV, organização do
terceiro setor mantida pela Casa Espírita Cantinho de Amor.
O Centro Educacional Viver – CEV é uma creche em funcionamento desde 1981. A história
de criação do Centro Educacional foi relatada por Dona Sônia, sua fundadora, como descrito a
seguir.
85
A idéia de criação da creche partiu de Dona Elza Pinto Coelho, nascida e criada na fazenda da
família na cidade ora em questão. Essa senhora era adepta dos princípios da doutrina espírita,
mas não era particularmente freqüentadora da casa espírita Cantinho de Amor. O filho de
Dona Elza possuía uma empresa de casas pré-fabricadas e construiu um projeto experimental
em um terreno de sua mãe, localizado em uma das fazendas da família que havia sido loteada.
D. Elza resolveu que aquela construção abrigaria uma creche. Entretanto, ela mesma, apesar
de poder auxiliar com recursos materiais, acreditava não poder desenvolver o projeto, nem
gerir a creche. Procurou então alguém que pusesse em prática seu projeto de amparo às
crianças carentes. Foi quando, não se sabe como, D. Elza tomou conhecimento dos trabalhos
desenvolvidos por Dona Sônia, que mantinha um projeto de evangelização para crianças em
um bairro carente da cidade.
Dona Sônia, ao ser inquirida por Dona Elza a respeito de sua experiência com creches e do
seu interesse em gerir aquela creche, relata que respondeu afirmativamente e aceitou a
empreitada de pronto, sem, na verdade, nunca ter entrado em uma creche e não fazer idéia de
como gerir tal organização, pois essa seria também a primeira creche da cidade. Conforme
esclarece Patrícia, filha de Dona Sônia:
...e aí mamãe pegou isso, assim meio que do nada, né, como sempre! Sempre que surgiam as coisas pra ela, surgiam meio que do nada. E aí ela passou muito aperto, porque nessa época eu era novinha ainda e não tinha muita condição de ajudar. Titia (Sueli) com muito pouco tempo também, estava na batalha ainda, com as meninas novas. E mamãe começou quase que do nada num bairro que tinha toda a formação de ser um bairro de luxo. [...] mamãe foi uma guerreira, porque foi do nada mesmo. Ela não tinha nenhum conhecimento de educação.
Nesse ponto, a história relatada permite algumas observações interessantes. D. Sônia foi
contatada por D. Elza (a primeira benfeitora que cedeu o espaço da creche) devido a seus
trabalhos em evangelização. A reputação dessa experiência foi mais determinante para a
escolha de D. Sônia do que propriamente sua experiência ou conhecimento em educação ou
gestão social. Muito provavelmente, o fato de D. Elza ser adepta da doutrina espírita pesou
nessa escolha, considerada mais pertinente para o sucesso de uma creche prestadora de
serviços à população carente, o que reforça a influência dos princípios da doutrina no sentido
da prática da caridade e da promoção social, desejada pela benfeitora da creche.
86
Dona Sônia assumiu a creche sozinha, em uma iniciativa de caráter inteiramente voluntário,
sendo criticada por sua família, que alegava que ela trabalhava o dia todo na Legião Brasileira
de Assistência – LBA – e não tinha tempo disponível para ocupar-se das atividades familiares
e gerir a creche. Além disso, em todos os dias da semana à noite e aos sábados pela manhã
havia atividades sob sua responsabilidade na casa espírita. Durante os 25 anos em que esteve
na direção da creche, Dona Sônia respondeu por todas as questões administrativas,
pedagógicas, psicológicas e todas as demais que envolvessem a manutenção da creche e o
bem-estar das crianças.
O imóvel foi legalmente doado por D. Elza para a casa espírita ainda em 1981, tendo sido
feita apenas uma exigência: que a creche se chamasse Maria Salomé, nome da mãe de Dona
Elza; daí o nome de Centro Educacional Viver – CEV. Embora não tenha assumido um papel
ativo na creche, Dona Elza nunca se afastou, tornando-se amiga de Dona Sônia e
acompanhando as atividades ali desenvolvidas. Durante os 28 anos de funcionamento da
creche, essa senhora sempre se fez presente, ou através de doações ou participando das
festividades da instituição. Essa situação se alterou somente em 2007, devido à debilidade de
saúde de Dona Elza.
Após fazer o cadastramento de 15 crianças e depois de tentativas infrutíferas junto à Cemig
para obter energia elétrica, Dona Sônia, pressionada pelas futuras funcionárias da creche e
pelas mães, optou pelo início das atividades sem luz elétrica, sendo necessário aquecer água
para dar banho nas crianças e ferver o leite diariamente para que esse não azedasse. Quinze
dias depois, a Cemig fez a ligação da energia elétrica.
Os móveis e utensílios da creche foram todos doados pela comunidade e por Dona Elza.
Quando havia alguma necessidade material, Dona Elza era acionada, e sempre que possível
contribuía para manutenção da creche. Após o início das atividades, foi construído um
refeitório para as crianças pelo esposo de Dona Elza, e em seguida houve a construção de
mais duas salas de aula e dois banheiros, dessa vez pela Prefeitura.
Um amigo de Dona Sônia, Sr. Antônio Teixeira da Costa, conhecido como Bilé, na ocasião da
fundação do CEV era prefeito da cidade e foi ele quem cedeu quatro funcionárias da
87
Prefeitura para que fosse possível iniciar as atividades da creche: duas monitoras, uma
faxineira e uma cantineira. Vale ressaltar que nada foi pedido em contrapartida: não houve
troca de favores e nunca mais se falou no assunto, sendo que poucas pessoas sabem da ajuda
cedida pelo prefeito naquela época.
A creche se situava em um local isolado, em um novo bairro que se destinava a uma clientela
de luxo, onde não havia construções na vizinhança e era de difícil acesso. Somente em 1985 a
creche passou a receber água do encanamento público. Até então a água utilizada pela creche
vinha de um poço artesiano em seu terreno. Fato curioso relatado por Patrícia é o seguinte:
Era um disparate a pessoa fundar uma creche num fundo de um bairro de luxo onde as pessoas teriam que caminhar muito para chegar. Porque era difícil. Não tinha aquela via de acesso que tem hoje. [...] As pessoas vinham de longe, a pé, trazer as crianças pra creche. Era uma coisa muito complicada. Mas o fato é que a coisa deu certo.
Quando trabalhava na LBA, D. Sônia relata que resolvia os assuntos da creche no horário de
almoço, deslocando-se todos os dias até a creche, onde almoçava. Pela LBA, D. Sônia era
responsável pelo posto de distribuição do Programa de Complementação Alimentar – PCA,
que distribuía farinha vitaminada para fazer sopa e vitaminas para crianças com problemas de
desnutrição, para gestantes e para famílias com necessidades nutritivas. Como elucidado por
Dona Sônia, na ocasião da instituição do Programa na cidade, a LBA procurou um local onde
pudesse instalar um posto de distribuição e tomou conhecimento do espaço existente na Casa
Espírita Cantinho de Amor. Ao ser procurada pela referida instituição, Dona Sônia se
interessou pela proposta e o PCA passou a funcionar nas dependências da casa espírita, apesar
de não ter ligação com as atividades doutrinárias, já que a LBA era uma instituição do
Governo Federal. Dona Sônia trabalhou por aproximadamente sete anos como responsável
pelas atividades do Programa, e há 22 anos pediu seu desligamento do PCA, devido a
dificuldades de conciliação de todas as suas atividades. Quando encerrou o trabalho na LBA,
a entrevistada relata que intensificou seu trabalho na creche, lá permanecendo o dia todo,
quase todos os dias da semana.
D. Sônia considera que o trabalho na LBA a auxiliou na gestão da creche, já que o público
atendido era o mesmo, ou seja, pessoas carentes. Ao observar a freqüência das famílias no
Programa, Dona Sônia indicava a creche, mostrando para a mãe que ela seria capaz de obter
seu sustento, sem passar fome, se a criança tivesse onde ficar durante o dia. Também a LBA
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era responsável por um projeto de creches, o Projeto Creche Casulo, que inspirou as
atividades do CEV. Nas creches-casulo, as mães deixavam as crianças pela manhã e as
buscavam à tarde, para poderem trabalhar. Sábado e domingo as crianças deviam ficar com a
mãe, para não perderem o vínculo familiar. Nessas creches, as crianças eram alimentadas e
protegidas. Como Dona Sônia trabalhava na LBA, teve fácil acesso às informações sobre esse
projeto e, segundo a entrevistada, o CEV foi a primeira instituição a se cadastrar junto à LBA
como creche-casulo.
O Projeto Creche Casulo se viabilizou através de uma parceria entre a LBA, o CEV e a
Prefeitura da cidade. A LBA fornecia uma verba para a manutenção da instituição e para a
aquisição de alimentos; o CEV cedia seu espaço físico; e a Prefeitura cedia os funcionários.
Dona Sônia escolhia as pessoas e a Prefeitura contratava. Um contador contratado pelo CEV
prestava contas à LBA da destinação da verba. A creche garantiu assim a continuidade de seu
funcionamento.
Posteriormente, a Prefeitura, que era responsável pela contratação dos funcionários da creche,
transferiu essa responsabilidade para o CEV, mantendo uma verba mensal que, embora fosse
de grande valia, não era, no entanto, suficiente para cobrir os gastos da folha de pagamento da
creche, sendo necessário que a casa espírita angariasse fundos com o objetivo de completar os
recursos financeiros necessários para o funcionamento da creche. No final do ano a situação
se agravava, pois o valor da verba recebida era fixo, mas havia gastos extras com o pessoal,
como férias e 13º salário das funcionárias.
Entretanto, a Prefeitura passou a encaminhar alguns funcionários excedentes em seu quadro
para a creche. D. Sônia relata que houve problemas de adaptação dos funcionários da
Prefeitura ao trabalho da creche, que ela acredita que era mais pesado. Eles também se
recusavam a seguir normas da creche, e D. Sônia citou, em particular, que estavam abordando
assuntos e adotando expressões incompatíveis com um ambiente infantil. Foram mencionados
também casos de furto de alimentos. Por isso, Dona Sônia solicitou que esses funcionários da
Prefeitura não fossem mais destinados para o CEV, na tentativa de recuperar o controle da
creche sobre a gestão de seu pessoal.
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Quando a LBA foi extinta, em 1995, foi instituída a Secretaria de Estado do Trabalho, da
Assistência Social, da Criança e do Adolescente - SETASCAD, de onde a creche passou a
receber recursos financeiros. A creche recebia então duas verbas: uma da Prefeitura, destinada
ao pagamento de funcionários; e outra da SETASCAD destinada à manutenção e aquisição de
alimentos. Seguindo o princípio de municipalização, a verba da SETASCAD passou a ser
encaminhada para a Prefeitura, que a repassava para a creche. Entretanto, o montante total
recebido pelo CEV passou a ser inferior ao recebido anteriormente. Parte da verba foi
substituída por alimentos, que eram fornecidos de acordo com a disponibilidade da Prefeitura
e não segundo as necessidades da creche.
Nota-se, portanto, ao longo de todo o percurso da creche, que sua fundadora e dirigente
(também fundadora da casa espírita) foi responsável por uma contínua mobilização de
esforços e recursos de várias fontes que permitiram à creche superar adversidades que, no
entanto, sempre existiram. Tais adversidades se justificavam pela localização da organização
(em um bairro distante, sem serviços públicos em atividade), mas principalmente pela
escassez de recursos financeiros. Ao recusar funcionários contratados pela Prefeitura a creche
buscou recuperar seu controle sobre o comportamento dos seus empregados, que deveriam
atender a padrões considerados adequados à instituição. Nota-se aí a postura de não
negociação da autonomia da creche para a obtenção de recursos humanos ou materiais. Nesse
quadro, a casa espírita surge não como mantenedora da organização, mas como mobilizadora
de recursos extras, em caso de necessidade, que complementam as verbas regulares recebidas
para o funcionamento da organização.
O recurso a várias fontes financiadoras se fez presente na história da creche desde sua
fundação, principalmente através de participação ativa de membros da comunidade, como é o
caso de Dona Elza e do prefeito Bilé; e dos órgãos governamentais, como a Prefeitura, e o
Governo Federal, através da LBA. A não-exigência de contrapartidas da organização tanto
por parte da doadora do terreno quanto por parte da Prefeitura e da LBA merece ser
destacada. Constata-se aí a ausência histórica de controle de doadores particulares e dos
órgãos públicos sobre resultados efetivos das organizações do terceiro setor, consideradas
então sob uma ótica estritamente caritativa. Hoje em dia, como observado no marco teórico
desde trabalho, essa realidade está sendo transformada. Isso é demonstrado, em parte, através
das exigências impostas por órgãos financiadores como o FUNDEB.
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Para Dona Sônia, não há separação entre a casa espírita e o CEV, pois o objetivo dos dois é
mesmo: esclarecer e consolar. Aliás, o CEV é considerado por ela como um departamento da
casa espírita. Mas a entrevistada acredita que não são todos os freqüentadores da casa espírita
que pensam dessa forma. Segundo seu relato, até os anos 90 a casa espírita enfrentou
dificuldades relativas à implicação de seus participantes como voluntários nas atividades da
creche. A entrevistada atribui tais dificuldades ao fato de que havia poucas pessoas que
freqüentavam regularmente a casa espírita Cantinho de Amor e existia, entre os seus
participantes, a noção de que a creche era uma atividade desenvolvida em apêndice às
atividades da casa, não pertencente a ela.
Essa situação se modificou há aproximadamente dez anos, com uma participação mais ativa
dos freqüentadores da casa espírita. Essa alteração se deu por estímulo de Dona Sônia que
sugeriu a inserção do trabalho voluntário na creche como uma opção para a assistência social
de duas horas semanais, que deviam ser cumpridas pelos freqüentadores da casa espírita.
Além disso, algumas atividades da casa espírita começaram a se desenrolar nas dependências
da creche, como a confraternização de final de ano e a evangelização infantil, numa tentativa
de fazer com que os participantes da casa visitassem a creche e se interessassem pelo trabalho
com as crianças.
4.2.2 Funcionamento e gestão da creche estudada
A creche foi fundada com o ideal de fazer com que crianças carentes, quando chegassem à
escola regular, tivessem sucesso nos estudos como as demais crianças, apresentando
capacidade funcional, orgânica e psíquica semelhante àquela de crianças criadas com suas
famílias em um contexto econômico favorável.
Desde sua criação, foram definidos alguns critérios para o atendimento das crianças pelo
CEV, que são respeitados ainda nos dias atuais. As famílias dessas crianças devem ser
carentes, encontrando-se à margem da sociedade, e o responsável não pode ter outra pessoa
com quem deixar a crianças. Segundo Dona Sônia, essas crianças geralmente apresentam uma
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deficiência alimentícia e são submetidas a sofrimentos físicos que as marcam profundamente,
o que as debilita face às demais crianças, a não ser que obtenham um tratamento diferenciado.
Nesse sentido, é perceptível o impacto dos princípios da doutrina espírita, que propaga que
nenhum ser humano é completo, necessitando uns dos outros para se aprimorarem. A doutrina
ressalta ainda que as diferenças existentes entre os indivíduos não é um privilégio, pois Deus
criou todos os espíritos iguais. Essa diferença se dá porque alguns já passaram por mais
encarnações que outros e por isso são mais experientes. Cabe a esses últimos, portanto,
auxiliar no progresso dos mais atrasados para que eles possam se desenvolver e, dessa forma,
garantir o bem-estar e o progresso da sociedade (KARDEC, 1997b). Pode-se dizer, portanto,
que é nesse sentido que o trabalho da creche se desenvolve: o objetivo é propiciar às crianças
o desenvolvimento de capacidades que as tornarão cidadãs mais preparadas, capazes também
de contribuir para o desenvolvimento da sociedade.
Outra exigência feita pela creche para receber as crianças é que suas mães estejam
trabalhando. Essa exigência faz, segundo Dona Sônia, com que a creche não seja um
“depósito de crianças”, mas tenha um objetivo maior, o de proporcionar o desenvolvimento
profissional dessa mãe, tornando-a disponível para o mercado de trabalho. De acordo com a
entrevistada, tornar possível que as mães tenham seu próprio dinheiro e sejam independentes
é uma forma de fazer com que se sintam capazes, responsabilizando-as por seu crescimento.
No entanto, Dona Sônia ressaltou que tudo gira em torno do benefício da criança, inclusive o
crescimento pessoal e profissional da mãe. Ela também faz a ressalva de que a creche (ou uma
escola) não substitui pai e mãe, mas é parceira dos mesmos na educação, no bem-estar e no
crescimento das crianças.
A comprovação da renda da família e da indisponibilidade de adultos para ficar com as
crianças é feita através de entrevista realizada com a mãe. Nessa entrevista, o dirigente do
CEV faz perguntas do tipo: qual o seu horário de trabalho, quantas pessoas moram na sua
casa, qual a idades dessas pessoas, quantas delas trabalham. Nessas entrevistas, as mães
relatam fatos de sua vida de maneira indireta, possibilitando à creche a avaliação da situação
daquela criança.
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Constata-se nas exigências para admissão na creche uma estratégia, ainda que não
reconhecida abertamente pelos entrevistados, de desenvolvimento social através do
desenvolvimento profissional das mães e do foco no desenvolvimento da unidade familiar
como um todo, em parceria com a creche, para o bem-estar da criança. Essa lógica se
distancia de lógica assistencial das atividades filantrópicas tradicionais, pois visa o
desenvolvimento social, econômico, pessoal do indivíduo, objetivo que caracteriza o terceiro
setor na modernidade, conforme apontam Teodósio (2001b) e Salvatore (2004). Mesmo
pregando expressamente a realização de ações caritativas, ou seja, filantrópicas, no fundo a
doutrina espírita corrobora a orientação de promoção social do indivíduo, pois defende a
complementaridade entre os indivíduos que vivem em sociedade e a necessidade de uma
ocupação útil para o homem, através da qual ele é capaz de suprir suas necessidades de
alimentação, segurança e bem-estar (KARDEC, 1997b). Isso vai além da assistência social, e
consiste em oferecer condições ao indivíduo para que ele mesmo atue em termos de seu
desenvolvimento social, profissional e pessoal.
Nota-se, na exigência do trabalho das mães imposta pela creche, a presença de um dos
princípios fundamentais da doutrina espírita, segundo o qual o trabalho dignifica o homem
(KARDEC, 1997b). A exigência formal faz com que, na prática, as mães terminem por se
sentir valorizadas através do trabalho remunerado que exercem, enquanto a proteção de seus
filhos pequenos é garantida. A oportunidade de obtenção de um trabalho (normalmente de
empregada doméstica), que mesmo sendo pago pelo salário mínimo aumenta a renda familiar
ou mesmo garante a subsistência da família, dá à família uma nova perspectiva de futuro. A
creche contribuiria assim para a realização na prática do princípio proposto pela doutrina
também no sentido do desenvolvimento social e econômico dessas famílias.
A creche objeto do estudo de caso é formalmente definida como um departamento da Casa
Espírita Cantinho de Amor, mas tem diretoria própria. O dirigente da creche toma todas as
decisões pertinentes à creche. Entretanto, dependendo da gravidade da situação, expõe o
problema para o grupo gestor da casa espírita, do qual o dirigente da creche faz parte, que
então o auxilia na tomada de decisão. Normalmente são decisões que envolvem gastos que
fogem ao dia-a-dia da creche, como a contratação de novos funcionários e a aquisição de
móveis e ferramentas. Nesses casos, é necessário consultar o Tesoureiro da casa espírita para
avaliar a disponibilidade de recursos. Portanto, nesses casos extraordinários a contabilidade da
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creche se confunde com a da casa espírita, o que não acontece em relação às despesas
correntes de funcionamento da organização de fins sociais estudada. Em outros casos, o grupo
gestor também é chamado para discutir situações que podem comprometer o objetivo da
creche, como a formação de parcerias (principalmente no que tange a contrapartidas do CEV)
que podem ferir suas normas internas de funcionamento. Essa preocupação em garantir a total
independência administrativa da organização frente aos parceiros, doadores e demais fontes
de recursos financeiros é inclusive ressaltada pela FEB (2008c), através do documento A
adequação do Centro Espírita para o melhor atendimento de suas finalidades.
Quando a creche se depara com situações que podem colocar em risco sua finalidade, essas
situações são expostas ao grupo gestor da casa espírita, que auxilia a dirigente da creche na
sua tomada de decisão. Ressalta-se que o poder do grupo gestor da casa espírita sobre a creche
é hierárquico, não se justificando pelos recursos aportados pela casa à creche. Nesse sentido,
há inclusive uma constante preocupação de se preservar a autonomia da organização de fins
sociais face às fontes mantenedoras. Dona Sônia faz o relato seguinte, onde cita um exemplo
de questão que é levada para o grupo gestor da casa espírita:
...a transição da creche para a escola. É uma coisa que nós já reunimos duas vezes. “Tamo” estudando muito. Porque eu não acho que é a creche que está entrando na escola. É a escola que está entrando na creche. Então tem que haver uma parceria. Porque nós não podemos tirar a escola porque faz parte do progresso, e na realidade as crianças estão recebendo uma instrução melhor. [...] Nós estamos procurando uma forma de unir as duas coisas: nem que a creche vire escola e nem que fique só creche. Isso aí tem que ser o grupo de apoio [grupo gestor da casa espírita].
Hoje a creche atende a 60 crianças que permanecem na instituição de 7:30 h às 16:30 h e
recebem cinco refeições diárias: café da manhã, lanche no meio da manhã, almoço, lanche no
meio da tarde e jantar. Os cardápios são sugeridos por estagiários de nutrição da Faculdade
Newton de Paiva, através do Projeto Mesa Brasil SESC. Além da alimentação, as crianças
recebem noções de higiene (escovação de dentes, banhos diários, corte de cabelo e unha,
instrução quanto ao combate ao piolho e à verminose), noções de boas maneiras (como sentar-
se à mesa, comer com talheres) e aprendem a obedecer a horários. Anteriormente, o trabalho
da pedagoga era voluntário, ao qual ela se dedicava uma vez por semana, por quatro horas. No
segundo semestre de 2008 a pedagoga foi contratada e desde então vem permanecendo na
creche todos os dias, na parte da manhã.
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Como pode ser observado, há uma preocupação da creche, ainda que embrionária, em se
profissionalizar, dentro de suas possibilidades, fazendo apelo a serviços especializados. Um
exemplo é a contratação da pedagoga, que se relaciona a uma melhor educação para as
crianças atendidas; e a parceria com o SESC, no que se tange à nutrição adequada dessas
crianças. A profissionalização do terceiro setor é assunto vastamente discutido por alguns
autores, como Salvatore (2004), Teodósio (2001b), Sampaio (2004).
Na creche, desenvolvem-se também atividades de lazer, como músicas, brincadeiras ao ar
livre, brincadeiras pedagógicas e disponibilização de desenhos animados instrutivos;
comemoração de datas cívicas, de aniversariantes do mês, e comemoração especial no Dia das
Crianças e no Natal, quando é servido lanche especial e as crianças recebem brinquedos,
roupas, calçados e alimentos doados por pessoas da comunidade que se simpatizam com o
trabalho da creche.
A creche tem normas estritas de funcionamento. As crianças entram impreterivelmente entre
7:30 h e 7:45 h e devem estar uniformizadas. Se houver atraso na chegada ou a criança estiver
sem uniforme, ela não entra na creche. O horário de saída é entre 16:00 h e 17:00 h. Caso haja
atraso dos pais para buscar as crianças, elas ficam suspensas das atividades da creche por um
ou mais dias, dependendo do caso. A saída da criança fora do horário só é permitida para
visitas ao médico e deve ser apresentado atestado médico no dia subseqüente. São ministrados
medicamentos quando da apresentação de receituário médico.
Essa disciplina se faz necessária, segundo Dona Sônia, na medida em que a creche tem
deveres a cumprir perante as crianças e as mães; por exemplo, não pode deixar a criança sem
almoço ou sem trocar as fraldas. Em contrapartida, é importante mostrar às mães que elas
também têm deveres que devem ser respeitados, como o atendimento ao horário e a
apresentação do uniforme das crianças. Uma maior disciplina foi necessária por questões
administrativas, porque a creche não dispõe de recursos para pagar horas extras para as
funcionárias, custo que é gerado caso as mães não sejam pontuais ao buscarem seus filhos.
Por outro lado, há uma intenção educativa na disciplina imposta. Segundo a entrevistada, a
creche entrega a criança limpa e bem cuidada para as mães, e portanto as mães devem deixar
as crianças na creche nas mesmas condições, ou seja, devem também fazer sua parte para a
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educação da criança. Segundo a entrevistada, no início as crianças chegavam na creche sujas,
com roupas rasgadas ou sem peças íntimas. Hoje, se isso acontecer, a criança não entra.
Na realidade, essa disciplina, nós “tamos” formando hábitos saudáveis nas crianças, né? Porque não é nem exigência. É mais uma formação de hábitos. Porque a mãe chega lá com a criança toda esfarrapada, short rasgado, menininho sem cueca, expondo, sujos, fedendo a xixi, cheio de cocô. Quer dizer, ela tem que ter suas obrigações conosco. Assim como nós temos que “tá” em dia com os deveres para com ela, ela tem que estar em dia com os deveres para conosco.
Segundo os preceitos espíritas, a criança é um espírito reencarnado que necessita ser orientado
e educado para que tenha condições de dar continuidade ao seu processo evolutivo, tornando-
se um homem de bem. Os pais e educadores têm uma tarefa primordial nesse sentido, pois são
responsáveis por essa educação. Barcelos (2003), pesquisador de temas relacionados à
doutrina espírita, compilou uma série de orientações aos pais e educadores espíritas no livro
intitulado Educadores do Coração. Segundo o autor, a disciplina é essencial na educação das
crianças, assim como o estabelecimento de limites. Entretanto, ressalta que, além de instrução,
as crianças precisam educar o coração, o que é mais difícil. E vai além, quando afirma que a
educação se faz na prática, através dos exemplos dos pais e educadores e da orientação diária,
feita na convivência com os filhos.
Impossível combater as más tendências dos filhos, outorgando-lhes liberdade sem limites na infância, fase mais acessível ao desenvolvimento do espírito da disciplina. [...] Só haverá educação se ajudarmos a criança a caminhar na estrada produtiva da disciplina. (BARCELOS, 2003, p. 96-97).
No momento de realização da pesquisa, o funcionamento do CEV era garantido por sete
voluntários, sendo um profissional especializado: a psicóloga. Os demais voluntários realizam
tarefas de faxina, auxiliam as monitoras do maternal e auxiliam na secretaria. A dirigente da
creche também é voluntária. Existem oito funcionários contratados, sendo uma cozinheira,
uma pedagoga e seis monitoras.
É importante atentar para o fato de que a tendência verificada em outras organizações do
terceiro setor se mantém, garantindo os serviços prestados cotidianamente através de
funcionários contratados. Afinal, a creche não funciona sem as monitoras e sem a cozinheira,
que são contratadas. A utilização de mão-de-obra voluntária não elimina, portanto, a
utilização de funcionários contratados.
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A participação dos voluntários em qualquer atividade da Casa Espírita Cantinho de Amor é
disciplinada através do regimento interno da casa espírita. Todo freqüentador da casa espírita
deve dedicar no mínimo duas horas semanais a uma atividade social, enquanto voluntário.
Cada voluntário define o projeto no qual irá participar e antes de se iniciar nas atividades deve
fazer um treinamento. Anualmente é feita uma reciclagem cuja participação é obrigatória,
ficando o voluntário impedido de participar daquela atividade caso não compareça. Os
voluntários são fixos nas atividades com as quais se comprometem, mas alguns voluntários
participam de mais de um projeto. Em caso de necessidade, o voluntário pode ter uma falta
por mês. Caso necessite faltar mais de uma vez no mesmo mês ou duas vezes subseqüentes, é
necessário contatar os dirigentes da casa espírita, que analisarão a necessidade de substituição
temporária ou permanente daquele voluntário. Essas mesmas regras são seguidas pelos sete
voluntários da creche.
A estrutura da creche se enquadra no que Mintzberg (2003) configura como estrutura simples.
Essa configuração se caracteriza por ser pouco estruturada, com reduzida hierarquia gerencial,
inexistência de divisão de trabalho rigorosa e de sistemas de controle rígidos e formalizados.
Além disso, as atividades de planejamento e treinamento são utilizadas minimamente e as
decisões são centralizadas na cúpula estratégica que, no caso de CEV, é composta não apenas
pelo seu dirigente como pelo grupo gestor da casa espírita, chamado a participar em situações
extraordinárias.
Falconer (1999) ressalta que a governança é um dos aspectos fundamentais que diferenciam a
gestão do terceiro setor da gestão de outras organizações. No caso dessa creche estudada, a
governança se divide entre a direção da creche e a direção da casa espírita. Embora a divisão
de funções seja estabelecida de maneira informal, o fato mostra adesão às idéias preconizadas
por Falconer, principalmente no que diz respeito à atribuição de papel importante a um
conselho da organização, na estrutura de poder e tomada de decisão.
Como pôde ser observado, no CEV não há níveis intermediários entre o dirigente da creche e
os funcionários contratados e voluntários. A estrutura de apoio é bastante reduzida:
basicamente tem-se a tesouraria, que responde ao dirigente da organização de fins sociais. A
esse quadro acrescenta-se também o fato de que os controles existentes são informais,
realizados por supervisão direta ou pelos pares.
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A maioria das organizações tem uma estrutura simples em seus primeiros anos de formação,
mas posteriormente emergem estruturas mais complexas (MINTZBERG, 2003). Entretanto,
existem organizações que preferem manter uma estrutura simples ao longo de sua existência
por acreditar na eficácia e conveniência da comunicação informal. É o caso do CEV, que
possui mais de 25 anos de existência e ainda mantém essa configuração. Aliás, O'Neill (1998,
apud FALCONER, 1999) e Teodósio (2001a) identificam como uma das peculiaridades do
terceiro setor a adoção de estruturas mais enxutas.
4.2.3 Principais dificuldades enfrentadas pelo CEV
O relato das principais dificuldades encontradas pela organização do terceiro setor estudada
ao longo de sua história permitiu conhecer melhor tanto os desafios e situações delicadas
enfrentadas por uma organização desse tipo quanto suas reações face a essas situações, ora no
sentido de resolver os problemas postos, ora no sentido de minimizar seu impacto no
cotidiano da organização. Igualmente, foi possível analisar o impacto dos preceitos da
doutrina nessas reações.
As três entrevistadas foram unânimes em apontar os assaltos e suas conseqüências como os
maiores dificultadores da atuação da organização. Segundo as entrevistadas, nos primeiros
dois anos e meio de funcionamento, a creche foi assaltada cinco vezes. Em um desses assaltos
as paredes da creche foram sujas com mercúrio (que era utilizado para cuidar das feridas das
crianças). A polícia foi chamada, fez a vistoria no local e registrou a ocorrência. Quando
caminhava por uma parte mais erma do terreno, Dona Sônia percebeu que a tampa do poço
artesiano tinha sido violada. Desconfiada, mandou averiguar e descobriu que a água havia
sido envenenada com veneno para ratos e formicida. Foi necessário esvaziar toda a água do
poço e aumentar sua profundidade para que pudessem utilizar a água novamente. A creche
ficou fechada por alguns dias devido a esse incidente.
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Patrícia, filha de D. Sônia e ex-diretora da creche, acredita que esses assaltos aconteciam com
o objetivo de assustar aqueles que trabalhavam na organização, já que nada era roubado. A
entrevistada justificou seu ponto de vista argumentando que, sendo uma cidade de tradição
católica, a comunidade não via com bons olhos nem a doutrina espírita e muito menos uma
creche que, embora não levasse em seu nome a palavra espírita, era gerida por uma pessoa
conhecida na cidade como espírita. Dona Sônia era com freqüência chamada de feiticeira e
suas filhas sofriam com o preconceito; sua filha relata que na escola havia pais de colegas que
não permitiam que seus filhos convivessem com elas. Em algumas situações as pessoas
mudavam de calçada quando percebiam a presença de Dona Sônia.
O preconceito, portanto, foi uma das grandes dificuldades enfrentadas pela creche, segundo as
entrevistadas. As palavras de Patrícia são as seguintes:
Era uma questão de se impor como espírita numa cidade totalmente ao inverso. Então foi custoso, foi muito custoso. [...] Hoje eu praticamente nem sinto mais essa questão religiosa. Quer dizer, eu até penso que está quase ao contrário. Eu sinto o maior orgulho de falar que sou espírita porque as pessoas entendem hoje o que que é a doutrina espírita. Então mudou assim da água pro vinho. Em qualquer lugar que eu “tô” eu me coloco e encontro várias pessoas que mesmo que não sejam espíritas comungam das mesmas idéias. Eu acho que essa questão aqui mudou muito. Eu não sei, porque com as famílias muito tradicionais eu também não tenho muito contato. Mas no geral a questão religiosa hoje em dia [...] foi praticamente diluída.
O preconceito foi vencido com o passar dos anos, à medida que Dona Sônia, não cedendo à
pressão da sociedade, continuava seu trabalho social, que mais tarde foi reconhecido e ganhou
o respeito da comunidade da cidade. Fato que ilustra a notoriedade desse trabalho são os
diversos prêmios recebidos por Dona Sônia, alguns deles apresentados nas FIG. 4, 5 e 6.
FIGURA 4 – Diploma de Honra ao Mérito “Mariinha Moreira” - 2007 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia
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FIGURA 5 – Placa referente a Destaque na Ação Social em 1996 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia
FIGURA 6 – Medalha de Honra ao Mérito de 1996 Fonte: arquivo pessoal de Dona Sônia
É importante ressaltar a postura assumida pela creche diante dos assaltos relatados e de
atitudes de preconceito. Aparentemente Dona Sônia não entrou em confronto com a
sociedade, mas procurou, através do trabalho desenvolvido e dos resultados alcançados, obter
o respeito da comunidade. Em O Evangelho segundo o espiritismo, Kardec afirma o
seguinte:
[...] que maior glória lhe advém de ser ofendido do que de ofender, de suportar pacientemente uma injustiça do que de praticar alguma; que mais vale ser enganado do que enganador, arruinado do que arruinar os outros. E, ao mesmo tempo, a condenação do duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé na vida futura e na justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao homem forças para suportar com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos interesses e no amor-próprio. Daí vem o repetirmos incessantemente: Lançai para diante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material, tanto menos vos magoarão as coisas da Terra (KARDEC, 2002, p. 252).
A reação de Dona Sônia, em consonância com a doutrina espírita, demonstra sua confiança e
perseverança no trabalho que desenvolvia, e ao mesmo tempo se configura como um exemplo
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de paciência e resignação. Se tivesse feito de outra maneira, se revoltando, talvez a creche não
tivesse resistido, pois aqueles que atacavam a creche poderiam ter angariado simpatia junto à
comunidade e ter visto reforçado seu preconceito contra as atividades espíritas.
Outra dificuldade enfrentada pelo CEV nesses 27 anos de história, conforme explicitado por
Dona Sônia, foi a realidade social brasileira, o que, por outro lado, também justifica sua
própria existência. Segundo a entrevistada, a criança chega na creche, com pouquíssimas
exceções, mal amada, mal alimentada, suja, vítima de negligência, de maus tratos em casa,
trazendo consigo os vários traumas que caracterizam a realidade social das crianças desse
país. A creche, vendo as dificuldades específicas de cada criança, auxilia as famílias, na
medida do possível, indicando outros profissionais (psicólogos, neurologistas, psiquiatras)
que fornecem seus serviços gratuitamente. No entanto, existem pais que não recorrem a esses
profissionais, ou por não acreditarem na gravidade da situação ou por descaso quanto à saúde
dos filhos.
Este assunto também foi levantado por Sueli, atual dirigente do CEV, que fez o seguinte
relato:
Teve o caso de uma menina lá agora com problema de sexualidade terrível. Conversei com o pai. O pai é um velho alcoólatra. A mãe é uma senhora já, que adotou essa menina, que é filha da sobrinha. Ela morreu de rir das histórias que eu tava contando pra ela. Rindo! Falei: “Olha, a senhora tem que tomar uma providência, a senhora tem que ajudar a gente. Porque a primeira menstruação que essa menina tiver ela vai engravidar.” [E a mãe respondeu] “Ah... ela falou comigo, desde três anos ela falou comigo que ela ia ter um neném pra eu poder criar.” E ela acha lindo. [...] Ela [a menina] falou com a Nilma [monitora] que vai pra trás da caixa d’água brincar de fazer sexo. Quer dizer, onde é que essa menina aprendeu isso? A menina tem 5 anos. A menina é rebelde, indisciplinada, bate em todo mundo. Quando eu chamo ela pra conversar com ela, a menina berra, esperneia, faz aquela confusão toda. O que que a gente faz? Vou arrumar um psicólogo pra ela. E ai? Ela sai da creche e vai ficar lá. Eles moram num cubículo [...] com casa de um lado e do outro, galinha, cachorro, tudo solto lá. [...] Até a velha chegar do serviço ela fica lá no meio da bagunça. Agora, sai da creche e vai ficar a parte da tarde lá, porque ela vai pro grupo (escola regular) e vai ficar lá no meio da bagunça. Vai engravidar, não tenho a menor dúvida.
Segundo Dona Sônia, tais crianças, carentes tanto material quanto afetivamente, se não
auxiliadas, podem desenvolver-se à margem da sociedade, tendo dificuldades em se manter na
escola regular devido ao seu comportamento agressivo. Muitas vezes essas crianças acabam
tornando-se criminosos. É o desejo de alterar esse curso de vida que justifica a atuação da
creche, que no entanto sabe que sua influência é limitada, já que a criança também é educada
101
em sua família, muitas vezes apenas por sua mãe (que em alguns casos estão envolvidas com
a prostituição).
Um ponto ressaltado durante as entrevistas é que, quando saem da creche e entram para a
escola regular, as crianças passam a ficar mais tempo em casa. Se não houver ocorrido uma
mudança de hábitos da família, ao longo do tempo em que a criança estava na creche, todo o
trabalho desenvolvido pela organização se perde, já que a criança volta para um ambiente
hostil, com falta de perspectivas futuras, no qual retoma toda a sua agressividade. Para que o
trabalho da creche fosse mais bem sucedido, ele deveria envolver de modo mais completo
toda a família, o que no momento é impossível, devido à dificuldade de recursos humanos e
financeiros.
É importante ressaltar que, embora haja o desejo da creche de contribuir para o
desenvolvimento social das crianças e das famílias, muito do trabalho da creche se perde na
prática. As entrevistadas reconhecem o que tem que ser feito, mas constatam que a creche não
pode fazê-lo como desejado. A ação da creche é localizada, e por isso menos eficaz.
As entrevistadas acusam os órgãos públicos de ignorarem tal situação, não porque não
existam profissionais competentes na administração pública, mas por falta de visão e boa
vontade para buscar uma solução social e econômica para as famílias. O resultado é que os
serviços fornecidos pela creche acabam sendo pouco efetivos, em termos de promoção social.
Essa é uma realidade à qual a creche se tenta se adequar, apesar de reconhecê-la e criticá-la
durante a entrevista.
A tendência a compartimentar as ações sociais caracteriza em grande parte o funcionamento
do Estado, que trabalha geralmente com o indivíduo, e não com a unidade familiar ou social.
Assim, a ação com vistas ao desenvolvimento social acaba se restringindo, na prática, ao
assistencialismo. Nesse ponto entra a idéia da “intersetorialidade”, muito discutida na
atualidade.
As estruturas setoriais (do governo, que dividem as responsabilidades entre as secretarias: educação, saúde, cultura, esportes, etc) tendem a tratar o cidadão e os problemas de forma fragmentada, com serviços executados solitariamente, embora as ações se dirijam à mesma criança, à mesma família, ao mesmo trabalhador e ocorrem no mesmo espaço territorial e meio ambiente. Conduzem a uma ação desarticulada [...]. Contrapõe-se à setorialidade uma nova lógica que se refere
102
basicamente à população [...]. As prioridades neste caso são definidas a partir de problemas da população, cujo equacionamento envolve ações integradas de vários setores. Esta proposta supõe a articulação dos dois eixos: descentralização e intersetorialidade. [...] descentralização [...] é compreendido como transferência do poder de decisão para as instâncias mais próximas e permeáveis à influência do cidadão (refere-se ao terceiro setor) e [...] (intersetorialidade) diz respeito ao atendimento das necessidades desses mesmos cidadãos de forma sinérgica e integrada. (JUNQUEIRA; INOJOSA; KOMATSU, 1997).
A escassez de recursos é outra dificuldade que sempre esteve presente na história da creche.
Quando falta algum recurso (humano, material ou financeiro), o dirigente da creche na
ocasião entra em contato com amigos pessoais e solicita auxílio. Outra maneira de enfrentar a
escassez de recursos são as campanhas realizadas pela Casa Espírita Cantinho de Amor, como
almoços e jantares beneficentes e rifas. Essas ações não são regulares, e acontecem quando
surge a necessidade.
No ano de 2.000 houve uma tentativa mal sucedida da creche de garantir sua sustentabilidade
financeira através do lucro gerado por uma fábrica de telas e vassouras, criada e controlada
pela creche. No entanto, não havia disponibilidade de voluntários com conhecimento
gerencial para administrar a fábrica nem recursos para se contratar um profissional. A
empresa era muito pequena, sem penetração no mercado, sem poder de compra perante os
fornecedores e oferecia produtos de baixa qualidade, fatores que determinaram seu
fechamento depois de dois anos de funcionamento. Patrícia relata:
...um problema ainda existe que é o que a gente tentou consertar com a fábrica de tela e de vassoura. [...] Mas é uma coisa que depende de uma doação completa, como é o caso da mamãe. Mamãe doou a vida dela completamente para a entidade. Então aí funciona. Mas depois da mamãe ninguém mais tem esse tempo pra doar. O exercício de montar a fábrica de tela e vassoura [...] não funcionou por falta de ter uma pessoa de tempo integral. [...] E essa pessoa pra ser paga não dá. Na época tinha uma visão menor do que tem hoje, né? Quando todo mundo falava da gente fazer um plano e fazer pesquisa e ver se o produto era bacana ou não no mercado, eu não tinha a visão que eu tenho hoje. E eu fico vendo isso hoje quando eu pego alguma coisa pra fazer na minha vida profissional. Eu falo: Nó, fizemos tudo errado!
Ainda hoje a creche apresenta insuficiência de recursos, principalmente financeiros, para que
sejam realizadas reformas necessárias à conservação e adaptação do imóvel onde funciona o
CEV. Desde o começo de suas atividades, em 1981, o Centro Educacional Viver realizou
somente pequenos reparos em sua estrutura física. No entanto, como se trata de uma
construção de madeira, percebe-se a necessidade urgente tanto da recuperação de partes muito
103
danificadas, quanto de adequação das instalações para atender às exigências da legislação
referente às creches.
Atualmente, a manutenção das atividades da creche é possível graças às parcerias mantidas
com órgãos governamentais (QUADRO 16), tanto para reformas e ampliações pontuais como
para a obtenção de alimentos para as crianças e pagamento dos funcionários.
QUADRO 16 Parcerias do Centro Educacional Viver
Fonte: Elaborado pela autora
A parceria com o FUNDEB, que é mantido pelo MEC, cobre o pagamento de funcionários e a
manutenção das atividades cotidianas. Através do FIA a instituição recebe recursos para a
execução de pequenas obras, para as quais deve ser apresentado um Plano de Aplicação para
apreciação do Conselho da Criança e do Adolescente. Atualmente está em vigor o Plano de
Aplicação para a reforma de toda a rede elétrica do CEV. A Mesa Brasil SESC fornece
orientação nutricional e doa alimentos à creche quinzenalmente.
Em 2008 houve alteração no formato do convênio com o MEC (FUNDEB), que passou a
disponibilizar recursos, através da Prefeitura, para a manutenção do CEV e para a realização
das adaptações exigidas pela lei em sua estrutura física. Até então, essa verba era insuficiente
para cobrir as despesas mensais, que eram complementadas pelas iniciativas para angariar
fundos, efetuadas pela casa espírita.
104
Como já mencionado, a diretriz do MEC é ter todas as instituições de ensino de pré-escola do
Brasil regulamentadas dentro de aproximadamente três ou quatro anos. Para isso, exigências
são feitas às instituições parceiras do MEC: elas devem empregar um profissional formado em
pedagogia, devem possuir monitores formados ou em formação, ter sua situação burocrática
regulamentada no MEC e adotar um regimento interno onde conste cláusula de inclusão
social.
Patrícia, filha de Dona Sônia, considera que o poder público utiliza uma forma de raciocínio
única para equacionar problemas e atender às necessidades de toda e qualquer entidade,
desconsiderando as características peculiares de cada organização. Por exemplo, a exigência
de que a creche acolha crianças especiais (cláusula de inclusão social) desconsidera a
impossibilidade de a creche fazê-lo presentemente, por falta de estrutura física e humana para
tal.
Por outro lado, Dona Sônia, fundadora da creche, acredita que exista um descompasso entre o
que ela mesma idealizava para a creche e as exigências do MEC.
Mudou tudo agora, a feição da creche. A creche antigamente era um lar para as crianças, né? Eu que fazia o cardápio, eu era psicóloga, eu era pedagoga, era tudo lá. Chamava a atenção dos meninos, mãe não falava palavrão; no meu tempo mãe não falava palavrão no portão da creche. Foi um tempo assim que era um lar, não é só para as crianças, é para as mães também. Agora hoje mudou. Acho que é por causa do progresso, né? Nós somos cadastrados no MEC e o MEC agora quer implantar lá o sistema de escola. Então nós estamos nesta transição. Como é que nós vamos fazer para atender o ideal da creche e para atender as exigências do MEC? [...] Não podemos deixar de seguir as linhas do progresso, mas não queremos deixar morrer o ideal de creche, de lar, de proteção, além da informação que é dada à criança. [...] Qual é a diferença da creche para a escola? Porque na creche a criança fica o dia todo, é o segundo lar delas. Então lá você corta cabelo, você cuida dos piolhos, você conversa com as crianças. A proteção é mais individual, não é global.
É importante observar a mudança do caráter pessoal, da assistência individual, para o modelo
de escola imposto pelo MEC, que pode ser mais estruturado, mas é mais impessoal. Nesse
sentido, a creche experimenta, no processo imposto de sua profissionalização (que
eventualmente pode até ser benéfico para os assistidos) o receio da despersonalização do
trabalho junto às crianças.
105
Por outro lado, há a frustração pessoal da fundadora da creche, com a descentralização do
poder do dirigente e sua perda de controle direto sobre o funcionamento da organização. A
reação de Dona Sônia é compreensível, já que ela esteve à frente da creche durante vários
anos e ainda se envolve nos assuntos da organização, que se apresenta a ela com um grande
apelo sentimental. A creche é por ela considerada como uma extensão de sua casa e com as
novas normas estabelecidas pelo MEC ela sente que seus ideais estão ameaçados.
Então a creche pra mim era igual minha casa. Como eu não tinha capacidade pra fazer nada diferente, a creche funcionava igual funcionava minha casa. Como é que eu queria tratar dos meus filhos? Como é que seria eu chamar atenção de uma criança, do meu filho? Então tudo eu fazia lá como se fosse meu filho. Então era a minha família. Agora, com a entrada da escola, a creche foi inundada de burocracia. E isso está me assustando, sabe? Isso está me assustando, mas eu também não posso virar as costas pro progresso. A vida anda. As coisas vão encaminhando. Só que eu acho que a minha noção de creche ela não pode ser perdida. Porque, vamos dizer assim, é o mel que adoça as outras coisas, entendeu?
Uma conseqüência importante da transformação da creche em pré-escola ligada ao poder
público, conforme o entendimento de Patrícia, é a possível obrigatoriedade do recebimento de
qualquer criança e não apenas daquelas que apresentam dificuldades financeiras e problemas
na família. O mesmo se aplica à exigência imposta pela creche de que as mães trabalhem.
Segundo Patrícia, todo o trabalho desenvolvido pela creche se volta hoje para a criança
carente, e não para qualquer criança. Por exemplo: a alimentação da creche é preparada para
suprir a necessidade daquela criança que não come em casa. Patrícia apresenta o seguinte
depoimento, bastante revelador da diferença de postura exigida pelo MEC:
É como se eles estivessem comprando o nosso sonho [...]. Estão impondo o desejo deles e fazendo com que a gente desista dos nossos sonhos. Porque são ambíguos, são completamente diferentes. [...] E não fazem nem com delicadeza, eles não estão achando que estão lidando com um sonho, não sabem o que tem por trás. Eles entram e arrebentam. Entram lá e tratam a creche como empresa, e não é. A creche foi construída em cima de um sonho. Ela é um sonho [...] Quem mantém a creche não mantém por dinheiro. É um trabalho voluntário, é um tempo doado em razão de uma causa.
Por outro lado, as entrevistadas reconhecem que a parceria com a esfera pública é
fundamental para a sobrevivência da organização e que, com sua efetivação, a creche deverá
seguir as exigências do órgão público parceiro. No entanto, como as regras foram
estabelecidas pelo MEC em 2008 e ainda não estão muito claras, optou-se por aguardar as
diretrizes do MEC para 2009 para então decidir o que será feito com relação à creche. Patrícia
acredita, no entanto, que a creche já começou a perder as bases que inspiravam e
106
fundamentavam seu trabalho, descaracterizando-o ao deixar de lado aspectos fundamentais de
sua finalidade. Ela comenta, por exemplo, que “as funcionárias começaram a ter postura de
funcionário que cumpre carga horária”. Novamente Patrícia apresenta outro depoimento
revelador, que sugere um atual comprometimento emocional dos dirigentes da creche que
pode se perder diante da burocratização:
Se a criança chorar no horário de almoço, paciência... [...] Começaram a trabalhar como uma indústria, uma fábrica, e não como um local aconchegante onde as crianças se sentiam mais em casa. [...] No que a Prefeitura massifica e impõe regras, as monitoras não podem ser mais aquelas escolhidas pelo coração, tem que ser aquelas escolhidas pela condição de sapiência. E aí pronto, a gente não tem mais como fazer com que o sonho dê certo; porque a gente perde isso no dia-a-dia.
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas ainda hoje, as entrevistadas afirmam que, ao
longo de sua existência, a creche alcançou o resultado esperado, referindo-se sempre ao efeito
da creche na vida das crianças que acolheu. As entrevistadas relataram histórias muito
positivas, de crianças que se tornaram adultos trabalhadores, que conseguiram formar uma
família, conseguiram se manter vivas. Segundo Dona Sônia, “o trabalho de formar pessoas
dignas na sociedade é o maior valor da creche”. Patrícia apresenta o seguinte comentário:
Acontece sempre que a gente encontra um menino da creche na rua. [...] Outro dia foi um no bazar, acompanhando a esposa. Chegou lá e falou assim: - Gente, mas eu já tive na creche. - É mesmo? Você se lembra de mim? - Claro que lembro! Lembro de você, da Carla... Que bacana! Um rapagão, com três meninas, comprando no bazar e que lembrava da gente. Isso é uma coisa tão bacana! Você ver que o cara está trabalhando hoje, numa peleja danada, mas trabalhando e com três crianças, com mulher e com três menininhas [...] Hoje até estar vivo nesta idade é bacana, já é uma referência bacana. [...] A gente vive encontrando com eles e eles vivem gritando “Oi tia Patrícia, oi vovó Sônia”, qualquer lugar eles gritam a gente, e é muito gostoso. (Patrícia)
Sueli, atual dirigente da creche e irmã de Dona Sônia, afirma que a melhor coisa que
aconteceu foi o reconhecimento da creche pela sociedade. Ela não se refere ao
reconhecimento como reputação positiva adquirida pela creche, mas ao reconhecimento da
contribuição pessoal de Dona Sônia à sociedade e ao reconhecimento da própria doutrina
espírita, que experimentou uma difusão muito grande na cidade. “Eu acho que isso foi uma
conquista muito grande.” A entrevistada completa, dizendo que assim mais pessoas aderiram
à causa da ação social dirigida às crianças:
107
E outras coisas, por exemplo, o prefeito que teve aí antigamente, o Bilé. O Bilé ele ofereceu voluntariamente para fazer aquela expansão da creche lá trás. [...] E isso não é pelo fato dele ter feito uma avaliação material, dizer: ‘Ah, a creche ficou mais bonita’. Não. Porque isso beneficiou as crianças e teve condição de ampliar o número de crianças que foram atendidas. Entendeu? Então são essas coisas que vêm acontecendo e vêm acontecendo regularmente. [...] As pessoas levam, doam, chegam lá e falam pra gente: ‘Olha aqui, nós “tamo” trazendo isso aqui porque a gente sabe que vai ser bem encaminhado’.
4.2.4 Relação entre o funcionamento e a gestão da organização e a doutrina espírita
Ao longo das entrevistas realizadas com as três entrevistadas ficaram patentes características
do funcionamento e da gestão da creche que se justificam ou se inspiram nos fundamentos da
doutrina espírita. Entre essas características estão o ideal de promoção social das crianças
atendidas pela creche, a exigência de que as mães trabalhem para que se desenvolvam
pessoalmente e profissionalmente, a participação constante de voluntários incitada e
controlada pela Casa Espírita Cantinho de Amor e a disciplina exigida às crianças e mães.
Quando indagada explicitamente sobre a influência da doutrina espírita sobre a gestão da
creche, Patrícia, filha de Dona Sônia, afirma que não há como separar a gestão da creche dos
fundamentos da doutrina espírita, uma vez que ambos estão intrinsecamente ligados. Como
exemplo de sua afirmação, a entrevistada relata que houve uma época em que havia
funcionários na creche que não eram contratados, e isso incomodava muito a direção da casa
espírita. Era um conflito, pois a creche não tinha condição financeira para manter funcionários
contratados, mas ao mesmo tempo não achava certo não contratá-los, pois isso era ilegal.
“Portanto, a creche não estava agindo de acordo com os preceitos do homem de bem.” Com o
passar do tempo, todas as funcionárias foram contratadas e hoje não existem mais
funcionários sem carteira assinada na creche.
Patrícia comenta ainda que às vezes é difícil tomar algumas decisões na gestão da creche, e
que é preciso que a decisão esteja de acordo com as idéias do gestor, com suas crenças e seus
conceitos. No caso do CEV, todos os gestores estão e estiveram imbuídos dos princípios da
doutrina. No entanto, a entrevistada afirma que a reação do gestor diante de uma determinada
situação também é muito pessoal. As pessoas são diferentes, umas são mais emocionais e
outras mais racionais. E a personalidade do gestor da creche também influi na tomada de
108
decisão. Por exemplo, Sueli é apresentada como sendo mais objetiva e mais preocupada com
assuntos administrativos que Dona Sônia. Dona Sônia, na visão dos entrevistados, é mais
dócil e carismática. As crianças da creche a chamam de “Vó Sônia”. Por isso, na sua gestão a
creche tenderia a ser mais humana, assemelhando-se a um lar, à casa de uma avó.
Sueli relaciona a maneira de gerir a creche com os princípios da doutrina espírita da seguinte
forma:
O que é básico lá na creche, que a gente procura passar, eu recebi isso da Sônia e todo mundo que trabalha lá tem, é que nós temos que tratar aquelas crianças como se fossem nossas. É um irmão em humanidade. A gente procurar ver aquelas crianças como se fossem nossos irmãos e dar o melhor pra elas em todos os aspectos, né? Esse é o ponto. Apesar de ter exceções, as pessoas que trabalham como voluntários na creche elas têm um vínculo com nossa casa espírita. Por que? Pra que elas não levem idéias que não sejam as nossas idéias. Por exemplo, de como conduzir com a criança, tipo de castigo, de punição. Às vezes nós damos uma aula de evangelização pras crianças, mas não é direcionada especificamente a doutrina espírita. Nós não damos aula de reencarnação. Quer dizer, dá aula de evangelização procurando passar pras crianças os valores morais que toda religião prega.
Na creche, as crianças são vistas como pertencentes a uma família, como filhos, como netos.
Segundo os relatos, quando a criança tem um problema, procura-se saber o motivo. Portanto,
o vínculo que se busca estabelecer com a criança é afetivo, pessoal e particular, o que se
sustenta, segundo Dona Sônia, pelos preceitos de amor interpessoal defendido pela doutrina
espírita. Veja-se a esse respeito o relato de D. Sônia:
E nisso entra a nossa visão religiosa do “amai-vos uns aos outros”. [...] Acho que é essa diferença aí que faz com que a nossa visão religiosa espírita faça efeito. Porque na realidade essas crianças precisam de amor. Tudo o que elas demonstram de rebeldia é carência afetiva de dentro do lar.
Os dados apresentados nessa etapa da pesquisa indicam que a idéia de criar a creche não
partiu da casa espírita, embora sua fundadora, Dona Sônia, tenha aceitado o desafio e
dedicado sua vida à organização, figurando como sua dirigente durante 25 anos. As parcerias
com os órgãos públicos sempre existiram na história da creche e ainda hoje estão presentes,
sendo responsáveis pela continuidade de seu funcionamento. A casa espírita se implica
financeiramente somente para completar os recursos obtidos através das parcerias e em casos
de necessidade. Por outro lado, há um claro vínculo hierárquico que submete a creche ao
conselho diretor da casa espírita, principalmente em relação a questões estratégicas, que
109
envolvem maiores investimentos ou reorientações administrativas. Na gestão cotidiana da
creche, contrariamente, seu dirigente goza de autonomia. Fato que merece destaque é que a
participação voluntária dos freqüentadores da casa espírita na creche só ocorreu há
aproximadamente 10 anos, por incitação de Dona Sônia. A participação dos voluntários é
controlada pela casa espírita, e suas atividades lhes são designadas pela dirigente da casa.
Dificuldades que o CEV enfrentou durante sua existência foram mencionadas pelas
entrevistadas: o preconceito em relação ao fato de a creche estar ligada a uma casa espírita; a
dimensão dos problemas sociais brasileiros, que limitam e mesmo tornam ineficazes as ações
da creche em relação ao desenvolvimento social; a obtenção de recursos e a adequação às
exigências dos parceiros públicos. Mesmo diante desses desafios, a creche persistiu em seu
trabalho social e insiste na preservação de sua autonomia face às fontes financiadoras. Tal
trabalho aporta como principais resultados o efeito positivo na vida das várias crianças que
foram atendidas e uma maior implicação da comunidade com os problemas sociais.
A creche foi criada com o objetivo de fazer com que crianças desfavorecidas tivessem as
mesmas oportunidades que crianças cujas famílias são estruturadas e apresentam melhor
situação econômica. A organização apresenta, portanto, um objetivo de desenvolvimento
social que vai além da assistência social, voltando-se também à organização familiar,
incentivando as mães ao trabalho e fazendo com que as famílias desenvolvam aspectos
relacionados à disciplina, elementos que se justificam igualmente pela concretização dos
princípios da doutrina espírita. Embora ainda de maneira incipiente, observa-se que há uma
preocupação com a profissionalização das atividades desenvolvidas no CEV.
A influência dos princípios da doutrina espírita (sobretudo da Lei de Sociedade, da Lei do
Trabalho e da Lei de Justiça Amor e Caridade) é preservada pela centralização de poder na
figura do dirigente da creche (dirigente escolhido pelo grupo gestor da casa espírita), pela
participação da direção da casa espírita na tomada de decisões estratégicas da creche e pela
participação dos freqüentadores da casa espírita, como voluntários da organização de fins
sociais.
110
5 CONCLUSÃO
Devido ao alcance cada vez maior das iniciativas promovidas pelas organizações do terceiro
setor na sociedade, e tendo em vista o vínculo que algumas dessas organizações apresentam
com a doutrina espírita, este estudo foi realizado a fim de caracterizar as organizações do
terceiro setor ligadas às casas espíritas e avaliar a influência dos fundamentos da doutrina
espírita em suas práticas de funcionamento. Para isso, foram escolhidas como objeto de
estudo as casas espíritas de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, e as
organizações de fins sociais a elas ligadas.
Para atingir o objetivo pretendido, foi utilizada uma metodologia qualitativa descritiva em três
etapas: na primeira etapa foi realizada uma entrevista com o Presidente da Associação
Municipal Espírita da cidade para levantar dados acerca do movimento espírita, arrolando
informações que complementaram o quadro teórico da pesquisa; na segunda etapa foi
realizada uma sondagem em 12 das 13 casas espíritas da cidade para identificar as
organizações de fins sociais por elas mantidas e caracterizar seu funcionamento; e na terceira
etapa foi desenvolvido um estudo de caso em uma organização ligada a uma das casas
espíritas abordadas, a fim de conhecer em profundidade particularidades da gestão dessa
organização, bem como seus processos de criação e funcionamento.
Foram identificadas atividades sociais realizadas por todas as casas espíritas entrevistadas,
mas a maioria delas opta por empreender projetos sociais não estruturados em organizações.
Não foi constatada uniformidade em relação aos projetos realizados, percebendo-se variações
quanto ao seu objeto, ao público, ao formato, à periodicidade e ao seu escopo.
Foram identificadas apenas quatro organizações de fins sociais ligadas às casas espíritas
abordadas, de acordo com os critérios definidos nesta pesquisa. Entretanto, somente duas
dessas organizações possuem CNPJ distinto do CNPJ da casa espírita. O público atendido
também difere: três organizações se voltam para o atendimento de crianças, caracterizando-se
como creches, e uma organização se dedica ao atendimento de idosos, caracterizando-se como
casa de repouso. Percebe-se solidez nas organizações de fins sociais mantidas pelas casas
111
espíritas, já que a creche mais nova abordada existe há mais de 15 anos e a casa de repouso
está em funcionamento há mais de seis anos.
Não há obrigatoriedade de vínculo dos funcionários contratados ou dos voluntários das
organizações de fins sociais com a casa espírita, embora se constate tal situação em algumas
das organizações estudadas. Ainda que se verifique a presença de numerosos voluntários
nessas organizações, nas mais diversas funções, as atividades cotidianas são asseguradas pelo
emprego de funcionários contratados (nem sempre no regime CLT). A escolha do dirigente da
organização é feita pela casa espírita, devendo o dirigente ser trabalhador atuante da casa
espírita, o que viabiliza, em grande parte, a influência da casa espírita na organização de fins
sociais. Apenas em uma das creches o dirigente é remunerado.
No que se refere aos recursos financeiros, 70% dos recursos das creches são oriundos de
parcerias com órgãos públicos, destacando-se a Mesa Brasil SESC, o FUNDEB e o FIA.
Somente na casa de repouso a obtenção de recursos através de parcerias é pouco expressiva,
tendo em vista a carência de políticas públicas voltadas a esse público. Sua principal fonte de
recursos é proveniente da contribuição mensal dos assistidos. Campanhas de arrecadação de
fundos das casas espíritas e doações de outras instituições públicas e do terceiro setor
complementam os recursos dessas organizações de fins sociais.
Portanto, não há uniformidade nas organizações de fins sociais estudadas no que se refere ao
público atendido, à distinção jurídica em relação à casa espírita, à proveniência de recursos,
ao vínculo de funcionários e voluntários com a casa espírita e à remuneração dos dirigentes.
Essa ausência de uniformidade pode ser explicada devido à ausência de diretivas e controle
por parte dos órgãos relacionados à estruturação do movimento espírita, tais como a
Associação Municipal Espírita, a União Espírita Mineira e a Federação Espírita Brasileira, o
que pode ser debitado à prática do livre-arbítrio (Lei de Liberdade), defendida pela doutrina
kardecista.
O estudo de caso realizado junto ao Centro Educacional Viver – CEV revelou que, ainda que
ligado à Casa Espírita Cantinho de Amor, a idéia de criar a creche partiu da iniciativa de um
particular, que fez a doação das instalações físicas. No entanto, sua fundadora, que esteve à
frente da organização de fins sociais durante 25 anos, é fortemente ligada à direção da casa
112
espírita, assim como as diretoras que a sucederam na creche. A sobrevivência do CEV durante
seus 28 anos de funcionamento foi garantida através de parcerias com órgãos públicos, sendo
que, havendo escassez de recursos, a casa espírita se mobiliza para angariá-los.
A influência da casa espírita no CEV não se faz, portanto, através do seu aporte financeiro,
mas através do dirigente da organização, que é escolhido pelo grupo gestor da casa espírita. O
grupo gestor, ao qual o dirigente deve prestar contas, também emite decisões sobre os
assuntos estratégicos da organização, como novos investimentos e reorientações
administrativas. Além disso, a influência da casa espírita é assegurada pela participação de
trabalhadores da casa espírita, na qualidade de voluntários, sendo que esse tipo de dinâmica
foi intensificado nos últimos 10 anos. No entanto, é importante ressaltar que na gestão
cotidiana da creche a autonomia do dirigente é garantida.
As principais dificuldades enfrentadas pelo CEV, listadas pelas entrevistadas, foram as
seguintes: o preconceito enfrentado pela organização de fins sociais pelo fato de estar ligada a
uma casa espírita; a situação social do Brasil, que limita a efetividade do trabalho da creche; a
obtenção de recursos; e a adequação da creche às exigências dos parceiros públicos, que por
vezes ameaçam a autonomia dessa organização, autonomia essa que tem sido tenazmente
defendida. Apesar dessas dificuldades, foram citados resultados positivos obtidos pelo
trabalho realizado pela creche, relacionados ao efeito da creche no desenvolvimento das
crianças atendidas e ao maior envolvimento da comunidade em problemas sociais.
Foram constatadas na creche iniciativas de promoção social, no sentido de oferecer às
crianças carentes as mesmas condições de desenvolvimento propiciadas às crianças
pertencentes a famílias em situação financeira favorável. O objetivo de desenvolvimento
social também se revela através da preocupação da creche com a organização familiar das
crianças atendidas, exigindo que as mães tenham um trabalho remunerado e desenvolvendo
aspectos relacionados à ordem e à disciplina. Dessa forma, não obstante o fato de que os
entrevistados da pesquisa caracterizaram as atividades desenvolvidas nas organizações
abordadas como assistenciais, na prática verificou-se que essas organizações sempre se
preocuparam e atuaram no sentido de proporcionar o desenvolvimento social, o que vem ao
encontro da atual orientação das organizações do terceiro setor.
113
Através da pesquisa percebe-se grande aderência do trabalho realizado nas organizações de
fins sociais aos princípios da doutrina espírita. Verifica-se a aplicação da Lei do Trabalho à
medida que as creches incentivam as mães das crianças a exercerem uma atividade com
finalidade útil, qual seja, a manutenção do seu sustento e o de sua família. Ao mesmo tempo,
essa iniciativa visa à formação de um ambiente familiar mais saudável para as crianças, que
após completarem seis anos de idade ficarão mais tempo em contato com a família. Por outro
lado, existe a preocupação em oferecer às crianças uma condição de vida semelhante àquela
das crianças criadas em ambientes mais favoráveis, principalmente no que se refere à saúde,
alimentação e educação, o que se sustenta na aplicação da Lei de Sociedade. Ao visualizar as
crianças como membros de suas famílias, as gestoras das creches deixam transparecer a
influência da Lei de Amor, Justiça e Caridade. Conforme mencionado pelos entrevistados,
“fora da caridade não há salvação” (repetindo KARDEC, 2002, p. 312), ou seja, não é
possível amar a Deus sem praticar a caridade. A manutenção de projetos e organizações de
fins sociais configura-se assim como a concretização dos princípios da doutrina espírita.
Percebe-se por isso o alinhamento das casas espíritas quanto à necessidade de manutenção de
ações sociais.
É importante ressaltar que esta pesquisa foi realizada no universo de treze casas espíritas,
localizadas numa única cidade, da região metropolitana de Belo Horizonte, e que o estudo em
profundidade foi conduzido em uma dessas casas. Seu escopo é portanto limitado, mas
espera-se que estimule a produção de outros estudos sobre o tema, envolvendo casas espíritas
e organizações de fins sociais a elas ligadas em outras cidade e até mesmo em outros Estados.
Esta pesquisa abre espaço igualmente para o estudo de outros aspectos relacionados às
organizações do terceiro setor ligadas à doutrina espírita, como o perfil dos voluntários das
organizações de fins sociais espíritas, as estratégias adotadas por tais organizações para fazer
frente às exigências dos parceiros, conciliando-as com seus objetivos, e o impacto das
diretrizes do MEC na profissionalização das creches espíritas.
Acredita-se que as contribuições deste estudo são fundamentais para o movimento espírita,
principalmente para a AME, que não dispõe de informações sobre as atividades sociais
desenvolvidas nas casas espíritas da cidade. A partir desta pesquisa essa associação poderá
orientar e mesmo promover o trabalho em rede dessas organizações, a fim de beneficiar as
próprias organizações. Mesmo durante a realização da pesquisa, evidenciou-se seu impacto
114
positivo nas casas espíritas envolvidas, que demonstraram inteirar-se de possibilidades de
aprimoramento em sua gestão, como o exercício de um maior controle, principalmente no que
se refere a informações estatísticas e financeiras.
O estudo também oferece pistas para o setor público a respeito do estreitamento de suas
relações com o terceiro setor, bem como sobre a necessidade de busca de modelos de gestão
alternativos e flexíveis que possibilitem o alinhamento entre os objetivos das várias
organizações de fins sociais e as expectativas de resultados por parte dos órgãos
governamentais.
Espera-se, por fim, que a comunidade acadêmica também se beneficie deste estudo, na
medida em que esta dissertação trata de um tema pouco explorado, mas que tem se destacado
como um desafio para o terceiro setor, no que tange à sua relação com as várias orientações
religiosas e filosóficas existentes.
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APÊNDICE B
Roteiro de Entrevista
1) Como foi fundada a instituição? (Como surgiu a idéia, como foram obtidos os recursos
materiais e humanos?)
2) Como funciona a instituição, como se organiza na prática?
3) Quais os maiores problemas enfrentados na história da instituição e como foram
solucionados?
4) Quais os eventos marcantes na vida da instituição?
5) Como você correlaciona as práticas de gestão da instituição com os fundamentos da
doutrina espírita?